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Sociedades Complexas, Formação Docente e Hermenêutica: da oposicionalidade entre teoria e práxis - Revista Filosofia Capital

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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 6, n. 12, p. 79-86, jan/2011.

SOCIEDADES COMPLEXAS, FORMAÇÃO DOCENTE E HERMENÊUTICA: DA OPOSICIONALIDADE ENTRE TEORIA E PRÁXIS COMPLEX SOCIETIES, AND TEACHER HERMENEUTICS: THE THEORY AND PRACTICE BETWEEN OPPOSITIONAL CRUZ, Raimundo José Barros1 ROMANI, Simone2

RESUMO

Temos como principal objetivo com o trabalho, repensar a formação docente numa tentativa de superação das condições técnicas e instrumentais da formação contemporânea. E, a partir daí aproximar hermeneuticamente, os processos formativos de um atuar pedagogicamente no qual o teórico e o prático, superem os ideias de dominação de contextos possíveis, aplicabilidade técnica e o simplesmente competente, pelo ideal hermenêutico de formação enquanto autoconstrução e auto-esclarecimento. Palavras-Chave: Sociedades Complexas, Formação, Docência, Hermenêutica.

ABSTRACT

Our main goal with the work, rethinking teacher education in an attempt to overcome the technical and contemporary instrumental training. And from then approaching hermeneutically, Formation of an act pedagogically in which the theoretical and practical ideas to overcome the domination of possible contexts, technical applicability and the merely competent, the hermeneutic ideal training as self-help and self-enlightenment. Keywords: Complex Societies, Training, Teaching, Hermeneutics.

1 Graduado em Filosofia (URI/UPF), Teologia (ITEPA), Música (UPF) e Mestre em Educação pela UPF. Membro do Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação – NUPEFE/UPF. Email: [email protected]. 2 Mestre em educação PPGEDU da Universidade de Passo Fundo - UPF (2010) integrando a linha de pesquisa Fundamentos da Educação. Participante do Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF), Racionalidade e Formação (PUC-RS) e Iluminismo e Pedagogia (UPF). Possui licenciatura em Educação Física pela Universidade de Passo Fundo (1999) e especialização em treinamento personalizado pela mesma instituição (2002). Email: [email protected]

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Considerações iniciais

A educação é uma das mais fortes bases de nossa sociedade. Por esse motivo, trata-se de uma área que precisa ser constantemente repensada, reconstruída e reorientada, tendo como principal objetivo criar as condições necessárias e suficientes para a formação integral do ser humano. Portanto, para que esse processo exigente se torne possível é preciso que nossos esforços rumem em busca da identificação dos pontos falhos dos processos educativo-formativos, para que, a partir daí, possamos repensá-los, renová-los e reorientá-los.

Temos testemunhado hodiernamente o surgimento de iniciativas importantes oriundas do campo de debates filosófico pedagógico, que têm mostrado significativo interesse em contribuir com as diversas discussões referentes aos problemas enfrentados pela educação na atualidade. São vários os resultados, reflexões e problematizações que nascem dessa investida, o que torna cada vez mais nítidas a importância da relação entre filosofia e educação e a potencialização de possíveis reflexões para os diversos contextos pedagógicos, as quais tomam como ponto de partida grandes temas e grandes pensadores da história da filosofia. É nesta perspectiva que procuraremos atentar para a importância do conceito de formação em seu sentido mais amplo. Tendo como principal objetivo somar forças e contribuir com o debate atual sobre a relação teoria e práxis, tomando como núcleo central o aprofundamento via hermenêutica de tópicos filosófico discursivos no âmbito da formação docente; que venham a favorecer aos docentes a aquisição de critérios novos e diversos para uma avaliação adequada de suas práticas pedagógicas.

Nossa hipótese básica é a de que o caráter instrumental, técnico e racionalista, característico das Sociedades Complexas, acaba por influenciar determinados

discursos formativos orientadores dos programas de formação docente. Assim, nossa pretensão vem adequar-se a esse contexto ao pretender repensar a formação docente numa tentativa de superação das condições técnicas e instrumentais da formação contemporânea. E, a partir daí aproximar hermeneuticamente, os processos formativos de um atuar pedagogicamente no qual o teórico e o prático, superem os ideias de dominação de contextos possíveis, aplicabilidade técnica e o simplesmente competente, pelo ideal hermenêutico de formação enquanto autoconstrução e auto-esclarecimento. Posição do problema

Acreditamos ser impossível refletir

sobre problemas relacionados à Filosofia da Educação sem considerarmos as significativas mudanças culturais pelas quais passaram a modernidade e, consequentemente, sobre o modo plural de ser da sociedade contemporânea, resultado desse processo de mudanças. Pensar a formação docente remete-nos, portanto, aos diversos problemas que surgem do que denominamos de “sociedades complexas”: O que significa pensar a formação no contexto das sociedades complexas? Qual a concepção de ser humano que vigora nos processos formativos? Para que sociedade os docentes são formados? O problema a ser enfrentado com este trabalho gira em torno da possibilidade de pensarmos a formação docente no contexto das sociedades complexas, para além da perspectiva cultural ocidental na qual o método das ciências naturais norteia as relações, as quais se estendem desde a produção de conhecimento e metodologias formativas ao modo relacional pedagógico. Nossa hipótese básica é a de que o momento histórico em que vivemos organiza-se via método das ciências naturais, que se origina com o nascimento

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da modernidade, legitima-se no decorrer da história e passa a influenciar até mesmo os modos humanos de relacionamento: uma herança cultura e intelectual com consideráveis influências nos modelos formativos atuais. Será na hermenêutica gadameriana que encontraremos as possibilidades de questionamento dessa forma de racionalidade.

Pensar a formação cultural dos professores na contemporaneidade remete-nos, necessariamente, à ideia de “sociedade complexa”, “uma realidade que surgiu com a revolução industrial, mas nunca foi tão determinante para a vida individual e coletiva quanto hoje” (GOERGEN, 2009, p. 1). Os fatores determinantes nesse processo evolutivo são diversos, mas dentre muitos se destacam o desenvolvimento técnico-científico. Dele resultou o “incremento dos meios de comunicação, a globalização da economia, a precarização do trabalho a mobilidade social, a transformação das categorias de espaço e tempo, a valorização do conhecimento como fator de produção” (GOERGEN, 2009, p. 1-2). O que precisamos considerar é que tais mudanças não permaneceram localizadas nas realidades objetivas e técnicas comuns ao mundo da vida. Esse processo de mudanças afetou todas as dimensões da vida humana; passando pelo individual e coletivo e, consequentemente, pelos processos educativos. “Também a formação um tema tão antigo quanto a própria humanidade sofre o impacto do domínio da informação sobre a formação, do conhecimento sobre o saber” (GOERGEN, 2009, p. 2).

Pensar a docência e os processos formativos nesse contexto torna-se a cada dia uma tarefa de extrema exigência, uma vez que “as mudanças e novas complexidades exigem um completo repensar de conteúdos e estratégias de aprendizagem” (GOERGEN, 2009, p. 2). Identificamos, pois, no conceito de “sociedade complexa” as condições favoráveis para caracterizarmos a “condição contemporânea” em meio a qual

pretendemos refletir sobre o conceito de formação docente. Isso pelo fato de a “sociedade complexa” se apresentar como um “cenário de celebres mudanças e múltiplas determinações estimuladas pelo desenvolvimento científico-tecnológico” (GOERGEN, 2009, p. 3). A posição em que é posta nosso problema de investigação exige, portanto, os seguintes questionamentos: Quais as influências do processo de desenvolvimento técnico-científico nos processos formativos? Quais os sentidos dados à relação entre teoria e prática na formação docente? O que significa conhecer na sociedade contemporânea? Qual o impacto da cultura da informação sobre a formação?

A herança cultural moderna instrumentalizadora modela o agir da contemporaneidade. Assim, ao tematizar a formação docente, rumamos em busca de formas de racionalidade que nos ajudem a superar a oscilação entre polos que “tendem a reproduzir dicotomias várias, nas quais, aliás, a epistemologia das ciências da educação tem estado encerrada: conhecimento fundamental/conhecimento aplicado, ciência/técnica, saberes/métodos” (NÓVOA, 1995, p.28). Encontraremos na hermenêutica gadameriana a possibilidade de enfrentamento desse problema, já que num contexto hermenêutico “a formação considerada algo que nos é possibilitado pela tradição, age em direção contrária à do reducionismo técnico, que não consegue ser fundador de sentido” (HERMANN, 2002, p. 99).

O problema a ser enfrentado pela pesquisa adquire maior contundência, ao voltarmos nosso olhar para a relação teoria e prática na formação docente. Qual o valor conferido à formação teórica no contexto da sociedade científico tecnológica? Qual o valor conferido à formação prática na contemporaneidade? Que modelo de racionalidade pode nos ajudar a retomar a relação teoria e prática como movimento constante e indispensável? Como podemos superar a forte tendência ao praticismo no

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âmbito da formação docente? Como podemos reformular nossa compreensão sobre o relacionamento entre teoria e prática no contexto da formação de professores? O que pretendemos enfrentar com a pesquisa se expressa de forma clara na posição de Trevisan ao considerar que a discussão sobre a formação de professores no Brasil parece seguir o deslocamento do polo do “dever ser” ao “fazer”, o que, em outras palavras, significa o deslocamento do polo da teoria para o polo da prática. Nesse sentido, o que pode ser observado no modelo proposto, subjacente à legislação, é uma tentativa extremamente problemática de minimizar a sua distância, na medida em que apenas se afirma essa dicotomia. Dessa forma, não acontece uma solução ou equacionamento correto, pois somente se dilui a prática (2009, p. 1).

O que nos preocupa é o fato de as políticas de formação de professores não mostrarem a capacidade de tencionar teoria e prática sem pôr em descrédito uma das partes. Assim, acabamos por nos deixar influenciar substancialmente pelo primado da prática, no qual prevalece a ideia de que “para melhor a qualidade do ensino, basta reduzir a teoria e incrementar a prática” (GOERGEN, 2009, p. 15). Nesse sentido, “uma pedagogia na formação de professores não pode ficar refém de uma pretensa teoria e menos ainda do lado da simples prática, o que seria apenas uma forma de tencionar o problema sem oferecer-lhe uma solução” (TREVISAN, 2009, p.1). Levantamos, pois, tais problemas com a idéia de que “certamente uma das deficiências da formação de professores encontra-se nessa relação entre teoria e prática” (GOERGEN, 2009, p.15). Assim, ao invés de primar por absolutizações dicotômicas, temos de encontrar os meios para justificar a ideia de que “o que deve ser debatido e avaliado é tanto a formação teórica quanto prática” (GOERGEN, 2009, p. 15).

Sabemos que a relação entre teoria e prática tornou-se nos últimos tempos um

dos eixos articuladores da formação de professores nos cursos de licenciaturas do Brasil. A reorganização dos estágios supervisionados, que por um longo período aconteceram nos finais dos cursos e posteriormente vieram a acontecer desde o início do curso, como proposta da Resolução CNE/CP 1/2002, de 18 de fevereiro de 2002, apresenta-se como um esforço de superação da dicotomia entre teoria e prática. Contudo, o que nos preocupa é saber até que ponto esse processo realmente está causando o efeito desejado. As contradições surgem no momento em que as avaliações das atuações práticas dos docentes resumem-se em verificar as habilidades adquiridas, e capacidades de aplicações de conhecimentos adquiridos em sala de aula. “Há um grande número de pesquisas com depoimento que confirmam a desorientação geral” (GOERGEN, 2009, p. 16), e nesse sentido, as avaliações apontam para uma deficiência apenas do ponto de vista prático. A redução da teoria e o aumento da prática resolveriam o problema da formação docente? Para Goergen, sugerir mais prática e menos teoria, antes de se apresentar como contribuição para o equacionamento do problema, soa mais como uma suposição ideológica, na qual a teoria é menos importante que a prática nos processos de ensino-aprendizagem. Assim, o que importa nesse contexto é a pergunta sobre o que se entende por educar; quando educar se confunde apenas com o ensino de habilidades e conhecimento, o lado prático da educação certamente ganha proeminência. Por outro lado, se educar se confunde com processo formativo mais amplo, que busque, para além de conhecimento e habilidades, formação ética e política e capacidade de leitura e contribuição para a transformação da realidade, a formação simplesmente prática não conseguiria contribuir suficientemente (2009, p. 17). O que pretendemos questionar são as tendências polarizadoras da relação teoria e prática, que, em vez de

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disputarem espaços de forma absolutizada, possam se entender dialeticamente dependentes e necessárias à formação integral do educando.

A tarefa hermenêutica

Ao bordar a hermeneuticamente,

problemas educacionais surgem com uma exigência própria do contexto hermenêutico, o qual nos convida a retomarmos o conceito de formação humana enquanto conceito histórico carregado de sentidos atribuídos por diferentes momentos da tradição, o que o torna um elemento nuclear para as ciências humanas. Constitui-se, portanto, numa investida hermenêutica na qual o conceito de formação vê-se afetado pela problematização em torno da compreensão e suas possibilidades, que nos orienta à ideia de conferir sentido ao saber cultural produzido e acumulado pela tradição. Possibilitada pela tradição, a formação na perspectiva hermenêutica buscará romper como os modelos interpretativos estáticos comuns ao reducionismo técnico-científico e será transportada para o âmbito vivo da linguagem, onde encontraremos as possibilidades suficientes de atribuição de sentidos. Para seguir um caminho coerente que venha a favorecer bons resultados à reflexão proposta, antes de chegar aos problemas formativos educacionais propriamente ditos, nosso esforço deve considerar a trajetória histórica do conceito de formação. Gadamer alerta para este aspecto ao apontar o conceito de Bildung (formação cultural) como o contexto no qual podemos perceber as mudanças significativas pelas quais tem passado o Ocidente. “No conceito de formação percebe-se claramente quão profunda é a mudança espiritual que nos permite parecer contemporâneos do século de Goethe, e, em contrapartida, considerar a época barroca como um passado pré-histórico” (GADAMER, 2007, p. 44). Dessa forma, a pergunta pelo sentido originário da

formação remete-nos à retomada histórica desse conceito. Concentrar-nos-emos, portanto, na ideia de formação pretendida pela Bildung alemã.

A ideia de formação e sua proximidade com o conceito de cultura encontram sua maior expressão no contexto das reflexões filosóficas do idealismo alemão. “De fato foi Hegel quem elaborou da maneira mais nítida o que é formação, e nós seguimos sua definição” (GADAMER, 2007, p. 47). Na filosofia hegeliana encontramos a ideia de que o homem educado “caracteriza-se pela ruptura com o imediato e o natural, vocação que lhe é atribuída pelo aspecto espiritual e racional de sua natureza” (GADAMER, 2007, p. 47). Nesse sentido, o homem não é naturalmente o que deve ser, e a formação é uma necessidade básica para que ele seja orientado à universalidade suficiente. Surge com Hegel a ideia de natureza formal da formação, a qual repousa no ideal de elevação à universalidade.

“No conceito de uma elevação à universalidade Hegel consegue reunir o que sua época compreendia por formação” (GADAMER 2007, p. 47). A perspectiva idealista hegeliana apresentava um ideal formativo no qual a universalidade não se confundia com a ideia de formação teórica, nem mesmo com a simples oposição entre fundamentação teórica e comportamentos práticos, mas como tematização da essência geral da natureza humana, que para Hegel só tem sentido quando acontece um rompimento com o particular e imediato e ruma em direção à universalidade. A perspectiva formativa hegeliana consiste, portanto, em “reconhecer no estranho o que é próprio, familiarizar-se com ele eis o movimento fundamental do espírito, cujo ser é apenas o retorno a si mesmo a partir do ser-outro” (GADAMER, 1997, p. 50). Esse processo dialético incide na ideia de uma atividade ou trabalho que parte de si mesmo e extrai de si mesmo o que é em si mesmo. Dessa forma, o alheamento pretendido por Hegel no movimento que

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deve ser feito pelo espírito não é o que compõe a essência da formação, mas, sim, o retorno a si mesmo, que requer naturalmente o alheamento.

Essa problemática ajuda-nos a nos localizarmos dentro do pretendido com o presente trabalho. A retomada da perspectiva hegeliana em relação ao conceito de Bildung nos põe em contato com o processo histórico-crítico desse conceito, e consequentemente com as pretensões científico-naturais subjacentes às ciências do espírito. Nesse sentido, conforme Gadamer, a resposta de Hegel não poderá nos satisfazer, pois para Hegel, a formação como movimento de alheamento e apropriação se realiza num total apoderamento da substância, na dissolução de toda essência objetiva, o que só se alcança no saber absoluto da filosofia (1997, p. 50).

Repensar o conceito de Bildung para além da perspectiva hegeliana e poder contribuir com os problemas levantados contemporaneamente em torno da formação docente significa para nós, no contexto da pesquisa, retomar a ideia gadameriana de que o conceito de Bildung não pode acompanhar apenas a ideia hegeliana de que todo saber objetivo se dissolve em saber absoluto. É preciso um rompimento com a “estreiteza artificial que comprime a metodologia do século XIX: o conceito moderno de ciência e o conceito de método a ela subordinado não são suficientes” (GADAMER, 1997, p. 54). Certamente, a ideia básica do movimento do espírito na formação deve permanecer justificando a necessidade do reconhecimento do estranho no que lhe é particular, na perspectiva de torná-lo familiar. Contudo, na perspectiva hermenêutica o sujeito não é mais o elemento absolutizado; ao se afastar de si, o sujeito agora deve se apropriar do sentido do mundo e voltar a si mesmo a partir do outro. É nesse sentido que, segundo Hermann, a ideia de formação na perspectiva hermenêutica pode contribuir para superar a profunda cisão entre mundo

o moderno e o “eu”, com seus problemas de incomunicabilidade e perda de força vinculante, porque a compreensão pode tanto fundamentar o distanciamento do “eu”, da singularidade, que vivencia as emoções, pulsões, quanto criar as condições reflexivas para a produção de um mundo comum, que não seja apenas um modo de o sujeito sobreviver, mas que tenha sentido, que estabeleça vínculos entre o mundo e o “eu” (2002, p. 100).

Por esse caminho buscaremos, via hermenêutica, justificar a ideia de formação na tensão constante entre a estranheza e a familiaridade como dimensões necessárias à constituição de sentidos, iniciativa que requer a superação de um “eu” determinador. Dessa forma, “a possibilidade compreensiva da hermenêutica permite que a educação, como processo formativo, vincule o ‘eu’ e o mundo, de forma a dar sentido àquilo que não vem só de nós mesmos” (HERMANN, 2002, p. 102). A perspectiva da alteridade alerta-nos, portanto, para o infinito universo cultural que nos rodeia, para o outro como pessoa, como formas de enriquecimento de nossa interioridade. Nesse sentido, a formação enquanto Bildung surge como “uma abertura para o reconhecimento da alteridade, fazendo com que sejamos capazes de dar sentido àquilo que vem de fora de nós, o que significa compreender o outro e o saber cultural” (HERMANN, 2002, p. 102).

A retomada do conceito de Bildung segundo o que nos propõe a hermenêutica gadameriana apresenta-nos a necessidade de investigação desse conceito na perspectiva hegeliana, a compreensão de seus limites e consequentemente, a reposição da pergunta pelo sentido de Bildung no contexto hermenêutico como superação do método das ciências da natureza e das pretensões absolutizadas de um sujeito dominador. Esse movimento crítico proposto pela hermenêutica nos apresenta a ideia de Bildung como formação cultural possível a partir de um

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movimento que reconheça eticamente o outro. Acontece, via hermenêutica, o esforço de superação de algo próprio da condição moderna: a estaticidade metodológico-científica de pretensões dominadoras. Nesse sentido, a formação entendida com Bildung na perspectiva hermenêutica procura também retirar da formação as pretensões instrumentais e técnico-científicas nas quais educação e formação coincidem com a ideia de instrução. As pretensões gadamerianas de recolocar a razão em suas condições históricas e no movimento vivo da linguagem, de modo que a abertura para o diálogo com outro, com a tradição e produções culturais venham a favorecer a restituição da totalidade das experiências humanas, surgem como crítica ao mundo demasiadamente científico e às restrições e empobrecimentos que nascem desse contexto.

Teoria e Práxis: a contribuição hermenêutica gadameriana

É a posição crítica da hermenêutica à

tendência à cientifização que vai nos ajudar a questionar os ideais instrumentalizadores dos programas formativos educacionais contemporâneos. Dessa forma, tais questionamentos nos levam a considerar duas dimensões básicas dos processos formativos: a dimensão teórica e a dimensão prática. De que maneira a hermenêutica pode nos ajudar a repensar os conceitos de teoria e prática no contexto da formação docente? O que significa formação teórica na contemporaneidade? O que significa formação prática na modernidade? Que limites surgem a partir da dicotomia existente entre prática e teoria? Gadamer, ao tratar dos problemas relacionados à formação teórica e prática, parte da crítica à condição moderna, segundo a qual o prático nada mais é do que “aplicação da teoria e da ciência” (GADAMER, 1983, p. 58).

Separar teoria e prática a ponto de

torná-las independentes é o resultado do processo de racionalização extrema pelo qual passou o Ocidente. É nesse contexto que a investigação correta de tais conceitos em sua origem, e mesmo na pretensão grega, adquire forte acepção, pois ajuda-nos a superar a forte cisão entre o teórico e o prático, que, por sua vez, apresenta-se como um problema central quando se pretende refletir sobre o sentido de formação no mundo contemporâneo.

Segundo Gadamer, nossa condição contemporânea justifica a ideia de ciência não mais como soma do saber e daquilo que é digno de ser sabido, como pretendeu os gregos, mas como um caminho para avançar e penetrar num âmbito ainda não investigado e, portanto, ainda não dominado. Nesse contexto a teoria viu-se convertida num conceito instrumental dentro da investigação da verdade e da aquisição de novos conhecimentos, e a prática confundiu-se com aplicação técnico-fabril (1983, p. 41). Retomar o sentido de Bildung na perspectiva hermenêutica requer, entre outros desafios, romper com esse ideal dicotômico entre teoria e prática, pondo-nos para além de uma pedagogia instrumental. Nessa perspectiva, o sentido de Bildung contribui com os debates atuais sobre formação de professores ao possibilitar a autoformação, ou formação reflexiva, tema atualmente em destaque no cenário educacional. Tal contribuição, ao partir do sentido clássico hegeliano de Bildung, e do mergulho no universo hermenêutico gadameriano, possibilita-nos repensar a formação docente no contemporâneo na perspectiva da superação de tendências instrumentalizadoras que legitimam a dicotomia entre formação prática e formação teórica.

Dessa forma vemo-nos desafiados, ao pensar a formação docente, a superar o ideal de construção, que se encontrava já no conceito de ciência da mecânica, e que se converteu num monstruoso prolongamento do braço humano, que é o que possibilitou nossas máquinas, nossa reelaboração da

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natureza e nosso lançamento no espaço (Gadamer, 1983). Faz-se necessário a superação de processos formativos puramente técnicos, centrado na figura do especialista “figura imprescindível para o domínio técnico dos processos” (Gadamer, p.44, 1983). Assim, teoria e práxis devem ser pensadas conjuntamente, por que como nos diz Gadamer “práxis significa melhor realização de vida” (p. 59, 1983); ou mesmo forma de comportamentos dos seres vivos, e não apenas aplicação da teoria da ciência.

REFERÊNCIAS GADAMER, Hans-Georg. A Razão na época da Ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempos Brasileiro, 1983. _______. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. _______. Verdade e Método: Complemento e índices. Trad. Ênio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002. GOERGEN, P. Sociedades complexas e formação de professores. Campinas-SP: Mimeo, pg. 1 – 17, 2009. HERMANN, N. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. NÓVOA, A. O passado e o presente dos professores. In. Nóvoa, A. (Org.). Profissão Professor. Trad. Irene Lima Mendes, Regina Correia, Luisa Santos Gil. 2 ed. Porto: Porto Editora, 1995. TREVISAN, A. L. Do Dever Ser ao Fazer do Professor: Um caminho de volta? Santa Maria-RS: Mimeo, pg. 1-14, 2009.