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8/7/2019 som_no_cinema http://slidepdf.com/reader/full/somnocinema 1/7  A TRILHA SONORA NO CINEMA BREVE HISTÓRICO  por Filipe Salles* Home-page pessoal  I- OS PRIMÓRDIOS  O cinema nunca foi "totalmente" mudo. Só não tinha fala. Som, sempre teve. É quase que instintivo, natural, do homem associar som à imagens e vice-versa. No cinema, só imagem ou só som causavam estranhamento, e assim como hoje, causa-nos desconforto assistir a uma projeção muda, a não que seja pelo interesse histórico. Acompanhar imagens sem música é incômodo, mas, que fique claro, isso não se justifica pelo costume que hoje temos em assistir filmes sonoros, televisão ou teatro; já na tragédia grega, o desenrolar da narrativa dramática não se dava sem acompanhamento de ditirambos e intervenções de um coro cantado (sobre a tragédia, consultar Aristóteles, Poética ), assim como no teatro clássico e até o atual, seria inconcebível imagem sem som em produções normais. O mesmo ocorreu no cinema, desde sua criação pelos irmãos Lumière em 1895. O fato é que o som no cinema sempre foi importante, enfatizando, criando ou até redundando climas narrativos na imagem. No cinema mudo, havia um pianista nas salas de concerto encarregado de criar estes climas nas cenas, improvisando sobre um repertório próprio conforme sentia as imagens, e que geralmente cumpriam uma função meramente ilustrativa. Nas salas mais afortunadas podíamos até encontrar orquestras inteiras tocando, muitas vezes com partituras originais para o filme.    Acima: O Sistema VITAPHONE, um projetor com uma vitrola acoplada   Mas então veio o sistema de sonorização no cinema, o famoso VITAPHONE, uma enorme e desajeitada máquina de projeção lançada em 1927 (que imortalizou o filme The Jazz Singer , com Al Jolson) que sincronizava o filme a um disco de 78 rotações, um pouco melhor que aquele usado no fonógrafo de Edison. Suas inconveniências eram grandes, a baixa qualidade da amplificação da época, o chiado do disco e a eminente possibilidade do disco riscar com o tempo e tirar o filme de sincronismo. Mas foi um sistema pioneiro que, prescindindo do músico in presentia, fez com que toda a conquista dos músicos até aquele momento precisasse recuar aos primórdios do som para o cinema, repensar a função dramática do som, que agora poderia incluir não só música, mas também diálogos e ruídos. A simples "ilustração" musical redundante passou a ser vista como um terreno promissor de possibilidades. Técnicos surgiram; os que já trabalhavam tiveram que reaprender, de acordo com os novos padrões estéticos, o som. No que diz respeito à trilha sonora propriamente dita, ou àquilo que chamamos "música para o cinema", o processo foi dos mais interessantes, que merece ser analisado detalhadamente.   À esquerda: Cartaz do primeiro filme sonoro lançado comercialmente, "O Cantor de Jazz" (1927)    

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 A TRILHA SONORA NO CINEMA BREVE HISTÓRICO 

por Filipe Salles* Home-page pessoal  

I- OS PRIMÓRDIOS O cinema nunca foi "totalmente" mudo. Só não tinha fala. Som, sempre teve. É quase que instintivo, natural,do homem associar som à imagens e vice-versa. No cinema, só imagem ou só som causavamestranhamento, e assim como hoje, causa-nos desconforto assistir a uma projeção muda, a não que sejapelo interesse histórico. Acompanhar imagens sem música é incômodo, mas, que fique claro, isso não sejustifica pelo costume que hoje temos em assistir filmes sonoros, televisão ou teatro; já na tragédia grega, odesenrolar da narrativa dramática não se dava sem acompanhamento de ditirambos e intervenções de umcoro cantado (sobre a tragédia, consultar Aristóteles, Poética ), assim como no teatro clássico e até o atual,seria inconcebível imagem sem som em produções normais. O mesmo ocorreu no cinema, desde suacriação pelos irmãos Lumière em 1895. O fato é que o som no cinema sempre foi importante, enfatizando,criando ou até redundando climas narrativos na imagem. No cinema mudo, havia um pianista nas salas deconcerto encarregado de criar estes climas nas cenas, improvisando sobre um repertório próprio conformesentia as imagens, e que geralmente cumpriam uma função meramente ilustrativa. Nas salas maisafortunadas podíamos até encontrar orquestras inteiras tocando, muitas vezes com partituras originais parao filme. 

  

Acima: O Sistema VITAPHONE, um projetor com uma vitrola acoplada  

 

Mas então veio o sistema de sonorização no cinema, ofamoso VITAPHONE, uma enorme e desajeitada máquinade projeção lançada em 1927 (que imortalizou o filme The Jazz Singer , com Al Jolson) que sincronizava o filme a umdisco de 78 rotações, um pouco melhor que aquele usadono fonógrafo de Edison. Suas inconveniências eramgrandes, a baixa qualidade da amplificação da época, ochiado do disco e a eminente possibilidade do disco riscar

com o tempo e tirar o filme de sincronismo. Mas foi umsistema pioneiro que, prescindindo do músico inpresentia, fez com que toda a conquista dos músicos atéaquele momento precisasse recuar aos primórdios dosom para o cinema, repensar a função dramática do som,que agora poderia incluir não só música, mas tambémdiálogos e ruídos. A simples "ilustração" musicalredundante passou a ser vista como um terreno promissorde possibilidades. Técnicos surgiram; os que játrabalhavam tiveram que reaprender, de acordo com osnovos padrões estéticos, o som. No que diz respeito àtrilha sonora propriamente dita, ou àquilo que chamamos"música para o cinema", o processo foi dos mais

interessantes, que merece ser analisado detalhadamente.  À esquerda: Cartaz do primeiro filme sonoro lançado comercialmente, "O Cantor de Jazz" (1927) 

 

 

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  II- A MÚSICA No séc. XIX, a música tinha duas vertentes, apontadas pelos críticos mais envolvidos: A absoluta e aprogramática. A primeira seria toda a música feita "por ela mesma", ou seja, sem nenhuma base literária,teatral, ou qualquer outra; tratava-se de música que não dependia de nenhum outro fator de apreciaçãosenão a própria narrativa musical, sustentada por formas coerentes de arquitetura sólida, como por exemploa forma-sonata, o rondó, a fuga, etc... (sobre formas musicais, consultar Roy Bennett, Forma e estrutura da Música , Jorge Zahar Editores, RJ). É o caso das sinfonias de Brahms ou Bruckner, por exemplo. A músicaabsoluta descendia da mais fiel tradição européia, que podia ser resumida na figura de Bach. Mas músicaprogramática é um conceito tipicamente romântico, cuja essência, principalmente da metade do séc.XIX emdiante, reside no poema sinfônico e na sinfonia descritiva, gêneros nos quais a música apoia-se emelementos extra-musicais. Este tipo de música tem suas raízes na própria música absoluta, cujos exemplospodem vir desde As Quatro Estações de Vivaldi até a Sexta Sinfonia de Beethoven, a Pastoral . Em outraspalavras, em seu início a música descritiva se valia da arquitetura das formas absolutas, mas conduzindouma narrativa que permitia interpretações fora da própria música. Mas como a inspiração era geralmente a

natureza, não havia ainda uma "narrativa", no sentido de se contar uma história. 

 Acima: O compositor francês 

Hector Berlioz  

A primeira inclusão da forma sinfônica numa "narrativa", no sentidodramático mesmo, foi a Sinfonia Fantástica do francês Hector Berlioz(1803-1869), considerado por muitos como o primeiro exemploconcreto de sinfonia descritiva, pois ele se baseou nada menos quenum sonho, em que vive um personagem idílico tipicamente romântico(descrito no primeiro movimento, Rêveries et Passions ), que seapaixona por uma jovem num baile (segundo movimento, Un Bal ),enamoram-se, e deliram tomando ópio. Tomado pela droga, Berliozsonha que a mata (terceiro movimento, Scène aux Champs ), écondenado ao cadafalso (quarto movimento, Marche au Supplice ),decapitado e enterrado. No túmulo, sua amada convoca toda a sortede bruxas e fantasmas para atormentá-lo, culminando numa verdadeiraorgia sobrenatural (descrita no quinto e último movimento, Songe d'une nuit du Sabbat). 

 A idéia, fascinante por si só, foi musicalmente um marco da vanguarda de seu tempo, aumentando otamanho da orquestra (Berlioz é considerado o pai da orquestração moderna) e incluindo elementospuramente narrativos, como sinos, influenciando praticamente toda a geração musical seguinte, ainda quetenha sido considerada pela crítica de sua época como um atentado ao bom gosto.  Muitos outros compositores então seguiram o caminho da música programática, baseando-se nas mais

diversas fontes, de Dante, Shakespeare a Nietzsche e Byron. Hoje a distinção entre a música absoluta e a

 

 

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 programática é apenas para fins didáticos, não se discute mais, como antes, o valor de uma sobre a outra,já que, com o advento da psicologia e da psicoacústica, sabe-se que todos os tipos de música causamefeitos nos sentidos de maneira similar, variando apenas a forma de manifestação destes sentimentos. Emoutras palavras, é possível achar narrativa numa sinfonia de Brahms, assim como é possível ouvir uma obradescritiva sem saber do que se trata a história narrada. O suporte musical é soberano e certas leis inerentesà sua arte devem ser respeitadas em ambos os casos. Assim, coube a Franz Liszt (1811-1886) criar, a partir

de Berlioz, o Poema Sinfônico, gênero cuja estrutura musical é aparentemente mais "livre", mas que, numaanálise pormenorizada, revela-se tão rígido quanto a música absoluta, pois deve-se considerar que acondução das idéias musicais não são regidas pelos princípios de harmonia, variação temática e linhamelódica que caracteriza a narrativa de uma obra absoluta, mas sim regidas pela estrutura da idéia extra-musical escolhida. 

Exemplo disso é a Sinfonia Dante , de Liszt, cujos trêsmovimentos descrevem emocionalmente as impresões doInferno, Purgatório e Paraíso, respectivamente. A simetria entreas seções é condicionada pela narrativa, e que, no caso doPoema Sinfônico, geralmente se resumiam em um sómovimento, curto, dando origem a uma outra tradição paralelaà música absoluta. O poema sinfônico foi o grande responsável

por uma crescente liberdade na expressão sinfônica que sóchegará à sinfonia tradicional com Gustav Mahler (1860-1911).Mas, antes disso, inúmeros compositores dedicaram-se ao livregênero do poema sinfônico, como, além de Liszt, tambémCamille Saint-Säens (Dança Macabra , sobre Henry Cazalis),Smetana (O moldávia , baseado em um rio de sua terra natal),Grieg, Korsakov, Piotr Tchaikovsky (1840-1893) (Romeu e Julieta , sobre Shakespeare), e, principalmente, Richard Strauss(1864-1949) (Macbeth , sobre Shakespeare, Don Quixote , sobreCervantes e Assim falou Zarathustra , sobre Nietzsche, entreoutros). 

 Acima: Caricatura crítica fazendo 

referência "às suaves harmonias da música moderna", o poema sinfônico  

Todos eles levaram a música sinfônica a uma inevitável associação de imagens, construindo umaverdadeira escola, iniciando uma tradição tão espessa quanto a música tradicional, por unir a literatura àmúsica, algo que fascinou toda a geração de jovens artistas da metade do séc.XIX em diante. Debussychegou a comentar, já no início deste século, que Richard Strauss era uma compositor cinematográfico, porser sua obra uma infinita fonte de imaginação cinemática, gerando uma cadeia de imagens estimuladaspelo som da grande orquestra. E, claro, a pedra de arremate desta grande influência de associação entreidéias musicais e extra-musicais, que até hoje exerce influência sobre as produções de cinema e TV:Richard Wagner (1813-1883), cujos dramas musicais (Lohengrin, O Navio Fantasma, Tannhauser, Tristão e Isolda, Os Mestres Cantores, Parsifal e o ciclo do Anel dos Nibelungos , só para citar os mais importantes)guiavam-se narrativamente pelo leitmotiv , o motivo condutor derivado da idéia-fixa das sinfoniasprogramáticas de Berlioz, onde um tema musical caracteriza determinada ação ou personagem. Até hoje as

novelas de televisão seguem este princípio. III- A MÚSICA ENCONTRA O CINEMA Se, entre 1900 e 1910 Mahler une a tradição sinfônica à esta associação de imagens, entre 1915 e 1920Arnold Schoenberg (1874-1951)acaba com ambas as coisas, criando o dodecafonismo, baseado noatonalismo. Cria então um conceito totalmente novo de imaginação musical. Harmonias dissonantes,acordes sem hierarquia tonal, estrutura formal sutil e sem aparente relevância, enfim, sons estranhos. Asimagens formadas pareciam sempre desoladoras. Contudo, a saturação da música européia, em especialalemã, chamou os compositores mais ativos, a vanguarda, para este novo e inexplorado campo, queparecia ser promissor, na medida em que era inédito na história da música. Mas nem todos os compositoresgostaram dos ares modernos da música atonal. Preferiram ficar no campo tradicional, em plenos anos 30,escrevendo sinfonias e concertos. Apenas os antigos mestres, já consagrados, como Rachmaninov,Sibelius, Shostakovich e Stravinsky conseguiam manter seu repertório tradicional em composições novas.

 

 

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 Então, toda uma geração de compositores dos anos 10 e 20 simplesmente não sabiam o que fazer.Explorar os rumos apontados por Schoenberg e seus discípulos ou continuar escrevendo música"ultrapassada"? Não era só o fato de ser ultrapassada, mas também por força do comércio fonográfico, emque a música popular se desenvolveu de forma a deixar elitizado o consumo da música erudita, mas estesconsumidores ou preferiam uma sinfonia de Beethoven ou uma estranhíssima peça de Webern. Haviam osconservadores que olhavam para trás e os modernos que estavam nas vanguardas. Não havia público,

portanto, para conservadores em época de modernos. Muitos não tinham mais saída senão deixar decompor, quando, finalmente, inventaram o som no cinema. O que aconteceu com os compositores quetrabalhavam numa linha conservadora, preservando a sinfonia e o poema sinfônico tradicional em suasobras? Foram todos para o cinema. Toda a tradição de música programática, por ser mais propícia,desembocou na trilha sonora cinematográfica. O cinema por sua vez tinha, ao descobrir o sincronismo entre som e imagem, a capacidade de exibir filmessem orquestra ou pianistas; o próprio projetor teria condições para reproduzir a imagem e o som, a princípiopelo vitaphone, mas que depois foi aperfeiçoado pelo sistema Movietone, que imprimia o som na própriapelícula, acabando com o problema do chiado e falha no sincronismo. Mas, como em toda inovação, nãoforam poucos os problemas que o som trouxe ao cinema. O principal talvez tenha sido o de ordem estética:O que fazer com o som? Onde ele pode ajudar na narrativa? Até onde ele é apenas mais um elementodecorativo, como a cenografia? Tudo isso foi respondido na prática. Uma lenta evolução levou o cinema a

encontrar uma forma ideal de utilizar o som de maneira apropriada à sua linguagem. Assim, começou-se a utilizar o som de duas maneiras: Como elemento climático e como foco da ação (osmusicais). Os primeiros são justamente os que darão emprego aos compositores eruditos, e os segundossão aqueles em que a música conduz a narrativa, ou está subordinada à música. Os musicaiscinematográficos, famosos na década de 50, podem ser comparados a ópera, cuja ação também sedesenrola em função da música. Aliás, a derivação mais popular da ópera, a opereta, irá ter uma grandeinfluência na própria composição das músicas e na concepção geral do argumento destes musicais. Mas ooutro caso é particularmente mais interessante, pois é nele que o cinema encontrar as bases da utilizaçãodo som para formar o ambiente.  

IV- DE CHAPLIN A EISENSTEIN Charlie Chaplin foi o primeiro que, ainda no cinema mudo, se preocupou com a música certa para a açãocorrente, compondo ele mesmo partituras para acompanhar seus filmes. Eram um tanto pobres, exigiam dopianista do cinema uma dose de variações temáticas, mas funcionavam na medida em que seus filmestambém não eram complexos. 

 

 

Sob este aspecto, Serguei Eisenstein teria que se preocuparbem mais, como realmente o fez, pois uma vez que seusfilmes trabalhavam numa teoria complexa de montagemdramática, a música deveria responder de maneiraequivalente, e já não cabia a filmes como Alexander Nevsky ,

Outubro ou Ivan o Terrível a incumbência de um repertóriode pianistas de bar. Por isso, Eisenstein encomendou trilhasoriginais para seus filmes a compositores consagrados,Prokofiev e Shostakovich. Imagine-se então, antes dainvenção do movietone, os problemas que umempreendimento deste tipo causaria, pois por ser um filmemudo, precisaria da orquestra inteira em cada sessão.Afinal, nestes casos arranjos para piano empobreceriamdemais o impacto da música e da imagem. Pode-se dizer,portanto, que o advento do som ao filme foi crucial para odesenvolvimento da narrativa cinematográfica (para maioresdetalhes sobre esta passagem, consultar Eisenstein, O Sentido do Filme e A Forma do Filme , Jorge Zahar, RJ). 

 

 

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 Acima: Esboços de Sergei Eisenstein para seu épico Alexander Nevsky, comparado às 

imagens do filme   V- FANTASIA Entretanto, as geniais teorias de Eisenstein ficariam durante muito tempo relegadas a círculos intelectuaisfechados na Europa e pouco influenciaram a indústria americana, fazendo com que a trilha sonorapropriamente dita precisasse de dez anos a mais nos Estados Unidos até que se tomasse consciência deseu poder enfático na imagem. Durantes os anos que se seguiram ao Jazz Singer , o cinema americanocaminhou muito lentamente do ponto de vista musical, para alcançar a significação que é hoje inerente atodas as produções. "O que fazer com a música?", era o que, afinal, os produtores se perguntavam, pois namesma proporção em que antes só podiam contar com ela, agora, podendo incluir ruídos e diálogos,acabaram por deixá-la nos bastidores do som no cinema. Afora algumas produções mais ambiciosas, amúsica acabou sendo relegada novamente a um plano ilustrativo, pois seu uso caiu em detrimento dadescoberta dramática dos diálogos, que poderiam exaltar a interpretação do ator. A música nesta faseservia mais para tapar buracos sem diálogos do que propriamente construir um clima e enfatizar a situaçãodramática. Usava-se música de compositores conhecidos, de Schumann, Chopin, Tchaikovsky eJohannStrauss Jr., para dar apenas uma ilustração audiovisual. A grande guinada pós-Eisenstein (que já haviateorizado minuciosamente sobre a questão do som sobre a imagem) foi dada nada menos que pelaprodução de Walt Disney de 1939, Fantasia . No mesmo ano em que Orson Welles trabalhava no seu Cidadão Kane , e que iria da mesma forma revolucionar a narrativa do cinema americano, Fantasia  complementa a vanguarda mostrando a todos a imensa capacidade significante da música, fazendo, talvezpela primeira vez no cinema, com que a ação dos personagens animados no desenho seja subordinada ànarrativa da música. Em outras palavras, o roteiro de Fantasia é a própria música. Embora isso já desponte, ainda que de forma apenasconseqüente, nas teorias de Eisenstein, é em Fantasia que esteaspecto da música fica evidenciado, pois no filme Disney se utilizade música absoluta (a Toccata e Fuga em ré menor de Bach, a

Ave Maria de Schubert), música puramente descritiva (O Aprendiz de Feiticeiro , de Paul Dukas, a Noite no Monte Calvo deMussorgsky) e música para balé (O Quebra-Nozes deTchaikovsky, A Sagração da Primavera de Stravinsky e a Dança das Horas de Ponchielli), que, embora conte uma história, umanarrativa coreográfica, teve seus argumentos modificadoslivremente, traduzindo outros aspectos da música que, emboraextremamente compatíveis com ela, não faziam parte, até então,da gama de significados possíveis para estas músicas. A equipede Disney ampliou a significação de formas já existentes, tendoseu exemplo de maior maestria a versão da Sinfonia Pastoral deBeethoven, episódio em Fantasia que encontra, numa sinfoniaque se propõe unicamente a traduzir sentimentos da vida no

campo, uma linha narrativa perfeitamente harmônica com oespírito da obra, passando a vida rural da Áustria do início doséculo XIX para a Grécia mitológica atemporal. E ninguém podedizer que Beethoven não está lá, ainda que considerando oscortes feitos na música por Leopold Stokowski. 

 Acima: Cartaz original por ocasião de 

lançamento de Fantasia   VI- O CINEMA ENCONTRA A MÚSICA  O impacto de Fantasia , em termos de público, foi um fracasso. Mas nenhum criador da área cinematográficaficou alheio ao que viu. O primeiro som estereofônico (ainda que simulado), gravado com a maior tecnologiadisponível, criou um efeito tão extraordinário que os produtores começaram a repensar o som,acrescentando a música como elemento primordial. Tanto que durante os 20 anos seguintes, quase todasas grandes produções se utilizaram de compositores de formação erudita, a maioria europeus. Haviam duas

necessidades: O cinema explorar a música e os músicos explorarem o cinema. O que se tornou a música

 

 

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erudita nos anos 30 estava longe de ser absorvido pelo grande público, levando compositores de teatro eopereta a tentarem a sorte no cinema. Indo de encontro ao que os produtores queriam, foram recebidos debraços abertos nos estúdios, e, por essa razão, os primeiros grandes autores de trilhas são europeus: Atradição da música sinfônica era um elemento de peso, e sem dúvida eles sabiam construir climas, como ocinema queria. 

O primeiro dos mestres de um grande time é Max Steiner (1888-1971). Começou com a trilha sonora de umclássico dos filmes B: King Kong , de 1933. Seu trabalho foi tão bem apreciado que logo em seguidacomeçou a ser um dos mais cogitados compositores do cinema. Escreveu, entre outros, ...E o vento levou,Jezebel e Casablanca , para citar os mais famosos. O fato é que este tipo de trilha ainda eram poemassinfônicos pós-românticos que pareciam na maioria das vezes mais eloqüentes que o próprio filme. Tinhamuma tradição européia muito profunda, que, se serviam para épicos ou romances, eram grandiloqüentesdemais para gângsters ou filmes noir. Mas a coisa funcionava em ambiente europeu. Outro grande compositor, de quem na infância Richard Strauss elogiou, Erich Korngold (1897-1957) eraaustríaco e não se dedicou apenas ao cinema. É autor de óperas, sinfonias, quartetos, e também derespeitáveis trilhas como Captain Blood, The Sea Hawk, Adventures of Robin Hood, Devotion , etc.. ComoSteiner, que era compositor de operetas na Áustria, Korngold veio para Hollywood levando toda umabagagem de tradição européia que serviu não só para mostrar o que a música incidental era capaz de fazer

como aprimorar as técnicas musicais sobre os gêneros que o cinema explora. O que escrever para umdrama, uma comédia ou um policial? E um western? Compositores europeus não sabem o que é umwestern. Era preciso criar uma geração de músicos americanos para suprir este tipo de necessidade, o quêautêntico do país produtor do filme. Esta "nova geração típica" irá surgir apenas no final dos anos 40,concomitante com a hegemonia dos europeus. Victor Young (1900-1956), Alfred Newmann, Elmer eLeonard Bernstein, e Bernard Herrmann (1911-1975), um dos mais bem-aventurados compositores detrilhas do cinema. Mas mesmo tendo, por exemplo, Elmer Bernstein em westerns, Herrmann em Hitchcockse Newmann em romances, os épicos continuaram muito a dever para europeus, justamente por terem umaexperiência sinfônica muito mais refinada. Miklos Rozsa (1907), húngaro, foi um destes casos, decompetência musical que o levaram a glória da trilha para Ben-Hur de Wyler. Mesmo Victor Young, queassinou a trilha de Sanson and Delilah , Around the world in 80 days e Greatest Show on Earth , estudou noconservatório de Varsóvia antes de começar a compor para cinema.  

VII- EVOLUÇÃO  Assim, aos poucos, a trilha sonora começou a ganhar forma. A trilha dos anos 40 era extremamenteeloqüente, digna de poemas sinfônicos à la Richard Strauss, de caráter naturalmente épico. O final dadécada 40 caracterizou o domínio da trilha em função do gênero. Os filmes noir , os suspenses e osromances são ambientados musicalmente de formas mais sutis. Nos anos 50, esta sutileza chega aoextremo: Algumas trilhas encaixam tão bem no espírito de um filme que o diretor "adota" o compositoroficialmente em todas as suas produções. Esta prática já era natural para o cinema europeu, mas que osamericanos só perceberam quando abriram espaço para filmes de autor. Então caminham lado a lado, ahistória e a música. É o caso de Nino Rota com Fellini, Herrmann com Hitchcock, John Williams comSpielberg, e, mais recentemente, Michael Nyman com Peter Greenaway. Nestes casos o clima ésubstancialmente bem construído, pois o diretor já sabe como trabalha o compositor antes mesmo dapartitura estar completa.

 Os anos 60 trazem a música popular como trilha sonora, o que nunca havia acontecido antes. Poderiamhaver canções compostas para o filme, mas sempre o clima era destacado por uma partitura orquestral. Osanos 60 desmontam esta praxe, colocando a música orquestral apenas em determinadas funçõessubjacentes, e então começa o reinado dos compositores "populares", ou aqueles que criam tanto formasorquestrais para alguns momentos como também suaves e cativantes melodias, que, a exemplo da ópera,nos fazem sair do cinema cantarolando o tema. É o caso de Burt Bacharach, Lalo Schifrin e Henry Mancini. Aos poucos as canções foram tomando o lugar da música sinfônica, e nos anos 70 explodiu com musicaiscomo Hair, Jesus Christ Superstar , descendentes de West Side Story , mas com a música pop e o rock'n rollpontuando a ação do filme. Os anos 70 e 80 praticamente exploraram toda a vertente pop da música, atécomo clima subjacente, devolvendo, no final dos 80, com filmes como Amadeus e ET , a partitura orquestralà narrativa do cinema, concomitante à música pop e à canção-tema do filme. Assim, ambas coexistem em

muitas produções, mas cuja necessidade estética varia de filme para filme.

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 Sobre esta questão, a estética do filme, os artigos escritos pelo compositor Mauro Giorgetti para Mnemocinedarão maiores elementos práticos para a elaboração de uma trilha sonora.  Alguns compositores e suas trilhas: -Sergei Prokofiev - "Alexander Nevsky" (Eisenstein)

-Dmitri Shostakovich - "Outubro" (Eisenstein)-Vaughan Williams - "Scott of the Antarctic"-Georges Auric - "La Belle e la fere" / "Sang d'un poet" (Cocteau)-William Walton - "Henry V" / "Hamlet" / "Richard III" (Olivier)-Erich Korngold - "The Sea Hawk" / "The Adventures of Robin Hood"-Max Steiner - "Gone with the Wind" / "King Kong" / "Casablanca" / "Jezebel"-Miklos Rozsa - "Ben-Hur" / "Spellbound"-Bernard Herrmann - "Citizen Kane" / "Vertigo" / "Psycho" / "Fahrenheit 451" / "Taxi Driver"-Ennio Morricone - "Once upon a time in the west" / "The Mission" / "Cinema Paradiso" / "The Untouchables"-Nino Rota - "Amacord" / "La dolce Vita"-Victor Young - "Johnny Guitar" / "Shane"-Dmitri Tiomkin - "The Alamo" / "High Soon"-Elmer Bernstein - "The Magnificent Seven" / "True Grit"

-Leonard Bernstein - "West Side Story" / "On the Waterfront"-Henry Mancini - "Touch of Evil" / "The Pink Panther"-Maurice Jarre - "Doctor Jhivago"-John Williams - "ET" / "Star Wars" / "Raiders of The Lost Ark" / "Empire of the Sun" / "Superman"-James Horner - "Star Trek II" / "Krull" / "Willow"-Jerry Goldsmith - "Star Trek - The Motion Picture"-Vangelis - "Chariots of Fire" / "Blade Runner" copyright©2000 Filipe Salles   *Filipe Salles é fotógrafo, cineasta e músico; é professor de fotografia na FAAP e mestre em Comunicação eSemiótica na PUC/SP.