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Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em assentamento de reforma agrária. Agroforestry and changes in soil quality in agrarian reform settlement. JUNQUEIRA, Alexandre da Costa 1 ; SCHLINDWEIN, Marcelo Nivert 2 ; CANUTO, João Carlos 3 ; NOBRE, Henderson Gonçalves 4 ; SOUZA, Tatiane de Jesus Marques 5 1 Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural – Universidade Federal de São Carlos (CCA/UFSCar), Araras/SP, Brasil, [email protected]; 2 Professor Doutor do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos Campus Sorocaba, Sorocaba/SP, Brasil, [email protected]; 3 Pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Meio Ambiente), Jaguariúna/SP, Brasil, joã[email protected]; 4 Professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Capitão Poço/PA, Brasil, [email protected]; 5 Doutoranda em Recursos Naturais e Sustentabilidade – Universidad de Córdoba (UCO), Andalucía, Espanha, [email protected] RESUMO: Os sistemas agroflorestais (SAFs) vêm sendo uma alternativa de produção agrícola que alia a produção de alimentos com a recuperação e conservação dos recursos naturais no assentamento Sepé- Tiarajú, localizado na região canavieira de Ribeirão Preto e primeiro assentamento na modalidade Projeto de Desenvolvimento Sustentável no Estado de São Paulo. Este trabalho objetivou avaliar os efeitos dos SAFs na qualidade do solo do assentamento, através de 10 indicadores qualitativos da qualidade do solo, comparando-se os relatos de 10 agricultores sobre o momento anterior ao uso dos SAFs com o momento atual. Os resultados mostram que os SAFs contribuíram para a descompactação do solo, controle de erosão, aumento de retenção de umidade, escurecimento do solo, aumento da ocorrência de plantas indicadoras de solos de boa qualidade, melhoria no crescimento, desenvolvimento, aspecto e produção dos cultivos, aumento da ocorrência de minhocas, insetos e outros organismos no solo e diminuição do ataque de pragas e doenças. PALAVRAS-CHAVE: Agroecologia, Sustentabilidade, Sistemas Agroflorestais, Indicadores Qualitativos, Qualidade do Solo. ABSTRACT: Agroforestry systems have been an alternative of agricultural production that combine food production with the recovery and conservation of the natural resources in the settlement Sepé-Tiarajú, located in the sugarcane region of Ribeirão Preto and first Sustainable Development Project settlement in the State of São Paulo. This study aimed to evaluate the effects of agroforestry systems on soil quality, using 10 qualitative indicators of soil quality, comparing the reports of 10 farmers about the moment when there were no SAFs with the present moment. The results obtained showed that the SAFs contributed to reduce soil compaction, erosion control, increase of humidity retention, soil darkening, increased occurrence of indicator plants of good quality soil, improvement in growth, development, appearance and production of crops, increased occurrence of worms, insects and other organisms in soil and reduction of pest and diseases attacks. KEY WORDS: Agroecology, Sustainability, Agroforestry, Qualitative Indicators, Soil Quality. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 31/10/2012

Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

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Page 1: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em assentamento de

reforma agrária.

Agroforestry and changes in soil quality in agrarian reform settlement.

JUNQUEIRA, Alexandre da Costa1; SCHLINDWEIN, Marcelo Nivert2; CANUTO, João Carlos3; NOBRE, Henderson

Gonçalves4; SOUZA, Tatiane de Jesus Marques5

1 Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural – Universidade Federal de São Carlos (CCA/UFSCar),Araras/SP, Brasil, [email protected]; 2 Professor Doutor do Departamento de Ciências Ambientais daUniversidade Federal de São Carlos Campus Sorocaba, Sorocaba/SP, Brasil, [email protected]; 3 Pesquisador naEmpresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Meio Ambiente), Jaguariúna/SP, Brasil,joã[email protected]; 4 Professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Capitão Poço/PA, Brasil,[email protected]; 5 Doutoranda em Recursos Naturais e Sustentabilidade – Universidad de Córdoba(UCO), Andalucía, Espanha, [email protected]

RESUMO: Os sistemas agroflorestais (SAFs) vêm sendo uma alternativa de produção agrícola que alia a

produção de alimentos com a recuperação e conservação dos recursos naturais no assentamento Sepé-

Tiarajú, localizado na região canavieira de Ribeirão Preto e primeiro assentamento na modalidade Projeto

de Desenvolvimento Sustentável no Estado de São Paulo. Este trabalho objetivou avaliar os efeitos dos

SAFs na qualidade do solo do assentamento, através de 10 indicadores qualitativos da qualidade do solo,

comparando-se os relatos de 10 agricultores sobre o momento anterior ao uso dos SAFs com o momento

atual. Os resultados mostram que os SAFs contribuíram para a descompactação do solo, controle de

erosão, aumento de retenção de umidade, escurecimento do solo, aumento da ocorrência de plantas

indicadoras de solos de boa qualidade, melhoria no crescimento, desenvolvimento, aspecto e produção dos

cultivos, aumento da ocorrência de minhocas, insetos e outros organismos no solo e diminuição do ataque

de pragas e doenças.

PALAVRAS-CHAVE: Agroecologia, Sustentabilidade, Sistemas Agroflorestais, Indicadores Qualitativos,

Qualidade do Solo.

ABSTRACT: Agroforestry systems have been an alternative of agricultural production that combine food

production with the recovery and conservation of the natural resources in the settlement Sepé-Tiarajú,

located in the sugarcane region of Ribeirão Preto and first Sustainable Development Project settlement in

the State of São Paulo. This study aimed to evaluate the effects of agroforestry systems on soil quality,

using 10 qualitative indicators of soil quality, comparing the reports of 10 farmers about the moment when

there were no SAFs with the present moment. The results obtained showed that the SAFs contributed to

reduce soil compaction, erosion control, increase of humidity retention, soil darkening, increased occurrence

of indicator plants of good quality soil, improvement in growth, development, appearance and production of

crops, increased occurrence of worms, insects and other organisms in soil and reduction of pest and

diseases attacks.

KEY WORDS: Agroecology, Sustainability, Agroforestry, Qualitative Indicators, Soil Quality.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected]

Aceito para publicação em 31/10/2012

Page 2: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

Introdução

Nos últimos anos, em meio a crise

socioeconômica e ambiental, os assentamentos

rurais vêm se configurando como importantes

conquistas dos movimentos sociais. No entanto, a

potencialidade destes espaços como território de

construção de novas relações sociais e relações

com os recursos naturais, é ameaçada pelos

passivos ambientais deixados pelos latifúndios

monocultores (RAMOS FILHO & PELLEGRINI,

2006).

A cultura da cana-de-açúcar se destaca neste

cenário de degradação, com severos impactos

ambientais originados de todas as fases da cadeia

produtiva que se estendem sobre todos os

componentes bióticos e abióticos dos

ecossistemas naturais. Particularmente

preocupante tem sido a degradação que o manejo

convencional causa no solo, componente ecológico

base do funcionamento dos processos ecológicos

dos ecossistemas e do rendimento agrícola

sustentável (RAMOS FILHO & PELLEGRINI, 2006;

GLIESSMAN, 2009).

Diante a precária infra-estrutura e a escassez

de políticas públicas de apoio aos assentados, a

destruição da bioestrutura do solo, sua

compactação, erosão, lixiviação de nutrientes,

destruição da matéria orgânica e fertilidade do solo

são indicativos da necessidade da construção de

alternativas de produção agrícola baseadas em

princípios da conservação dos processos naturais

de promovem a boa qualidade do solo, que

reduzam a utilização de insumos externos e que

estejam em consonância com as realidades dos

agricultores assentados (PRIMAVESI, 2002;

RAMOS FILHO & PELLEGRINI, 2006).

A Agroecologia é a ciência que pode guiar a

construção destas alternativas, lançando mão de

conhecimentos ecológicos modernos, populares e

tradicionais para estudar, desenhar e manejar

sistemas mais sustentáveis, enxergando o solo,

sob uma visão holística e sistêmica, como um

organismo vivo e complexo. Os sistemas

agroflorestais (SAFs) são uma das práticas

agroecológicas que consideram o papel

fundamental dos processos ecológicos, como a

decomposição da matéria orgânica, a ciclagem de

nutrientes, o fluxo de energia, a sucessão

ecológica, a regulação de populações e das

relações complexas interdependentes na promoção

das condições de solo que permitem a produção

agrícola sustentável (ARMANDO et al., 2002;

GLIESSMAN, 2009).

Com este intuito os SAFs combinam

diversidade de árvores, culturas agrícolas e/ou

animais, no mesmo tempo e espaço, de acordo

com as necessidades ecofisiológicas e funções de

cada planta. A grande diversidade é conduzida de

forma que haja complementaridade e interações

sinérgicas entre os cultivos, visando explorar a

capacidade das árvores de proteção do solo contra

as ações erosivas e de produção de matéria

orgânica na forma de serrapilheira, a fim de

potencializar processos ecológicos que garantem o

aumento da capacidade produtiva do solo

(ARMANDO et al., 2002; SANTOS, 2007;

GLIESSMAN, 2009).

Diante desta complexidade de potenciais

benefícios, têm se procurado evidenciar a

contribuição dos SAFs na conservação do solo,

através de indicadores da qualidade do solo

(BROWN et al., 2006). De acordo com Sarandón

(2002) indicador é uma variável que permite avaliar

a tendência de modificação de características, as

quais se constituem em requisitos da

sustentabilidade do sistema.

A busca por avaliar a qualidade do solo de

forma mais ampla, integrada, dinâmica e efetiva

vêm gerando a necessidade de construir os

conjuntos de indicadores coletivamente com os

agricultores que manejam diariamente o solo. A

Etnopedologia reconhece esta importância e busca

compreender a lógica e os procedimentos

empíricos utilizados no âmbito dos conhecimentos

populares e tradicionais para perceber, classificar e

avaliar o solo (BARRERA-BASSOLS & ZINCK,

Sistemas agroflorestais e mudanças

Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013) 103

Page 3: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

2002).

O desafio necessário nos planos de

monitoramento da qualidade do solo têm sido então

valorizar, estudar, integrar e aplicar os

conhecimentos e saberes intuitivos e qualitativos

acumulados dos agricultores durante sua

experimentação constante e observação

interdisciplinar e holística das respostas do solo

aos manejos, a fim de criar indicadores de fácil

mensuração, baseados em aspectos de fácil

compreensão e decodificação e baixo custo de

aplicação (CASALINHO, 2004; SILVA, 2009).

O presente artigo foi resultado da inserção em

atividades de pesquisa e desenvolvimento com

foco em sistemas agroflorestais (SAFs), realizadas

pela Embrapa Meio Ambiente em parceria com

organizações de agricultores e outras instituições

no assentamento Sepé Tiaraju.

O objetivo deste trabalho foi o de avaliar

mudanças na qualidade do solo pelo uso de

sistemas agroflorestais no assentamento Sepé

Tiaraju, analisando os relatos de agricultores frente

à indicadores qualitativos da qualidade do solo.

Metodologia

Caracterização da área de estudo

O assentamento Sepé Tiaraju esta localizado

na Região de Ribeirão Preto, maior produtora

sucro-alcooleira do mundo e na área da antiga

fazenda Santa Clara, historicamente ocupada com

cana-de-açúcar, o que trouxe consequências na

degradação do solo. Em meio a este contexto, o

assentamento foi criado em 2004 na modalidade

Projeto de Desenvolvimento Sustentável, política

inovadora no estado de São Paulo criada pelo

INCRA através da portaria nº 477/99, que visa aliar

a reprodução sócio- econômica das famílias com a

gestão sustentável dos recursos naturais (INCRA,

1999).

O assentamento possui 80 famílias,

organizadas em quatro núcleos de 20 famílias

cada. Tem uma área total de 814 ha, dividida em

lotes individuais de moradia e produção de 3,5 ha e

áreas coletivas de produção em cada núcleo. Está

em área de transição entre Floresta Estacional

Semidecidual (Mata Atlântica) e Cerradão

(Cerrado), com predominância de solos de textura

arenosa (Argissolo) e de textura argilosa

(Latossolo) e relevo predominantemente levemente

ondulado (RAMOS FILHO e PELLEGRINI (2006).

Localiza-se sobre área de recarga direta do

Aquífero Guarani, uma das maiores reservas de

água potável do mundo, o que mostra sua

vulnerabilidade ambiental quanto a contaminação

da água por sedimentos e agrotóxicos e a

necessidade fundamental de se implementarem

práticas agroecológicas de manejo do solo e

recomposição florestal.

Caracterização dos sistemas agroflorestais

analisados

A tabela 1 apresenta as características físicas,

produtivas e de distribuição espacial dos dez SAFs

analisados no presente estudo. Os dados sobre

área, idade, desenho, carros-chefe e inclinação do

terreno são uma aproximação obtida de acordo

com os relatos dos agricultores e com observações

feitas no lote. O arranjo foi caracterizado de acordo

com classificação de May e Trovatto (2008).

No geral, os SAFs estudados se constituem em

sistemas diversificados, multi-estratificados

sucessionais (MAY & TROVATTO, 2008), ou seja,

o desenho e manejo se balizam pela dinâmica da

sucessão ecológica, incluindo espécies agrícolas

anuais, frutíferas e espécies florestais arbóreas,

arbustivas e herbáceas, além de trepadeiras. Os

manejos realizados incluem cultivo mínimo do solo;

poda de condução com facão; capina seletiva com

roçadeira costal ou enxada; adubação através de

restos vegetais e adubação verde com

leguminosas; controle de espontâneas através do

plantio de adubos verdes e sombreamento das

Junqueira, Schlindwein, Canuto, Nobre & Souza

Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013)104

Page 4: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

árvores; e controle de outras pragas e doenças com

métodos alternativos.

Atividades de pesquisa e desenvolvimento no

assentamento Sepé Tiaraju e inserção do presente

estudo

Visando apoio aos objetivos da modalidade

Projeto de Des. Sus. (PDS) e à demanda dos

agricultores, iniciou-se em 2005 o projeto

“Capacitação sócio-ambiental para construção de

projetos de desenvolvimento sustentável em

assentamentos rurais no estado de São Paulo”,

coordenado pela Embrapa - Meio Ambiente em

parceria com o INCRA - Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária e organizações

representativas dos agricultores assentados. Com o

objetivo de construir o conhecimento agroecológico

de forma integrada e participativa, as ações do

projeto estiveram sempre apoiadas nas premissas

da pesquisa-ação participativa (SEVILLA-

GUZMÁN, 2001) e incluíram diagnósticos

participativos, observação participativa em unidade

experimental, oficinas, cursos, seminários, dias de

campo, intercâmbios de experiências e

implantações em mutirões, focadas na produção

agroflorestal.

Com a consolidação dos SAFs em Unidades de

Referência, o projeto entrou na fase de

monitoramento participativo dos sistemas no ano

de 2009, quando foram realizadas duas oficinas de

sensibilização e discussão sobre o assunto. Nas

oficinas foi possível elencar alguns anseios e

dificuldades dos agricultores, resultando em uma

árvore de objetivos a curto, médio e longo prazo

dentro do planejamento dos SAFs. Tais objetivos e

as discussões dentro deste processo de

consolidação dos SAFs nos anos 2008 e 2009

foram estímulos fundamentais para despertar

perguntas que levaram a elencar os objetivos e a

construção dos indicadores do presente estudo.

Construção do roteiro semi-estruturado

Foi construído um roteiro semi-estruturado com

base no manual “Monitoramento da qualidade do

solo em agroecossistemas de base ecológica – a

percepção do agricultor” (CASALINHO, 2004). No

roteiro do presente trabalho foram construídas 10

perguntas, uma para cada um dos seguintes

indicadores: compactação, erosão, retenção de

umidade, cor do solo, plantas indicadoras,

crescimento/desenvolvimento/ aspecto das

culturas, produção das culturas, presença de

minhocas, presença de insetos e outros organismos

no solo e presença de pragas/doenças, que foram

escolhidos por serem fatores que influenciam ou

são influenciados pelo uso agrícola do solo.

Os conteúdos base para a construção das

perguntas do roteiro foram os objetivos levantados

pelos agricultores em oficinas de sensibilização e

capacitação em monitoramento, realizadas dentro

das atividades de pesquisa e desenvolvimento da

Embrapa, e os critérios qualitativos de avaliação de

cada indicador descritos no manual, onde foram

separados termos mais simples, de fácil

Sistemas agroflorestais e mudanças

Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013) 105

Tabela 1: Caracterização física, estrutural e produtiva dos SAFs

Page 5: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

compreensão, relacionados a cada indicador, para

facilitar a conversa com os agricultores. Os

indicadores e seus respectivos critérios qualitativos

de avaliação são descritos na Tabela 2.

Os indicadores foram analisados comparando-

se dois momentos; um anterior (Antes),

caracterizado pelo momento em que os agricultores

chegaram ao lote e nos primeiros anos em que

começaram o plantio; e o momento atual (Depois),

caracterizado pelo uso atual do solo na forma de

sistemas agroflorestais.

Aplicação do roteiro a campo

O roteiro foi aplicado em entrevistas com 10

famílias de agricultores agroflorestais do

assentamento Sepé-Tiarajú. O critério para a

escolha dos agricultores foi a maior frequência de

participação nos eventos de sensibilização,

capacitação, troca de experiências e implantação,

desenvolvidas dentro do projeto nos anos de 2008

e 2009. Dentro deste campo amostral, foram

selecionados os agricultores com os quais se criou

mais contato e maior grau de confiança durante

estes dois anos. A realização das entrevistas

aconteceu em um período de duas semanas no

mês de agosto de 2010, época de estiagem na

região. Cada entrevista teve duração de

aproximadamente 4 horas.

A interação com o agricultor nas entrevistas se

apoiou nas premissas da pesquisa-ação

participativa e da Etnopedologia. Os conteúdos

estruturais das perguntas tiveram a função apenas

de nortear e organizar o diálogo com os agricultores

e as entrevistas foram conduzidas na forma de

conversa, à medida que se caminhava no lote.

Objetivou-se conferir liberdade á conversa para

emersão de percepções diversas do agricultor e

evitar direcionamentos de respostas, além de se

fazer observações sobre os indicadores juntamente

com o agricultor durante a conversa.

Junqueira, Schlindwein, Canuto, Nobre & Souza

Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013)106

Tabela 2: Indicadores da qualidade do solo e seus respectivos parâmetros qualitativos utilizados no roteiro

semi-estruturado no assentamento Sepé-Tiarajú, Serra Azul - SP

Page 6: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

Resultados e discussão

Esta seção foi dividida em subtópicos de acordo

com os resultados obtidos para cada um dos dez

indicadores de qualidade de solo utilizados na

pesquisa.

Compactação do solo

Todos os agricultores entrevistados relataram

que o uso e manejo do solo na forma de sistema

agroflorestal contribuiu para a descompactação em

certo grau do solo ou deixou o solo mais fofo e

cinco entre os dez entrevistados relataram um solo

mais fácil de ser trabalhado atualmente. Apesar

disso, cinco entre os dez relataram que observam

que ainda existe uma camada subsuperficial

compactada a 20 cm de profundidade (pé-de-

grade) e dois relataram que para evitar o

desenvolvimento deficiente das plantas, precisa-se

fazer um berço de plantio das mudas mais profundo

a fim de quebrar o pé-de-grade. A causa desta

compactação pode ser facilmente atribuída ao

histórico da área de uso e manejo do solo com

monocultivo de cana-de-açúcar durante seis

décadas, o qual submeteu o solo ao tráfego intenso

de maquinaria pesada (RAMOS FILHO et al.

(2007).

Como causa da descompactação, seis entre dez

agricultores atribuíram à prática do plantio de

árvores e arbustos, que atuam na quebra da

camada compactada abaixo da superfície através

de suas raízes, três deles atribuíram ao uso de

adubos verdes, dois à proteção do solo pelo

sombreamento das árvores, um ao menor uso de

maquinaria no manejo, um ao manejo sem uso de

insumos químicos e um total de oito agricultores à

manutenção constante de restos culturais sobre o

solo e a incorporação de matéria orgânica. O

seguinte relato expressa as observações:

“Em alguns lugares era pesado... a terra

tava fofa só por cima, porque por baixo tava

compactada e ainda tá. Agora a diferença é

muito grande do que era antes. Onde tem o

SAF já achei o solo fofo onde eu cavei, onde

tem o SAF já desapareceu quase todo o pé de

grade... aquelas árvores que tem aquele tipo de

raiz mais profunda, que vai mais pra baixo

ajudam muito a quebrar o pé de grade. A

mamona me ajudou muito, ela não tem a raiz

profunda, mas eu plantei ela, fui cortando os

galhos, as folhas, jogando pro chão e o solo ali

ficou fofo também.” – Relato de agricultor.

Sistemas de produção que incorporam árvores

em sua dinâmica promovem a melhoria da

qualidade física do solo através da ação de um

ambiente radicular mais profundo e diverso (NAIR,

2006). Além disso, as árvores potencializam a

incorporação de matéria orgânica sobre o solo, a

qual proporciona outros benefícios que influenciam

diretamente na boa estrutura do solo, entre eles

criação de agregados mais estáveis, manutenção

de adequada macroporosidade e aumento da vida

e atividade biológica que decompõe e transportam

a matéria orgânica (PRIMAVESI, 2002; CADISCH

et al., 2006).

Erosão do solo

Três dos entrevistados disseram nunca terem

tido problemas com erosão. Por outro lado, um total

de sete relataram que o uso do SAF proporcionou

um controle da erosão do solo através do aumento

da infiltração de água, do impedimento da formação

de enxurradas e do impedimento do carreamento

de sedimentos. Entre as causas relatadas para o

controle da erosão, quatro entre os dez agricultores

apontam o plantio de grande diversidade de plantas

e o uso do componente arbóreo no sistema e cinco

entre os dez apontam a manutenção constante de

restos vegetais sobre o solo e o aporte de matéria

orgânica. Dois agricultores relataram que as

declividades do solo contribuem para reter a água

Sistemas agroflorestais e mudanças

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Page 7: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

de chuva e a umidade no solo, o que evita a

erosão. Um deles relatou que quando chegou ao

lote, fez a opção de não passar a grade niveladora

no terreno porque observou este potencial.

“A primeira vez que fiz a gradagem e deixei

o solo exposto, a enxurrada carregou tudo para

a estrada. Agora não tem, claro que não. A

água fica onde bate, infiltra rapidamente e não

lava o solo. A diversidade de plantas e a

palhada no solo é uma barreira que impede a

água de levar o solo.” – Relato de agricultor.

Franco et al. (2002) e Cadisch et al. (2006)

colocam a maior incorporação de matéria orgânica

em SAFs como fator central do controle de

escorrimento superficial de água no solo, controle

do carreamento de sedimentos e de processos

erosivos, através do aumento da infiltração de

água no solo, da redução do impacto

desagregador da chuva e da formação de

agregados de solo mais resistentes ao

desprendimento. Além disso, a incorporação

constante de resíduos culturais ao solo e o cultivo

mínimo do solo apenas com roçadeira e enxada,

aumenta a atividade biológica do solo, a qual tem

papel fundamental também na promoção desta

melhoria (CADISCH et al., 2006).

Retenção de umidade

A totalidade dos dez agricultores relatou que o

SAF contribuiu para aumentar a capacidade do

solo em reter a umidade dentro do sistema. Um dos

agricultores disse que mesmo em períodos de seca

as árvores contribuem para reter a umidade vinda

do sereno noturno e outro agricultor observou tal

fato quando fez o plantio de mudas de abacaxi

sombreado pelas árvores em seu lote depois de

uma chuva breve e estas mudas resistiram a um

período de estiagem subseqüente, enquanto que

em outros lotes onde o abacaxi foi plantado a pleno

sol, houve mortalidade elevada de mudas.

A maioria dos agricultores (oito deles) relatou

que o uso do componente arbóreo e o maior

sombreamento do solo contribuíram para o

aumento da retenção de umidade e a totalidade

deles relatou como causa deste aumento, o manejo

do solo com cobertura constante de restos

culturais. O seguinte relato simboliza estes

resultados:

“Antes segurava muito menos, não tem nem

comparação. Porque não tinha planta cobrindo

o solo. Agora demora mais para secar, por

causa da sombra das árvores e o manejo que

você faz e joga as folhas das árvores, bananas,

o guandu e seus galhos e folhas que fazem a

cobertura e retém mais umidade.” – Relato de

agricultor.

De acordo com Gliessman (2009), o

componente arbóreo desempenha uma função

importante de regulação microclimática e

conservação da umidade no solo, através do

sombreamento parcial em períodos de estiagem e

MAY et al. (2008) diz que a cobertura morta do

solo é um fator fundamental na diminuição da

evapotranspiração do horizonte superior do solo e,

portanto, no aumento de retenção de umidade.

Cor do solo

Com relação a este indicador, alguns

agricultores relataram ter observado a mudança da

cor do solo de um estado esbranquiçado para mais

escurecido e outros relataram a mudança de um

estado vermelho mais claro ou marrom mais claro

para uma cor mais próxima do preto. Mas, de um

modo geral, oito entre os dez agricultores

entrevistados relataram ter observado que o solo

apresentou um escurecimento, um deles relatou a

mudança de um solo esbranquiçado para um solo

mais vermelho e outro relatou não ter observado

Junqueira, Schlindwein, Canuto, Nobre & Souza

Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013)108

Page 8: Sistemas agroflorestais e mudanças na qualidade do solo em

mudança. A totalidade dos entrevistados atribuiu

esta mudança à maior incorporação de matéria

orgânica no solo, através da cobertura do solo com

restos culturais. A fala seguinte expressa tal

mudança:

“Agora ta um solo mais escuro, mais pra

escurecido. As folhas caem... as folhas tem a

cor delas, ai a chuva molha e vai apodrecendo,

elas entram na terra e dão a cor delas pra terra,

fertilizam a terra.” – Relato de agricultor.

Corroborando a observação dos agricultores,

Botelho et al. (2006) e Gliessman (2009) afirmam

que teores mais elevados de matéria orgânica

conferem uma coloração mais escura nos

horizontes superficiais dos solos. Considerando

que todos os agricultores fazem a cobertura do solo

com grande quantidade de restos vegetais, a

mudança da cor pode ser atribuída ao aumento dos

teores de matéria orgânica decorrente deste

manejo.

Plantas espontâneas indicadoras

Com relação às plantas espontâneas, 60% das

plantas citadas como ocorrentes nos lotes no

momento “Antes” são classificadas como

indicadoras de solo compactado, degradado ou

ácido, sendo elas grama-seda (Cynodon sp.),

guanxuma (Sida sp.), carrapicho (Cenchrus sp.),

braquiária (Brachiaria sp.), capim rabo-de-burro

(Andropogon sp.) e tiririca (Cyperus sp.).

Já no momento “Depois”, indicadoras de solos

degradados guanxuma, tiririca, grama-seda,

avoadeira (Conyza sp.), maria-mole (Senecio

brasiliensis), mamona (Ricinus communis) e assa-

peixe (Vernonia tweediana) ocupam 41,17% das

citações. Entretanto seis entre os dez agricultores

relataram que o manejo do solo na forma de SAF

proporcionou uma mudança na composição de

espécies de plantas espontâneas, sendo que a

ocorrência de voadeira (Conyza spp.), trapoeraba

(Commelina erecta), serralha (Sonchus oleraceus),

caruru (Amaranthus), beldroega (Portulaca

oleracea), ocupam 29,41% das citações. Ou seja, o

SAF contribuiu de certa forma para criar condições

desfavoráveis para o estabelecimento de plantas

espontâneas adaptadas a condições de solos

degradados e favoráveis à plantas adaptadas a

solos mais bem estruturados e férteis. Os

agricultores relataram como causas para tal

mudança o aporte de matéria orgânica pelos restos

culturais (cinco agricultores), o cultivo sem uso de

herbicidas (dois agricultores), e o cultivo mínimo do

solo sem uso de maquinaria (dois agricultores). O

relato de um dos agricultores mostra a observação

desta mudança:

“Tinha umas indicadoras que indicavam solo

fraco, compactado, como a guanxuma e o

carrapicho. Em algumas áreas que não tem

SAF ainda tem. Agora já ta aparecendo picão

preto, beldroega, serralha, caruru, trapoeraba, a

mamona ta vindo espontânea também. Foi por

causa da melhoria do solo com certeza, porque

o feijão de porco, o guandu, a mamona, o

margaridão que eu manejei e já joguei no chão

já decomporam e deram alimento pro solo.” –

Relato de agricultor.

As plantas herbáceas constituem as pioneiras

na sucessão ecológica e desta forma, a sua

explosão populacional tem a função de modificar

propriedades físicas, químicas e biológicas e

condicionar o solo para o estabelecimento de

espécies mais exigentes (SILVA, 2009). Neste

sentido, as plantas espontâneas não devem ser

eliminadas sem propósito, mas sim utilizadas como

indicadoras de condições específicas do solo, para

direcionar estratégias de manejo (MACHADO,

2004 apud. SILVA, 2009).

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Crescimento, desenvolvimento e aspecto dos

cultivos

No momento “Antes”, de seis agricultores

respondentes, quatro relataram desenvolvimento

deficiente ou demorado de plantas e frutos e três

relataram a morte de mudas e perda de produção

por ataque de pragas ou doenças. Ainda um dos

agricultores, relatou que observou que ocorria a

perda de mudas plantadas não somente pela falta

de água, problema infra-estrutural importante no

assentamento, mas também em grande parte pela

exposição delas ao pleno sol durante todo o dia. Já

no momento “Depois”, de dez respondentes, sete

relataram uma melhoria no crescimento e

desenvolvimento das plantas, seis deles relataram

que as plantas no SAF apresentam melhor

resistência à seca e permanecem mais viçosas

nesta época. Ainda houve relatos de aumento de

resistência de plantas à pragas ou doenças,

desenvolvimento deficiente de frutos por causa de

sombreamento, aumento do ataque de pragas e

doenças em cultivos e floração deficiente de

plantas no período de estiagem, no momento

“Depois”.

Sete agricultores entre o total de dez apontaram

como causa da melhoria deste indicador, a

cobertura constante do solo pelos restos culturais,

três deles atribuíram ao sombreamento das árvores

e outros relataram a ação descompactadora das

raízes das árvores e do feijão-guandu e a prática de

cultivo sem uso de maquinaria pesado e agrotóxico.

“Já perdi manga, caqui porque tavam

expostos ao sol, porque tava muito seco, não

tinha água. E mesmo quando coloca água, se

ficar exposta ao sol o dia inteiro não vai. Agora

da pra ver como as mudas que eu plantei

depois do SAF, na sombra, foram melhor. As

mangas que eu plantei na sombra da banana,

onde tem mais cobertura morta de folha de

banana que vou cortando e jogando pro chão,

estão melhores, tem umas que estão florindo

agora.” – Relato de agricultor.

De acordo com Peneireiro et al. (2002), a

cobertura viva e morta do solo desempenha papeis

fundamentais na promoção e manutenção da

fertilidade do solo por impedir a lixiviação de

nutrientes pelo impacto direto da chuva e aumentar

e manter a atividade biológica do solo, além da

matéria orgânica representar 90% da CTC

(capacidade de troca catiônica) do solo,

mecanismo fundamental da promoção da nutrição

adequada das plantas.

Produção dos cultivos

Apesar da produção em termos quantitativos

não ter sido identificada, obtiveram-se dados

qualitativos importantes da produção. Seis entre os

dez agricultores relataram ter observado um

aumento na produção de plantas frutíferas no SAF,

quatro deles relataram que as plantas no SAF estão

mais viçosas, desenvolvidas e com melhor

qualidade e quatro relataram que retiram produtos

do SAF para o consumo da família e para ração de

suas criações, produtos como inhame, cara-moela,

feijão fava, feijão-guandu, hortaliças, café,

maracujá, goiaba, limão, ponkan, acerola e outras

frutas. Contabilizando e comparando as espécies

cultivadas nos sistemas analisados entre os dois

momentos (“Antes” e “Depois”) pode-se ver que a

diversificação da produção foi proeminente. Nos

primeiros anos do assentamento cultivavam-se

algumas dezenas de espécies, entre elas o milho, a

mandioca, a banana, a abóbora, algumas olerícolas

e algumas frutíferas. Já entre os anos de 2008 até a

data das entrevistas, puderam ser contabilizadas

aproximadamente 170 espécies cultivadas e

manejadas.

É possível observar também que os agricultores

que cultivam na forma de SAF e que tem a

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produção mais diversificada, conseguem atingir a

cota de venda da Conab (Companhia Nacional de

Abastecimento) em menos tempo se comparado a

agricultores que não tem SAF e, portanto precisam

buscar novos mercados para escoar sua produção.

Alguns agricultores relataram tais números de

produção obtida dos SAFs: 17 caixas de banana

em uma única entrega, aproximadamente 500

quilos de banana por mês proveniente de 10% de

seus pés e 20 a 25 caixas de mamão em uma única

entrega.

O seguinte relato pode expressar os resultados

deste indicador:

“Agora estou vivendo do SAF, tiro meu

sustento e renda para comer do SAF, enquanto

outros agricultores tem que trabalhar para fora

para comer e se sustentar. Eu não me lembro

de ter trabalhado para outra pessoa enquanto

tenho o SAF”. – Relato de agricultor.

A melhoria da qualidade física e biológica do

solo tem influência direta na fertilidade do solo, no

crescimento, desenvolvimento e produção das

plantas (GLIESSMAN, 2009). Além disso, a

diversidade biológica, a diversidade de cultivos no

mesmo tempo/espaço e o cultivo em diferentes

estratos do sistema são pontos importantes de

qualificação dos sistemas agroflorestais,

proporcionando geração de benefícios econômicos

importantes. Isto se traduz tanto pela possibilidade

de colheitas sucessivas e periódicas em diferentes

andares e pela possibilidade das famílias de

escolher o objetivo e destino dos produtos das

diferentes espécies para comercialização

(SANTOS, 2007).

Organismos do solo

Minhocas

Um total de sete agricultores entre os dez

entrevistados relatou que o cultivo do solo na forma

de SAF contribuiu para o aparecimento de

minhocas e os outros três relataram que o SAF

contribuiu para um aumento na quantidade delas no

solo, sendo que todos ressaltam que observam

maior quantidade de minhocas no período das

chuvas. Como causa deste aparecimento ou

aumento, sete agricultores atribuíram a cobertura

constante do solo com restos culturais que

conservam mais umidade, dois atribuíram ao maior

sombreamento que impede elevadas temperaturas

na superfície do solo e um agricultor atribuiu ao

cultivo sem uso de agrotóxicos. O seguinte relato

expressa a observação da melhoria neste

indicador:

“Antes claro que não tinha, sem chance de

ver uma coisa dessas... agora já começou a

aparecer minhocas, algumas centopeias. Por

que onde tem água tem vida, tem comida. A

própria terra e os insetos, um vai predando o

outro e vai decompondo. A decomposição traz

riqueza para o solo.” – Relato de agricultor.

As minhocas desempenham um papel

importante na promoção da qualidade química,

física e biológica do solo, atuando na

decomposição da matéria orgânica e

potencialização da ciclagem de nutrientes, no

aumento da drenagem de água e mudança do ciclo

hidrológico e na mudança na dinâmica de

populações de plantas. Realizam estas

modificações através de suas atividades de

escavação, construção de canais no solo,

movimento e mistura de suas partículas com os

coprólitos (JONES et al., 1994).

A população de minhocas no solo, além de ser

função de fatores climáticos, edáficos e

topográficos intrínsecos aos ecossistemas, é

sensível a mudanças na cobertura vegetal e em

práticas de manejo do solo introduzidas pela ação

antrópica. Esta característica torna as minhocas

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bioindicadores fundamentais para se avaliar tanto a

qualidade de um solo para a produção agrícola,

como os efeitos de perturbações ambientais nas

características físicas, químicas e biológicas do

solo. O maior tamanho, facilidade de observação e

coleta faz destes organismos indicadores mais

amplamente utilizados pelos agricultores para

monitorarem seus solos (BROWN & DOMINGUEZ,

2010).

Insetos e outros organismos do solo

Com relação a este indicador, sete entre dez

agricultores relataram ter observado um aumento

na diversidade de insetos e outros organismos no

solo do SAF se comparado ao solo antes, dois

relataram não observar aumento ou diminuição na

diversidade destes organismos e um dos

agricultores disse não ter certeza sobre tal

indicador. Ainda três entre os dez agricultores

relataram ter observado o aparecimento de

diversidade de outros organismos no SAF como

insetos himenópteros, pássaros e mamíferos. Cinco

entre dez agricultores atribuíram tal aumento na

diversidade de organismos à prática da cobertura

constante do solo com restos culturais e três

atribuíram ao aumento da diversidade de plantas no

sistema de produção.O foco da análise neste

indicador foi insetos e organismos associados ao

solo e o fato de alguns agricultores terem discorrido

sobre organismos de outras classes não

associadas ao solo aponta para o fato de que este

indicador apresenta limitações para ser utilizado

em análises baseadas na percepção e observação

de agricultores, já que o conhecimento de tipos

diferentes de insetos e organismos que se

associam ao solo é muito técnico e pode ser de

difícil compreensão para eles. Apesar destas

limitações e da maior popularidade das minhocas, a

diversidade e população de outros organismos

associados e não associados ao solo pode ser

utilizada como indicador de melhoria na qualidade

do solo (JONES et al., 1994; CORDEIRO et al.,

2004; BROWN et al., 2006).

Pode-se ver através deste relato que o agricultor

utiliza o aumento da diversidade de insetos e outros

organismos como indicador de melhoria da

qualidade do solo:

“... Já tá aumentando a diversidade de

bichos, até por cima da cobertura, aranhas

diferentes, gafanhotos, joaninhas, besouros,

marimbondo da floresta está começando a

chegar, pássaros nhambu, pomba, tucanos,

maritacas por causa das amoras e outros

pássaros estão vindo dormir aqui. O tamboril

tem época que fica cheio de passarinhos

comendo besouros. É a cobertura em

decomposição, a umidade da banana e de

outras plantas que trazem mais insetos para o

solo.” – Relato de agricultor.

Brown et al. (2006) e Brown e Domínguez

(2010) corroboram as observações feitas pelos

agricultores sobre estes dois indicadores em SAFs

afirmando que o aumento da diversidade e das

populações, tanto de minhocas, quanto de outros

organismos da macro, meso e microfauna do solo é

favorecido por sistemas produtivos que incluem as

árvores, principalmente pela maior proteção do

solo, microclima mais favorável e maior

incorporação de matéria orgânica.

Pragas e Doenças

A maioria dos dez agricultores entrevistados

(sete deles) relatou ter observado uma melhoria ou

diminuição no ataque de pragas e/ou doenças nas

plantas cultivadas dentro do SAF, dois relataram

não ter observado tal mudança e um dos

agricultores relatou ter problemas com pragas, mas

não ter prejuízo significativo na sua produção.

Um dos agricultores disse ter observado que a

mandioca cultivada em consórcio simples com o

milho apresentou ataque de uma broca, mas a

mandioca cultivada dentro do SAF não apresentou

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tal ataque. A incorporação de diversidade de

plantas proporcionada pelo SAF, pelo consórcio

incluindo o componente arbóreo, atraiu diversidade

de organismos associada e contribuiu para um

maior equilíbrio nas interações entre estes. O

seguinte relato expressa a observação de um dos

agricultores quanto a este indicador:

“Tinha muita praga antes. Descontrole de

grilos que atacavam a berinjela. Doença que

atacava muito o mamão, não deixava produzir

quase nada, era impossível comer um mamão

maduro. O ambiente tava descontrolado. Agora

ainda tem doença no mamão, mas mudou bem

a qualidade, agora os pés estão mais

resistentes e a produção de mamão é boa.” –

Relato de agricultor.

Nicholls e Altieri (2008) discorrem sobre duas

estratégias fundamentais para recobrar a

resistência e resiliência de cultivos à pragas e

doenças, e que vão de encontro as observações

dos agricultores, as quais são: 1) aumentar a

biodiversidade acima e abaixo do solo e 2)

melhorar a saúde do solo. Os autores ressaltam

que um agroecossistema mais biodiverso

apresenta maior quantidade de habitats e recursos

para uma comunidade mais diversa de inimigos

naturais (predadores, parasitóides e agentes

entomopatogênicos). Os mesmos autores dizem

ainda que, a maior diversidade e atividade biológica

do solo, contribuem para a danificação de

sementes de ervas espontâneas e associações das

raízes das plantas com fungos oferece proteção

contra doenças. A saúde biológica do solo

contribui, de forma determinante, para a boa

nutrição do solo e das plantas, o que tem também

papel fundamental no desenvolvimento de bons

sistemas de defesa das plantas á pragas e doenças

(NICHOLLS & ALTIERI, 2008).

Conclusões

A análise dos relatos dos agricultores

entrevistados com relação aos indicadores de

qualidade do solo permite afirmar que o redesenho

do sistema produtivo e a incorporação do

componente arbóreo aliada ao cultivo mínimo do

solo sem uso de maquinaria pesada, com a

incorporação constante de matéria orgânica através

do manejo de cobertura constante do solo com

resíduos vegetais e plantas leguminosas, refletiu

em melhorias significativas na qualidade do solo.

As observações mostram que os SAFs

promoveram os seguintes benefícios:

descompactação do solo; aumento da infiltração de

água no solo; diminuição do carreamento de

sedimentos e controle de processos erosivos;

criação de um microclima com temperaturas mais

baixas e elevação da retenção de umidade no solo;

aumento de resistência de cultivos a períodos de

seca; aumento na população de minhocas e outros

organismos edáficos e não edáficos; certo

escurecimento das camadas superiores do solo,

que pode estar relacionado a um aumento dos

teores de matéria orgânica; mudança na

composição de plantas espontâneas, com uma

transição para espécies indicadoras de boas

condições de solo; aumento da resistência de

cultivos ao ataque de pragas e doenças; melhorias

no crescimento e desenvolvimento de plantas,

flores e frutos de alguns cultivos; aumento da

produção de alguns cultivos, principalmente

frutíferas e diversificação relativamente grande dos

agroecossistemas.

Tais resultados permitem concluir que os

sistemas agroflorestais constituem alternativa de

produção agrícola fundamental na busca pela

recuperação de passivos de degradação do solo

aliada a produção diversificada de alimentos,

utilizando práticas agroecológicas que dependem

do mínimo de uso de insumos externos.

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Rev. Bras. de Agroecologia. 8(1): 102-115 (2013) 113

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