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Súmula 611-STJ – Márcio André Lopes Cavalcante | 1 Súmula 611-STJ Márcio André Lopes Cavalcante DIREITO ADMINISTRATIVO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR Possibilidade de instauração de PAD com base em denúncia anônima Súmula 611-STJ: Desde que devidamente motivada e com amparo em investigação ou sindicância, é permitida a instauração de processo administrativo disciplinar com base em denúncia anônima, em face do poder-dever de autotutela imposto à Administração. STJ. 1ª Seção. Aprovada em 09/05/2018, DJe 14/05/2018. O que é a chamada "denúncia anônima"? Denúncia anônima ocorre quando alguém, sem se identificar, relata para as autoridades que determinada pessoa praticou uma infração, um ilícito. Essa “denúncia anônima” pode relatar a ocorrência de crimes e/ou de infrações administrativas. Ex1: uma pessoa liga para a polícia e avisa que em determinado local está ocorrendo o comércio ilegal de drogas (denúncia anônima de um crime). Ex2: uma pessoa envia mensagem para a ouvidoria do órgão público, sem se identificar, relatando que o servidor João não trata os usuários do serviço com urbanidade e gentileza (trata-se de uma denúncia anônima envolvendo a prática de uma infração administrativa). Ex3: um indivíduo envia mensagem para a corregedoria do Fisco, sem se identificar, narrando um episódio no qual o Fiscal exigiu vantagem ilícita para não fazer o lançamento tributário (neste caso, teremos uma denúncia anônima revelando uma infração administrativa que também configura crime). É possível instaurar processo administrativo disciplinar com base em “denúncia anônima”? SIM, mas a jurisprudência afirma que, antes, a autoridade deverá realizar uma investigação preliminar ou sindicância para averiguar o conteúdo e confirmar se a “denúncia anônima” possui um mínimo de plausibilidade. Anonimato x Princípios da administração pública A Constituição Federal assegura a livre manifestação do pensamento, mas proíbe o anonimato (art. 5º, IV). Por essa razão, algumas pessoas defendiam a ideia de que a denúncia anônima seria proibida. Os Tribunais Superiores, contudo, não concordaram com essa tese. Isso porque existem outros valores constitucionais que devem ser ponderados, ou seja, devem também ser levados em consideração, não se podendo ter essa regra do art. 5º, IV, como absoluta. O art. 37, caput, da CF/88 determina que a Administração Pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade. Dessa forma, tais princípios exigem que o administrador público, ao ser informado de uma possível infração administrativa, tome providências. Essas providências devem ser adotadas porque a Administração Pública está submetida ao poder-dever da autotutela. A autotutela obriga que o administrador público corrija, mesmo de ofício, atos ilegais que estejam sendo praticados no âmbito da administração pública. Logo, mesmo a informação tendo chegado sem identificação do remetente, o administrador público não pode ser omisso e ignorá-la, sob pena de ele (administrador) ser responsabilizado nas esferas civil (art. 37,

Súmula 611-STJ · Denúncia anônima ocorre quando alguém, sem se identificar, relata para as autoridades que determinada pessoa praticou uma infração, um ilícito. Essa ^denúncia

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Súmula 611-STJ Márcio André Lopes Cavalcante

DIREITO ADMINISTRATIVO

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR Possibilidade de instauração de PAD com base em denúncia anônima

Súmula 611-STJ: Desde que devidamente motivada e com amparo em investigação ou sindicância, é permitida a instauração de processo administrativo disciplinar com base em denúncia anônima, em face do poder-dever de autotutela imposto à Administração.

STJ. 1ª Seção. Aprovada em 09/05/2018, DJe 14/05/2018.

O que é a chamada "denúncia anônima"? Denúncia anônima ocorre quando alguém, sem se identificar, relata para as autoridades que determinada pessoa praticou uma infração, um ilícito. Essa “denúncia anônima” pode relatar a ocorrência de crimes e/ou de infrações administrativas. Ex1: uma pessoa liga para a polícia e avisa que em determinado local está ocorrendo o comércio ilegal de drogas (denúncia anônima de um crime). Ex2: uma pessoa envia mensagem para a ouvidoria do órgão público, sem se identificar, relatando que o servidor João não trata os usuários do serviço com urbanidade e gentileza (trata-se de uma denúncia anônima envolvendo a prática de uma infração administrativa). Ex3: um indivíduo envia mensagem para a corregedoria do Fisco, sem se identificar, narrando um episódio no qual o Fiscal exigiu vantagem ilícita para não fazer o lançamento tributário (neste caso, teremos uma denúncia anônima revelando uma infração administrativa que também configura crime). É possível instaurar processo administrativo disciplinar com base em “denúncia anônima”? SIM, mas a jurisprudência afirma que, antes, a autoridade deverá realizar uma investigação preliminar ou sindicância para averiguar o conteúdo e confirmar se a “denúncia anônima” possui um mínimo de plausibilidade. Anonimato x Princípios da administração pública A Constituição Federal assegura a livre manifestação do pensamento, mas proíbe o anonimato (art. 5º, IV). Por essa razão, algumas pessoas defendiam a ideia de que a denúncia anônima seria proibida. Os Tribunais Superiores, contudo, não concordaram com essa tese. Isso porque existem outros valores constitucionais que devem ser ponderados, ou seja, devem também ser levados em consideração, não se podendo ter essa regra do art. 5º, IV, como absoluta. O art. 37, caput, da CF/88 determina que a Administração Pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade. Dessa forma, tais princípios exigem que o administrador público, ao ser informado de uma possível infração administrativa, tome providências. Essas providências devem ser adotadas porque a Administração Pública está submetida ao poder-dever da autotutela. A autotutela obriga que o administrador público corrija, mesmo de ofício, atos ilegais que estejam sendo praticados no âmbito da administração pública. Logo, mesmo a informação tendo chegado sem identificação do remetente, o administrador público não pode ser omisso e ignorá-la, sob pena de ele (administrador) ser responsabilizado nas esferas civil (art. 37,

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§ 6º, da CF/88), penal (prevaricação – art. 319 do CP; condescendência criminosa – art. 320 do CP), administrativa (art. 117, XV, Lei nº 8.112/90 - proceder de forma desidiosa) e também por ato de improbidade (art. 11, II, Lei nº 8.429/92 - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício). Lei nº 8.112/90 Isso que foi explicado acima vale para todas as esferas da administração pública (União, Estados/DF e Municípios). No caso da União, contudo, é importante ressaltar que existe previsão expressa na Lei nº 8.112/90:

Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.

Desse modo, a Lei nº 8.112/90 prevê dois instrumentos para a apuração das infrações administrativas praticadas pelos servidores públicos federais: a) a sindicância e b) o processo administrativo disciplinar. Quando se instaura um ou o outro? • Sindicância: quando o administrador percebe que há a necessidade de que alguns fatos sejam esclarecidos antes, ou seja, quando ainda não há muitos elementos para se instaurar diretamente o processo. É uma espécie de investigação prévia. • PAD: deve ser instaurado quando a existência do fato está plenamente caracterizada e a autoria é conhecida. Como explica Ivan Barbosa Rigolin, existem situações que são tão graves e evidentes “que nem mesmo é preciso a sindicância para apontar a necessidade de processo disciplinar. Nessa hipótese, deve ser logo de início instaurado aquele processo, convocando-se todas as pessoas, bem como invocando-se todos os meios de provas necessários à boa condução do trabalho e à elucidação do fato apontado.” (Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 350). Denúncia anônima exige prévia sindicância ou investigação prévia O STJ afirmou que, no caso de denúncia anônima, não se deve instaurar imediatamente (diretamente) o processo administrativo disciplinar. Antes disso, por precaução e prudência, o administrador deverá realizar uma sindicância, ou seja, uma investigação prévia para examinar se essa denúncia anônima não é completamente infundada. Ex: chega à Administração Pública a denúncia anônima de que Pedro, fiscal do Município, teria recebido vantagem indevida para a emissão de alvará de funcionamento da empresa X. A informação que chegou foi apenas esta. O administrador público deverá instaurar para confirmar minimamente a procedência dos fatos. Durante essa investigação prévia, constata-se que Pedro nunca atuou neste processo. Logo, a sindicância será arquivada e não será instaurado processo administrativo disciplinar. Instauração do PAD, devidamente motivada e com amparo em investigação ou sindicância Por outro lado, suponhamos que, na sindicância que foi aberta para apurar a denúncia anônima, constata-se que Pedro atuou realmente como fiscal no pedido de alvará da empresa X e que ele não exigiu alguns documentos que seriam obrigatórios. Neste caso, constatando-se a existência de indícios de que houve a prática de uma infração administrativa grave, deverá a autoridade administrativa, de forma devidamente motivada, ou seja, expondo essas razões, instaurar processo administrativo disciplinar.

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Cuidado com a redação do art. 144 da Lei nº 8.112/90 O art. 144 da Lei nº 8.112/90 prevê o seguinte:

Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade. Parágrafo único. Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada, por falta de objeto.

Esse art. 144 era muito utilizado como tese de defesa para tentar invalidar os processos administrativos iniciados com base em denúncia anônima. O STJ, contudo, afasta esse argumento e afirma que:

(...) 3. Conquanto a Lei n. 8.112/1990, no art. 144, preveja a formulação por escrito, com identificação e endereço do denunciante, não há expressa determinação legal para que denúncias anônimas sejam ignoradas e simplesmente arquivadas, uma vez que a Administração dispõe do poder-dever de autotutela. (...) STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1126789/RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 06/08/2013.

Em suma, mesmo com o art. 144 da Lei nº 8.112/90, admite-se a denúncia anônima. Procedimento em caso de denúncia anônima: Assim, o procedimento em caso de denúncia anônima na Administração Pública deverá ser o seguinte: 1) Iniciar uma sindicância ou uma investigação preliminar (obs: a investigação preliminar na Administração Pública federal é chamada de sindicância, mas em outros entes pode não ter esse nome); 2) Arquivamento: quando na sindicância ou investigação ficar demonstrado que a denúncia anônima é completamente infundada e que não há qualquer indício da prática de infração administrativa; 3) Instauração de processo disciplinar: quando for constatada a existência de indícios de que houve a prática de uma infração administrativa. Para a instauração do PAD exige-se ato devidamente motivado. CGU Vale ressaltar que a CGU possui um enunciado administrativo semelhante ao entendimento do STJ:

Enunciado nº 3-CGU: A delação anônima é apta a deflagrar apuração preliminar no âmbito da Administração Pública, devendo ser colhidos outros elementos que a comprovem.