Sobre Reilnaldo

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reinaldo arantes

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  • MAo controle do ficcional em

    A literatura como misso:

    O Mundo Alucinante,

    de Reinaldo Arenas

    DIANA KLINGER

    DIANA KLINGER doutoranda em Literatura Comparada na UERJ.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005168

    AApesar da inegvel importncia do autor, que publicou mais de quinze livros (romances, contos, poesia, peas de teatro, ensaios), e uma grande quantidade de artigos em jornais, e cujas obras foram traduzidas em vrias lnguas, no erraramos muito se considerssemos Reinaldo Arenas um escritor maldito, adorado nos ambientes acadmicos, mas quase desconhecido pelo pblico em geral (no-especializado). Perseguido pelas autoridades da revoluo cubana, sofreu vrias prises no seu pas, e nalmente se exilou em Nova York, onde se suicidou em 1990, aos 47 anos, vtima da Aids. Arenas deixou uma autobiograa, Antes que Anochezca (1992), que ganhou mais fama do que seus romances, que foi levada ao cinema, e o converteu numa gura

    de culto em certos crculos intelectuais.

    O destino de El Mundo Alucinante

    (1967) (1) no foi muito melhor que o do

    escritor, pelo menos nos comeos e por

    muitos anos. Apesar de ter sido premiado

    pela Uneac (Unin de Escritores y Artistas

    Cubanos), no foi permitida sua publica-

    o, e o manuscrito saiu clandestinamente

    de Cuba em 1967, tendo sido traduzido e

    publicado pela primeira vez na Frana. S

    em 1969 foi publicado no idioma original,

    no Mxico. O objetivo deste ensaio ana-

    lisar El Mundo Alucinante sob a perspectiva

    do controle do ccional. Mas essa questo

    tem um alcance bem maior, porque ilumina

    o aspecto do controle no contexto mais

    amplo da literatura latino-americana dos

    anos 60, e especialmente o que se conhece

    como boom da literatura latino-americana.

    O fato de o romance ter sido censurado

    acrescenta um ingrediente interessante a se

    levar em considerao em relao ao con-

    trole. Proponho a hiptese de que a censura

    se exerceu na mesma direo em que se

    exercia o controle na literatura do boom, a

    qual, como assinalaram muitos escritores

    e crticos, tinha a misso de representar

    a realidade latino-americana.

    Vejamos. No romance, Reinaldo Arenas

    retoma as Memrias de Fray Servando Te-

    resa de Mier, um frade que viveu no Mxico

    no sculo XVIII, que fora perseguido e

    encarcerado por sustentar a existncia de

    uma identidade entre Santo Toms e o deus

    dos maias Quetzacotl, o que evidentemente

    signicava uma deslegitimao da evange-

    lizao dos ndios por parte dos portugue-

    ses. O personagem do romance de Arenas

    um hbrido entre Fray Servando (como

    personagem de suas prprias memrias)

    e Reinaldo Arenas (pois vrios episdios do

    romance so narrados anos depois como

    sendo verdadeiros na sua autobiograa).

    O prprio Arenas assinala essa identidade

    no prlogo verso espanhola do romance,

    em forma de carta dirigida ao personagem

    (Servando), e assim deixa a porta aberta

    para se fazer uma leitura autobiogrca do

    romance: descubr que t y yo somos la

    misma persona (p. 9).

    Mas no somente o personagem h-

    brido, tambm o texto hbrido, pois incor-

    pora elementos no-ccionais: as Memrias

    de Fray Servando citadas no texto (2), e

    fragmentos de discursos e cartas do frade.

    Por outro lado, a presena das Memrias

    e a identidade entre Arenas e Servando

    proposta pelo autor implicam uma ligao

    entre o histrico e o ccional, que abre o

    romance para uma possvel leitura alegrica,

    que relacionaria o Mxico do sculo XVIII

    com a Cuba revolucionria. Vejamos os

    seguinte exemplos:

    1 A edio que citaremos a do Mxico (Montesinos, 1981).

    2 No entanto, impor tante considerar que at os bigrafos de Fray Servando duvidam da veracidade histrica dos fatos narrados nas Memrias.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005 169A

    3 Para os comentrios de Arenas sobre a censura do romance, veja-se sua autobiograa, Antes que Anochezca (pp. 97 e segs.), e a entrevista que o autor deu a Ottmar Ette, ambas mencionadas na Bibliograa.

    4 A coletnea de artigos crticos Mas All del Boom: Literatura y Mercado (Mxico, Marcha Editores, 1982) oferece um panorama de definies e opinies bastante completo.

    BOOM E CONTROLE

    A literatura latino-americana de pases

    de lngua espanhola, diferena da literatura

    brasileira, conta com uma longa tradio de

    literatura fantstica. Bem antes do boom

    dos anos 60, j havia, no continente todo,

    autores que trabalhavam com lgicas bem

    afastadas da lgica realista: Alfonso Reyes

    (Mxico), Ricardo Guiraldes (Argentina),

    Alejo Carpentier (Cuba), Migel Angel As-

    turias (Guatemala), Juan Rulfo (Mxico) e,

    obviamente, Jorge Luis Borges (Argentina).

    Todos eles so precursores do que depois

    seria o boom da literatura latino-americana,

    que fechou denitivamente as portas ao

    romance realista. O assim chamado boom,

    que dominou o panorama dos anos 60 e exer-

    ceu uma inuncia na literatura posterior,

    estava coroado (sob um critrio de sucesso

    de pblico, mas o prprio boom denido

    pela literatura crtica como um fenmeno de

    mercado) (4) por Cien Aos de Soledad e El

    Siglo de las Luces. Um rpido exame dessas

    obras mostra duas tendncias dominantes no

    boom: um realismo social (mas um tipo

    de realismo certamente inovador quanto s

    tcnicas narrativas), como o de El Siglo de

    las Luces, de Alejo Carpentier, e o famoso

    Qu somos en este Palcio sino cosas in-

    tiles, relquias de museo, prostitutas rehabil-

    itadas. De nada sirve lo que hemos hecho si

    no danzamos al son de la ltima cornetilla.

    De nada sirve. Y si pretendes recticar los

    errores no eres ms que un traidor, y si pre-

    tendes modicar las bestialidades no eres

    ms que un cnico revisionista, y si luchas

    por la verdadera libertad ests a punto de

    dar con la misma muerte (p. 231).

    Esto es el n? Esa hipocresa constante,

    este constante repetir que estamos en el

    paraso y de que todo es perfecto? Y real-

    mente existe el Paraso? Y si no existe, por

    qu tratar de inventarlo? (p. 232).

    O que o frade (personagem do romance)

    diz sobre o Mxico pode ser lido como

    dito pelo autor sobre Cuba. Essa leitura

    sugerida pelo autor no prlogo do romance

    (t y yo somos la misma persona) e pode

    ter sido a leitura feita pelos censores. Como

    evidente, o fato de o romance ter sido

    censurado acrescenta um interesse especial

    anlise do controle. provvel que os

    censores tenham lido o romance segundo

    essa clave alegrica e que o tenham censu-

    rado exatamente pelo que possui de no-

    ccional. Falar num controle do ccional

    exercido pelo autor pareceria, ento, ora

    contraditrio, ora insuciente. Ou seja, se

    houvesse, no romance, um controle do c-

    cional, o autor teria errado na sua avaliao

    da censura. Pode ser tambm que o autor

    estivesse tentando provocar as autoridades

    intelectuais do governo revolucionrio, mas

    nesse caso ele no teria se surpreendido com

    o fato de o romance ter sofrido censura (3).

    Uma outra possibilidade que o autor tenha

    exercido um controle s avessas, ou seja,

    um controle do no-ccional. Nesse outro

    caso, o controle no teria sido o suciente

    para evitar a censura. Mas deixemos essas

    hipteses em aberto, pois somente pode-

    remos nos aproximar de uma resposta depois

    de uma anlise detalhada dos elementos

    implicados no caso. Comecemos pelo

    contexto histrico no qual o romance foi

    escrito: os anos 60 e o boom da literatura

    latino-americana.

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    realismo mgico, cujo expoente principal

    Gabriel Garca Mrquez. Outros exemplos

    da primeira tendncia so La Muerte de

    Artemio Cruz (de Carlos Fuentes), La Ciu-

    dad y los Perros (de Mario Vargas Llosa)

    e El Coronel no Tiene Quien le Escriba

    (de Gabriel Garca Mrquez); da segunda,

    Aura y Los Das Enmascarados, (de Carlos

    Fuentes), Los Funerales de Mam Grande

    e El Amor en los Tiempos del Clera (de

    Gabriel Garca Mrquez). Esses exemplos

    so representativos, e bastam para mostrar

    que ambas as vertentes se fundamentam

    numa viso mtica da realidade, e bom

    lembrar que para esses escritores o conceito

    de realidade traz colado o adjetivo latino-

    americana. De fato, o prprio realismo

    mgico como estilo literrio foi miticado e

    chegou a ser considerado por alguns crticos

    como uma forma autenticamente latino-

    americana, e at a expresso natural de

    uma regio na qual a prpria realidade

    maravilhosa, segundo Alejo Carpentier,

    no prlogo a El Reino de Este Mundo

    (Carpentier, 1980, p. 12). Tambm o mais

    famoso locus imaginrio do continente,

    Macondo, foi convertido num lugar mtico

    latino-americano, um stio que contm

    todos os stios (Fuentes, 1972, p. 66). Se-

    gundo esse tipo de leitura (que foi freqente

    nos anos 70 e 80), o relato da fundao de

    Macondo representa o relato da fundao

    do continente latino-americano, incluindo

    todo o real documentado, mas tambm as

    lendas e as fbulas orais, para dizer-nos que

    no devemos nos contentar com a histria

    ocial, documentada (Fuentes, 1972, p. 62).

    Assim, o realismo mgico seria considerado

    verdade no sentido de autenticidade:

    esse estilo seria a expresso autntica do

    continente, ou seja: o correlato da identidade

    latino-americana. E o que isso, seno o

    controle exercido de dentro da literatura?

    Um certo tipo de co considerado uma

    expresso mais vlida do que outros tipos,

    pois por ser autntica essa co serve

    como um arma de descolonizao. Sem

    chegar ingenuidade de Alejo Carpentier

    (conforme citamos acima), muitos autores

    sustentam um conceito de mmese, segundo

    o qual essa determinada forma de co o

    realismo mgico reete uma determinada

    identidade. Esse tipo de co, ao mesmo

    tempo mtica e miticada, formaria parte

    tanto de uma outra histria, no-eurocn-

    trica, quanto da utopia descolonizadora.

    Vejamos as palavras de Carlos Fuentes:

    Creo que se escriben y se seguirn escribi-

    endo novelas en Hispanoamrica para que,

    en el momento de ganar esa conciencia,

    contemos con las armas indispensables para

    beber el agua y comer los frutos de nuestra

    verdadera identidad. Entonces esas obras,

    esos Pasos Perdidos, esas Rayuelas, esos

    Cien Aos de Soledad, esas Casas Verdes,

    esas Seas de Identidad, esos Jardines de

    Senderos que se Bifurcan, esos Laberintos

    de la Soledad, esos Cantos Generales, apa-

    recern como las mitologas sin nombre

    [...] que anuncia nuestro porvenir (Fuentes,

    1972, p. 98).

    Segundo a verso de seus crticos con-

    temporneos, ento, essa literatura est

    participando de uma gesta herica, e a co

    adquire uma legitimidade indita at ento,

    pois a co passa a ser considerada uma

    prtica poltica contra a colonizao cultural

    e em favor da unidade do continente. Exis-

    tiria, nessa verso, uma forma legtima

    para o autor latino-americano expressar

    a realidade latino-americana. Ora, tal

    posicionamento no se congura, por acaso,

    como um tipo de controle exercido pelos

    prprios autores e pelos prprios crticos?

    (Lembremos que, naquele momento, escri-

    tores e crticos eram, em muitos casos, as

    mesmas pessoas.)

    A esse respeito, aponta o famoso histo-

    riador argentino Tulio Halperin Donghi:

    Es indudable que el xito de la literatura

    latinoamericana en torno de la dcada del

    sesenta se vincula con la conviccin com-

    partida tanto en el subcontinente como fuera

    de l de que su tormentosa historia haba

    entrado en una etapa resolutiva (Halperin

    Donghi, 1982, p. 146).

    Tambm o crtico Idelber Avelar aponta

    nesse sentido:

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    El boom, ms que el momento en que la

    literatura latino-americana alcanz su

    madurez o encontr su identidad (un

    continente que encuentra su voz fue la

    consigna fono-etno-logocntrica repetida

    hasta la saciedad en aquel entonces) pue-

    de denirse como el momento en que la

    literatura latinoamericana, al incorporarse

    al canon occidental, formula una com-

    pensacin imaginaria por una identidad

    perdida (Avelar, 2000, p. 53)

    Os anos 60 so os do triunfo da Revoluo

    Cubana, e grande parte dos escritores e in-

    telectuais adere a ela, criando uma imagem

    eufrica da histria e do futuro do continente,

    imagem que somente ser abalada no nal da

    dcada, com a instalao das ditaduras mili-

    tares na maioria dos pases de procedncia

    desses escritores. No possvel desenvolver

    aqui esse aspecto da questo, mas impor-

    tante assinal-lo para nossa argumentao

    posterior, pois a adeso Revoluo Cubana

    ser fonte de um controle exercido pelos

    prprios escritores (que seria comparvel

    ao fenmeno das patrulhas ideolgicas no

    Brasil), controle que na prpria Cuba acabar

    se transformando em censura, pois ali os

    escritores tinham funes no governo. Nesse

    sentido, foi relevante o papel da Casa das

    Amricas, instituio cubana que distribua

    prmios literrios no continente, estabe-

    lecendo um cnone conforme os princpios

    da revoluo.

    Resumindo: a narrativa que domina o

    panorama dos anos 60 est marcada por uma

    viso de Amrica que ser, se no necessaria-

    mente histrica (j argumentamos que no

    realismo mgico h um predomnio de uma

    viso mtica), evidentemente positiva,

    atravesada de una desbordante alegra

    vital (Halperin Donghi, 1982, p. 154) (o

    que contrasta com muitas das narrativas

    contemporneas da Europa, evidentemente

    sombrias, como a obra de Camus, por

    exemplo). E evidente que esse ambiente,

    que domina a literatura dos anos 60, exerce

    uma inuncia nos escritores, assim como

    nos leitores e nos crticos. E veremos que

    tambm Arenas faz referncia, no romance,

    a essa viso mtica de Amrica:

    Hasta cundo seremos considerados

    como seres paradisacos y lujuriosos, cria-

    turas de sol y agua? Hasta cundo vamos

    a ser considerados como seres mgicos

    guiados por la pasin y el instinto? []

    Hasta cundo vamos a permanecer en

    perpetuo descubrimiento por ojos descono-

    cidos? (p. 117).

    Nesse sentido, o romance de Arenas

    seria controlado, pois ele no sustenta a

    imagem mtica do continente latino-ameri-

    cano que encontramos nos romances do

    realismo mgico. E, o que pior, ele no

    poder ser lido de forma massicada (de-

    senvolveremos este ponto mais adiante),

    como foram os romances do boom, ou seja,

    ele no serve misso de criar e sustentar

    uma identidade latino-americana que seja

    sucientemente abrangente. Vejamos agora

    por que El Mundo Alucinante no podia

    pertencer ao boom, e veremos assim os

    procedimentos pelos quais o romance

    tambm controlador.

    O CONTROLE EM EL MUNDO ALUCINANTE

    A construo de El Mundo Alucinante

    verdadeiramente alucinante pela

    proliferao de imagens, de situaes

    fantsticas, de smbolos, de referncias,

    pelo domnio da linguagem, pela magistral

    combinao dos textos citados, pela imensa

    proliferao de aventuras, pelo fantstico

    domnio da tcnica narrativa, pela ines-

    gotvel imaginao; enm, difcil dar

    conta da densidade desse romance. Ele

    relata as aventuras do Fray Servando, desde

    sua infncia at sua morte. Os pontos de

    vista da narrao vo mudando continua-

    mente, passando da primeira segunda e

    terceira pessoa (5). No entanto, a pas-

    sagem de pessoas no produz uma totali-

    dade narrativa coerente, como no caso de

    outro romance da poca, representativo

    do boom, La Muerte de Artemio Cruz, de

    Carlos Fuentes, que tambm oscila entre

    5 Essa passagem de pessoas gramaticais, se posta em rela-o com o que Arenas declara no prlogo (tu y yo somos la misma persona), habilita a lei-tura autobiogrca e alegrica do romance.

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    a primeira, a segunda e a terceira pessoa.

    Em El Mundo Alucinante, as verses dos

    trs narradores se superpem e se contradi-

    zem, de maneira que no possvel armar

    um relato coerente. Mas a contradio

    aparece, tambm, no interior do relato de

    um mesmo narrador. Vejamos um exem-

    plo, do comeo do romance: Venimos del

    corojal. No venimos del corojal. Yo y las

    dos Josefas venimos del corojal. Vengo

    solo del corojal (p. 11).

    Essa incoerncia lgica no comeo

    faz com que todo o narrado seja posto em

    dvida. O que se coloca em dvida no

    a verdade dos fatos, mas a prpria

    verossimilhana interna do relato. Logo

    no comeo o texto abala a lgica da no-

    contradio que sustenta a lgica interna de

    todo e qualquer discurso, e impe ao leitor

    uma regra nova, que s vlida no interior

    do romance. Em conformidade com essa

    regra, h trs captulos I:

    I) De como Transcurre Mi Infancia en

    Monterrey Junto con Otras Cosas que

    Tambin Transcurren;

    I) De Tu Infancia en Monterrey Junto con

    Otras Cosas que Tambin Transcurren;

    I) De como Pas Su Infancia en Monter-

    rey Junto con Otras Cosas que Tambin

    Pasaron.

    Tambm o segundo captulo tem trs

    verses, e a partir da todas as aventuras

    sero relatadas em diferentes verses, que

    se complementam, mas tambm se contra-

    dizem. Pareceria, ento, que tudo no texto

    co, tudo puro jogo lingstico, tudo

    experimentao com matria verbal. Re-

    tomemos uma das hipteses levantadas na

    introduo deste texto, a saber: que nesse

    romance o controle exercido s aves-

    sas pelo escritor, quer dizer: no seria o

    controle do ccional, mas o controle do

    no-ccional. Nesse sentido, haveria uma

    aproximao entre o romance e a literatura

    de Borges, que apresenta a co como o

    nico humanamente legtimo, porque no

    embaraado por dilemas verdadeiro/falso,

    representativo/no representativo (Costa

    Lima, 1988, p. 302). De controlada, como

    tem sido h sculos, a co se torna con-

    troladora (Costa Lima, 1988, p. 300).

    Talvez seja possvel comparar, nesse

    sentido, o romance com os contos de Borges.

    Mas h um outro aspecto que parece no se

    encaixar no controle do no-ccional: so

    os pargrafos inteiros citados dos textos de

    Fray Servando e as mltiplas referncias

    autobiogrcas (6), que invalidam a arma-

    o de que tudo co. O que se deduz

    do romance no bem isso, mas, isto sim,

    uma teoria especca da co (da produo

    e da recepo), tal como enunciado pelo

    prprio Arenas:

    Esta mezcla de perspectivas y sugeren-

    cias es controlada por el lector, quien es

    en denitiva el que construye la novela

    contempornea [...] La novela es como

    una especie de participacin, es algo frag-

    mentario y muchas veces casi incompleto

    que uno le brinda a un lector. Y una de

    las tareas del lector es la tarea de la com-

    plicidad. Entre un lector (un buen lector

    desde luego) y un escritor (un buen escritor

    si es que existe) debe haber siempre una

    complicidad; esa complicidad se establece

    a travs de la compenetracin del texto y

    sus mltiples interpretaciones. Lo ms que

    puede hacer un libro es sugerirle al lector

    uma serie de ideas e interpretaciones (in

    Ette, 1996, p. 65).

    No prlogo do romance, o autor diz ao

    frade que me comuniqu con personas

    que te conocan con la distancia carac-

    terstica y el rasgo deshumanizado que

    suponen las erudiciones adquiridas en los

    textos de historia (p. 9). Aparentemente,

    ento, o romance pretende ir alm do tipo

    de aproximao que o discurso da Histria

    tem com os personagens. No entanto, a

    operao que est funcionando vai muito

    alm de invalidar o discurso da Histria

    enquanto tal. A Histria se valida segundo

    um critrio de verdade, no aplicvel

    co. co, aplica-se o critrio de

    verossimilhana. No entanto, as categorias

    de verdade e de verossimilhana, ainda que

    sejam diferentes em relao ao referencial

    (o verdadeiro no necessariamente veros-

    6 No caso de Borges, as citaes muitas vezes so apcrifas, falsicadas, e as referncias autobiogrficas sempre se referem a questes literrias.

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    smil e vice-versa), so similares desde o

    ponto de vista de sua lgica interna, pois

    ambas se constroem sobre a base da coern-

    cia interna do discurso. E o que El Mundo

    Alucinante faz justamente romper essa

    lgica interna .

    Coleridge deniu o cional como sus-

    penso da descrena (That willing sus-

    pension of disbelief for the moment, which

    constitutes poetic faith). Ora, para ler O

    Mundo Alucinante o leitor deve suspender

    no a crena no narrado em relao ver-

    dade do mundo l fora, mas suspender a

    crena na prpria lgica da narrao. Para

    esclarecer este ponto vejamos a teorizao

    sobre o realismo mgico da crtica Irlemar

    Chiampi no seu livro El Realismo Mara-

    villoso. Forma e Ideologia en la Novela

    Hispanoamericana (1983) (7). Nesse texto,

    a autora faz uma tipologia dos discursos

    ccionais, assinalando que o texto realista

    instaura uma lgica conforme o natural;

    o relato maravilhoso segue uma lgica do

    sobrenatural (por exemplo, os contos de fa-

    das), e o relato fantstico combina o natural

    com o sobrenatural de uma forma disjuntiva

    (o sobrenatural irrompe na lgica do natural

    e causa surpresa nos prprios personagens,

    como nos contos de Poe, Phillip Dick,

    Borges, etc.). O relato real-maravilhoso

    tambm combina uma lgica natural com

    uma no-natural, mas, diferentemente do

    que ocorre com o fantstico, as lgicas no

    entram em conito uma com a outra. (O

    exemplo que Chiampi d a cena de Cien

    Aos de Soledad, na qual Remedios est pen-

    durando lenis e sai voando e nunca mais

    volta, mas nenhum dos personagens acha

    isso estranho.) Segundo Chiampi, o realismo

    maravilhoso realiza a lgica da mestiagem,

    justamente pela convivncia dos contrrios,

    e essa lgica caracteriza segundo ela a

    cultura latino-americana. Isso signica que

    sua tipologia, que consideramos muito

    pertinente, acaba servindo para sustentar

    o ponto de vista daqueles narradores que

    essencializam a cultura e a identidade latino-

    americana. Mas quemos com a tipologia

    que ela prope, e que pode servir para nossa

    anlise. Acontece que o romance de Arenas

    no se encaixa em nenhum desses tipos de

    discursos ccionais descritos por Chiampi.

    Cada um desses tipos sustenta uma lgica

    interna, enquanto no romance de Arenas a

    prpria lgica narrativa o o da intriga

    se desconstri. Se, por exemplo, uma frase

    armada e imediatamente depois negada,

    interrompe-se o o da trama, a intriga

    desfeita. (Evidentemente, no pode faltar a

    intriga num romance se ele quer atingir um

    grande pblico: da que esse romance nunca

    poderia ter pertencido ao boom dos anos

    60-70.) Ora, se os fatos narrados no cor-

    respondem lgica natural, a da experincia,

    e a prpria lgica narrativa subvertida,

    criando um clima de alucinao, cabe-nos

    perguntar por que esse romance seria objeto

    de censura, uma vez que ca evidente a

    diculdade de se conectarem diretamente os

    fatos narrados aos fatos reais (no sentido

    de extratextuais). Citamos a observao do

    crtico Julio Ortega: Through continual

    modication and duplication the facts are

    drawn out and extended in the commentary,

    in fantasy and in the irony of the absurd.

    All the realism of the novel is thus denied

    (Ortega, 1973, p. 46). Ento, se nada do

    relatado pode ser acreditado, por que

    a censura? Ser que, no caso da censura,

    trata-se de uma espcie de controle do

    experimentalismo, que podemos associar

    ao controle exercido pelos defensores do

    realismo socialista (no sentido de que a obra

    deve ter contedo social engajado, e que

    a forma deve ser fcil para o receptor

    decodicar?). Esta resposta poderia explicar

    a censura, no fosse o fato de que outros

    romances experimentais no foram censu-

    rados em Cuba (El Reino de Este Mundo,

    de Alejo Carpentier, seria um exemplo).

    Como argumentamos acima, o realismo

    mgico se encaixa perfeitamente no pro-

    jeto de emancipao; por isso, do ponto

    de vista revolucionrio, no importa que a

    obra se encaixe no realismo ou no realismo

    mgico, o fundamental que ela expresse

    a identidade latino-americana. Ento, o

    controle exercido pelo boom e a censura

    caminham aqui na mesma direo.

    Outra explicao possvel da censura

    seria que a censura responde ao contedo

    do relato, imoral, abjeto, e, em alguns mo-

    7 As denominaes realismo mgico e realismo maravi-lhoso so equivalentes.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005174

    mentos, pornogrco. No entanto, parece

    mais sensato pensar que o romance foi

    censurado porque, apesar de tudo, foi lido

    como alegoria do regime cubano, ao menos

    isso o que pensa Reinaldo Arenas: su

    lectura en Cuba fue tal que la prohibieron

    y dijeron que era disidente y que atacaba al

    sistema (in Ette, 1996). Sendo assim, no

    teria sido suciente o prprio controle que

    o autor teria exercido sobre o no-ccional.

    Mas deixemos a hiptese em suspenso e

    vejamos qual foi a recepo do texto depois

    da sua publicao em espanhol.

    A RECEPO CRTICA DE EL MUNDO ALUCINANTE

    Analisaremos, dentre a grande quantida-

    de de crticas sobre o romance, aquelas que

    forem mais importantes para a questo do

    controle. Comecemos pelo texto de Perla

    Rosenvaig: Reinaldo Arenas: Narrativa de

    Transgresin (1986). A autora trabalha a

    relao do romance com as memrias de

    Fray Servando. Ela dene o gnero me-

    mrias citando Roy Pascal, que no livro

    Design and Truth in Autobiography diz que

    la reelaboracin de la verdad histrica

    es uno de los rasgos distintivos de ambos

    gneros (refere-se s memrias e autobio-

    graas). Rosenvaig (1986, p. 10) acrescenta

    que el acto de narrar implica que la me-

    moria, mediante un proceso de seleccin y

    jerarquizacin de la realidad, recupere lo

    que le interesa sin tener en cuenta la total

    veracidad de los hechos. Nesse sentido, o

    romance segue o mesmo estatuto das me-

    mrias, mas, por outro lado, no romance,

    el acto de narrar se muestra tal qual es:

    juego verbal, ejercicio de la imaginacin

    (Rosenvaig, 1986, p. 21).

    Uma outra linha de leitura relaciona

    Arenas com Borges, pela questo da re-

    escritura. Essa a perspectiva de Alicia

    Borinski, no texto Re-escribir y Escribir:

    Arenas, Menard, Borges, Cervantes, Fray

    Servando (1975). Segundo essa leitura,

    El Mundo Alucinante realizaria o projeto

    de Menard, uma crtica radical del yo,

    de la individualidad, que [...] producira,

    idealmente, una literatura escrita por na-

    die (Borinski, 1975, p. 607). El Mundo

    Alucinante comienza con una carta que

    propone, desde el principio, el proyecto de

    Menard burlndose del tipo de identidad

    expresado por la rma de Reinaldo Arenas

    (Borinski, 1975, p. 609).

    Vemos que, enquanto a primeira leitura

    se baseava na relao do romance com o

    gnero memrias, tendo como referncia

    os conceitos de realidade, veracidade

    e identidade (do autor com seu alter ego

    textual), essa outra leitura parte exatamente

    do oposto. Segundo Borinski, no haveria

    identicao entre autor e personagem: ela

    l do ponto de vista da ccionalidade pura.

    A primeira leitura (a de Rosenvaig) no

    acrescenta muitos elementos, essa segunda

    leitura mais complexa e elaborada. No

    entanto, ela nos coloca numa cilada, pois

    pareceria perigoso prescindir do nome

    do autor (com tudo o que ele signica na

    Cuba dos anos 60) e do personagem (com

    toda sua signicao como gura poltica).

    Ambos Arenas e Servando so guras

    reais (no so Quixotes e Menards), cujas

    intervenes polticas so publicamente

    conhecidas. O projeto de Arenas dife-

    rente do de Borges, porque, ao misturar

    as identidades e complicar a noo de

    autoria, o escritor cubano refere-se a si

    mesmo e a sua histria. Os personagens

    no saram da biblioteca (como no conto

    de Borges) e sim do mundo real. O jogo

    textual no se prope apenas no interior

    da literatura, pelo contrrio, as citaes das

    memrias de Fray Servando esto ali como

    elementos de um real l fora, previamente

    existente. Assim, a dissoluo dos autores

    (a fuso), o intercmbio de pronomes e a

    reescritura podem ser comparados com o

    conto de Borges somente num nvel muito

    supercial.

    E, no entanto, existem outros pontos

    de contato entre os dois projetos literrios

    (como assinalamos acima). Segundo Luiz

    Costa Lima (1988, p. 274), Borges reduz

    o metafsico e o religioso esttica; na

    escritura borgiana, ensaio, crtica, e co

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005 175

    no se diferenciam: sua literatura afasta

    como desprezvel todo o ilusionismo que se

    perpetuou at o realismo e que se prolonga

    hoje em dia em todo o candidato a best

    seller. A sua uma co declaradamente

    de carto pintado, um ngimento que se

    declara como tal (Costa Lima, 1988, p.

    298). Em El Mundo Alucinante, os refe-

    rentes extratextuais no so fraudulentos

    (como no caso de Borges) e no entanto, tal

    como no caso de Borges, o esttico acaba

    dominando os outros elementos.

    Uma outra leitura de El Mundo Alucinan-

    te aproxima-o de Borges (sem mencion-lo)

    ao colocar o romance no plano universal.

    Essa a leitura que faz Eduardo Bejar no

    texto Reinaldo Arenas o la Angustia de la

    Modernidad (1982). Diz Bejar a respeito

    de Arenas:

    Toda su escritura constituye un heroico

    testimonio de la condicin moderna de

    esclavo y soberano. Sus ficciones son

    cuerpos narrativos que retorcindose y

    multiplicndose en el lenguaje buscan,

    como los pensadores lsofos, sobrepujar

    las limitaciones del discurso de la razn

    eciente. Es decir, intentan evadirse hacia

    lo no discursivo (p. 57).

    Bejar constri uma gura herica de

    Arenas, tirando-o do contexto imediato

    de Cuba e colocando-o no plano universal

    (Arenas escreve, segundo ele, contra a

    Razo da modernidade):

    las prcticas transformativas de la escri-

    tura biogrca de Fray Servando sern

    una carcajada contra la legitimidad de los

    discursos ociales de las ciencias humanas.

    Pero sern tambin un magistral plan-

    teamiento literario contra el dogma mas

    caro a la episteme moderna, el principio

    de la identidad (Bejar, 1982, p. 58).

    Ora, essa leitura supe uma abstrao

    total do contedo do romance, limitando-

    se anlise da forma. Trabalhamos aqui

    com a possibilidade de encontrar uma

    interpretao do romance que ao mesmo

    tempo considere forma e contedo, a

    construo dos personagens (Fray Servando

    e o prprio Arenas) e a relao do romance

    com o contexto literrio mais imediato.

    Lembremos que Fray Servando lutou

    contra a evangelizao dos ndios, e lembre-

    mos tambm que, de fato, a colonizao se

    baseou na imposio do cdigo lingstico:

    instituir o nome do Deus equivale a impor

    a linguagem na qual seu nome circula com

    evidente transparncia. Em seu texto O

    Entre-lugar no Discurso Latino-america-

    no (1978), Silviano Santiago escrevia:

    Pelo mesmo preo, os ndios perdem sua

    lngua e seu sistema do sagrado e recebem,

    em troca, o substituto europeu. Evitar o

    bilingismo signica evitar o pluralismo

    religioso e signica tambm impor o poder

    colonialista. Ao romper com a idia de

    unidade no plano narrativo e com a lgica

    interna da intriga, o que se desconstri no

    apenas o discurso da Histria, mas todo

    e qualquer discurso totalizador, seja o do

    colonizador (que remete ao Mxico de Ser-

    vando), seja o do revolucionrio (discurso

    da Revoluo Cubana). Isso signica dizer

    que o romance desconstri a idia de um

    discurso totalizador, seja este de esquerda

    ou de direita (pois, nesse sentido, ambos

    so intercambiveis).

    Na lgebra do conquistador, a unidade

    a nica medida que conta: um s Deus, um

    s Rei, uma s Lngua (Santiago, 1978, p.

    16). unidade do conquistador, Servando

    ope uma dualidade (Quetzalcotl = Santo

    Toms) e Arenas ope a multiplicidade

    (inscrita na sintaxe narrativa). Este, como

    j dissemos acima, o projeto de Arenas:

    lo que a m me interesa es [...] poder

    construir una novela que el autor y el lector

    puedan reconstruir y en la cual se vea la

    diversidad de una realidad que puede ser

    mltiple, como lo es el prprio ser humano

    (in Ette, 1996, p. 65).

    Sinteticamente, pois no de outra forma

    poderamos faz-lo nestas pginas, vejamos

    como se quebra a idia de unidade e como

    se realiza a multiplicidade no romance:

    1) As Memorias de Fray Servando so

    fragmentos que foram extrados de seu

    contexto original e, recontextualizados no

    romance, agora correspondem memria

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005176

    de dois sujeitos: Fray Servando e Reinaldo

    Arenas (t y yo somos la misma persona).

    Assim se violenta o princpio de identidade

    que se encontra subjacente na autobiograa

    e na memria, gneros que, como assinalara

    Lejeune em Le Pacte Autobiographique

    (1975), pressupem a identidade do narra-

    dor com o autor. O sujeito das memrias

    se multiplica no romance, assumindo di-

    ferentes pessoas gramaticais que traam

    diferentes itinerrios de leitura: a leitura

    da vida de Servando, a da vida de Arenas

    e a de um romance de aventuras (tal o

    subttulo que iria colocar Arenas, mas que

    o editor no aprovou), cujo personagem

    inteiramente ccional.

    2) No romance, o tempo denido como

    una nocin falsa con la cual empezamos

    a temerle a la muerte (p. 17). Diferente-

    mente do tempo da Histria linear, su-

    cessivo e do tempo mtico cclico , o

    tempo no romance de simultaneidade. O

    romance se parece com o projeto de Tsui

    Pen, o personagem do conto de Borges

    El Jardn de Senderos que se Bifurcan,

    que consistia em criar um romance igual

    a um labirinto, no qual existiriam tempos

    paralelos, convergentes y divergentes.

    Nesse labirinto temporal, possvel que

    A e no-A coexistam, ou seja, possvel

    armar e negar o mesmo enunciado. Essa

    coexistncia de possibilidades antagnicas

    formulada pela fsica quntica, que postula

    que uma partcula pode se encontrar em duas

    posies ao mesmo tempo, dependendo

    do ato de observ-las. Este dado, que afeta

    profundamente a noo de verdade e de

    realidade, ainda que vlido somente para o

    mundo microscpico, pode ser usado como

    analogia para pensar o lugar do leitor no

    caso do romance de Arenas. O leitor seria

    aqui o observador das partculas, de modo

    que cada leitura nica, e as leituras podem

    proliferar at o innito.

    Essa teoria da leitura tambm est enun-

    ciada no romance, quando Fray Servando

    conhece um personagem, Borunda, que lhe

    mostra um rolo com escrituras hierogl-

    cas, que constitui uma prova irrefutvel

    da apario da Virgem de Guadalupe na

    Nova Espanha, antes da chegada dos co-

    lonizadores. Os hierglifos no podem ser

    decifrados nem pelo frade nem por Borunda,

    e, no entanto, a sua qualidade de prova

    irrefutvel no posta em dvida. Nessa

    teoria da leitura, a signicao no est

    no texto, e sim num entre-lugar entre o

    texto e o leitor.

    3) Uma vez que a lgica interna do texto

    abalada, o sentido desse poema informe

    e desesperado se sustenta a partir de um

    ritmo, marcado pela fragmentao e pela

    repetio no nvel do argumento textual

    (trata-se, innitamente, da priso e fuga do

    frade) e sinttico, por exemplo: Pero ahora

    yo vengo solo del corojal y ya es de da. Y

    todo el sol raja las piedras; y entonces, ya

    bien rajaditas, yo las cojo y se las tiro en

    la cabeza a mis dos Hermanas Iguales. A

    mis hermanas. A mis her (p. 11). Assim, o

    relato das aventuras e desventuras do frade

    pode ser lido como metfora textual, como

    mise em abyme da potica do texto. Pois,

    tal como ocorre com o signicado, o frade

    permanentemente foge da tentativa de ser

    aprisionado. Servando se desloca perma-

    nentemente, detido e encarcerado, mas

    foge a cada vez que isso acontece. Mesmo

    depois de morto no consegue repouso,

    seu tmulo aberto, seu corpo exibido

    num circo como vtima da Inquisio, e

    sua sorte continuar, no circo, vagando

    pelo mundo.

    4) Deixamos para o nal este, que con-

    sideramos ser o ponto mais importante. Se

    o sentido do texto indecidvel, tambm o

    so as identidades: hbridas, utuantes, elas

    atravessam mltiplas metamorfoses. Por

    exemplo: Samuel Robinson, o cozinheiro na

    casa da judia que acolhe o frade na Frana,

    torna-se Simon Rodrguez (p. 134); a bruxa

    qual o frade pede ajuda se converte no

    prprio Len, do qual Servando fugia (p.

    112); o garoto que o guia nos jardins do rei

    para conduzi-lo at ele resulta ser o prprio

    rei (p. 105). Inclusive aparece Orlando, o

    personagem de Virginia Woolf que, atra-

    vessando tempos, vai mudando de gnero.

    Como j dissemos, o romance est cheio

    de referncias intertextuais, e nenhuma

    imotivada. No romance, Servando conhece

    esse personagem, Orlando, e ca fascina-

  • REVISTA USP, So Paulo, n.66, p. 167-177, junho/agosto 2005 177

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    do por ele. A relao entre ambos ganha

    densidade se levarmos em considerao o

    que Arenas disse a respeito do frade: Lo

    que nos sorprende cuando encontramos

    en el tiempo a un personaje autntico es

    precisamente su intemporalidad, es decir

    su actualidad: su condicin de innito (in

    Ette, 1996, p. 67).

    No entanto, a questo das identidades

    mveis, mutantes, pode nos levar mais longe

    se nos lembramos do que tnhamos dito a

    respeito de como funcionava o controle na

    literatura do boom. A maioria dos escritores

    do boom acreditava na idia de uma iden-

    tidade latino-americana. Carpentier disse

    que a histria da realidade latino-americana

    uma crnica do real-maravilhoso. E lem-

    bremos tambm que o real-maravilhoso o

    discurso que realiza a lgica da mestiagem.

    No romance de Arenas, pelo contrrio, no

    funciona essa idia de mestiagem, nem a

    idia de uma identidade latino-americana,

    nem o real maravilhoso como expresso da

    realidade do nosso continente. Em El Mundo

    Alucinante, as identidades so mltiplas, as

    leituras so innitas, as lgicas so delirantes

    (alucinatrias). Assim, o romance consegue

    se afastar, no somente dos discursos do

    poder, do discurso da Histria, como disci-

    plina, do discurso da revoluo, mas tambm

    do controle de uma literatura que foi pensada

    como expresso autntica, deixando

    margem um nmero signicativo de outros

    textos, cujas vendas nunca foram nem sero

    enormes, mas que caro tambm na histria

    da literatura universal.