Simon - Situação de Sítio

Embed Size (px)

DESCRIPTION

No panorama recente da poesia brasileira surpeendeu o aparecimento, em 2001, do poema “Sítio”, de Claudia Roquette-Pinto, poeta até então tida como inti- mista, metaforizante, trancada no seu mundo privado e burguês. O foco desta análise crítica é discutir como foi possível à autora formular nesse poema um estudo sobre o medo e a violência, sem abrir mão da sua imagética introspectiva e da sua experiência poética anterior, centrada numa escrita referencialmente rarefeita. A análise em detalhe do texto procura registrar a conversão da opacidade, do lacunar e da indeterminação em elementos de caracterização da violência urbana e da miséria emocional dos protegidos. Aí se entrelaçam, portanto, a atualidade do processo histórico-social brasileiro, a vulne- rabilidade da poesia e as carências do sujeito poético.

Citation preview

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 335

    eu escuto o que tem que ser dito.(Claudia Roquette-Pinto, no jardim em Os dias gagos)

    O CURSO da mais vertiginosa transformao da sociedade brasileira, mar-cada pelo fim das polticas de desenvolvimento, pela estagnao econ-mica com aumento da concentrao de renda, perodo em que o cosmo-

    politismo financeiro e a desfaatez ideolgica dos neoconservadores andaram de rdeas soltas, espervamos tudo tudo mesmo , menos que coincidisse com esses anos um novo ciclo de retradicionalizao da poesia. Retradicionali-zar significa incorporar as tradies modernas, traduzir o teor originariamente crtico delas em formas convencionais e autorreferidas, mediante o trabalho de linguagem e sob o amparo do rigor de construo, paradoxalmente assumi-dos como princpios capazes de preservar a autonomia potica e o ofcio do verso. Como se v, fundem-se a vrios horizontes da experincia moderna: a abertura historicista trazida pela existncia de um museu da poesia moderna, a conscincia formal do poema como artefato lingustico, o teor construtivo das vanguardas dos anos 1950, a antiga autonomia esteticista e at, quem diria, o gosto provinciano pelo artesanato do verso. De imediato, esse movimento sem programa parecia reagir desqualificao formal e baixa mimese a que os poetas marginais haviam submetido a poesia brasileira nos anos 1970, embora tendesse a escapar ao compromisso dos confrontos. Sob a fiana de linhagens prestigiosas da tradio moderna e j sem propsito radical, a inveno potica se desloca da experimentao dos procedimentos (como no tempo da vanguar-da) para a conceitualizao dos contedos, tratados frivolamente como matria de variaes. O que mudou nesse quadro foi o peso e o sentido da tradio, que no parece incompleta, nem considerada obstculo, sequer precisa ser supe-rada ou transformada agora todas as tradies esto franqueadas, conquanto o poema desarme a inquietao autoproblematizadora, caracteristicamente mo-derna, procura de dices elevadas e pluralistas que desrealizem sua matria ao mesmo tempo que a ornamentem.2 Pensando bem, uma retradicionalizao desse tipo, que reafirma linguagens j testadas e reassegura a soberania do po-tico, s poderia mesmo se converter numa proposta de renovao, ou reao s poticas existentes, num perodo de regresso social e econmica, como o que ocorreu simultaneamente ao auge do ps-modernismo internacional, na segun-da metade dos anos 1980. Por estranho que parea, ou por tudo isso, uma poca de tamanhas transformaes e consequncias sociais, como as das duas ltimas dcadas do sculo passado, no contou no Brasil com um ponto de vista artsti-

    Situao de Stio1IUMNA MARIA SIMON I

    N

    DOI: 10.1590/S0103-40142015000200021

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015336

    co relevante da parte da produo potica. A poesia deixou de ser companheira de viagem do presente, deu as costas aos acontecimentos, os quais no entanto a afetavam no mais ntimo de sua capacidade criativa.

    Mais do que uma simples volta antivanguardista ao literrio, essa retradi-cionalizao bastante frvola foi uma forma de acomodar a crise da representao em moldes aliteratados e poetizantes. Em tais circunstncias, restou aos jovens criadores e a outros j no to jovens a recombinao desencantada de eru-dio, o jogo de referncias literrias e artsticas, dentro do esprito genrico da intertextualidade ps-moderna, que no caso brasileiro veio auratizar o poema e sublimar o presente. A escrita abstrata e descarnada precisou se poetizar, dis-farando a rarefao referencial e a indeterminao discursiva, ainda que subsis-tissem nela muitas manchas de divagao lrica, confessionalismo e alguma refle-xo existencial. De outro ngulo, pode-se dizer tambm que, com a rotinizao e o esgotamento da vanguarda, o que sobreviveu desta no perodo deixou de ser matriz de experimentao para se tornar um ideal de alta cultura, depurao e refinamento poticos e, acima de tudo, intrprete da tradio literria mundial. Todos esses elementos convivem, como se sabe, contraditoriamente, na poesia concreta desde os seus primrdios e, por essa razo, ela pde atravessar os dec-nios de 1980 e 1990 ainda como um padro vlido, suprindo com suas posies mais recentes a falta geral de debate esttico ou programa potico.

    A partir dos ltimos anos de 1990 surgiram indcios de mudana no pano-rama, sinalizando talvez que a retradicionalizao ps-moderna perdia flego. Sinais esparsos mas indicadores de que algo entrava em movimento e poderia al-terar os termos que possibilitaram o chamado boom produtivo da poesia. Pouco a pouco, a sintaxe deixa de ser um recurso de obscurecimento do assunto, cuja dissoluo se convertia em espetculo, como recorrente na obra de Carlito Azevedo. Ou seja: o poema que espetaculariza a proliferao e a desmontagem de suas imagens perde espao para uma poesia de horizonte oprimido e desani-mado, de rotina de ninharias, como se l nos livros de Tarso de Melo (2005) e Ronald Polito (2006). Redescobre-se o tom menor associado a contextualiza-es mais densas e pessoais, que pode se conciliar com algum experimentalismo da linha grfica e do arranjo em blocos fora de sincronia com o ritmo e a enun-ciao como nos poemas de Ricardo Domeneck (2005 e 2007). Ressurge o interesse pelo poema em prosa e certos impulsos de narratividade como os que percorrem, entremeados rarefao, os Planos de fuga e outros poemas, de Tarso de Melo, ou Louco no oco sem beiras, de Frederico Barbosa (2001), uma compo-sio feita de poemas breves que se reestruturam no corpo narrativo de um livro. Tambm curioso que a poesia concreta tenha gerado, nessa altura, em autores mais ou menos tocados por ela, ou em crise com, uma poesia de protesto, recla-mao, indignao e desespero existencial como se v neste ltimo ttulo e em Contracorrente (Barbosa, 2000), do mesmo autor, assim como na produo de Rgis Bonvicino (1996) a partir de Ossos de borboleta, culminando com a crtica

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 337

    feroz de Pgina rf (Bonvicino, 2007), que a mais de um resenhista pareceu poesia poltica. O assunto volta a ser relevante (sic), exigindo a preciso no seu tratamento, o que pode ter as consequncias de um retorno ao real, se no for uma demasia a expresso. Esse retorno, narrado com um timbre claro e sereno que provoca desconforto, aparece igualmente em Novo endereo, de Fabio Wein-traub (2002), que se detm em situaes de sofrimento da intersubjetividade em meio a destroos de corpos, fbricas e do mundo do trabalho, em que frag-mentos de gente (dentes, unhas, ps) se misturam runa da cidade. Evidncias dessa alterao so a volta da referencialidade concreta, do pas real, dos proble-mas sociais, da decadncia urbana, por vezes mesclados ao padro impositivo da intertextualidade. Em Cais, de Alberto Martins (2002), a descrio da cidade--porto (Santos e cercanias), incrustada na paisagem de lodo e luto, quer desfazer a euforia culturalista do modernismo que valorizou a informalidade popular e a miscigenao geral, as quais j no podem ter lugar na elegia de um pas que no passa de uma triste e permanente infeco colonial.

    De l para c, o ndice de insatisfao cresceu muito, a ponto de a crtica jornalstica com falta de jeito apressar-se em rotular alguns exemplares dessa linha como neoparticipante ou como uma retomada da poesia engajada.3 Hoje lemos poemas e livros inteiros que abordam a desagregao da sociedade brasileira, nome mais especfico para o contemporneo, cuja matria inclui ob-viamente pobreza, marginalidade, mendicncia, crianas de rua, catadores de lixo, classe mdia empobrecida, violncia urbana, trfico de drogas, criminali-dade. Tudo isso pede uma reformulao das questes que o ciclo da retradi-cionalizao antes nos propunha, embora essa ainda continue em vigncia, ou continuar por bom tempo como coadjuvante. Mas a questo que me interessa aqui saber por que uma potica ancorada na rarefao, ou ento na dissoluo da referncia, quer agora contextualizar a referncia? possvel dentro da poe-sia feita de poesia essa volta?

    Que surpresa no foi para os leitores o aparecimento de Stio4 da parte de Claudia Roquette-Pinto, a poeta contempornea que parecia at ento tran-cada no seu universo privado e burgus, alinhada a uma poesia delicada, ertica e feminina. bom lembrar que ela comeou a escrever nos anos 1980, mas nunca adotou o tom confessional nem usou a imaginao potica, como fazia a poesia liberada daqueles tempos, para apresentar a mulher como sujeito, como polo ativo e manipulador (recuperando involuntariamente o imaginrio patriar-cal do ngulo feminista). Ao contrrio, retomou certa expressividade, tons e tpicas tradicionais do lrico para escapar aos clichs do feminismo, reconhe-cendo quem sabe que a liberao deu problema e o quanto tal emancipao tinha de insatisfatria. A melhor definio dessa estratgia chegou com o livro cujo ttulo justamente Corola (Roquette-Pinto, 2000), publicado em 2000, em que seu jardim imaginrio assinalava com um qu perverso tal dissidncia. Quase ningum viu a provocao desse jardim que no conhecia ruptura alguma

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015338

    entre pblico e privado. Apontada muitas vezes como intimista, metaforizante, fechada em si mesma e fora da vida, Claudia certamente escreveu Stio para responder incompreenso que cercava o seu trabalho.

    Stio

    O morro est pegando fogo.O ar incmodo, grosso,faz do menor movimento um esforo,como andar sob outra atmosfera,entre panos midos, mudos,num caldo sujo de claras em neve.Os carros, no viaduto,engatam sua centopia:olhos acesos, suor de diesel,rudo motor, desespero surdo.O sol devia estar se pondo, agora mas como confirmar sua trajetriadebaixo desta cpula de p,este cu invertido?Olhar o mar no traz nenhum consolo(se ele um cachorro imenso, trmulo,vomitando uma espuma de bile,e vem acabar de morrer na nossa porta).Uma penugem antagonistadeitou nas folhas dos crisntemose vai escurecendo, dia-a-dia,os olhos das margaridas,o corao das rosas.De madrugada,muda na caixa refrigerada,a carga de agulhas cai queimandotmpanos, plpebras:O menino brincando na varanda.Dizem que ele no percebeu.De que outro modo poderia aindater virado o rosto: Pai!acho que um bicho me mordeu! assimque a bala varou sua cabea?

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 339

    um poema construdo por incertezas, desde o primeiro verso, pela hesitao entre o que se sabe e o que no se sabe, ou pela indecidibilidade, para usarmos um termo da moda, mas indecidibilidade aqui estranhamente ligada a recursos da descrio. Tem o poeta condies de ver e descrever o que ele vive, se nem sabe que acontecimento esse? A construo coloquial [O morro] est pegando fogo funde planos de sentido que vo do referencial imediato (incn-dio), locuo popular corrente (tem briga, tem complicao, tem bafaf), transposio metafrica: atmosfera de medo e desespero com chamas, fumaa, fuligem, reais ou no. Assim como o ttulo admite muitos significados (lugar de-finido, terreno, pequena fazenda, assalto, ataque, estado de stio).5 O horizonte est nublado, empoeirado, enfumaado, irrespirvel, no se enxerga nada, no se pode sequer saber se o sol est se pondo um clima de sufocao que culmi-na na imagem do cu invertido, equivalente tpica do mundo s avessas, figura clssica de catstrofe, de mundo fora-de-ordem. O poema est centrado numa natureza hostil, convulsionada por uma corrente opressora, contra a qual no h consolo, no h sadas. Mas que conflagrao essa que altera tudo, o ar, o movimento do corpo, o trnsito e os elementos da natureza? E que transtor-na as imagens, expandidas em metamorfoses sucessivas que conferem atributos animais ou humanos aos carros, ao engarrafamento, beira de uma espcie de desespero autista (desespero surdo contraposto a rudo motor).

    A metamorfose do dado objetivo em digresso metafrica construda pela sequncia de sete blocos oracionais delimitados por ponto, exceto o ltimo em que dois pontos anunciam a citao de uma notcia, escrita ou falada, aparen-temente elucidativa. Todos os blocos so compostos para explicar o verso inicial, cuja condensao de sentido merece ser desdobrada e parafraseada, embora nada se esclarea suficientemente, ou melhor, nem o fato bruto oferece a referncia que falta para completar a contextualizao. Nessa atmosfera de distino dif-cil, criada pela indecidibilidade e pelos deslizamentos de sentido, no h causas ntidas ou determinantes at a bala um bicho, a fala da vtima um equvoco.

    Claudia Roquette-Pinto poeta que manteve interlocuo por assim dizer sistemtica com vrias frentes da poesia contempornea (Poesia Concreta, Sylvia Plath, Paul Celan, Language Poetry, entre outros), alm de uma experincia comum ou geracional afinada com poetas brasileiros de tendncias diferentes, como Carlito Azevedo, Rgis Bonvicino e Antonio Ccero. Mas desde o incio, ela, que no se fechou numa tendncia s, fundiu experincias internacionais e nacionais preferidas, includa a vanguardista, e vinculou sua mescla a uma tre-menda carncia lrica. o que cria o curto-circuito da fora artstica do poema de que tratamos.

    Stio se estrutura portanto a partir de um complicador: a dificuldade em lidar com a referncia, porque Claudia participa daquela tendncia contempor-nea dominante que cultiva a desrealizao do referente, o lacunar, imagens obs-curas e autnomas, a pura textualidade das designaes em cadeia, cuja prtica

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015340

    potica no se disciplinou na relao com o dado imediato da realidade. Da a ousadia de um poema como esse, que est experimentando a partir de uma po-esia referencialmente rarefeita a explicitao referencial, sem abrir mo da ima-gtica introspectiva que prpria da autora. E como ela faz isso? Mostrando ou criando afinidades entre o seu mundo mais privado e a situao social do Rio de Janeiro, do morro, da violncia urbana, entre as suas imagens secretas e predile-tas e esse mundo l fora. Stio generaliza para o espao urbano sentimentos e sensaes que a poeta desenvolveu no mbito de sua prpria insatisfao, expli-cando desse modo a psicologia aparentemente reclusa de Corola. Pois foi a partir desse livro que seus poemas passaram a tratar do medo e da violncia por meio de dilemas perceptivos e sensoriais: Suspenso na rede do sono na tarde indecisa / em ser, ainda, tarde, ou ver-se noite / o corpo, em seu torpor, no acredita / sequer na hiptese de um corpo / (em morte, em vida, e / o que dizer do encontro) (Roquette-Pinto, 2000, p.19). Ou: Dentro do pescoo / o poo, vazio, / caindo intempestivamente / at que o fio / da expirao se estique / o ar arrebente o dique / do que insiste em ser / oco [...] (ibidem, p.49). Nesse conjunto de poemas inquietantes, que fogem ao ramerro da produo contem-pornea, existe um estudo obsessivo de processos de introspeco e descontrole, muitos deles traduzidos em situaes incessantes de vertigem e queda. Tais pro-cessos compem uma estrutura radical de insatisfao, cujas figuraes imagti-cas, por vezes perversas e at masoquistas, revelam o quanto o ensimesmamento est tomado pela sociedade presente; o jardim, ou seja, o mundo privado, j fora invadido pela conturbao externa (a mesma de Stio?) e o sujeito potico dilacerado pela violncia de sua imaginao e de suas emoes em Corola so os prprios sentimentos que esto em estado de guerra.6 Digamos que a a poeta estivesse buscando tcnicas para expor o custo fsico e emocional de sobreviver no inferno da violncia urbana, que no diretamente nomeado, mas figurado em muitas variaes de aflio, pnico, insegurana e asfixia, sempre dentro do pequeno territrio de um jardim, quase um mundinho dickinsoniano de flores, bichinhos, vida e afazeres caseiros.7

    Em resumo, Claudia traz para Stio os smbolos desse universo recluso e joga-os para o plano explcito da realidade, usando todavia os mesmos recur-sos poticos anteriores, a par do descontrole expressivo que lhe prprio, para incluir no poema a circunstncia do dia a dia do Rio de Janeiro, ainda que no a domine por inteiro e deixe expostas as dificuldades e limites dessa incluso. Observe-se a recorrncia de imagens caractersticas de toda a sua poesia, geradas por referncias domsticas (panos midos, caldo sujo de claras em neve), amo-rosas (corao das rosas), arquitetnicas (cpula), florais (crisntemos, margari-das, rosas), as quais ela agora pretende remeter ao contexto da violncia urbana. Para aumentar a estranheza, o acontecimento narrado como um fenmeno natural, atmosfrico ou climtico, inclusive pelo uso de prosopopeias alucinadas de predileo da autora, como se l no quinto bloco: o mar, que a no se abre

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 341

    para horizonte algum, representado como um cachorro hidrfobo em con-vulses de espuma, sempre beira da morte. A desordem acompanhada pela natureza, como se a premonio de morte fosse aos poucos engendrada pela prpria paisagem, naquele stio. Essa opo descritiva, por sua vez, prepara e acentua a quebra do bloco final.

    De um foco aparentemente centralizado, o poema apresenta diferentes to-madas da zona do conflito (o morro, o ar, os carros, o sol e o cu, o mar, o fuligi-noso jardim, a caixa refrigerada, o menino na varanda), as quais, por assim dizer, deslizam ou se alternam da angulao objetiva para a subjetiva. Os versos mais denotativos, como Os carros, no viaduto, logo se transformam numa metafo-rizao irritada at chegar ao auge do desespero annimo. A autora joga sistema-ticamente, desde a primeira linha, com a possibilidade de a informao denotada ser corroda e modificada pela gratuidade da imagem potica. Outro recurso in-fluente para o deslocamento do sentido, num fluxo contnuo at os dois pontos fatais, o reforo de tonicidade (assim Antonio Candido designa a tendncia a extrapolar o esquema rtmico convencional do verso medido pela multiplicao de tnicas intermedirias), que sobrecarrega o verso com acentuaes fortes, es-pelhadas pelas rimas toantes, gerando um efeito de suspenso, opresso e lerdeza que subjetiviza a denotao: [o] mOrro est pegAndo fOgo. / [o] Ar incmo-do, grOsso, / fAz do menOr movimEnto um esfOro. Esse modo de trabalhar os planos objetivo e subjetivo assinala a dificuldade de separ-los em meio con-flagrao e o quanto o acontecimento externo contamina a intimidade.

    So vrios os fatos e acontecimentos que ocorrem em momentos dife-rentes do dia: no entardecer (meio indeterminado) e na madrugada (mais de-finida). Entre eles h uma indicao temporal no pretrito perfeito (deitou) que quebra a descrio do presente imediato e introduz a durao temporal (pela locuo gerundiva vai escurecendo) na rotina ininterrupta de fumaa, fuligem e sufocao penugem antagonista que contamina dia-a-dia as flores do jardim privado como uma espcie de florao nova e ecolgica do medo. O episdio do menino e da bala perdida um desses fatos, porm acres-centado composio sob a forma explcita de colagem de notcia ou relato oral fecha o poema em chave ultrarrealista que, em retrospecto, transforma o que veio antes. Usuais na poesia de Cludia, colagens de materiais externos, na forma de excertos tirados de outros textos ou de emprstimos de passa-gens, partes de frase ou palavras, aparecem frequentemente destacados pelo itlico, expondo a convergncia entre a circunstncia do poema e as leituras da autora, muitas casuais como ela mesma assume. A insero arbitrria, muitas vezes prosaica, comenta de outro espao a carncia lrica que se formulava por introspeco, para ressaltar salvo engano que dessacralizada e no dispensa o dado objetivo mesmo que colhido em leituras passageiras. Ou ento para res-saltar que a impureza do lirismo admite a situao parafrstica, a glosa infinita, certa intertextualidade ou ironia despistadora. Em Stio no h gratuidade,

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015342

    a citao em itlico cola no texto um pedao de notcia que desvenda (em par-te) o significado das cadeias imagticas anteriores, lanando a opacidade delas noutro patamar, menos cifrado ou alusivo. Estranha empostao e ao padro imagtico dominante no poema, a aposio realista do episdio da bala perdida tem sua dose de indeterminao, melhor, de incerteza, anloga s digresses metafricas e prosopopeias. Tanto que, no corao da notcia, a fala do menino vem transcrita em tipo redondo, como se j estivesse incorporada ao texto e fosse justamente ela tambm uma fala da poeta.

    At onde posso ver, o poema confronta uma situao protegida de medo (no abrigo de um stio, um apartamento, uma casa, o que for) com a cena da criana exposta a uma bala perdida numa varanda (quando?). esse o instante de rompimento da condio protegida nessa varanda vulnervel, momento em que a vtima perde por assim dizer a proteo imaginria de seus medos. O ar-ranjo formal atesta que a poesia que oferece proteo por imagens falha diante da bala perdida e precisa empreender uma volta referncia, mesmo que com isso se rompa o ritmo, a imagtica e o timbre da escrita. Por ser o poema meio desconjuntado, na alternncia de registros descritivos e expressivos, o achado potico notvel, ao reproduzir o mesmo desconhecimento da criana sobre o que se passa vide a fala inadequada do menino num momento grave: Pai! acho que um bicho me mordeu!. Vejo a a sugesto de similaridade entre a criana baleada e o ponto de vista do poeta, cuja posio equivalente do menino que morre sem saber o que est acontecendo e pronunciando uma fala tambm imagtica (mordida de um bicho pateticamente metafrico).

    Uma onda de perplexidade retroage pelo poema todo. Nesse sentido, a grande fala que o poeta poderia enunciar seria com toda probabilidade uma ex-presso errada numa hora errada de quem morre por acaso ou por engano por uma bala perdida (sugesto reforada pela tipologia).8 Essa pode ser uma alego-ria do que fazer poesia hoje numa sociedade como a brasileira: o testemunho que o poeta pode dar est aqum dos acontecimentos, ele no tem uma viso clara do que est se passando, sua solidariedade restrita e seu alcance poltico, nulo. Aqui a indecidibilidade se torna fator de agonia, medo, desespero, e cria um clima de aberrao e emudecimento, pois a voz que o poema acolhe como sua a voz de um morto. A fala da criana, apesar do engano, tem uma espcie de clareza intil e terminal sobre a psicologia do estar em stio.

    Lembro que a palavra que indicia presena humana est situada em posio sintaticamente indeterminada nas duas ocorrncias: entre panos midos, mu-dos e De madrugada, / muda na caixa refrigerada (alm do possessivo de e vem acabar na nossa porta). A mudez d pista de que o humano est intimidado, deixando ver na referncia cifrada uma inteno generalizante. A mesma inteno de tmpanos, plpebras:, perdidos no meio do tiroteio, sem ouvir e enxergar, mas destacados pelo corte do verso. Todos esto mudos em Stio, menos o me-nino que solta suas ltimas palavras em meio a um mar de rudos, fumaa e tiros.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 343

    Apesar dos diticos de proximidade (agora, desta, este, nossa) e dos ver-bos no presente, que organizam as relaes espaciais e temporais do discurso, a ausncia de marcas explcitas da subjetividade tem sentido forte, a indicar o estatuto instvel do sujeito na figurao da cena e sobretudo que a circunstncia individual conta pouco para entend-la e explic-la. Ainda assim, a poeta cria imagens e sonoridades para algo de que no sabe a extenso nem o teor real, todas marcadas, como vimos, pela indeterminao do que objetivo e subjetivo: a atmosfera de fora sentida por um corpo caseiro como andar em claras em neve, assim como o sol no pode ser avistado sob a poeira. A prpria existncia do mar que traz conforto interior vem agora, em movimento contrrio que anula a quietude da contemplao, morrer ao mesmo tempo como imagem e realidade. Desse modo, o sujeito vai assumindo que no domina nem temporal, nem espacialmente o problema que est abordando, sempre em busca de algo maior que transcende a experincia pessoal e coletiva, mas que no se sabe o que e pode ser uma experincia traumtica. A imagtica sensorial e perceptiva est ao longo do poema associada s limitaes do corpo, que no alcana a cena. O corpo est emperrado, travado; mesmo os corpos dentro dos carros tambm no conseguem atravessar essa cpula de p. Os objetos perdem nitidez at que a enigmtica carga de agulhas cai queimando / tmpanos, plpebras:, como se fosse o fogo anunciado na abertura. A violncia banalizada est patente nos objetos, utenslios e tarefas dirias, ou no jardim, cada coisa transmutada pelo medo em metforas vagamente autnomas, cuja aparncia ameaadora mimeti-za a percepo de quem tudo experimenta como espectador aterrorizado (teste-munha que no enxerga). O corpo vai sendo arrastado a seu limite, testado na sua capacidade de aguentar a presso, que pode ser to concreta quanto o pr-prio medo. Enfim, tudo o que diz respeito ao corpo est marcado por lentido, mudez, intransparncia, paralisia, enquanto a notcia proveniente de uma fonte externa (rdio? televiso? voz?) clara, ntida, objetiva. a sinopse esclarecedora que chega para situar toda a cena. Contudo, a carga estetizante dos versos an-teriores era aflitivamente opaca, ao passo que a informao externa e em itlico, que oferece uma verdade simples e direta, a chave dos acontecimentos descritos, capta muito pouco da experincia do poema. A sucesso de imagens fragmenta-das e poetizantes registrava a misria do corpo, com sua imaginao reduzida a paranoia e medo, sem discernimento maior e sem reao crtica. Mas se o factual da notcia rompe aquela cadeia imagtica, a poetizao no exclui o factual, ga-nha com sua insero. Eis o alcance dessa construo formal que, entre outros acertos, tambm uma maneira de mostrar que um poema difcil, enigmtico, sobre uma situao j corriqueira nas grandes cidades brasileiras, rebate a urgn-cia da mdia, que naturalizou e banalizou a violncia, tanto quanto se subtrai s exibies de denncia ou compaixo literrias, que por sinal so mesmo inteis diante do tamanho e da irresoluo do problema.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015344

    A propsito, com finalidade de comparao, vale a pena mencionar aqui Pgina rf, de Rgis Bonvicino que surpreendeu por acentuar e expandir, em larga escala em relao a seus livros anteriores, a preciso da referncia para dar conta da conjuntura de guerra e luta social que atravessamos. Nele se encontra a mesma matria do poema de Claudia, embora seu registro direto seja agressivo, os elementos lricos permaneam intocados, os materiais de colagem e o zap-ping de linhas, marcados pelo realismo incisivo, paream anunciar uma enrgica resposta poltica. Esse livro, que se arrisca muito no enfrentamento do resultado da crise do capitalismo contemporneo, apanhada em mltiplas situaes, pases e lnguas, extravasa uma indignao aparentemente explosiva, uma gesticulao exacerbada de ativismo que no articula (sobrepe apenas) as imagens do hor-ror econmico. O poeta percorre freneticamente cenas de cidades apinhadas de pobres e mendigos, ruas cheias de lixo e sucata, ao lado do exibicionismo dos ricos, da indstria da moda, dos cones do consumo, como se a poesia, transcrita numa objetividade ostensiva, tivesse o frescor do grafite. Mesmo que tudo seja invariavelmente exposto em fragmentos, citaes, recortes, a plenitude literal do mundo on line a apodrecer fica sempre preservada para assegurar a radicalidade dessa exposio vexaminosa. Tudo feio, ftido, podre, obsceno, e esse pito-resco negativo to espetacular quanto exultria a violncia antidiscursiva do poeta. Cenas e imagens irrompem (ou nos atacam) esquematicamente, como numa pea publicitria ou de agit-prop: a mquina de contrastes dos poemas est sempre equiparando sujeira e consumo, selvageria e tcnica, top models e mendigos. Em contraponto barbrie total surgem recorrentemente, em espao contguo, instantes de lrica da natureza, flores e vegetao de nomes raros, assi-nalando o ritmo eterno e indiferente da natureza como uma pastoral dentro do lixo. Negatividade artstica para Bonvicino o poema deliberadamente grosso, antipotico, repleto de misria e sujeira, mas cuja abjeo um termmetro da fibra de quem o escreveu.

    Noutras palavras, o resultado lamentvel de uma era de globalizao e neoliberalismo se converte por um reducionismo gritante em Pgina rf na contraposio da desgraa dos pobres obscenidade escandalosa dos ricos e fa-mosos, contraposio que se repete vezes sem conta o que muito pouco para uma poesia poltica que ainda apregoa dialogar com a Language Poetry. Nes-sa militncia imaginria, entre indignao e fria, Bonvicino dispensa qualquer simpatia social, confiando apenas na heroicizao moralista de sua negatividade. Afinal, a sociedade contempornea um mundo que no pode ser compre-endido mas to somente odiado (o dio aqui alado a reao poltica), e a espetacularizao da catstrofe pode ainda oferecer uma sada honrosa, ou uma construo regeneradora, para o poema em meio a tanta degradao, da qual ele est fora. Tal como a borboleta do poema Pgina, que sabe de ramo em ramo reinventar seu mimetismo, o poeta v que o que existe mesmo a flor da azlea / o lixo real, / e o verdadeiro / desta pgina (Bonvicino, 2007, p.84).

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 345

    Fabio Weintraub (2007, p.7), que discutiu o lado moralizador da escamoteao (ps-moderna?) desse sujeito potico, apontando o sistema de compensaes que subsiste nas ambivalncias da f ltima na verdade da poesia, observou cer-teiramente:

    Sobretudo no que tange venalidade, o tom de reprimenda ainda re-forado pela marca de distino que o eu lrico se atribui, figurando-se como um mau negociante de inutilidades, fabricante de algo que no se vende, portador da redentora praga das palavras (Prosa). // Em contrapartida, nos poemas habitados por mendigos e toda sorte de refugo humano, no h propriamente deslocamento ou ciso da voz lrica [...] ela no assume o ponto de vista daqueles a quem retrata, nem se insta-biliza radicalmente a ponto de prescindir de pausas epifnicas.

    A poesia aqui s exterioridade ao que dito e descrito, assim como cabe sua linguagem dar proteo e assertividade posio de classe do poeta, que parece blindado contra a misria e a barbrie.

    Mas como tratar a violncia e no apenas inclu-la no poema? Claudia Ro-quette-Pinto no se furta dureza dos fatos, interessada que est no estudo do medo como matria de uma poesia que tenha pertinncia para o seu tempo. Est interessada em figurar o imprio de uma violncia indeterminada e disseminada, que molda o ritmo do cotidiano, colonizando a cidade, deturpando o sistema emocional de seus habitantes. Tudo neuroticamente normal nesse sofrimento recolhido em meio ao caos um ngulo perplexo e rotinizado, bem diferente da objetividade assertiva e vistosa com que Rgis Bonvicino registra em Pgina rf a aberrao que avassala uma sociedade dividida entre a misria das ruas e o desaforo do consumismo. Voltando a Stio: a se valoriza a contaminao en-tre externo e interno, entre o eu e o que est pegando fogo, em seu sofrimento sem distncia ou escapatria, pois a desestruturao do mundo privado coincide na sua descrio com a conflagrao morro afora. Talvez seja o caso de ressaltar-mos na soluo potica de Stio a ousadia de uma tcnica um tanto enviesada, mas eficaz, de encostar na vida. No h brutalismo, portanto no se privilegia a excitao hedonista do consumo da violncia, com seu excesso de abjeo, por meio de imagens chocantes e abstratas como faz a mdia o tempo inteiro, fran-queando uma iluso de proximidade que dessensibiliza e dessolidariza. Tanto verdade que a colagem de um relato no implica, em Stio, sobrecarga factual alguma, ou valorizao do documento ou da informao prvia, visto que a refe-rencialidade e a literalidade so postas em dvida pelo todo do poema, cuja con-tundncia depende do confronto de imagem e realidade. Em linha contrria ao fetiche da literalidade, a presena da violncia ressalta o torpor fsico num espao social que se estreita, confinando a atividade mental a uma profuso de fantasias de destruio, neuroses e fobias (a mesma que leva a indstria do medo a cla-mar sempre por um reforo de represso e segurana). Alastrada pelo poema, a violncia se desdobra em temas conexos como proteo imaginria, desproteo

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015346

    real, incomunicao, fetichismo, terror, opresso fsica e psquica, que desenham um quadro objetivo mais complexo e nuanado da dissoluo da sociabilidade, a qual se reflete no indivduo confinado. Mesmo fora do confronto, a vida em contato com a violncia se esteriliza, a neobarbrie da praa de guerra concerne tanto aos protegidos quanto aos envolvidos diretamente nela: os protegidos tambm vivem como miserveis, so outros miserveis, aqueles que habitam a clausura da propriedade (na nossa porta, na caixa refrigerada9). A vida protegida alimenta a cultura do medo, produzindo mecanismos de recalque e esquecimento, crculos viciosos de culpabilizao e compaixo ou, ento, uma aceitao tolerante da desigualdade social, da segregao dos pobres, da impo-sio de um modo nico de vida e consumo. Stio um raro poema sobre o custo interior dessa sobrevivncia.

    Dito de forma sumria, o que a poesia de Claudia Roquette-Pinto vem ex-perimentando um padro novo de resposta artstica experincia do presente, a partir de formas de meditao que no se subtraem aos aspectos destrutivos das transformaes da vida urbana o mesmo padro que vejo em Valdo Mot-ta,10 embora tratado de um ngulo de classe diametralmente oposto. Ao mesmo tempo que entram no conflito social, ambos preferem formas mais complexas de representao que possam captar o desamparo do indivduo diante da mo-dernidade de foras poderosas que ele no alcana; ambos no acreditam que a verdade da poesia passe inclume pela misria contempornea, que est onde menos se espera e no s nos espaos em que se costuma segreg-la. So poetas que assumem a vulnerabilidade da poesia e expem as carncias do sujeito, sem-pre em correlao com a complexidade de um processo externo, que se cumpre a distncia, em cuja atualidade eles identificam situaes sociais novas (e seus figurantes) no stio do contemporneo, no importa se a referncia clara ou ra-refeita. Nesse quadro, o poeta pobre como Valdo Motta olha para a tradio em busca de riquezas que precisam ser expropriadas pelos que no tiveram acesso a elas, com um prazer alegre e destemido de autossuperao; ao passo que um po-ema como Stio, mas sobretudo um livro como Corola agarram-se figurao da misria interior dos protegidos e de um sofrimento intrmino, a se atravessar. Enquanto Claudia acentua a intensa e opressiva irrelevncia do presente, em que sujeito e humanidade esto acuados, sem consolo nem perspectiva de sada, Valdo Motta desenvolve fantasiosas formas de automistificao que mostram a desproporo entre a grandeza da misso e a precariedade de meios de um vate orgulhoso, deblaterando contra as adversidades do mundo.

    Se questes dessa ordem voltaram a frequentar a pauta atual da produ-o potica brasileira, e podem hoje ser verificadas num conjunto expressivo de obras, so ainda rarssimos os momentos, salvo melhor juzo, em que passam a interferir no processo de composio do poema e a discutir os mecanismos de subjetivao, da imaginao mais privada, da imediatez lrica, das formas de apresentao do mundo contemporneo as excees merecem por esse mo-

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 347

    tivo ser estudadas e debatidas. Sendo assim, no poderia terminar esta anlise sem, a ttulo de provocao, perguntar por que a relao com a to insatisfatria realidade atual demorou tanto a chegar poesia num pas em que a violncia constitutiva da prpria sociabilidade:

    a) Foi preciso que criadores de outra extrao social (Paulo Lins, rappers, presidirios, a subliteratura marginal de Ferrz etc.) lanassem publicamente esses temas, por meio de formas que a muitos pareceram toscas e neonaturalis-tas?

    b) Ou que o fracasso do neoliberalismo se explicitasse inteiramente, ao longo do segundo mandato de FHC (1998-2002), com sua desmobilizao, inrcia e agravamento das irresolues, para que os produtores culturais se ani-massem a entrar nessa realidade sociocultural prxima e desconhecida?

    c) Ou ter sido o prprio atraso da esquerda brasileira, como est se evi-denciando no completo xito do governo Lula, que no estava preparada para pensar de modo independente e criticamente os impasses da sociedade globali-zada, sem recursos de desenvolvimento?

    d) Ou ento pode ter sido a massificao vertiginosa da sociedade brasilei-ra, posterior a 1964, que fez que a literatura perdesse a sua audincia de classe e no tenha conseguido se articular com as mudanas sociais vividas desde ento?

    e) Ou as formas construtivistas das vanguardas poticas surgidas desde os meados do sculo XX, em conjunto com as formas de nacionalismo e populis-mo, que tanto marcaram a poesia brasileira, foram (ou so ainda) impedimento inveno de experimentos poticos avanados, capazes de formular a crise contempornea? isso o que poderia explicar por que os poetas chegaram tar-diamente a esses temas num pas que j teve a antilira de Joo Cabral, a esttica da fome de Glauber Rocha, o Cinema Novo, a obra de Iber Camargo do pe-rodo final, a msica popular com seus casos de amor e seus casos de polcia, o imaginrio da violncia social e do mando autoritrio em Graciliano Ramos e Guimares Rosa?

    f) Ou, por fim, a larga aceitao de um ponto de vista terico e esttico que condiciona a existncia de complexidade (e criatividade) literria desrealiza-o referencial, recusa da disciplina mimtica, indeterminao de sua matria, no ter retardado a incorporao distanciada e crtica da violncia contempo-rnea? Flora Sssekind, que num texto recente chegou mais acabada formula-o desse ponto de vista, taxativa: s se pode considerar uma obra complexa quando sua formalizao no se atm, ou no se rende, atrao mimtica e representao contextual, mas a desestabiliza, ou consegue sabot-la, pela deri-va, dissipao, perverso ou pelo informe (os termos so dela) para potencializar as estratgias do oblquo.11 Ou, ao contrrio, no seria mais produtivo sugerir que tal preceito da teoria contempornea o que tolhe o conhecimento da ex-perincia pela forma da poesia?

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015348

    Sabemos que a poesia brasileira contempornea sofre de verdadeiro com-plexo de inferioridade diante do padro tico-engajado do rap mais comercial, profundamente ligado experincia da pobreza. claro que poemas como S-tio e a potica de Corola so ainda raros e certamente no podem ser considera-dos uma alternativa ao simultanesmo tosco e ultrarrealista desse gnero musical. Porm, algo decisivo da realidade histrico-social no lhes escapa, nem a poesia permanece impotente e sem voz na circunstncia dos conflitos que a afetam, os quais, como vimos, ela interioriza. Por ltimo, para completar esse quadro, no me furtarei a dizer que deveramos dar o brao a torcer ao fato de que a Inds-tria Cultural soube se apropriar, reelaborar e apresentar internacionalmente esta sociedade nova e degradada que o Brasil, na atualidade consternadora de sua luta de classe selvagem e desqualificada rumo a um patamar mais democrtico de consumo. Ter sido mais sensvel aos fenmenos sociais resultantes do colapso da modernizao do que os profissionais exigentes da poesia e da teoria, quer dizer ns mesmos que estudamos a poesia contempornea. Para nosso espanto, tenho de perguntar: a arte exigente tem menos inquietao hoje no Brasil do que a vulgaridade da Indstria Cultural?

    Notas1 Este texto foi inicialmente apresentado no Seminrio Internacional Poesia Contem-

    pornea: identidades e subjetividades em devir, realizado em Niteri, na Univer-sidade Federal Fluminense, em dezembro de 2007. Uma verso completa saiu em Pedrosa e Alves (2008). A anlise do poema, com o ttulo Poema e bala perdida, foi publicada na revista Estudos de Literatura Brasileira Contempornea (Simon, 2008).

    2 Tudo hoje campo de experimentao ao mesmo tempo: das formas fixas aos su-portes e gneros absolutamente mesclados, o que pressupe uma estratgia que, a princpio, no recusa nada, e de alto risco porque exige jogadores cada vez mais trei-nados em quaisquer regras de jogos. [...] Mas o interessante a convivncia civil desses registros, momentaneamente possvel (Polito, 2003, p.70-1). Como se v, a simples constatao vai se tornando uma justificao, que converte o ponto de chegada do contemporneo num congraamento geral.

    3 Numa resenha de trs livros de poesia lanados em 2007, Fabrcio Carpinejar (2008) diz: A principal fora da tripla apario a retomada da poesia engajada. Ela se torna possvel, desde que feita sem partido e finalidade. distinta poesia poltica, fundada na ironia inteligente, numa cadeia imaginria e solidria entre os amigos e na readequao do verso sncope urbana. Abruptos quando necessrio, mas sem sacrificar o lirismo.

    4 Publicado pela primeira vez na revista Inimigo Rumor (Roquette-Pinto, 2001, p.54). Republicado em outras revistas de poesia, em verses modificadas, foi includo como poema de abertura do livro Margem de manobra (Roquette-Pinto, 2005, p.11-12).

    5 Ver a anlise de Marcelo Sandmann (2002, p.82-7).6 Em depoimento na mesa-redonda Poesia tem sexo, sexo tem poesia? (Ita Cultural,

    SP, 22.11.2004), Claudia Roquette-Pinto declarou que os temas bsicos de sua poesia so amor e guerra.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 349

    7 No foi a impresso que na poca teve Carlito Azevedo ao resenhar o livro: A met-fora um instrumento perigoso, tanto pode ser nociva, ao transformar qualquer coisa em qualquer coisa, anulando a diferena e especificidade de cada coisa, como pode ser revelao, como se pela metfora o que falasse fosse justamente a voz da diferena. Felizmente, em Corola, h uma predomincia deste segundo tipo de metfora, como no caso da estranha e forte rvore de fogo, ou do buqu de rudos que as abelhas inauguram sobre uma flor de cerejeira. Mas h tambm metforas meramente retri-cas, nada distantes do ornamentalismo retrico da gerao de 60: despir a esperana / como uma mortalha // Arrisco aqui que essa ultrametaforizao do mundo tem relao absoluta com o fato da autora colocar entre parnteses a experincia urbana (Cf. A vida como metfora, no. com.br, 16 de novembro de 2000. Disponvel em: . Acesso em: 14 mar. 2004).

    8 Ou como sugere Marcelo Sandmann (2002, p.86): A bala ter certamente sido dis-parada no primeiro verso, para chegar a seu alvo no verso derradeiro, depois de uma distenso temporal impressionante e uma trajetria que agrega/desagrega todo o complexo de espaos (naturais e sociais) da grande metrpole.

    9 O que pode significar uma caixa assim, ainda por cima reforada pela gelada e entorpe-cedora rima madrugada /refrigerada: um quarto? um apartamento? ou uma gaveta de necrotrio?...

    10 Desenvolvi esse aspecto em Revelao e desencanto: a poesia de Valdo Motta (Si-mon, 2004).

    11 Diferentemente do ponto de vista que esboo aqui, Flora Sssekind (2005), em Des-territorializao e forma literria. Literatura brasileira contempornea e experincia urbana, apresenta um amplo painel de obras que desenvolvem estratgias de aborda-gem da violncia: ... fundamentalmente um imaginrio do medo e da violncia que organiza a paisagem urbana dominante na literatura brasileira (ibidem, p.65). Apesar da abrangncia sociolgica desse estudo, com muitos dados paralelsticos, sou de opi-nio que o seu exemplrio de espaos no representacionais e operaes de desterrito-rializao refere-se violncia em geral, sem considerar a particularidade histrica do fenmeno que se alastrou a partir dos meados da dcada de 1980.

    RefernciasBARBOSA, F. Contracorrente. So Paulo: Iluminuras, 2000.

    _______. Louco no oco sem beiras. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.

    BONVICINO, R. Ossos de borboleta. So Paulo: Editora 34, 1996.

    _______. Pgina rf . So Paulo: Martins, 2007.

    CARPINEJAR, F. Livros retratam a pulso da capital paulista. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 27.1.2008, p.D2.

    DOMENECK, R. Carta aos anfbios. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005.

    _______. A cadela sem Logos. So Paulo: CosacNaify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

    MARTINS, A. Cais. So Paulo: Editora 34, 2002.

    MELO, T. de. Planos de fuga e outros poemas. So Paulo: CosacNaify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015350

    PEDROSA, C.; ALVES, I. (Org.) Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contempornea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

    POLITO, R. Notas sobre a poesia no Brasil a partir dos anos 70. Cacto. Poesia &Crti-ca, So Paulo, n.2, p.70-1, 2003.

    _______. Terminal. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

    ROQUETTE-PINTO, C. Corola. So Paulo: Ateli Editorial, 2000.

    _______. Stio. Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n.10, p.54, maio de 2001.

    _______. Margem de manobra. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005.

    SANDMANN, M. Poesia em estado de stio. Sebastio, So Paulo, n.2, p.82-7, 2002.

    SIMON, I. M. Revelao e desencanto: a poesia de Valdo Motta. Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n.70, p.209-33, nov. 2004.

    _______. Poema e bala perdida. Estudos de Literatura Brasileira Contempornea, Bras-lia, n.32. p.145-59, jul.-dez. 2008.

    SSSEKIND, F. Desterritorializao e forma literria. Literatura brasileira contempo-rnea e experincia urbana. Literatura e Sociedade, So Paulo, n.8, p.60-8, 2005.

    WEINTRAUB, F. Novo endereo. So Paulo: Nankin Editorial; Juiz de Fora: Funalfa, 2002.

    _______. Caos moralizado. K Jornal de Crtica, So Paulo, n.12, p.7, junho 2007.

    RESUMO No panorama recente da poesia brasileira surpeendeu o aparecimento, em 2001, do poema Stio, de Claudia Roquette-Pinto, poeta at ento tida como inti-mista, metaforizante, trancada no seu mundo privado e burgus. O foco desta anlise crtica discutir como foi possvel autora formular nesse poema um estudo sobre o medo e a violncia, sem abrir mo da sua imagtica introspectiva e da sua experincia potica anterior, centrada numa escrita referencialmente rarefeita. A anlise em detalhe do texto procura registrar a converso da opacidade, do lacunar e da indeterminao em elementos de caracterizao da violncia urbana e da misria emocional dos protegidos. A se entrelaam, portanto, a atualidade do processo histrico-social brasileiro, a vulne-rabilidade da poesia e as carncias do sujeito potico.

    PALAVRAS-CHAVE: Poesia brasileira contempornea, Claudia Roquette-Pinto, Violncia urbana, Imagtica introspectiva, Representao.

    ABSTRACT Brazils literary scene was stirred in 2001 by the publication of the poem Stio, by Claudia Roquette-Pinto, who until then was considered an intimist poet, prone to metaphorization and locked up in her private and bourgeois world.. This essay aims to discuss how the poet could develop in that poem an understanding of the pro-blem of fear and violence, without giving up her introspective imagery and her previous poetic experience, which is concentrated in a referentially scarce writing. The in-detail text analysis intends to register the poets convertion from the realm of opacity, lacunae and indetermination to the characterizing of the urban violence and emotional misery that aflicts the privileged ones. Thus our analysis seeks to combine the implications of Brazils present social-historical reality with the vulnerability of the poetry and the needs of the poetic self.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015 351

    KEYWORDS: Contemporary Brazilian poetry, Claudia Roquette-Pinto, Urban violence, Introspective imagery, Representation.

    Iumna Maria Simon professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas e professora de Teoria Literria e Literatura Comparada na FFLCH-USP. @ [email protected]

    Recebido em 17.11.2014 e aceito em 10.12.2014.

    I Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo/SP, Brasil.

  • ESTUDOS AVANADOS 29 (84), 2015352