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SEGUNDA-FEIRA, 21 DE JANEIRO DE 2013 Sobre a dificuldade de ler Giorgio Agamben Cada um de vocês deve ter feito experiência daqueles momentos em que gostaríamos de ler, mas não conseguimos, em que nos obstinamos folhando as páginas de um livro, mas ele literalmente cai das mãos. Nos tratados sobre a vida dos monges, isso era, por excelência, o risco ao qual o monge sucumbia: a acídia, o demônio meridiano, a tentação mais terrível que ameaçava os homines religiosi, manifesta-se, antes de tudo, com a impossibilidade de ler. Gostaria de sugerir-lhes prestar atenção nos seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai de suas mãos, pois a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura, e, talvez, é tão ou mais instrutiva do que esta. Há uma primeira e mais radical impossibilidade de ler que, até não muitos anos, era extremamente comum. Refiro-me aos

Sobre a Leitura e o Livro - Agamben

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Page 1: Sobre a Leitura e o Livro - Agamben

S E G U N D A - F E I R A , 2 1 D E J A N E I R O D E 2 0 1 3

Sobre a dificuldade de ler

Giorgio Agamben

Cada um de vocês deve ter feito experiência daqueles momentos em que

gostaríamos de ler, mas não conseguimos, em que nos obstinamos

folhando as páginas de um livro, mas ele literalmente cai das mãos.

Nos tratados sobre a vida dos monges, isso era, por excelência, o risco ao

qual o monge sucumbia: a acídia, o demônio meridiano, a tentação mais

terrível que ameaçava os homines religiosi,manifesta-se, antes de tudo,

com a impossibilidade de ler. Gostaria de sugerir-lhes prestar atenção nos

seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo

cai de suas mãos, pois a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto

quanto a leitura, e, talvez, é tão ou mais instrutiva do que esta.

Há uma primeira e mais radical impossibilidade de ler que, até não muitos

anos, era extremamente comum. Refiro-me aos analfabetos, esses

homens muito rapidamente esquecidos que há apenas cento e cinquenta

anos eram, ao menos na Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do

século XX dedicou um livro de poesias ao analfabeto, por quien yo

Page 2: Sobre a Leitura e o Livro - Agamben

escribo. É importante compreender o sentido desse “para”[1]: não tanto, ou

não somente, “para que o analfabeto me leia”, visto que, por definição,

não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia

testemunhar por aqueles que no jargão de Auschwitz chamavam-se os

muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem teriam podido

testemunhar, pois, pouco depois de seu ingresso no campo, tinham

perdido toda consciência e toda sensibilidade.

Gostaria que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que,

na sua essência, é destinado a olhos que não o podem ler e foi escrito por

uma mão que, em certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor

que escrevem para o analfabeto tentam escrever aquilo que não pode ser

lido, colocam no papel o ilegível. Mas, exatamente por isso, tornam a sua

escritura mais interessante do que a que foi escrita somente para quem

sabe ler.

Há pois um outro caso de não leitura a respeito do qual gostaria de lhes

falar. Refiro-me aos livros que não encontraram aquilo que Benjamin

chamava a hora da sua legibilidade, que foram escritos e publicados mas

estão – talvez para sempre – à espera de ser lidos. Conheço, e cada um de

vocês, penso, poderia nomear alguns, livros que mereciam ser lidos e não

o foram, ou foram lidos por muito poucos leitores. Qual é o estatuto

desses livros? Penso que, se esses livros eram verdadeiramente bons, não

se deve falar de uma espera, mas de uma exigência. Esses livros não

esperam, mas exigem ser lidos, mesmo se não o foram e se jamais o

serão. A exigência é um conceito muito interessante que não se refere à

esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja natureza

deixo a cada um de vocês especificar.

Mas agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se

ocupam de livros: deixem de olhar para os infames – sim, infames são

classificados os livros mais vendidos e, presume-se, mais lidos – e, por sua

vez, tentem construir na sua mente uma classificação dos livros que

exigem ser lidos. Somente uma editora fundada sobre essa classificação

mental poderia fazer sair o livro da crise que – ao menos pelo que ouço

dizer e repetir – está atravessando.  

Page 3: Sobre a Leitura e o Livro - Agamben

[1] N.T.: A partir desse trecho, Agamben joga com o significado de “per”: “para” e “por”. Na tradução, optei por manter

sempre o termo “para”, já que o sutil jogo operado em italiano deixa-se ver também em português.  

Texto publicado no jornal La Repubblica no dia 08/12/2012 (na página 56). Trata-se de um trecho da intervenção de

Agamben numa mesa redonda a respeito do livro Leggere è un rischio, de Alfonso Berardinelli. O debate aconteceu  em

Roma durante a 11ª Feria Nazionale della Piccola e Media Editoria: Più libri, più liberi. (Tradução: Vinícius Nicastro

Honesko)

Imagem: Dedicatória feita por José Bergamín a Murilo Mendes no exemplar de El pozo de la angustia, que pertencia ao

poeta mineiro. 

POSTADO POR KHÔRA ÀS  3 :42 PM UM COMENTÁRIO:

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