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SUPER-HUMANOS

“Kotler escreve principalmente sobre o fluxo nos esportes de alto risco

como o surfe – em que foco e concentração podem fazer a diferença

entre pegar um tubo radical e sofrer uma morte terrível –, mas o conceito

também pode ter uma enorme importância para o mundo dos negócios.”

– Fortune

“Bem-vindo ao futuro do potencial humano! Super-Humanos é um relato

irresistível e revolucionário sobre os segredos do máximo desempenho

humano – leitura obrigatória para qualquer um que esteja interessado em

elevar seriamente o nível de sua performance.”

– RAY KURZWEIL, diretor de engenharia do Google,

autor de Como criar uma mente e A era das máquinas espirituais

“Super-Humanos está repleto de explicações científicas sobre como o fluxo

ajuda os atletas a alcançarem o ponto máximo de seu desempenho, por que

essa é uma tendência crescente nas últimas décadas e como praticamente

qualquer um pode entrar em contato com seu potencial supremo.”

– Surfer Magazine

“Um livro eletrizante sobre um estado mental poderoso. Se você não se

sentir inspirado a ascender ao próximo nível, recomece a leitura.”

– DAVID EAGLEMAN, neurocientista,

autor de A soma de tudo

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“Uma fascinante síntese sobre a maneira que os atletas de esportes

radicais utilizam o estado de fluxo para alcançar objetivos que parecem

impossíveis, como surfar ondas do tamanho de edifícios. Mas uma leitura

mais atenta do livro também revela como todos nós podemos aplicar o

fluxo às outras áreas da vida.”

– Financial Times

“Nesse estudo surpreendente, Steven Kotler investiga o ‘fluxo’, um estado

neuroquimicamente rico em que processos cognitivos e psicológicos se

integram. Igualmente surpreendentes são os dados científicos por trás

desse estado de consciência, que explicam de que forma o giro frontal

superior do cérebro é desativado para tornar mais veloz o processo de

tomada de decisão.”

– Nature

“Em Super-Humanos, Steven Kotler analisa o fugaz e arrebatador ‘estado

de fluxo’, algo que muitos atletas, músicos e artistas de alta performance

apontam como indispensável ao seu virtuosismo e criatividade. Além disso,

ele oferece um mapa do fluxo, para aprendermos a alcançar progressos

enormes em nossas próprias habilidades e elevar nosso potencial ao

máximo.”

– JASON SILVA, filósofo,

apresentador do programa Teste o seu cérebro, do NatGeo

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Sumário

Prefácio: O porquê do fluxo 9Introdução: Antes do fluxo 14

Parte Um: Ele é essa loucura 271. O caminho para o fluxo 282. A onda do fluxo 493. O lugar do fluxo 684. O algo mais do fluxo 865. O atalho para o fluxo 103

Parte Dois: Uma nação de adoradores do fluxo 1216. Fluxo externo 1227. Fluxo interno 1398. A coletividade do fluxo 1589. O fluxo da imaginação 172

Parte Três: Hora de despertar 18310. O lado sombrio do fluxo 18411. O fluxo da próxima geração 20112. Fluxo para a abundância 220

Posfácio 228Nota do autor 229Notas 232

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As ferramentas para lidarmos com o paradoxo ainda são incipientes.

– kevin kelly

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Prefácio: O porquê do fluxo

Este é um livro sobre o impossível, mas começa pelo invisível. Nas últimas três décadas, um conjunto improvável de homens e mulheres levou o de-sempenho humano mais longe – e mais rapidamente – do que em qualquer outro momento dos 150 mil anos de história da nossa espécie. Nesse piscar de olhos evolutivo, esses indivíduos redefiniram por completo os limites do possível. Mas a parte mais estranha é que esse florescimento sem preceden-tes do potencial humano ocorreu à vista de todos, ocasionalmente com mi-lhões de pessoas assistindo – só que quase ninguém se deu conta.

O motivo é simples: praticamente todo esse boom do desempenho ocor-reu no mundo dos esportes de ação e aventura. É claro que surfar e esquiar são ótimas formas de lazer. Assistir aos X Games na TV é muito legal, mas quando se trata de surfar ondas gigantescas e se lançar de penhascos de 30 metros, a maioria de nós vê apenas magia intrépida: proezas inconcebíveis e atletas insanos – e só.

No entanto, o que parece impossível é, na verdade, progressivo. Por trás de cada uma dessas façanhas está uma longa lista de pequenos passos: histó-ria, tecnologia, treinamento – e não apenas treinamento físico, mas mental também. O sucesso nessas atividades estimuladas pelo perigo exige talentos psicológicos e intelectuais incríveis, como determinação, força, coragem, criatividade, resiliência, cooperação, pensamento crítico, reconhecimen-to de padrões, tomada de decisões cruciais em alta velocidade – tudo isso

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sob as condições mais extremas imagináveis. Pesquisadores recentemente cunharam a expressão “Competências para o Século XXI”1 para descrever essa variedade de aptidões que nossos filhos precisam desenvolver para prosperar neste século – habilidades que hoje em dia não são ensinadas na escola, mas de que a sociedade precisa desesperadamente. Os esportes de ação e aventura exigem todas elas.

Porém isso é só o começo. De tudo que esses atletas conseguiram conquistar, nada é mais impressionante que o domínio que têm do estado conhecido como fluxo. A maioria de nós tem ao menos uma familiaridade passageira com o estado de fluxo. Se alguma vez você perdeu uma tarde em uma boa conversa ou se envolveu num projeto de trabalho a ponto de es-quecer todo o resto, você passou por essa experiência. No estado de fluxo, ficamos tão concentrados na tarefa que estamos desempenhando que tudo o mais desaparece. Ação e consciência se fundem. O tempo voa. O eu se des-vanece. O desempenho vai às alturas.

Chamamos essa experiência de fluxo, porque é essa a sensação. É como se cada ação, cada decisão, levasse à próxima, de maneira fluida, sem esfor-ço, de forma consistente. É a resolução de problemas em alta velocidade; é deixar-se levar pelo ponto alto do desempenho. “O fluxo o catapulta natu-ralmente para um nível em que você não está naturalmente”, explica Ned Hallowell, psiquiatra da Harvard Medical School. “O estado de fluxo na-turalmente transforma um fracote num fortão, um desenhista num artista, uma dançarina numa bailarina, um adepto da filosofia do ‘devagar e sempre’ num velocista, uma pessoa comum em alguém extraordinário. Tudo o que você é capaz de fazer, pode realizar melhor no estado de fluxo: um bolo de chocolate, planejar as férias, resolver uma equação diferencial, redigir um plano de negócios, jogar tênis ou fazer amor. O fluxo é a porta de entrada para aquele ‘algo mais’ que a maioria de nós está buscando. Em vez de se contentar com o que já alcançou, achando que não há mais nada além disso, aprenda a entrar no estado de fluxo, e então você vai encontrar, em doses controláveis, todo esse ‘algo mais’ que está procurando.”2

O fluxo é um estado de consciência ideal,3 o estado em que nos sen-timos melhor e atingimos nosso desempenho máximo. Trata-se de uma transformação disponível a qualquer um, em qualquer lugar, desde que algumas condições iniciais sejam cumpridas. Todo mundo – de trabalha-dores numa linha de montagem em Detroit a músicos de jazz na Argélia

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e desenvolvedores de software em Mumbai – depende do estado de fluxo para turbinar o desempenho e acelerar a inovação. E como! Os pesqui-sadores agora acreditam que ele está no centro de quase todas as vitórias esportivas, é a base das grandes revoluções científicas e é responsável pe-los progressos mais significativos nas artes.4 Líderes mundiais já louvaram suas maravilhas e CEOs das maiores empresas americanas desenvolveram filosofias corporativas em torno dele. E, além de tudo isso, há ainda a pers-pectiva da qualidade de vida: psicólogos descobriram que as pessoas que experimentam o estado de fluxo com mais frequência são as mais felizes do planeta.

Dizendo de outra forma: uma pesquisa recente da Gallup descobriu que 71 por cento dos trabalhadores americanos “não estavam empenhados” em seus empregos ou estavam “ativamente desmotivados” em relação a eles.5 Pense por um momento: duas em cada três pessoas odeiam o que fazem durante a maior parte do tempo. Trata-se de uma crise, para dizer o mínimo. No entan-to, já sabemos onde está a solução. Os outros 29 por cento dos trabalhadores possuem ocupações que os colocam frequentemente nesse estado de fluxo, o que está diretamente correlacionado à felicidade no trabalho. E a felicidade no trabalho, por sua vez, está diretamente ligada ao sucesso. Como informou recentemente a CNN: “Uma década de pesquisas no mundo dos negócios comprova que a felicidade melhora quase todos os resultados empresariais e educacionais, aumentando as vendas em 37 por cento, a produtividade em 31 por cento e a precisão nas tarefas em 19 por cento – além de proporcionar uma série de melhorias na saúde e na qualidade de vida.”6

No entanto, existe uma pegadinha: apesar de ser o estado que todos de-sejam alcançar, também é o mais fugidio. Embora alguns tenham passado séculos tentando, ninguém encontrou um meio confiável de reproduzir essa experiência com regularidade suficiente para aumentar radicalmente o de-sempenho. Mas esse não é o caso dos atletas de ação e aventura. Colocando de forma simples: o estado de fluxo é o único motivo de esses atletas sobrevi-verem às imensas montanhas, às ondas gigantes e aos grandes rios. Quando você está forçando os limites do desempenho humano, a escolha é uma só: fluir ou morrer.

Ironicamente, essa é uma ótima notícia. Nos últimos anos, os cientistas têm feito progressos enormes na compreensão do estado de fluxo. Avan-ços em tecnologias de imagens do cérebro, como a ressonância magnética

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funcional, e dispositivos de “quantificação do eu”, como pulseiras biométri-cas, permitem medições objetivas num campo em que antes havia apenas a experiência subjetiva. Até agora não havia como relacionar todas essas in-formações, mas acontecimentos recentes nos esportes de ação e aventura resolvem esse problema. Saber que a sobrevivência nesses esportes exige o fluxo fornece um conjunto de dados objetivos com os quais trabalhar. Não precisamos nos perguntar se nossas cobaias da pesquisa realmente atingi-ram esse estado: se elas sobreviveram ao impossível, podemos ter certeza disso. E, ao correlacionar esses novos avanços científicos às atividades ra-dicais, podemos começar a entender exatamente como o estado de fluxo funciona. Se conseguirmos descobrir o que esses atletas estão fazendo para reproduzi-lo de maneira confiável, poderemos aplicar esse conhecimento a todos os domínios do indivíduo e da sociedade.

Em outras palavras, apesar desses “outros” no centro da história, este livro na verdade é sobre nós: sobre você e eu. Quem não deseja saber como ter o melhor desempenho quando isso é o que mais importa? Quem não quer ser mais criativo, estar mais satisfeito, mais concentrado? Como as façanhas desses atletas comprovam, se conseguirmos dominar o estado de fluxo, não haverá limites para o que podemos alcançar. Nós somos a nossa própria revolução.

Com o intuito de atingir esse objetivo, este livro está dividido em três partes. A primeira examina a que ponto os atletas de ação e aventura leva-ram os limites do possível e explora os dados científicos acerca do estado de fluxo (este trabalho se baseia em mais de uma década de pesquisas; salvo quando for indicado o contrário, todas as citações são fruto de entrevistas conduzidas pelo autor ou de documentos históricos). Aqui veremos como o estado de fluxo funciona no cérebro e no corpo, como acelera intensamente o desempenho mental e físico, e como permite que esses atletas realizem o impossível. Uma vez que dominar esse estado não é fácil, a Parte Dois sonda a natureza da busca: como esses atletas foram bem-sucedidos nessa tarefa, como reorganizaram suas vidas para cultivar o estado de fluxo e como pode-mos fazer o mesmo. Finalmente, a última parte trata do lado mais sombrio do fluxo, seus impactos culturais mais amplos e o futuro.

O grande ativista pelos direitos civis Howard Thurman certa vez disse: “Não pergunte do que o mundo precisa. Pergunte o que faz você se sentir vivo. Porque o que o mundo mais precisa é de mais pessoas que se sintam vivas.”7

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Os dados são claros. O estado de fluxo é o que faz nos sentirmos vivos. Ele é o mistério, o objetivo. Nas páginas deste livro descrevo algumas ativi-dades difíceis e perigosas. As pessoas envolvidas nelas são profissionais alta-mente treinados. Portanto, por favor: tente fazê-las em casa. Porque o que o mundo mais precisa é de super-humanos.

Está na hora de despertar.

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Introdução: Antes do fluxo

SHANE McCONKEY

Aqui nos Estados Unidos gostamos que os nossos gênios sejam de uma deter-minada maneira. Se forem cientistas, preferimos que tenham um penteado maluco, sejam ases do cálculo e estejam tão além dos limites da inteligência--padrão que, para falar sobre eles, apenas metáforas exóticas sejam capazes de dar conta do recado. Se forem artistas, gostamos deles daquele jeito de sempre – exilados na multidão, melancólicos e misantropos, ocasionalmente viciados em drogas, com frequência bêbados. Se são gênios ricos, preferimos que tenham começado pobres. Se são pobres, queremos que tenham sido ricos e, tendo perdido tudo, obstinadamente estejam se preparando para um recomeço. O que não esperamos – ao menos não com tanta frequência – são gênios nus, de pernas e braços abertos, a 12 metros do solo. Mas é aí que a história começa.

Na verdade, começa alguns dias antes. O ano é 1993. Um esquiador de 24 anos chamado Shane McConkey estava dando um show no Crested Butte Extremes, um evento de esportes de aventura. Dali a dez anos, McConkey se tornaria um dos atletas mais adorados e reverenciados no mundo dos espor-tes radicais: um duplo mestre do impossível, um dos maiores esquiadores que já viveram e um dos paraquedistas mais inovadores da história. Naquela época, porém, quase ninguém conhecia seu nome.

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Steve Winter, um dos dirigentes da empresa de filmagem de esqui Matchstick Productions, a MSP, certamente não conhecia.1 Mas ficou tão impressionado com seu desempenho que o convidou para filmar após o tér-mino do evento. Durante aquela sessão, a primeira coisa que fizeram juntos foi irem até um grupo de penhascos no interior do Colorado. Winter e sua equipe montaram a câmera sob uma grande cornija de neve. McConkey su-biu até o topo. Houve uma contagem regressiva – três, dois, um, saltando – e ele saltou mesmo. Decolou do penhasco. Seu objetivo parecia ser um backflip duplo, um mortal duplo para trás. Mas devemos mencionar alguns detalhes: nos idos de 1993, ninguém dava backflips duplos, muito menos de cornijas de neve a 12 metros do chão. O segundo detalhe: nem McConkey dava backflips duplos.

“Shane deu uma volta e meia e aterrissou de cabeça”, diz Winter. “Estáva-mos todos pensando a mesma coisa: cacete, esse cara vai se matar.”2

Muitas coisas podem ajudar na carreira de um esquiador – agir como um estúpido no interior do Colorado não está entre elas. “Existem muitos riscos inesperados ali”, diz Winter. “A última coisa que queremos é um idiota fazen-do loucuras para a câmera. Mas Shane ficou pedindo uma segunda tomada do backflip duplo. Tentamos convencê-lo a mudar de ideia, dizendo que o penhasco não era grande o suficiente, que ele não sabia fazer a manobra, que não havia como alcançar a velocidade necessária.”

McConkey não estava ouvindo nada daquilo. De mau humor e com pas-sos pesados, tornou a subir o penhasco. Winter ficou lá embaixo. Estava com uma sensação ruim no estômago. Acima dele, fora de vista, McConkey se preparou. A sensação piorou. Pelo fone de ouvido, Winter ouviu a contagem regressiva. Foi aí que tudo aconteceu. Shane voou do penhasco – vestindo apenas as botas de esqui. Ele não deu um backflip. Fez o que logo se tornaria sua marca registrada: nu, ele deu um imenso spread-eagle, uma manobra em que o esquiador salta, abre os braços e afasta as pernas no ar.

“ O que posso dizer?”, pergunta Winter. “Foi genial.”

UM NOVO PATAMAR

Gênio? Será? De acordo com o site Dictionary.com, o gênio (genius, em in-glês) se define como “uma capacidade natural e excepcional do intelecto,

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como demonstrado em obras criativas da ciência, da arte, da música, etc.”.3

Mas isso não nos ajuda muito no mundo do atletismo, especialmente quan-do os esportes em questão são de ação e aventura. Como é a genialidade no snowboarding? O que significa ser criativo para um paraquedista? Como podemos saber se um surfista está fazendo um trabalho original, já que suas obras desaparecem com o rebentar de cada onda?

Bem, vamos começar pelo óbvio: todos parecemos concordar que a ge-nialidade começa com façanhas de grandeza mental. O pensamento precisa ser original para que os resultados estejam além do que a maior parte das pessoas consegue imaginar. Como é preciso coragem para ir além dos limi-tes da cultura, o pensamento também precisa ser corajoso. Como a tela em que o atleta cria sua obra é apenas seu corpo em movimento pelo tempo e pelo espaço, um ato de genialidade também precisa ser definido como um ato de redefinição – de redefinição do que é possível para o corpo humano. Isso significa que, no mundo dos esportes de ação e aventura, a forma mais fácil de encontrar a genialidade é procurando os atletas que sistematicamen-te apostam todas as suas fichas no impossível.

E é aí que as coisas começam a ficar estranhas – porque poucos atletas se colocaram em risco nas últimas duas décadas. Não faz muito tempo, a ideia de alguém saltar de motocicleta sobre alguns ônibus escolares era tão inacreditável que o mundo inteiro ficava atento a cada vez que Evel Knievel decidia fazer uma tentativa. Atualmente, em qualquer fim de semana, em arenas no mundo todo, você pode observar dezenas de motoqueiros saltan-do distâncias semelhantes – só que dando backflips ao mesmo tempo. Volte 25 anos no mundo do esqui, e o 360 era a manobra mais difícil que alguém poderia tentar. Hoje em dia, é a porta de entrada para o esqui aéreo radical. Isso significa que crianças de 6 anos já sabem fazer essa acrobacia e a estão praticando rotineiramente. Em 1998, quando a Salomon, o gigante da indús-tria dos esquis, lançou o 1.080, o primeiro esqui twin-tip recebeu esse nome porque três giros (1.080 graus) era o Santo Graal do esporte – algo impossí-vel. Bem, não é mais. Em 2011, Bobby Brown realizou o primeiro triple cork 1.440 do mundo4 – que são quatro giros e três mortais, tudo isso fora do eixo.

Ao longo do caminho, recordes mundiais foram quebrados mais de uma vez. Ninguém imaginava que muitos deles viessem a existir: recordes que es-tavam além do limites, além do possível. Caiaquistas lançando-se cachoeiras abaixo são um bom exemplo. Em 1997, Tao Berman impressionou as pessoas

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quando despencou 25 metros no rio El Tomata, perto de Vera Cruz, no Méxi-co.5 Esse deveria ter sido um recorde mundial, mas a única medição oficial foi a observação de que uma corda de 21 metros lançada daquele penhasco “pa-recia” acabar a mais ou menos 3 metros do solo. Enquanto a discussão pros-seguia, Shannon Carroll lançou-se da cachoeira Sahalie, no Oregon – meros 23 metros, mas, mesmo assim, impressionante e altamente visível –, de modo que o recorde ficou sendo dela.6 Dois anos depois, Berman contra-atacou, descendo os 30 metros da cachoeira Upper Johnson, no Parque Nacional de Banff. Esse recorde demorou quase dez anos para ser quebrado – uma eter-nidade no esporte atual –, mas então oito ou nove atletas (o nono sendo, de acordo com a revista Canoe & Kayak, “o sujeito alemão estranho no YouTube cuja filmagem não pode ser confirmada”)7 elevaram o recorde para 33 me-tros, apenas para serem superados em 2009 pela queda de Pedro Olivia: 39 metros no rio Sacre, no Brasil.8 Pedro entrou na água a 113 quilômetros por hora. Isso estava tão além daquilo a que a maioria achava que um caiaquista conseguiria sobreviver que seu recorde também foi considerado inquebrável. O que durou apenas três meses – até Tyler Brandt despencar 58 metros na cachoeira Palouse, no estado de Washington, marcando a ocasião com um ví-deo curto próprio, contando ao público: “Este é um grande passo comparado com o que já se fez antes. É um novo domínio para o caiaquismo e para o que o corpo humano consegue suportar caindo de uma cachoeira.”9

Mas, estranhamente, agora, no início do século XXI, fala-se muito que nossos esportes estão se tornando mais brandos, mais leves, menos mortais. O interesse no boxe, por exemplo, continua caindo. As mudanças da falta técnica no basquete10 tornaram até gestos agressivos – como socar o ar, saltar para cima e para baixo, acenar os braços com espanto – ilícitos. Como re-sultado, os armadores, quase por definição os menores jogadores na quadra, estão tendo as melhores temporadas de todos os tempos e o brutamontes da associação americana de basquete Ron Artest – execrado por ter nocauteado um torcedor – oficialmente mudou seu nome para Metta World Peace.11

Mas essa é apenas parte da questão. Ao mesmo tempo que os esportes competitivos de equipe se tornaram menos perigosos, os esportes de ação e aventura se tornaram cada vez mais ousados. Numa grande variedade de esportes de aventura – escalada, paraquedismo, snowboarding, esqui, mo-tocross, mountain bike, alpinismo, skate profissional, surfe, windsurfe, kite surfing, mergulho em cavernas, mergulho livre, parkour, etc. –, a lista das

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façanhas antes consideradas impossíveis continua encolhendo. “Nos dias de hoje”, diz Micah Abrams, ex-editor sênior de esportes de ação do site ESPN, “o alto escalão dos atletas de esportes de aventura está num embate com as propriedades fundamentais do universo: a gravidade, a velocidade e a sa-nidade. Eles estão jogando com elas, enganando a morte, recusando-se a aceitar que possa haver limites para as suas realizações.”12

Esses atletas – e muitas pessoas nem sequer os consideram atletas – são típicos exemplos da geração X, que, décadas depois, continuam exalando o espírito adolescente. Mas ao longo do caminho eles conseguiram se tornar algo bem maior: uma força impelindo a evolução, a ponta de lança, aqueles indivíduos cuja missão é redefinir o que significa ser humano.

Como diz Mike Gervais, um dos maiores psicólogos que se debruçaram sobre a questão do desempenho máximo: “Existe um impulso natural em comparar atletas com atletas, mas tentar comparar um sujeito como Shane McConkey com um sujeito como Kobe Bryant é totalmente equivocado. É quase como comparar dois elementos completamente distintos. McConkey tem mais em comum com os exploradores espanhóis do século XIV do que com um jogador de basquete. Se você quiser comparar esses atletas com alguém, vai ter que começar por Fernão de Magalhães.”13

O MÁXIMO DESEMPENHO HUMANO

Ainda que você comece por Fernão de Magalhães, as comparações conti-nuam problemáticas. A questão é a evolução – especificamente os passos de tartaruga com que se costuma avançar. Como a capacidade atlética é diretamente moldada pela seleção natural, durante a maior parte dos 150 mil anos em que nossa espécie habita o planeta, o progresso foi gradual, na melhor das hipóteses. Em termos históricos, nossos ancestrais tinham um desempenho mais ou menos semelhante ao de seus ancestrais. É claro que houve algumas melhorias, mas, quando traçados num gráfico, os resultados mostram uma mudança lenta ao longo de séculos e séculos. Em nenhum período da história da humanidade acrescentamos 30 centímetros extras ao nosso salto em altura no espaço de tempo entre duas gerações. Filhas não conseguiam ultrapassar as mães e as mães não conseguiam ultrapassar as avós – assim as coisas costumavam ser.

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Mas, no mundo da alta adrenalina, tudo mudou.Exemplos são úteis. O salto ornamental estreou nas Olimpíadas de

1904.14 Naquele ano, um oftalmologista americano chamado George Shel-don ganhou o ouro com o que foi considerado um mergulho difícil e peri-goso: o mortal duplo para a frente.15 Atualmente, pouco mais de 100 anos depois, o quatro e meio para trás ocupa um posto semelhante. Se você medir o progresso em graus de rotação, uma única cambalhota (ou giro) produz 360 graus de rotação. A cambalhota dupla de 1904 de Sheldon totalizou 720 graus. Enquanto isso, o quatro e meio para trás de 2004 produz 1.620 graus (180 pela mudança de direção e adicionais 1.440 pelas cambalhotas). Isso significa que esse esporte levou mais de um século para avançar 900 graus de rotação.

Agora compare isso com a última década do esqui na modalidade Big Air. Como diz o nome, a competição Big Air (Grande Aéreo) nada mais é que um salto gigante em que os esquiadores – assim como os atletas de saltos ornamentais – são julgados pelas manobras que conseguem executar entre a decolagem e a aterrissagem. Em 1999, o canadense J. F. Cusson venceu o primeiro X Games Big Air com um switch 720.16 “Switch” significa que ele decolou de costas (e aterrissou de costas), enquanto os 720 são a medida dos graus de rotação. E esqueça esse papo de “difícil e perigoso”. Em 1999, o switch 720 era considerado uma completa loucura.

Essa classificação não durou muito. Apenas 12 anos depois, durante os X Games de 2011, T. J. Schiller ganhou a medalha de prata do Big Air com um double cork 1.620.17 Cork é um mortal fora do eixo (o que significa que os atletas fazem suas acrobacias no ar lateralmente, em vez de verticalmente), de modo que um double cork equivale a dois mortais fora do eixo – ou 720 graus de rotação. A medida 1.620 refere-se à quantidade de giros – neste caso, quatro e meio. Se você descontar a dificuldade adicional de dar cam-balhotas enquanto gira e simplesmente medir o progresso em rotações, da decolagem à aterrissagem, a façanha de Schiller teve 2.340 graus de rotação. Pense nisso por um momento. Os saltos ornamentais levaram um século para acrescentar 900 graus à sua lista de pontuação, mas os esquiadores con-seguiram aumentar seu total em 1.640 graus em pouco mais de uma década.

Esse progresso de fazer cair o queixo não se restringe ao esqui. O salto sobre Baker Road é um dos mais icônicos do snowboarding.18 Situado no Monte Baker, nas profundezas da cordilheira Cascade, o salto tem 15 metros

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de uma extremidade à outra e está convenientemente posicionado sobre a estrada que liga o alojamento principal ao alojamento superior do resort. Em 1990, quando Shawn Farmer realizou esse salto pela primeira vez, aquela foi uma das maiores façanhas já realizadas por alguém. Em 2005, o atleta de snowboarding Madrassas Jonsson, apropriadamente apelidado de “Big Nads” (Grandes Colhões), decolou 57 metros,19 fixando um novo recorde mundial pelo caminho e suscitando a pergunta óbvia: quando, na história dos espor-tes, o desempenho atlético quintuplicou em 15 anos?

E também existe o motocross em estilo livre. Desde a invenção da mo-tocicleta, o backflip tem sido o Santo Graal do esporte.20 Devido ao peso de uma moto e à aerodinâmica envolvida, todo mundo, de cientistas a atletas profissionais, considerava essa façanha impossível. Mas então, tanto Travis Pastrana quanto Mike Metzger realizaram backflips durante os X Games de 2002. No ano seguinte, atletas acrescentaram à manobra um bater de calca-nhares em pleno ar. Logo estavam fazendo aquilo com uma das mãos, sem usar as mãos, sem usar os pés e fora do eixo. Apenas quatro anos depois, Pastrana duplicou o impossível e realizou o primeiro backflip duplo do mun-do. “Não existe uma forma fácil de descrever o que estamos vendo no moto-cross”, diz o Dr. Andy Walshe, chefe de desempenho atlético da Red Bull. “O esporte é tão desafiador e o risco de ferimentos graves é tão grande que seria ridículo esperar qualquer coisa além de um progresso gradual. Os motoci-clistas levaram décadas para realizar um backflip. Mas chegar aos backflips duplos apenas quatro anos depois? Isso é demais para a minha cabeça.”21

Eis o mistério central deste livro: como essas coisas são possíveis? Por que, na reta final do século XX e no início do século XXI, estamos vendo um ataque multiesportivo dessas proporções contra a realidade? Será que pas-samos por um buraco de minhoca para outro universo, onde as leis da física não se aplicam? Onde a gravidade é opcional e o bom senso está obsoleto?

Essas não são meras curiosidades fúteis. Se o termo impossível significa algo neste contexto, é que as barreiras que estão sendo derrubadas existem para além dos limites da biologia e da imaginação. Essas façanhas são ca-pazes de mudar nossos paradigmas. Historicamente, em ciência e cultura, avanços radicais dessa espécie emergem uma ou duas vezes por século – não cinco vezes por década. Portanto, decifrar esses fenômenos pode nos trazer um conhecimento profundo e importante sobre acelerar o potencial huma-no, a criatividade e a inovação – mas nos diz algo mais.

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As últimas três décadas testemunharam um crescimento sem preceden-tes do que os pesquisadores agora denominam o máximo desempenho hu-mano. Isso não é o mesmo que desempenho humano ideal, e a diferença está nas consequências. O desempenho ideal consiste em dar o máximo de si. O máximo desempenho é alcançado nas situações em que você precisa atingir sua melhor performance e qualquer erro pode matá-lo. Tanto o bom senso quanto a biologia evolutiva nos dizem que o progresso sob essas condições “extremas” estaria fadado ao fracasso – mas não é exatamente isso que os dados sugerem.

Em vez disso, nos últimos 30 anos, no mundo dos esportes de ação e aventura, nas situações em que a vida desses atletas esteve realmente em risco, os limites do possível foram mais longe, e mais rápido, do que em qualquer outra época na história. Vimos um crescimento quase exponencial no má-ximo desempenho humano, o que é tanto um paradoxo hiperbólico quanto um mistério considerável. De algum modo, uma geração de desajustados iconoclastas reescreveu as regras do factível, não apenas elevando o limite, mas, com frequência, esquecendo-se dele por completo. E isso levanta uma última pergunta: atualmente, onde estão nossos limites – se é que eles exis-tem?

A QUESTÃO DO CUSTO

Se você quiser entender realmente essa questão dos limites, precisa enten-der 23 de dezembro de 1994 – o dia em que o jogo virou. O epicentro dessa mudança foi Maverick’s, uma onda escura, cinzenta e selvagem, localizada a pouco mais de 3 quilômetros de Pillar Point Harbor, 35 quilômetros ao sul de São Francisco, nas águas infestadas de tubarões do Triângulo Vermelho da Califórnia.22 A revista Surfer certa vez descreveu o local como “sombrio, isolado, intrinsecamente maligno”,23 e o site Mavericksurf.com explica por quê: “Com ondas alcançando até 15 metros de altura, correntezas ridicu-lamente fortes, rochas perigosas, bancadas de corais perigosamente rasas e uma temperatura de congelar os ossos, Maverick’s não se assemelha a ne-nhum outro lugar na Terra.”24

Também é um lugar que não deveria existir. “Desde o advento do surfe moderno”, diz o surfista profissional e cineasta de surfe Chris Malloy, “se

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você quisesse pegar ondas grandes, iria ao Havaí, porque todo mundo sa-bia que aquele era o único lugar do mundo com ondas realmente grandes. Quando relatos sobre Maverick’s começaram a chegar às ilhas, ninguém acreditou. A ideia de que havia um verdadeiro monstro quebrando perto da costa do norte da Califórnia era uma heresia.”25

Até deixar de ser.Maverick’s foi descoberta em 1962, mas somente um morador local chamado

Jeff Clark era doido o suficiente para remar até lá.26 E sempre voltava. Clark, no que mais se aproxima da definição de loucura nos esportes, surfou Maverick’s sozinho por mais de 15 anos. No início da década de 1990, ele enfim decidiu que seria bom ter alguma companhia e convidou alguns amigos para irem até lá. Logo, como John Krakauer escreveu em Outside, “rumores começaram a circu-lar pela costa sobre uma onda de surfe misteriosa perto de Half Moon Bay que gerava tubos densos, esmagadores, altos o suficiente para um ônibus passar por dentro. Sua reputação era de ser ao menos tão grande quanto as ondas famosas que ribombavam em Waimea Bay, no Havaí, o Monte Everest do surfe”.27

Para os surfistas que ganharam fama surfando ondas gigantes em Oahu, Maverick’s era a onda em que se recusavam a acreditar, a onda que ameaçava seu domínio sobre a excelência sem paralelos. Mas os boatos não cessavam, e algo precisava ser feito. Assim, em dezembro de 1994, quando uma tem-pestade monstruosa nas Ilhas Aleutas enviou pulsações furiosas pela costa californiana, três dos maiores surfistas de ondas grandes no Havaí – Ken Bradshaw, Brock Little e Mark Foo – embarcaram em voos noturnos até São Francisco para ver aquela famosa onda com os próprios olhos.

Do trio, sem dúvida, Foo era o mais conhecido. Não se tratava só de ta-lento. Todos os três eram atletas destemidos, mas Foo também era deste-mido em relação à fama. No final da década de 1980, quando deixou o IPS World Tour e decidiu ganhar fama no grande surfe, sua estratégia foi dupla. Até sua chegada, os surfistas de ondas grandes adotavam uma abordagem descomplicada em seu ofício, fazendo de tudo para não se expor ao perigo. Os tombos eram evitados a qualquer custo, porque podiam ser fatais. Mas Foo levou seu estilo de ondas pequenas para o surfe de ondas grandes. Além disso, correu riscos maiores e – esta era a outra parte de sua estratégia – cos-tumava se vangloriar. “Se você quer a sensação máxima”, dizia Foo sempre que havia jornalistas por perto, “tem que estar preparado para pagar o preço máximo.”

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Foo cultivava a fama. Sua agenda tinha os contatos dos melhores fotógra-fos de surfe do mundo. Raramente se aventurava nas ondas sem dar uns te-lefonemas antes. Em 23 de dezembro de 1994, não precisou se preocupar. No decorrer da década de 1990, a reputação temível de Maverick’s viera crescen-do, mas o inverno de 1994 trouxe algumas das maiores ondas na história da costa da Califórnia. As quatro semanas de dezembro logo seriam apelidadas de “o mês cheio de monstros”, e a mídia não pôde resistir. No momento em que Foo, Bradshaw e Little chegaram ao line-up, um helicóptero zumbia no alto e três barcos cheios de fotógrafos aguardavam fora da zona de impacto.

Apesar do alarde, aquela manhã se mostrou decepcionante. Uns poucos monstros apareceram por lá, não a loucura que todos vinham esperando. Mas poucos minutos antes do meio-dia tudo mudou. Linhas pretas apa-receram no horizonte e alguém na praia gritou “Série!”. Infelizmente, os acontecimentos que marcariam essa data na história estavam a apenas uns momentos de distância.

Os cavalheiros do Havaí não perderam tempo. Tanto Foo quanto Brad-shaw começaram a remar em direção à segunda onda da série. Segundo a norma de conduta dos surfistas, como Bradshaw estava posicionado mais no fundo – ou seja, mais perto da ondulação –, a onda era sua. Sem dúvida, houve muitas ocasiões em que Bradshaw teria brigado pela precedência – havia uma grande rivalidade entre Bradshaw e Foo –, mas durante o último ano os dois haviam se aproximado. Para honrar aquela amizade, numa deci-são em que ele pensaria pelo resto da vida, Bradshaw cedeu o lugar na onda.

Foo entrou.Ironicamente, a onda não era grande segundo os padrões locais – em que

chegam a mais de 24 metros, a altura de um prédio de apartamentos. Aquela tinha apenas as dimensões de uma casa. Mas a lenda do surfe Buzzy Trent disse a coisa mais certa: “Ondas não se medem em metros e centímetros, mas pelo medo que nos causam.”28 E em Maverick’s, não importa o tama-nho, a onda é sempre aterrorizante. Só a hidráulica já é inacreditável. Em segundos, a onda pode mudar radicalmente de forma, e, para marinheiros de primeira viagem, não há como saber o que vem a seguir.

Naquele caso específico, o chão sumiu. Na turbulência resultante, Foo perdeu o equilíbrio e se lançou de cabeça no inferno. Por um isntante, pa-receu que tinha velocidade suficiente para furar a onda, mas ele não mer-gulhou fundo o bastante. A ondulação o pegou embaixo d’água, fazendo-o

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girar. Nas fotografias do evento, Foo pode ser visto nesse momento, uma silhueta fantasmagórica, na barriga do monstro.

Essas fotografias registram a última vez em que alguém viu Mark Foo com vida. Ninguém sabe exatamente o que o matou. Talvez tenha batido com a cabeça no recife e desmaiado. Talvez sua cordinha tenha ficado presa na rocha e ele não tenha conseguido soltá-la. Qualquer que tenha sido o caso, seu corpo só foi encontrado uma hora depois, flutuando com o rosto para baixo na entrada do porto.

A notícia de sua morte se espalhou rápido e foi longe. Matérias de jornais, artigos de revistas, programas de televisão – a cobertura não parava: “A pu-blicidade em torno do acontecimento foi sem precedentes”, escreveu Jason Borte, da Surfline. “A notícia se espalhou rapidamente pelo mundo. Embora [Foo] não estivesse presente para curtir o momento, foi o tipo da fama que sempre desejara.”29 Sem dúvida, esse foi o momento mais público da história do surfe. Foi também uma situação do tipo “bem que eu avisei”.

Desde o início dos anos 1980, os atletas de ação e aventura vinham forçando os limites de um território cada vez mais perigoso. Pela lei dos números grandes e as fragilidades do corpo humano, foi apenas uma ques-tão de tempo. Todo mundo sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém iria morrer. “O fato de alguém ter morrido surfando Maverick’s foi um choque”, escreveu o surfista de ondas grandes Grant Washburn em Inside Maverick’s: Portrait of a Monster Wave, “mas não foi uma surpresa. O fato de ter sido Foo, um dos atletas mais experientes e bem preparados no es-porte, foi difícil de aceitar. Ele era um dos melhores, e isso nos deixou mais vulneráveis do que nunca.”30

Mas então a trama se complica. A teoria da evolução diz que existimos para passar nossos genes adiante. A biologia afirma que a sobrevivência é o xis da questão. Essa determinação é tão poderosa que, em 1973, o psicólogo Ernest Becker venceu o Prêmio Pulitzer por seu livro A negação da morte, que argumenta que tudo o que consideramos civilização – das cidades que cons-truímos às religiões em que acreditamos – não passa de um mecanismo de defesa elaborado e simbólico contra o terrível conhecimento de nossa própria mortalidade.31 Um coro de pesquisadores desde então tem apoiado essa opi-nião. Hoje em dia, os cientistas consideram o medo da morte a principal fonte de motivação humana, o mais primitivo de nossos impulsos básicos.

Aí Mark Foo morreu.

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Antes de seu falecimento, poderíamos dizer que as consequências de co-locar todos os limites à prova ainda eram mais ou menos desconhecidas. Certamente, outros haviam morrido por sonhos desse tipo. Montanhistas morreram às dezenas. Paraquedistas também. E quanto aos esquiadores? Apenas em Chamonix, quase 60 pessoas morriam por ano. De algum modo, porém, sempre encontravam um jeito de explicar esses acontecimentos. Inexperiência, equipamento ruim, mau tempo, acidente esquisito, seja o que for. Mas Mark Foo era um nome conhecido. Quando ele se foi, levou a ne-gação da morte consigo.

A ciência evolutiva nos diz que a ampla divulgação de sua morte deveria ter produzido uma grande queda no número de pessoas em busca do perigo. Os atletas, percebendo que suas vidas realmente estavam em risco, deveriam ter começado a pegar mais leve. Mas, hum... não foi isso que aconteceu.

Pelo contrário.Em 1994, o número de surfistas de ondas grandes no mundo não chegava

a uma centena. Atualmente, está na casa dos milhares. O mesmo vale para a ala extrema de qualquer outra categoria de ação e aventura. O fenômeno é onipresente. Neste momento, mais pessoas estão arriscando suas vidas por seus esportes do que em qualquer época anterior na história, e, como es-creveu Thomas Pynchon em O arco-íris da gravidade, “não é sempre que se manda claramente a Morte ir para aquele lugar”.32

Tentar explicar por que isso está acontecendo não é fácil. Desde que Dar-win publicou A origem das espécies, a sobrevivência e a procriação torna-ram-se as únicas respostas aceitáveis para nossa busca pelo sentido da vida. A recente alta na despreocupação alegre e extravagante contraria essas res-postas, desafiando noções fundamentais da biologia, da psicologia e da filo-sofia. Este, portanto, é o desafio lançado por pessoas como Mark Foo e Shane McConkey – a fronteira remota, o fio da navalha de nosso conhecimento, a verdade incômoda e de certa forma espiritual de que um segmento cada vez maior da população humana está disposto a morrer por esses esportes.

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PARTE UM

ELE É ESSA LOUCURA

Onde está o raio que venha lamber-vos com sua língua? Onde está a loucura com que deveríeis ser vacinados? Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é esse raio, ele é essa loucura.

– friedrich nietzsche

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O caminho para o fluxo

DANNY WAY E O CAMINHO MAIS CURTO

Último dia da competição de ginástica feminina nas Olimpíadas de 1996.1 Na história dos jogos, os Estados Unidos nunca derrotaram a Rússia nessa modalidade específica, mas parece que esse recorde vai ser quebrado. Indo para o revezamento final, os americanos têm uma vantagem significativa de 0,897 ponto. Só um desastre completo no salto sobre o cavalo poderia ficar entre essas mulheres e a realização dos seus sonhos. E então acontece o impensável. As quatro primeiras ginastas americanas dão passos extras em suas aterrissagens. Depois, Dominique Moceanu cai em seu primeiro salto, e de novo no segundo. Aquela vantagem inicial impressionante é apagada. Chega a vez de Kerri Strug, mas sua pirueta é difícil. Ela não gira o suficiente, aterrissa desajeitadamente e ouve um estalo alto. Seu tornozelo está torcido. Ela sai mancando, com uma dor considerável, mas, se não fizer sua segunda tentativa, as russas levam o ouro.

Os Estados Unidos estão em uma situação difícil. Strug, uma ginasta de 1,45 metro de Tucson, Arizona, sempre foi o elo mais fraco. Como afirmou certa vez ESPN The Magazine: “Strug [...] não possui a temeridade, a dure-za, a agressividade, a coragem e o limiar de dor de suas colegas de equipe.”2 Tudo isso se transforma em sua segunda tentativa. Ela sai correndo pela pis-ta, acerta seu flic-flac para trás, dá uma cambalhota impecável sobre o cavalo

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e faz uma aterrissagem difícil, com um twist. No impacto, ouve outro estalo. Cautelosamente, como uma dançarina, Strug contrai a perna, sem perder o equilíbrio. Ela se vira para um lado, depois para o outro, ambas as vezes erguendo os braços na saudação tradicional aos juízes. Um instante depois desaba, mas não antes de receber a nota 9,712 e levar o ouro para casa.

Estou mencionando tudo isso num livro sobre esportes de ação e aventu-ra porque – mais uma vez – as comparações podem ser úteis. O salto sobre o cavalo de Strug é considerado um dos maiores momentos da história da ginástica olímpica e aquele que mais marcou os Jogos de 1996. Agora toda a equipe feminina é lembrada como as Sete Magníficas.

Danny Way não tem nada disso. Na verdade, a não ser que você seja um grande fã do skate profissional, existe uma boa chance de nunca ter escutado esse nome e de não ser capaz de imaginar o que ele conseguiu realizar em 12 de julho de 2005.

Portanto, voltemos ao salto final de Strug. Imagine um conjunto similar de circunstâncias com umas poucas diferenças essenciais. Em vez de uma torção grave, o tornozelo está destroçado. Fraturado em pedaços. O pé está do tamanho de um repolho e o joelho não está funcionando direito. Em vez de precisar enfrentar uma articulação machucada e cambalear 15 metros até o início da pista, imagine ter que subir dez longos lances de escada com um osso fraturado. A dor é lancinante, mas a vista lá do alto é ainda pior. A plataforma se ergue vacilante umas dezenas de metros sobre o solo. Não há rede de segurança, portanto qualquer queda pode ser fatal.

Só para manter as coisas interessantes, façamos mais algumas mudan-ças. Strug mais tarde contou aos repórteres que havia realizado aquele exato salto mais de mil vezes, um fato que não é difícil de entender, porque o ca-valo não muda, é sempre igual. Mas, e se mudasse? Em vez do mesmo velho equipamento, imagine um novinho em folha – o maior já construído: mais comprido que um campo de futebol, com um trampolim capaz de projetar um corpo humano mais de 20 metros no ar. De repente, não se trata mais de um salto sobre o cavalo que alguém já realizou umas mil vezes – é um “megassalto” que ninguém jamais realizou. Uma experiência completamen-te nova, desconhecida, impossível – e com consequências excepcionalmente perigosas. Agora você está começando a entender o que Danny Way estava enfrentando quando tentou saltar sobre a Grande Muralha da China em um skate.

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Se não está entendendo... bem, você não está sozinho.Danny Way, considerado por muitos o maior skatista de todos os tempos,

apresentou a Mega Rampa pela primeira vez ao mundo no filme The DC Vi-deo. Poucos conseguiram entender aquilo. À primeira vista, a rampa gigante é de tirar o fôlego e mais parece um objeto saído de alguma pintura surrea-lista, e não algo que alguém desceria de skate. “Era três vezes o tamanho de qualquer coisa que eu já havia visto no mundo do skate”, contou o skatista profissional australiano Jake Brown ao The New York Times. “Era uma doi-deira. Ainda é uma doideira.”3 Brown – vale mencionar – certa vez, num erro de cálculo, despencou 15 metros na Mega Rampa. O impacto foi tão forte que seus tênis voaram e ele perdeu os sentidos. Muitos que testemunharam a queda acharam que ele estivesse morto.

Em 2004, Way convenceu os organizadores dos X Games a tornar a Mega Rampa o centro da competição de skate, alegando que era a única modali-dade em que ele poderia competir no evento. Não é nenhuma surpresa que ele tenha levado o ouro para casa. Naquele mesmo ano, Way viu a Grande Muralha pela janela de um avião e decidiu que saltar sobre ela era a próxi-ma coisa que queria fazer. Foi então para a China numa viagem de reco-nhecimento, tentando achar um bom lugar onde instalar sua plataforma. Finalmente optou pelo majestoso portão Ju Yong Guan. “É o ponto mais amplo da muralha”, disse Way, “e eu acho que faz mais justiça ao skate e à possibilidade de se quebrar um recorde mundial.”4

O local acabou se revelando um pouco amplo demais. Algumas semanas após o início da construção da rampa, os arquitetos perceberam que haviam cometido um erro de medição e que a distância para saltar a muralha era bem maior do que imaginaram inicialmente. Way, de volta aos Estados Uni-dos, foi contatado pelo celular. “Acho que você vai ter que transpor mais de 21 metros”, foi informado. “Isso não é arriscado demais?” Danny nem sequer pensou: “Não”, disse ele, numa afirmação que desde então passou a estampar camisetas: “Nada é arriscado demais.”5

Apesar disso tudo, quando ficou pronta, a Mega Rampa da Grande Mu-ralha era muito arriscada. A rampa de entrada se estendia por mais de 30 metros, mais ou menos o tamanho de uma rampa de esqui olímpica. Aquilo levava a um salto de 21 metros sobre a muralha, caindo em um quarter pipe de quase 10 metros, a maior já construída. De acordo com o cálculo de Way, a rampa o lançaria uns 11 metros no ar – a quase 21 metros da plataforma –,

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de modo que, é claro, não havia margem para erro. Mais aí está o problema: skatistas cometem erros.

“O skate profissional é um jogo de erros”, diz Way. “É o que torna o espor-te tão diferente. Os skatistas estão dispostos a aguentar uma grande dose de punição física. Tentamos uma manobra sem parar, semanas a fio, fracasso doloroso após fracasso doloroso. Mas, para mim, na hora da verdade, quan-do estou realmente desafiando os limites e levando o skate para além das minhas habilidades, existe um estado em que eu entro. Tudo fica em silên-cio. O tempo anda mais devagar. Minha visão periférica se apaga. É o estado mental de maior paz que já conheci. Aceitarei todos os fracassos, contanto que eu saiba que essa sensação virá novamente. Isso é o suficiente para eu continuar seguindo em frente.”

E Way continua indo em frente. Essa é sua marca registrada. Ele chega à China um dia antes do evento e sobe no alto da Mega Rampa. A plataforma está oscilante. Ele dá uns pulinhos. A estrutura inteira começa a balançar. Não é um bom sinal. Dois anos antes, um atleta de BMX tentou saltar a Muralha, mas uma rampa mal construída lançou-o sobre a plataforma de pouso, de encontro ao paredão de uma montanha. Ele morreu de falência múltipla dos órgãos internos algumas horas depois. Apesar disso, Way deci-de fazer um teste.

Será o único.Way treinou no deserto, onde o ar era rarefeito. Na China, com a umi-

dade, o ar é espesso demais. A atmosfera mais densa faz com que ele perca velocidade, e Way não consegue saltar todo o vão, sofre uma queda feia e é arrastado por mais de 15 metros. Seu tornozelo está fraturado, seu ligamen-to cruzado anterior foi rompido, seu pé dominante está inacreditavelmente inchado. Ele é levado às pressas para o hospital, mas, sem querer admitir a gravidade do ferimento, sai cambaleante, fugindo antes do tratamento. En-quanto isso, os operários estão em ação. A rampa de entrada é alongada, o vão é encurtado e, se Way decidir tentar novamente, será mais uma vez uma descida inédita.

Claro que ele tenta de novo. Vinte e quatro horas depois, e mal conseguin-do andar, Way sobe aqueles dez lances de escada pela segunda vez. Avança lentamente, a respiração pesada, a cabeça baixa. Mais de 125 milhões de chineses estão assistindo. A maioria prende o fôlego. No alto da plataforma de lançamento, Way anda para lá e para cá como um animal enjaulado. Fi-

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nalmente, decide que está na hora. Uma saudação com o braço para aquietar a multidão, o lançamento de seu peso para a frente e o baque solitário de seu skate tocando a rampa.

Um segundo, dois segundos...Ele leva 5 longos e dolorosos segundos para o início do salto. Cinco se-

gundos depois, tudo já terminou. Danny Way, sob condições extremamen-te adversas e com bastante serenidade, simplesmente se tornou a primeira pessoa a saltar a Grande Muralha da China num skate. Bateu dois recordes mundiais no caminho.6

Se essa fosse uma atividade esportiva comum, nossa história terminaria por aqui. Mas o triunfo do pódio raramente é o que motiva os atletas de esportes de ação. Way não anda de skate para quebrar recordes ou vencer campeonatos. Ele anda de skate. Ponto final. Além disso, a construção da Mega Rampa custou mais de meio milhão de dólares – de modo que a opor-tunidade de brincar numa delas não surge todos os dias. Assim, não tendo mais nada a provar e com sua vida em risco, Danny Way sobe os dez anda-res de novo, dessa vez realizando um 360 perfeito sobre o vão. E, só para se certificar de que aquele não foi um golpe de sorte, repete-o outras três vezes.

“Vejam bem”, diz Travis Pastrana, a lenda do motocross estilo livre, “na-quela rampa, com membros totalmente saudáveis, Danny já estaria arris-cando a vida. Mas ele destruiu o pé dominante e um joelho. Ao subir no skate, se o tornozelo ou o joelho ceder mesmo que por alguns milímetros, ele será lançado de lado e morrerá. Se você quer falar sobre desafiar limites, a maioria das pessoas nem sequer consegue ficar de pé com um tornozelo quebrado. Danny não só ficou, como suportou quatro Gs de pressão ao en-trar naquele quarter pipe – cinco vezes seguidas.”7

Um G é a força da gravidade terrestre – a força que determina nosso peso. Pilotos de Fórmula 1, ao fazerem uma curva, suportam dois Gs. Os astro-nautas, na decolagem, três. A maioria das pessoas perde a consciência com cinco. Os quatro Gs que Way experimentou equivalem a mais de 360 quilos de pressão adicional – tudo suportado por um tornozelo quebrado.

E, deixando de lado as pressões externas, o que dizer da pressão interna? Way, acredite se quiser, tem medo de altura. “Estive com Danny em viagens de reconhecimento”, diz Darryl Franklin, um de seus treinadores. “Nos luga-res altos, ele fica branco como uma folha de papel. Fica aterrorizado, não vê a hora de descer.” Mas conseguir manter esse medo sob controle no alto da

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Mega Rampa da Grande Muralha... com 61 metros de altura e balançando? Ter a confiança de realizar aquela façanha, quando ninguém conseguiu algo parecido? Com um tornozelo quebrado? Quando a última pessoa que quis saltar sobre a Grande Muralha morreu tentando? De novo, a pergunta que está no centro deste livro: como essas coisas são possíveis?

Bem, começando pelo início, pelo aspecto psicológico, há o fato irrefu-tável de que os fantasmas que atormentam Danny Way são implacáveis. São uma legião. Os fantasmas de seu irmão ferido, sua mãe alcoólatra, o pai mor-to, o padrasto morto, seu primeiro treinador, o homem que o salvou de si mesmo, morto quando seu carro foi atingido num sinal de trânsito, seu me-lhor amigo na prisão por homicídio, seu pescoço quebrado, suas fraturas nas costas, as inúmeras cirurgias, sua raiva, seu orgulho – um ruído implacável que só é realmente silenciado pela redenção do limite.

O limite é o único lugar aonde esses fantasmas não conseguem segui-lo.Com certeza, essa é uma grande motivação, mas continua não respondendo

à nossa pergunta. O peso do passado de Way e seu desejo de escapar meramen-te explicam parte dos seus motivos – por que ele começou a andar de skate, por que continuou praticando –, mas pouco nos dizem sobre como ele fez o que fez. Way sente o mesmo. “Quer saber como fiz aquilo de saltar a Grande Muralha com um tornozelo fraturado?”, diz ele. “Não posso responder. Tudo que posso contar é o que já contei: quando estou forçando os limites, levando o skate além de minhas habilidades, sempre entro num estado meditativo.”

Eis, portanto, a nossa resposta. Este é nosso mistério: um estado de cons-ciência raro e radical no qual o impossível torna-se possível. É o segredo que atletas de esportes de ação e aventura como Way têm sondado, a verdadeira razão pela qual o máximo desempenho humano cresceu exponencialmente nas últimas décadas. Esse estado mental é literalmente o caminho mais cur-to rumo ao super-humano.

E este é um livro sobre esse estado.

ALBERT HEIM, WILLIAM JAMES, WALTER CANNON E A HISTÓRIA DO DESEMPENHO MÁXIMO

Albert Heim descobriu esse estado também – quando caiu da encosta de uma montanha.8 Tudo aconteceu no início da primavera de 1871. Heim, seu

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irmão e três amigos partiram para escalar o Santis, o 12o pico mais alto da Suíça. Todos os cinco brincavam nos Alpes desde a infância, mas nenhum deles era considerado um montanhista experiente. Este é um fato histórico: quase ninguém era considerado um montanhista experiente em 1871.

Enquanto a primeira escalada registrada na história foi a corrida Monte Etna acima do imperador romano Adriano (para observar o nascer do sol) no ano 121, os historiadores situam a origem do esporte na subida do Wet-terhorn realizada por Sir Alfred Wills em 1854. Com certeza, guias locais já haviam alcançado o pico antes, mas Alfred era inglês – e eram os ingleses que estavam contando os pontos nessa época. De qualquer modo, a conquis-ta de Wills marcou o nascimento do “montanhismo sistemático” e o início da “Era de Ouro do Alpinismo”, um período de uma década durante a qual a maioria das primeiras escaladas nos Alpes foram completadas.

Albert Heim, por sua vez, chegou alguns anos atrasado para a Era de Ouro. Ele não é famoso por ter conquistado algum grande pico. Na verdade, ele não é lembrado por sua contribuição à história do montanhismo. Pelo contrário, é lembrado como o ponto em que essa história teve uma estranha reviravolta.

Os acontecimentos que lhe valeram essa distinção ocorreram acima da li-nha de árvores, no ponto onde os flancos inferiores verdejantes do Santis dão lugar a uma enorme parede de rocha. No momento em que o grupo atingiu a base desse maciço, o céu ensolarado se transformou em neve pesada. A total falta de visibilidade deixou-os aprisionados no meio de uma saliência na rocha. O caminho à frente descia por uma escarpa arriscada, íngreme e estreita, com penhascos por todos os lados. O grupo começou a discutir o que fazer a seguir, mas eles estavam mal agasalhados e superexpostos. Heim decidiu ir na frente. Assim que levantou a perna para dar um passo, uma rajada de vento arrebatou-lhe o chapéu da cabeça e ele, sem pensar, tentou pegá-lo de volta.

O movimento súbito o fez perder o equilíbrio, e a inclinação da monta-nha se encarregou do resto. Heim caiu para o lado e rolou para trás. Antes que alguém pudesse reagir, estava deslizando por um barranco enorme, sem conseguir parar. Seu machado de gelo não estava à mão. Ele tentou firmar a cabeça e as mãos no chão, mas seu crânio bateu nas pedras e seus dedos ficaram em carne viva. Antes que pudesse registrar a dor, ele caiu no vazio.

Foi um voo de 20 metros e não durou mais do que alguns segundos; mas essa não foi a experiência de Heim. A primeira coisa que ele percebeu foi

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que havia caído em outra dimensão. Seus sentidos estavam incrivelmente aguçados, sua visão era panorâmica. O tempo desacelerou, quase parando. Heim podia ver seu irmão, seus amigos e o pavor no rosto deles, mas, como explicou mais tarde, não sentiu “nenhuma ansiedade, nenhum vestígio de desespero ou dor... só serenidade, aceitação profunda e uma rapidez mental dominante”.

Com a vida passando em câmera lenta diante de seus olhos, Heim teve tempo de examinar o terreno e começar a fazer planos para o resgate. Ima-ginou cenários para ferimentos leves e para ferimentos graves: onde iria aterrissar, se iria bater nas pedras e como seus companheiros chegariam até seu corpo. Então percebeu que jamais sobreviveria à queda e que, portanto, estaria morto e não seria capaz de dar a palestra que havia marcado para cinco dias depois na Universidade de Oxford, sua primeira grande aula em Oxford. Teria de achar um substituto. Mas ele estaria morto. Portanto, outra pessoa teria de achar um substituto. Em seguida tentou tirar os óculos – para proteger os olhos, é claro –, mas não conseguiu alcançá-los. Em vez disso, disse adeus à família e aos amigos... (Ele estaria ouvindo uma música celes-tial?) Mas, espere: se ele sobrevivesse à queda, então provavelmente ficaria aturdido pelo impacto. Como não queria cair de outro penhasco, a primeira coisa que precisava fazer era recuperar os sentidos. Algumas gotas de vina-gre na língua bastariam. Continuou pensando em coisas assim, como con-tou mais tarde, e então: “Ouvi um baque surdo, e minha queda terminou.”

Heim sobreviveu ao impacto, mas nunca superou o mistério. Visão pa-norâmica? Percepção diferente do tempo? Música celestial? Nada daquilo fazia sentido. Ele era cientista de formação, um geólogo que iria fazer um trabalho fundamental sobre a estrutura dos Alpes e se tornar um membro da Sociedade Real de Oxford, mas sua experiência parecia estar além dos limites do racional. Sem saber o que mais poderia fazer, Heim realizou uma pesquisa com 32 outras pessoas que haviam sobrevivido a quedas quase fa-tais. Impressionantes 95 por cento relataram acontecimentos anômalos se-melhantes. O que os causara permaneceria objeto de longos debates, mas a obra de Heim marca a primeira investigação científica sobre o fato de que a atividade de alto risco pode alterar profundamente a consciência e aumentar de maneira significativa as habilidades mentais.

Heim escreveu sobre tudo isso num longo ensaio intitulado “Observa-ções sobre quedas fatais”, publicado em 1892. Os historiadores o consideram

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o primeiro relato escrito a partir de uma “experiência de quase morte”, mas esse termo pode causar mal-entendidos. Muitos dos entrevistados relata-ram esses estados de consciência profundamente alterados sem correrem qualquer risco real – eles apenas pensaram que estivessem em risco de vida. Esse era um detalhe fundamental. Aquelas experiências pareciam místicas. Se só surgiam em grandes apuros, talvez fossem realmente comunicações do além. Mas, se a percepção e a psicologia fossem suas causas, o enigma era mais fisiológico do que paranormal – o que abria caminho para possibilida-des bem mais interessantes.

Um dos primeiros a se dar conta dessas possibilidades foi o filósofo, mé-dico e psicólogo William James. Talvez ele fosse a pessoa certa. Durante o tempo que lecionou em Harvard, James foi um dos homens mais extrava-gantes da ciência, sempre em busca de sensações extremas. Ele costumava ser cobaia de si mesmo em alguns experimentos. No início da década de 1880, esses experimentos envolveram drogas psicoativas, principalmente óxido nitroso, mas ele também flertou com mescalina.9 Ao mesmo tempo, James vinha realizando uma ampla pesquisa de livros sobre fenômenos es-pirituais, tentando formar um catálogo completo de todos os tipos possíveis de experiências místicas e suas consequências psicológicas. Ele observou que, qualquer que fosse a droga ingerida ou a tradição espiritual em questão, todas as chamadas experiências místicas pareciam compartilhar profundos pontos em comum: variações sobre os mesmos temas relatados por Heim.

James também notou mais dois detalhes importantes. O primeiro era que aquelas experiências eram profundas – as pessoas saíam delas radicalmente transformadas. Mais felizes, mais satisfeitas, muito mais realizadas. Os re-sultados eram inegáveis. Apesar da natureza aparentemente fantástica dos acontecimentos, James teve certeza de que eles produziam mudanças psico-lógicas muito reais.

O segundo era que aventuras de alto risco tendiam a amplificar não só o desempenho mental, mas também o desempenho físico. A descoberta dei-xou James curioso sobre os limites do potencial humano e o levou à famosa conclusão: “A maioria das pessoas vive num círculo bem restrito de seu ser potencial, fazendo uso de uma porção bem pequena de sua consciência pos-sível e dos recursos de sua alma em geral – à semelhança de um homem que, de todo seu organismo, adquirisse o hábito de usar e mover apenas seu dedo mindinho.”10

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No entanto, como percebeu James criticamente, as pessoas não estavam condenadas a permanecer desse jeito. “Nossa consciência de vigília normal, a consciência racional, como a chamamos, é apenas um tipo especial de consciência, enquanto à sua volta, separada dela pela mais tênue das telas, residem formas potenciais de consciência inteiramente diferentes. Podemos passar pela vida sem suspeitar de sua existência, mas, com o estímulo neces-sário, estarão ali em toda a sua plenitude.”11

Qual é o estímulo necessário? Drogas psicoativas com certeza provocam essas experiências, assim como uma série de práticas espirituais. Mas, em se tratando de revelar habilidades ocultas, James compartilhou a opinião de Heim: a atividade de alto risco parecia ser o caminho mais provável. Certa vez ele escreveu: “As grandes emergências e crises nos mostram como nossos recursos vitais são maiores do que havíamos suposto.”

O trabalho de Heim e James estabeleceu as bases para uma investigação mais profunda do potencial humano, mas foi a descoberta de um dos alunos de James, Walter Bradford Cannon, que realmente mudou a natureza do jogo.12 Cannon estava interessado nas mudanças fisiológicas incomuns pro-duzidas por emoções poderosas. Em todos os mamíferos, a fúria, a raiva e o medo produzem uma variedade de sintomas: os batimentos cardíacos ace-leram, as pupilas dilatam, as narinas se alargam, os músculos se enrijecem, a digestão cessa, os sentidos ficam alertas e aguçados – a lista prossegue. Por volta de 1916, Cannon concluiu que essas diferentes reações eram, na verda-de, os elementos de uma reação global do sistema nervoso à tensão extrema que tem um claro propósito: aumentar a força e o vigor.

Cannon havia descoberto a “reação de lutar ou fugir” e isso mudou as regras do jogo. Até então, o aumento do desempenho sempre tivera origem divina. Quer compor um soneto? Fale com as Musas. Quer melhorar o tem-po nos 100 metros rasos? Hermes pode ajudar. Mas a reação de lutar ou fugir mudou a equação, transformando um dom dos deuses em um mero subproduto da biologia.

E a biologia era manipulável.A trilha de Heim para James e Cannon foi da psicologia à fisiologia. O

estado mental influencia a emoção, que altera a biologia, que aumenta o desempenho. Assim, parecia que, modificando o estado mental – usando--se todo tipo de intervenções, das físicas às psicológicas e farmacológicas –, seria possível aumentar significativamente o desempenho.

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Desse trabalho surgiu um dos movimentos mais estranhos da história: a tentativa épica de manipular o máximo desempenho humano – um esforço gigantesco, global, na maior parte clandestino, muitas vezes improvisado, de mais de 100 anos, para desvendar os mistérios desse estado alterado de consciência. Aventureiros, artistas, acadêmicos, marginais boêmios, cientis-tas rebeldes, cientistas credenciados, o submundo psicodélico, pesquisadores do paranormal, as forças armadas, o alto escalão do Pentágono, os CEOs de grandes empresas – todos se envolveram. No entanto, de toda essa miscelânea – por motivos que foram responsáveis pela maior parte deste livro –, os atletas dos esportes de ação e aventura se tornaram os maiores praticantes dessa arte, os senhores desse estado que hoje é conhecido pelos cientistas como fluxo.

O CAMINHO DE WAY

Três semanas depois de retornar da Ásia com o tornozelo quebrado, o joelho torcido e o pé ainda bem inchado, Danny Way tem uma decisão a tomar. A 15a edição dos X Games de Verão será realizada no centro de Los Angeles, tendo a Mega Rampa como centro da competição de skate. Way levou o ouro para casa no ano anterior, mas, com os ferimentos sofridos na China, ninguém espera que vá defender seu título. Ninguém além do próprio Way.

Way venceu seu primeiro concurso aos 11 anos, foi eleito Skatista do Ano pela Thrasher Magazine duas vezes, ganhou cinco medalhas de ouro nos X Games, esteve seis vezes no pódio dessa mesma competição e quebrou sete recordes mundiais.13 Até hoje ele é o único skatista cujo nome está inscrito em ouro na Grande Muralha da China, o único a se lançar com o skate do alto dos 20 metros da guitarra em frente ao Cassino Hard Rock em Las Vegas e o único a ter carreiras paralelas no motocross e no snowboarding profissio-nal. Mas, de todas as coisas que Way realizou, nada é mais impressionante do que sua capacidade de superar as lesões.

“Danny Way sozinho inventou a medicina esportiva para skatistas”, diz Jacob Rosenberg, diretor do excelente documentário sobre Danny, Waiting for Lightning. “Quando quebrou o pescoço... aquela foi uma lesão digna de encerrar uma carreira. Atletas já se aposentaram por muito menos. Mas Danny não aceitaria isso. Ele encontrou seus próprios médicos. Foi pioneiro em seus próprios métodos.”14

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Os métodos de Way são lendários. Em uma série de ocasiões, para entender melhor sua lesão, optou por passar por cirurgias sem anestesia. O surfista de ondas grandes Chris Malloy conta uma história sobre a época em que ele e Way se submeteram ao mesmo procedimento no joelho. “Eu tenho um limiar bem alto para a dor”, conta Malloy. “Meio que curto ver quanto consigo suportar. Mas, quando voltei do hospital para casa, estava semiconsciente, em extrema agonia, quase a pior que já havia sentido. Alguns dias depois liguei para Danny e mencionei quão exaustivo aquilo tinha sido. Ele disse: ‘Sim, dirigir para casa depois foi arriscado.’ Passamos pelo mesmo procedimento. Eu sentia tanta dor que chegava a desmaiar. Danny dirigiu o próprio carro na volta do hospital.”15

Assim, talvez não seja nenhuma surpresa que, apenas três semanas após retornar da China, Way decida subir na plataforma da Mega Rampa dos X Games e examinar o cenário. Sua aparição deixa a multidão em polvorosa. Ele mal percebe. “Tornei-me muito bom em baixar o véu”, diz Way, “em ca-muflar a realidade, bloqueando minha mente consciente e voltando o foco para o estado de total concentração.”16

Jake Brown deve ser capaz de fazer a mesma coisa.17 Momentos depois, ele dá início à competição com um mute grab de 360 graus de 21 metros sobre o vão e um McTwist – um backside invertido de 540 graus com outro mute grab – no quarter pipe. Um medidor de altura eletrônico está posicio-nado atrás da rampa. No ponto mais alto do McTwist de Brown, o medidor indica 6,7 metros – e isso sobre um quarter pipe de mais de 8 metros.

Bob Burnquist entra em seguida, cai do skate no meio do vão e mergulha de cabeça na rampa de aterrissagem. Típico de Burnquist. Conhecido por manobras extremamente técnicas em situações extremamente perigosas, ele sobrevive graças a seus reflexos de felino e a um carma excelente. Desta vez não é diferente. Burnquist abaixa os joelhos no último momento e amortece a queda com suas joelheiras.

Depois vem Way. Ele passa tranquilamente sobre o vão, toca a rampa de aterrissagem e se aproxima do quarter pipe. E então tudo começa a dar erra-do. Ele voa 6,7 metros no ar, mas cai de mau jeito e bate com o pé na borda da rampa – o mesmo pé que fraturou na China. O impacto vira Way de cabe-ça para baixo e faz com que seu tornozelo quebre novamente. Ele desce mais 3 metros, bate com força, quica duas vezes e para, imóvel. A equipe médica vem correndo. No estádio, todos prendem a respiração. No alto da rampa, Bob Burnquist afunda a cabeça nas mãos.

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Três pessoas correm para ajudar Way a se levantar, mas ele se desvencilha da ajuda e vai cambaleando até a lateral da rampa. Uma performance cora-josa. O locutor ainda diz o que todos estão pensando: “Não sei como Danny conseguiu se recuperar daquilo.”

Uma boa pergunta.Em 1907, William James desafiou os psicólogos a explicarem por que cer-

tas pessoas conseguem recorrer a reservatórios profundos para realizar bem mais do que as outras. Como um exemplo, ele refletiu sobre o conceito de “segundo vento”.

A fadiga vai piorando até atingir um ponto crítico, quando gradualmente, ou de súbito, desaparece, e nos sentimos mais bem-dispostos que antes. É evidente que recorremos a uma reserva nova de energia, mascarada até então pelo obstáculo da fadiga – geralmente respeitado. Pode haver camada após camada dessa experiência. Um terceiro e um quarto “vento” pode sobrevir. A atividade mental demonstra esse fenômeno, assim como a física, e em casos excepcionais podemos encontrar, depois do limite da fadiga-dor, quantidades de alívio e poder que nunca sonhamos possuir, fontes de força habitualmente não exploradas, porque não costumamos insistir para além do obstáculo, nunca passamos daqueles pontos críticos iniciais.18

Danny Way passou a vida superando obstáculos. O skate lhe deu uma família e o senso de pertencimento, e ele sente que a única forma de pagar essa dívida é continuar progredindo no esporte. Nesse momento, a equipe médica examina seu tornozelo. Está claramente destruído. Eles dizem que ele precisa ir para o hospital, que deveria seriamente dar por encerrada as atividades do dia. Way reage à ideia fazendo que não com a cabeça.

“Este não é meu estilo”, diz ele.Assim, não muito mais do que dez minutos depois, Way retorna ao alto

da Mega Rampa, espanta a dor e manda um rocket air backflip sobre o vão. Nas condições em que estava, apenas um rocket air já seria uma vitória. In-ventada por Christian Hosoi em 1986,19 essa manobra exige que o skatista firme ambos os pés na parte de trás do skate, enquanto ambas as mãos agar-ram a parte da frente, e aí, empurrando o skate para a frente, o atleta e o skate formam um esboço aproximado de um foguete. Mas acrescentar um

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tornozelo quebrado e um backflip a essa mistura? É o mesmo que Leonardo da Vinci pintar a Mona Lisa com um facão enfiado no olho.

“Isso é parte do problema de tentarmos discutir o nível de desempenho nos esportes de ação atualmente”, diz Travis Pastrana. “Danny Way fez um backflip de 21 metros com um tornozelo quebrado. Mas quantas pessoas no mundo sequer conseguem mandar um backflip? No chão plano? Sobre um vão de 21 metros? E um rocket air? Nada disso são habilidades do dia a dia. E reuni-las em frente a um público, em competições por medalhas de ouro? Muitas pessoas diriam que só essa manobra já foi um lance magistral que lhe valeria o ouro, mas Danny ainda não havia terminado. Ele ainda tinha o quarter pipe pela frente.”20

O quarter pipe lança Way uns 6 metros no ar, e ele manda um varial 540 – o que significa que, ao mesmo tempo que realiza um giro e meio, também está levando os braços entre as pernas e girando seu skate 180 graus – e aterrissa suavemente. O público vai à loucura: “Quando você for dizer que não consegue fazer alguma coisa”, grita o locutor, “lembre-se de Danny Way.”

Mas não há necessidade de lembrar – porque Way ainda não acabou. Durante a hora seguinte, ele, Burnquist e Brown entram num dos maiores duelos da história dos X Games. Way chega a levar outro tombo sério, que deve tê-lo deixado tonto, mas retorna uma segunda vez. Resta-lhe uma últi-ma chance. Para voltar ao primeiro lugar, ele precisa fazer algo espetacular. Way não decepciona.

Com um backflip sobre o vão, segue em disparada para o quarter pipe e manda... bem, ninguém sabe ainda ao certo. Ele gira duas vezes e fica longe demais da parede vertical, então tenta alterar sua rota de voo com uma tor-ção lateral. Esse impulso adicional gira excessivamente seu tronco, seus pés vão em direção à cabeça, seu corpo gira até ele quase ficar de cabeça para baixo. Ele está a 15 metros da borda da rampa, caindo rápido. O locutor diz: “Oh, não.” O estádio inteiro se prepara para o impacto. Mas – com a calma de uma gueixa servindo chá – Way coloca os pés de volta no skate e acerta a aterrissagem.

“Venho fotografando esportes de ação há 20 anos”, diz o fotógrafo Mike Blabac. “Nunca vi ninguém fazer algo assim.”21 Poucos viram. Costuma-se dizer que o período de quatro semanas entre a primeira tentativa de Way na Grande Muralha e seu milagre de 540 graus nos X Games é um dos exem-plos mais impressionantes do desempenho atlético na história dos esportes

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de ação. Talvez o mais impressionante de todos, conforme dizem algumas pessoas. Em última análise, é provavelmente difícil demais fazer essa afir-mação, mas o desempenho de Way demonstra, no mínimo, a profundeza da nossa ignorância. Não temos a menor ideia de onde estão nossos limites nem de quanto temos guardado em nosso reservatório. Quer mais uma pro-va? Na competição de Big Air, Danny Way ficou em segundo lugar.

Bob Burnquist, na última volta da competição, decide realizar uma ma-nobra que nunca tentou – nem nos aquecimentos nem em qualquer mo-mento durante a competição. Ele acerta um switch de costas sobre o vão e outro enquanto se lança do quarter pipe. Então executa um indie backside 360 na parede vertical – uma das manobras mais difíceis do skate (ironi-camente, inventada por Way no início da década de 1990). Para fazê-la, é necessário aterrissar de costas e às cegas. Burnquist mandou o maior indie backside 360 de todos os tempos, caindo mais de 6 metros antes de voltar a enxergar a rampa. Way, que observava ao lado, simplesmente balança a cabeça e começa a aplaudir.

“Todo bom atleta pode atingir o estado de fluxo”, continua Pastrana, “mas é o que você faz com ele que o torna excepcional. Se você sistematicamente se utiliza desse estado para fazer o impossível, ganha confiança em sua ha-bilidade de realizar o impossível. Você começa a esperar por isso. Essa é a razão pela qual estamos vendo tanto progresso nos esportes de ação hoje. Trata-se da consequência natural do fato de um bando de gente ter começa-do a esperar o impossível.”

O PAI DO FLUXO

Foi Mihaly Csikszentmihalyi, ex-presidente do Departamento de Psicolo-gia da Universidade de Chicago e atual professor da Claremont Graduate University, quem cunhou o termo fluxo.22 Isso foi no final da década de 1960. Csikszentmihalyi estava em meio ao que logo se tornaria o maior estudo global sobre a felicidade já realizado, embora esse tenha sido um resultado um tanto acidental. Tomando de empréstimo a expressão de Da-niel Gilbert, Csikszentmihalyi havia apenas tropeçado na felicidade. O que vinha realmente buscando era o sentido da vida.

E estava sendo uma busca e tanto.

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Csikszentmihalyi nasceu em Flume, na Itália – atual Rijeka, Croácia –, em 29 de setembro de 1934. Filho de um diplomata húngaro, sua infância foi destruída pela guerra enquanto fugia tanto dos nazistas quanto dos russos. Um de seus irmãos foi morto, e outro, exilado na Sibéria. Quando tinha 7 anos, Csikszentmihalyi foi enviado a um campo de prisioneiros italiano.

No campo, Csikszentmihalyi aprendeu a jogar xadrez. Ele ficou obcecado pelo jogo. Quando estava diante do tabuleiro, nada mais parecia penetrar sua consciência: nenhum irmão desaparecido, nenhum guarda armado, ne-nhuma prisão. O xadrez permitia que ele esquecesse o caos, que tirasse o melhor de uma situação ruim. Aquilo, observou ele, era um talento raro.

“Na prisão”, contou Csikszentmihalyi ao público da TED, “percebi que poucos adultos à minha volta eram capazes de suportar as tragédias trazidas pela guerra, poucos tinham algo parecido com uma vida normal, contente e satisfatória depois de terem visto seus empregos, seus lares e sua segurança serem destruídos. Assim, passei a me interessar em entender o que contri-buía para uma vida que vale a pena ser vivida.”

Depois da guerra, Csikszentmihalyi leu filosofia, estudou religião, envol-veu-se com as artes – todas essas coisas que, supostamente, dão sentido à vida. Nada o satisfez totalmente. Então, numa tarde de domingo em Zu-rique, foi a uma palestra gratuita de Carl Jung, o fundador da psicologia analítica. Csikszentmihalyi gostou da palestra, começou a ler os livros de Jung e logo concluiu que a psicologia era a melhor forma de responder às suas indagações.

Nos anos seguintes, seus estudos o levaram à Universidade de Chicago, onde concentrou-se em um dos temas quentes do momento: motivação. Depois que o inconsciente de Freud foi destronado pelo behaviorismo de Skinner, os psicólogos começaram a ter dificuldade para explicar por que as pessoas faziam o que faziam. Os behavioristas diziam que tudo se resumia a necessidade e recompensa. Fazemos X para obter Y. Isso é conhecido como “motivação extrínseca”, mas essa conclusão nunca satisfez Abraham Maslow.

Um dos maiores pensadores da psicologia do século passado, Maslow iniciou sua carreira na década de 1940 integrando a equipe do Brooklyn College, onde recebeu orientação da antropóloga Ruth Benedict e do psicó-logo gestaltista Max Wertheimer. Nessa época, a maior parte da psicologia se concentrava em solucionar patologias, e não em celebrar as possibilidades

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psicológicas, mas Maslow considerava Benedict e Wertheimer “seres huma-nos tão maravilhosos” que começou a estudar seu comportamento, tentando descobrir o que eles estavam fazendo certo.

Com o tempo, passou a analisar o comportamento de outros modelos de desempenho humano excepcional. Albert Einstein, Eleanor Roosevelt e Frederick Douglass passaram por seu escrutínio. Maslow estava em busca de traços e circunstâncias em comum, tentando explicar por que aqueles sujeitos conseguiam atingir feitos tão inacreditáveis, enquanto tantos outros continuavam atrapalhados.

As pessoas de sucesso, conforme ele acabou observando, eram intrin-secamente motivadas e estavam profundamente comprometidas a ir além dos limites e aumentar seu potencial. Para alcançar esse objetivo, elas com frequência usavam alguma atividade que exigisse concentração intensa. Mas Maslow também notou que atividades desse tipo produzem uma re-compensa significativa: alteram a consciência e criam experiências bem similares àquelas que São Tiago chamou de “místicas”. Exceto por uma diferença importante: poucos indivíduos estudados por Maslow eram se-quer religiosos.

Assim, Maslow secularizou a terminologia de São Tiago. “Experiências místicas” deram lugar a “experiências de pico” – a sensação, porém, era a mesma. “Durante uma experiência de pico”, explicou Maslow, “o indivíduo experimenta uma expansão do eu, uma sensação de unidade e de riqueza de significado na vida. A experiência perdura na consciência e lhe dá um sen-so de propósito, integração, autodeterminação e empatia.”23 Esses estados, concluiu ele, eram o ponto em comum secreto entre as pessoas de sucesso, o código fonte da motivação intrínseca:

A experiência de pico é vivida como um momento autovalidador, au-tolegitimador. [...] É sentida como uma experiência altamente valiosa – especialmente valiosa –, às vezes tão grandiosa que mesmo a tentativa de legitimá-la reduz sua dignidade e seu valor. De fato, muitas pessoas acham essa experiência tão grandiosa e elevada que ela não apenas se le-gitima, mas legitima a própria vida. As experiências de pico podem fazer a vida valer a pena por sua ocorrência ocasional. Elas dão sentido à pró-pria vida. Provam que viver vale a pena. Para dizê-lo de forma negativa, eu diria que as experiências de pico ajudam a prevenir o suicídio.

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Csikszentmihalyi entrou em cena alguns anos depois. A gênese de seu estudo sobre a felicidade foi uma versão mais prosaica da investigação de Maslow.24 Csikszentmihalyi não estava apenas interessado em pessoas de sucesso – estava curioso sobre o que motivava o cidadão comum: quais atividades produziam maior prazer e satisfação? Essa foi a origem de seu estudo sobre a felicidade – o desejo de indagar às pessoas sobre as ocasiões em suas vidas em que se sentiram muito bem e alcançaram seu melhor desempenho.

Ele começou entrevistando especialistas: alpinistas, dançarinos, artistas, cirurgiões, jogadores de xadrez, etc. Depois sua pesquisa passou a incluir agricultores italianos, pastores navajos, trabalhadores de linha de monta-gem de Chicago, adolescentes rebeldes japoneses, mulheres coreanas idosas – uma diversidade gigantesca. Para sua surpresa, e independentemente da cultura, do nível de modernização, da idade, da classe social ou do gênero, todas essas pessoas disseram a mesma coisa: quando estavam em sua melhor forma e se sentiam muito bem, elas experimentavam sensações bem seme-lhantes às experiências de pico de Maslow.

Foi uma descoberta espantosa. Isso significava que, embora a fonte de prazer das pessoas variasse completamente – os adolescentes japoneses gos-tavam de andar por aí de moto e as mulheres coreanas idosas preferiam a meditação –, a sensação que a atividade produzia, a razão por trás do prazer, era onipresente. De fato, quando Csikszentmihalyi mergulhou mais fundo nos dados, descobriu que as pessoas mais felizes da Terra, aquelas que sen-tiam que suas vidas tinham mais sentido, eram aquelas que passavam por mais experiências de pico.

Além disso, não se tratava de um resultado do acaso ou da sorte. As pes-soas mais felizes do planeta se esforçavam para alcançar sua satisfação. Não apenas tinham mais experiências de pico, mas dedicavam suas vidas a tê-las, muitas vezes, como explicou Csikszentmihalyi em seu livro de 1996, Creati-vity, não medindo esforços em sua busca:

Ficou claro da conversa com eles que o que os mantinha motivados era a qualidade de sua experiência quando estavam envolvidos com a ativida-de em questão. A sensação não vinha quando estavam relaxando, toman-do drogas ou álcool, nem quando estavam usufruindo dos privilégios da riqueza. Pelo contrário, com frequência era fruto de atividades dolorosas,

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arriscadas e difíceis, que aumentavam a capacidade da pessoa e envol-viam um elemento de novidade e descoberta.25

Em sua pesquisa, os entrevistados viviam usando o termo fluxo para des-crever aqueles estados ideais de desempenho, quando tudo estava indo bem, o trabalho era fácil, fluido e autêntico – fluía. Assim Csikszentmihalyi, se-guindo a tradição, renomeou as “experiências de pico”, preferindo chamá-las de “estados de fluxo” – o que ele definiu como “estar tão envolvido com uma atividade que nada mais parece importar. O ego desaparece. O tempo voa. Toda ação, todo movimento e todo pensamento surgem inevitavelmente dos anteriores, como ao tocar jazz. Todo seu ser participa e você está usando o máximo de suas habilidades”.26

E essas habilidades são significativamente maximizadas. Habilidades fí-sicas, mentais, psicológicas, sociais, criativas, de tomada de decisões – a lista é interminável. Um estudo de dez anos feito pela McKinsey descobriu que os altos executivos relatavam serem até cinco vezes mais produtivos quando estavam em fluxo.27 A criatividade e a cooperação são tão amplificadas que James Slavet, capitalista de risco da Greylock Partners, num artigo recente para a Forbes.com, considerou a “porcentagem de estado de fluxo” – defini-da como a quantidade de tempo que os funcionários passam em fluxo – o “mais importante indicador gerencial para desenvolver equipes excepcional-mente inovadoras”.28

O fluxo também tem um impacto incrível, mas pouco comentado, sobre nossa economia. “Quando assistimos a um show ao vivo ou a um evento esportivo tradicional”, diz Salim Ismail, antigo chefe de inovação da Yahoo e embaixador global da Singularity University, “estamos essencialmente pa-gando para assistir a pessoas em estado de fluxo. Seja Kobe Bryant, Roger Federer, Jay-Z ou um cantor de jazz, todos eles trabalharam inúmeras ho-ras para que, no momento do espetáculo, estejam plenamente presentes e em fluxo. Um ator com presença de palco está fluindo também. Um grande poeta pode proporcionar fluxo ao leitor pelo simples poder das palavras. Pa-gamos para assistir, ler ou estar em presença de uma experiência de fluxo. Se pudesse quantificá-las, você constataria que elas respondem por uma grande fatia do PIB.”

Claro que os efeitos do fluxo vão além dos lucros e do aumento de nossas habilidades. Os dados coletados por Csikszentmihalyi são claros. O fluxo é

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mais que um estado ideal de consciência, em que nos sentimos em nossa melhor forma e temos nosso melhor desempenho; ele também parece ser a única resposta viável à pergunta: qual o sentido da vida? O fluxo é o que faz a vida valer a pena. “São momentos que se destacam do caos do dia a dia como faróis”, escrevem Csikszentmihalyi e a psicóloga Susan Jackson em Flow in Sports.29 “Em vários aspectos, poderíamos dizer que todo o esforço da huma-nidade através dos milênios de história tem tentado capturar esses momentos fugazes de realização e torná-los parte da existência cotidiana.”

O fluxo foi uma descoberta revolucionária e teve um impacto consi-derável.30 Nos anos que se seguiriam, iria discretamente reformular nosso mundo, alterando de forma radical nosso pensamento sobre tudo, dos limi-tes do desempenho humano à neurobiologia da experiência religiosa. Pro-vocaria debates científicos excepcionais e criaria meia dúzia de campos de pesquisa acadêmica ou teria um grande impacto sobre eles. Grandes corpo-rações transformariam o estado de fluxo numa peça crucial de sua estraté-gia e sua cultura. Setores inteiros se beneficiariam: programadores em fluxo desenvolveram a internet, jogadores em fluxo desenvolveram a indústria do videogame e, é claro, o mundo dos esportes jamais seria o mesmo.

Foram lançados inúmeros livros e programas de treinamento para atletas em busca desse estado: fluxo no golfe, fluxo no tênis, fluxo no arco e flecha. Em 1993, o técnico Jimmy Johnson reconheceu que Csikszentmihalyi havia ajudado os Dallas Cowboys a ganharem o Campeonato Nacional – e eis que o fluxo chegava também ao futebol americano. O psicólogo esportivo da Universidade Temple Michael Sachs, que realizou um amplo estudo desses estados, fez uma boa síntese: “Sabemos agora que, por trás de cada medalha de ouro ou campeonato mundial, encontramos o estado de fluxo.”31

Porém, entre todos esses grupos, foram os atletas dos esportes de ação e aventura os responsáveis por levarem as coisas mais longe. Parte disso foi acidental, parte foi intencional, mas se você está em busca de uma explica-ção para o crescimento quase exponencial do máximo desempenho humano nesta última geração, a primeira resposta é bem objetiva: embora achar o fluxo possa ser a meta de todo atleta no planeta, para os atletas dos esportes de ação e aventura, isso é uma necessidade.

Em todas as outras atividades, o fluxo marca o alto desempenho, mas em situações onde o menor erro pode ser fatal, a perfeição é a única escolha – e o fluxo é a única garantia de perfeição. Assim, o estado de fluxo é a única for-

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ma de sobreviver nas condições fluidas e potencialmente mortais das ondas grandes, dos rios ferozes e das grandes montanhas. Sem ele, um equipamen-to como a Mega Rampa seria apenas um sonho impossível ou uma sentença de morte. A necessidade, como dizem, é a mãe da invenção.

Como explica Danny Way: “Ou você encontra o estado de fluxo ou sofre as consequências – não há outra opção.”32

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