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JOICE BALBOA [email protected] @online_ND S implicidade é a palavra que resume a vida do aposentado Nilton Car- doso, 84, que mora há 18 anos na Ilha do Campeche. A última vez que saiu da ilha foi há três anos. “O Besc se juntou ao Banco do Brasil e tive que resol- ver alguns problemas”, lembra. Ele não sente falta da cidade. “Prefiro ficar aqui. Tenho segu- rança, nenhum moleque vai me apontar uma faca”, garante. Pelo menos três vezes ao dia fala com a mulher, que mora em Capoeiras, pelo telefone celular. Todas as manhãs recebe liga- ções dela para saber como vão as coisas e contar as novidades. “Ela liga e diz que está com dor, que mal consegue se mexer... Se eu voltar só vou me incomodar”, brinca. “Já tentei que ela ficasse aqui, mas ela tem osteoporose e câncer de pele, e aqui ela vai fi- car na areia tomando sol, é uma teimosa”, explica. Sem nenhuma especialidade culinária, seu Cardoso faz sua própria comida. E quem pensa que ele come peixe todo dia está enganado. Ele gosta é de comer carne. “Peixe é uma vez por sema- na. Eu mando os peixes e ela [a mulher] a carne”, complementa. Misturando o arroz com o óleo na panela, ele conta que não lava o arroz. “Os médicos não dizem pra dar caldo de arroz para as crian- ças quando elas estão doentes? Pra quê eu vou lavar o arroz”? Caminhando na areia fofa da praia, pescadores e monitores o cumprimentam. “Eles gostam de mim porque eu sou bem-humo- rado”, admite Cardoso. “Um dia, a mãe de um dos monitores veio até a ilha só pra me conhecer, porque eles viviam falando de mim”, conta orgulhoso. Sentados nos banquinhos de- baixo das árvores, Cardoso conta que ele e uns amigos escutaram um estrondo na cozinha – olha os quatis nas tuas panelas! Car- doso foi conferir, e as panelas es- tavam todas tampadas nos seus lugares. Era o capacete de um amigo que tinha caído. Ele pegou o objeto e “escutou” o dono do capacete dizendo que tinha morrido. E gritou: “O fulano morreu”! Mor- reu nada, ele está na UTI, responderam os amigos. Mais tarde chamavam: Ô Cardoso, seu macumbei- ro! O dono do capacete tinha morrido mesmo. Nilton Cardoso era criança quando visitou a Ilha do Campeche pela primeira vez. Os barcos - a remo ou a vela -, iam carregados de le- nha para a ilha. Na época ainda não tinha o gerador e a ilumina- ção era de querosene. Sócio do clube Couto Maga- lhães de tiro, caça e pesca, ele ajudou a levar os quatis para caçar e plantar as mudas de ár- vores frutíferas. Só homens fre- quentavam aquele refúgio a me- nos de dois quilômetros da praia do Campeche. “A gente costu- mava tomar banho de mar pela- do pra não molhar a roupa, era só homens. Depois que fizeram o convento ali no Morro das Pe- dras, vieram reclamar. Elas [as freiras] deviam ficar olhando de binóculos, porque a essa distân- cia não tinha como ver nada”, ri. De pé às 5h, seu Cardoso vai ao seu altar, uma pedra ao Sul da praia, e reza. Ele ora para agrade- cer os dias de vida ali no paraíso. Depois varre as folhas da calçada, cuida das galinhas, lava a pró- pria roupa e cozinha. Ele gosta de pescar no costão do lado contrá- rio da praia. Por volta das 17h, recolhe-se em uma das casas que cui- da para ver o noticiário na televisão. Assim ter- mina mais um dia do único morador fixo da Ilha do Campeche. Paraíso. Único morador fixo da Ilha do Campeche tem muitos amigos e boas histórias simples e bem-humorado Cardoso, Pelo celular. Aos 84 anos, Nilton Cardoso mora sozinho na ilha, e conversa todo dia com a mulher, que vive em Capoeiras fotos joyCe giotti/nd PrAtos Cardoso come peixe uma vez por semana. ele gosta é de carne enviada pela mulher Em casa. Seu Cardoso tem tudo o que precisa e prepara a própria comida Altar. Toda a manhã, ele vai à pedra para rezar e agradecer os dias de vida 22 Verão notícias do dia FloriaNópolis, sábaDo e DomiNgo, 12 e 13 De jaNeiro De 2013

Seu Cardoso

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Reportagem especial para o Jornal Notícias do Dia de Florianópolis - SC, publicada na edição do final de semana 12 e 13 de janeiro de 2013.

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Page 1: Seu Cardoso

Joice [email protected]

@online_ND

Simplicidade é a palavra que resume a vida do aposentado Nilton Car-doso, 84, que mora há

18 anos na Ilha do Campeche. A última vez que saiu da ilha foi há três anos. “O Besc se juntou ao Banco do Brasil e tive que resol-ver alguns problemas”, lembra. Ele não sente falta da cidade. “Prefiro ficar aqui. Tenho segu-rança, nenhum moleque vai me apontar uma faca”, garante.

Pelo menos três vezes ao dia fala com a mulher, que mora em Capoeiras, pelo telefone celular. Todas as manhãs recebe liga-ções dela para saber como vão as coisas e contar as novidades. “Ela liga e diz que está com dor, que mal consegue se mexer... Se eu voltar só vou me incomodar”, brinca. “Já tentei que ela ficasse aqui, mas ela tem osteoporose e câncer de pele, e aqui ela vai fi-car na areia tomando sol, é uma teimosa”, explica.

Sem nenhuma especialidade culinária, seu Cardoso faz sua própria comida. E quem pensa que ele come peixe todo dia está enganado. Ele gosta é de comer carne. “Peixe é uma vez por sema-na. Eu mando os peixes e ela [a

mulher] a carne”, complementa. Misturando o arroz com o óleo na panela, ele conta que não lava o arroz. “Os médicos não dizem pra dar caldo de arroz para as crian-ças quando elas estão doentes? Pra quê eu vou lavar o arroz”?

Caminhando na areia fofa da praia, pescadores e monitores o cumprimentam. “Eles gostam de mim porque eu sou bem-humo-rado”, admite Cardoso. “Um dia, a mãe de um dos monitores veio até a ilha só pra me conhecer, porque eles viviam falando de mim”, conta orgulhoso.

Sentados nos banquinhos de-baixo das árvores, Cardoso conta que ele e uns amigos escutaram um estrondo na cozinha – olha os quatis nas tuas panelas! Car-doso foi conferir, e as panelas es-tavam todas tampadas nos seus lugares. Era o capacete de um amigo que tinha caído.

Ele pegou o objeto e “escutou” o dono do capacete dizendo que tinha morrido. E gritou: “O fulano morreu”! Mor-reu nada, ele está na UTI, responderam os amigos. Mais tarde chamavam: Ô Cardoso, seu macumbei-ro! O dono do capacete tinha morrido mesmo.

Nilton Cardoso era criança quando visitou a Ilha do Campeche pela

primeira vez. Os barcos - a remo ou a vela -, iam carregados de le-nha para a ilha. Na época ainda não tinha o gerador e a ilumina-ção era de querosene.

Sócio do clube Couto Maga-lhães de tiro, caça e pesca, ele ajudou a levar os quatis para caçar e plantar as mudas de ár-vores frutíferas. Só homens fre-quentavam aquele refúgio a me-nos de dois quilômetros da praia do Campeche. “A gente costu-mava tomar banho de mar pela-do pra não molhar a roupa, era só homens. Depois que fizeram o convento ali no Morro das Pe-dras, vieram reclamar. Elas [as freiras] deviam ficar olhando de binóculos, porque a essa distân-cia não tinha como ver nada”, ri.

De pé às 5h, seu Cardoso vai ao seu altar, uma pedra ao Sul da praia, e reza. Ele ora para agrade-cer os dias de vida ali no paraíso. Depois varre as folhas da calçada, cuida das galinhas, lava a pró-

pria roupa e cozinha. Ele gosta de pescar no costão do lado contrá-rio da praia. Por volta das 17h, recolhe-se em uma das casas que cui-da para ver o noticiário na televisão. Assim ter-mina mais um dia do único morador fixo da Ilha do Campeche.

Paraíso. Único morador fixo da Ilha do Campeche tem muitos amigos e boas histórias

simples e bem-humoradoCardoso,

Pelo celular. Aos 84 anos, Nilton Cardoso mora sozinho na ilha, e conversa todo dia com a mulher, que vive em Capoeiras

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PrAtosCardoso come peixe uma vez por semana.

ele gosta é de carne enviada pela mulher

Em casa. Seu Cardoso tem tudo o que precisa e prepara a própria comida

Altar. Toda a manhã, ele vai à pedra para rezar e agradecer os dias de vida

22 Verão notícias do dia FloriaNópolis, sábaDo e DomiNgo, 12 e 13 De jaNeiro De 2013