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5/18/2018 Sertillanges-aVidaIntelectual-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/sertillanges-a-vida-intelectual 1/126 A Vida Intelectual  A. D. Sertillanges 1

Sertillanges - a Vida Intelectual

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Sertillanges - a Vida Intelectual

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  • A Vida IntelectualA. D. Sertillanges

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  • Sumrio

    CAPTULO I - A vocao intelectual................................................................................................. 3

    I O intelectual um consagrado. ..................................................................................................... 3

    II O intelectual no um isolado...................................................................................................... 5

    III O intelectual pertence ao seu tempo. .......................................................................................... 6

    I - As virtudes comuns......................................................................................................................... 7

    II - A virtude prpria do intelectual..................................................................................................... 9

    III - O esprito de orao.....................................................................................................................11

    IV - A disciplina do corpo. ................................................................................................................ 12

    CAPTULO III - A organizao da vida............................................................................................ 14

    I Simplificar.................................................................................................................................... 14

    II Guardar a solido........................................................................................................................ 16

    III Cooperar com os seus iguais......................................................................................................17

    IV Cultivar as relaes necessrias.................................................................................................19

    V Conservar a dose necessria de aco.........................................................................................21

    VI Manter o silncio interior. ........................................................................................................ 22

    CAPTULO IV - O tempo do trabalho...............................................................................................24

    I - O trabalho permanente.................................................................................................................. 24

    II - O trabalho nocturno..................................................................................................................... 27

    III A madrugada e os seres............................................................................................................ 29

    IV - Os instantes de plenitude. ...........................................................................................................31

    CAPTULO V - O campo do trabalho............................................................................................... 34

    I A cincia comparada.................................................................................................................... 34

    II O tomismo, quadro ideal do saber...............................................................................................38

    III A especialidade.......................................................................................................................... 39

    IV Os sacrifcios necessrios. ........................................................................................................ 40

    CAPTULO VI - O esprito do trabalho.............................................................................................41

    I O ardor da investigao................................................................................................................ 41

    2

  • II A concentrao.............................................................................................................................42

    III A submisso verdade............................................................................................................... 43

    IV Alargamentos..............................................................................................................................45

    V O senso do mistrio. ...................................................................................................................46

    CAPITULO VII - A preparao do trabalho..................................................................................... 48

    A. A LEITURA...............................................................................................................................48

    I Ler pouco..................................................................................................................................... 48

    II Escolher...................................................................................................................................... 49

    III Quatro espcies de leitura......................................................................................................... 50

    IV O trato com o gnio.................................................................................................................. 51

    V Conciliar em vez de opor........................................................................................................... 54

    VI Assimilar e viver....................................................................................................................... 54

    B A ORGANIZAO DA MEMRIA......................................................................................... 57

    I Que se deve reter? ........................................................................................................................57

    II Por que ordem reter? .................................................................................................................. 58

    III Como reter?................................................................................................................................59

    C. AS NOTAS................................................................................................................................. 60

    I Como tomar notas.........................................................................................................................60

    II Como classificar as notas........................................................................................................... 63

    III Como utilizar as notas................................................................................................................64

    CAPTULO VIII - O trabalho criador................................................................................................65

    I Escrever........................................................................................................................................ 65

    II Desapegar-se de si e do mundo. ..................................................................................................67

    III Constncia, pacincia e perseverana.........................................................................................69

    IV Fazer tudo bem feito e at ao fim.............................................................................................. 73

    V No ir alm das prprias foras.................................................................................................. 74

    CAPTULO IX - O trabalhador e o homem...................................................................................... 76

    I Guardar o contacto tom a vida......................................................................................................76

    3

  • II Saber distrair-se...........................................................................................................................78

    III Aceitar as provaes. ................................................................................................................ 80

    IV Saborear as alegrias................................................................................................................... 81

    V Gozar antecipadamente os frutos. .............................................................................................. 82

    CAPTULO I - A vocao intelectual

    I O intelectual um consagrado.

    Falar de vocao equivale a designar os que pretendem fazer do trabalho intelectual a sua

    vida, ou porque dispem de vagar para se entregarem ao estudo, ou porque, no meio de ocupaes

    profissionais, reservam para si, como feliz suplemento e recompensa, o profundo desenvolvimento

    do esprito. Digo profundo, para descartar a ideia de tintura superficial. Uma vocao no se satisfaz

    com leituras vagas nem com pequenos trabalhos dispersos. Requer penetrao continuidade e

    esforo metdico, no intuito duma plenitude que responda ao apelo do Esprito e aos recursos que

    lhe aprouve comunicar-nos.

    Este apelo no se deve conjecturar. Quem se aventura a um caminho, que no pode trilhar,

    com p firme, conte de antemo com decepes. O trabalho pesa sobre todos e, aps a primeira

    formao sempre custosa, seria loucura deixar descambar o esprito na primitiva indigncia. Uma

    coisa a conservao pacfica do que se adquiriu, e outra coisa retomar pela base uma instruo

    puramente provisria e que se considera simples ponto de partida. Este ltimo estado de esprito o

    de um chamado. Implica uma resoluo grave, porque a vida de estudo, sendo austera, impe duros

    encargos. Paga, e abundantemente; mas exige uma entrada de capital de que poucos so capazes. Os

    atletas da inteligncia, Como os atletas do desporto, tm de prever privaes, longos treinos e

    tenacidade por vezes sobre-humana. Precisam de se dar de alma e corao conquista da verdade,

    visto que a verdade s presta servios a quem a serve.

    Tal orientao deve ser precedida de maduro e longo exame. A vocao intelectual como

    as demais vocaes: est inscrita nos nossos instintos, nas nossas capacidades, em um no sei que

    entusiasmo interior sujeito ao exame da razo. As nossas disposies so como as propriedades

    qumicas que determinam, para cada corpo, as combinaes em que pode entrar. No coisa que se

    d. Vem do cu e da natureza primeira. O ponto est em ser dcil a Deus e a si prprio, depois de ter

    escutado estas duas vozes.

    Assim compreendida, a mxima de Disraeli: "Fazei o que vos agrada, contanto que isso

    verdadeiramente vos agrade", encerra profundo sentido. O gosto, que se encontra cm correlao

    com as tendncias ntimas e com as aptides, esplndido juiz. S. Toms, afirmando que o prazer

    qualifica as funes e pode servir para classificar os homens, deve naturalmente concluir que o

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  • prazer tambm pode trair as nossas vocaes. Mas mister esquadrinhar at s profundidades em

    que o gosto e o ardor espontneo se encontram com os dons e a providncia de Deus.

    O estudo duma vocao intelectual comporta, alm da vantagem incalculvel de o homem

    se realizar plenamente a si prprio, um interesse geral a que ningum pode renunciar.

    A humanidade crist compe-se de personalidades diversas, e nenhuma destas pode

    abdicar daquela sem empobrecer o grupo e privar o eterno Cristo de parte do seu reino. Jesus Cristo

    reina pelo seu desdobramento. A vida de qualquer dos seus "membros" um instante qualificado da

    sua durao; qualquer caso humano e cristo um caso incomunicvel, nico e, por conseguinte,

    necessrio, da extenso do "corpo espiritual". Se sois porta-luz, no escondais, debaixo do alqueire,

    o brilho pequeno ou grande que de vs se espera na casa do Pai de famlia. Amai a verdade e os

    seus frutos de vida, para bem vosso e dos outros; consagrai ao estudo e sua utilizao o principal

    do vosso tempo e do vosso corao.

    Todos os caminhos, excepto um, so maus para vs, visto que todos se apartam da direco

    onde se espera e se requer a vossa aco. No sejais infiel a Deus, nem a vossos irmos, nem a vs

    prprios, rejeitando um apelo sagrado.

    Isto supe que se abraa a vida intelectual com intenes desinteresseiras e no por

    ambio ou v glorola. Os guisos da publicidade s tentam os espritos fteis. A ambio, que

    quisesse subordinar a si a verdade eterna, ofend-la-ia. Brincar com as questes que dominam a

    vida e a morte, com a natureza misteriosa, talhar-se um destino literrio e filosfico custa da

    verdade ou fora da dependncia da verdade, constitui um sacrilgio. Tais intentos, sobretudo o

    primeiro, no conseguiriam manter o investigador; depressa o esforo esmoreceria e a vaidade

    haveria de entreter-se com bagatelas, sem curar das realidades.

    Mas isto supe igualmente que se junta, aceitao do fim, a aceitao dos meios, sem o

    que no se deve tomar a srio a obedincia vocao. Quantos h que desejariam saber! Uma vaga

    aspirao impele as multides para horizontes que a maior parte admira de longe, como o doente de

    gota admira, desde a plancie, as neves eternas que cobrem o cimo das montanhas. Obter sem

    gastar, eis o desejo universal; mas desejo de coraes cobardes e de crebros enfermos. O universo

    no acorre ao primeiro sussurro e para que a luz de Deus baixe a vossas lmpadas, necessrio que

    as vossas almas a peam instantemente.

    Sois um consagrado: tendes de querer o que a verdade quer; consenti, por causa dela, em

    vos mobilizardes, em vos fixardes nos seus domnios, em vos organizardes e, porque vos falta a

    experincia, em vos firmardes na experincia alheia.

    "Ah, se a juventude soubesse!..." Mais do que ningum, precisam os jovens deste aviso. A

    cincia conhecimento pelas causes; mas activamente, quanto sua produo, criao pelas

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  • causas. preciso conhecer e adoptar as causas do saber, depois coadun-las e no adiar o cuidado

    de lanar os alicerces at ao momento de assentar o telhado.

    Que belas culturas se podiam empreender nos primeiros anos de liberdade aps os estudos,

    revolvida ainda de fresco a gleba intelectual com as sementes confiadas ao solo! esse um tempo

    que no volta mais, o tempo de que se h-de viver mais tarde. Qual ele tiver sido, tal ser o homem,

    porque no h maneira de arrepiar o caminho andado. Se viverdes superficialmente, sofrereis o

    castigo de ter descurado, em seu tempo, o porvir que vive sempre de esperana. Pense cada qual

    nisto na hora em que o pensar pode servir.

    Quantos jovens, que nutrem a pretenso de vir a ser trabalhadores, malbaratam

    miseravelmente os dias, as foras, a seiva intelectual! ou no trabalham, quando lhes sobra tempo

    de o fazer, ou trabalham mal, caprichosamente, sem saberem o que so, nem para onde querem ir,

    nem como se anda. Cursos, leituras, frequentaes, dosagem do trabalho e do descanso, da solido e

    da aco, arte de extrair e de utilizar os elementos adquiridos, realizaes provisrias que anunciam

    o trabalho prximo, virtudes a alcanar e a desenvolver, nada se prev, nada ser satisfeito.

    No entanto, em igualdade de recursos, que diferena entre o que sabe e prev e o que corre

    aventura! "O gnio longa pacincia", mas pacincia organizada, inteligente. No se requerem

    faculdades extraordinrias para realizar uma obra; basta uma mdia superior; o resto, fornece-o a

    energia e a arte de a aplicar. Sucede aqui o que sucede a um operrio honrado, poupado e fiel ao

    trabalho: chega ao termo, quando muitas vezes o inventor fracassa por causa de irritaes e pressas.

    O que digo aplica-se a todos, dum modo especial aos que s sabem dispor duma parte da

    vida, da mais fraca, para se entregarem aos trabalhos da inteligncia. Mais do que os outros, devem

    estes ser consagrados. Tero de amontoar, em reduzido espao, o que lhes no dado distribuir em

    vasta extenso. O ascetismo especial e a virtude herica do trabalhador intelectual devero ser, para

    eles, o po de cada dia. Se, porm, consentirem nesta dupla oferta de si prprios, no desanimem.

    Se para produzir no faz falta o gnio, menos falta ainda faz a plena liberdade, tanto mais

    que esta tem armadilhas, e para as vencer pode concorrer imenso o estar adstrito a rigorosas

    obrigaes. Uma corrente apertada entre margens estreitas irromper mais longe. A disciplina do

    ofcio forte escola que aproveita aos lazeres estudiosos. O homem, quando constrangido,

    concentra-se mais, aprende a avaliar o tempo, refugia-se com ardor nas horas raras em que,

    satisfeito o dever, se torna a encontrar o ideal e se goza da calma da aco escolhida, aps a aco

    imposta pela dura existncia.

    O trabalhador que no esforo novo encontra a recompensa do esforo antigo, que dele faz o

    seu tesouro, de ordinrio um apaixonado; no h meio de o desapegar do que assim consagrado

    pelo sacrifcio. O seu andar, na aparncia mais lento, dispe de recursos para ir por diante. Pobre

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  • tartaruga laboriosa, no perde o tempo em ninharias, porfia, e ao fim de poucos anos, ultrapassa a

    lebre indolente, cuja marcha desimpedida lhe causava inveja, enquanto se arrastava lentamente.

    Pensai o mesmo do trabalhador isolado, sem dotes intelectuais, nem facilidade de

    frequentaes que o estimulem, enterrado nalgum canto de provncia onde parece condenado a

    estagnar-se, longe das ricas bibliotecas, dos cursos brilhantes, do pblico vibrante, possuindo-se

    unicamente a si e obrigado a tudo haurir deste fundo inalienvel.

    No desanime. Se tem tudo contra si, guarde-se a si prprio, e que isso lhe baste. Um

    corao ardente dispe de maiores probabilidades de vencer, embora em pleno deserto, do que um

    estrdio do Bairro latino que no sabe aproveitar as facilidades que tem mo. Tambm aqui, da

    dificuldade pode brotar a fora. Sobre a montanha, s nos especamos nas passagens difceis; nos

    caminhos planos avanamos folgados, e a folga, no vigiada, depressa se toma funesta.

    O querer vale mais do que tudo: querer ser algum; chegar a ser alguma coisa; ser j, pelo

    desejo, esse algum qualificado pelo ideal. O resto sempre se alcana. Livros, h-os em toda a parte;

    alm disso, poucos bastam. Frequentaes, estmulos, encontramo-los em esprito na solido: as

    grandes seres esto l, presentes a quem os invoca, e por detrs do pensador ardente erguem-se os

    grandes sculos. Os que tm a facilidade de assistir a cursos, ou os no seguem ou os seguem mal,

    se, em caso de necessidade, no tiverem em si recursos para deles prescindirem. Quanto ao pblico,

    por vezes anima-vos, ordinariamente perturba-vos e dispersa-vos. No vos arrisqueis a perder uma

    fortuna por uma colher de mel coado. Mais vale a solido apaixonada, onde qualquer semente rende

    cem por um e um simples raio de sol doura os frutos do outono.

    Quando S. Toms de Aquino se dirigia a Paris e descobriu ao longo a cidade, disse ao

    irmo que o acompanhava: "Irmo, de bom grado trocaria tudo isto pelo comentrio de S. Joo

    Crisstomo sobre S. Mateus". A quem vive destes sentimentos pouco importa o lugar onde est ou

    os meios de que dispe; esse um eleito do esprito e, como tal, s lhe resta perseverar e entregar-se

    vida consoante o Plano divino.

    Escuta-me, jovem que compreendes esta linguagem e a quem os heris da inteligncia

    parece chamarem misteriosamente, mas que receias encontrar-te desprovido.

    Tens duas horas por dia? Podes obrigar-te a reserv-las ciosamente, a empreg-las com

    ardor e, depois, destinado tambm de antemo ao Reino de Deus, podes beber o clice de sabor

    esquisito e amargo, que estas pginas quereriam dar-te a prova? Se a tua resposta afirmativa, tem

    confiana, mais do que isso repousa na certeza.

    Obrigado a ganhar a vida, ganh-la-s sem lhe sacrificar, como tantas vezes acontece, a

    liberdade da alma. Entregue a ti, sentir-te-s atirado com maior violncia para os teus nobres fins. A

    maior parte dos grandes homens exerceu um ofcio. Na opinio de muitos, as duas horas, que peo,

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  • bastam para talhar um destino intelectual. Aprende a administrar esse pouco tempo; mergulha todos

    os dias no manancial que, dessedentando, aumenta a sede.

    Queres contribuir com a tua quota para perpetuar a sabedoria entre os homens, para

    recolher a herana dos sculos, para fornecer ao presente as regras do esprito, para descobrir os

    factos e as causas, para orientar os olhos inconstantes na direco das causas primeiras e os,

    coraes na dos fins supremos, para reavivar a chama que se apaga e organizar a propaganda da

    verdade e do bem? esse um quinho que vale, sem dvida, sacrifcios suplementares e o cultivo

    duma paixo absorvente.

    O estudo e a prtica daquilo que o P. Gratry chama a Lgica viva, isto , o

    desenvolvimento do nosso esprito, ou verbo humano, pelo contacto directo ou indirecto com o

    Esprito e o Verbo divino, este estudo grave e esta prtica perseverante franquear-te-o a entrada no

    santurio admirvel. Hs-de pertencer ao nmero dos que crescem, adquirem e se preparam para os

    dons magnficos. Se Deus quiser, tambm tu encontrars lugar, um dia, na assembleia dos espritos

    nobres.

    II O intelectual no um isolado.

    O trabalhador cristo, em virtude da sua vocao intelectual de consagrado, no deve

    isolar-se. Seja qual for a sua situao, julguem-no abandonado ou retirado materialmente, no deve

    deixar-se tentar pelo individualismo, imagem deformada da personalidade crista. Se a solido

    vivifica, o isolamento paralisa e esteriliza. fora de ser alma, cessa-se de ser homem, diria Vitor

    Hugo. O isolamento inumano; porque trabalhar humanamente trabalhar com o sentimento do

    homem, das suas necessidades, das suas grandezas, da solidariedade que nos liga numa vida

    estreitamente comum.

    O trabalhador cristo deveria viver constantemente no universal, na histria. Porque vive

    com Jesus Cristo, no pode separar dele nem os tempos nem os homens. A vida real vida num,

    vida de famlia imensa com a caridade por lei: se o estudo pretende ser acto de vida, e no arte pela

    arte ou monoplio do abstracto, deve reger-se por esta lei de unidade cordial. Oramos diante do

    Crucifixo, diz Gratry devemos tambm trabalhar a mas a verdadeira cruz no est isolada da

    terra".

    O verdadeiro cristo ter sem cessar diante dos olhos a imagem do globo onde est

    plantada a cruz, onde os pobres seres humanos erram e sofrem, e onde o sangue redentor procura

    encontr-los atravs de meandros sem conta. A luz, que possui, reveste-o dum sacerdcio; a luz que

    pretende adquirir, promessa implcita e dom. Toda a verdade prtica; a mais abstracta na

    aparncia, a mais elevada tambm a prtica. Toda a verdade vida, orientao, caminho em

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  • ordem alcanar o fim humano. Por isso Jesus Cristo reuniu numa s afirmao: Eu som o Caminho,

    a Verdade e a Vida.

    Trabalhai, pois, sempre, em esprito de utilizao, como recomenda o Evangelho. Deixai

    sussurrar em volta o gnero humano; distingui nele estes e aqueles, indivduos ou grupos, cuja

    indigncia conheceis; descobri o que pode arranc-los noite, enobrec-los, o que de perto ou de

    longe os salva. S as verdades redentoras so Santas e as palavras do Apstolo a vontade de

    Deus que sejais santos - aplicam-se ao nosso trabalho como a tudo o mais.

    Jesus Cristo precisa do nosso esprito, como precisava, enquanto viveu na terra, do seu

    prprio esprito humano. Ele retirou-se, ns continuamo-lo: eis a nossa honra incomensurvel.

    Somos os seus membros, portanto o seu esprito em participao, portanto os seus cooperadores.

    Opera por ns, fora e pelo seu esprito inspirador, dentro, como, em vida, operava exteriormente

    pela palavra, e no ntimo das almas pela graa. Sendo o nosso trabalho necessrio para esta aco,

    trabalhemos como Jesus meditava, haurindo, como Ele, nos mananciais do Pai, com o intuito de

    difundir.

    III O intelectual pertence ao seu tempo.

    Em seguida, pensai que, se todos os tempos so iguais perante Deus, se a sua eternidade

    centro irradiante, a igual distncia do qual correm todos os pontos da circunferncia do tempo, no

    sucede o mesmo na relao dos tempos connosco, que habitamos a circunferncia. Estamos aqui, na

    vasta roda, no noutra parte. Foi Deus que nos colocou a. Qualquer momento da durao nos diz

    respeito e qualquer sculo nosso prximo, do mesmo modo que qualquer homem; esta palavra

    prximo termo relativo, que a providencial sabedoria determina para cada qual e que cada qual,

    na sua sabedoria restrita, deve igualmente determinar.

    Eis-me aqui, homem do sculo XX, contemporneo dum drama permanente, testemunha de

    confuses como porventura o mundo nunca presenciou desde que os montes surgiram e os mares

    foram atirados para seus antros. Que fazer por este sculo arquejante? Mais do que nunca, o

    pensamento espera pelos homens e os homens pelo pensamento. O mundo corre perigo por falta de

    mximas de vida. Encontramo-nos num comboio que desfila a toda a velocidade, e no h

    sinalizao, nem agulheiros. O planeta no sabe para onde vai, a sua lei abandona-o: quem lhe

    restituir o seu sol?

    O que digo no visa a estreitar o campo da investigao intelectual, nem a confin-lo no

    estudo exclusivamente religioso. O decurso do livro o mostrar. J disse que toda a verdade

    prtica, que toda a verdade salva. Mas indico um esprito, e este esprito exclui qualquer forma de

    diletantismo.

    5

  • Exclui tambm certa tendncia arqueolgica, certo amor do passado que se desinteressa das

    dores actuais, certa estima do passado que parece ignorar a presena universal de Deus. Nem todos

    os tempos valem o mesmo, mas todos os tempos so tempos cristos, e h um que para ns e

    praticamente os ultrapassa a todos: o nosso. Para ele so os nossos recursos nativos, as nossas foras

    de hoje e as de amanh, e por conseguinte os esforos que lhes devem corresponder. No nos

    assemelhemos aos que do sempre a impresso de pegar s borlas do caixo nos funerais do

    passado. Utilizemos, como vivos, o valor dos mortos. A verdade sempre nova. Todas as virtudes

    antigas querem reflorescer, exactamente como a erva da

    6madrugada beijada pelo orvalho. Deus no envelhece. mister ajud-lo a renovar, no os

    passados enterrados, nem as crnicas extintas, mas a eterna face da terra.

    Este o esprito do intelectual catlico, esta a sua vocao. Quanto mais depressa a

    determinar pelo descobrimento do gnero de estudos a que se deve consagrar, tanto melhor. Atentai

    agora nas virtudes que Deus lhe pede.

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  • CAPTULO II - As virtudes do intelectual Cristo

    I - As virtudes comuns.

    A virtude contm, em certo modo, a intelectualidade em potncia, uma vez que, levando-nos

    ao nosso fim, que intelectual equivale ao supremo saber.

    Muitas concluses se podem daqui deduzir; podemos at deduzir tudo, porque a esta

    primazia da ordem moral prende-se a dependncia relativa da verdade, do belo, da harmonia, da

    unidade, at do ser, a respeito da moralidade que deste modo contrai parentesco com o primeiro

    princpio. Prefiro, porm, seguir caminho mais modesto.

    As qualidades de carcter desempenham, em todas as coisas, papel preponderante. O

    intelecto no passa de instrumento, e o seu manejo que lhe determina os efeitos. Para bem reger a

    inteligncia, requerem-se evidentemente outras qualidades alm da inteligncia. Um esprito recto

    declara instintivamente que a superioridade em qualquer gnero inclui uma dose de superioridade

    espiritual. Para julgar com acerto, preciso ser grande.

    Provocaria certo escndalo o atribuir a um valdevinos uma importante inveno. Ficaria com

    isso magoada a candura dum homem simples. Escandalizamo-nos duma dissociao que ofenda a

    harmonia humana. Ningum acredita nos joalheiros que vendem prolas e no as usam. Parece um

    paradoxo est junto dum manancial sublime e no aproveitar a sua natureza moral. Gozar do poder

    da inteligncia e convert-lo em fora isolada, afigura-se-nos jogo perigoso, porque toda a fora

    isolada, no seio dum todo equilibrado, torna-se vtima dele.

    Ora, se o carcter fraqueja, natural que venha a ressentir-se o senso das grandes verdades.

    O esprito que, por falta de inspeco, no volta a encontrar o seu nvel, despenha-se em perigosos

    declives, e um pequeno erro ao princpio acaba por ser grande. A fora lgica poder precipitar mais

    fundo aquele, cuja alma deixou o discernimento sem salvaguardas. Da tantas quedas retumbantes, e

    tantos erros s vezes geniais, em mestres desorientados.

    A vida unidade; seria para espantar que se lograsse executar uma funo ao mximo,

    descurando a outra, e que o viver as ideias no ajudasse a perceb-las.

    Donde provm esta unidade da vida? Do amor. "Dize-me o que amas, dir-te-ei o que s". O

    amor, em ns, o comeo de tudo, e este ponto de partida do conhecimento e da prtica no pode

    deixar de tornar solidrios, em cem medida, os rectos caminhos de um e da outra.

    A verdade vem ao encontro dos que a amam, dos que lhe no resistem, e este amor

    pressupe a virtude. Pelo que, a despeito de possveis taras, o gnio, que no trabalho j virtuoso,

    para ser santo s precisaria de ser mais plenamente o que .

    A verdade medra na mesma terra que o bem; as razes duma e doutro comunicam entre si.

    7

  • Desligados desta raiz comum e, por conseguinte, menos ligados sua terra, ambos vm a sofrer: ou

    a alma se torna anmica ou o esprito se estiola. Pelo contrrio, alimentando a verdade, ilumina-se a

    conscincia; fomentando o bem, guia-se o saber.

    Praticando a verdade que se conhece, merece-se a que se ignora. Merecemo-la tambm com

    um mrito que a sua prpria recompensa; porque todas as verdades so interdependentes, e sendo

    a homenagem do facto, de todas, a mais decisiva, quando a rendemos verdade da vida, abeiramo-

    nos das claridades supremas e das dependncias. Embarcando no afluente, chega-se ao rio e, pelo

    rio, ao mar.

    Apertemos mais esta importante doutrina, to importante que s para a relembrar teria sido

    oportuna a composio deste livrinho.

    A virtude sade da alma. Ora, quem se atreve a asseverar que a sade nada tem de comum

    com a viso? Perguntai-o ao oculista. Um prtico inteligente no se detm a medir a curvatura do

    cristalino e a escolher combinaes de lentes, nem se limita a aconselhar colrios ou banhos locais,

    mas preocupa-se com o estado geral do enfermo, com a dentio, com o regime de vida, com o bom

    ou mau funcionamento das vsceras. No vos admireis se este mdico dum s rgo vos interroga

    acerca da vossa virtude.

    A viso espiritual no menos exigente.

    Julgais que pensamos s com a inteligncia? Seremos acaso puro feixe de poderes, donde

    retiramos o instrumento apto para isto ou para aquilo? Pensamos "com toda a alma", declarava

    Plato. Ns vamos muito mais longe e dizemos: pensamos com todo o ser. O conhecimento

    interessa tudo em ns, desde a ideia vital at a composio qumica da mais pequenina clula. As

    desordens mentais, os estudos delirantes, as alucinaes, as astenias e as hiperestenias, as

    inadaptaes ao real, de qualquer espcie que sejam, provam claramente que no s o esprito

    pensa, mas o homem todo.

    Como querereis pensar bem com a alma doente, com o corao trabalhado pelos vcios,

    solicitado pelas paixes, desorientado por amores violentos ou culpados? H um estado clarividente

    e um estado cego da alma, dizia Gratry, um estado so e conseguintemente sensato, e um estado

    insensato. "O exerccio das virtudes morais, afirma por sua vez S. Toms de Aquino, das virtudes

    que refreiam as paixes, importa sobremaneira para a aquisio da cincia1.

    Plenamente de acordo! Ora analisai. De que depende, antes de mais nada, o esforo da

    cincia? Da ateno, que fixa o Campo da investigao nos concentra nele e apoia todas as nossas

    foras nesse sentido; em seguida do juzo, que recolhe os frutos da investigao. Ora as paixes e os

    1 VII Physic.,lib.6.

    8

  • vcios distraem a ateno, dispersam-na, desviam-na e alcanam o juzo por rodeios de que

    Aristteles e outros muitos aps ele perscrutaram os meandros.

    Todos os psiclogos contemporneos esto de acordo neste particular; a evidncia no

    permite dvidas. A psicologia dos sentimentos governa a prtica, mas tambm, em grande parte, o

    pensamento. A cincia depende das orientaes passionais e morais. Apaziguar-nos desembaraar

    em ns o senso do universal; rectificar-nos, desobstruir o senso da verdade. Continuai a analisar.

    Quais so os inimigos do saber? Evidentemente a ininteligncia: e, por isso, o que dizemos dos

    vcios, das virtudes e do seu papel na cincia, pressupe sujeitos no restante iguais. Mas, parte a

    loucura, que inimigos temeis? No pensais na preguia, sepulcro dos melhores dons? Na

    sensualidade, que enfraquece e prostra o corpo, enegrece a imaginao, embota a inteligncia,

    dissipa a memria? No orgulho, que ora deslumbra ora entenebrece, que nos arrasta para o nosso

    prprio senso a ponto de nos fazer perder o senso universal? Na inveja que recusa obstinadamente

    uma claridade vizinha? Na irritao que rejeita as crticas e se apega ao erro?

    Livre destes obstculos, o homem de estudo elevar-se- mais ou menos, segundo as suas

    posses e o ambiente em que vive, mas alcanar o nvel do seu prprio gnio, do seu prprio

    destino.

    Todas as taras mencionadas esto mais ou menos ligadas umas s outras; cortam-se,

    ramificam-se, e todas so para o amor do bem ou para o seu desprezo o que para a nascente so os

    fios de gua que se entrecortam. A pureza do pensamento exige a pureza da alma: eis uma verdade

    geral inconcussa. Oxal o nefito da cincia se impregne dela.

    Subamos mais alto, e, j que falamos de mananciais, no esqueamos o primeiro. Ensina a

    mais segura metafsica que a verdade e o bem no somente esto ligados mas tambm so idnticos

    pelos cimos.

    Para falar com exactido, cumpre dizer que o bem, de que falamos, no propriamente o

    bem moral; directamente o desejvel, mas um rodeio leva dum ao outro.

    O bem moral no seno o desejvel medido pela razo e proposto vontade como fim. Os

    fins dependem todos dum fim ltimo. E este fim ltimo que encontra a verdade e com ela se

    identifica. Uni estas proposies, e vereis que o bem moral se no inteiramente idntico verdade,

    dela depende, atravs dos fins do querer. Portanto h entre ambos um lao frouxo ou apertado, mas

    inquebrantvel.

    No nos aproximamos da verdade pelo que em ns h de individual, mas participando no

    universal. Este universal, a um tempo verdade e bem, no o podemos honrar como verdade, unir-

    nos intimamente a ele, descobrir-lhe os rastos e sofrer a sua influncia poderosa, sem o reconhecer e

    sem o servir igualmente como bem.

    9

  • Subi a grande pirmide pelos degraus que representam to exactamente a ascenso da

    verdade: se subirdes pelo ngulo norte, no chegareis ao cume sem vos aproximardes do ngulo sul.

    Manter-vos a distncia, ficar nos nveis baixos; afastar-vos, ir de travs e tornar a descer. Assim

    o gnio da verdade tende para o bem: se dele se afasta, custa da sua ascenso para os cimos.

    Bem-aventurados os coraes puros, disse o Senhor, porque vero a Deus. Guarda a pureza

    de conscincia, recomenda S. Toms ao estudante; no cesses de imitar o procedimento dos

    santos e dos homens de bem. A obedincia da alma fonte inefvel, as suas disposies filiais e

    amantes abrem-se invaso das claridades como dos ardores e das retides. A verdade, amada e

    realizada como vida, revela-se como princpio; vemos segundo o que somos; participamos na

    verdade participando no Esprito segundo o qual ele existe. As grandes intuies pessoais, as luzes

    penetrantes vm, igualdade de valor, do aperfeioamento moral, do desapego de si e das

    banalidades rotineiras, da humanidade, da simplicidade, da disciplina dos sentidos e da imaginao,

    do empenho em alcanar os fins sublimes.

    No se trata aqui de ostentar destreza, nem de fazer brilhar as prprias faculdades, como

    jias; queremos comunicar como o foco de luz e de vida; abeiramo-nos deste centro na sua unidade,

    tal qual ; adoramo-lo, e renunciamos ao que se lhe ope, para que a sua glria nos inunde. No

    ser, porventura, um pouco isto o que quer dizer a clebre mxima: Os grandes pensamentos

    brotam do corao?

    II - A virtude prpria do intelectual.

    Eis-nos certos de que a virtude, em geral, necessria cincia e que, quanto maior rectido

    moral nela empregarmos, tanto mais fecundo ser o estudo. No entretanto, h uma virtude prpria

    do intelectual, e convm insistir nela, embora no decurso destas pginas a encontremos

    frequentemente. A virtude prpria do homem de estudo , evidentemente, a estudiosidade. Ningum

    se apresse a qualificar de simplria esta afirmao, pois que os mestres no assunto incluram

    debaixo desse rtulo muitas coisas, mas excluram de l muitas outras2.

    S. Toms subordinava a estudiosidade a temperana, para indicar que o saber, em si,

    sempre bem-vindo, mas que a constituio da vida exige que temperemos, isto , que adaptemos s

    circunstncias e liguemos aos outros deveres o apetite de conhecer, que facilmente sai dos justos

    limites.

    Quando digo sai, entendo o termo nos dois sentidos. No reino da estudiosidade, Opem-se

    dois defeitos: a negligncia e a v curiosidade. Deixemos agora a primeira: se o leitor a no detestar

    2. Cf.S.Toms, Suma Teolgica. IIa II ae, q. 167.

    10

  • no momento de fechar este livro, que se ter enfastiado durante o caminho ou ento que fizemos

    muito mal a travessia. No digo, porm, o mesmo da curiosidade. Esta pode tirar lucro dos instintos

    e vici-los no momento em que pretende satisfaz-los.

    J mencionamos as pretenses ambiciosas que desorientam a vocao intelectual. Sem ir tio

    longe, a ambio pode alterar a estudiosidade e os seus efeitos teis. Um acto de ambio a

    propsito da cincia j no acto de cincia, e quem o pratica no merece o nome de intelectual. E

    qualquer outro intuito menos confessvel, que o estudioso se proponha, merece o mesmo veredicto.

    Por outra parte, o estudo, mesmo quando desinteressado e recto, nem sempre oportuno; e

    se o no , o sujeito da cincia esquece-se do mister de homem. E um intelectual, que no homem,

    que ser?

    Existem outros deveres humanos alm do estudo. O conhecimento, tomado em absoluto,

    constitui, sem dvida, o nosso bem supremo; mas o que saboreamos aqui subordina-se muitas vezes

    a outros valores que so os equivalentes daqueles sob os auspcios do mrito.

    O proco de aldeia que vive para os paroquianos, o prtico que desdenha da cincia para

    prestar socorros urgentes, o filho de famlia que aprende um ofcio para ajudar os seus e renuncia

    desse modo a uma cultura liberal, no profanam o gnio interior; rendem homenagem quela

    verdade que se identifica com o Bem. Procedendo de modo diferente, ofenderiam a verdade e a

    virtude, visto que, por um desvio, oporiam a Verdade viva a si prpria.

    Muitos curiosos na cincia no receiam sacrificar-lhe os mais estritos deveres: no so

    sbios, so diletantes, ou ento abandonam o estudo que corresponde s suas obrigaes, para se

    entregarem ao estudo que os lisonjeia nos seus desejos. Afinal, a depreciao e a mesma. Quem visa

    mais alto do que pode e se expe a errar, quem deita a perder faculdades reais a fim de adquirir

    faculdades ilusrias, igualmente curioso no sentido antigo. Dois dos dezasseis conselhos de S.

    Toms em matria de estudo dirigem-se a esses tais: Altiora te ne quaesieres, no busques mais do

    que podes, Volo ut per riuulos, non statim, in mare eligas introire, resolve-te a entrar no mar

    pelos regatos e no directamente. Preciosos conselhos, to teis para a cincia como para a

    virtude, pelo equilbrio que comunicam ao homem.

    No sobrecarregueis o solo, nem eleveis o edifcio mais alto do que os alicerces o permitem,

    ou antes de os alicerces estarem consolidados: de contrrio tudo desabaria.

    Quem sois? Qual a vossa situao? Quais os vossos fundamentos intelectuais? Eis o que

    deve determinar as vossas empresas no domnio da cincia. Se quiserdes colher os frutos, plantai a

    rvore: eis, em resumo, o contedo do conselho de S. Toms. O sbio comea pelo princpio e s d

    novo passo depois de ter consolidado o precedente. Por este motivo, os autodidactas apresentam

    tantas deficincias. Ningum pode contar s consigo para comear pelo princpio. Associando-nos a

    11

  • um grupo em meio do caminho, evitamos a dificuldade dos primeiros passos. Por outro lado, o que

    verdade de cada um no respeitante ao espao percorrido do seu prprio desenvolvimento,

    igualmente verdade de cada um com relao aos outros. No devemos estimar-nos acima do que

    valemos, mas sim julgar-nos. Aceitar-nos tais quais somos, obedecer a Deus e preparar vitrias

    certas. A natureza nunca vai alm do que pode. Tudo nela se mede com preciso sem esforo vo

    nem avaliaes mentirosas. Cada ser opera segundo a sua quantidade e a sua qualidade, de acordo

    com a sua natureza e a sua fora, e depois permanece em paz. S o homem vive de pretenses e de

    tristeza.

    Grande cincia e grande virtude o homem julgar-se rectamente e ser o que realmente .

    Assiste-vos uma misso que s vs podeis cumprir e que deveis cumprir com perfeio, em vez de

    tentardes violentar a fortuna. Os destinos no se podem mudar discrio. Perde-se quem quer

    subir como quem quer descer. Caminhai sempre para a frente em harmonia com o que sois, levando

    a Deus por guia.

    S. Toms ajunta, a estas necessrias medidas de prudncia, o cuidado de no deter a

    curiosidade nos objectos do mundo com detrimento do objecto supremo. Tiraremos da uma

    importante consequncia para a organizao do trabalho3; mas, acima de tudo, salientaremos que o

    estudo deve ceder o lugar ao culto, orao, meditao directa das coisas de Deus. Ele um

    reflexo do ofcio divino; busca e honra os rastos criadores ou antes as imagens, consoante

    perscruta a natureza ou a humanidade; mas, em seu tempo, deve preferir a frequentao directa; de

    contrrio, faltar a um dever capital e alm disso os vestgios da imagem de Deus nas coisas criadas

    s serviro de afastar para longe daquele a quem atestam.

    Estudar de sorte que se descure a orao e se no pratique o recolhimento, nem se leia a

    palavra sagrada, nem a dos santos, nem a das grandes almas, de sorte que o homem se esquea de si

    e, inteiramente concentrado nos objectos de estudo, no faa caso do hspede interior, abuso e

    iluso. Supor que desse modo aumentaro os progressos ou a produo; equivale a dizer que o

    regato levar maior quantidade de gua se o manancial estancar.

    A ordem do esprito deve corresponder ordem das coisas. No real tudo ascende para o

    divino, tudo dele depende, porque tudo dele procede. Na efgie do real em ns, notam-se as mesmas

    dependncias, a no ser que tenhamos transformado as relaes da verdade.

    III - O esprito de orao.

    Estas disposies ficaro inclumes se, independentemente da piedade, que deve preceder o

    3 Cf. Abaixo o cap. V, O Campo do Trabalho; A cincia comparada.

    12

  • estudo, se cultivar, no trabalho, o esprito de orao.

    ainda S.Toms que recomenda ao apaixonado da cincia: Orationi uacare non desinas,

    nunca deixes de orar, e Van Helmont assim explica este preceito: Todo o estudo estudo da

    eternidade.

    A cincia conhecimento pelas causas, repetimos sem cessar. Os pormenores no so nada:

    os factos tambm no; o que importa so as dependncias, as comunicaes de influncia, as

    ligaes, as trocas que constituem a vida da natureza. Ora, atrs de todas as dependncias, h a

    dependncia primeira; no mago de todas as ligaes, o supremo Lao; no cimo das comunicaes,

    a Fonte; debaixo das trocas, o Dom; sob a sstole e a distole do mundo, o Corao, o imenso

    Corao do Ser. No ser porventura necessrio que o esprito se conforme incessantemente com

    ele e nunca perca o contacto do que assim o todo de todas as coisas e por conseguinte de toda a

    cincia?

    A inteligncia s cumpre plenamente a sua misso exercendo uma funo religiosa, isto ,

    rendendo culto suprema verdade atravs da verdade reduzida e dispersa.

    Cada verdade um fragmento que mostra por todos os lados as suas ligaes; a Verdade em

    si uma, e a Verdade Deus.

    Cada verdade um reflexo: atrs do reflexo, e a dar-lhe o valor, est a Luz. Cada ser

    testemunha; cada facto, um segredo divino: para alm est o objecto da revelao, o heri do

    testemunho. Toda a verdade se destaca no Infinito como num fundo de perspectiva; parece-se com

    ele; pertence-lhe. Pode uma verdade particular ocupar a cena, as imensidades esto mais longe.

    Podamos dizer: uma verdade particular apenas smbolo, smbolo real, Sacramento do absoluto;

    ela figura, e ela , mas no por si mesma; no se basta a si prpria; vive do que recebe e, entregue

    sua inconsistncia, morreria.

    Portanto, para a alma inteiramente desperta, toda a verdade lugar de entrevista, aonde o

    Pensamento supremo convida o nosso pensamento: faltaremos ao encontro sublime?

    A vida do real no se confina no que se v, no que se analisa pela cincia. O real tem vida

    oculta, como Jesus, a qual tambm vida em Deus; como que Vida de Deus; revelao da sua

    sabedoria pelas leis, do seu poder pelos efeitos, da sua bondade pelas utilidades, da sua tendncia

    para se difundir pelas trocas e pelo crescimento: convm venerar e amar esta espcie de incarnao

    ao contacto daquele que se encarna. Desligar este corpo de Deus do seu Esprito, abusar dele,

    como abusar de Cristo ver nele puramente o homem.

    A incarnao de Cristo termina na comunho, em que se no dissocia o corpo, o sangue, a

    alma e a divindade do Salvador: a espcie de incarnao de Deus no ser, da Verdade eterna em cada

    caso da verdade, deve tambm terminar num xtase celeste, em vez das nossas distradas

    13

  • investigaes e das nossas banais admiraes.

    Decidamo-nos a trabalhar sombra das grandes leis e ao abrigo da Lei suprema. Nem o

    conhecimento, nem qualquer outra manifestao da vida se deve separar das suas razes na alma e

    no real, onde o Deus do corao e o Deus dos cus se revelam e se juntam. Cumpre estabelecer a

    unidade entre os nossos actos (compreendendo o acto de aprender) e os nossos pensamentos e as

    nossas realidades primeiras. Em suma, tenhamos connosco toda a alma, toda a natureza, toda a

    durao e a prpria Divindade.

    Para obter este esprito de orao na cincia, no mister entregar-se o homem a

    encantaes misteriosas. No se requerem esforos extrnsecos. Sem dvida, a invocao de Deus e

    a sua interveno especial tm aqui o seu lugar. S. Toms orava sempre antes de ditar ou de pregar e

    compusera para esse efeito uma orao admirvel4: o menino da cincia, que balbucia, busca muito

    naturalmente, no olhar divino, a palavra que lhe falta. Mas na prpria cincia, na cincia crist,

    encontra-se o escabelo que, elevando-nos Para Deus, nos permitir voltar ao estudo com o esprito

    mais esclarecido e, por assim dizer, com os dons do profeta. Tudo o que instrui leva a Deus por

    caminho coberto. Toda a verdade autntica , de si, eterna, e a, eternidade, que ela possui, orienta

    para aquela de que a revelao. Atravs da natureza e da alma, para onde nos podemos

    encaminhar seno para o manancial de ambos? Quem l no chega, que se desviou no caminho. O

    esprito inspirado e recto atravessa dum salto os intermedirios, e a toda a interrogao que se ergue

    dentro de si, quaisquer que sejam as respostas particulares que d, uma voz secreta responde: Deus!

    Por conseguinte, basta que, por outro lado, deixemos ao esprito o seu voo e, por outro, a sua

    ateno para que, entre o objecto dum estudo particular e o da contemplao religiosa, se estabelea

    um vaivm em proveito de ambos. Por um movimento rpido e muitas vezes inconsciente,

    passamos do Vestgio ou da Imagem a Deus, e da, ressaltando com novas foras, retornamos aos

    vestgios do divino Viageiro. O que a se descobre ento comentado, magnificado; v-se a um

    episdio dum imenso acontecimento espiritual; mesmo ocupando-se duma ninharia, o homem

    sente-se cliente de verdades, diante das quais as montanhas so efmeras; o Ser infinito e a durao

    infinita cercam-vos, e o vosso estudo autntico estudo da eternidade.

    V - A disciplina do corpo.

    Como j dissemos, a doutrina do composto humano ope-se dissociao das funes

    espirituais e das funes corporais, ainda as mais estranhas ao pensamento puro. S. Toms

    subscreve este pensamento irnico de Aristteles: " to ridculo dizer: s a alma compreende,

    4 Cf.Les Prires de Saint Thomas dAquin, Paris, Librairie de lArt Catholique.

    14

  • como dizer: s ela constri ou tece"5; e sustenta estas proposies na aparncia materialista: As

    diversas disposies dos homens nas obras da alma dependem das diversas disposies de seus

    corpos6. " boa compleio do corpo corresponde a nobreza da alma"7.

    No admira. O pensamento nasce, em ns, depois de demoradas preparaes em que toda a

    mquina corporal entra em aco. A base de tudo a qumica celular; as mais obscuras sensaes

    preparam a experincia: esta o produto do trabalho, dos sentidos que elaboram lentamente as suas

    aquisies e as fixam pela memria. O fenmeno intelectual produz-se no meio de fenmenos

    fisiolgicos, em continuidade com eles e debaixo da sua dependncia. Ningum pensa, mesmo que

    s utilize uma ideia adquirida, sem evocar uma srie de imagens, de emoes, de sensaes, que so

    os adubos com que se fermenta a ideia.

    Quando queremos despertar nalgum um pensamento, servimo-nos apenas dum meio:

    produzir nele, pela palavra ou por sinais, estados de sensibilidade e de imaginao, de emoo, de

    memria, nos quais ele descubra a nossa ideia e a possa fazer sua. As almas no comunicam seno

    pelo corpo. Do mesmo modo, a alma de cada qual no comunica com a verdade e consigo prpria

    seno pelo corpo, de sorte que a mudana pela qual passamos da ignorncia cincia se deve

    atribuir segundo S. Toms, directamente ao corpo e s por acidente parte intelectual8.

    Esta doutrina, que o Santo Doutor desenvolve a cada passo, to essencial e

    providencialmente moderna, deve gerar a convico de que para pensar, sobretudo para pensar com

    ardor e sabedoria durante uma vida inteira, indispensvel sujeitar ao pensamento no s a alma e

    as suas diversas potncias, mas tambm o corpo e todas as suas funes orgnicas? Tudo, num

    intelectual, deve ser intelectual. O complexo fsico e mental, a substncia homem esto ao servio

    desta vida especial que por certos aspectos parece to pouco humana: no lhe ponham embargos!

    Tornemo-nos harmonia, que d em resultado a conquista da verdade.

    Ora, h a duas coisas a encarar sem respeito humano, embora a primeiro costume assustar

    os espritos de juzo pouco firme.

    Primeiramente, no vos envergonheis de cuidar da sade.

    Gnios houve de sade lamentvel, e se Deus permite que assim suceda convosco, no

    discutamos. Mas se a culpa vossa, ento isso seria tentar a Deus e caso de grande culpabilidade.

    Tu que s aluno dos Gnios ests seguro de possuir, como eles, bastante vigor para triunfar na luta

    incessante da alma contra a fraqueza da carne? Nada nos diz que os Gnios no tenham visto as

    suas taras fisiolgicas desviarem ou reduzirem-lhes os talentos. Muitas anomalias intelectuais,

    5 Quaest.XIX de Veritate, art. I, arg. I.6 De Mrmoria, lect.I.7 In II de Anima, lect.19.8 Quaest.XXVI de Veritate, art.3, ad 12 um.

    15

  • mesmo entre os mais bem-dotados, talvez se expliquem deste modo, bem como a fraca produo de

    alguns.

    Em igualdade de dons, a doena grave inferioridade: diminui o rendimento; entrava a

    liberdade no momento das suas delicadas funes; desvia a ateno; pode falsear o juzo pelos

    efeitos de imaginao e de emotividade que o sofrimento provoca. Uma enfermidade de estmago

    muda o carcter do homem e o carcter muda os pensamentos. Se Leopardi no tivesse sido o

    aborto que foi, quase decerto o no contaramos no nmero dos pessimistas. Tratando-se duma vida

    elevada, deveis preocupar-vos, ao mesmo tempo que com o pensamento, com todas as suas

    substrues orgnicas. Alma s no corpo so: eis o ideal de sempre. O homem de pensamento tem

    uma, fisiologia especial; precisa de velar por ela e de no recear consultar o homem da arte9.

    Em todo o caso, segui as prescries correntes. A boa higiene , para vs, uma virtude por

    assim dizer intelectual. Os nossos modernos, por vezes to pobres de filosofia, so ricos de higiene;

    pois bem, no a desdenheis, porque ela enriquecer a vossa filosofia.

    Tanto quanto possvel, vivei ao ar livre. A ateno, nervo da cincia, est em estreita

    correlao com a respirao e, para a sade em geral, a abundncia de oxignio condio

    primeira. Janelas abertas ou entreabertas dia e noite quando a prudncia o permite, perodo

    frequente de respiraes fundas, sobretudo combinadas com movimentos que as amplifiquem e as

    tornem normais, passeios que se entremeiem com o trabalho e com ele se combinem, consoante a

    tradio grega: eis a outras tantas prticas esplndidas.

    importante trabalhar em posio que desembarace os pulmes e no comprima as vsceras.

    bom interromper, de quando em quando, o estudo aplicado para respirar profundamente, para

    fazer dois ou trs movimentos rtmicos que distendem o corpo e o impedem, por assim dizer, de se

    enrugar. Est demonstrado que so de grande eficcia largas aspiraes praticadas de p e elevando-

    nos na ponta dos ps, com a janela aberta. No descureis nada, para evitar a congesto e o

    estiolamento dos rgos.

    Consagrai todos os dias algum tempo a exerccios corporais. Lembrai-vos da observao

    dum mdico ingls: Quem no encontra tempo para fazer ginstica, h-de encontr-lo para estar

    doente. Se no podeis exercitar-vos ao ar livre, no faltam mtodos excelentes que suprem essa

    deficincia. O de J.-P. Muller, um dos mais inteligentes; mas existem outros10. O trabalho manual

    suave e distractivo igualmente precioso para o esprito e para o corpo. Os antepassados sabiam-no

    muito bem; mas o nosso sculo zomba da natureza. Por isso a natureza vinga-se. Reservai-vos todos

    os anos, e no decurso do ano, frias para descansar a srio. No quero dizer que vos abstenhais de

    9 Cf.Rveill Parise, Physiologie et Hygine des hommes livrs aux travaux de lespirit, Paris, 1881.10 J.P. Muller, O meu sistema, trad. Port., Lisboa, Bertrand.

    16

  • todo o trabalho, pois isso afrouxaria faculdades naturalmente activas, mas sim que predomine,

    nesses perodos de tempo, o repouso, o ar livre e o exerccio em plena natureza.

    Cuidai da alimentao. Uma alimentao leve, simples, moderada em quantidade e em

    qualidade, permitir-vos- trabalhar com mais prontido e liberdade. O pensador no passa a vida em

    sesses de digesto.

    Cuidai mais ainda do sono: no seja demasiado nem escasso. Demasiado, embrutece e

    entorpece, espessa o sangue e o pensamento; escasso, expe-vos a prolongar e a sobrepor

    perigosamente as excitaes do trabalho. Observai-vos; no que respeita ao sono, como ao alimento,

    encontrai a justa medida que vos convm e proponde no sair dela. No se pode marcar aqui lei

    comum.

    Em suma, o cuidado do corpo, instrumento da alma, , para o intelectual, virtude e prova de

    sabedoria. S.Toms reconhece isso mesmo e classifica esta sabedoria do corpo entre os elementos

    que concorrem para a felicidade temporal, incentive da outra11. No vos torneis raquticos,

    malogrados possivelmente futuros idiotas, velhos antes do tempo, portanto ecnomos insensatos do

    talento que o Mestre lhes confiou.

    Mas o cuidado do corpo comporta outros elementos. J falamos das paixes e dos vcios

    como de formidveis inimigos do esprito. Pensvamos ento nos seus efeitos psicolgicos, nas

    perturbaes que trazem ao juzo e criao do esprito, que, chegados a certo grau, transformam

    em potncia de trevas. Actualmente referimo-nos os seus efeitos corporais, que indirectamente se

    convertem em doenas da alma.

    Quem preguioso, guloso, escravo do travesseiro e da mesa, quem abusa do vinho, do

    lcool, do tabaco, quem se compraz em excitaes malss, em hbitos que a um tempo debilitam e

    enervam, em pecados talvez perdoados periodicamente, mas cujos efeitos permanecem, como

    praticar a higiene que vimos ser necessria?

    O amigo do prazer inimigo do seu corpo e depressa se torna inimigo da sua alma. A

    mortificao dos sentidos requerida para o pensamento e s ela nos pode colocar naquele estado

    clarividente de que falava Gratry. Se obedecerdes carne, estais em caminho de ser carne, quando

    devereis ser todo esprito.

    Por que motivo se chama S. Toms o doutor anglico? Ser unicamente pelo gnio alado?

    No, porque nele tudo se subordinava ao pensamento genial e santo, porque a sua carne, oriunda

    das margens tirrenas, se revestira da brancura do Carmelo e do Hermo; porque, sbrio e casto,

    pronto para o ardor e afastado de excessos, era todo ele uma alma, uma inteligncia servida por

    rgos, segundo a clebre definio.

    11 Contra Gentes. III, Cap. 141.

    17

  • A disciplina e a mortificao do corpo, juntas aos cuidados necessrios, de que, por sua

    conta, constituem a melhor parte: tal , trabalhadores cristos, e vs sobretudo, jovens, uma das

    mais preciosas salva-guardas do porvir.

    18

  • CAPTULO III - A organizao da vida

    I Simplificar.

    A fim de que, em vs, tudo se oriente para o trabalho, no basta organizar por dentro,

    organizar-vos por dentro, precisar a vocao e administrar as foras: precisais tambm de dispor a

    vida, quanto ao ambiente, obrigaes, vizinhanas, cenrio.

    Uma palavra que tudo resume: simplificai. Tendes de levar a cabo uma viagem difcil: no

    vos sobrecarregueis de bagagens, pois pode acontecer que no sejais inteiramente senhor delas, e

    nesse caso de que serviria legiferar? Erro! Na mesma situao exterior, um esprito de simplificao

    pode muito, e o que no se consegue afastar por fora pode-se afastar da alma. No atrelars o

    jumento com o boi, prescreve a Lei: o trabalho pacfico e comedido no deve associar-se aos

    conflitos caprichosos e ruidosos duma vida puramente exterior. Um certo ascetismo constitui ainda,

    sob este aspecto, o dever do pensamento. Religiosa ou laica, cientfica, artstica, literria, a

    contemplao no se compagina com as comodidades demasiado onerosas, nem com as

    complicaes. Os grandes homens dormem em camas pequenas, observa Henrique Lavedan.

    preciso pagar, por amor do gnio, a taxa do luxo. Dez por cento deste privilgio no o arruinaro:

    no ele quem paga, so antes os defeitos, em todo o caso as tentaes, mas o juro s duplicar.

    Para dar hospitalidade cincia, no se requerem mveis raros, nem criadagem numerosa.

    Muita paz, um pouco de bom gosto, algumas comodidades que sirvam de poupar o tempo, quanto

    basta.

    Reduzi o teor de vida. Recepes, sadas que arrastam novas obrigaes, cerimnias de

    vizinhana, todo esse ritual complicado duma vida artificial que tantos mundanos amaldioam cm

    segredo, no so coisas prprias dum trabalhador. A vida mundana fatal para a cincia. A ideia e a

    ostentao, a ideia e a dissipao so inimigos mortais. No se representa o gnio sentado mesa a

    jantar.

    No vos deixeis tomar por essa engrenagem que pouco a pouco toma o tempo, as

    preocupaes, as disponibilidades, as foras. Os preconceitos no so os vossos ditadores. Guiai-

    vos por vs prprios; obedecei a convices, no a ritos, e as convices dum intelectual devem

    sempre referir-se ao fim que tem em Vista.

    Vocao consagrao. O intelectual um consagrado, no v portanto dispersar-se em

    futilidades exigentes. Lance todos os seus recursos ao fogo da inspirao, como Bernardo Palissy

    sacrificava os seus mveis. O trabalho e as suas condies, eis o que importa. Os gastos e os

    cuidados disseminados por ninharias seriam muito melhor utilizados em formar uma biblioteca, em

    reservar uma viagem instrutiva, umas frias tranquilas, audies musicais que refrescam a

    19

  • inspirao, etc.

    O que favorece a vossa obra sempre oportuno; o que a entrava e dificulta deve ser

    excludo, porque, alm dos inconvenientes imediatos, sois assim levados a procurar o lucro e

    desorientais os vossos esforos. O Sacerdote tem com que viver do servio do altar e o homem de

    estudo do seu trabalho; mas assim como ao se diz missa por dinheiro, tambm no se deve, por

    causa do dinheiro, pensar e produzir.

    Se pertenceis ao nmero dos que tm de ganhar a vida fora do trabalho da sua predileco,

    como haveis de preservar as magras horas de que dispondes, se a vida se sobrecarrega? caso para

    reduzir ao mnimo a matria, para aliviar e libertar o esprito.

    A este respeito, a mulher dum intelectual tem uma misso que talvez seja bom assinalar, to

    frequentemente ela a esquece e, em vez de ser a Beatriz, s sabe ser o periquito tagarela e

    dissipador.

    A mulher deve desposar a carreira do marido; o centro da gravidade da famlia sempre o

    trabalho do pai. A est a vida produtiva, portanto tambm o essencial do dever. Mas isto tanto

    mais verdadeiro quanto mais nobre e laboriosa for a carreira abraada. A vida comum tem aqui por

    centro um cimo; a mulher deve instalar-se nele, em vez de procurar distrair dele o pensamento do

    homem. Arrast-lo para bagatelas alheias s suas aspiraes, o desviar o marido destas duas vidas

    que mutuamente se contradizem. Pense nisso a filha de Eva e no d razo, seno com direito, ao

    divisius est de S. Paulo. Se o homem casado est "dividido" de algum modo, que esteja tambm

    duplicado. Deu-lhe Deus uma auxiliar semelhante a si: que ela se no torne outra. As divises

    ocasionadas pela incompreenso da alma irm so fatais produo; introduzem no esprito uma

    inquietao que o corri; no lhe fica ardor nem alegria, e como que a ave voaria sem asas, a ave e

    a alma sem o seu canto? Por conseguinte, a guarda do lar no deve ser o gnio mau, mas sim a musa

    do mesmo lar. Desposou uma vocao, logo deve ter igualmente a vocao. Que importa realizar

    por si ou pelo marido? Ela deve, no entanto, realizar, uma vez que uma s carne com o que

    realiza. Sem precisar de ser intelectual, menos ainda mulher de letras, pode produzir muito

    ajudando o marido a produzir, obrigando-o a velar sobre si, a dar o mximo de trabalho, levantando-

    o nas horas inevitveis das quedas, animando-o nos dissabores sem lhos acentuar com demasiada

    insistncia, acalmando-lhe as penas, sendo a sua recompense aps o trabalho.

    Ao deixar o trabalho, o homem e como que um ferido; precisa de conforto e de calma: no o

    violentem; animem-no; aquietem-no; interessem-se pelo que faz; dupliquem-no no momento em

    que se encontra como que diminudo por um gesto talvez excessivo; numa palavra, sejam para com

    ele me, e este forte, que pura fraqueza, sentir o vigor orientar-se para novos tormentos.

    Quanto s crianas, esta suave complicao deve servir para renovar o nimo mais do que

    20

  • para o privar dos seus recursos. Tomam muito de vs, esses pequeninos, e para que serviriam eles,

    se vos no moessem a pacincia de tempos a tempos? Mas do tanto ou mais carinho do que o que

    vos tomam; podem alterar a vossa inspirao misturando-a de alegria; reflectem-vos amorosamente

    a natureza e o homem, e defendem-vos assim do abstracto; reconduzem-vos ao real, a esse real cujo

    comentrios seus olhos interrogadores esperam de vs. Suas frontes puras pregam-vos a

    integridade, irm do saber; e a facilidade em acreditar, em esperar, em sonhar grandes planos e em

    aguardar tudo da paternidade que os guia, no ser tambm para vs, pensadores, uma elevao e

    um motivo de esperar? Vde a imagem de Deus e um sinal dos nossos destinos imortais nessa

    imagem do porvir.

    Os que renunciaram famlia para se consagrarem inteiramente a uma obra e quele que a

    inspira, tm o direito de se regozijar por isso, apreciando as liberdades que este sacrifcio lhes

    outorga. Esses pensaro em seus irmos carregados de cuidados, repetindo de si para consigo a

    palavra sorridente de Lacordaire a propsito de Ozanam: "No soube evitar uma armadilha: o

    matrimnio". Mas o trabalhador envolvido neste lao pode e deve fazer dele uma fora, um motivo

    de ardor e uma das formas do seu ideal.

    II Guardar a solido.

    O ponto essencial a salvar na organizao da vida e em vista do qual tudo o mais se adopta,

    o arranjo exterior e interior da solido. S. Toms est to persuadido disso que, dos dezasseis

    conselhos que a ao intelectual, sete so consagrados s relaes e ao retiro. Quero que sejas lento

    em falar e lento em ir sala de visitas. "Nunca te intrometas na vida alheia". "Mostra-te amvel

    para com todos", mas no sejais muito familiar com ningum, porque a demasiada familiaridade

    gera o desprezo e d matria a muitas distraces. "No te ocupes das palavras nem das aces

    seculares". "Evita acima de tudo as voltas inteis". "Ama a cela, se quiseres ser introduzido na

    adega".

    A adega, de que se fala aqui, por aluso ao Cntico dos Cnticos e ao comentrio de S.

    Bernardo, o secreto abrigo da verdade, cujo odor atrai de longe a Esposa, isto , a alma ardente;

    o domiclio da inspirao o lar do entusiasmo, do gnio, da inveno, da investigao, o teatro das

    folias do esprito e da sua moderada embriaguez.

    Para entrar nessa morada, preciso deixar as banalidades e praticar o retiro, simbolizado na

    cela monstica. Nas celas como ao longo dos grandes corredores, escreve Paulo Adam (Dieu, pg.

    67), o silncio parece uma pessoa magnfica, vestida da brancura das paredes e que vigia. Sobre

    que vigia seno sobre a orao e o trabalho?

    Portanto, sede lentos em falar e em ir aonde se fala, porque as muitas palavras obrigam o

    21

  • esprito a escoar-se como gua; pagai, pela cortesia para com todos, o direito de no frequentar

    verdadeiramente seno alguns cujo comrcio vos seja de proveito; evitai, mesmo com esses, a

    excessiva familiaridade que abaixa e desorienta; no corrais aps as notcias que ocupam o esprito

    em vo; no vos imiscuais em aces e palavras seculares, isto , ser alcance moral ou intelectual;

    evitai os passos inteis que consomem as horas e favorecem a vadiagem dos pensamentos. Tais so

    as condies do recolhimento sagrado. S assim nos aproximamos dos segredos reais que

    constituem a felicidade da Esposa; s deste modo nos manteremos em respeito diante da verdade.

    O retiro laboratrio do esprito; suas asas, a solido interior e o silncio. As grandes obras

    foram preparadas no deserto, at mesmo a redeno do mundo. Os precursores, os continuadores, o

    Mestre observaram ou devem observar a mesma lei. Profetas, apstolos, pregadores, mrtires,

    pioneiros da cincia, inspirados de todas as artes, simples homens ou Homem-Deus, todos pagam o

    tributo ao isolamento, A vida silenciosa, noite.

    Na noite astral e na sua vacuidade solene afeioou Deus o universo: quem quiser saborear as

    alegrias criadoras, no se apresse a pronunciar o Fiat lux, nem sobretudo passe revista a todos os

    animais do mundo; nas sombras propicias, imitao do Criador, tome o tempo de dispor a matria

    dos astros.

    Os mais belos cantos da natureza ressoam de noite. O rouxinol, o sapo de voz cristalina, o

    grilo, cantam na sombra. O galo proclama o dia, no espera por ele. Todos os anunciadores, todos

    os poetas, e tambm os investigadores e pescadores de verdades esparsas tm de mergulhar na

    grande vacuidade que plenitude.

    Nenhum homem superior tentou fugir a essa lei. Dizia Lacordaire que no seu quarto, entre a

    sua alma e Deus, se rasgara Horizonte mais vasto do que o mundo e que a procurava "as asas do

    repouso". Emerson proclamava-se "selvagem". Descartes encerrava-se no seu "fogo". Plato

    consumia mais azeite na lmpada do que vinho na taa. Bossuet levantava-se de noite para

    encontrar o gnio do silncio e da inspirao; os sublimes pensamentos no lhe acudiam seno no

    afastamento dos rudos e dos cuidados fteis. E os Poetas, no tm eles a impresso de s traduzir

    no verso as misteriosas revelaes do silncio que escutam consoante a frmula de Gabriel

    dAnnunzio, como um "hino sem voz"?

    O que vale deve erguer uma barreira entre si e o que no vale. A vida banal, e os ludibria de

    que falava Santo Agostinho, os jogos e as querelas de crianas que um beijo acalma, devem cessar

    com o beijo da musa, com as carcias embriagantes e calmantes da verdade.

    A que vieste, perguntava a si prprio S. Bernardo no claustro: ad quid venisti? E tu,

    pensador, a que vieste a esta vida fora da vida corrente, a esta vida de consagrao, de concentrao,

    por conseguinte de solido? No foi por escolha? No preferiste a verdade mentira quotidiana

    22

  • duma vida que se dispersa, mesmo aos cuidados superiores, mas secundrios, da aco? No sejas,

    pois, infiel ao teu culto, deixando-te assenhorear de novo pelo que livremente abandonaste.

    Para que o Esprito nos leve para as solides interiores, como levou Jesus para o deserto,

    precisamos de lhe dar os nossos espritos. Sem retiro no h inspirao. Mas volta da lmpada

    todos os astros do pensamento se congregam, como num firmamento.

    Quando a calma do silncio nos invade e o fogo sagrado crepita sozinho, longe do

    borborinho das estradas, e quando a paz, tranquilidade da ordem, estabelece a ordem dos

    pensamentos, dos sentimentos, das investigaes, estais na alma disposio de aprender, podeis

    juntar, depois criar; estais estritamente no princpio da ao; no o momento de acolher misrias,

    nem de ir vivendo enquanto o tempo corre, nem de trocar o cu por bagatelas.

    A solido permite-vos o contacto convosco, contacto necessrio, se quiserdes realizar-vos e

    no ser o papagaio de frmulas aprendidas, mas sim o profeta do Deus interior que fala a cada qual

    uma linguagem nica.

    Voltaremos a esta ideia duma instruo especial a cada um, duma formao que educao,

    isto , desdobramento da alma, alma nica e que no teve nem ter igual nos sculos, porque Deus

    no se repete. Mas para sair assim de si prprio, indispensvel viver consigo, muito perto, na

    solido.

    Dizia o autor da Imitao: Sempre que fui ter com os homens, voltei de l menos homem.

    Levai mais longe a ideia e corrigi: voltei de l menos homem do que sou, menos eu prprio.

    Perdemo-nos no meio da multido, a no ser que nos mantenhamos firmes, mas primeiro devemos

    criar esta amarra. Na multido ignoramo-nos, inteiramente atravancados por um eu estranho, que

    multido.

    "Como te chamas? Legio": eis a resposta do esprito disperso e dissipado na vida exterior.

    Os higienistas recomendam para o corpo o banho de gua, o banho de ar e o banho interior

    de gua pura: eu de bom grado ajuntaria o banho do silncio, a fim de tonificar o organismo

    espiritual, de acentuar a prpria personalidade e de lhe comunicar o sentimento activo, como o

    atleta sente os msculos e prepara o jogo deles pelos movimentos interiores que lhes do vida.

    Disse Ravignan: A solido a ptria dos fortes, o silncio sua orao, orao Verdade,

    fora de cooperao com a sua influncia, no recolhimento prolongado, frequentemente retomado,

    h horas determinadas, como para uma entrevista que pouco e pouco se converter em

    continuidade, em vida estreitamente comum! No podemos, diz S. Toms, contemplar todo o

    tempo; mas aquele que s vive para a contemplao que para ela orienta tudo o mais, e a retoma

    logo que pode, d-lhe uma espcie de continuidade, a continuidade que lhe possvel dar sobre a

    terra.

    23

  • De envolta com ela vira a suavidade, porque a cela bem guardada torna-se suave: cella

    continnuata dulcescit. Ora a suavidade da contemplao a parte da sua eficcia. O prazer, explica

    S. Toms, apoia a alma sobre o seu objecto, como se fosse instrumento para apertar; refora a

    ateno e desdobra as potncias de aquisio que seriam comprimidas pela tristeza ou pelo

    aborrecimento. Quando a verdade se apossa de vs e a penugem das suas asas desliza debaixo da

    vossa alma para a erguer em gestos harmoniosos, eis o momento de vos erguerdes com ela e de vos

    librardes, enquanto ela vos ala s regies elevadas.

    III Cooperar com os seus iguais.

    Nem por isso sereis o isolado que condenamos: no estareis longe dos vossos irmos pelo

    facto de ter abandonado o rudo que fazem e que vos separa deles espiritualmente, impedindo assim

    a verdadeira fraternidade.

    Para o intelectual, o prximo o ser que precisa de verdade, como o prximo do bom

    Samaritano era o ferido da estrada de Jeric. Antes de dar a verdade, adquira-a e no dissipeis o

    gro das vossas sementeiras.

    Se as palavras da imitao so verdadeiras, longe dos homens sereis mais homens e estareis

    mais com os homens. Para conhecer a humanidade e para a servir, preciso entrar em si, onde todos

    os objectos entram em contacto e donde extraem a fora de verdade e a potncia de amor.

    No h maneira de se unir ao que quer que seja seno na liberdade interior. Deixar-se

    monopolizar, puxar para aqui e para ali, quer se trate das coisas quer de pessoas, trabalhar para

    desunir. Longe dos olhos, perto do corao.

    Jesus mostra-nos bem como se pode viver vida interior e ao mesmo tempo dar-se aos outros,

    ser todo para os homens e viver todo em Deus. Viveu Ele na solido; tratava com a multido s com

    uma alma de silncio, de que a sua palavra como que a porta estreita para as trocas da divina

    caridade. E que soberana eficcia, neste contacto que reservava tudo, excepto o ponto preciso pelo

    qual Deus podia passar e as almas juntar-se a Ele!

    No deveria haver lugar a, entre Deus e a multido, seno para o Homem-Deus e para o

    homem de Deus, para o homem de verdade e de dom. Aquele que se cr unido a Deus, sem estar

    unido a seus irmos, mentiroso, afirma o apstolo; no passa de falso mstico e, intelectualmente,

    de falso pensador; mas o que est unido aos homens e natureza sem estar unido com Deus no seu

    ntimo, sem ser cliente do silncio e da solido, apenas vassalo dum reino de morte.

    Todas as nossas explicaes demonstram claramente que a solido, cujo elogio tecemos,

    24

  • valor que se deve temperar com valores conexos, que o completem e utilizem. No advogamos

    embalde a solido o sacrifcio do convvio e da simpatia dos nossos irmos vale uma compensao.

    No temos direito seno ao esplndido isolamento. Ora este ser tanto mais rico e fecundo quanto a

    vizinhana superior, procurada no retiro, for favorecida por frequentaes escolhidas e medidas

    com sabedoria.

    A frequentao primeira do intelectual, a que o qualificar, sem prejuzo das suas

    necessidades e deveres de homem, a frequentao dos seus iguais. Digo frequentao, prefiriria

    dizer cooperao, porque, frequentar sem cooperar no fazer obra intelectual. Mas uma tal

    conjuno dos espritos muito rara, neste tempo de individualismo e anarquia social. J o

    deplorava o P. Gratry; sonhava ele com Port-Royal e queria fazer do Oratrio um Port-Royal sem

    cisma. "Quantos trabalhos nos poderamos poupar, dizia, se soubssemos unir-nos ou auxiliar-nos

    mutuamente! Se em nmero de seis ou sete, com o mesmo pensamento, procedssemos por ensino

    mtuo, e nos tornssemos recproca e alternativamente aluno e mestre; se mesmo, por no sei que

    concurso de circunstncias felizes, pudssemos viver juntos; se, alm dos cursos da tarde e dos

    estudos sobre os cursos, falssemos noitinha, mesmo mesa, sobre todos estes belos assuntos, de

    modo a aprender mais pela conversa e por infiltrao do que pelos prprios cursos12"!

    As oficinas de outrora, e sobretudo as oficinas de arte eram amizades, famlias: a oficina de

    hoje masmorra, ou ento meeting. No haver maneira de ver, debaixo da impresso da

    necessidade que mais e mais se experimenta nossa volta, a oficina familiar ampliada, aberta para

    fora e no menos concentrada que anteriormente? Seria esse o momento de conceber e de fundar a

    oficina intelectual, associao de trabalhadores, por igual entusiastas e aplicados, livremente

    reunidos, vivendo na simplicidade, na igualdade, sem que nenhum deles pretenda impor-se, embora

    possuindo reconhecida superioridade de que o grupo se possa aproveitar. Longe de competies e

    de orgulhos, buscando apenas a verdade, os amigos assim reunidos seriam, se assim me atrevo a

    exprimir, multiplicados uns pelos outros, e a alma comum provaria uma riqueza que em nenhuma

    parte parece ter explicao suficiente.

    Para trabalhar s, preciso ter alma forte. Constituir em si s a sua sociedade intelectual, o

    seu nimo, o seu apoio, encontrar num pobre querer isolado tanta fora quanta pode existir numa

    massa em movimento ou na dura necessidade, que herosmo! Primeiro sente-se entusiasmo, depois

    com a chegada das dificuldades, o demnio da preguia sugere: para que tanta maada? Ento

    enfraquece-se a viso do fim; os frutos esto demasiado longnquos ou aparecem amargos; sentimos

    vagamente que nos enganamos. certo que o apoio de outrem, as trocas de impresses, o exemplo

    12 Les Sources, Primeira parte, cap. VI.

    25

  • seria de admirvel eficcia contra este spleen; supririam, em muitos, essa potncia de imaginao e

    constncia de virtude que s alguns possuem e que, no entanto, so necessrias para no desistir da

    prossecuo dum grande fim.

    Nos conventos em que os religiosos no se falam, nem se visitam, a influncia duma fileira

    de celas laboriosas anima e activa cada asceta; estes alvolos, na aparncia isolados, formam um

    cortio; o silncio colectivo e o trabalho conjunto; o acordo das almas no d f dos muros da

    clausura; um mesmo esprito adeja na atmosfera e a harmonia dos pensamentos ergue-se como

    motivo de sinfonia que a vaga geral dos sons leva e prolonga. Quando em seguida intervm as

    trocas de impresses, o concerto enriquece-se; cada qual exprime e escuta, aprende e ensina, recebe

    e d, e talvez este ltimo aspecto da cooperao seja o mais cobiado.

    A amizade maiutica que extrai de ns os mais ricos e ntimos recursos; desdobra as asas

    dos sonhos e dos obscuros pensamentos; inspecciona os juzos, experimenta as ideias novas,

    entretm o ardor e inflama o entusiasmo.

    H exemplos disso hoje nos grupos de jovens e nas revistas de novos, onde adeptos

    convictos assumem uma misso e se consagram a uma concepo. Os Cabiers de la Quinzaine

    nasceram deste voto, a Amit de France, a Revue de jeunes, as Revistas de Juvisy e de Saulchoir

    cada dia se compenetram mais e mais deste esprito. Nem sempre a se vive em comunidade, mas

    trabalha-se com o mesmo corao e concertam-se, corrigem-se, defendem-se e excitam-se uns aos

    outros num ambiente, cujo essencial fornecido por um pensamento iniciador e por uma grande

    tradio.

    Se puderes, tentai agregar-vos a uma fraternidade deste gnero; se preciso for, constitu-a.

    Em todo o caso, mesmo no isolamento maternal, buscai em esprito a sociedade dos amigos da

    verdade. Alistai-vos em suas fileiras, sentai-vos fraternalmente com eles e com todos os

    investigadores, com todos os produtores que a cristandade rene. A comunicao dos Santos, no

    falanstrio, unidade. A carne sozinha de nada serve; o esprito, s, pode alguma coisa. A

    unanimidade no consiste tanto em viver juntamente numa morada ou num determinado grupo,

    quanto em esforar-se, cada qual, com o sentimento de que outros se esforam, em se concentrar

    quando outros se concentram, de modo que se leve por diante uma tarefa, orientada por um s

    princpio de vida e de actividade, e que as peas do relgio, s quais cada trabalhador em seu quarto

    se aplica exclusivamente, tenham Deus como relojoeiro.

    IV Cultivar as relaes necessrias.

    Disse que a solido do pensador no implica a excluso dos seus deveres nem o olvido das

    suas necessidades. H relaes necessrias que fazem parte da vida do intelectual, uma vez que no

    26

  • separamos o intelectual do homem. Compete-vos lig-las intelectualidade, de sorte que no a

    embaracem, mas a sirvam.

    Isto sempre possvel. Nunca malbaratado o tempo que se consagra ao dever ou

    necessidade real; o cuidado, que se lhe dispensa, faz parte da vocao, e s a contrariaria, se a

    considerssemos abstractamente, parte da Providncia.

    "No se deve acreditar, escreve Maine de Biran no seu Dirio, que o nico e melhor

    emprego do tempo consiste num trabalho de esprito regrado, persistente e tranquilo. Sempre que se

    procede bem, conforme a situao actual, faz-se bom uso da vida."

    Decerto no pensais que a vossa obra valha mais do que vs, nem que um suplemento de

    possibilidades intelectuais possa prevalecer sobre o acabamento do vosso ser. Fazei o que deveis e o

    que for preciso: se a vossa humanidade o exigir, ela saber arranjar-se. O bem, irmo da verdade,

    ajudar a sua irm. Estar onde se deve estar, fazer a o que se deve fazer, preparar a contemplao,

    aliment-la e deixar a Deus por Deus, dizia S. Bernardo.

    doloroso sacrificar belas horas em frequentaes e assuntos inferiores ao ideal; como,

    porm, o curso deste mundo feito para se aliar virtude, lembremo-nos que a virtude intelectual

    ou moral retirar da vantagem. Em certos dias, a intelectualidade alcanar o seu ganho

    unicamente atravs da moralidade, apesar das suas concesses virtuosas; noutras circunstncias,

    alcan-lo- por si s.

    Porque, no o esqueais, nas frequentaes, mesmo correntes, tambm vs tendes algo que

    respigar. A demasiada solido empobrece. Escrevia recentemente algum: A dificuldade dos

    romancistas hodiernos afigura-se-me esta: se no frequentam o mundo, os seus livros so ilisveis, e

    se o frequentam, falta-lhes tempo para escrever. a nsia da medida que se encontra por toda a

    parte! Mas, romancista ou no, sentis que no vos podeis enclausurar inteiramente. Nem os prprios

    monges o fazem. mister guardar, por causa do trabalho, o sentimento da alma comum e da vida. E

    como que vs o possuireis, se, privado de comunicao com os humanos, encarsseis apenas uma

    humanidade area?

    O homem nimiamente isolado torna-se tmido, abstracto, um pouco bizarro; cambaleia no

    real como o marinheiro quando pe o p em terra; falta-lhe o senso do destino; d a impresso de

    vos olhar como se fosseis uma proposio a inserir num silogismo ou um caso a notar um

    calepino.

    H na riqueza infinita dos reais tesouros que vos podem instruir; basta que a frequentemos

    em esprito de contemplao, e que no a desertemos. E no ser porventura o homem o que nela h

    de mais importante o homem centro de tudo, fim ltimo de tudo, espelho de tudo e que convida o

    pensador a permanente confrontao?

    27

  • preciso que, na medida em que nos for dado escolher, disponhamos as coisas de maneira a

    convizinhar o mais possvel com pessoas superiores. A esposa dum intelectual deve tambm velar

    por isto. No abra a qualquer as portas de casa; que o seu tacto seja como crivo; sociedade da alta

    roda prefira a das almas nobres; aos pretensos homens de gnio prefira gente de peso, instruda e de

    juzo slido, visto que no mundo tanto mais se passa por um homem de gnio quanto mais se matou

    a inteligncia. Sobretudo no v ela, por leviandade ou vaidade, por qualquer interesse reles,

    introduzir o marido na companhia de insensatos.

    Que digo? Se at os insensatos concorrem para nos servir e completar a nossa experincia!

    No os busqueis: h-os em demasia! Mas, se os encontrardes, utilizai-os intelectualmente,

    cristmente, pelo exerccio das virtudes de que eles so os clientes.

    A sociedade livro para ler, embora livro banal. A solido obra-prima; mas recordai-vos

    do que dizia Leibniz, a saber, que sempre retirava utilidade, at da leitura dos piores livros. Nunca

    pensais s, como nunca pensais s com a inteligncia. Esta associa-se s demais faculdades, a alma

    associa-se ao corpo, a pessoa associa-se s suas relaes; o ser pensante tudo isto: componde-o o

    melhor que puderdes, mas de sorte que as prprias taras, e as enfermidades, se convertam em

    valores, por meio de qualquer indstria feliz da grandeza de alma.

    No trato com o prximo, portai-vos de maneira que o esprito e o corao dominem sempre

    o vosso caso; desse modo no sereis invadido nem contaminado, se o ambiente, que vos rodeia, for

    medocre e se for nobre, reforar em vs os efeitos da solido, o amor verdade e aos seus

    ensinamentos.

    Deveramos lidar com o mundo externo como os anjos, que tocam sem ser tocados, que do

    sem perderem nada do que possuem, porque pertencem a outro mundo.

    Sendo moderados nas conversas, permanecereis recolhidos e lograreis a sabedoria

    indispensvel para o intercmbio das ideias com o prximo. Falar para dizer o que se deve dizer,

    para exprimir um sentimento oportuno ou uma ideia ftil depois disso calar-se, eis o segredo de o

    intelectual se guardar ao mesmo tempo que se comunica. No existe outro meio de dar autoridade

    palavra. A palavra pesa, quando por debaixo dela se pressente o silncio, quando esconde e deixa

    adivinhar, por trs dos sons, um tesouro que vai dispensando com medida sem pressa nem agitao.

    O silncio o contedo secreto das palavras importantes. O valor duma alma mede-se pela riqueza

    do que ela no diz.

    V Conservar a dose necessria de ao.

    O que dissemos das frequentaes aplica-se, sem grandes retoques, aco. Convm dosear

    sempre a vida interna e a externa, o silncio e o rudo.

    28

  • A vocao intelectual estritamente tomada, o contrrio da aco; a vida contemplativa e a

    vida activa estiveram sempre opostas, como oriundas de pensamentos e de aspiraes contrrias. A

    contemplao recolhe, a aco gasta; uma chama pela luz, a outra ambiciona dar.

    Dum modo geral temos de nos resignar a dividir as tarefas, contentes, cada qual de louvar o

    que no fazemos, de amar os frutos da actividade alheia e de os saborear, graas comunho das

    almas. No entanto, a vida real no permite distribuio to estrita.

    O dever pode forar-nos aco, como h pouco dizamos que nos forava a frequentar a

    sociedade. A aco regulada pela conscincia prepara-a para as regras da verdade, dispe-na para o

    recolhimento, une-a Providncia, que tambm fonte de verdade. O pensamento e a aco tm

    um Pai comum.

    Em seguida, impe-se a todo o pensador a necessidade de reservar parte do tempo e do

    corao para a vida activa, por pequena que seja. O monge trabalha manualmente ou dedica- se a

    obras de zelo; o mdico tem a, clnica, o hospital; o artista, as exposies, a sociedade, as excurses,

    as conferncias; o escritor solicitado de tantos lados que dificilmente conseguir esquivar-se e

    meter ombros a qualquer empresa.

    Tudo isto