Ser Historia Tecnica e Exterminio Na Obra de Heidegger - Emmanuel Faye

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    Educao e Filosoa Uberlndia, v. 26, n. 52, p. 613-640, jul./dez. 2012. ISSN 0102-6801 613

    SER, HISTRIA, TCNICA E EXTERMNIONA OBRA DE HEIDEGGER1

    Emmanuel Faye*

    RESUMOCom a publicao do curso de 1933 1934 que conclama a exterminaototal do inimigo interior, o ano de 2001 marca uma inexo na recepoda obra de Heidegger e exige o exame crtico do uso de termos-chave desua doutrina, tais como o ser, concebido por ele como termo codicado(Deckname), a histria, a tcnica e o extermnio ou aniquilamento(Vernichtung).Trata-se igualmente de recolocar numa perspectiva crticao projeto mesmo da obra completa (Gesamtausgabe).

    Palavras-chave: Ser. Histria. Tcnica. Extermnio. Heidegger.

    RSUMLanne 2001, avec la publication du cours de 1933-1934 appelant lextermination totale de lennemi intrieur, marque un tournant dans

    la rception de loeuvre de Heidegger, lequel rend ncessaire lexamencritique de lusage de termes clef de sa doctrine tel que ltre, conu parlui comme prte-nom (Deckname), mais aussi lhistoire, la technique etlextermination ou anantissement (Vernichtung). Il sagit galement deremettre en perspective critique le projet mme de l oeuvre intgrale(Gesamtausgabe).

    Mots-cls: tre. Histoire. Technique. Extermination. Heidegger.

    * Professor de Filosoa Moderna e Contempornea na Universidade de Rouen Frana.E-mail: [email protected] Traduo para o portugus de Ana Cristina Armond, Fbio Jlio Fernandes e FranciscaMaria Oliveira Linhares.

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    Introduo

    O ano de 2001, o primeiro de nosso sculo, marca uma inexona publicao da obra de Martin Heidegger. Aquele ano aparecem,comefeito, todos os primeiros cursos professados por ele sob o terceiro Reich.Com o ttulo em aparncia nobre de Ser e verdade(Sein und Wahrheit), oduplo volume 36/37 da obra completa (Gesamtausgabe) rene o curso dosemestre de vero de 1933, intitulado A questo fundamental da losoa(Der Grundfrage der Philosophie), e aquele do semestre de inverno de1933 1934, que tem por ttuloDa essncia da verdade(Vom Wesen der

    Wahrheit). Por que uma inexo? De um lado, porque esto entre os cursosos mais explicitamente nacional-socialistas e hitlerianos que ele professou:descobre-se que Heidegger no se limita a expor suas teses nacional-socialistas sobre o ser, a verdade, a historicidade do povo germnico nosdiscursos polticos, mas as introduz em seus cursos para transmiti-las aseus estudantes sob o manto da losoa. De outro lado, porque ele noensina apenas posies vlkisch e racistas inteiramente explcitas, mas,no curso do semestre de inverno de 1933 1934, manifesta uma vontadeexterminadora.

    Esses dois cursos no se permitem facilmente resumir e no sepode deixar de l-los integralmente. Heidegger mistura duas linguagens:de um lado, para o semestre de vero de 1933, um curso muito escolar,sem dvida redigido anteriormente, sobre o conceito de metafsica nopensamento moderno, de Descartes a Baumgarten, Kant e Hegel, e, parao semestre de inverno de 1933 1934, um curso jpronunciado sobre acaverna de Plato; de outro, o pathos nacional-socialista o mais radicalexpressoem teses abruptas.

    1. Uma doutrina exterminadora

    Assim, no curso intitulado Da essncia da verdade, Heideggerapresenta a seus estudantes como objetivo esgotar as possibilidadesfundamentais da estirpe originalmente germnica e de os conduzir dominao [um] die Grundmglichkeiten des urgermanischenStammeswesens auszuschpfen und zur Herrschaft zu bringen(GA 36/37,

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    89). Segue uma interpretao radical do conito (polemos) entendidocomo um fazer face ao inimigo (Stehen gegen den Feind), que no

    muito devedora de Herclito, mas deve exagerada e perigosamente aCarl Schimitt. Este ltimo lhe enviara sua edio de 1933 do Conceitodo poltico (Das Begriff des Politischen), adaptada moda do momentoe publicada pela editora nacional-socialista de Hamburgo: HanseatischeVerlagsanstalt. Heidegger lhe havia respondido, em 22 de agosto de1933, por uma carta de aprovao, na qual anuncia ter pronta h anos umainterpretao nova dopolemos heraclitiano. essa interpretao que eleexpe em seu curso:

    O combate enquanto fazer face ao inimigo [...]O inimigo aquele, todo aquele que lana uma ameaa essencialcontra a existncia do povo e de seus membros. O inimigo no necessariamente o inimigo exterior, e o inimigo exterior no necessariamente o mais perigoso. Pode mesmo parecer que noh inimigo de modo algum. A exigncia radical ento encontraro inimigo, p-lo em evidncia ou talvez mesmo cri-lo, a m deque tenha lugar o fazer face ao inimigo e que a existncia no seja

    entorpecida.O inimigo pode ser inserido na raiz a mais ntima da existncia deum povo e se opor essncia prpria desse, agir contra ele. Pormais rduo, duro e difcil seja ento o combate, uma vez que oafrontamento de uns contra os outros no constitui seno a sua menorparte, frequentemente uma tarefa bem mais difcil e de mais longoflego encontrar o inimigo enquanto tal, p-lo em evidncia, nose deixar iludir por ele, permanecer agressivo, gerir e aumentar suadisponibilidade constante e deagrar a agresso de longa durao com

    o objetivo da exterminao total (vlligen Vernichtung)2

    .

    2 Der Kampf als Stehen gegen den Feind []Feind ist derjenige und jeder, von dem eine wesentliche Bedrohung des Daseins des Volkesund seiner Einzelnen ausgeht. Der Feind braucht nicht der uere zu sein, und der uere istnicht einmal immer der gefhrlichere. Und es kann so ausstehen, als sei kein Feind da. Dannist Grunderfordernis, den Feind zu nden, ins Licht zu stellen oder gar erst zu schaffen,damit dieses Stehen gegen den Feind geschehe und das Dasein nicht stumpf werde.Der Fein kann in der innersten Wurzel des Daseins eines Volkes sich festgesetzt habenund dessen eigenem Wesen sich entgegenstellen und zuwiderhandeln. Um so schrfer

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    A insistncia com a qual Heidegger preconiza identicar o inimigointerior, at mesmo cri-lo, corresponde bem nova misso ento conada

    Gestapo: a busca do inimigo (die Gegnerforschung) descrita por ViktorKlemperer em seu jornal. Quanto a esse inimigo inserido na raiz a maisntima do povo germnico, ao qual preciso saber se opor no longo prazo,tomando por m sua exterminao completa, ele designa o oponentepoltico revoluo nacional-socialista, mas tambm, e, sobretudo, o judeuassimilado ao povo alemo, que deve ser identicado como tal a m seexterminar.

    Antes de Heidegger, Ernst Jnger havia, em um texto intitulado

    Sobre o nacional-socialismo e a questo judaica, dado como nicaalternativa ao judeu at ento assimilado ao povo alemo: ser ou no serjudeu (entweder Jude zu sein oder nicht zu sein). Trs anos mais tarde,Heidegger vai muito mais longe, pois j no h alternativa: somente aexterminao total tomada por objetivo. Quanto expresso vlligenVernichtung, exatamente aquela que emprega a Associao dos estudantesalemes da Universidade de Friburgo, de obedincia nazista, em umcomunicado publicado em 8 de maio de 1933 pelaBreisgauer Zeitung:

    A Associao dos estudantes alemes faz o seguinte comunicado:A Associao dos estudantes alemes est decidida a realizar ocombate espiritual contra a decomposio judaico-marxista do povoalemo at a exterminao total (vlligen Vernichtung). A cerimniapblica de queima dos escritos judaico-marxistas de 10 de maio de1933 simbolizar esse combate. Alemes, juntai-vos para o combate!Manifestai tambm publicamente a disposio comunitria aocombate! 3

    und hrter und schwerer ist der Kampf, denn dieser besteht ja nur zum geringsten Teil imGegeneinanderschlagen, oft weit schwieriger und langwieriger ist es, den Feind als solchenzu ersphen, ihn zur Entfaltung zu bringen, ihm gegenber sich nichts vorzumachen sichangriffsfertig zu halten, die stndige Bereitschaft zu pegen und zu steigern und den Angriffauf weite Sicht mit dem Ziel des vlligen Vernichtung auszusetzen. Martin Heidegger,Gesamtausgabe, Volume 36/37, Sein und Wahrheit. 1. Die Grundfrage der Philosophie. 2.Vom Wesen der Wahrheit, Frankfurt am Main, Klostermann, 2001, d. por Hartmut Tietjen,[GA 36/37], 90-91.3 Die Studentenschaft der Universitt Freiburg erlt folgendenAufruf: Die deutscheStudentenschaft ist entschlossen, den geistigen Kampf gegen die jdisch-marxistische

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    O que constitui a assustadora responsabilidade do professor Heidegger

    sua vontade de dar aos apelos exterminao dos judeus alemes e dos

    opositores polticos uma aparncia de legitimidade e de nobreza existenciale loscas. Ao utilizar os mesmos termos criminosos que a deutsche

    Studentenschaftnacional-socialista cujos dirigentes lhe so prximos, mostra

    sem ambiguidade a seus estudantes para qual m ele aponta.

    Todavia, devemos encarar o fato de que se trata de um cursopronunciado em 1933, mas publicado em 2001. Programada por Heideggeraps sua morte, a publicao sem nenhuma autocrtica e nenhum remorsode um tal texto me conduz a sustentar que a questo da relao entre

    Heidegger e o nacional-socialismo compreende em realidade duasquestes. A princpio a questo propriamente histrica do comportamentode Heidegger sob a dominao nacional-socialista.Ela diz respeito ao queele fez, escreveu, ensinou sob o III Reich. Pesquisas inteiramente decisivasforam realizadas com esse propsito. Nos anos de 1980, Hugo Ott provouque a autojusticao de seu reitorado elaborada por Heidegger em 1945 um texto em que cada frase contm uma omisso ou mentira. Depois dele,Victor Farias mostrou, na terceira parte de seu Heidegger e o Nazismo,que longe de se manter distante do regime aps sua demisso da reitoria,Heidegger se engajou em novas aes, mais comprometedoras ainda se issofor possvel, como sua participao ativa ao lado de Rosenberg, Schleider eSchmitt da comisso para losoa do direito da Academia do direito alemode Hans Franck, encarregada de fundamentar as futuras leis de Nuremberg. preciso evocar igualmente os trabalhos de Bernd Martin, que mostrama participao ativa de Heidegger na elaborao da nova constituiouniversitria destinada a introduzir o Fhrerprinzip na UniversidadeAlem, e aqueles de Claudia Schorcht, que descobriu e publicou as reaes

    inquietas dos lsofos da universidade de Munique, quando da convocaode Heidegger, em setembro de 1933, pelo Ministrio para ir referidauniversidade: eles o julgaram politicamente muito extremo (politischzu

    Zersetzung des deutschen Volkes bis zur vlligen Vernichtung durchzufhren. Als Sinnbilddieses Kampfes gelte die ffentliche Verbrennung des jdisch-marxistischen Schriftums am10. Mai 1933. Deutsche, sammelt euch zu diesem Kampf ! Bekundet die Kampfgemeinschaftauch ffentlich. Breisgauer Zeitung, 8 mai 1933, cit par Schneeberger, Nachlese zu

    Heidegger. Dokumente zu seinem Leben und Denken.Bern, 1962, p. 30-31.

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    extrem) e que, com sua lngua exttica (extatischen Sprache) e com taisfrases, os estudantes no podiam vernenhuma losoa sendo exposta4. Os

    arquivos esto longe de ser esgotados,e as pesquisas devem nitidamenteprosseguir.

    H, no entanto, outra questo complementar e que se refere maisdiretamente Filosoa. Trata-se de sondar at onde foi a introduo, porHeidegger, de posies radicalmente nacional-socialistas em sua obra.At qual ponto exatamente, mas tambm a partir de qual momento e atquando? A questo j no diz respeito somente losoa no nacional-socialismo, mas ao nacional-socialismo na losoa, ou antes, no que tem

    a pretenso de ser tal, pois no penso que possa haver losoa merecedoradesse nome que seja radicalmente racista e exterminadora, como oensinamento proferido por Heidegger no curso citado.

    2. O Ser como termo codifcado (Deckname)

    Parece hoje certo que a questo do nacional-socialismo nopensamento de Heidegger obriga a retomar um tempo bem anterior a 1933.A correspondncia com Elfride nos ensina, por exemplo, que ele comprae l em 1930 o Vlkischer Beobachtere que ele se reconhece no ponto devista do jornal (carta de 2 de outubro de 1930). Quanto a seu antisemitismoradical e seu projeto de dominao essencial da estirpe germnica,encontra-se a expresso a mais explcita desde 1916, antes, ento, darevoluo bolchevique de 1917 e do tratado de Versalhes de 1918: Ajudaizao (Verjudung) de nossa cultura e de nossas universidades comefeito assustador e eu penso que a raa alem (die deutsche Rasse) deveriaencontrar fora interior suciente para chegar ao pice5.

    Que Heidegger no tenha podido dizer algumas coisaspublicamente em 1933 um fato, mas signicativo que ele precise a

    4 mit solchen Phrasen knne den Studenten keine Philosophie geboten werden, Claudia Schorcht,

    Philosophie an den bayerischen Universitten 1933-1945,Erlangen, H. Fischer, 1990, p. 237.

    5 Die Verjudung unsrer Kultur u. Universitten ist allerdings schreckerregend u. ich meinedie deutsche Rasse sollte noch soviel innere Kraft aufbringen um in die Hhe zu kommen.Heidegger, Mein liebes Seelchen!. Briefe Martin Heideggers an seine Frau Elfride 1915-1970, d. par Gertrud Heidegger, Mnchen, Deutsche Verlags-Anstalt, 2005, p. 51.

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    Carl Schimitt ter sua interpretao dopolemospronta h anos. Em umlongo texto, publicado em 3 de maio de 1933, no jornal nazista de Friburgo

    DerAlemanne,armou que: h anos defendeu da maneira a mais ecazo partido de Adolf Hitler em sua dura luta para o ser e para a potncia,sempre esteve pronto ao sacrifcio pela santa causa da Alemanha e nuncaum nacional-socialista bateu em vo sua porta6.

    Podemos notar, na frase citada, a expresso luta para o ser (Ringenum Sein), e encontraremos mais de uma vez, em Heidegger, o termo serno registro do hitlerismo. Tambm necessrio a esse propsito se detersobre a questo que mais contribuiu sua reputao enquanto pensador,

    a saber, a questo do ser.Considera-se geralmente que ele teria descoberto um o condutorlosco fundamental com sua tematizao da diferena ontolgica do sere do ente. Contudo, uma anlise atenta de seus escritos prova que se tratamuito amplamente de um o condutor emprestado. Assim, em Ser e tempo,ele se inspira muito literalmente, mas sem nunca o dizer, em seu antigomestre em Teologia Carl Braig.

    Quando no incio de Ser e Tempo,Heidegger arma que O ser no derivvel pela denio de conceitos superiores, nem representvel a partirde conceitos inferiores7, retoma quase palavra por palavra o que Braigescreveu h trs dcadas em Vom Sein.Abri derOntologie: O ser no derivvel a partir de conceitos superiores e ele no representvel a partirde conceitos inferiores8. Quanto diferena entre o ser e o ente, ela guraem uma citao de So Boaventura em evidncia na mesma obra de Braig.

    Em realidade, a indeterminao radical do ser com respeito atoda determinao conceitual, como de toda existncia emprica, uma

    6

    da er seit Jahren die Partei Adolf Hitlers in ihrem schweren Ringen um Sein undMacht auf wirksamste unterstrtzte, da er stets bereit war, fr Deutschlands heilige SacheOpfer zu bringen, und da ein Nationalsozialist niemals vergebens bei ihm anpochte. Der

    Alemanne, Kampfblatt der Nationalsozialisten Oberbadens, cit par G. Schneeberger, op.cit.,p. 23.7 Das Sein ist denitorisch aus hheren Begriffen nicht abzuleiten und durch niederenicht darzustellen. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tbingen, Max Niemeyer, 1927, p. 4.8 Aus hhern Begriffen ist der des Seins nicht ableit- und aus niedrigern ist er nichtdarstellbar. Carl Braig,Die Grundzge der Philosophie.Abri der Ontologie. Vom Sein,Freiburg im Breisgau, Herdersch Verlagsbuchhandlung, 1896, p. 22.

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    tese tradicional da escolstica [queserve ainda nessapara tentar pensar arelao do criador s criaturas, mas que a ontologia de Braig, amplamente

    inuenciada por Schelling e Hegel que ele ensinou ao jovem Heidegger,desvinculoudessa perspectiva teolgica tradicional]. com uma temvelhabilidade que Heidegger vai se apoiar sobre essa indeterminao do termoserpara reforar sua posio feita ao mesmo tempo de domnio, de radicalidadee de recuo. Ele se apropria assim de um ponto de apoio clssico da losoa:a questo do sentidodo ser, desenvolvida notavelmente por Brentano a partirde Aristteles e da Escolstica e ento de forma alguma esquecida, mas,como vamos ver, utilizada para ns radicalmente no loscos.

    Muito reveladora a esse respeito uma espantosa carta recentementedescoberta a Kurt Bauch, um amigo ntimo de Heidegger, professor dehistria da arte da universidade de Friburgoque entrou como ele na NSDAP,em primeiro de maio de 1933. Eis o que Heidegger lhe escreve, em 1 deagosto de 1943: O que dizes sobre ser do ente exato. uma frmula,para mim frequentemente um termo codicado (ein Deckname), mastambm uma verdadeira

    cruxda losoa. [...] Por detrs da frmula,quecontm bem uma distino, se esconde alguma coisa de essencial.9

    Efetivamente, com a diferena entre ser e o ente, Heidegger se

    apropriou de um ponto de apoio da losoa, mas para se servir como deuma frmula (eine Formel) e mesmo como de um termo codicado(ein Deckname) destinado a sugerir uma coisa completamente diferente,que deve permanecer voluntariamente oculta para ser unicamente reveladano momento escolhido. assim que em certos textos, deixa abruptamenteentrever o que quer indicar.A prova, o curso do semestre de inverno de1934 1935 sobre a Germnia de Hlderlin em que exclama, sublinhadono texto editado: A Ptria o ser mesmo(Das Vaterland ist das Seyn

    selbst). De forma mais explcita ainda, no curso j evocado do semestre

    de vero de 1933, sobre A questo fundamental da losoa,resume seupropsito associando entre eles as duas questes seguintes: 1) A losoa o perptuo combate que se pergunta pela essncia e o ser do ente e 2) Esta

    9 Was du ber das Sein des Seienden sagst ist richtig. Es ist eine Formel, fr mich oft einDeckname, aber auch eine wirkliche crux der Philosophie. [] Hinter der Formel, die jaeine Unterscheidung enthlt, verbirgt sich etwas wesentliches. Martin Heidegger/KurtBauch Briefwechsel 1932-1975, Martin Heidegger Briefausgabe, voluume II.1, VerlagKarl Alber, Freiburg/Mnchen, 2010, p. 92.

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    questo em si histrica, isto , a exigncia, a discrdia e a venerao deum povo pela dureza e a clareza de sua vontade de destino 10.

    A essncia e o ser do ente so, pois, assimilados por Heidegger dureza e clareza da vontade de destino do povo germnico. Retenhamosigualmente o acento posto na historicidade dessa dupla questo, poislogo veremos o que histrico em Heidegger.

    preciso evocar tambm o seminrio do semestre de inverno de1933-1934, intitulado Sobre a essncia e os conceitos da natureza, dahistria e do Estado (ber Wesenund BegriffVon Natur, Geschichte undStaat). Theodore Kisiel havia publicado alguns extratos desse seminrio.

    Eu editei outros extratos dele e me interroguei publicamente sobre aausncia desse seminrio no plano da edio da Gestamtausgabe11.Penso,com efeito, que se Heidegger separou esse seminrio da obra integral, porque nele seu hitlerismo to radical e to explcito que j no podeter a aparncia de uma losoa. Ele, de fato, tira a mscara e prope umcurso de educao poltica com a nalidade de formar uma nobrezapoltica para o III Reich. Ora, nesse curso, destinado claramente a proporuma apologia inteiramente explcita do vlkischer Staate do Fhrestaathitleriano,Heidegger quer impor a ideia de que existiria entre o povo e seuEstado uma relao to essencial e constitutiva quanto entre o ente humanoe seu serprprio. Assim escreve:

    Do mesmo modo que o ente, o homem consciente de seu Ser-homem,se preocupa e cuida disso, assim tambm o povo-ente mantm umarelao fundamental com seu Estado. O povo, o ente, que em seu Ser

    10 1. Philosophie ist der unausgesetzte fragende Kampf um das Wesen und Sein des

    Seienden.2. Dieses Fragen ist in sich geschichtlich, d.h. es ist das Fordern, Hadern undVerehren eines Volkes um der Hrte und Klarheit seines Schicksals willen. GA 36/37, 12.11O seminrio agora publicado. Ver: ber Wesen und Begriff von Natur, Geschichte andStaat. bung aus dem Wintersemester 1933/34. InHeidegger und der Nationalsozialismus.

    Dokumente. Heidegger-Jahrbuch 4, editado por Alfred Denker e Holger Zaborowski,Freiburg/Mnchen, Verlag Karl Alber, 2009, p. 53-88.So wie das Seiende, der Mensch sich seines mensch-Sein bewusst ist, wie er sich dazu verhlt,sich darum kmmert, so hat auch das Seiende Volk ein wissendes Grundverhltnis zu seinemStaat. Das Volk, das Seiende, das in seinem Sein den Staat verwirklicht, weiss um den Staat,kmmert sich um ihn und will ihn. Martin Heidegger, ber Wesen und Begriff, p. 76.

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    realiza o Estado, tem o conhecimento do Estado, se preocupa com issoe o quer12.

    A distino essencial que, conforme a futura carta a KurtBauch, se esconde segundo Heidegger detrs da frmula ou do termocodicado Ser, no ento uma distino losca ou propriamenteontolgica, mas aquela, inteiramente poltica, entre opovoalemo e seu

    Estado. Essa relao do povo aoFhrerstaat concebida segundo a relaohitleriana entreFhrung e Gefolgschafte segundo o princpio de atraodoMnnerbund: o impulso (Drang), o erosdo povo para seu Estado e

    para seuFhrerque Heidegger quer suscitar em seus estudantes. preciso de fato verprecisamente que, em realidade, no hpoltica losca digna desse nome em Heidegger, pois ele no propenenhuma teorizao ou conceitualizao do Estado e de suas instituies.A palavra Estado em seu discurso to indeterminada e vazia quanto otermo Ser. No h outra funo seno dispor os espritos a se deixaremtotalmente possuir e dominar pela vontade doFhrer.

    Editei em meu livro pela primeira vez a longa concluso da 7sesso do seminrio na qual, no tom de um tipo de religiosidade nazista,

    Heidegger expe como a vontade doFhrerpenetra no ser e na almade seu povo. Eis um extrato dele:

    No seno a onde oFhrer e aqueles que conduz se ligam em umnicodestino e lutam pela a realizao de uma ideia que pode levar ordem verdadeira. Ento, a superioridade espiritual e a liberdadese realizam enquanto dom profundo de todas as foras do povo, doEstado, enquanto treinamento o mais severo, engajamento, resistncia,solido e amor. Ento, a existncia e a superioridade do Fhrerestoencravadas no ser, na alma do povo (eingesenkt in das Sein, in dieSeeeledes Volkes) e elas o ligam original e apaixonadamente tarefa.E se o povosente esse dom, ele se deixar guiar no combate, querer e

    12So wie das Seiende, der Mensch sich seines mensch-Sein bewusst ist, wie er sich dazuverhlt, sich darum kmmert, so hat auch das Seiende Volk ein wissendes Grundverhltniszu seinem Staat. Das Volk, das Seiende, das in seinem Sein den Staat verwirklicht, weissum den Staat, kmmert sich um ihn und will ihn. Martin Heidegger, ber Wesen undBegriff, p. 76.

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    amar o combate. Ele desdobrar ento suas foras e perseverar, serel e se sacricar. A cada novo instante, oFhrere o povo se ligaro

    mais estreitamente, a m de realizar a essncia de seu Estado, ento deseu ser. Crescendo lado a lado e advertidos, oporo seu ser e seu quererhistricos sduas potncias ameaadoras que so a morte e o diabo,quer dizer, a corrupo e a decadncia de sua essncia autntica13.

    Por esse exemplo, v-se como Heidegger se pepara cativar seusouvintes. Prdigona tonalidade de um tipo de religiosidade devotada emque, exatamente como emMein Kampf, o diabo signica na realidade ojudeu, seu ensinamento animado por uma vontade de dominao totalde coraes e mentes. Podemos mesmo falar de uma ligao de possessooculta. Dessa maneira, no se trata de modo algum de um ensinamentolosco.

    3. A historicidade e a lngua Tertii Imperii

    O que acabo de indicar para a palavra Ser e para a palavra Estadovale tambm para cada uma das palavras-chave do discurso heideggeriano,

    tais como historicidade ou verdade, por isso quis mostrar precisamenteem meu livro como Heidegger utiliza termos da lngua losca paratransmitir uma coisa inteiramente diferente, a saber, os ns mesmos donacional-socialismo. Carl Schimitt far o mesmo para a linguagem dodireito. No possvel, pois, nos xamos nos termos, como o fazemmuitos comentadores que se satisfazem com uma interminvel parfrase,

    13 Nur wo Fhrer und Gefhrte gemeinsam in ein Schicksal sich binden und fr die

    Verwirklichung einer Idee kmpfen, erwchst wahre Ordnung. Dann wirkt sich die geistigeberlegenheit und Freiheit aus als tiefe Hingabe aller Krfte an das Volk, den Staat, alsstrengste Zucht, als Einsatz, Standhalten, Einsamkeit und Liebe. Dann ist die Existenz undberlegenheit des Fhrers eingesenkt in das Sein, in die Seele des Volkes und bindet es somit Ursprnglichkeit und Leidenschaft an die Aufgabe. Und wenn das Volk diese Hingabesprt, wird es sich in den Kampf fhren lassen und den Kampf wollen und lieben. Es wirdseine Krfte entfalten und ausharren, treu sein und sich opfern. In jedem neuen Augenblickwerden sich Fhrer und Volk enger verbinden, um das Wesen ihres Staates, also ihres Seinszu erwirken; aneinander wachsend werden sie den beiden bedrohenden Mchten Tod undTeufel, d.h. Vergnglichkeit und Abfall vom eigenen Wesen, ihr sinnvolles, geschichtlichesSein und Wollen entgegensetzen. ber Wesen und Begriff 7e sance, 13, p. 77.

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    evitando citar as pginas onde as tomadas de posies nacional-socialistas,racistas e exterminadoras o so mais explcitas. Sem dvida, s vezes

    por complacncia que se age assim, mas mais frequentemente a faltade pesquisa fundamental que faz muitos lsofos se deixarem levar poressa linguagem. preciso, com efeito, uma introspeco que v bem maisprofundamente se se quer discernir exatamente qual o movimento queanima Heideggerao longo de seu caminho. verdadeiro igualmente queseu modo de escrever, que no compreende verdadeira argumentao, apartir da qual se poderia desenvolver uma discusso crtica, mas consisteem asseres abruptas e ditatoriais, predispe os espritos excessivamente

    escolares e submissos parfrase e repetio.Aps o exemplo do ser, tomemos aquele de historicidade. Essetermo j central no Ser e tempo, cujo movimento de fundo vai dasuperao da morte e do sacrifcio de si (Selbstaufgabe), presentes no 53 armao do 74, segundo a qual o destino histrico doDaseinnoadvm de modo autntico seno na comunidade, no povo, quando oDaseinhistrico escolhe o seu heri (das Dasein sich seinen Helden whlt) e decidepor perseguiro combate14. Sobre a signicao exata da historicidade daexistncia, a apresentao j evocada de Heidegger no nmero 3 de maiodeDer Alemannesublinha sem desviar seu enraizamentovlkisch. O textoque se pode nele ler foi de modo muito verossmil revisto e aprovado, atmesmo inspirado pelo reitor Heidegger:

    O trabalho losco do professor Heidegger determinado por trstraos fundamentais que so longamente expostos e estabelecidos emsua obra maior Ser e tempo. Est em primeiro lugar a doutrina docarter histricodoDasein humano. Ele enraizado na terra, no solo

    e no ser-povo. O ser do homem se determina a partir de sua resoluopara o engajamento no destino15.

    14Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 384 et 385, signicativo a este respeito para aprimeira antologia de seus escritos publicado em francs em 1938, que Heidegger tenhapedido Henri Corbin de traduzir os dois captulos sobre a morte e a historicidade.15Die philosophische Arbeit von Professor H. ist durch drei Grundzge bestimmt, diein seinem Hauptwerk Sein und Zeit eingehend dargestellt und begrndet sind. Es istzunchst die Lehre vom geschichtlichen Charakter des menschlichen Daseins. Es ist in der

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    Todavia, o 77 de Ser e Tempo, compilao de citaes do condeYork, que se refere notadamente ausncia de solo (Bodenlosigkeit), e que

    constitui o verdadeiro coroamento de Ser e tempocomo das confernciasde Cassel, pronunciadas dois anos antes, mostra ao leitor avisado em qualesprito antisemita herdado de York so concebidas a historicidade e adiferena genrica entre ntico e histrico16. Na correspondncia trocadaentre York e Dilthey, a ausncia de solo entendida por York em umesprito abertamente antisemita. Eis aqui, com efeito, o que ele escreve aDilthey, em 18 de fevereiro de 1884:

    Eu vos agradeo por todos os casos particulares em que tendesafastado das ctedras do ensino a miservel rotina judaica (die dnnejdische Routine), qual falta a conscincia da responsabilidade dopensamento, como falta inteiramente raa (den ganzen Stamme) osentimento do solo (Boden)psquico e fsico17.

    Para, em relao a essa questo, retornarao 77 de Ser e Tempo,h, de um lado, oDasein histrico, de outro, aqueles que so sem histria.Heidegger exprime isso com palavras dissimuladas em 1927, mas compalavras totalmente explcitas em seu curso do semestre de vero de1934. Nesse meio tempo, se assiste, nos cursos dos anos de 1933 1934,uma potencializao do tema da historicidade. O curso sobre A questofundamental da losoa (Der Grundfrage der Philosophie) se inicia pelaevocao enftica da grandeza do momento histrico presente (der Gredes geschichtlichen Augenblicks), em que o povo alemo em sua totalidade[...] encontra sua direo (das deutsche Volk im Ganzen[...]ndet seine

    Erde, Bodenstndigkeit und Volkstum verwurzelt. Das Sein des Menschen bestimmt sichaus seiner Entschlossenheit zum Einsatz in das Schicksal. (Schneeberger, op. cit., p. 25).16Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 399.17 Ich gratuliere zu jedem einzelnen Fall, wo Sie die dnne jdische Routine, der dasBewutsein der Verantwortlichkeit fr die Gedanken fehlt, wie dem ganzen Stamme dasGefhl psychischer und physischen Bodens, von der Lehrsthlen fern halten. Dilthey,Wilhelm, and Paul York v. Wartenburg. Briefwechsel zwischen Wilhelm Dilthey und demGrafen Paul Yorck v. Wartenburg, 1877-1897, Edited by Sigrist v.d.Schulenburg. Halle,Salle: M. Niemeyer, 1923. p. 254.

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    Fhrung)18. O o condutor desses diferentes cursos , arma, a necessidadede uma transformao radical da questo do homem: preciso revolucionar

    a questo do homem. Ahistoricidade um momento fundamental de seuser19. Trata-se de transformar a questo losca formulada por Kant: que o homem? (Was ist der Mensch?) na questo Quem o homem? (Wer isder Mensch?)20, ela mesma reformulada como a questo Quem somos ns?(Wer sind wir?)21. Nesse curso, Heidegger no d maiores explicaes. nocurso seguinte, aquele do semestre de vero de 1934, que as coisas caromais precisas, mas o horizonte da questo Quem o homem? no deixa deser inquietante. unicamente pelo o dessa questo que se pode, segundo

    ele, haver alguma coisa como resoluo, disponibilidade a servir, combate,dominao (...so etwas gibt wie Entschlossenheit, Dienstbereintschaft,Kampf, Herrschaft)22. Essa retrica nazista toma todo seu sentido em outraspassagens do curso, por exemplo, quando evoca o que advm hoje para ns,para nosso povo (was mit uns heute geschieht, mit unsermVolk)23e fala dagrande transformao da existncia do homem (die groe Wandlung desDaseins desMenschen)24. O sentido desta transformao total expressosem ambiguidade:

    Quando hoje o Fhrer fala sem cessar da reeducao em direo daviso do mundo nacional-socialista, isso no signica: inculcar sloganqualquer, mas produzir uma transformaototal, umprojeto mundial,sobre o fundamento do qual educa todo o povo. O nacional-socialismono uma doutrina qualquer, mas a transformao fundamental domundo alemo e, como ns o cremos, do mundo europeu25.

    18GA 36/37, 6.

    19die Frage nach dem Menschen mu revolutioniertwerden. Die Geschichtlichkeitist einGrundmoment seines Seins. GA 36/37, 215.20Ibid., p. 214.21Ibid., p. 176.22Ibid., p. 215.23Ibid., p. 118.24Ibid.,p. 119 (soulign par Heidegger).25 Wenn heute der Fhrer immer wieder spricht von der Umerziehung zur national-

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    preciso se deter no uso heideggeriano do termo verdade (Wahrheit),que d seu ttulo ao curso. Em realidade, esse termo perfeitamente

    intercambivel com o termo histria (Geschichte). Com efeito, a verdade,compreendida j no como exatido mas como desvelamento, existesomente a onde ela advm como histria do homem (Unverborgenheit[...] ist nur, insofern sie als Geschichte des Menschen geschieht26.

    ento decisivo no cair na armadilhado uso heideggeriano daspalavras da lngua losca. Em seu discurso, se encontra um pequenonmero de palavras-chave constantemente repetidas como essncia,verdade, liberdade, histria etc., que no correspondem nem a

    ideias distintas nem a conceitos determinados, mas so intercambiveise funcionam exatamente como esse jargo da autenticidade to bemdescrito por Theodor Adorno: o jargo dispe de um nmero mdico depalavras que se fecham sobre elas-mesmas e se tornam sinais27. Adornod o exemplo da palavra deciso (Entscheidung) to correntementeempregada por Heidegger, tanto em Ser e tempo, quanto em seus cursosdos anos de 1933 1935, ou em suas notas de 1940 sobre Ernst Jnger.

    No entanto, um autor nos permite ir mais longe ainda nadesmisticao crtica de Heidegger: Victor Klemperer. Em sua notvelobra LTI A lngua do III Reich, o llogo observa que entre as trsprimeiras palavras as mais comprometidas pela linguagem nacional-socialista, est a palavra histrico: histrico cada encontro do Fhrercom o Duce, mesmo se ele no muda em nada a situao do momento28.

    Ora, no curso em que Heidegger apresenta a explicao a maisdesenvolvida do que ele entende pela palavra histria, a saber, o curso do

    sozialistischen Weltanschauung, heit das nicht: irgendwelche Schlagworte beibringen,sondern einen Gesamtwandel hervorbringen, einen Weltentwurf, aus dessen Grund herauser das ganze Volk erzieht GA 36/37, 225.26Ibid.27 Er [der Jargon der Eigentlichkeit] verfgt ber eine bescheidene Anzahl signalhafteinschnappende Wrter Theodro Adorno, Jargon der Eigentlichkeit, Zur deutschen

    Ideologie,Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1964, p. 9.28historisch ist jede Zusammenkunft des Fhrers mit den Duce, auch wenn sie gar nicht anden bestehenden Verhltnisse ndert. Victor Klemperer, LTI Notizbuch eines Philologen,Leipzig, Reclam, 1974, p. 45.

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    semestre de vero de 1934 intituladoLgica(Logik), aps ter sustentadoque a historicidade constitutiva da existncia humana, arma que h,

    todavia, homens e grupos de homens j nem mesmo diz povos que no tm histria, que so privados de histria (os negros como, porexemplo, os Cafres) (es Menschen u.Menschengruppen (Neger wie z.b. Kaffern) gibt, die Kiene Geschichte haben, sie seiengeschichtslos)29.Ou antes, eles no tm mais histria que os macacos e os pssaros (Diehabendoc ebensogut Geschichte wie die Affen u. Vgel)30.

    Ao contrrio, prossegue o antigo reitor: Quando o avio conduz oFhrer de Munique a Veneza para ver Mussolini, ento advm a histria31.

    Esses textos so muito reveladores do nvel de pensamentode Heidegger. No provam somente a extenso de seu racismo e deseu hitlerismo, mas correspondem exatamente descrio irnica deKlemperer. Com efeito, a viagem de Hitler ao encontro de Mussolini, em14 e 15 de junho de 1934, um fracasso diplomtico completo: Hitlerqueria obter de Mussolini seu acordo para invadir a ustria, mas se deparacom recusa do Duce. Heidegger no faz menos sua a retrica oca da LTI,repete o que, sem dvida, pde ler nos editoriais do Vlkicher Beobachterdo dia, e acrescenta: com essa viagem do Fhrer, arma a seus estudantes,no somente advm a histria (geschieht Geschichte), mas mesmo umente no humano como o avio que serviu para transportar oFhrerpodetornar-se histrico32!

    Heidegger disfara, entretanto, esse oportunismo oco e desprovidode pensamento sob a aparncia de um tipo de neo-hegelianismo. questo: que a histria? (Was ist Geschichte?), responde: o momentopresente (Das Heutige)33. No entanto, no se trata mesmo de um

    29Martin Heidegger, Gesamtausgabe, Volume 38. Logik als die Frage nach dem Wesen derSprache, d. por Gnther Seubold, Frankfurt am Main, Klostermann, 1998, 81.30Ibid., 8431Wenn das Flugzeug freilich den Fhrer von Mnchen zu Mussolini nach Venedig bringt,dann geschieht Geschichte.Ibid. Wenn (...) Geschichte.Ibid.32auch nicht menschliches Seiendes, wie z.b. das erwhnte Flugzeug des Fhrers, kanngeschichtlich werden.Ibid., 86.33Ibid., respectivement p. 97 et 99.

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    reconhecimento da efetividade do presente, qualquer que ele seja. Comefeito, essa posio no sustentada por eleseno enquanto o curso da

    histria parece favorvel ao nacional-socialismo. assim, que em 1940,arma que no devemos querer ultrapassar as zonas de deciso34. Naconcluso do curso do semestre de vero de 1940, oportunamente suprimidano Nietzsche,publicado em 1961, mas restabelecida na Gesamtausgabe,engrandece a motorizao da Wehrmacht como um ato metafsico.

    A partir de 1945, ao contrrio, repete voluntariosamente que asguerras mundiais [...] no decidem historicamente destinos35. Na Carta

    sobre o humanismo, escrita no m do ano de 1946, quando a nova noo

    jurdica de crime contra a humanidade criada por ocasio dos processosde Nuremberg, a historicidade j no , como em 1933 1934, identicadaao presente, ao atual (das Heutige), agora que a poca lhe totalmenteadversa, nem questo fundamental da losoa que se referia sobreo ser do povo germnico reunido no Fhrerstaat. Em 1946, a losoasendo doravante recusada por Heidegger, a historicidade , em sua novalinguagem exttica do ps-guerra, relacionada histria do ser e aopensamento vindouro (dieknftige Denken), que toma por incumbnciaa tarefa de pensar lHeimatlosigkeit, a perda da terra natal ou da ptria.

    4. O negacionismo das Conferncias de Bremem de 1949

    Heidegger est proibido de ensinar, mas no de proferir confernciasnem de publicar, ele tem todo o seu tempo livre para preparar o seu come-back, segundo a palavra custica e invejosa empregada a seu propsitopor Carl Schmitt em seu Glossarium. Efetivamente, logo que o processode desnazicao terminou com a classicao, em maro de 1949,

    de Heidegger como simples simpatizante (Mitlafer) foi convidadono m de 1949 pelo clube de Bremem a proferir uma conferncia, que

    34 drfen wir die Entscheidungszonen nicht berspringen wollen., Martin Heidegger,Gesamtausgabe, Volume 90. Zu Ernst Jnger, d. parPeter Trawny, Frankfurt am Main,Klostermann, 2004, p. 222.35Weltkriege [] sind nicht imstande, geschichtlich Geschicke zu entscheiden., MartinHeidegger, La pauvret (die Armut). Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg,2004, p. 88.

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    dividir para a publicao em quatro textos distintos:A coisa, o dispositivo,o perigo, a inexo(Das Ding, Das Ge-stell, Die Gefahr, Die Kehre). As

    segundas e terceiras conferncias contm duas passagens terrveis que nosero publicadas seno de maneira pstuma, em 1994, no t. 79 da GA (aprimeira passagem havia se tornado pblica em 1983 por um ouvinte).

    na segunda conferncia, 13, p. 27, que evoca a fabricao decadveres nas cmaras de gs e nos campos de extermnio:

    A agricultura hoje uma indstria da alimentao motorizada, omesmo em sua essncia que a fabricao de cadveres nas cmaras

    de gs e noscampos de extermnio (die Fabrikation Von eichen inGazkammern und Vernichtungslagern), o mesmo que o embargoeconmico e a induo de um pas a um estado de fome, o mesmo quea fabricao de bombas de hidrognio36.

    Cmaras de gs e campos de extermnio no so negados, mascompletamente relativizados e reduzidos a um simples dispositivoindustrial e tcnico, do mesmo modo que a agricultura motorizada, oembargo econmico e o fato de promover a fome de um pas, e a fabricaode bombas de hidrognio. uma desumanizao completa da soluonal. Nem o nome das vtimas: antes de tudo, os judeus, nem o nome doscarrascos: os nacional-socialistas, so pronunciados. Permanece somenteum elemento entre outros, tomado em uma enumerao relativizante. Ainteno genocida dos nazistas igualmenteapagada: j no se trata dematar um povo inteiro, mas de fabricar industrialmente cadveres comoqualquer outro produto. A expresso Fabrikation vonLeichen, retomadaaps Heidegger por muitos outros autores dentre dos quais, por exemplo,

    Giorgio Agamben, corresponde linguagem que empregava o SS FriedrichEntress e, como o mostraramRaoul Hilberg e Franois Rastier, procedepois de um humor nazista. Alm disso, s um momento do processo de

    36 Ackerbau ist jetzt motorisierte Ernhrungsindustrie, im Wesen das Selbe wie dieFabrikation von Leichen in Gaskammern und Vernichtungslagern, das Selbe wie die Blokadeund Aushungerung von Lndern, das Selbe wie die Fabrikation von WasserstoffbombenMartin Heidegger, Gesamtausgabe, Volume 79,Bremer und Freiburger Vortrge, d. porPetra Jaeger, Frankfurt am Main, Klostermann, 1994, 27.

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    extermnio retido e isolado, pois Heidegger no diz uma palavra em suasconferncias sobre fornos crematrios, fossas comuns, cremao de corpos

    a cu aberto nos campos de Belzec, Sobibor... Chega assim a inscrever emsua obra um enunciado de uma perversidade calculada e atroz, sem quepossa ser acusado no sentido o mais imediato de negacionismo. Entretanto, bem isso que est presente: silncio sobre o nome das vtimas e negaode sua humanidade; negao da responsabilidade dos carrascos; o processotcnico brbaro e terrivelmente primrio das cmaras de gs e dos camposde extermnio imputado ao dispositivo planetrio do Ge-stelle no aosdirigentes nazistas e a seus executantes.

    O segundo texto vai mais longe ainda no revisionismo explcito,para no dizer o negacionismo e na total desumanizao das vtimas.

    Centenas de milhares morrem em massa. Morrem? Perecem. Soabatidos. Morrem? Eles setornam peas de reserva de um estoque defabricao de cadveres. Morrem? So liquidados discretamente noscampos de extermnio. E, sem isso, milhes perecem hoje de fomena China. Morrer, no entanto, signica levar at o termo a morte emsua essncia. Poder morrer signica ter a capacidade de se levar at o

    trmino. Temos essa capacidade somente quando nossa essncia amaa essncia da morte. Mas, emmeio aos inumerveis mortos, a essnciada morte permanece irreconhecvel. A morte no nem o nada vazio,nem somente a passagem de um ente a um outro.A morte pertence aoDasein do homem que sobrevive a partir da essncia do ser.Assimabriga a essncia do ser. A morte o abrigo o mais alto da verdadedo ser, o abrigo que abriga nele o carter oculto da essncia do ser ecompe a salvao de sua essncia. Por isso, o homem pode morrerse somente o prprio ser apropria a essncia do homem na essncia

    do ser a partir da verdade de sua essncia.A morte o abrigo do serno poema do mundo. Poder a morte em sua essncia signica: podermorrer. Somente aqueles que podem morrer so os mortais no sentidoreferencialdesse termo. Em qualquer lugar encontramos desespero emmassa por mortes horrivelmente no mortas e a essncia da morte dissimulada para o homem. O homem no ainda o mortal.37.

    37 Hunderttausende sterben in Masse. Sterben sie? Sie kommen um. Sie werdenumgelegt. Sterben sie ? Sie werden Bestandstcke eines Bestandes der Fabrikation von

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    De novo, nenhum nome, nem das vtimas, nem dos carrascos, masuma simples cifra: centenas de milhares (Hunderttausende), a propsito

    dos campos de extermnio, que Heidegger compara aos milhes(Millionen) de mortos de fome em 1949 na China. No caso dos chineses,o nome das vtimas explcito. Isso torna tanto mais odioso o silnciosobre as vtimas judaicas. Ora, se os famintos na China constituem umarealidade terrvel, no procedem de uma vontade genocida. A associaoheideggeriana , pois, negacionista em duplo sentido: nega a amplitudereal como a vontade genocida da exterminao nazista.

    Alm disso, no o dispositivo tcnico, o Ge-stell, mas o prprio

    Heidegger, que, para cit-lo, instala de antemo uma uniformidadeonde tudo se avalia como idntico, quando relaciona ao mesmoas cmaras de gs e a agricultura motorizada. eximir, ao mesmotempo, a responsabilidade dos dirigentes nacional-socialistas e eliminarespecicidade da destruio dos judeus da Europa. Heidegger evoca nessemomento um processo de extermnio de que no indica nem o lugar, nem adata, nem o nome dos carrascos, nem aqueles das vtimas. Os campos deextermnio so reduzidos ao estado de sinais e de sintomas, entre muitosoutros, do desencadeamentoplanetrio da tcnica. Trata-se de campos deextermnio nacional-socialistas? A palavra Vernichtungslager parece oindicar, mas nada claro.

    Por isso, o negacionismo de Heidegger tem vrias dimenses:

    Leichen. Sterben sie? Sie werden in Vernichtungslagern unauffllig liquidiert. Und auchohne Solches Millionen verelenden jetzt in China durch den Hunger in ein Verenden.Sterben aber heit, den Tod in sein Wesen austragen. Sterben knnen heit, diesen Austragvermgen. Wir vermgen es nur, wenn unser Wesen das Wesen des Todes mag. Dochinmitten der ungezhlten Tode bleibt das Wesen des Todes verstellt. Der Tod ist weder

    das leere Nichts, noch ist er nur der bergang von einem Seienden zu einem anderen.DerTod gehrt in das aus dem Wesen des Seyns ereignete Dasein des Menschen. So birgt erdas Wesen des Seyns. Der Tod ist das hchste Gebirg der Wahrheit des Seyns selbst, dasGebirg, das in sich die Verborgenheit des Wesens des Seyns birgt und die Bergung seinesWesens versammelt. Darum vermag der Mensch den Tod nur und erst, wenn das Seynselber aus der Wahrheit seines Wesens das Wesen des Menschen in das Wesen des Seynsvereignet. Der Tod ist das Gebirg des Seyns im Gedicht der Welt. Den Tod in seinem Wesenvermgen, heit: sterben knnen. Diejenigen, die sterben knnen, sind erst die Sterblichenim tragenden Sinn dieses Wortes. Massenhafte Nte zahlloser, grausig ungestorbener Todeberall und gleichwohl ist das Wesen des Todes dem Menschen verstellt. Der Mensch istnoch nicht der Sterbliche. GA 79, 56.

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    1. negao da derrota nazista de 1945;2. suspenso da responsabilidade dos nacional-socialistas para com

    seus crimes;3. supresso de toda referncia explcita ao genocdio dos judeus

    por Hitler e4. utilizao retrica de um questionamento reiterado destinado a

    sugerir que as vtimas dos campos de extermnio no so mortos (gestorben)propriamente falando, no so mortais, pois elas no esto na guardado ser. preciso medir adequadamente tudo o que h de hediondo aoinsinuar que as crianas, as mulheres exterminadas pelos nazistas, no

    puderam morrer (sterben), porque no amavam a essncia da morte. uma discriminao radical, um racismo ontologizado que persegue asvtimas at na morte.

    qual concepo da morte remete a necrolia heideggeriana? Amorte autntica concebida, no 53 de Ser e Tempo,como um sacrifciode si (Selbstaufgabe) em benefcio da comunidade, do povo (derGemeinschaft, des Volkes, 74). Ela anuncia a apologia heideggeriana,formulada nos mesmos termos do Mein Kampf, do sacrifcio (opfer)do indivduo para a comunidade do povo (Volksgemeinschaft), a exemplode Alberto-Leo Schlageter, heri segundo os nazistas, cujo aniversrioda morte ser celebrado com tanta nfase pelo reitor Heidegger38. umaconcepo sacricial da morte, notadamente recusada por Adorno no

    Jargo da autenticidade.Mas preciso ir at a raiz da concepo heideggeriana da morte.

    Atrs das mortes horrivelmente no mortas (grausig ungestorbenerTode) das Conferncias de Bremem,encontra-se a concepo heideggerianado morrer (das Sterben), distinguido em Ser e tempo do perecer (das

    Verenden). Essa distino da lngua alem quase intraduzvel em inglsou em francs: trata-se com efeito de distinguir o morrer (Sterben), queseria prprio do Dasein, e o fato de perecer (verenden) que se diz detodos os vivos39. Em resumo, morrer se diz do modo de ser na qual o

    38 Ver Martin Heidegger, Gesamtausgabe, Volume 16, Reden und andere Zeugnisse einesLebensweges, d. por Hermann Heidegger, Frankfurt am Main, Klostermann, 2000, p. 759-760.

    39Ver Martin Heidegger, Sein und Zeit, 47, p. 240-241.

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    Dasein para sua morte. Por conseguinte, preciso dizer que o Dasein noperece (verendet) nunca40. Quando se diz que as vtimas dos campos de

    extermnio so mortos horrivelmente no mortos (grausig ungestorben),quando armado que elas no so, propriamente falando, mortais(Sterbliche), Heidegger faz certamente referncia ao extermnio em massa,mas as aluses s condies de extermnio no representam seno umapequena parte do texto. Sobre as quatorze frases do segundo e terceiropargrafos da citao que z, duas frases somente evocam as mortesincontveis. Incomparavelmente mais desenvolvida se encontra o tema damorte como abrigo da essncia do ser, de sorte que no podem morrer

    seno aqueles cuja essncia apropriada pelo ser ele mesmo. Isso signicaque as vtimas destinadas a serem liquidadas em massa nos campos deextermnio nacional-socialistas no podem propriamente morrer, no so,propriamente falando, mortais, no simplesmente por seu nmero e pelocarter coletivo de seu extermnio, mais ainda porque, segundo Heidegger,o ser mesmo no lhes deixa a possibilidade de poder morrer. Como no verque essa discriminao, que esse negacionismo ontolgico tenha algumacoisa de revoltante e monstruoso?

    At o momento, os heideggerianos que haviam contestado minhainterpretao das Conferncias de Bremem, no haviam posto em vogaseno as breves aluses ao extermnio de massa, ou haviam contestadominha traduo de mgenpor amar, que bem contudo um dos sentidosdo verbo alemo. A fraqueza de sua crtica se via no que nenhum dentre elesno se arriscava a retomar e a justicar a longa argumentao heideggerianaque nega queles, que no esto no abrigo do ser, a possibilidade demorrer. A interpretao deles repousava, portanto, sobre uma rejeiofacilmente contestvel. Mais recentemente, dois heideggerianos anglo-

    saxes tm dessa vez baseado sua crtica sobre um contrassenso maciode minha prpria interpretao, imputando-me sem razo a tese segundoa qual Heidegger teria armado que no teria havido vtimas nos camposde extermnio nazistas41! , entretanto, bem manifesto que Heidegger

    40Martin Heidegger, Sein und Zeit, 49, p. 247.41 Ver Robert Bernasconi, Race and Earth in Heideggers Thinking during the late1930s, The Southern Journal of Philosophy 48 (Mars 2010), p. 58, e Laurence Paul

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    no partilha o negacionismo histrico de umFaurisson, visto que fala decentenas de milhares de vtimas, arma que elas foram liquidadas etc.

    bem por essa razo que forjei a expresso negacionismo ontolgico: ,com efeito, o ser mesmo das vtimas, sua existncia como mortais que posta em causa e no o fato bruto de seu extermnio. Desejamos, portanto,que a leitura desse estudo, ou daquele que havia publicado em ingls, em2006, e citado na bibliograa de meu livro, possa esclarecer-vos.

    Mas retomemos o o de minha demonstrao de conjunto: ostextos das Conferncias de Brememsobre o extermnio que evoquei nodevem ser isolados do conjunto das publicaes de Heidegger aps 1945.

    preciso igualmente levar em conta seus elogios, dessa vez, perfeitamenteexplcitos, do movimento nacional-socialista e de sua singularidadehistrica: em 1953, com a edio deA introduo metafsica, em 1976,com a publicao pstuma da entrevista dada ao Spiegel, ou em 1984,com a publicao, na Gesamtausgabe, do curso intitulado,Der Ister. No,somos, pois, confrontados somente com propsitos isolados de Heidegger,perturbados e insustentveis, mascom um movimento, um projeto, umaestratgia de conjunto do esprito negacionista e nazista no que se diz e noque se cala.

    5.A tcnica, o nacional-socialismo e o extermnio

    Falta pr em evidncia um ponto essencial, a saber, que arejeio heideggeriana da tcnica e sua apologia persistente do nacional-socialismo, aps 1945, no so dissociveis. Com efeito, assim comono parntese acrescentado, em 1953, quanto na entrevista de 1976,Heidegger liga estreitamente os dois. Na Introduo metafsica, o

    Hemming, Introduction, em: The Movement of Nihilism: Heideggers Thinking AfterNietzsche, d. por Laurence Paul Hemming, Kostas Amiridis et Bogdan Costea, New York/London, Continuum, 2011, p. 3-6. Hemming parece no ter de Bremen Lectures seno umconhecimento de segunda mo, pois ele no distingue as duas passagens onde Heideggerfala de campos de extermnio e situa o texto sobre a mechanized food production naconferncia intitulada The Danger, enquanto que ela se encontra em realidade na confernciaintitulada O Dispositivo(ver sua introduco, p. 3 e a nota 11, p. 6). Para uma discussocrtica mais completa das observaes de Robert Bernasconi, ver E. Faye, Subjectivity andRace in Heideggers Writings, Philosophy Today 55 (Octobre 2011), p. 268-281.

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    elogio indigno da verdade interna e da grandeza do movimentonacional-socialista comentado em um parntese que, sabemos hoje, foi

    acrescentado s provas da edio em 1953: (isto , com o encontro datcnica determinada planetariamente e do homem moderno)42. No Spiegel-Gesprch de 1976, arma que o nacional-socialismo foi bem na direo(der Nationalsozialismus ist zwar in dieRichtung gegangen) de umarelao satisfatria (ein zureichendes Verhltnis) do homem essnciada tcnica43. Ora, em que consistem esse encontro e essa relaosatisfatria realizados, segundo ele, no nacional-socialismo? A refernciade 1953 tcnicaplanetriaconfunde voluntariamente as pistas, pois no

    assim que ele se exprimiaquando das vitrias do III Reich. preciso sereferir aqui ao que Heidegger escreve em maio/junho de 1940, no momentoem que as divises blindadas do III Reich invadem a Holanda, a Blgica e asArdenhas Francesas. Em seu curso do semestre de vero de 1940, intitulado

    Der europische Nihilismus, comenta muito precisamente a derrota daFrana como sendo aquela de um povo que j no est altura da metafsicaoriunda de sua prpria histria (da ein Volk eines Tagesder Metaphysik,die aus seiner eigenen Geschichte entsprungen, nicht mehrgewachsen ist) eexalta por contraste a nova humanidade vitoriosa nestes termos:

    preciso uma humanidade que seja profundamente conforme essncia fundamental singular da tcnica dos Tempos Modernos e sua verdade metafsica, isto , que se deixa totalmente dominar pelaessncia da tcnica a m de poder assim precisamente dirigir e utilizarpor si mesma os diferentes processos e possibilidades tcnicas44.

    42nmlich mit der Begegnung der planetarisch bestimmte Technik und des neuzeitlichen

    Menschen Martin Heidegger,Einfhrung in die Metaphysik, Tbingen, Max NiemeyerVerlag, 1953, p. 152.43zum Wesen der Technik Martin Heidegger, Spiegel Gesprch, inAntwort. Martin

    Heidegger im Gesprch, d. par Gnther Neske et Emil Kettering, Pfullingen, GntherNeske, 1988, p. 105.44Es bedarf eines Menschentum, das von Grung aus dem einzigartigen Grundwesen derneuzeitlichen Technik und ihrer metaphysischen Wahrheit gem ist, d.h. vom Wesen derTechnik sich ganz beherrschen lt, um so gerade selbst die einzelnen technischen Vorgngeund Mglichkeiten zu lenken un zu ntzen. Martin Heidegger, Nietzsche II, Pfullingen,Gnther Neske, 1961, p. 165-166.

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    Mais explcita, ainda, a concluso do curso, suprimida em 1961, poisexcessivamente comprometedora,mas restabelecida um quarto de sculo

    mais tarde, em 1986, com a publicao do volume 48 da Gesamtausgabe,engrandece a a motorizao total isto , aqui, radicalmente fundamental da Wehrmachtcomo constituindo para ele um ato metafsico, de que nose deve duvidar e que supera em profundidade a supresso da losoa45.Os propsitos de Heidegger em uma carta a Elfride, do mesmo ano de1940, vo no mesmo sentido. Ele fala de uma prosso de f absolutana lgica interna da tecnizao absoluta da guerra, na qual o ser isoladodesaparece enquanto indivduo46.

    Assim, a relao satisfatria tcnica estabelecida sob o nacional-socialismo corresponde motorizao da Wehrmacht e tecnizaoincondicionada da guerra concebidas em termos prximos a Jnger, comoum caldeiro de uma nova humanidade. Mais isso no tudo, falta mostraro mais terrvel. A implicao, com efeito, no somente militar, trata-se naverdade deuma coisa diferente de uma simples revanche a ter sobre o queHeidegger nomeia, em suasobservaessobre Jnger da mesma poca,as potncias do oeste (die Westmchte)47. Ao ler as conferncias deBremem, descobre-se, com efeito, que ele confere ao nacional-socialismouma outra especicidade quanto a sua relao tcnica. J no se tratada motorizao da Wehrmachtengrandecida na primavera de 1940, masdos campos de extermnio e das cmaras de gs.

    Ora, se prestamos ateno ao fato de que Heidegger ,ao mesmotempo, o autor de seus enunciados de suas conferncias de Bremempublicadas somente em 1994, aps sua morte, e das duas apologias donacional-socialismo em sua relao com a tcnica, publicadas em 1953e 1976, tomaremos conscincia da monstruosidade de sua posio: sua

    apologia recobre, com efeito, a dupla especicidade do nacional-socialismo

    45Martin Heidegger, Gesamtausgabe Volum 48,Nietzsche: Der Europische Nihilismusd.par Petra Jaeger, Frankfurt am Main, Klostermann, 1986, p. 333.46eine unbedingte Verschreibung an die innere Gesetzlichkeit der unbedingtenTechnisierung des Krieges. Der Einzelen verschwindet als Individuum. Martin Heidegger Elfride,Mein liebes Seelchen!, 18 mai 1940, p. 210.47Martin Heidegger, Gesamtausgabe, Volume 90,Zu Ernst Jnger, d. par Peter Trawny,Frankfurt am Main, Klostermann, 2004, p. 221.

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    quanto tcnica: motorizao da Wehrmachtecmaras de gs nos camposde extermnio como coroamento da seleo racial. Se Heidegger defende

    a relao estabelecida pelo nacional-socialismo com a tcnica, porqueuma e outra so estimadas portadoras de uma verdade interna, de umagrandeza, e reveladoras de uma direo julgada satisfatria.

    Como pode acontecer que quase ningum tenha at hoje tomadoconscincia dessa posio monstruosa? Os comentadores de Heideggertm costume de parafrasear isoladamente seus diferentes textos ede descontextualiz-los mais ou menos completamente. Ora, nem ahermenutica, nem a desconstruo, nem a escola de Gadamer, nem a de

    Derrida, que permanecem uma e outra excessivamente na superfcie dostextos, no podem aqui ser de grande ajuda. A procura da verdade exigeuma sntese em profundidade do pensamento. preciso, ao mesmo tempo,uma introspeco, uma sntese e uma recontextualizao dos escritos. Porisso, a histria e a lologia devem aqui acompanhar o trabalho do lsofo.

    Tomemos o curso redigido para o semestre de inverno de 1941 1942 e intitulado A metafsica deNietzsche (Nietzsches Metaphysik).Esse curso geralmente considerado como uma simples apresentao dalosoa de Nietzsche. Penso, ao contrrio, ter sucientemente mostrado,no somente nesta conferncia, mas, sobretudo em meu livro, que oscursos e as conferncias de Heidegger representam a cada vez uma tomadade posio sobre a atualidade (das Heutige). qual efetividade da histriacorresponde esse curso? Ele a expe de novo o tema de extermnio(Vernichtung) j reivindicado em 1933 1934. No entanto, seu discursosobre o extermnio , dessa vez, explicitamente vinculado legitimaohistrico-ontolgica do que ele nomeia o princpio da instituio deuma seleo racial (der Prinzip der Einrichtung einer Rassenzchtung),

    julgado por ele metasicamente necessrio (metaphysisch notwendig) apartir do momento em que o ser concebido como subjetividade.

    Acrescentamos que Heidegger tomou cuidado de precisar no mde sua introduo que a apresentao do pensamento de Nietzsche e suainterpretao so elaboradas juntas ao ponto de se interpenetrar48. No so

    48Martin Heidegger, Gesamtausgabe, Volume 50,1. Nietzsches Metaphysik. 2. Einleitungin die Philosophie Denken und Dichten, d. par Petra Jaeger, Frankfurt am Main,

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    somente os termos da losoa que Heidegger utiliza comoDeckname, mastambm os nomes dos lsofos e de certos poetas: Herclito, Hlderlin ou

    aqui Nietzsche, embora, neste ltimo caso, as coisas sejam mais complexas:tanto o apelo ao extermnio do inimigo interior no de Herclito, quanto scitaes de Nietzsche sobre o material humano ou sobre o pensamentoaniquilador que ele evoca so j por elas mesmas inquietantes. No entanto,elas se transformammais ainda e recebem historicamente um sentido novono contexto do extermnio nazista em que Heidegger as profere.

    Os apologistas de Heidegger tentaram sustentar que sua evocaoda seleo racial constitua em realidade uma crtica seleo racial. Basta,

    entretanto, ler a tonalidade toda positiva das pginas onde Heidegger exps anecessidade metafsica do princpio da instituio de uma seleo racialpara ver que esse no o caso. Est com efeito em questo o gigantescoprprio ao grande estilo (das Riesenhafte des groen Stils) e a plenitudedo ser prprio ao que simples (die eigene Wesens flle jenes Einfachen)49.Nas pginas que seguem imediatamente, fala-se emtermos que lembramsuas teses do curso de primavera de 1940, mas aplicadas, dessa vez, j no vitria militar, mas exterminao racial em moldar uma nova humanidadeincondicionada, que se encarregue da dominao da terra e que execute aseleo racial para passar os seres humanos pelo crivo at o ponto de noretorno (dieMenschen aussiebt...zu Entschlssen)50. Donde sua apologiado extermnio que assegura contra o auxo de tudo o que condiciona adecadncia51. J no , como na primavera de 1940, a vitria militar do IIIReich sobre a Frana que doravante histrica e ontologicamente legitimada,mas bem a escolha da soluo nal e o extermnio dos judeus que comeouno Fronte do Leste desde o vero de 1941.

    No posso evocar seno algumas curtas passagens desse curso

    sobre Nietzsche. A leitura atenta dos cursos dos anos seguintes me levaa pensar que o estudo aprofundado dos cursos dos anos de 1942 1944

    Klostermann, 1990, p. 8-9.49Ibid., 57-58; trad. fr. 2005, p. 67-68.50Ibid., 59-60; trad.. fr. p. 70-71.51 Das Vernichten sichert gegen den Andrang aller Bedingungen des Niederganges.Ibid.,70; trad.. fr., p. 82.

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    particularmente aquele que se refere ao hino de Hlderlin Der Ister eaqueles intitulados Herclito e Parmnides conrmaria e agravaria

    essas anlises52. No entanto, com o que publicado na Gesamtausgabe,incrementado pelos seminrios inditos que parcialmente editei, podemosj saber muito a esse respeito se nos atermos a sondar em profundidadeo caminho traado por esse conjunto. Hoje bem claro que o nacional-socialismo de Heidegger no alguma coisa do passado. uma realidadeque quis projetar no futuro, programando ele mesmo no somente o plano,mas igualmente, em suas grandes linhas, a ordem de publicaes dosvolumes da Gesamtausgabe. assim que, aps os cursos sobre Nietzsche,

    publicados durante os anos de 1980, e as conferncias de Bremem de 1949,publicadas em 1994, os textos os mais explicitamente hitlerianos, racistase portadores de uma vontade de exterminao so publicados em 1998,2000 e 2001, como para acompanhar a passagem para o terceiro milnio.Podemos ver claro hoje no modo pelo qual Heidegger quis se servir dostermos da losoa e do nome de certos lsofos e poetas para difundir elegitimar planetariamente tais enunciados. , pois, hoje que podemos medirtoda a necessidade do trabalho de verdade do lsofo, que somente podenos permitir a resistir tentativa heideggeriana de legitimar o nacional-socialismo utilizando a linguagem mesma da losoa.

    Data de registro: 16/10/2011Data de aceite: 16/11/2011

    52 Pesquisas complementares so ainda indispensveis. Seria necessrio ainda que ospesquisadores tivessem livre acesso a todos os arquivos, por isso lancei um apelo para aabertura dos Arquivos Heidegger, que foi publicado pelo jornalLe Monde, em 5 de janeiro de2006, p. 22, reeditado sob a forma de uma petio pela revista alem Theologie. Geschichte(2006): aps.sulb.uni-saarland.de/theologie.geschichte/inhalt/2006/16.html, e igualmenteposto na rede mundial de computadores em: http://archives-heidegger.hermeneute.com.