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N.º 205 Maio 2015 Mensal Portugal € 3,50 (Continente) Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento 5 601753 002096 00205 Física As experiências mais excitantes www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante 7 exercícios para cuidar da sua COLUNA Novas terapias de combate à dor Natura 2000 Para que serve a rede ecológica? Tecnologia O novo fôlego da realidade virtual Ensino Superior • Cursos com emprego garantido • O balanço de Bolonha • O lugar das mulheres

Super interessante nº 205

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N.º 205

Maio 2015

Mensal Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

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FísicaAs experiências mais excitantes

www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante

7 exercícios para cuidar da sua

COLUNANovas terapias de combate à dor

Natura 2000Para que serve

a rede ecológica?

TecnologiaO novo fôlego da realidade virtual

Ensino Superior

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garantido• O balanço de Bolonha• O lugar

das mulheres

2 SUPERavaxhm.com

3Interessante

A VERDADE ESCONDE-SE AÍ POR BAIXO

ESTREIA 2ª TEMPORADADOMINGO 24 ÀS 22h00

TMFAZ-SE CADA DIA

Disponível em todas as plataformas de televisão paga

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Observatório 4O Lado Escuro do Universo 5Motor 8 Super Portugueses 10Histórias do Tejo 12Caçadores de Estrelas 14Flash 48Marcas & Produtos 97Foto do Mês 98

D edicando esta edição oito páginas e a capa ao tema da coluna vertebral, acho apropriado dar um salto para o lado e referir um caso de que tive conhecimen-

to através do programa O Amor É, do sexólogo Júlio Machado Vaz e da radialista Inês Meneses, na Antena 1: numa prisão inglesa, dois homens de 40 e 31 anos, detidos por homicídio homofóbico, conhecem-se na biblioteca, descobrem-se almas gémeas e... casam. Trata-se de assassinos condenados a pelo menos 20 e 18 anos de cadeia, portanto considerados especialmente perigosos e premeditados na forma como executaram os crimes que os levaram à prisão. Tiveram de dobrar a es-pinha ou dar a mão à palmatória, como queiram: o que tanto criticavam nos outros também podia morar dentro de si; não compreendiam até compreenderem. Para a justiça poética ser ainda mais completa, falta atentar no pormenor de se terem conhecido na biblioteca da prisão. Vamos admitir, sem saber, que ali procuravam razões culturais para a homossexualidade (“é um desvio, eles podem tratar-se, se quiserem”), mas acabaram por descobrir um impulso irresistível, inato, que os apro-ximava um do outro. Não podendo lutar com tal pulsão avassaladora, não viram outra saída senão optar pelo gesto mais espetacular e radical: casar. Gostaria muito de saber como comentaria este caso o advogado californiano Matt McLaughlin, que acaba de propor uma lei (se passar uma série de filtros, terá de ser submetida a referendo nas próximas eleições) para abater os homossexuais com uma bala na tes-ta, antes que a ira divina caia sobre a humanidade. Calculo que, para McLaughlin, os dois assassinos homofóbicos ingleses pudessem aparecer como uma espécie de heróis iluminados por Deus. E depois de casarem? Dobra a espinha! C.M.

A olho nu Vistas das alturas a que orbitam os satélites, certas parte do nosso planeta parecem saídas da paleta de um pintor abstrato... ou não. Pág. 18

Irá a realidade virtual tornar-se real?Tudo indica que 2015 poderá ser o ano em que, inalmente, teremos verdadeiros equipamentos de realidade virtual, confortáveis e a preço acessível. Tudo por causa de um visionário. Pág. 88

N.º 205

Maio 2015

Mensal Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

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Física

As experiências

mais excitantes

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7 exercícios para cuidar da sua

COLUNANovas terapias

de combate à dor

Natura 2000

Para que serve

a rede ecológica?

Tecnologia

O novo fôlego da

realidade virtual

Ensino

Superior

• Cursos com emprego

garantido

• O balanço

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Dobrar a espinhaMaio 2015205

SECÇÕES

www.superinteressante.pt

Arma revolucionáriaFreek Vonk decidiu sequenciar o genoma da cobra-real, para compreender de que modo a evolução fez surgir os venenos dos répteis. Pág. 34

SAÚDE

Serpentes medicinais34

Satélites: beleza nas alturasTERRA 18

www.assinerevistas.com

Picassos Os artistas de Altamira deixaram--nos iguras impressio- nantes, mas não foram, nem de longe, os primeiros hominídeos a ter pensamento simbólico.Pág. 82

Assi e c u c ique!

PICTOGRAMAS

Novo sistema mundial de sinais74

DOCUMENTO

Nos limites da física50

Feneco, os espíritos do desertoANIMAIS 30

SAÚDE

Coluna: com postura22

AMBIENTE

A rede Natura 200040

DOSSIER

Ensino superior 201562

TECNOLOGIA

Superbarcos à escala92

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LIVROS

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ARQUEOLOGIA

Os primeiros artistas82

TECNOLOGIA

Novo mundo virtual88

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Observatório

D esde que os primei ros microscópios co meçaram, no século XVII, a reve-lar-nos um mundo minúsculo, os instru mentos óticos que permitem

observar o mais diminuto evo luíram até serem capazes de retratar a atividade dos neurónios de um rato. Foi preci samente uma micrografia que mostra estas células que venceu um dos Wellcome Images Awards 2015, galardões anuais que premeiam o que podem fazer as novas técnicas de imagem aplicadas à investi gação. As vinte fotos e ilustrações destacadas nesta ocasião foram sele cionadas de entre milhares pela Wellcome Library de Londres, uma insti-tuição que documen ta a história da medicina. Segundo afirmou o cientista e divulgador Adam Rutherford, um dos juízes do certame, “estas imagens são, ao mesmo tempo, impressionan-tes e importantes, pois ajudam-nos a entender conceitos extraor dinariamente abstratos”.

A arte da ciência

Esta ilustração digital mostra o pólen a ser libertado por uma lor da família das asteráceas. Em baixo, micrograia confocal dos neurónios de uma amostra de cérebro de rato. Uma proteína verde luorescente permitiu destacar as células nervosas.

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Interessante 5

O modelo que parece acomodar melhor a natureza da massa escura é o modelo

frio (CDM, na sigla inglesa), que requer partículas maciças (como os neutralinos supersimétricos), com velocidades não rela-tivistas, que formam agregados que estarão na origem dos halos galácticos escuros. Já a massa escura quente é composta por neu-trinos relativistas, que não podem explicar a estrutura de larga escala do universo, uma vez que a sua elevada energia térmica con-tribuiria para diluir as flutuações de massa--energia que estão na origem da distribuição das galáxias. As partículas escuras não po-derão, pois, escapar facilmente das regiões de “sementeira galáctica”, considerando-se ainda alternativamente a massa escura “mor-na”, supostamente constituída por neutrinos estéreis de maior massa, mas até hoje nunca detetados.A procura de alternativas ao CDM prende--se com um dos seus maiores falhanços, ao prever dez a cem vezes mais galáxias esferoides anãs (dSph, na sigla inglesa) do que as cerca de 30 conhecidas no nosso Grupo Local de galáxias. Onde estão (no mínimo…) as outras 270?É certo que não conseguimos observar externamente toda a nossa galáxia, pois vivemos num dos seus braços espirais, e com isso deixamos de observar muita coisa. Embora as dSph sejam o tipo mais abundante de galáxias entre as mais de 50 que constituem o Grupo Local, são, porém, intrinsecamente muito difíceis de detetar, uma vez que até 99 por cento da sua massa pode ser escura. Sendo as galáxias mais ricas em massa escura, de brilho muitíssimo redu-zido (algumas têm apenas meras centenas de estrelas), são candidatas ideais a testes, por exemplo, de emissões de raios gama devidas a autoaniquilação de neutralinos e antineutralinos. Foi esse precisamente o tópico da minha tese de mestrado, sobre a massa escura da dSph de Dragão.Por outro lado, as dSph não exibem braços espirais ou nébulas ricas em hidrogénio que ajudariam à sua deteção. Pensa-se, aliás, que a ausência de matéria-prima (gás e pó interestelares) nas dSph se relaciona com a “vampirização” por efeito de maré gravi-tacional, sofrida às mãos das galáxias domi-nantes no Grupo Local (como Andrómeda e a Via Láctea), na vizinhança das quais se encontra a maioria das dSph.Em agosto de 2014, o Telescópio Espacial Hubble descobria a dSph isolada KKs3, a cer-ca de sete milhões de anos-luz. Para dar uma ideia da diiculdade de encontrar estes obje-tos, foi em 1999 que se descobriu a KKR25, a outra única dSph isolada que se conhece.

O problema da massa escura faz-se sentir igualmente ao nível dos grupos de galáxias, mas é menos difícil procurar no nosso halo outras dSph satélites da Via Láctea, mais próximas do que dSph isoladas e remotas. Ainda assim, já foi há cerca de cinco anos que se descobriram as últimas dSph a orbi-tar a Via Láctea.Por tudo isto, foi com alegria que dois grupos de astrónomos anunciaram recen-temente a descoberta de nove candidatos a galáxias satélites anãs. Ainda é cedo para conirmar o tipo de anã em questão e se são galáxias de facto, mas a morfologia, a baixa luminosidade e a densidade destes satélites leva a crer que sim. A descoberta fez-se usando a Câmara de Energia Escura, (DEC, na sigla inglesa) que está montada no telescópio Blanco (de 4 metros) de Cerro Tololo, no deserto do Atacama (Chile). A DEC é um projeto coordenado pelo Fermilab de Chicago, tratando-se de uma das maiores câmaras digitais alguma vez construídas: tem 570 megapíxeis (!), quando (por comparação) eu acabo de testar uma câmara digital de apenas três megapíxeis no microscópio petrográico com que os meus alunos estudam meteori-tos lunares. O grande objetivo da DEC, no seu rastreio de cinco anos do céu austral, é compreender melhor a energia escura. Para já, indo um ano de observações e cobrindo apenas cerca de 1/18 do céu (cerca de 1800 graus quadrados), a DEC deu uma ajuda importante à procura de massa escura. Alguns destes novos candidatos parecem-se com o satélite Segue-1, cujas propriedades o situam entre as dSph e os enxames globula-res. Dada a sua abundância em massa escura, pensa-se, porém, que o Segue-1 não pode ser um enxame “clássico”, caso não seja tam-bém uma dSph. São necessárias diferentes observações e mais área coberta pela DEC, que conta descobrir cerca de 30 novas galá-xias satélites durante o seu rastreio.De notar ainda que os candidatos se loca-lizam sobretudo em torno das Nuvens de Magalhães, com as quais poderão ter estado associados. Assim, não é de esperar neces-sariamente uma tal densidade isotrópica de futuros novos candidatos.Por im, os arquivos do satélite de raios gama Fermi não mostram qualquer excesso de raios gama provenientes da “aniquilação escura” nestes novos candidatos a dSph.

O Lado Escuro do Universo

As galáxias anãs da câmara escura

PAULO AFONSO

Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográico, embora sob protesto.

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Parece um ameaçador extraterrestre, mas é apenas a cabeça de um gorgulho do algodão, caçado num jardim e ex posto por um mi croscópio eletró nico de varrimento.Em baixo, também através de microscópio eletrónico de varrimento, vê-se a estrutura do olho composto de um pulgão, um inseto que é uma grande praga para a agricultura.

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Observatório

Q ue correu água em Marte, é algo que já parece incontroverso: conhecemos os canais Ares, Tiu e Simud Vallis, cujo caudal conjunto

equivalia a dez mil vezes o do rio Amazonas. Agora, uma equipa de investigadores coorde-nada pelo astrobiólogo Gerónimo Villanueva, da NASA, parece ter confirmado que, há entre 4400 e 3500 milhões de anos, o Planeta Verme-lho teve um imenso mar (mais de 1500 metros de profundidade) no seu terço norte, que poderá ter ocupado 19 por cento da superfície marciana. A existência do chamado Oceanus Borealis poderia lançar alguma luz sobre uma das pecu-liaridades do quarto planeta do Sistema Solar, a Grande Dicotomia. O relevo deste “degrau” que separa as terras setentrionais das do sul, 5000 metros mais altas, é semelhante ao de uma falésia costeira. Os planetólogos esperam que novas observações revelem o que aconte-ceu a esse mar e ajudem a desvendar outros mistérios de Marte.

O efeito do vento. Percebe-se nos mares de areia, mas a atmosfera marciana não tem densidade para elevar grãos com mais de dois

LoxodrómicaVenho comunicar uma imprecisão no texto do artigo sobre Pedro Nunes [Personagem Rara, SUPER 203]. Quando o autor se refere à loxodrómica, deve ter recorrido pro-vavelmente à Wikipédia, pois está escrito da mesma maneira e por alguém que não sabia de cartograia. Apesar de a Wikipédia referir um trabalho de Nuno Crato sobre esse assunto e que está bem escrito, ao referir-se a Pedro Nunes, quem fez o extrato dessa fonte não soube retirar o signiicado correto da loxodrómica, que Nuno Crato explica bastante bem. Em geodesia, ciência que estuda a Terra, a distância mais curta entre dois pontos à superfície da Terra segue um arco de círculo máximo (ortodrómia) e não uma reta. Em navegação, ter-se-ia então de navegar a rumos diferentes para ter a rota mais curta, mas não é prático para o navegador andar constantemente a mudar de rumo. A exceção é que, para navegar ao longo do Equador ou de um meridiano, não

Escreva para [email protected]. Não podemos publicar todas as cartas, e as que publicarmos serão editadas.

A OPINIÃO DO LEITOR

seria preciso mudar de rumo, pois são ambos círculos máximos. Pedro Nunes teve a ideia de fazer projetar a Terra num cilindro e chamou à projeção da ortodrómia sobre o cilindro “loxodrómia”, para os navegadores seguirem um rumo ixo. A sua ideia foi aproveitada por Mercator, na Flandres, que conhecia bem o trabalho de Pedro Nunes, e icou conhecida como “projeção de Mercator”. Ele colocou o cilindro tangente ao equador com o seu eixo atravessando os polos. A ortodrómia projetada assumia então a forma de uma reta, a tal loxo-drómia, que permitia seguir sempre o mesmo rumo da origem ao destino. Para pequenas distâncias, em que as diferenças são pequenas, o seu uso facilita muito a navegação. Para grandes distâncias, seguem-se loxodrómias consecutivas, acertando o rumo de tempos a tempos, aproximando-se assim o seu conjunto a uma ortodrómia. A ideia da espiral está bem descrita por Nuno Crato: ao seguir sempre no mesmo rumo ao longo da superfície da Terra, na realidade está-se a seguir numa espiral ini-

nita. Assim, quando se refere ao rumo como loxodrómica, está-se a assumir seguir uma linha reta no plano da representação (proje-ção) e não uma espiral. Esta opinião é dada na qualidade de capitão de Mar e Guerra reformado, engenheiro da École Nationale Supérieure de Techniques Avancées – Environ-nement Marin (Paris, França), engenheiro hidrógrafo e oceanógrafo (Portugal), mem-bro da Ordem dos Engenheiros e professor universitário aposentado de Probabilidades e Estatística e de Investigação Operacional.

Pedro Fiadeiro (por email)

Eris e PlutãoNo artigo Tangente a Plutão [SUPER 204], diz-se que o planeta-anão é o maior objeto para lá de Neptuno. Na realidade, Eris é maior do que Plutão, e, em parte da sua órbita, até se aproxima mais do Sol do que o antigo “nono planeta”. Foi, aliás, por causa de Eris que Plutão passou a planeta-anão.

P.A. (por email)

milímetros de diâmetro. Sendo assim, como se forma?

Há água líquida? Com toda a água que os cálculos indicam, seria possível cobrir o Pla-neta Vermelho com uma camada líquida de 140 metros de espessura. O que lhe aconteceu? Onde foi parar?

Tem atividade tectónica? É possível que tenha tido, no passado. Atualmente, não há atividade no córtice, mas a crusta do planeta apresenta falhas e dobras. O que as formou?

O caso do metano. Em 2004, a ESA encontrou traços deste gás, que na Terra se associa à vida. O que o terá gerado em Marte?

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Mistérios marcianos

Há 4000 milhões de anos, um grande oceano com mais de 1600 metros de profundidade cobria o hemisfério norte marciano.

avaxhm.com

Os novos aspiradores Dyson, sem cabo e com um revolucionário motor digital, garantem o dobro do poder de sucção.

Versátil e ultrapotente

Uma nova ASPIRAÇÃO

A companhia britânica Dyson lançou a sua nova gama de aspiradores sem fios,

alimentados pelo motor digital Dyson V6. Este pequeno mas potente motor utiliza uma tec-nologia patenteada de impulso digital (2 Tier Radial), com dupla fila de ciclones, o que os torna mais eficientes e permite que capturem partículas microscópicas, como pólen e até bac-térias, expulsando ar mais limpo.Nas palavras do fundador, James Dyson, “a empresa investiu mais de 300 milhões de euros para desenvolver o seu próprio motor digital, que gira a mais de 110 rotações por minuto; graças a essa nova tecnologia, os modelos têm mais potência de sucção do que qualquer outro aspirador sem ios”. Além disso, como se trata de um motor que funciona por impulsos digitais, sem escovas de carbono, possui uma vida útil mais longa do que a dos motores convencionais. Os aspiradores sem ios Dyson V6 incluem um tubo desmontável, o que lhes confere grande versatilidade, além de serem ideais para uma limpeza a 360 graus: sem o tubo, trata-se do modelo portátil ideal para o carro ou a cozinha; com o tubo, torna-se o melhor aliado para limpar do chão ao teto.

ESCOVA ALTAMENTE EFICIENTEPor outro lado, os aspiradores Dyson V6 Flufy, Flufy+ e Total Clean incluem a nova escova Dyson Flufy, capaz de aspirar tanto o pó mais ino como as partículas maiores.

Com efeito, os engenheiros da Dyson concebe-ram uma nova escova que resolve um problema comum à maioria dos aspiradores, que aspiram uma coisa ou outra, pelo que deixam peque-nas fendas com pó, grãos de arroz, etc. Isso acontece porque, para poderem aspirar o pó mais ino, as escovas devem icar sela-das ao chão, o que impede a passagem de partículas maiores, como migalhas de pão ou cereais. Se, pelo contrário, a escova não estiver selada ao chão, o poder de sucção diminui, pelo que as partículas microscópicas icam por aspirar.Os aspiradores DC74 Dyson Flufy possuem um rolo que abrange toda a largura da escova e está revestido de um material suave de nylon e ileiras de ilamen-tos de ibra de carbono, em vez de pelos rígidos. Assim, as partículas maiores são envolvidas pelo material suave e ime-diatamente dirigidas para o luxo de ar, enquanto os ila-mentos de carbono eliminam a poeira mais ina.

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425 HORAS DE TESTESTodos os modelos dos aspiradores sem

ios Dyson V6 têm as seguintes caracterís-ticas, além das já referidas:

• Esvaziamento higiénico do reservatório do lixo: sem saco, basta pressionar um botão

para libertar a sujidade • Bateria com 20 minutos de succão constan-

te: através da bateria de níquel, manganês e cobalto, a sucção é constante. Com o acessório motorizado, a autonomia da bateria será de 16 minutos. • Fácil de usar: o rolo suave torna-o fácil de usar em todo o tipo de soalhos.• Peso: 2,3 quilosA Dyson, que inventou o aspirador sem saco, criou mais de 400 protótipos com 224 mate-riais diferentes antes de se dar por satisfeita com os modelos Dyson Flufy.

Os aspiradores sem ios Dyson V6 incluem um tubo desmontável,

o que lhes confere grande versatilidade, além de serem

ideais para uma limpeza a 360 graus: sem o tubo,

trata-se do modelo portátil ideal para o carro ou

a cozinha; com o tubo, torna-se o melhor aliado

para limpar do chão ao teto.

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P ara combater a chamada “caça à multa”, a Ford concebeu o Intelligent Speed Limiter (ISL), um verdadeiro caça-polícias que terá a sua estreia

na nova geração do S-Max, a lançar este ano. Constatando que se trata de um fenómeno existente em vários países, contabilizando-se 35 mil radares de velocidade fixos por toda a Europa, a Ford concebeu o ISL para funcionar na maioria dos países, ajudando assim os con-dutores a evitar cair nas armadilhas policiais, mesmo quando viajam no estrangeiro. O sis-tema tem um funcionamento automático e junta duas tecnologias já existentes: por um lado, o limitador de velocidade ajustável, no qual o condutor pode escolher a velocidade máxima disponível no seu automóvel, e o reconhecimento de sinais de trânsito, que afixa no painel de instrumentos o último sinal de velocidade máxima pelo qual o condutor passou. O ISL funciona numa gama de veloci-dades entre os 30 e os 200 quilómetros por hora, e o condutor pode programar uma tole-

Caça-polícias

Motor

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rância (por exemplo, mais 10 km/h), para levar em conta um eventual erro de velocímetro ou mesmo a tolerância da própria lei. Em veículos dotados de GPS, o sistema pode usar também informações via satélite, antecipando assim a sua ação. Na prática, depois de escolhida uma velocidade máxima, o desempenho do motor passa a ficar limitado ao nível da alimentação de gasolina, ou seja, o pedal do acelerador não dá acesso a mais binário do que o necessário para cumprir o limite de velocidade local. O sis-tema nunca aciona os travões, mas, em caso de descida, em que a velocidade pode aumentar sem intenção do condutor, soa um alarme assim que isso ocorrer, dando a oportunidade de travar e manter-se dentro da lei. Pelo con-trário, se o condutor necessitar subitamente de toda a potência do motor, basta acelerar a fundo para cancelar o sistema. O ISL deverá ser uma boa maneira de evitar multas ou apreensão da carta de condução, já para não falar dos méritos que poderá ter em termos de segurança ativa.

Raio X

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N a sua gama de modelos desportivos mais acessíveis, o Cayman, a Porsche

adicionou uma nova versão ainda mais radical, o GT4. Tal como as outras versões, mantém o motor de seis cilindros opostos, colocado ao centro, e lotação de dois luga-res. Trata-se de um carro com uma clara vocação para ser usado em pista, para os proprietários que frequentam track days.1 – Na frente, há uma lâmina horizontal, a toda a largura, que contribui para compen-sar a pressão aerodinâmica gerada pela asa traseira. 2 – O comprador pode escolher entre três tipos de bancos, desde o mais confortável, com múltiplas regulações elétricas, até ao de ibra de carbono, mais leve.3 – O motor do GT4 é o seis cilindros opos-tos de 3,8 litros usado no 911 Carrera S, mas aqui rodado 180 graus e colocado ao centro, ligado a uma caixa manual de seis relações.4 – A asa traseira gera 100 quilos de pressão

Mazda 2 HB 1.5 Skyactiv-G

C ontinuando a renovação da sua oferta, a Mazda acaba de lançar o seu novo

modelo para o segmento dos utilitários, que é o mais vendido em Portugal. O Mazda 2 segue a linha de estilo dos mais recentes modelos da marca, tanto por fora como por dentro, onde se deteta uma preocupação com a posição de condução, muito eficaz e confor-tável. A marca de Hiroshima tem feito uma aposta forte nos motores a gasolina, de que o quatro cilindros com 1,5 litros é o mais divul-gado. Trata-se de uma cilindrada mais alta do que é hábito neste segmento, sobretudo para versões de 90 cavalos, mas há razões para isso. Ao contrário da maioria da concorrência, que

reduziu na cilindrada mas acrescentou um turbocompressor, a Mazda continua a desen-volver motores atmosféricos, o que implica uma cilindrada e uma taxa de compressão um pouco mais altas, neste caso de 14:1. Na prática, isto leva o condutor a usar regimes de motor mais altos do que nos modelos turbo-comprimidos, para extrair o melhor do motor atmosférico. Isso está longe de ser um grande problema, pois a caixa manual de cinco relações é muito rápida e precisa, só não con-tribuindo mais para a diversão da condução porque a quarta e a quinta relações são um pouco longas, de forma a limitar os consumos a velocidades estabilizadas. Na parte dinâ-

CARRO DO MÊS

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O s track days, em que um grupo de proprietários pode guiar os seus

carros numa pista, pagando um aluguer baixo, estão a crescer de popularidade. Não é de estranhar. A via pública há muito deixou de ser o local ideal para um entusiasta pela condução desportiva dar largas à sua paixão, sobretudo quando tem nas mãos um bom desportivo. As restrições à velocidade e a sua fiscaliza-ção cada vez mais apertada são razões a que se somam o aumento do tráfego para tornar quase todas as estradas desacon-selhadas para um desportivo ser utilizado em pleno. Contudo, este tipo de mode-los continua a ser produzido, apontando as pistas como o local certo para os usar. Por isso, os dias de pista acabam por ser o local certo. Sabendo dessa realidade, os construtores de automóveis concebem modelos com capacidade de ser conduzi-dos no limite, em pista, sem degradação exagerada dos seus componentes e com eficácia suficiente para transmitirem emoções fortes. Alguns construtores levam a ideia ao limite, como a Porsche, produzindo modelos como o Cayman GT4, que, além das características de base compatíveis com uso em pista, ofe-rece ainda a possibilidade de serem feitas regulações de suspensão que melhor o adaptem a cada pista e a cada condutor. Claro que o condutor que não domine a teoria desta matéria terá de pedir ajuda a quem saiba. Para os modelos que a Porsche vende exclusivamente para uso em competição, é fornecido um com-pleto manual com as regulações possíveis e os seus efeitos. No caso de um carro de série como o Cayman GT4, a marca resolveu não fazer isso por um motivo muito simples: receio de um processo legal por parte de algum comprador que utilizasse mal o manual, escolhesse uma regulação imprópria e acabasse a ter um acidente como consequência.

Opinião

Refúgio nas pistas

Porsche Cayman GT4

à velocidade máxima de 295 quilómetros por hora, mas, em pista, a sua inclinação pode ser aumentada para fazer subir essa pressão em 15 por cento. Neste caso, é preciso retirar duas aletas à frente das rodas dianteiras, para manter o equilíbrio.5 – O escape tem um botão que o condutor pode pressionar para o tornar mais aberto e muito mais sonoro. Não melhora a performance, apenas a emoção.6 – Estão disponíveis dois tipos de travões, com discos de aço e maxilas vermelhas ou de com-

posto cerâmica/carbono e maxilas amarelas.7 – O condutor pode escolher dois níveis de rigidez dos amortecedores, um deles mais virado para uso em pista, e também pode desligar o controlo de estabilidade e o de tração, separadamente.8 – Os pneus de série são um compromisso entre utilização em estrada e em pista, com a parte exterior praticamente slick. A sus-pensão pode ser regulada em vários ângulos e na altura ao solo, o que é muito invulgar, num carro de venda ao público.

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FRANCISCO MOTA

Diretor técnico do Auto Hoje

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mica, o destaque vai para o baixo peso de 975 quilos e para a alta rigidez estrutural, que se traduz num comportamento muito consis-tente. Assim, é possível ter um bom nível de conforto e ao mesmo tempo uma dinâmica que só não é mais eficaz porque a Mazda equipa esta versão com pneus ecológicos de baixo atrito e em dimensões (185/65 R15) que se mostram insuficientes. Outros pontos fortes são o equipamento, se bem que isso tem um custo, que é um preço que não é dos mais baixos no segmento: esta versão custa 16 625 euros. Outro ponto positivo é o con-sumo anunciado pela marca, em média 4,5 litros aos 100 quilómetros. Em resumo, um utilitário que vai um pouco contra a corrente mas que tem méritos próprios.

SUPER10

Ninguém pode ser mais “super” do que o português que fundou Portugal. Não o fez sozinho, é certo, mas sem ele

tudo teria sido diferente. A nunca esquecer!

SUPER Portugueses

A ntes de mais, convém re cordar um pouco da ge nealogia do rei-fun da-dor: o seu pai, D. Hen rique, era o quarto filho do duque Henrique de

Borgo nha, bisneto do rei Roberto I de França e sobrinho-neto de S. Hugo de Cluny. Temos, pois, uma ligação direta à casa ducal de Borgo-nha e à casa real de França. A mãe, D. Teresa, era filha de Afonso VI de Leão e Cas tela, neta de Fernando Magno de Leão e Castela, bisneta de Sancho III de Navarra e I de Cas tela… Para trás, estende-se uma complicada e torturada li nha, cujos meandros foram di tados pelos muitos conflitos e alianças entre os príncipes cris tãos da península.

Há, em todo o caso, um escla re cimento a fazer. Como se sabe (isto é: quem sabe), a mãe de D. Afonso Henriques era fi lha bastarda

de Afonso VI, que deu a mão da sua herdeira le gí tima, Urraca, a um primo do nosso conde D. Henrique, Rai mundo de Borgonha. Isto criou nos espíritos mais patrió ti cos uma espécie de ressaibo: por que cargas de água é que foi Rai mundo e não Henrique a ca sar com a filha legítima? Ainda por cima, D. Henrique era mais ilus tre, pois era da casa ducal de Borgonha, enquanto o seu pri mo pertencia à casa condal (ha via uma Borgonha-ducado e uma Borgo-nha-condado). Gran de injustiça feita ao pai do nosso primeiro rei!

Injustiça inaceitável. Lembro-me de, na escola, ouvir uma ex pli cação, dada muito a sério: D. Te resa era bastarda, sim, mas era a filha preferida de Afon so VI. Não é uma ternura?

Hoje, ainda desconheço as pre ferências paternais de Afonso VI – ele não mas confiou

O primeiro Afonso

e con fesso não saber se constam em docu-mento fidedigno –, mas sei o seguinte: justa-mente por que pertencia à casa ducal de Bor-gonha, D. Henrique era pri mo de Urraca, pois a mãe des ta, a segunda mulher de Afon so VI, foi Constança de Bor gonha. Ora, na época (as coi sas mudariam depois), nem mes mo o papa podia autorizar o casamento entre primos. A ques tão não se punha em rela ção a D. Teresa, filha de uma no bre galega chamada Ximena Mo niz, e também não se poria en tre Urraca e Raimundo.

Toda esta “matéria genealógi ca” nos inte-ressa, sobretudo, por uma razão: é natural pensar que, se Henrique de Bor go nha tivesse casado com Ur raca e não com Teresa, o seu filho viria, muito provavelmen te, a ser her deiro de Leão e Castela; por tan to, não viveria as aspirações au tonomistas (primeiro) e in de-pendentistas (depois) dos ba rões da Terra Por-tucalense, as pirações já antes manifesta das na revolta, em 987, do con de Gonçalo Mendes contra Ber mudo II, rei da Galiza, e na do conde Nuno Mendes, em 1071, contra Garcia, um tio de D. Teresa, que também reinou na Galiza.

MOMENTO HISTÓRICOEssas revoltas podem ainda ser vistas como

episódios de um período feudal irrequieto e conturbado, mas a coligação, em torno de D. Afonso Henriques, dos barões portucalen-ses, descontentes com a política de D. Teresa, correspondeu já a algo de mais profundo, um mo men to histórico decisivo, e D. Afonso foi a bandeira, a per so nificação desse momento. Mais e melhor, porém: não se li mi tou a ser uma figura de proa, pois assumiu efetivamente a direção do movimento, e a sua ação, como chefe militar, di plo mata e governante, ainda hoje deveria espantar-nos, se não andássemos tão distraídos com os resultados do futebol e ou tros factos de igual e ponde ro sa importância.

Não é possível, aqui, seguir exaus tivamente o percurso po lí tico-militar de Afonso Henri-ques; interessa, sim, observar a sua ação em

Os descendentesC aso pouco vulgar: ao cabo de mais de 800

anos, sabemos perfeitamente quem são os mais jovens descendentes de um ho mem – neste caso, D. Afonso Hen ri ques, primeiro rei de Portugal. Chamam-se Afon so, Maria Francisca e Dinis. Ou, mais formalmente: D. Afonso de Santa Maria, príncipe da Beira, D. Maria Fran-cisca e D. Dinis, duque de Beja. Os filhos dos duques de Bragança, D. Duarte Pio João e D. Isabel. A Casa de Bragança, que deu ao país a quarta dinastia real, descende, ainal, do fun-dador da primeira di nastia. De facto, o primeiro duque de Bragança, D. Afonso, era i lho (natural mas perilhado) do rei D. João I, que, por seu turno, era ilho do rei D. Pedro I e meio-ir mão de D. Fernando I, o último so be rano da dinastia de

Borgonha. Nesta, a sucessão só não se pro ces sou de pai para ilho no caso de D. Afonso III, que era irmão do seu antecessor, D. Sancho II, que não teve descendência. Na realidade, embora a nossa his tó ria conte oicialmente quatro di nas tias (Borgonha, Avis, Filipina e Bra gan ça), a família foi sempre a mes ma. Até mesmo no caso dos Fi li-pes – que, por serem estrangeiros, não tinham, segundo o nosso di rei to, legitimidade para reinar em Portugal –, o parentesco não se que brou, por-que Filipe II de Es pa nha era neto por via materna do nos so rei D. Manuel I. Quanto a D. João IV, o restaurador da inde pen dên cia, representava, a mais do que um título, a linhagem de Afon so Henriques: pela Casa de Bra gan ça e por ser bis-neto de D. Ma nuel I.

Interessante 11

usando já o título de “imperador das Espanhas”, reconhecia o seu primo como rei dos portugue-ses, um título que, aliás, D. Afonso Henriques usa va havia cerca de três anos. Ao mesmo tempo, o nosso rei proclamava-se tributário da San ta Sé. Este foi um “golpe” que o imperador das Espanhas tal vez não esperasse: ser vassalo de São Pedro significava não ser vassalo do imperador, e foi es sa a grande batalha diplomá-ti ca de D. Afonso Henriques; du rou, pratica-mente, todo o seu rei nado. Viria a ganhá-la em 1179, quando o papa Alexandre III emitiu a bula Manifestis Pro ba tum, reconhecendo Portugal co mo reino de pleno direito.

CONQUISTADOR, MAS...Após o tratado de Zamora, o pri meiro rei pôde

concentrar as suas forças na fronteira sul e nas operações de conquista; mais uma vez, foi um esforço me tódico, mas que incluiu avan ços e recuos, tréguas e alianças. Des de cedo, Afonso Henriques com pre endeu bem o valor estra-té gi co de praças como Santa rém e Lisboa – e os mouros tam bém o compreendiam, como mostra a resistência que ofe re ce ram na futura capital por tu guesa e as suas tentativas pa ra reconquistar Santarém.

Neste esforço militar visando o sul, há que incluir a célebre ba talha de Ourique (1139). Não se sabe onde foi travada e o mito sobre ela tecido exagerou-lhe muitíssimo as proporções, mas deve ter sido, em todo o ca so, impor-tante. Julga-se que fez parte de uma ofensiva con jun ta, concertada por Afonso Hen riques e Afonso VII; de qual quer modo, foi por es sa al tu ra que o Dux de Portu gal passou a intitular--se rei, e a batalha dei xou de si uma memória

D. AFONSO HENRIQUES (1109?–1185)

perspetiva. Ao fazê-lo, veremos que ela foi mui to coerente, logo desde o iní cio. Antes de mais, tratava-se de, afirmando os seus direitos, afirmar também uma nova li nha política, diferente da que era seguida pela sua mãe; e isto, co meçou a fazê-lo quando ti nha cerca de catorze anos, altu ra em que executou o célebre ato de se armar a si próprio ca va leiro na catedral de Zamora. Isto significava claramente uma pri-meira afirmação de realeza (só os reis se arma-vam cavaleiros a si mesmos). Segundo pon to importante, o jovem in fan te tomou esta ini-ciativa sob a influência do arcebispo de Bra ga, Paio Mendes, que na al tu ra (1122) se encontrava exilado em Zamora. A aliança entre Afon so Henriques e a sede ar qui episcopal de Braga mostra uma comunidade de interesses e objetivos: a afirmação da au to nomia portu-calense perante uma Galiza dominada pela fa mí lia dos Trava (fação de D. Te re sa) e, simul-taneamente, pe ran te Compostela, a grande ri val da metrópole bracarense. Tal aliança será longa, pois pas sa rá de D. Paio Mendes ao ar ce bispo D. João Peculiar, que for mou, com Gualdim Pais, os Men des da Maia, Egas Moniz e al guns outros, o núcleo duro que tornou pos-sível a fundação do novo estado.

Uma vez tomado o poder, em re sultado da batalha de São Ma me de (1128), D. Afonso Henri ques tinha diante de si um pro gra ma difícil de cumprir, tanto mais que os seus meios mi li-ta res e financeiros eram li mi ta dos: precisava de resistir às pres sões do seu primo, Afonso VII de Leão e Castela (filho de Ur raca e Raimundo e, como ele, neto de Afonso VI), subtrair-se à sua suserania e levá-lo a aceitar que Portugal era um reino que não lhe devia vassalagem; ao mesmo tempo, tinha de de fen der a fronteira sul contra os mou ros e expandir o território por tuguês à custa dos principados muçulmanos.

Este era o seu “programa de go ver no”, bem mais difícil, con ve nha mos, do que os progra mas que hoje nos são apresentados, e, ao contrário dos programas go vernamentais modernos, o seu foi cumprido. É claro que exi giu tempo e, sobretudo, muita persistência, uma grande pe rí cia militar e uma enorme ha bi lidade diplo-mática. Militar men te, Afonso Henriques, que sem pre combateu em inferiori da de numérica, fez avanços e re cuos, fossados, correrias e re ti-radas, conforme as possibili da des que se lhe ofereciam e acor rendo tanto a norte, contra Afon so VII, como ao sul, para con ter a ameaça moura. Isto, en tender-se-á, implicava uma gran de mobilidade de forças e um bom comando.

Abre viando, passando por ci ma de ofensi-vas e defensivas, acor dos e tréguas, batalhas e re contros de menor importância, diremos que, a 5 de outubro de 1143, era obtida uma vitó ria diplomática decisiva: em Za mora, na presença do cardeal de Vico, legado do papa, Afon so VII,

que atesta o seu significado. Talvez Ou rique tenha sido um antece den te essencial do tra-tado de Za mora…

Sobre a conquista de Lisboa, é por de mais sabido que se tratou de uma grande operação a ní vel internacional, com efetivos (cruzados) vindos do norte da Europa – francos, ingleses, ale mães, flamengos… Por isso mes mo, evita-remos uma refe rên cia pormenorizada, mas con vi rá chamar a atenção sobre um aspeto importante daque le acontecimento histórico.

Esse aspeto é a proteção que D. Afonso Henriques deu à po pulação moura. Não só a de Lis boa, como a de outras zonas que foram sendo conquistadas. Não se tratou somente de pro te ger vidas e bens, mas também o culto religioso. A Lisboa cristã dos primeiros tempos continuou a ter escolas e pensadores is lâmicos. O gran de mestre su fi Ibn Arabi visi tou a cidade já sob o go ver no cristão. A isto, acres ce a aliança entre D. Afon so Henriques e um outro che fe sufi, Ibn Qasi, governante de Sil ves, uma aliança que só ter mi nou porque Ibn Qa si foi as sassinado.

Ou seja: Afonso Henriques foi, sem dúvida, um con quista dor – mas não foi o mata-mou ros que a lenda fez dele. Aliás, im por ta ter em conta a sua a ção no sentido de or de nar e va lo-ri zar os territó rios conquista dos. É este as peto que comple ta a sua ver dadeira estatura: che fe de guerra e diplomata, mas tam bém político, também ad mi nis trador. No momento his tórico em que viveu e nas cir cuns tâncias em que atuou, se ria difícil, ou impos sí vel, fazer melhor.

Lendas “negras” e brancas”

S ão abundantes as lendas sobre D. Afonso Henriques, cuja fi gu ra assume, de certo

modo, os con tor nos do herói clássico. Al gu-mas dessas lendas chegaram a ser con si de radas como rea li da de: por exem plo, a de Egas Moniz (que nem se quer foi aio do primeiro rei) e a do mi lagre de Ou ri que. O mais cu rio so é que o corpus len dário po de ser di vi dido em “positivo” e “ne ga tivo”. Nes te úl ti mo caso, te mos D. Afonso Hen ri ques pondo cruel men te a fer ros sua mãe, D. Te re sa, e depondo ti ra ni ca mente o bis po de Coimbra, substi tuin do-o por um mouro con-vertido (é a len da do “bispo ne gro”, que, ne ga ti va em bo ra, sem pre agradou ao po vo…), e há ain-da o caso da vi si ta real ao conde D. Gonçalo de Sousa: en quan to este ia prepa rar comida pa ra o rei, D. Afonso Hen riques sa cia va a sua luxúria na condessa, sem ver go nha nem con ten ção… No lado positivo, temos de novo Egas Moniz orando

com fervor, por que o menino Afonso Henriques nas ce ra tolhido das pernas; Nos sa Se nho ra aparece a Egas e diz-lhe que há em Cárquere (La me go) uma ca pe la sua quase co ber ta de terra; ele que a desentulhe e coloque o me ni no sobre o altar… Isto feito, a crian ça cura-se por milagre. Há tam bém uma ou tra cura milagrosa do rei e a res sur reição de um seu cria do; os po de res divinos inter vie ram militar men te pelo menos três ve zes a fa vor de D. Afonso Hen ri ques: em Ourique, na bata lha de Tran co so (1140, contra os mou ros; não con fun dir com a ba ta lha do mes-mo nome, contra os caste lha nos), e na tomada de San ta rém, com es tra nhas luzes no céu a anun-ciar a vitória cristã. Por ou tro lado, a es pa da do Conquista dor era mági ca, e foram várias as ten-tativas fei tas pa ra levar a San ta Sé a ca no ni zar o nos so rei fun da dor. Santo, não terá sido; mas foi de cer to o super-português por ex ce lên cia.

JOÃO AGUIAR

Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 115. João Aguiar faleceu em 2010.

SUPER12

A partir do final do século XVIII, era comum as pessoas mergulharem na Junqueira e em Santa

Apolónia, devido às alegadas propriedadescurativas do rio. Na verdade, era mais garantido que apanhassem doenças, ou não fosse o Tejo

a casa de banho da cidade.

Histórias do Tejo

T omar banho em casa, com alguma regularidade, é um hábito recente. No início do século XIX, muito antes de ser um ato de higiene, a água era con-

siderada um divertimento de crianças pobres e adultos ricos. Alegadas propriedades curativas do mar, para maleitas específicas, serviam de desculpa para homens e mulheres gozarem raros momentos de brincadeiras com uns pós de malandrice. A excitação de poderem chapi-nhar na água, com roupas relativamente par-cas, em marota intimidade (aos olhos daquele tempo) fazia esquecer as calhandreiras, que despejavam bacios poucos metros ao lado.

Custa a acreditar, tendo em conta o clima, mas a verdade é que o turismo balnear começou em Inglaterra. Por volta de 1750, alguns médicos e curandeiros do reino recomendavam banhos no gelado mar que rodeia as ilhas britânicas, para revigorar a saúde enfraquecida pelo pro-gresso e pela vida nas cidades. A aristocracia e a nobreza portuguesas, apesar de se mostrarem sempre ávidas de importar os elegantes cos-tumes estrangeiros, torceram o nariz a este. Afinal, a doutrina católica sobre o banho era bem negativa, ao contrário da protestante, que não via de que forma um corpo limpo pre-judicava a alma.

Mais década menos década, seria uma ques-tão de tempo até a moda cá chegar. Nos pri-meiros anos de 1800, o hábito já se enraizara em Lisboa. Com uma substancial diferença: o Tejo era considerado um substituto à altura do mar e tinha a vantagem de passar à porta de casa. Em alguns casos, rigorosamente à porta de casa, o que neste caso daria particular jeito, mas já lá vamos.

Durante os meses de verão, tornou-se comum ver mulheres, homens e famílias inteiras em romaria matinal na direção do Tejo, acompa-nhados pelos criados, que lhes transportavam as pesadas roupagens de ir ao banho e as toalhas. As praias da Junqueira e de Santa Apolónia,

nos dois extremos da cidade, eram as estâncias mais populares. Logo de manhã, o rio fervilhava de barcas de banhos – as famílias mais ricas alugavam uma destas embarcações especiali-zadas de junho a setembro; no resto do tempo, estes botes, chamados “catraios”, serviam para transportar gente entre as duas margens do rio, como os cacilheiros.

Chegados à praia, os veraneantes subiam a bordo e o barco navegava apenas alguns metros para fora da margem, para que não se perdesse o pé. Os homens despiam os trajes de ceri-mónia na proa da embarcação e vestiam um colete de lã e calções compridos, e atiravam-se à água, em zonas com um metro, metro e meio de profundidade. Aí esperavam pelas mulheres, que mudavam de roupa ao abrigo de olhares indecentes, dentro de uma espécie de tenda feita com lençóis, montada na popa. Ideal-mente, trocavam os complicados vestidos e desconfortáveis corpetes por decorosas vestes de banho que lhes cobriam o corpo todo – e de lã grossa, para não deixar que a água moldasse a roupa ao corpo e permitisse mostrar as formas femininas. Na prática, muitas mulheres (a maio-ria, na realidade) optavam por usar finos robes de algodão, que se colavam à pele e revelavam desavergonhadamente ao mundo as curvilí-neas belezas.

Quando as damas ficavam prontas, os cava-lheiros aproximavam-se do barco e, segu-rando-lhes nas mãos, ajudavam-nas a descer os três ou quatro degraus do escadote de corda pendurado na amurada. Seguia-se uma pândega festa molhada. Homens e mulheres chapinhavam na água, mergulhavam, empur-ravam-se, galhofavam, riam-se. Faziam pouco das senhoras gordas (e eram muitas, aten-dendo a que os padrões de beleza da época pediam mais carne à volta dos ossos do que hoje), quando elas tentavam regressar a bordo e quase viravam os barcos. Engoliam água. Muita água. Na margem, praticamente ao lado

destas chiques farras de gente de sangue azul, dezenas de miseráveis calhandreiras despeja-vam no rio os seus potes cheios de… chame-mos-lhes “impurezas”. Os matadouros a mon-tante, perto do Terreiro do Paço, acrescenta-vam o seu quinhão, atirando carcaças e outros restos de animais ao rio. De vez em quando, o cenário ganhava o seu quê de surrealista, ou mesmo absurdo, quando os homens do Regi-mento de Cavalaria de Alcântara entravam no rio completamente despidos, montados, para se lavarem a eles e aos seus cavalos de uma assentada, pavoneando-se entre as cen-tenas de coloridas barcas de banhos. Porém, os excrementos que flutuavam por perto e os soldados nus não pareciam afetar a boa dispo-sição dos banhistas.

Os bons nadadores preferiam evitar estes companheiros indesejados navegando até ao meio do Tejo ou passando para a outra mar-gem, na Trafaria, onde a água era bem mais limpa. Já as senhoras que viviam em moradias à beira-rio, com jardins até à margem, entra-vam na água com uma corda atada à cintura e a outra ponta presa a um armário dentro de casa, para não se deixarem levar pela cor-renteza. Mergulhavam rapidamente e regres-

Banhos no rio Gravura incluída em Sketches of Portuguese Life, Manners, Costume, and Character.

Interessante 13

Mais limpo

A inda hoje, só as praias fluviais da Margem Sul ou as águas vários qui-

lómetros a norte de Lisboa são suficien-temente límpidas para permitir banhos sem o perigo de contrair uma arreliante doença de pele, mas a situação está agora muito melhor do que esteve, provavel-mente, nas últimas centenas de anos. Com o fecho das fábricas da Lisnave, da Quimiparque e da Siderurgia, e com es-tações de tratamento de águas residuais (ETAR) a funcionar em todo o estuário, o Tejo tem recuperado. A superfície das águas perdeu o odor a combustível e as manchas de óleo; reapareceram em força patos, garças, íbis e espátulas; os pesca-dores garantem que o rio tem mais peixe, e peixe mais gordo (há pouco tempo, foi capturada ao anzol uma corvina com per-to de 40 quilos); a ostra portuguesa tam-bém regressou, após 50 anos desapareci-da. O melhor sinal, no entanto, é mesmo o retorno dos golfinhos: depois de décadas sem se atreverem a aproximar-se do Tejo, os roazes-corvineiros sobem cada vez mais o rio, em busca de peixe. Já se tornou bastante comum avançarem até aos pilares da Ponte 25 de Abril, e até houve quem os visse junto à Ponte Vasco da Gama. Talvez ainda seja cedo para de-satarmos a mergulhar na Junqueira, em Santa Apolónia ou em Pedrouços, como faziam os arrojados aristocratas do século XIX, mas esse dia já esteve mais longe.

Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro(A Esfera dos Livros, 2013)http://bit.ly/1hrY8Zc

savam a casa. Já os pobres que gostavam de imitar os ricos mas não tinham dinheiro para alugar um barco banhavam-se nas praias de areia de Pedrouços e da Cruz da Pedra. Nes-ses locais, havia, à beira da água, tendas para as mulheres se mudarem e nadadores-salvado-res, armados com cordas, para acudir a quem precisasse de auxílio.

O hábito de tomar banho no Tejo foi rela-tado pelo autor inglês do livro Sketches of Portuguese Life, Manners, Costume, and Cha-racter (“Retratos da vida portuguesa, manei-ras, roupas e personalidades”), publicado em Londres em 1826. O escritor, anónimo, que dizia ter vivido muitos anos em Portugal a trabalhar como tradutor, louvava particular-mente os mergulhos das mulheres lisboetas, com a justificação de que água suja era melhor do que água nenhuma. “A sabedoria portu-guesa recomenda banhos para todo o tipo de doenças e queixas; e ainda bem. Se não fosse assim, nove em cada dez mulheres de Portugal nunca experimentariam outra ablução depois do batismo – nem uma simples passagem com uma toalha molhada pela cara, de manhã. […] Certa vez, ouvi um cavalheiro, que havia estado em Inglaterra e aí se impregnara dos

nossos hábitos de limpeza, a chamar a aten-ção da sua filha: ‘Minha querida, lavaste a cara hoje?’; ‘Não, meu pai. Não tenho a cara suja. Para quê lavá-la?’ ”

As aventuras balneares dos portugueses não passavam de fugazes encontros com a água, seguidos de um rápido regresso a casa. Ninguém ficava deitado na praia a desfrutar o calorzinho do sol. Primeiro, porque não havia fatos de banho, e ficar-se a torrar vestido, no verão, não é grande prazer (aliás, por essa mesma razão, as excursões de veraneantes ao Tejo só se faziam de manhã cedo e ao fim da tarde). Segundo, porque peles morenas eram sinónimo de baixa condição social, e as damas queriam-se de pele branquinha como a farinha.

Que importa se a pele escurece, pensavam os filhos dos pescadores que viviam na outra margem: as pobres crianças do Seixal, da Amora, da Moita e do Barreiro passavam todo o verão a mergulhar no rio, nuzinhos, como Tom Sawyers portugueses, numa diversão que para sempre haveria de ser estranha aos meninos ricos – e em locais incomparavelmente mais lim-pos e saudáveis do que os nobres tinham à sua disposição em Lisboa. E aprendiam a nadar.

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SUPER14

É quase certo que não haverá quem, ao contemplar um céu escuro, pro-fusamente salpicado de pontos luminosos, não sinta vontade de

registar a imagem para constituir recordação em ocasiões futuras. Já lá vai o tempo em que tais desejos rapidamente se desvaneceriam perante as dificuldades (ou mesmo a impos-sibilidade) de obter meios que garantissem a sua satisfação. Atualmente, existem recur-sos diversos – dependendo de preferências e disponibilidades financeiras – desde câmaras digitais (isoladamente ou acopladas a telescó-pios), daquelas que se usam para registar por-menores da vida quotidiana, até telescópios (dos muito simples aos mais complexos) que, com pequenas câmaras de alta sensibilidade, podem transferir as imagens para computado-res. Depois, dependendo do gosto, da paciên-cia e do tempo disponível, os meios informáti-cos para tratamento de imagens completarão os recursos que possibilitam guardar memó-

rias que, para além da visão do céu, englobam as experiências e aprendizagens que conduzi-ram ao registo final.

No entanto, é natural o receio de começar, em particular se o propósito for a aquisição de todos os equipamentos necessários, pois, para além dos custos, há a indispensável dis-ponibilidade para a execução de tarefas, na maior parte dos casos, nunca experimentadas. Em tais circunstâncias, talvez a melhor solução seja a partilha com familiares e (ou) amigos que, possuindo alguns dos recursos, se disponham a partilhá-los. Juntar-se-á, ao prazer de con-cretizar um objetivo, o conforto de as tarefas serem executadas em agradáveis convívios.

A princípio, nem todas as tentativas serão satisfatórias: não se conseguiu uma focagem perfeita, a câmara oscilou no momento do disparo, o tempo de exposição não foi o ade-quado, uma ou outra imagem de maior tempo de registo ficou “arrastada” porque o telescó-pio não estava a fazer o seguimento adequa-

Caçadores de Estrelas

Imagens do céudamente… Enfim, um sem-número de peque-nas dificuldades que só a repetição reduzirá, até à perfeição. Em todo o caso, mesmo as tentativas goradas ficarão para a história da aventura que se assumiu de registar imagens do céu. A “primeira Lua”, as tentativas para “guardar” uma nebulosa ou galáxia ou o sim-ples registo de um eclipse solar, ainda que par-cial, não deixarão de fazer parte do álbum de recordações de um período da vida em que o hobby foi a contemplação do céu.

Recentemente, o Centro Ciência Viva de Constância – Parque de Astronomia delineou e colocou em funcionamento um programa de apoio a quem se decida a iniciar-se na cap-tação e no registo de imagens do céu. Um telescópio e o respetivo espaço de abrigo estão exclusivamente dedicados ao objetivo, no alto do edifício principal, onde não faltam acessórios para adaptação de câmaras diver-sas ao telescópio.

É verdade que, por vezes, aparece quem

O céu de maio

S e é verdade que a região da esfera celeste designada por “céu de inverno” se es-

conde, a oeste, praticamente ao mesmo tem-po que o Sol, não é menos certo que, no mês de maio deste ano, as primeiras horas da noite proporcionarão a visibilidade simultâ-nea dos três planetas mais interessantes que podemos observar no firmamento. É certo que será só na segunda metade do mês que Saturno se mostrará acima do horizonte (a este) ao mesmo tempo que Júpiter (situado praticamente no meio do céu) e Vénus que, não muito elevado, a oeste, se vai passeando em frente das constelações do Touro e dos Gémeos. Até lá, serão estes últimos a realça-rem o facto de brilharem mais do que qual-quer estrela e a demonstrarem o privilégio de mudarem de posição, mais lentamente Júpiter e de modo mais notável Vénus, o mais brilhante de todos. Neste movimento por sobre as constelações, a Lua ganha a corrida, pois percorre todo o céu em um pouco menos de trinta dias, tempo esse que corresponde a uma lunação, ou seja, o tem-po que decorre entre duas passagens conse-cutivas por uma fase com o mesmo nome. Por exemplo, se anotarmos o momento e a posição da Lua Cheia do dia 4 do mês de maio (deste ano) e se nos dispusermos a observá-la regularmente, verificaremos que se aproximará de Quarto Minguante pro-jetando-se em regiões da esfera celeste que serão visíveis progressivamente mais tarde, a ponto de a sua visibilidade só ser possível depois da meia-noite, no período entre essa fase e a Lua Nova. Antes do dia 20, passará a norte do Orionte, praticamente na posição em que se encontrava Vénus, no princípio do mês, e na noite de 20 para 21 completará a travessia dos Gémeos, deixando para trás o

planeta de maior brilho. Depois de alcançar o Quarto Crescente (no dia 25) ligeiramen-te a sul da estrela Régulo (a mais brilhante do Leão), encaminhar-se-á para a Balança, onde chegará (no dia 29) com aspeto que não será ainda de Lua Cheia. Essa fase será alcançada cerca de três dias depois, mas já em frente de estrelas do Escorpião e, então, já lado a lado com Saturno, ambos visíveis logo a seguir ao pôr do Sol.Nos períodos próximos de Lua Nova, em que o luar não perturba a observação de objetos celestes pouco luminosos (se nos encontrarmos em locais sem iluminação ar-tiicial noturna), será possível – e interessan-te – experimentar a visão e algumas ajudas como binóculos, telescópios ou simples-mente câmaras fotográicas modernas. Sem qualquer ajuda, notar-se-á como aumenta extraordinariamente o número de pontos luminosos observados, à medida que a pupi-la se adapta a condições de fraca luminosi-dade. Perceber-se-á então a conveniência de não fumar ou não utilizar telemóveis, para que a luz não faça retroceder a adaptação ocular. Com tais cuidados, o uso de um binóculo vulgar permitirá ver “coisas” que os olhos não alcançam, como um enxame estelar (M44), ligeiramente à direita de Júpiter, e o “grande enxame de Hércules” (M13, na imagem), uma pequenina mancha que um telescópio desdobrará em dezenas de pontos luminosos, correspondentes a algumas das mais de trinta mil estrelas que constituem o enxame.Em ambientes escuros, valerá a pena esperar até perto da meia-noite, ocasião em que emergem do horizonte, a este, a Via Láctea e a região correspondente à direção do centro da nossa galáxia. MÁXIMO FERREIRA

Diretor do Centro Ciência Viva de Constância

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O grande enxame de Hércules (M13), fotografado pelo telescópio espacial Hubble.

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não acredita muito nas capacidades próprias mas, aos poucos, assume a curiosidade pelo entusiasmo de quem já começou. Vai uma pri-meira experiência com o telemóvel e, como não saiu muito bem, sai a promessa de voltar noutra ocasião, com a sua própria máquina, para a qual – ficou a saber – há no Centro um adaptador disponível.

Para começar, basta marcar previamente a presença ([email protected], 249 739 066 ou 911 588 984) e prestar infor-mações sobre desejos e necessidades. Depois, é escolher o motivo celeste de maior curiosi-dade e… mãos à obra!

As imagens destas páginas foram obtidas no Centro Ciência Viva de Constância – Parque de Astronomia, em ocasiões de convívios com visi-tantes que mostraram interesse pelo registo de imagens do céu.

Interessante 15avaxhm.com

SUPER16

Mapa do Céu

Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta ique apon ta da para norte. Se se voltar em qual quer das outras direções (norte, este, oeste), pode ro dar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 21.30 horas do dia 5. A alteração que se veriica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

Como usar

As fases da LuaLua Cheia Dia 4 às 04h42Quarto Minguante Dia 11 às 11h36Lua Nova Dia 18 às 05h13Quarto Crescente Dia 25 às 18h19

Interessante 17

NORTE

SUPER18

Terra

O nova-iorquino Benjamin Grant rastreia o Google Earth em busca de fotos de satélite

que ilustrem o impacto humano sobre a Terra. Com apenas uns retoques de Photoshop,

obteve um hipnótico álbum do nosso frágil e belo planeta visto do espaço.

Fotografia artística... de satélite

Beleza nas ALTURAS

Interessante 19

Pinturas no salNas salinas da baía de São Francisco, nos Estados Unidos, pululam diversos

micro-organismos. A abundância de três deles (a cianobactéria Synechococcus, a

arquea Halobacteria e a alga microscópica Dunaliella) explica a paleta de cores do

local e sustenta um rico ecossistema.

Ouro verdeQuilómetros e quilómetros de olivais a perder de vista compõem o outro mar da Andaluzia, região que produz mais de 800 mil toneladas anuais de azeite virgem, quase 80 por cento do total da produção do país vizinho. Na foto, os arredores de Córdova.

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Os satélites são inspetores visuais do planeta

CarcaráAs fêmeas destas aves de rapina que atingem os 120 cm de envergadura e podem encontrar-se desde o sul dos Estados Unidos até ao Brasil põem dois ou três ovos em ninhos feitos sobretudo em palmeiras. Eclodem ao im de 30 dias.

Onde bate o sol Na central solar de Fuentes de Andalucía, perto de Sevilha, 2650 heliostatos (espelhos planos) reletem a radiação solar sobre o recetor de uma torre central pela qual luem sais fundidos. O calor gerado permite produzir eletricidade mesmo de noite.

Apanhado. Um barco e a sua esteira são a única nota de cor discordante entre as redes de pescadores espalhadas pelas águas do estreito de Taiwan, que separa a ilha da China continental. A sobreexploração está a ameaçar a atividade pesqueira da zona.

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Insetos tecnológicos. Vistas da órbita terrestre, muitas das atividades humanas parecem dignas de colónias de insetos. Em cima, carros importados no porto de Santander (Espanha).

Sucata voadora. Em baixo, a Base Davis-Monthan da Força Aérea dos Estados Unidos, no Arizona,

considerada o maior cemitério de aviões do mundo.

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Com POSTURA

Saúde

Cuidar da coluna para viver melhor

A coluna vertebral suporta o peso do corpo e permite-nos caminhar erguidos, mas está exposta a lesões que afetam a saúde física e psíquica. A prevenção

(exercício e higiene postural) é indispensável para mantê-la em forma.

Q uando um bailarino inicia a sua atuação pondo-se em pontas dos dedos dos pés, a sua coluna vertebral tem de suportar, nesse

momento, nada menos do que o triplo do seu peso total. Dada a leveza exibida por estes artis-tas, parece inacreditável que o pilar que serve de suporte ao corpo consiga carregar com 150 quilos e garantir, simultaneamente, que se possa movimentar com a precisão, a rapidez e a beleza que a dança exige. Contudo, não tem nada de extraordinário: as vértebras, esses 24 ossos articulados dos mais de 200 do esqueleto humano, foram concebidas para proporcionar estabilidade e permitir-nos, ao mesmo tempo, executar centenas de rotações e de movimen-tos distintos em todas as direções.

Considerando que a atual esperança de vida ultrapassa os 80 anos, em média, e que a coluna nunca descansa, é fácil imaginar o des-gaste que essa parte do corpo sofre. Mesmo quando estamos parados, mantém-se ativa: deitados, os discos suportam uma carga equi-valente a um quarto do peso total. Sentados, a zona lombar sustém um peso ainda maior.

À semelhança de qualquer máquina que nunca é desligada, a coluna pode sofrer avarias por fadiga do material de que é feita. Acontece a todos os ossos a partir dos 50 anos, mas, nesse caso, os problemas surgem sobretudo por má utilização reiterada. Nessa altura, avisa-nos através de guinadas dolorosas na zona lombar. É a sua forma de dizer que o material é bom, mas que é preciso tratá-lo melhor. Segundo números do portal Médicos de Portugal, a lom-balgia afeta cerca de 150 mil pessoas no nosso país, e é mais frequente entre as populações

citadinas. Estima-se também que 80 por cento da população é vítima, pelo menos uma vez na vida, de um episódio de dor lombar.

PRINCÍPIO DA ERGONOMIAO sueco Alf Nachenson (1931–2006), médico

e professor catedrático de cirurgia ortopédica, foi pioneiro no estudo da espinha dorsal e ana-lisou a fundo a pressão sofrida pelos discos intervertebrais em diferentes posições, o que lhe permitiu conceber uma lista de posturas que assegurariam a sua saúde até à terceira idade.

A ergonomia que é aplicada nas empresas baseia-se, em grande medida, no seu trabalho. Nachenson averiguou que a posição de barriga para baixo é a menos indicada para dormir, embora fosse a preferida, até há alguns anos, para colocar os bebés no berço. Essa postura só tem inconvenientes. Para começar, dificulta a respiração e obriga a voltar a cabeça para um lado, pelo que as cervicais permanecem em rotação durante muito tempo, o que produz tensões musculares, contraturas e torcicolo. No caso dos bebés, há o perigo acrescido de

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Sem medo. Graças ao desenvolvimento da microcirurgia, são mais eicientes as operações para corrigir problemas estruturais da coluna, como a escoliose ou as hérnias discais.

23Interessante

Problema universalTodos os anos, produzem-se no mundo 250 mil lesões da

espinha dorsal que reduzem a qualidade de vida dos afetados.

A ciência procura novos tratamentos e novas técnicas para aliviar a dor

e melhorar a mobilidade.

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A maioria das crianças transporta mochilas demasiado pesadas

Atlas das dores nas costas

As lesões e os traumatismos na espinha dorsal são universais, mas os fatores que os produzem variam nas diferentes regiões do planeta em função da demograia

e do estilo de vida. Este mapa (e os números curiosos que integra) foi elaborado com base em dados reunidos pela Organização Mundial de Saúde entre 1959 e 2011.

Estados Unidos e Canadá

Europa Ocidental

Europa Central Europa

Oriental

América Latina

África Ocidental

África Meridional

Norte de África e Médio Oriente

Ásia do Sul

Sueste Asiático

Extremo Oriente

Ásia--Pacífico

Oceania

Austrália

Acidentes em deslocações (de carro, de comboio, etc.)

Quedas

Desporto

Violência

Trabalho

86% dos norte-americanos afetados por problemas nas costas vivem com eles dez ou mais anos.

65% das lesões por acidentes de trânsito em Taiwan envolvem

bicicletas ou motas.

Na Austrália, 63% das queixas relacionadas com atividades aquáticas devem-se ao mergulho.

É na África subsahariana que existe a percentagem mais elevada do mundo de lesões na coluna por ferimentos de bala.

poderem regurgitar alimento do estômago e de este não conseguir ser expelido pela boca, passando para os pulmões.

A ergonomia constitui um código de segu-rança para os ossos, que têm de suportar peso enquanto o corpo se move e, simultaneamente, armazenar cálcio, proteger a medula óssea e ancorar músculos, ligamentos e tendões. Tudo isto enquanto crescem e mudam de forma. Como diz Daniel E. Lieberman, professor de biologia evolutiva da Universidade de Harvard (Estados Unidos), em The Story of the Human Body – Evolution, Health, and Disease, “nenhum engenheiro conseguiu criar um material tão versátil e funcional como o osso”.

O tecido ósseo das costas é rígido e resis-tente, mas também pode crescer devido aos nutrientes que recebe e a um fator imprescin-dível: a pressão. Para as vértebras se poderem desenvolver adequadamente, têm necessi-dade de que os músculos, na etapa de cresci-mento (até aos 20 anos nas mulheres e aos 25 nos homens), exerçam pressão sobre os ossos e produzam pequenas deformações, que pare-cem impercetíveis mas são suficientes para o esqueleto reagir. Através desse processo de

ação-reação, os ossos tornam-se mais fortes e alcançam o tamanho e a forma adequados.

A melhor ferramenta para favorecer essa tensão é o exercício físico. Os resultados são prodigiosos. Por exemplo, o braço dominante nos jogadores de ténis (o que utilizam para segurar a raqueta), pode ser até 40 por cento mais grosso do que o outro, e isso acontece não apenas pelo aumento de músculo como, tam-bém, de tecido ósseo. Produz-se o inverso nos astronautas. A ausência de pressão sobre o corpo quando não há gravidade fá-los perder massa muscular e óssea. Por isso, ao regressa-rem do espaço, precisam de ajuda para andar e têm de ser transportados em cadeiras de rodas ou ao colo, para evitar fraturas.

A pressão sobre as costas deve ser intensa mas cuidadosa, para não causar lesões nos dis-cos intervertebrais, encarregados de distribuir o peso ao longo da coluna, permitir que as vér-tebras se desloquem para o corpo poder mover--se e proteger dos impactos que se produzem em exercícios como correr ou saltar. A forma de executar determinada ação implica que os discos terão de suportar um peso adequado ou excessivo. Por exemplo, se tentarmos erguer

20 quilos sem fletir os joelhos, as costas irão suportar uma pressão de 26,5 quilos por cen-tímetro quadrado. Em contrapartida, se os dobrarmos, esse valor é reduzido em cerca de 35%. Nem sempre utilizamos corretamente e de forma lógica as qualidades físicas que a natureza nos proporcionou....

BURROS CARREGADOS DE LIVROSCarregamos pesos desde crianças, ignorando

a fisiologia da coluna vertebral, como se esta pudesse aguentar tudo. A repetição de esforços excessivos conduz a um primeiro sinal, o apa-recimento de dor, que depois degenera em lesões. Segundo um estudo feito, em 2011, numa escola de Lisboa, quase sete em cada dez crianças entre os 6 e os 13 anos utilizavam mochi-las com excesso de peso, suportando uma carga superior a 12% do seu peso total.

A investigação, desenvolvida pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, abrangeu 630 alunos do primeiro e do segundo ciclos de ensino e mostrou que eram as crianças do quinto ano que mais peso trans-portavam às costas. De acordo com a Direção--Geral do Consumidor, as crianças não devem carregar mais de 10% do seu peso: se a criança pesar 25 quilos, não deverá carregar mais de 2,5 kg em livros e material escolar. Além disso, a mochila deve ser adequada à estatura da criança e pesar menos de meio quilo quando

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A coluna vertebral é uma complexa estrutura osteoibrocartilaginosa, articulada e resistente, que suporta o tronco e aloja a medula espinal, incumbida de levar impulsos nervosos aos 31 pares de nervos raquídeos. Cada círculo indica a vértebra a que chegam e de onde saem os nervos relacionados com a parte do corpo que afetam especiicamente.

Cervicais C1-C8As suas ramiicações

nervosas controlam a cabeça, as mãos e parte dos braços.

Lombares L1-L5Proporcionam

sensibilidade à região inferior, das ancas aos

dedos dos pés.

Torácicas T1-T12Conhecidas também

por “dorsais”, ligam os nervos

que recolhem as sensações

e o controlo dos movimentos

do torso e da parte interior dos braços.

Sacras S1-S5Fundidas com a pélvis,

afetam a zona posterior da perna, das ancas

ao calcanhar.

Núcleopulpososólido

Segmento da coluna

NúcleopulposoDisco

cartilaginoso Anelibroso

Canal vertebral

Raízesnervosas

Vértebra

Prodígio de engenharia natural

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está vazia. Mais prejudicial ainda é levar a mochila ou a pasta sobre um dos ombros, pois triplica as possibilidades de sofrer de lombal-gia, segundo demonstrou o médico grego Panagiotis Korovessis, numa investigação com 1200 estudantes.

O mesmo se aplica a outras atividades do quotidiano: existe uma forma saudável de se deitar no sofá, de lavar o chão, de limpar o pó, de se barbear ou de se calçar. Por outro lado, a ergonomia também incide sobre a moda. A coluna das adeptas dos saltos altos ficaria muito grata se eles fossem eliminados do armá-rio ou, pelo menos, se o seu uso fosse muito mais esporádico. Os tacões ou saltos com mais de 2,5 centímetros afetam a região lombar, alteram o centro de gravidade do corpo e pro-duzem tensão nos músculos das pernas.

Apesar de tudo, muitos adolescentes que se queixam de dores possuem uma coluna saudá-vel. Se as radiografias não mostrarem anoma-lias, é sinal de que o seu problema ainda não é grave e de que a dor se deve apenas a sobre-cargas musculares ou à irritação de ligamentos ou discos. Outro fator que exerce influência é o facto de os jovens atuais, cada vez mais altos, se verem obrigados a adotar posições

forçadas nas carteiras escolares, pouco adap-tadas às novas gerações.

O ENIGMA DA ESCOLIOSENessa faixa etária, também surge, por vezes,

outro fenómeno: a escoliose, cuja origem constitui um enigma para a medicina. Por que razão se produz um desvio ou uma curvatura da coluna para um lado? Julga-se que se trata de um problema neurológico de transmissão genética, relacionado, provavelmente, com as hipertonias, e afeta sobretudo raparigas, sem que se saiba porquê. Quatro em cada cinco adolescentes com escoliose são altas e magras. O problema surge entre os 11 e os 14 anos e desenvolve-se rapidamente. Na maior parte dos casos, é possível endireitar a coluna com recurso a um colete, mas uma em cada seis vítimas tem de se submeter a uma intervenção cirúrgica o mais cedo possível, pois a esco-liose dá origem a uma sucessão de problemas e malformações. De facto, a partir dos nove anos, já é possível praticar uma intervenção que corrige por completo a espinha dorsal e evita os problemas respiratórios decorrentes da escoliose, assim como a corcunda e os pro-blemas psicológicos que ela implica.

Tal como aconteceu noutras áreas médicas, estas intervenções deram um gigantesco passo em frente com a incorporação da cirurgia minimamente invasiva. Além do bisturi, o cirur-gião recorre, agora, a microscópios, microcâ-maras e pequenos instrumentos para fotocoa-gular vasos e evitar hemorragias. Por exemplo, o centro tecnológico basco Ceit-IK4 e a Clínica Universitária de Navarra estão a desenvol-ver um equipamento robótico para ajudar o médico, durante a operação, a fixar com muito maior precisão as vértebras danificadas por uma pancada ou pela osteoporose: “O robô coloca os parafusos nas vértebras com a orien-tação correta, e evita que haja um desvio que possa afetar a medula óssea ou os tecidos e nervos que rodeiam a coluna”, explica Emilio Sanchez, do Ceit-IK4.

Para o paciente não ter de chegar à mesa de operações exceto quando é inevitável, a medicina criou novos tratamentos para pro-blemas de tensão nas costas e até para casos de hérnia discal. Um dos mais recentes é a tração mecânica em três dimensões, que con-siste em programar, através de um sistema informático, os movimentos habituais da espi-nha dorsal (rotação, inclinação e tração), com o objetivo de libertar os nervos comprimidos. A tensão é aliviada separando as vértebras através da terapia de suspensão, que consiste numa série de exercícios com os pés erguidos ao alto por correias.

Sangue terapêuticoU m plasma rico em fatores de crescimento

curou em tempo record as lesões no joelho do tenista Rafael Nadal, o que levou os médicos a considerar a aplicação desta técnica, que ace-lera a cicatrização e a reabilitação dos tecidos, noutros campos. Utiliza-se, por exemplo, em oftalmologia, para regenerar tecidos oculares; em dermatologia, para tratar queimaduras, feri-das e lesões da pele; e até no campo da estética, para rejuvenescer o rosto. “No caso da coluna, é aplicado a pessoas com pseudoartrose, que se caracteriza pela falta de consolidação óssea após uma fratura. Se uma primeira intervenção fracassar, na segunda, utilizamos, além de teci-do ósseo do paciente, fatores de crescimento que ajam como uma cola entre as vértebras”, explica o médico espanhol Mariano Hidalgo, pioneiro no uso traumatológico da técnica. O tratamento, pouco invasivo, consiste em extrair sangue do paciente e processar a amostra para obter um concentrado de plaquetas rico nos referidos fatores, o qual será infiltrado na zona a tratar. Segundo a experiência do especialista, “possui, a curto prazo, um efeito anti-inflama-tório, o que alivia a dor, e exerce, a longo prazo, uma ação regenerativa”. Além disso, por ser proveniente do próprio paciente, o sangue não acarreta riscos nem possui efeitos secundários.-

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Existe uma forma saudável de fazer cada gesto do dia a dia

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Boas e más posições

S abe estar de pé como deve ser? Pegue num prumo, como fa-

zem os operários para comprovar a verticalidade de uma parede. Ate-o à ponta de um fio e e deixe-o cair até aos pés, ligando orelha, ombro, anca e tornozelo. Se a linha é reta, é porque os eixos das pernas cons-tituem um sólido apoio, a coluna vertebral está alongada e os órgãos internos bem colocados, sem estarem comprimidos. A posição melhora o estado de espírito, mos-tra uma atitude recetiva e contribui para a prevenção de dores e tensão. Em contrapartida, se a linha for sinuosa, é sinal de má postura. Os ossos das pernas não estão perpen-diculares ao chão nem proporcio-nam um bom apoio ao corpo. A coluna contrai-se, o que comprime, por sua vez, os órgãos internos. A cabeça pa-ra a frente, as ancas inclinadas para diante e a parte superior das costas curvada denotam cansaço, má disposição e, provavelmente, dor. Por outro lado, a coluna não é comple-

Agachar-se e manteras costas direitas ao levantar

Distância correta dos olhos ao ecrã: 50 a 70 cm

Inclinação:10 a 20 graus

tamente direita, mas forma curvas naturais que não surgem por capricho. Ajudam a manter o equilíbrio e a absorver os impactos que se pro-duzem ao andar e saltar, e permitem às costas suportar cargas mais elevadas do que se fosse

rígida. No feto, a coluna forma uma espécie de arco. Depois do nascimento, gera-se a curvatura das cervicais e, ao começar a andar, surge a lordose lombar. A curva fica completa por volta dos dez anos.

Sentar-se bem à frente do computador

A forma correta de levantar um peso

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Encaixados. Os adolescentes são mais altos do que antigamente, mas o tamanho das carteiras e das cadeiras das escolas não se alterou. Conclusão: adotam posturas que prejudicam a coluna.

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A fim de tratar outras lesões, como a protusão discal (uma distensão do anel fibroso que envolve os discos intervertebrais), e, sobre-tudo, para evitar que elas surjam, a fisioterapia lança mão do sistema propriocetivo. Integrado por múltiplos recetores nervosos situados nas articulações, nos tendões e nos músculos, este sistema é responsável por reunir informação sobre a postura que adotamos, sem necessi-dade de recorrer à vista, e transmiti-la ao cére-bro. Quando se produz uma lesão, este meca-nismo falha e o corpo não consegue efetuar um ajuste adequado nos movimentos, o que agrava os danos. A reabilitação propriocetiva consiste em reprogramar o sistema para ensinar o organismo a adotar posturas corretas que permitam recuperar do problema.

A receada lombalgia pode também ser tratada com terapias alheias à medicina convencional. Uma é a manipulação vertebral efetuada por quiropráticos: com dois ou três gestos, o paciente sente-se melhor, recupera a mobili-dade e vê a dor diminuir. O único requisito é que a manipulação seja praticada por um profissio-nal qualificado e após um diagnóstico prévio; caso contrário, pode constituir uma solução de alto risco.

A coluna é especialmente sensível, o que a transforma numa magnífica meteorologista. Pelo menos a nível popular, existe a ideia de que as alterações no estado do tempo se manifestam através de dores no esqueleto. Possuirá base científica? Continua em debate, mas vários estudos confirmam a relação. A médica argentina Ingrid Strusberg averiguou como as alterações meteorológicas afetavam 151 pessoas com artrose, em comparação com outras 32 sem o problema, e concluiu que existe uma ligação entre a dor e o aumento da pressão atmosférica, o grau de humidade e a descida da temperatura.

MARCAS IMPOSSÍVEIS DE APAGARA um perito forense, basta analisar a coluna

para determinar a idade do falecido. A análise das vértebras e dos discos intervertebrais não admite dúvidas, pois os anos deixam marcas impossíveis de apagar. De facto, a espinha dor-sal tem idades, cada qual com as suas patolo-gias: o crescimento é a época das deformações vertebrais, sobretudo da escoliose; dos 25 aos 50, é a idade dos discos; depois, chega o período degenerativo, caracterizado pela dor devido à falta de exercício e ao desgaste ósseo.

Exercícios de trazer por casa

A presentamos-lhe sete exercícios simples que pode fazer em casa para tonificar a coluna.

Experimente fazê-los com outros membros da sua família!

Sexo de pé – Com as mãos na cintura, mover a pélvis para a frente e para trás, enquanto mantém estático o resto do corpo e os pés.O pássaro – De pé e com os braços es-tendidos na horizontal, mover os ombros para trás e para a frente, evitando letir os cotovelos.Para cima e para baixo – Na mesma posição e com os braços estendidos num ponto intermédio entre a horizontal e a vertical, subir e baixar os ombros sem letir os cotovelos.Quatro patas – Assim colocados, esticar o pescoço para cima e, simultaneamente, curvar as costas em direção ao chão, empurrando os glúteos para trás e para cima. Depois, efetuar o movimento oposto, escondendo o pescoço entre os ombros, levando a curvatura das costas para cima e contraindo os glúteos para baixo.Super-homem – Deitado de barriga para baixo, estender braços e pernas.

Depois, erguer um braço e a perna contrária. Voltar à posição inicial e repetir com os membros opostos.O anjo – De pé e com as costas apoiadas numa pare-de, letir os cotovelos 90 graus e apoiar toda a superfície dos braços nela; elevar as mãos até uni-las e voltar à posição inicial.Olhar o umbigo – Deitado de barriga para cima, apoiar as plantas dos pés, fazer pressão com as coxas para baixo e con-trair o soalho pélvico. Expirar para tentar levar o umbigo em direção às costas. Para contrair o soalho pélvico, fazer o gesto de quando se procura conter a mic-ção, no caso das mulheres. Nos homens, elevar os testículos.

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Um estudo sobre os discos intervertebrais publicado na revista Spine demonstrou que elas são das primeiras peças do corpo a sofrer des-gaste. Nos homens, quando o cérebro ainda não alcançou o seu pleno desenvolvimento (por volta dos 25 anos), a coluna já começou a descer a encosta. Segundo a investigação, que analisou as vértebras de 600 indivíduos, a deterioração começa aos 20, no caso do sexo masculino, e aos 30 nas mulheres. Após os 50 anos, 97% dos discos da zona lombar mostram-se des-gastados, o que se manifesta através do apa-recimento de pequenas fendas e, depois, com a perda progressiva de densidade óssea nas vértebras (aos 80 anos, já diminuiu 40%). Por outro lado, dos 20 para os 80, a capacidade da coluna para suportar cargas é reduzida para metade.

Não é exagerado dizer que a forma como se envelhece está diretamente ligada ao estado da coluna, e é lícito perguntar se existe algum método anti-idade para a manter saudável. A primeira norma, como em qualquer trata-mento antienvelhecimento, é dizer “não” ao excesso de peso. Os especialistas afirmam que surgem frequentemente nos seus consultórios pacientes quase sem musculatura e cujos qui-los a mais caem como pesos de chumbo sobre as vértebras, provocando o seu esmagamento. A obesidade tem também influência no apa-recimento da artrose, caracterizada pelo des-gaste das cartilagens das articulações e pela

A espinha dorsal tem idades, cada uma com as suas patologias

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Desporto... mas na dose certa

A s posturas e a repetição de movimentos em alguns des-

portos acabam por agredir a colu-na. Por isso, devem ser praticados com moderação.

Ciclismo – A curvatura da espinha dorsal é alterada pela posição ado-tada para manter a aerodinâmica, o que afeta ligamentos e músculos.

Râguebi – A musculatura não está preparada para receber os impac-tos de contacto, o que produz uma alteração brusca na posição da coluna vertebral.

Ténis – Pela sua assimetria (bate--se na bola com o corpo inclinado para um lado), as costas sofrem sucessivos movimentos de inclina-ção, lexão e extensão que afetam os discos intervertebrais.

Golfe – Repete-se o mesmo gesto (lexão, extensão, rotação e incli-nação das costas) de forma brusca e constante.

deformação dos ossos. As costas são uma das zonas mais afetadas pelo excesso de peso: a maior compressão das vértebras aumenta a fricção e acelera a sua deterioração.

A segunda lei antienvelhecimento é cuidar da alimentação para combater a osteoporose. Com a passagem dos anos, os homens perdem cerca de 3% de massa óssea, e as mulheres 8%. Não se pode evitá-lo, mas sabemos que uma ali-mentação rica em vitamina D ativa a absorção do cálcio e aumenta a presença desse mineral no sangue. O processo é completado pela ter-ceira regra de ouro: o exercício físico regular, a melhor receita para lutar contra um processo crónico como a osteoporose. Cumpre-se, desta forma, a lei de Wolfe, assim denominada pelo cirurgião alemão que enunciou, no século XIX, que o osso se adapta às cargas que lhe aplicam: quanto maior a pressão, mais densidade e resistência. Daí que os especialistas tenham declarado guerra ao sofá.

Além disso, o exercício favorece a nutrição dos discos vertebrais e neutraliza a perda de elementos causada, por exemplo, pelo con-sumo de tabaco. O efeito aumenta em modali-dades como a natação, que ajudam a descom-primir os discos e reduzem a perda de líquido que eles sofrem ao longo do dia. Por outro lado, uma investigação de Mark Anshel e Ken-neth Russell, da Universidade de Wollongong (Austrália) demonstrou que o exercício aeró-bico possui um efeito analgésico. Se for pra-

ticado a uma intensidade média durante doze semanas, o limiar de dor do praticante do des-porto aumenta.

DEITAR-SE nARA FICAR MAIS ALTmÉ inquestionável que, quanto melhor for o

estado físico geral, melhor será a saúde das costas e vice-versa, mas, se fosse necessário destacar um elemento da anatomia com influência na coluna e que convém manter tonificado, seria sem dúvida o abdómen. Segundo os especialistas, é conveniente ter bons abdominais. A contração da musculatura abdominal torna mais estreita e alongada a câmara pneumovisceral, que aloja os pulmões e os restantes órgãos. Assim, absorve parte da carga que a coluna suporta e distende os discos. Estômago e barriga bem musculados ajudam as costas em ações que podem implicar o risco de lesões. Por exemplo, quando se carrega um peso, os discos podem sofrer lesões a partir dos 15 graus de flexão. Nesses casos, a força dos músculos do abdómen aumenta a resistência da espinha dorsal.

Depois de tonificar os abdominais, a melhor coisa para cuidar das costas é deitar-se. Permite aos discos intervertebrais completar o meca-nismo de imbibição, um estranho ciclo que os distingue dos restantes tecidos, que obtêm os nutrientes e o oxigénio através dos vasos san-guíneos. Ao longo de um dia normal, os fluidos submetidos a pressão migram pelos poros até

ao interior das vértebras, onde adquirem os elementos de que necessitam. Quando nos deitamos, reduzida a carga sobre os discos, os líquidos regenerados regressam ao interior. Durante o dia, sobretudo nas primeiras qua-tro horas, os discos perdem entre 10 e 25% dos fluidos que contêm. Por isso, ao chegar ao fim do dia, a nossa estatura diminuiu geralmente um ou dois centímetros. Assim, para ficar mais alto, não precisa de recorrer aos tacões dos sapatos: deitar-se e repousar é suficiente.

Uma vez descansada, a coluna vertebral fica em condições de nos ajudar a caminhar numa postura ereta durante horas ou a ir a uma entrevista de trabalho com plenas perspetivas de êxito, pois a ciência já demonstrou o que se sabia de forma intuitiva: há uma relação direta entre a postura corporal e as emoções e o estado de espírito. Ter as costas direitas favo-rece o pensamento positivo. Um indivíduo transmite, assim, uma impressão de confiança em si próprio, de boa saúde e segurança. Esta posição de firmeza contribui para aumentar a autoestima e age como uma barreira eficaz face aos pensamentos negativos.

Embora possamos assumir, em linguagem popular, que temos as costas largas, como se estas pudessem suportar tudo, é evidente que não é assim. As nossas costas e o seu principal andaime, a coluna vertebral, refletem a saúde física do corpo e também o que vai na mente.

F.C.

Remo – A maior carga surge no momento de máxima inclinação das costas.

Dança, ginástica – Possuem muitas vantagens, mas alguns exercícios forçam repetidamente a coluna em posições de lexão e extensão.

Basquetebol – Os constantes saltos comprimem os discos invertebrais, efeito que aumenta quando há excesso de peso. A prática intensiva acelera o seu desgaste.

Lançamentos (dardo, disco, peso) – Para o lado do corpo com que se procede ao lançamento ganhar impulso, produz-se uma rotação brusca da espinha dorsal.

Artes marciais – São como a ginástica, com o risco acrescido de se poder receber uma pancada brusca sem a musculatura estar preparada.

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Animais

Habitam nas areias do Sahara, um dos meios mais hostis do planeta, onde aprenderam a sobreviver

quase sem água e se alimentam de insetos. Hoje, muitas destas fugidias raposas, vítimas

do contrabando de espécies, transformaram-se em exóticos animais de estimação.

Feneco, a raposa ameaçada

Os espíritos do DESERTO

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Casas precárias. Alguns nómadas adotam estas raposas fáceis de domesticar, que se habituam facilmente a conviver com as pessoas. Os exemplares selvagens escavam tocas nas dunas, onde por vezes convivem vários grupos familiares. Cada um destes complexos subterrâneos pode ter mais de 100 metros quadrados e vários acessos à superfície.

N ão há maneira de um feneco passar despercebido; de modo algum, pelo menos, longe do seu meio natural. Afastado dos infinitos ocres que

caracterizam o seu habitat, nas vastas regiões desérticas do norte de África, as suas orelhas de 15 centímetros denunciam-no de imediato. Estas pequenas raposas, os mais pequenos de todos os canídeos, raramente ultrapassam os 40 centímetros de altura, pelo que aqueles apêndices são gigantescos em relação ao seu tamanho. Contudo, há boas razões para serem assim. Percorridas por uma miríade de vasos sanguíneos quase à flor da pele, os pavilhões auriculares ajudam-nos a dissipar o calor. Permitem-lhes também canalizar os sons com grande eficácia. De facto, o ouvido destes ani-mais é tão agudo que conseguem captar os movimentos sobre a areia dos escaravelhos e gafanhotos que lhes servem de alimento, e localizar outras presas debaixo de terra. É precisamente aí, no subsolo, que passam boa parte do tempo.

Os fenecos, ou raposas-do-deserto (Vulpes zerda), utilizam diversas estratégias e desenvol-veram diferentes adaptações evolutivas para lidar com os rigores climáticos do Sahara. Por um lado, constroem as suas tocas sob a areia,

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Invisíveis no mar de areiaNão é fácil avistar um feneco no deserto. Os pequenos canídeos são inofensivos e não atacam o gado, nem costumam aproximar-se dos aglomerados humanos.

Controlo de pragasOs ecologistas alertam para o facto de o tráfego de fenecos e a destruição do seu habitat contribuírem para a proliferação das espécies de que eles se alimentam, muitas delas daninhas para a agricultura.

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Desapareceram nos locais onde são vendidos aos turistas

por vezes ao abrigo de montículos ou perto de arbustos. Além disso, possuem hábitos notur-nos. O pelo, espesso e claro, não só reflete parte da radiação solar como os protege das acentuadas descidas de temperatura que se verificam no norte do Sahel. Além disso, a pela-gem é especialmente densa debaixo das patas, o que lhes permite andarem de um lado para o outro sob o sol ardente sem se queimarem.

Todavia, os fenecos difícilmente sobrevive-riam na aparente desolação do seu lar se não fosse a sua extraordinária capacidade para subsistirem quase sem água. Os rins destes animais estão especialmente preparados para essa circunstância e, se for necessário, podem obter o líquido vital apenas através da alimen-tação, que não se baseia só nos referidos inse-tos: caçam também pequenos lagartos, roedo-res e aves, saqueiam ninhos e chegam a comer

práticas que já provocaram o seu desapareci-mento de algumas zonas do sul de Marrocos.

No tratado Domestication, Clive Roots, espe-cialista na criação de animais selvagens em cativeiro, sublinha que as crias são, muitas vezes, afastadas da mãe antes do desmame e alimen-tadas à mão, um trabalho que tem por objetivo obter animais dóceis e, por conseguinte, mais valiosos. Em teoria: Roots adverte que, embora os hábitos dos fenecos assim criados não sejam muito diferentes dos de um gato doméstico, eles não hesitam em abandonar a família adotiva e desaparecer para sempre à menor oportu-nidade. Provavelmente, o apelo da “selva” é ainda demasiado intenso nestes animais.

É o que pensa Francisco Mingorance, um fotógrafo da natureza internacionalmente reconhecido, que assina as espetaculares ima-gens que ilustram estas páginas: “O feneco é uma alma selvagem e livre; se desaparecer, também se terá perdido a parte mais genuína dessas extensas dunas vermelhas onde vive, o seu selo de identidade, o espírito do deserto.”

A.A.

raízes, embora estas apenas representem menos de um décimo da sua dieta. Tal como os seus parentes de outras latitudes, acu-mulam parte dos restos no covil, onde criam a prole (as fêmeas costuma parir, uma vez por ano, entre duas e quatro crias) e se refugiam dos predadores, como chacais, hienas e, sobretudo, corujões do deserto.

AMEAÇA HUMANANenhum predador, todavia, coloca real-

mente em risco a sobrevivência dos fenecos, algo que depende muito mais de nós, os seres humanos. A Lista Vermelha de Espécies Amea-çadas, elaborada pela União Internacional para a Conservação da Natureza, é taxativa a esse respeito: a maior ameaça que eles enfrentam é o tráfico comercial, seja da sua pele, seja para serem vendidos como mascotes a turistas,

Sociais, mas ciumentos. Os fenecos são animais sociais e vivem geralmente

em comunidades de cerca de uma dúzia de elementos. Embora possam partilhar

o espaço com outros grupos, os machos são muito agressivos durante o cio.

SUPER34

Saúde

O seu ADN guarda potentes fármacos

SerpentesMEDICINAIS

Presentes em quase todo o planeta, fascinam, aterrorizam e matam: milhares de pessoas

morrem todos os anos depois de terem sido mordidas. Contudo, também nos podem curar.

A sequenciação do genoma da cobra-real e da pitão da Birmânia revela os segredos

da evolução das serpentes e do seu veneno, que poderá servir de base a promissores fármacos.

O s herpetologistas mais ousados caçam, no seu meio natural, mam-bas negras e cobras-cascavel letais ou descomunais anacondas amazó-

nicas. Depois, chega o trabalho de laboratório, no qual se manipulam e estudam as serpentes. Hoje, os cientistas descobriram que esquadri-nhar a fundo a biologia molecular destes rép-teis é mais eficaz (e menos perigoso) a desco-brir os segredos que ocultam do que pôr-lhes a mão em cima. Nomeadamente agora, depois de uma equipa de investigadores ter sequen-ciado, pela primeira vez, o genoma de uma serpente venenosa, a cobra-real; simultanea-mente, outro grupo fez o mesmo com uma espécie não venenosa, a pitão da Birmânia. Os dois trabalhos, publicados na revista Science, permitem comparar ambas as sequências de ADN e compreender como surgiu o veneno dos ofídios, substância para a qual se perspetivam importantes aplicações medicinais.

As duas espécies analisadas representam extremos opostos no reino dos ofídios, e essa divergência contribui para desvendar o per-curso da evolução destes répteis: a pitão bir-manesa come três a cinco vezes por ano e, para poder fazê-lo, estrangula a presa, por vezes maior do que ela. Uma ceia pode fornecer-lhe

um terço das suas necessidades anuais de ener-gia. Por sua vez, a cobra-real, o maior ofídio venenoso do mundo (chega aos quatro metros de comprimento), desenvolveu uma substân-cia tóxica que consiste em péptidos (moléculas formadas por cadeias curtas de aminoácidos) e proteínas que imobilizam e matam a vítima com

Interessante 35

Atenção às curvas! A pitão da Birmânia (Python molurus bivittatus) pode ter mais de sete metros de comprimento e 90 quilos de

peso. É uma mascote de certa popularidade, sobretudo nos Estados Unidos, onde é

introduzida ilegalmente. Os seus genes são uma janela sobre o estado evolutivo das

serpentes antes do surgimento do veneno.

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Privadas de membros, as cobrastiveram de inventar outras armas

lismo pode acelerar cerca de quarenta vezes. Dado que as serpentes partilham a maior parte dos genes com os restantes vertebrados, entender as bases moleculares e genéticas dessa remodelação de órgãos poderá propor-cionar soluções para combater doenças.

TRANSFORMAÇÃO CONTÍNUAA iniciativa de sequenciar o genoma da

cobra-real partiu de Freek Vonk, do Centro Naturalis de Biodiversidade, em Leiden (Países Baixos), que trabalhou com especialistas de outros países. O estudo revelou características singulares da espécie, como diferentes padrões de atividade genética na glândula de veneno e na glândula acessória, uma estrutura pouco conhecida pela qual a peçonha passa antes de sair pelos dentes. A glândula acessória de outras espécies produz lectinas (um tipo de proteínas) que se juntam ao cocktail letal, mas, na cobra--real, tais substâncias não possuem um caráter tóxico, e desempenham um papel enigmático ainda por desvendar.

Os investigadores procederam à leitura dos genes da cobra envolvidos na produção de substâncias tóxicas e pensam que evoluí-ram de outros que tinham funções diferentes,

como a de regular o metabolismo ou a digestão. O mecanismo para tal suceder teria sido a dupli-cação dos referidos genes até se modificarem e converterem em agentes letais que teriam encontrado expressão na glândula de veneno. O processo encontra combustível na rela-ção entre as cobras e as suas presas. A cada aumento da resistência às toxinas, segue-se uma sofisticação do veneno.

A grande vantagem das serpentes nessa cor-rida evolutiva aos armamentos é que os genes envolvidos na aptidão que desenvolveram estão submetidos a uma contínua transformação. “É uma excelente demonstração da seleção natu-ral dentro do genoma”, afirma Vonk. A análise da constante modificação dos genes veneno-sos e a comparação entre o ADN da cobra-real e o da pitão da Birmânia revelou que a genética das serpentes se alterou profundamente e muito depressa para poder cobrir as suas necessida-des adaptativas. Segundo Castoe, há dez vezes mais genes sob intensa seleção positiva nos ofídios do que noutros vertebrados, o que significa que as mutações genéticas foram vantajosas. Os cientistas ainda mal começa-ram a ordenar os dados obtidos e pretendem sequenciar mais genomas destes animais. Cas-toe já trabalha no da serpente-cega e tem outra dezena de espécies em mente. “A história natural possui todas as interrogações, a biologia molecular tem todas as respostas”, afirma.

Os novos conhecimentos possuem um lado

grande rapidez. Segundo o biólogo evolutivo Bryan Grieg Fry, alcunhado “Dr. Veneno”, “os dois genomas mostram que as serpentes, no seu conjunto, evoluíram muito depressa, modifi-cando a função de genes existentes e desen-vol vendo outros para criar novas faculdades”.

As serpentes descendem de lagartos sub-terrâneos, um nicho ecológico no qual ter patas não era um bom investimento. Foi sob a terra que adquiriram a forma serpentina e um metabolismo económico capaz de funcio-nar com pouco oxigénio. Os olhos também não eram muito importantes naquele habitat. Quando migraram para a superfície, a ausência de membros levou-as a adotar outra estratégia de caça: o veneno. Pitões e anacondas perten-cem a um grupo que se separou de imediato dessas primeiras serpentes e optou pela sufo-cação em vez do envenenamento.

Segundo o biólogo Todd Castoe, da equipa da Universidade do Texas em Arlington que sequenciou o genoma da pitão, ele e os seus colegas escolheram essa espécie devido ao seu espantoso metabolismo. Aguenta meses sem comer e, quando o faz, os rins, o coração, o fígado e o estômago podem duplicar de tama-nho em apenas três dias, enquanto o metabo-

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Confiança. O holandês Freek Vonk mistura o trabalho de campo com o de laboratório: os seus estudos do genoma ofídio focam-se no isolamento e na síntese de novos medicamentos.

Interessante 37

prático e benéfico: os investigadores esperam encontrar no fatídico veneno das serpentes substâncias que possam ajudar a desenvol-ver medicamentos contra muitas doenças. Os péptidos e as proteínas que estes répteis pro-duzem juntam-se às moléculas que regulam a pressão arterial e a coagulação, o que provoca um apagão fatal no sistema cardiovascular. Outras toxinas acabam com a maquinaria celular do sistema nervoso.

MATA, MAS TAMBÉM CURAContudo, estas formas de matar um orga-

nismo talvez contenham a solução para poder curá-lo. Escondidas entre as complexas combi-nações produzidas pelas glândulas venenosas das serpentes, existem cadeias de aminoácidos que podem atenuar a dor ou reduzir a hiperten-são, e pensa-se que existem péptidos ainda por descobrir que poderiam evitar enfartes ou tratar o cancro. “Os investigadores aperceberam--se de que existem muitas proteínas com uma especificidade tremenda no veneno destes animais”, declarou à Science Kini Manjunatha, biólogo e professor da Universidade Nacio-nal de Singapura. “Estou convencido de que haverá mais medicamentos desenvolvidos a partir das serpentes.”

Os estudos neste campo avançaram nos últi-mos anos devido à combinação da espectro-metria de massas com a ultrassequenciação, duas tecnologias que ajudam os cientistas a

Variedade de picadas

A s serpentes são as preferidas dos especialistas em substâncias tóxicas, pois trata-se das cria-

turas que maior quantidade de veneno produzem. Contudo, eles estão também interessados em es-corpiões, aranhas, centopeias e caracóis marinhos do género Conus geographus: “Há 50 mil espécies de aranhas venenosas”, afirma Pierre Escoubas, investigador francês e fundador da VenomeTech, empresa com planos para produzir fármacos com base nessas substâncias. A enormidade do nú-mero de aranhas perigosas corresponde à imensa diversidade das suas presas, os insetos, um grupo tão heterogéneo que exige um arsenal de caça variado. Escoubas dirige o projeto Venomics, que analisa a estrutura molecular dos venenos através da espectrometria de massas, em busca dos pép-tidos que eles ocultam. A iniciativa pensa estudar cerca de duzentas espécies de criaturas venenosas diferentes, e espera encontrar cerca de 50 mil péptidos (um passo de gigante, em comparação com os 4000 péptidos de veneno descritos no úl-timo meio século). Já existem fármacos derivados de venenos que não são de ofídio: o ziconotide é utilizado no tratamento da dor crónica desde 2004 e provém do veneno dos caracóis marinhos referi-dos, e o exenatide, muito comum contra a diabetes de tipo 2, é isolado da saliva do monstro-de-gila, um lagarto peçonhento da América do Norte. O veneno da tarântula revelou-se útil para a criação de poderoso analgésicos.

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Hora da ordenha. Um investigador extrai o veneno da víbora malaia Calloselasma rhodostoma. Por vezes, o réptil é sedado, para facilitar a operação e reduzir o perigo de mordedura.

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identificar rapidamente os péptidos desconhe-cidos dentro de um veneno. Não são apenas as serpentes que lhes interessam, pois estima-se que haja cerca de 170 mil espécies de criaturas venenosas. Mesmo que um veneno contivesse, em média, apenas 250 péptidos (uma estimativa muito conservadora), estaríamos perante “uma enorme biblioteca natural com mais de 40 milhões de compostos que vale a pena explo-rar”, segundo Manjunatha.

Os primeiros estudos do veneno ofídio para uso farmacológico datam da década de 1960, quando cientistas brasileiros que investigavam os efeitos da peçonha da perigosa jararaca-do--norte (Bothrops atrox, também conhecida por “barba amarela”) descobriram que continha uma gama de péptidos que faziam a pressão arterial descer de forma drástica. Pouco depois, químicos da companhia farmacêutica norte--americana Bristol-Myers sintetizaram a molé-cula captopril, que imita um desses péptidos. Foi o primeiro dos inibidores da enzima de conversão da angio tensina, hoje comuns no tratamento da hipertensão.

Em 1998, os Estados Unidos aprovaram o eptifibatide, um anticoagulante baseado na estrutura de uma toxina da cobra-cascavel que se junta às plaquetas do sangue e evita que elas se unam, formando coágulos. Um ano depois, foi lançado no mercado um fármaco semelhante, a tirofibana, concebida com base numa proteína

de víbora. Muitas outras substâncias baseadas em venenos de serpente, incluindo poderosos analgésicos, estão em fase de ensaio clínico.

TECNOLOGIA DE PONTAO caminho para obter um destes fármacos

começa em lugares como o Instituto Butantan de São Paulo (Brasil), onde são criadas ser-pentes para lhes extrair o veneno. Os técnicos aprenderam a manipulá-las, adormecendo-as com dióxido de carbono antes de retirarem o veneno para pequenos frascos. Trata-se da parte perigosa do trabalho; a mais complicada reside em identificar e purificar os compostos da arma letal. Pode levar anos, pois há alguns com centenas ou milhares de péptidos. É aqui que entra em ação a espectrometria de massas, dividindo as proteínas em fragmentos mais pequenos e classificando-os consoante o seu peso. Determinada a diferença entre as mas-sas dos fragmentos, os investigadores identi-ficam os aminoácidos e inferem a sequência do péptido.

No Butantan, extrai-se todo o veneno do rép-til, que deixam depois em paz durante três dias, para ter tempo de voltar a encher as glândulas da peçonha. Os investigadores sequenciam, então, o ácido ribonucleico (ARN) da glândula de veneno, a fim de encontrar padrões de alguma toxina típica. Depois, voltam a examinar a informação obtida no espectrómetro de mas-

sas para poder interpretá-la, comparando-a com as sequências do ARN. Antes, extraía-se o veneno e a bioquímica era feita às cegas. Agora, codifica-se o idioma da substância.

O veneno das serpentes e de outras criaturas parece muito promissor na procura de novos tratamentos contra a dor. Em 2006, descobriu--se que uma mutação do gene que dirige a sín-tese do canal de sódio, Nav 1.7, envolvido na transmissão de impulsos elétricos entre as célu-las neuronais, insensibiliza para a dor. Se esse canal for fechado ou alterado, o cérebro não recebe a informação de que algo está mal. Porém, encontrar moléculas suficientemente pquenas para bloquear o Nav 1.7, sem afetar outros canais semelhantes nas células huma-nas, tem sido impossível.

Os estudos sugerem que os venenos de ori-gem animal podem efetuar tal bloqueio, mas trabalhar com eles é complicado. Os péptidos que os compõem são caros de isolar, causam por vezes reações imunológicas e é necessário serem injetados, pois o nosso estômago acaba por decompô-los. Apesar disso, já foram encontrados péptidos que se mantêm estáveis quando ingeridos por via oral. Existe um assim, baseado nas toxinas da cobra-real, até duzen-tas vezes mais potente do que a morfina. Toma-se na forma de um comprimido que se coloca sob a língua.

A fim de sobreviver, as serpentes tiveram de desenvolver um dos melhores arsenais da natureza. Nesse sofisticado mecanismo de morte, talvez possamos encontrar as armas mais eficazes contra doenças ainda sem cura.

A.P.S.

Novas técnicas aumentaramo ritmo de descoberta de péptidos

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Código letalA equipa de Todd

Castoe sequenciou o genoma da pitão

da Birmânia.

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A redeNATURA

Ambiente

Abrange 22% do nosso território

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Em geral, a Rede Natura 2000 só é notícia quando as associações ambientalistas chamam a atenção para a intenção de implementar projetos pouco sustentáveis em zonas ambientalmente sensíveis. Nessas alturas, descobre-se que, afinal, há áreas

naturais portuguesas que são património europeu. O biólogo Jorge Nunes leva-nos a descobrir os

sítios nacionais que integram essa rede ecológica.

H á tempos, assisti, inusitadamente, a um diálogo de esplanada, no qual os interlocutores expunham as suas perplexidades sobre o embargo

da construção de uma barragem: “Veja só que proibiram a obra devido a umas míseras con-chas, como se não houvesse muitas no mar!” “Noutro sítio, impediram a reabertura de uma mina por causa de uns bichos manhosos que lá se enfiaram.” “A culpa é dos iluminados da capi-tal, que fazem leis sem conhecerem o país real e se lembraram de inventar a Natura 2000 para impedir o desenvolvimento do interior”, con-clui um deles, perante a perplexidade do outro: “Isso ainda existe? Eu pensava que já tinha ter-minado há 15 anos…”

Conto aqui este episódio porque ele revela, uma vez mais, a ignorância de muitos portu-gueses acerca da Rede Natura 2000. De um modo geral, a maioria das pessoas desconhece a sua existência. Quem já ouviu falar dela asso-cia-a, como se viu, a uma força de bloqueio, inventada nos gabinetes de Lisboa, para se opor ao crescimento económico regional. Será mesmo assim? Afinal, o que é e para que serve a Rede Natura 2000?

Aquilo a que vulgarmente se chama “Natura 2000” é, na verdade, uma rede ecológica que resultou da política ambiental da União Euro-

peia, e que se estende por todos os estados--membros, desde o extremo mais ocidental, em Portugal, até aos limites nordeste, na Fin-lândia, e sueste, em Chipre. Embora, por vezes, as pessoas associem a sua denominação ao ano 2000, foi criada em 1992. Resultou da publi-cação da Diretiva Habitats, assim chamada porque visava proteger os habitats naturais mais vulneráveis e os das espécies de fauna e flora mais ameaçadas.

INSTRUMENTO EUROPEUA Diretiva Habitats correspondeu a um

aprofundamento de legislação anterior, mais precisamente da Convenção de Berna, relativa à conservação da vida selvagem e dos habitats naturais, e da Diretiva Aves, que visava a preser-vação de todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem. Curiosa-mente, não se limitou a dar apenas continui-dade a políticas conservacionistas precedentes, mas introduziu uma importante inovação: a conservação da natureza passou a centrar-se, principalmente, nos habitats, que passaram a ser vistos como suportes fundamentais da biodiversidade.

Recorde-se que se entende por habitat o local ou fração do meio adequado para a vida de um dado animal, de uma determinada planta

Oásis. No que respeita aos habitats de água doce, ressaltam como prioritários os charcos temporários mediterrânicos. Por incrível que pareça, albergam uma vegetação anfíbia e efémera que vai variando com as estações do ano.

41Interessante

SUPER42

ou, ainda, de uma qualquer população ou comunidade biológica. Dito de outro modo, são zonas terrestres ou aquáticas, inteiramente naturais ou seminaturais, que se distinguem por características geográficas bióticas e abióticas.

Ao passarmos os olhos pelo preâmbulo da Diretiva Habitats, percebemos que ela resultou, entre outras razões, da constatação de que, no território europeu, os habitats naturais tinham vindo a degradar-se continuamente, havendo um número crescente de espécies selvagens gravemente ameaçadas. “Perante as ameaças que pesam sobre certos tipos de habitats natu-rais e certas espécies, é necessário defini-los como prioritários, a fim de privilegiar a rápida implementação de medidas para a sua con-servação”, lê-se no documento. Como, geral-mente, essas ameaças são de natureza trans-fronteiriça, tornava-se necessário criar um instrumento que abrangesse as múltiplas rea-lidades europeias e permitisse tomar medidas a nível comunitário com vista à preservação da natureza.

Assumia-se assim, claramente, que o princi-pal objetivo desta rede ecológica era favorecer a manutenção da biodiversidade, não esque-cendo que ela é um valioso recurso, que sus-tenta inúmeras atividades, como a agricultura,

a pesca, a caça, o turismo, etc. Porém, isso devia fazer-se “tomando simultaneamente em consi-deração as exigências económicas, sociais, cul-turais e regionais, contribuindo para o objetivo geral de desenvolvimento sustentável”, pois, por estranho que possa parecer, “a manutenção dessa biodiversidade pode, em certos casos, requerer a manutenção e até mesmo o enco-rajamento de atividades humanas”, lembra o documento.

De modo a concretizar estes objetivos, cada estado-membro designa, de acordo com crité-rios exclusivamente científicos, zonas espe-ciais de conservação (ZEC), que visam contri-buir para a conservação dos habitats naturais (constantes do Anexo I da Diretiva Habitats) e das espécies da flora e da fauna selvagens con-sideradas ameaçadas (incluídas no Anexo II). Além disso, designa zonas de proteção espe-cial (ZPE), destinadas a garantir a conservação das espécies avícolas e dos seus habitats (constantes do Anexo I da Diretiva Aves), bem como das aves migratórias de ocorrência regular no espaço europeu.

Porém, não basta selecionar e delimitar essas áreas: é necessário protegê-las e geri-las de forma sustentada e sustentável. Para se ter uma ideia da dimensão deste empreendimento,

Não basta identificar áreas, é necessário protegê-las e geri-las

Habitats prioritários

A lista de habitats europeus é muito vasta, de modo a cobrir as diversas realidades

nacionais, desde a ponta mais ocidental da Europa, onde nos situamos, até ao extremo oriental, onde se encontra Chipre. Porém, existem alguns que se destacam pela sua importância e pela suararidade, uma vez que estão em perigo de desaparecimento. Por esta razão, são considerados prioritários, exi-gindo medidas especiais de conservação. Em Portugal continental, estão referenciados 17 habitats naturais com este estatuto.No âmbito dos habitats costeiros e da vegetação halóila, destacam-se como prioritários as lagunas costeiras e as estepes salgadas mediterrânicas.As lagunas costeiras constituem superfícies de água livre salgada ou salobra, de volume e salinidade variável, total ou parcialmente separadas do mar por bancos de areia ou de seixos. Encontram-se geralmente inseridas em sistemas estuarinos ou em enseadas e baías pouco profundas, e ocorrem em oito sítios nacionais, como os estuários do Tejo e do Sado, a Barrinha de Esmoriz e as rias de Alvor e Formosa, entre outros. A sua área de ocupação foi bastante reduzida, com o propósito de aumentar a área agrícola e de prevenir o paludismo.As estepes salgadas mediterrânicas são formadas por vegetação mediterrânica, ha-lóita, não nitróila, constituída por plantas anuais suculentas de sapais secos e salinas, como a salicórnia (Salicornia patula), onde se veriica uma forte ascensão de sais por capilaridade e, por vezes, a formação de crustas salinas. Apesar da sua aparente insigniicância, constituem importantes refúgios de biodiversidade, nomeadamente de espécies raras, além de contribuírem para a regulação do ciclo de nutrientes e para a eliminação e a reciclagem de resíduos.Nas dunas marítimas e interiores, destaca-mos as ixas com vegetação herbácea, tam-bém conhecidas como “dunas cinzentas”, as ixas descalciicadas atlânticas, cobertas por tojais, urzais e estevais, e as litorais com matagais de zimbro. Para observar os três tipos de dunas, o melhor será visitar o estuário do Sado, a Costa Sudoeste ou as zonas de Peniche/Santa Cruz e Comporta/Galé. Os dois primeiros tipos ainda podem admirar-se no litoral norte e na região de Mira, Gândara e Gafanhas, por exemplo. Já as dunas com zimbrais podem observar-se também nas regiões de Sintra/Cascais e da Arrábida/Espichel.No que respeita aos habitats de água doce, ressaltam como prioritários os charcos temporários mediterrânicos. Para quem es-tava à espera de ver enaltecidos os grandes espelhos de água nacionais, esta nomeação

Joia raraNo início do século XX, o lobo ocorria em quase todo o território nacional, desde o Minho ao Algarve. Hoje, restam somente cerca de 300 exemplares.

Interessante 43

Depois de anos a designar sítios terrestres, a atenção da Diretiva Habitats voltou-se também para o mar.

pode ser uma autêntica desilusão, mas, na verdade, a natureza tem destas coisas e gosta de nos surpreender. Pergunta o leitor: ainal, para que servem as pequenas massas de água parada temporárias, dependentes da precipitação? Pois bem, por incrível que pareça, albergam uma ve-getação anfíbia e efémera que vai variando com as estações do ano. Acolhem ainda alguns ende-mismos, como o trevo-de-quatro-folhas (Marsi-lea batardae), ou espécies com distribuição res-trita em Portugal, como a Eryngium galiodes e a Crassula vaillantii. Além disso, como diversos estudos têm demonstrado, são habitats muito importantes para algumas espécies de anfíbios e de macroinvertebrados, constituindo valiosos refúgios de biodiversidade. Encontram-se um pouco por todo o território nacional, desde o Douro Internacional ao Barrocal Algarvio, passando pela Malcata, pelas serras de Aire e dos Candeeiros, e pela Costa Sudoeste.Se nos voltarmos para os matos, destacam-se as charnecas húmidas atlânticas temperadas, os matagais arborescentes de lauroides (que incluem, por exemplo, loureiros, azereiros, faias e medronheiros) e os matos baixos litorais com esteva do Algarve (Cistus palhinhae), endémi-cos da Costa Vicentina. As charnecas húmidas atlânticas temperadas são descritas pelos biólogos como urzais-tojais meso-higróilos e higróilos, nos quais vegetam plantas como a Erica ciliaris, que o povo co-nhece como “lameirinha”, “cordão-de-freira”, “carapaça” ou “urze-carapaça”, consoante a região do país, ou a E. tetralix, mais conhecida como “margariça” ou “urze-peluda”. Podem encontrar-se em diversos locais, nomeadamente nas serranias do norte, como a Peneda/Gerês, Montesinho/Nogueira, Alvão/Marão, do cen-tro, como a Freita/Arada e Estrela, ou nas zonas costeiras de Peniche/Santa Cruz, Sado, Com-porta/Galé e Costa Sudoeste, entre outros.Segundo a icha dos matagais de lauroides, este é um habitat particularmente importante, porque constitui o refúgio de um elevado nú-mero de relíquias botânicas paleo-subtropicais, testemunhas de épocas geológicas antigas, durante as quais era dominante, na península Ibérica, o macrobioclima tropical. Existem em

Portugal continental diversos sítios em que este habitat ocorre, como, por exemplo, a Peneda/Gerês, Sintra/Cascais ou as serras da Estrela, da Lousã, de Montejunto e de Monchique.Nas formações herbáceas naturais e seminatu-rais, evidenciam-se os prados rupícolas calcá-rios ou basóilos, as subestepes de gramíneas e plantas anuais e as formações herbáceas em substratos siliciosos.Os prados rupícolas calcários ou basóilos acolhem comunidades com plantas suculentas, algumas raras ou ameaçadas, constituindo habitats pouco frequentes à escala nacional, existindo apenas em seis sítios: serras de Aire, dos Candeeiros e de Montejunto, Sicó/Al-vaiázere, Peniche/Santa Cruz, Arrábida/Espi-chel e Barrocal Algarvio.Já as subestepes de gramíneas e plantas anuais, conhecidas como “arrelvados xeróilos”, são bastante mais comuns, surgindo associadas a 32 localizações. Também constituem importantes refúgios de biodiversidade, acolhendo espécies raras e/ou endémicas. As formações herbáceas em substratos silicio-sos, conhecidas como “cervunais”, são arrelva-dos perenes acidóilos, dominados pelo cervum (Nardus stricta). Ocupam, geralmente, solos profundos oligotróicos, com elevados teores de matéria orgânica, e permanecem enchar-cados durante uma parte signiicativa do ano. Estão habitualmente associados à pastorícia e podem encontrar-se nas zonas montanhosas nortenhas, desde as serras de Arga, Peneda/Gerês e Montesinho/Nogueira até às de Mon-temuro e Estrela.Quando se fala em habitats rochosos e grutas, a prioridade vai para as lajes calcárias. Porquê? Os biólogos explicam que apresentam “um reticulado de fendas profundas no interior das quais se desenvolvem mosaicos de vegeta-ção arbustiva, rupícola, escionitróila anual e herbácea vivaz”. Se não fossem estas fendas, resultantes da meteorização e da erosão dos calcários, diversas espécies botânicas não con-seguiriam sobreviver nas áridas regiões cársicas, como o Maciço Calcário Estremenho, as serras de Montejunto e Arrábida e o cabo Espichel, por exemplo.

Por im, temos as lorestas, que contribuem com três habitats prioritários: os bosquetes mediterrânicos de teixo, os bosques endé-micos de zimbro e os aluviais de amieiros, salgueiros e bidoeiros.Os bosquetes mediterrânicos de teixo (Taxus baccata) são habitats extremamente raros, surgindo unicamente nas serranias da Peneda/Gerês e da Estrela, geralmente nas margens de cursos de água montanhosos lo-calizados em vales encaixados. Já os bosques endémicos de zimbro (Juniperus sp.), que aparecem, amiúde, associados às quercíneas perenifólias, como a azinheira e o sobreiro, são um pouco mais comuns: ocorrem no Douro Internacional, nas margens dos rios Sabor e Maçãs, em Morais e Romeu e no Barrocal Algarvio.Quanto aos bosques ripícolas ou paludosos de amieiros (Alnus glutinosa), salgueiros (Salix atrocinerea), também conhecidos como “borrazeiras-negras”, e bidoeiros (Betula celtiberica), estão referenciados em 34 sítios da RN 2000, espalhados um pouco por todo o país. Ocupam as orlas de cursos de água permanentes, realizando importan-tes funções de regulação, depuração, en-sombramento, habitat, lazer e económicas. As árvores e os arbustos que os constituem são fundamentais para manter a estabilidade das margens, impedindo a sua erosão. Além disso, também dão uma preciosa ajuda na eliminação das substâncias poluentes, con-ferindo aos cursos de água uma capacidade natural de limpeza, a autodepuração. Esta vegetação ribeirinha é também muito im-portante no controlo da quantidade de luz que atinge a superfície da água, regulando simultaneamente a sua temperatura e a oxigenação. Além disso, funciona como habitat, tanto de peixes e invertebrados como da restante vida selvagem associada aos ecossistemas dulçaquícolas.Apesar de os habitats prioritários merece-rem uma atenção especial, devido ao seu estatuto (o nome diz tudo: têm priorida-de!), não nos podemos esquecer de que todos os habitats são importantes. Segundo a obra Habitats Naturais e Seminaturais de Portugal Continental, qualquer habitat desempenha um papel fundamental no ecossistema em que está integrado, a nível dos ciclos geoisicoquímicos da água, do ar e do solo, fundamentais para a manutenção das condições ecológicas adequadas à vida. Daí que a conservação da variedade de habitats, bem como a sua manutenção em boas condições de funcionamento, assuma uma importância vital para a preservação da biodiversidade.

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Em Portugal, estão identificados 155 sítios de interesse especial

olhemos para os dados de dezembro de 2013, relativos aos 28 países da atual União Europeia, disponibilizados no Natura 2000 Barometer, no qual se constata que já foram identificados 22 055 sítios (zonas geograficamente definidas, cuja superfície se encontra claramente deli-mitada), tanto terrestres como marinhos, dos quais 19 002 de importância comunitária (SIC) e 4751 de ZPE. Se pensarmos em área geográ-fica, os SIC ocupam cerca de 684 mil quilóme-tros quadrados e as ZPE aproximadamente 564 mil km2. Dado que, por vezes, existe coin-cidência territorial entre os SIC e as ZPE, esta rede ecológica totaliza, atualmente, um total de cerca de 891 mil km2.

Perante estes dados, facilmente se constata que, volvidos 22 anos, a Rede Natura 2000 conti-nua a assumir-se como o principal instrumento comunitário para assegurar a conservação da natureza e a preservação da biodiversidade. Isto porque inclui uma amostragem representativa de todos os habitats europeus característicos, abarcando, igualmente, os habitats e as espé-cies em declínio na Europa e os representantes da fauna e da flora catalogados como endémi-cos ou raros.

SITUAÇÃO PORTUGUESAA rede Natura 2000 (RN 2000) não é uma

invenção portuguesa, embora a adesão do nosso país a este grande projeto transfron-teiriço fosse uma inevitabilidade. Tal como

acontece nos restantes países europeus, tam-bém em Portugal se verifica que os habitats naturais têm vindo a deteriorar-se e há um número cada vez maior de espécies selvagens gravemente ameaçadas.

A RN 2000 foi transposta para a ordem jurí-dica nacional em 1999, mas a aplicação da Dire-tiva Habitats foi particularmente difícil, uma vez que o conhecimento sobre o património natural português era muito deficitário. Apesar disso, a primeira fase da Lista Nacional de Sítios ficou concluída em 1997 (era composta por 31 sítios considerados imprescindíveis para a conservação dos habitats naturais e de espécies selvagens no continente), seguindo-se uma segunda fase, terminada em 2000 (que incluiu, pela primeira vez, contributos da região bio-geográfica da Macaronésia, cujos trabalhos de implementação foram da responsabilidade das regiões autónomas dos Açores e da Madeira).

Como se trata de um instrumento dinâmico, em permanente atualização, poderá receber novos contributos a qualquer momento, como se verificou recentemente (em 8 de julho de 2014), com a inclusão de mais 331 km2, perten-centes à ria de Aveiro. Esta constitui um impor-tante local para a alimentação e a reprodução

de diversas espécies de aves, sendo também reconhecida como área natural de grande importância para a conservação de comuni-dades piscícolas, nomeadamente de espécies migradoras, e de habitats estuarinos e costeiros. Segundo a Resolução do Conselho de Minis-tros, “a classificação desta área vem assegurar uma melhor representatividade destes valores naturais aos níveis nacional, europeu e biogeo-gráfico, contribuindo, assim, para completar a Rede Natura 2000 em Portugal”.

Na atualidade, encontram-se classificados, no nosso país, 96 SIC e 59 ZPE, dos quais 60 SIC e 40 ZPE no continente e os restantes nas regiões autónomas. Trata-se de uma área total, incluindo territórios terrestres e marinhos, de mais de 11 mil km2 para as ZPE e de quase 17 mil km2 para os SIC.

Assim, embora sejamos um país relativa-mente pequeno, cerca de 22 por cento do território nacional encontra-se classificado no âmbito da RN 2000 e contribuímos com habi-tats e espécies para três regiões biogeográfi-cas: Atlântica, Mediterrânica e Macaronésia. Numa abordagem mais recente, considera-se ainda o “mar Atlântico” e o “mar da Macaro-né sia” como regiões biogeográficas adicionais.

Instrumento dinâmico. A Rede Natura 2000 encontra-se em permanente atualização, podendo receber novos contributos a qualquer momento, como se veriicou em julho de 2014, com a inclusão de mais 331 quilómetros quadrados pertencentes à ria de Aveiro.

Interessante 45

Fauna e lora com prioridade

S egundo dados oficiais, disponibilizados pelo Instituto da Conservação da

Natureza e das Florestas, em Portugal Continental, integrado nas regiões biogeo-gráficas Atlântica e Mediterrânica, e abran-gendo a área marinha adjacente, ocorrem as seguintes espécies animais e vegetais de interesse comunitário, incluídas nos anexos II, IV e V da Diretiva Habitats: 117 de flora, das quais 18 são prioritárias, e 93 de fauna (46 mamíferos, 22 peixes, 14 invertebrados, 11 anfíbios e oito répteis; as aves não estão incluídas, porque se encontram protegidas pela Diretiva Aves), das quais três são prioritárias.Os animais deinidos como prioritários são o lobo-ibérico (Canis lupus signatus), o lince-ibérico (Lynx pardinus) e a mariposa--tigre (Callimorpha quadripunctaria). Convém recordar que, no início do século XX, o lobo ocorria em quase todo o terri-tório nacional, desde o Minho ao Algarve. Hoje, restam somente cerca de 300 exem-plares, com uma distribuição fragmentada, distribuídos por cerca de 65 alcateias. Tal como aconteceu com outros mamíferos, foi vítima de crenças ancestrais e de persegui-ções impiedosas, a que se juntaram danos colaterais resultantes do chamado “desen-volvimento”, como a construção de estradas e vias rápidas que foram contribuindo para a destruição dos habitats e para a fragmen-tação dos territórios lobeiros.Segundo os registos históricos, o lince, conhecido como “lobo-cerval” no norte e “liberne” no sul, também já foi uma espécie comum no nosso país. Porém, tudo indica que terá desaparecido, dado que há vários anos que não é observado em estado selva-gem. O seu declínio populacional icou a dever-se à caça excessiva, sob o argumento de que atacava os rebanhos de cabras e ovelhas, à diminuição da sua presa predileta, o coelho-bravo (devido a uma variante da doença hemorrágica viral, que provocou uma drástica redução da sua população nos últimos anos) e à destruição do habitat. No entanto, nem tudo está perdido: em dezem-bro de 2014, foram libertados, na região de Mértola, dois linces criados em cativeiro, no centro de reprodução de Silves, no Algarve, ao abrigo do programa luso-espanhol de conservação do lince-ibérico. Embora um deles tenha aparecido morto no início de março, talvez um dia este ícone dos mata-gais mediterrânicos e da fauna ibérica, con-siderado o felino mais ameaçado do mundo, possa voltar aos tempos áureos de outrora. Por agora, serão poucos os privilegiados que conseguirão lobrigar na natureza um animal esquivo, de pelagem castanho-amarelada com manchas pretas, cauda curta com a

A mariposa-tigre, com 5 a 6 cm de envergadura, é um invertebrado precioso.

ponta negra, um característico conjunto de pelos compridos nas extremidades das orelhas (denominado “pincéis”) e umas patilhas de longos pelos brancos e pretos de ambos os lados do focinho, assemelhando-se a barbas.No que respeita à mariposa-tigre, cujos adultos têm cinco a seis centímetros de envergadura, podendo observar-se de junho a agosto, sobre-tudo na proximidade de linhas de água com vegetação arbórea e arbustiva, “a informação disponível para Portugal não permite uma avaliação da sua situação”, lê-se na sua icha de caracterização ecológica e de gestão. Isto porque “não existem trabalhos de prospeção sistemática da espécie, havendo dados de ocor-rência somente para os seguintes sítios: Pene-da/Gerês, Arrábida/Espichel, Serra da Estrela e Monchique”, embora se saiba que também ocorre nos sítios de Montesinho/Nogueira e da serra de Montemuro. Se vir uma borboleta de cor negra e vermelha com bandas brancas nas asas anteriores e quatro pontos pretos em cada uma das asas posteriores, ique atento, pois estará perante um invertebrado precioso.Quanto à lora, a situação, em alguns casos, é muito preocupante, pois estamos a falar de plantas endémicas que surgem numa única lo-calização, ou seja, se o seu habitat for destruído, desaparecerão para sempre. Estão neste lote altamente prioritário, por exemplo, a abrótea (Asphodelus bento-rainhae), também chamada

“abrótega”, “gamão” ou “bengala de S. José”, que surge unicamente na serra da Gardu-nha, e a Convolvulus fernandesii, que apenas existe na região Arrábida/Espichel.Com o estatuto de “prioritárias”, existem mais dezasseis espécies, entre as quais se encontram a Armeria rouyana, presente em seis sítios (Cabrela, Comporta/Galé, Costa Sudoeste, Estuário do Sado e Arrábida/Espichel), o tomilho-do-mar (hymus camphoratus), encontrado em cinco locais (Comporta/Galé, Costa Sudoeste, Estuário do Sado, Arrábida/Espichel e Ria de Alvor), a Marsupella profunda, observada em quatro (Peneda /Gerês, São Mamede, Serra da Estrela e Complexo do Açor) e o tomilho--cabeçudo ou erva-ursa (hymus lotocepha-lus), detetado em três (Ria Formosa/Castro Marim, Ribeira de Quarteira e Barrocal Algarvio), entre outras.Convém não esquecer que estes são somente alguns exemplos de mais de duas centenas de animais e vegetais de interesse comunitário. Infelizmente, para cada um de-les, há sempre uma ameaça à espreita e, por isso mesmo, muito trabalho a fazer, tanto ao nível da sensibilização e da informação dos cidadãos como da investigação cientíica e da implementação de medidas que permi-tam assegurar a manutenção, a recuperação e a conservação dos seus habitats.

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Para os ambientalistas, a RN 2000 protege pouco ou quase nada

A região Atlântica estende-se desde o norte do Reino Unido e da Irlanda até às costas setentrionais de Espanha e Portugal, onde ocupa, grosseiramente, a zona noroeste do país. Como o próprio nome indica, cor-responde a uma região sob a influência do oceano Atlântico, que tem um efeito ameni-zante sobre o clima, tornando pouco acen-tuada a amplitude térmica anual. Assim, os invernos são geralmente suaves e os verões frescos, com ventos predominantes de oeste e precipitação moderada ao longo do ano.

A região Mediterrânica abrange sete esta-dos-membros da União Europeia, quer inte-gralmente, como a Grécia, Malta e Chipre, quer parcialmente, como acontece em Itália, França, Espanha e Portugal, onde ocupa a maioria do território continental. É caracterizada por possuir um clima em que os verões são quentes e secos e os invernos húmidos e frios. Embora as chuvas escasseiem no verão, podem ser muito abundantes, torrenciais e repentinas, nas restantes estações.

A região da Macaronésia inclui as ilhas atlân-ticas das Canárias, sob jurisdição espanhola, e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Dada a sua insularidade e a origem vulcânica, cons-tituem paisagens únicas, com relevos monta-nhosos formados por penhascos vertiginosos, onde surgem largas caldeiras e amplos vales verdejantes. Na orla costeira, destacam-se

as majestosas arribas que contrastam com pequenas praias e baías encaixadas.

As condições climatéricas de cada região bio-geográfica exercem uma influência profunda na vegetação e na vida selvagem, que variam muito de região para região. Em Portugal, isso reflete-se numa enorme riqueza ao nível da biodiversidade.

CONHECER PARA PROTEGERNo início da década de 1990, quando se

publicou a Diretiva Habitats e se iniciou a ela-boração da RN 2000, o conhecimento sobre o nosso património natural era escasso e frag-mentado. Se havia zonas relativamente bem estudadas, como as áreas protegidas, outras eram autênticos desertos de informação: pos-sivelmente, nunca um zoólogo ou botânico tinha colocado nelas o pé e realizado qualquer observação ou pesquisa. Embora isso fosse claramente um obstáculo no começo, rapida-mente se transformou numa oportunidade.

De modo a colmatar essas lacunas de conhe-cimento científico, Portugal, com o apoio financeiro do programa LIFE (um programa da União Europeia que apoia a execução da Diretiva Habitats e o desenvolvimento da RN 2000), disseminou, por todo o território nacional, equipas de biólogos, oriundos das mais diversas instituições de investigação e de ensino superior do país, que tinham como obje-

tivo fazer o levantamento dos valores naturais portugueses.

Como facilmente se percebe, antes de sugerir quaisquer habitats e espécies para integrarem a RN 2000 e de apresentar medidas para a sua preservação, era imprescindível conhecer os nossos bens, desde a sua distribuição até ao seu verdadeiro estado de conservação. Assim, a implementação da RN 2000 permitiu desenca-dear um esforço sem precedentes de investi-gação sobre a fauna e a flora nacionais.

Como resultado desse longo trabalho de inventariação e investigação, constatou-se que existem em Portugal inúmeros habitats, dos quais 37 na região Atlântica, 27 na Macaronésia, 81 na Mediterrânica, seis no mar Atlântico e cinco no mar da Macaronésia.

No que respeita às espécies animais e vege-tais de interesse comunitário, constantes da Diretiva Habitats, temos 207 incluídas no anexo II (cuja preservação exige a designação de ZEP), 257 no anexo IV (que exigem uma pro-teção rigorosa) e 43 no anexo V (cuja captura ou colheita na natureza e exploração podem ser objeto de medidas de gestão). Recorde-se que as aves não estão incluídas nesta contabi-lidade, uma vez que se encontram abrangidas pela Diretiva Aves.

Se nos cingirmos apenas a Portugal conti-nental, encontram-se 88 tipos de habitats, ocorrendo 42 na região Atlântica, 87 na região Mediterrânica e 41 em ambas as regiões. Para se ter uma ideia do que estamos a falar, olhemos para o Anexo I da Diretiva Habitats, onde sur-gem os habitats costeiros e a vegetação halófila, as dunas marítimas e interiores, os habitats de

Interessante 47

existido a obrigatória Avaliação de Impacte Ambiental”: “Desde 2006 que as situações ligadas à promoção imobiliária ilegal neste SIC são denunciadas pela Quercus. Para além de processos judiciais ainda em curso, as irregu-laridades cometidas motivaram também uma queixa junto da Comissão Europeia.”

Como é natural, a opinião dos responsáveis pela implementação da rede europeia é dia-metralmente oposta. Apregoam-se mesmo, de acordo com recentes estudos da Comissão Europeia, benefícios estimados em 200 a 300 mil milhões de euros por ano, decorrentes da RN 2000.

Uma coisa é certa: a criação da Rede Natura e a implementação do Programa LIFE são amplamente reconhecidas como duas das mais importantes ferramentas que contribuí-ram para ultrapassar a escassez de informação sobre o património natural português.

Aproveitemos, então, as derradeiras linhas deste artigo para elencar algumas das mais--valias e perspetivas de futuro da rede euro-peia. Para isso, nada melhor do que olharmos para os últimos documentos produzidos, nomeadamente o mais recente relatório, elaborado pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e por representantes das regiões autónomas, entre janeiro e junho de 2013.

De acordo com o documento, relativo ao período compreendido entre 2007 e 2012, os principais progressos e resultados alcançados no processo de aplicação da Diretiva Habitats foram a extensão da aplicação da própria dire-tiva ao meio marinho, a colmatação de insufi-

ciências de designação de SIC no meio terres-tre, o ordenamento e a gestão dos sítios, atra-vés da implementação do Plano Setorial da RN 2000, o estabelecimento de parcerias para o desenvolvimento de projetos de conservação dirigidos a espécies e habitats, e a aquisição de conhecimento, tanto sobre os valores natu-rais marinhos como terrestres e a sua gestão, entre outros.

Para terminar, vejamos as conclusões do workshop Financiamento da Rede Natura 2000 para 2014–2020, realizado em Lisboa, no início de 2014. Nesse documento, percebe-se que as medidas a implementar num futuro próximo serão a colmatação e a revisão do conheci-mento sobre a biodiversidade protegida, a gestão da Rede Natura 2000, a valorização das áreas protegidas e a designação de sítios no meio marinho. Assim, assistir-se-á, por exemplo, à colmatação de lacunas de infor-mação sobre a distribuição e o estado de con-servação de espécies e habitats protegidos (incluindo a operacionalização do Sistema de Informação sobre o Património Natural), ao desenvolvimento ou à revisão dos sistemas de avaliação do estatuto de ameaça das espécies fauno-florísticas e ao estabelecimento de indi-cadores e desenvolvimento de esquemas de monitorização do estado de conservação de habitats e espécies.

Embora haja quem diga que a Rede Natura 2000 não nos serve, a verdade é que, enquanto não houver outra, resta-nos esta para amparar a perda galopante da biodiversidade e a depauperação dos nossos valores naturais.

J.N.

água doce, as charnecas e os matos das zonas temperadas, os matos esclerófilos, as forma-ções herbáceas naturais e seminaturais, as tur-feiras altas, as turfeiras baixas e os pântanos, os habitats rochosos, as grutas e as florestas.

Relativamente à flora, temos em Portugal 117 espécies importantes, das quais 82 de interesse comunitário na região Mediterrânica e 12 na Atlântica. Quanto à fauna, ocorrem 93 espécies interessantes, das quais 47 incluídas na Diretiva Habitats: 28 na zona Atlântica e 46 na Medi-terrânica. No que se refere às aves, ocorrem natural e regularmente no território continental cerca de 233 espécies, protegidas em todo o ter-ritório terrestre e marinho, 74 das quais incluí-das no Anexo I da Diretiva Aves, e que por isso exigem a designação de ZPE como instru-mento para a sua conservação e recuperação.

Para todos estes valores naturais, foram ela-boradas fichas de caracterização ecológica e de gestão, permitindo identificar as ameaças, os objetivos de conservação e as orientações de gestão necessárias para assegurar a sua preservação a médio e longo prazo.

VINTE ANOS DEPOIS…Embora a RN 2000 seja o principal instru-

mento europeu para a conservação da biodiver-sidade, há quem diga, tanto entre portas como além-fronteiras, que protege muito pouco e, às vezes, absolutamente nada. Vejamos, por exemplo, a seguinte notícia, publicada no jornal Público, em 24 de novembro de 2014: “Foram destruídos cerca de 560 hectares de habitats protegidos, em pleno Sítio de Importância Comunitária Comporta-Galé, sem que tenha

Práticas tradicionais. A manutenção da biodiversidade pode, em certos casos, requerer a manutenção e até o encorajamento de atividades humanas, como a pastorícia (página oposta) ou a apicultura.

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Flash

Milagre naturalAs gentes de Fânzeres, em Gondomar, já se habituaram a encontrar estes estranhos minerais espalhados pelas suas hortas e quintais. Como parecem esculpidos pela mão divina, sobretudo os que apresentam formas cruciformes, chegaram a ser usados, outrora, como amuletos sagrados. No entanto, não se trata de milagre, mas de esculturas totalmente naturais e inorgânicas, formadas sem a intervenção do homem ou de qualquer entidade sobrenatural. Os geólogos chamam “estaurolite” (do grego stauros, que signiica cruz) a este mineral, que pode surgir em cristais soltos (à esquerda) ou em maclas (associação de dois cristais da mesma natureza que se entrecruzam) em “cruz latina”, formando um ângulo quase reto, ou em cruz de Sannto André, na diagonal (à direita). Foto: Jorge Nunes.

Interessante 49

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Documento

As maiores experiênciasNeutrinos, ondas gravitacionais, matéria escura,

explosões de raios gama... Os megaprojetos científicos que lhe mostramos nas páginas que se seguem levam a tecnologia ao limite para desvendar os mistérios da natureza.

E stamos à beira da descoberta. Estão em curso as maiores e mais apai-xonantes experiências de física de partículas e cosmologia, e muitos

dos melhores físicos e astrónomos do mundo

estão atentos às suas implicações. O que os cientistas vierem a descobrir na próxima década poderá proporcionar pistas que mudem, em última instância, a nossa perspetiva da estrutura fundamental da matéria e mesmo do

próprio espaço, oferecendo assim uma imagem mais completa da natureza.” Não podíamos deixar de citar o sugestivo início do livro Knocking on Heaven’s Door – How Physics and Scientific Thinking Illuminate the Universe and the Modern World, da física teórica norte-ame-ricana Lisa Randall, pois representa o convite perfeito para percorrer as próximas páginas.

Randall não exagera. Nem sequer é necessário estender o horizonte temporal até ao final da década para sentir um arrepio de emoção perante o que prometem algumas das expe-riências mais avançadas em curso. 2015 é, por exemplo, o ano em que regressa ao trabalho, com forças renovadas, o campeão de todos os laboratórios de física: o Grande Acelerador de Hadrões, do CERN, que poderá virar de pernas para o ar a nossa conceção da natureza.

Talvez voltemos a ouvir falar das enigmáticas ondas gravitacionais, surgidas dos cálculos matemáticos de Albert Einstein há quase cem anos, pois um alucinante projeto norte-ame-ricano com raios laser que percorrem túneis quilométricos, o Advanced LIGO, poderá final-mente demonstrar, para bem da teoria da rela-tividade geral, a sua existência.

ORÇAMENTOS MILIONÁRIOSÀ semelhança do LIGO, todas as experiências

que referiremos a seguir aglutinam orçamentos milionários, os melhores talentos universitários, tecnologias de ponta e anos de dedicação exaustiva para captar ecos quase impercetíveis de partículas, ondas e fenómenos que nasceram num quadro negro. Alguns, como as ondas gra-vitacionais ou as partículas de matéria escura, ainda de lá não saíram. É a aventura épica da ciência básica, da pura sede de conhecimento.

O que acontecerá se não descobrirem o que se propõem? O que acontecerá se, no LHC, não conseguirem ir além do bosão de Higgs e continuarem sem demonstrar hipóteses como a da supersimetria ou a da existência de outras dimensões? Se não for possível desvendar a proveniência dos GRB, esses surtos de raios gama ultraviolentos captados pelos telescópios MAGIC na ilha de La Palma? Bem, resta-lhes o consolo de pertencerem a uma das profissões mais estimulantes do mundo.

Foi o que disse John Maddox (1925–2009), diretor da Nature durante 23 anos: “Um dos prazeres de dirigir uma revista destas consiste em ouvir os investigadores falar com entu-siasmo do seu trabalho, sabendo ao mesmo tempo que nunca mostram o mesmo entu-siasmo pelos trabalhos já publicados.” E escre-veu ainda: “O que resta descobrir não é exata-mente o que se irá descobrir. Podemos indicar os fios soltos que vemos à nossa frente, mas é impossível prever como se conseguirá atá-los.” Seja como for, o suspense está garantido.

P.C. SP

L

Uma longa história. O primeiro ciclotrão, construído na Universidade de Berkeley (Estados Unidos) por Ernest Lawrence e Stanley Livingston, em 1931, tinha apenas 3,3 metros de comprimento. Hoje, estudam-se aceleradores com 100 quilómetros de perímetro.

Interessante 51

NOS LIMITES DA FÍSICA

Pronto para a missão

O telescópio espacial de raios gama Fermi a

ser acoplado ao foguete Delta II que o colocou

em órbita há sete anos. Deverá manter-se em

funcionamento até 2018.

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Documento

Acuidade visual. Instalação de um subdetetor para aumentar a sensibilidade

do ATLAS, uma das experiências que analisam as colisões de partículas no LHC.Melhores

colisõesO grande acelerador de partículas do CERN

volta a funcionar, com a esperança de ultrapassar a proeza de 2012: a descoberta do bosão de Higgs.

Que surpresas nos trará?

N o termo do seu primeiro período de funcionamento, entre 2008 e 2013, o Grande Colisionador de Hadrões (LHC, na sigla em inglês)

deixou um gosto agridoce entre a comunidade científica. Sim, o anel de quase vinte e sete qui-lómetros de circunferência, fruto de um esforço coletivo e internacional sem precedentes, tinha-se portado bem: conseguiu desmascarar o até então hipotético bosão de Higgs, uma partícula superstar que encheu as primeiras

páginas de todos os jornais do mundo. Con-tudo, o LHC, joia da coroa da Organização Europeia para a Investigação Nuclear (CERN), não dera o melhor de si mesmo, estorvado por uma inoportuna fuga de hélio e por diversas avarias mecânicas.

Agora, após dois anos de obras de melhora-mento, espera-se que o maior acelerador de partículas do mundo demonstre o seu verda-deiro potencial: “Está a despertar de um longo sono após uma delicada intervenção cirúrgica”,

como explicou Frédérick Bordry, diretor de Aceleradores e Tecnologia do CERN.

Embora possa parecer a mesma máquina, à primeira vista, deixou de ser um modelo desportivo para se transformar no Fórmula 1 que os seus criadores conceberam. Cerca de dez mil ligações entre os eletroímanes super-condutores foram novamente soldadas e re examinadas, para os protões poderem viajar sem se desviar, dentro do anel enterrado na fronteira franco-suíça, a 0,999999991 vezes a velocidade da luz, no limite do que as leis da física permitem.

O DOBRO DA ENERGIAAlém disso, os aperfeiçoamentos no LHC

deverão duplicar a energia que impulsiona a louca corrida de partículas subatómicas. Espera-se que os feixes alcancem os 7 biliões de eletrões-Volt ou teraeletrões-Volt (TeV), e que as colisões (à razão de 600 milhões por segundo) libertem até 13 ou 14 TeV. Na etapa anterior, conseguiu-se provocar colisões de 8 TeV. Os engenheiros também regularam a visão dos detetores nas quatro grandes experiências que esquadrinham os fumegantes vestígios destes acidentes provocados: ATLAS, CMS, ALICE e LHCb. Os dois primeiros foram os que encontraram, em 2012, o bosão de Higgs.

Interessante 53

NOS LIMITES DA FÍSICA

Projetos que abrem o círculo

A pesar das complexidades técnicas e logísticas, os cientistas já so-

nham com superaceleradores de partí-culas que deixem para trás o LHC. Por exemplo, um porta-voz do Instituto de Física de Altas Energias, com sede em Pequim, anunciou no verão passado a intenção de construir um complexo subterrâneo de 52 quilómetros de cir-cunferência. Previsto para 2028, faria colidir positrões contra eletrões, o que permitiria mergulhar na nebulosa na-tureza do bosão de Higgs. O objetivo é fazer depois colidir, dentro do mesmo túnel, protões a energias muito mais elevadas do que no LHC. À direita, mostramos outros megaprojetos sem orçamento nem data estabelecida. O mais exequível é o Colisionador Linear Internacional, cuja sede poderá ficar no Japão.

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LHCEnergia: 14 TeV Colisionador chinês

de eletrões-positrões.Energia: 240 mil milhões

de eletrões-Volt (240 GeV)Supercolisionador chinês

de protões.Energia: 70 GeV

Colisionador Linear InternacionalEnergia: 1 TeV

Colisionador internacional(situado na China)

de eletrões-positrões.Energia: 240 GeVSupercolisionador

internacional (situadona China) de protões.

Energia: 100 TeV

Supercolisionadornorte-americano

de protões.Energia: 100 TeV

Existente

Em projeto

Circunferência:27 km

Circunferência: 52 km

Circunferência: 80 km

Circunferência: 100 km

O que se espera encontrar agora? A incerteza é ainda maior do que no período 2008–2013. Como explicou eloquentemente Dave Charlton, porta-voz da experiência ATLAS, “vamos entrar em território desconhecido”. Conseguir reco-nhecer o bosão de Higgs entre os encontrões

subatómicos foi muito importante, porque ele explica de onde vem a massa de todas as res-tantes partículas conhecidas, mas ainda falta encontrar explicação para mistérios como a matéria escura oua própria gravidade, força que resiste a encaixar no modelo padrão

ainda em vigor. Em primeiro lugar, quando os protões voltarem a colidir, a partir de maio (se tudo correr conforme está programado: em meados de março, foi preciso parar o pro-cesso devido a um curto-circuito...), muitos irão fazer figas para que surjam novas partícu-las exóticas e pesadas que possam confirmar (ou descartar, de uma vez por todas) a teoria da supersimetria, também conhecida pelo seu simpático acrónimo: SUSY. Grande parte da comunidade de investigadores aposta nesta hipótese, que resolve de forma elegante mui-tas incógnitas e desajustes.

A SUSY afirma que todos os habitantes do zoo subatómico possuem um companheiro supersimétrico: ao eletrão, corresponde um seletrão; aos quarks, os squarks; ao neutrino, o sneutrino, e assim sucessivamente. Dado que a deteção direta é impossível, os cientistas vão procurar perdas de energia após as colisões que denunciem, pela negativa, a presença de uma destas superpartículas. Se não aparecerem, enfrentaremos um novo dilema: é a SUSY que está errada ou a potência do LHC que ainda não é suficiente?

Seja como for, os físicos confiam que con-seguirão justificar os dois milhões de horas de trabalho e os 151 milhões de dólares necessários para voltar a pôr em forma o colosso. “Estou ansioso por ver o que a natureza nos reserva”, afirmou Rolf-Dieter Heuer, diretor-geral do CERN, fazendo eco dos sentimentos dos seus colegas.

SP

L

Nada de acidentes. Engenheiros reveem os eletroímanes que guiam os feixes de protões, com “uma precisão semelhante à de disparar duas agulhas a dez quilómetros de distância para se encontrarem a meio caminho”, como gostam de ilustrar os físicos do CERN.

54 SUPER

Documento

Acuidade visual. Instalação de um subdetetor para aumentar a sensibilidade

do ATLAS, uma das experiências que analisam as colisões de partículas no LHC.

Enterrado a quase quilómetro e meio de profundidade,

o detetor de matéria escura mais sensível do mundo

procura um tipo de partículas que raramente interagem com a matéria ordinária.

O s cientistas que trabalham nas entranhas da mina de ouro Homestake, no estado norte-americano do Dakota do Sul, sabem que o seu esforço pode estar condenado ao fracasso, embora encarem a hipótese com sentido de

humor: decoraram as instalações com várias figurinhas de unicórnio. Será que também as WIMP (sigla de weakly interactive massive par-ticles, partículas maciças de fraca interação) não passarão de uma quimera? Por enquanto, continuam a surgir como principais candi-datas para explicar de que é feita a matéria escura, que forma cerca de 23 por cento do universo. O resto seria constituído por outra entidade misteriosa, também conhecida pelos seus efeitos indire-tos, a energia escura (72%), e pela quase residual matéria visível (5%), composta por estrelas, planetas, montanhas e pessoas.

Atualmente, mais de trinta experiências andam à procura de WIMP por todo o planeta, mas empalidecem em comparação com o LUX (Large Underground Xenon), um dispositivo de altíssima pre-cisão enterrado a 1478 metros de profundidade, ao abrigo da luz, do ruído, dos raios cósmicos e de outro tipo de interferências. A sua técnica de deteção baseia-se no xénon, três vezes mais puro do que a água. A colisão de uma WIMP com um átomo desse elemento produziria uma emissão luminosa equivalente à energia libertada.

Os resultados até agora negativos do detetor norte-americano serviram para refutar as presumíveis descobertas de outros colegas, que encontraram partículas exóticas com massas demasiado peque-nas para poder explicar a matéria escura. A partir de 2016, a mina poderá acolher um novo projeto, o LUX-ZEPLIN, cem vezes mais sensível do que o seu predecessor. Conseguirá este, finalmente, captar uma foto do unicórnio?

Nada de acidentes. com “uma precisão semelhante à de disparar duas agulhas a dez quilómetros de distância para se encontrarem a meio caminho”, como gostam de ilustrar os físicos do CERN.

Aguapurificada

350 kg de xénon líquido

55Interessante 55

NOS LIMITES DA FÍSICA

Nada de acidentes. Engenheiros reveem os eletroímanes que guiam os feixes de protões, com “uma precisão semelhante à de disparar duas agulhas a dez quilómetros de distância para se encontrarem a meio caminho”, como gostam de ilustrar os físicos do CERN.

a

e- e-e-

e-

Xénongasoso

Câmara de vácuo

Partícula

c

1478

m

Xénon líquido

bTanques de titânio

Estrutura internaNa parte superior e inferior do detetor,

duas placas de cobre ligadas por bandas de titânio servem de suporte

aos sensores de luz. Ambos os materiais foram escolhidos

pela baixa radioatividade.

Sob a terra O LUX (Large Underground Xenon) faz parte do centro de investigação SanfordUnderground Research Facility, que ocupa 19 quilómetros de galerias da mina Homestake. A enorme massa de terra entre a superfície e o local da experiência (instalada a 1478 m de profundidade) reduz a incidência dos raios cósmicos por um fator de um milhão.

Como detetar matéria escuraQuando a partícula (a) colide com um átomo de xénon líquido, produz-se um clarão luminoso (b) e uma libertação de eletrões, que são arrastados para cima pelo campo elétrico do dispositivo. Ali, os eletrões reagem à presença de uma camada de gás de xénon e é então que surge o segundo clarão (c).

Algumas partículas atravessam o detetor

Para as partículas de matéria escura, a terra é praticamente transparente

Partículas Mina Homestake

Galerías Detetor LUX

Partículas

Xénon gasoso

Ânodo

Fotão

Fotocátodo

Elétrodo de focagem

Divisores de voltagemBateria

Cadeia de dínodos

Estas cápsulas de vácuo ampliicam o sinal eletromagnético detetado (até um único fotão) centenas de milhares de vezes. Uma sucessão de dínodos, elétrodos com uma carga elétrica cada vez maior, criam uma espécie de efeito de bola de neve que colide contra o ânodo recetor.

AQ

UIL

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Tubos fotomultiplicadores

Câmara de

projeção

4 metros

Fotomultiplicadores

56 SUPER

Documento

Caçador defantasmas

Os gelos ultratransparentes da Antártida permitem capturar

neutrinos que viajaram diretamente de fenómenos extremos do cosmos, que ainda não sabemos explicar.

E nquanto lê este texto, está a ser trespassado por cem biliões de neu-trinos, aproximadamente, o triplo do número total de células no seu corpo.

Estamos a falar das partículas mais abundantes do universo depois dos fotões e, no entanto, não há quem lhes consiga deitar a mão. Eletrica-mente neutras e com uma massa insignificante,

a probabilidade de colidirem com um átomo pertencente a um objeto com o tamanho do corpo do leitor é de uma em cada cem anos.

Por isso, a caça aos neutrinos exige, em princípio, dois requisitos: grandes instalações (com átomos homogéneos e facilmente distin-guíveis) e paciência. É também preciso que a cana só se mexa quando o isco foi mordido por

um peixe grande, pelo que devemos descartar outras presas menos valiosas. Daí que os dete-tores sejam geralmente instalados debaixo de terra ou nas profundezas marinhas, onde é possível amortecer o ruído de interferências como os raios cósmicos.

No caso do observatório IceCube, optou-se pelo gelo, um meio com grandes vantagens, como se verá, embora o frio e o cenário hostil dificultem as operações. O objetivo primordial deste centro científico, no qual colaboram 44 instituições de 12 países, é capturar um tipo muito especial de neutrinos, designados por “astrofísicos” ou “cósmicos”. Ao contrário dos que se produzem no Sol ou na atmosfera terrestre, a sua elevada carga revela que foram criados por eventos inconcebivelmente catas-tróficos. A vantagem destes fantasmas relati-vamente a outras fontes de informação (fun-damentalmente, a luz) é que atravessam incó-lumes o cosmos desde o seu lugar de origem, sem sofrer as distorções dos campos magnéticos ou a absorção da matéria.

37 CASOS IDENTIFICADOSConstruído entre 2004 e 2010, o IceCube já

identificou, no mínimo, 37 neutrinos astrofí-sicos. Os seus 5160 detetores esféricos estão dependentes de um inconfundível anúncio luminoso: a radiação de Cherenkov, como é conhecido o rasto azulado que deixam ao coli-dir contra um átomo do gelo e provocar uma

Casa comum. Umas 300 pessoas, entre físicos e engenheiros, colaboram no projeto. Na foto, as instalações de superfície do IceCube.

57Interessante 57

NOS LIMITES DA FÍSICA

Super-ratoeirasO IceCube é o maior, mas dezenas de

experiências por todo o mundo tam-bém se dedicam a perseguir a fugidia assi-natura dos neutrinos. Destacamos algumas das mais modernas e potentes.NOVA – Terminado em setembro de 2014, integra dois gigantescos detetores: um no FermiLab, perto de Chicago, e outro a 800 quilómetros de distância, no Minnesota. O objetivo é comprovar como as partículas se transformam no trajeto.ANTARES – Trata-se de um conjunto de doze cabos com sensores semelhantes aos do IceCube, submersos a 2500 metros de profundidade, ao largo da costa mediterrâ-nica de Toulon (França). Já se trabalha no seu sucessor, 50 vezes maior: o KM3NeT,SNO+ – Atualmente em construção, apro-veita as instalações do SNOLAB (na foto, uma esfera com 18 metros de diâmetro), alojado numa mina de níquel canadiana, a dois quilómetros de profundidade.T2K – Determina a oscilação dos neutrinos com o detetor japonês Super-Kamiokande.

reação nuclear. Lá em baixo, a mais de um quilómetro de profundidade, o gelo é extre-mamente transparente e, como está muito comprimido, não forma bolhas que possam distorcer as observações.

Os cientistas que trabalham no complexo, um gigantesco cilindro incrustado no deserto branco, têm de se submeter a rigores mais próprios do mundo castrense, como o racio-namento do duche: dois minutos uma vez por semana. Além disso, para aproveitar ao máximo a relativa bondade climática do verão antártico (de novembro a fevereiro), fazem diariamente maratonas de trabalho. Tudo pelo prazer de caçar o que parecia quase impossível de capturar.

A última notícia relacionada com o observa-tório polar, considerada uma das mais impor-tantes de 2014 pela revista Science, é que os especialistas identificaram a região do céu onde alguns neutrinos de alta energia tinham iniciado a sua viagem. Agora, os astrofísicos analisam outros dados para tentar descobrir o que os produziu.

Contudo, estas conquistas continuam a não satisfazer os responsáveis pelo IceCube, que já pensam em torná-lo maior. O projeto, deno-minado IceCube Gen-2, pretende que deixe de ocupar um quilómetro cúbico e passe para dez, o que multiplicaria também por dez a sua sen-sibilidade às partículas que chegam de mun-dos singularmente estranhos e remotos.

Clarões sob o silêncio gelado

Placa principal (iltra os dados)

Escudo de proteçãomagnética

Tubo fotomultiplicador

(sensor)

Cápsula de vidro

resistente à pressão

Geradorelétrico de alta

voltagem

Ligação do módulo ao cabo

Laboratório de superfície0 m

50 m

1450 m

2820 m

2450 m

Altura do Empire State Building: 381 m

Neutri

nos

86 cabos seguram, como contas num colar, os 5160 módulos óticos digitais (DOM, na sigla em inglês), sepultados a uma profundidade de entre 1450 e 2450 metros. Do tamanho de uma bola de futebol, cada um incorpora tubos fotomultiplicadores (sensores hipersensíveis que podem reagir a um simples fotão) e minicomputadores que enviam a informação para a superfície. Em baixo, os componentes do DOM.

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DETEÇÃO

58 SUPER

Documento

Acuidade visual. Instalação de um subdetetor para aumentar a sensibilidade

do ATLAS, uma das experiências que analisam as colisões de partículas no LHC.

Einstein a laser

Um leve pestanejar num feixe de luz quilométrico demonstraria a existência das ondas gravitacionais,

previstas pelo físico alemão há cem anos.

E m 1916, Albert Einstein postulou que se deveria produzir, se a sua teoria da relatividade geral estivesse correta, um fenómeno que designou por

“ondas gravitacionais”. Poderíamos defini-las, para simplificar muito, como minúsculas distor-

ções ou rugas do contínuo espaço-tempo, pro-vocadas pelo movimento de objetos a grande velocidade. O problema é que, por serem geradas pela mais fraca das forças elementares, a gravidade, detetá-las torna-se uma missão quase impossível: teriam aproximadamente

10–18 metros, a milésima parte do diâmetro de um protão.

Há quarenta anos, a descoberta de um pulsar binário (duas estrelas de neutrões que giram uma em redor da outra) permitiu colocar indire-tamente à prova a suposição de Einstein. Se as ondas gravitacionais existiam, o duo cósmico deveria perder uma quantidade de energia equivalente, o que aceleraria a sua dança e tor-naria mais estreitas as suas órbitas. As obser-vações enquadravam-se na hipótese.

NEM VESTÍGIOPorém, os anos passam, e as subtis defor-

mações espaciotemporais permanecem por observar de forma direta. No ano passado, a equipa do telescópio BICEP2, situado na Antár-tida, anunciou aos quatro ventos que tinha captado o instantâneo, e que a onda provinha, além do mais, de instantes depois do Big Bang, quando o universo em formação sofreu um crescimento súbito e exponencial, conhecido por “inflação cósmica”. Pouco depois, os espe-cialistas colocaram em dúvida a descoberta e, de momento, pensa-se que o que o BICEP2 cap-tou, na realidade, foi banal poeira galáctica.

L gigante. Vista aérea das instalações do observatório

LIGO em Hanford (Washington).

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NOS LIMITES DA FÍSICA

Discos voadores

S e tudo correr como se espera, a missão LISA

Pathfinder será lançada no espaço, no próximo mês de julho, a partir da Guiana Francesa. Trata-se de uma ocasião muito aguardada, pois irá ser testado, pela primeira vez, um detetor de ondas gravitacionais fora da Terra, num projeto conjunto da NASA e da Agência Espacial Europeia (ESA). Dada a complexi-dade da tecnologia, prevê--se que o LISA (Laser Inter-ferometer Space Antenna) só esteja plenamente ope-racional por volta de 2034. Tal como o observatório terrestre LIGO e outros do mesmo género (VIRGO, em Itália, ou KAGRA, no Japão), a experiência tentar detetar as distorções espaciotemporais postuladas por Einstein em minúsculas interferências que alterem a trajetória de um raio laser. A diferença é que

A esperança reside, agora, nos interferóme-tros, sistemas tecnológicos que utilizam dois raios de luz para detetar as distorções procura-das. Se algum possui mais possiblidades de ser bem-sucedido, é sem dúvida o LIGO (sigla de Laser Interferometer Gravitational-Wave Obser-vatory), um projeto de investigação norte-ame-ricano formado por dois complexos gémeos: um em Hanford (estado de Washington), e o outro em Livingston (Luisiana).

A experiência é, simultaneamente, de uma simplicidade e de uma sofisticação extraordiná-rias. Um feixe de laser é dividido em dois ramos, os quais percorrem túneis idênticos de quatro quilómetros de comprimento, fazem ricochete num espelho no final do trajeto, regressam ao ponto de partida e se anulam... exceto se a monótona viagem for alterada por uma onda gravitacional. Nessa altura, um dos raios ganharia um ligeiríssimo avanço e, bingo!, os sensores do LIGO poderiam captar o sinal luminoso.

A razão para os dois interferómetros estarem a 3000 quilómetros de distância é evitar possí-veis resultados falsos: se um registasse o pre-sumível desfasamento, o seu colega deveria

obter o mesmo resultado aproximadamente um centésimo de segundo depois, dado que as ondas gravitacionais se deslocam, em teoria, à velocidade da luz. Além disso, a comparação dos dados ajudaria a localizar o ponto do fir-mamento em que se produziu.

DEZ MIL VEZES MAIS SENSÍVELNa primeira fase da sua missão, entre 2002 e

2010, o duplo observatório não captou qualquer perturbação, mas, agora, há razões de peso para estar otimista. A partir do verão ou, no máximo, do início do outono, principiará o seu percurso o projeto Advanced LIGO, que repre-senta um salto qualitativo em relação ao seu predecessor. Embora, exteriormente, os inter-ferómetros sejam os mesmos, a maquinaria interna foi renovada de forma tão substancial que poderá reunir, em poucos horas, tantos dados como o velho LIGO obtinha ao longo de um ano.

Dez vezes mais sensível, o seu raio de obser-vação irá abarcar um volume de espaço mil vezes superior: “Poderemos ver muito para além do Grupo Local [conjunto de galáxias que incluem a Via Láctea], até cerca de mil milhões

de anos-luz de distância”, explica Mário Claudio Díaz, diretor do Centro de Astronomia de Ondas Gravitacionais, da NASA.

Entre os avanços, foi acrescentado um espe-lho que permitirá captar frequências mais baixas e câmaras de vácuo para isolar melhor os com-ponentes do observatório das correntes de ar, pois a mínima alteração de temperatura pro-duziria um efeito de refração e faria os raios colidirem contra as paredes dos túneis. Trata-se da estrutura mais extensa do mundo sujeita a um vácuo extremo: ultrapassa oito vezes o que reina no espaço.

Com estas inovações, os especialistas que colaboram no Advanced LIGO pretendem encontrar um tipo muito específico de ondas gravitacionais, denominadas “sistemas biná-rios”. São supostamente emitidas pelos cata-clismos que se desencadeiam quando dois pul-sares, dois buracos negros ou um par misto, formado por um pulsar e um buraco negro, se aproximam ao ponto de se fundirem um no outro. Os físicos pensam que produzirá um som semelhante ao do trinado de um pássaro ou um assobio cada vez mais alto. Música celestial para os seus ouvidos.

As três naves da futura missão LISA têm o aspeto

de discos de hóquei no gelo.

NA

SA

os feixes de luz concentrada vão ligar três naves idênticas que formam um triângulo equilátero perfeito, com cinco milhões de quilómetros de

lado! Qualquer perturbação suspeita nessa distância astronómica será captada, em teo-ria, pelos instrumentos do LISA.

60 SUPER

Documento

Violênciacósmica

Dois olhos de alta tecnologia esquadrinham os céus na ilha de La Palma (Canárias)

para encontrar o rasto dos raios gama, emitidos por supernovas e outros cataclismos do universo.

C omo relâmpagos numa tempestade.” Em novembro passado, os astrofí-sicos recorreram à sua veia poética para descrever as labaredas de raios

gama que tinham sido detetadas pelos teles-cópios gémeos MAGIC (Major Atmospheric Gamma-Ray Imaging Cherenkov) na galáxia IC310, a 260 milhões de anos-luz. Provinham de um buraco negro, embora isso não os tenha surpreendido; o que causou admiração foi a

curta duração do espetáculo. Talvez se tenham produzido, conjeturam, nos polos magnéticos do buraco negro, num processo semelhante aos que desencadeiam as tempestades elétricas.

É este tipo de notícias que dá sentido ao MAGIC e aos restantes telescópios do mesmo género distribuídos pelo mundo. Ao contrário dos instrumentos óticos, apenas farejam peças de caça grossa: explosões de supernovas, estrelas de neutrões que rodam a grande velo-

cidade (pulsares) ou buracos negros super-maciços. Tais fenómenos extremos e ener-géticos emitem raios gama, uma radiação eletromagnética que pode ser captada por alguns telescópios espaciais em órbita e observatórios terrestres especificamente concebidos para interpretar as pistas indi-retas que eles deixam no topo da atmosfera.

OS MAIORES ESPELHOSSituados a 2200 metros de altitude, no

Observatório de Roque de los Muchachos, na ilha de La Palma (Canárias), os gémeos MAGIC possuem os maiores espelhos dessa família de telescópios: 17 metros de diâme-tro. Em 2012, sofreram uma paragem téc-nica para se poder aperfeiçoar, entre outras coisas, o sistema eletrónico de leitura ultrarrápida.

A velocidade de observação é fundamen-tal, pois os raios gama só se deixam ver em terra quando interagem com partículas da atmosfera e produzem débeis clarões de luz (cerca de cem fotões) durante alguns bilio-nésimos de segundo. Trata-se da radiação ou luz de Cherenkov, a pista que também permite desmascarar os neutrinos.

No futuro, Roque de los Muchachos poderá alojar o estado evolutivo superior dos observatórios de raios gama: o Che-renkov Telescope Array (CTA), projeto inter-nacional que integrará cerca de cinquenta telescópios com 6 a 25 metros de diâmetro.

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61Interessante

SUPER62

Portugal precisa de uma estratégia capaz de antecipar as competências que, de futuro, serão mais procuradas, de modo a que a formação

dos alunos se ajuste às necessidades do mercado de trabalho. Faltam profissionais na área das tecnologias da informação e da comunicação, com as engenharias e a medicina a garantirem,

também, maiores hipóteses de emprego. Universidades mais preocupadas em formar do

que ensinar arriscam-se a gerar puros tecnocratas.

Acabou o secundário. E agora?

Escolher um CURSO

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O dilema repete-se, todos os anos, entre os estudantes que estão a acabar o secundário e aspiram a continuar a sua formação no

ensino superior. Deverão escolher o curso de que gostam, e para o qual sentem ter maior vocação, ou eleger o que garante um emprego seguro, capaz de pagar casa, carro e as contas que surgem todos os meses? Um dos piores erros que se podem cometer, contudo, é esco-lher um curso para o qual se está mal prepa-rado: escolher uma licenciatura ou um mes-trado integrado em ciências exatas, quando se tem más notas a matemática, não é boa ideia.

No entanto, nada impede que se consiga desenvolver determinados talentos e capacida-des que, até então, estavam escondidos. Caso a escolha recaia numa área que tem uma alta taxa de empregabilidade, porque essa parece ser a atitude mais racional, então é preciso estar preparado para a hipótese de se acabar a fazer aquilo de que não se gosta. Aqui, como em tudo na vida, vai depender do que cada um considera ser o mais importante para si. Toda-via, conhecer o caminho que se vai trilhar é

sempre fundamental, para evitar cair em ilu-sões e desilusões.

Para os mais pragmáticos, talvez interesse saber que, em Portugal, os cursos superiores a que estão associados maior empregabilidade são os que dizem respeito às tecnologias da informação, às engenharias e à área da saúde. Quem o diz é a Agência de Avaliação e Acre-ditação do Ensino Superior (A3ES), com base em dados recolhidos junto do Instituto Nacio-nal de Estatística e do Ministério da Educação, entre outros organismos. No sentido oposto, surgem os de economia, design e psicologia, com fraca empregabilidade. A universidade com maiores dificuldades em conseguir que os seus estudantes arranjem trabalho é a de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Se atentarmos, por sua vez, somente nos números do Instituto do Emprego e da For-mação Profissional (IEFP), divulgados no verão passado, verifica-se que não existem, pratica-mente, casos de desemprego entre os que se formaram em medicina, seguindo-se os cursos de engenharia na área das novas tecnologias, com apenas 0,3 por cento dos licenciados a

não arranjarem trabalho. Já as maiores taxas de desemprego, segundo o IEFP, verificam-se junto de quem obteve um canudo em humani-dades e ciências sociais. Dos 1040 cursos exis-tentes, 172 (ou seja, 17% do total) tinham uma taxa de desemprego superior à média nacional (na altura, cifrava-se em 15,1%): incluem-se, neste último número, as licenciaturas e os mestrados integrados.

Apesar de tudo, possuir um curso superior continua a ser uma mais-valia para quem quer marcar pontos no mercado de trabalho, pois a taxa de desemprego é menor neste grupo, em comparação com quem tem menores habilita-ções. Mesmo assim, as estatísticas metem dó: no início de 2014, havia 146 mil desempregados com uma licenciatura, com 81 mil a não encon-trarem emprego há mais de um ano.

O desejo de muitos pais é que os filhos entrem em medicina, mas há que ter em conta

Dossier

Emprego garantido. Medicina continua a ser a área com as notas de entrada mais altas. Os vinte cursos com a média mais alta incluem uma dúzia de medicina. É também um dos setores proissionais que oferecem maior empregabilidade.

Interessante 63

ENSINO SUPERIOR

que é o curso com as notas de entrada mais altas. Em 2014, na primeira fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior, os 20 cursos com a média mais elevada incluíam 12 de medicina. No topo está a Universidade do Porto, com a Faculdade de Medicina (a nota de entrada foi de 182,7), e, logo depois, o Ins-tituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (181). Engenharia Aeroespacial, no Instituto Superior Técnico, de Lisboa (com 180), e Arqui-tetura, também no Porto (179,5), são os que se seguem.

AJUSTAR COMPETÊNCIASFalta a Portugal uma estratégia capaz de

encaixar as competências dos alunos nas necessidades do mercado de trabalho. Foi esta a conclusão a que chegou, no ano passado, a Comissão Europeia, num documento de tra-balho feito no âmbito do programa Garantia

Jovem, destinado a incentivar o emprego e a formação dos mais novos. De acordo com a CE, o número de jovens portugueses que terminam o ensino superior ainda está abaixo da média europeia, pese embora sejam cada vez mais. Acontece que este crescimento não se refletiu, de forma proporcional, no emprego jovem. Para se ter uma ideia do drama: em dezembro de 2014, 34% dos jovens entre os 15 e os 24 anos, ou seja, 126 mil, estavam inscritos no Cen-tro de Emprego. Já a taxa de adultos jovens sem emprego (entre os 25 e os 34 anos) está em 14,5%: quase 160 mil pessoas.

A estratégia a seguir, portanto, passa por antecipar as competências que, de futuro, serão mais procuradas. Um dos casos paradig-máticos é a área das tecnologias da informação e da comunicação (TIC), com a CE a estimar que, se nada for feito para contrariar a atual situação, em 2020 haverá 900 mil profissionais

em falta na União Europeia: ou seja, está-se a formar menos pessoas nesta área do que o necessário, o que poderá colocar em risco o crescimento da Europa no setor digital.

Em Portugal, o número de trabalhadores das TIC chegava, em 2012, às 97 mil pessoas, com o número a cair, atualmente, para os 95 mil, sendo que necessitamos de mais 9000. Um caso bicudo, pois as estimativas mais conservadoras indicam que serão precisos, até 2020, mais 15 mil programadores, embora o ideal fosse ter mais 75 mil do que os que temos agora, de forma a chegar à média europeia: 3,7% da população ativa da UE trabalha na área, contra 2,2% em Portugal, cabendo à Suécia e à Finlândia lide-rar o pelotão, com 6,6%.

No entanto, só ficamos a perceber melhor a dimensão do problema quando olhamos para o número de candidatos ao ensino superior que, em 2014, colocaram como primeira opção

SUPER64

Os especialistas aconselhama falar com

antigos alunos

Atinem com as estatísticas! De acordo com o IEFP, engenharia civil tornou-se um dos cursos que menos garantias de emprego oferecem. A Ordem dos Engenheiros discorda, airmando que há muitos jovens engenheiros a trabalhar no estrangeiro.

uma licenciatura na área da informática. Do total de 42 408 jovens que entraram na primeira fase, só 201 (0,5%) escolheram um curso nessa área. Um dos menos procurados, portanto.

ESCOLHO ESTE CURSO?Saltando da base para o topo da tabela,

quais são, afinal, as áreas mais escolhidas como opção número um? Em primeiro lugar, surge o setor da saúde (com 17,7%, ou seja, cerca de 7500 estudantes), secundado por ciências empresariais (15,8%), engenharia (13%) ciências sociais (11,1%) e artes (8,1%).

É precisamente neste lote que se encontram alguns dos cursos que, nos últimos tempos, menos garantias de emprego oferecem, incluindo-se entre os mais penalizados, de acordo com as estatísticas do IEFP, sociologia, letras, história, filosofia, serviços sociais, ani-mação sociocultural e engenharia civil.

No que se refere a este último curso, a atual situação seria impensável há alguns anos, antes da crise, tendo sido fortemente afetado pela brusca queda que se verificou nos setores imobiliário e da construção civil. A Ordem dos Engenheiros contesta este cenário, criticando o facto de se associar o curso de engenharia civil ao desemprego. Segundo a OE, há muitos jovens engenheiros a desempenhar funções no estrangeiro, devido à internacionalização de muitas das empresas portuguesas do setor da construção, pelo que uma queda no número de engenheiros formados colocará em causa esta aposta no exterior.

Perante informações contraditórias, o que fazer? Neste, como noutros casos, os especia-listas aconselham a que os alunos se informem melhor sobre os cursos que vão escolher e, acima de tudo, falem com antigos alunos, de modo a conhecerem o terreno que vão pisar. Estes poderão dar pistas valiosas sobre quais são, de facto, as melhores universidades e os seus pontos fortes. Em seguida, há que tentar perceber, junto dos profissionais da área, até que ponto é fácil ou difícil entrar no mercado de trabalho, as condições que se costumam oferecer, os salários que se auferem e, além disso, qual o tipo de tarefas e competências que se costumam exigir nessas profissões: o que se aprende nas universidades nem sempre bate certo com a realidade.

J.P.L.

Criar tecnocratas ou formar cidadãos?

E m 2013, tornou-se viral um ranking criado com base em dados do Fórum

Estudante, no qual se destacavam os dez cursos do ensino superior a evitar, por te-rem pouca saída profissional. A compilação teve em conta a informação que as institui-ções do ensino superior disponibilizavam naquela plataforma digital. Nos primeiros cinco lugares, surgiam filosofia, radiologia, relações internacionais, ciências da comu-nicação e história. Um sinal dos tempos.Contra o que considera ser a tomada de assalto das universidades por parte do pragmatismo e das lógicas da eiciência, o crítico Vítor Belanciano escreveu o se-guinte, numa coluna de opinião do jornal Público: “Fala-se de empreendedorismo. De lexibilidade. De iniciativa. A ideia que cada um pode criar a sua própria saída proissional. E ao mesmo tempo publicita--se um padrão simpliicador do que cursar, não deixando essa descoberta aos alunos e promovendo a ideia que estudar é o mesmo que formação proissional. Como se saber pensar e ter uma visão do mundo fosse dispensável.”O sociólogo Lourenço Carvalho, da Uni-versidade Católica, procurou descobrir, precisamente, se o nosso sistema educativo está a formar cidadãos, dotando-os de competências sociais e pessoais, capazes de perceber o mundo que os rodeia, ou

se se cinge, somente, a fabricar técnicos e especialistas, desprovidos de dimensão humana. As suas conclusões, publicadas em 2013 no estudo Literacia Social – Os Valores Como Fundamento de Competência, dão um tom sombrio ao que se tem feito nas últimas três décadas, em matéria de ensino. O sociólogo airma que quanto maior é o nível de instrução, junto dos portugueses, menor é a importância que se dá à justiça, à solidariedade, à honra e, em última análise, aos próprios valores democráticos.“Os modelos e práticas pedagógicas do-minantes, forçados por fatores e transfor-mações diversas ao longo dos últimos 35 anos em Portugal, seguiram um percurso de elevada pressão sobre currículos eminente-mente técnicos, segmentados e conducen-tes ao domínio de dimensões cognitivas de competência, em detrimento da promoção transversal de valores indutores de compe-tências – chave para o sucesso e realização pessoal e social”, refere Lourenço Carvalho. É no ensino superior, diz, que se encontram os currículos mais técnicos e especíicos, mas, em simultâneo, com menor ênfase na dimensão humana. Em suma: as priorida-des que ensinamos aos nossos jovens e aos futuros líderes do país, além de estarem totalmente erradas, são contraproducentes para a vida em democracia e o bem-estar social e pessoal.

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O Processo de Bolonha quis transformar o ensino superior europeu, prometendo maior mobilidade entre os alunos de diferentes países, a par de uma

entrada mais rápida no mercado de trabalho. No entanto, ainda não se fez uma avaliação sobre o que mudou em termos práticos, diz

Amélia Veiga. Para esta especialista em políticas educacionais, os alunos, principais avaliadores

da reforma, estão pouco satisfeitos com a reação do mercado de trabalho às novas licenciaturas.

Quinze anos após Bolonha

O que MUDOU?

A briram-se as portas para uma maior cooperação entre as universidades europeias, facilitando-se as idas e vindas de professores e alunos

dentro do continente. Não obstante, nenhum governo quis abrir os cordões à bolsa e finan-ciar a necessária requalificação do pessoal docente, ou sequer diminuir o número de alu-nos por turma. Eis alguns dos aspetos positi-vos e negativos do Processo de Bolonha, na opinião de Amélia Veiga. A sua especialidade são as reformas, ao abrigo do guarda-chuva de Bolonha, feitas ao ensino superior europeu, trabalhando no Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES) e na Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES).

Basicamente, explica, a estratégia de Bolonha foi aplicada de três formas, nos vários países: “Houve quem se tivesse limitado a transformar as cadeiras anuais em semestrais, mas desco-nhecemos os seus efeitos a nível pedagógico. Ou seja, não se sabe que ganhos isso trouxe.” Ao mesmo tempo, também houve países que só alteraram os planos de estudo e o nome dos antigos ciclos de ensino, pelo que, na prática, ficou tudo na mesma. Por fim, “há os que acham que foi tudo feito e aplicado”. O problema? “Nenhum país chegou a realizar uma avalia-ção, para saber quais foram os benefícios, em termos pedagógicos e curriculares.” O melhor é continuar a conversa, para se ter uma ideia do que se passa.

Que balanço faz do Processo de Bolonha? Atingiu os propósitos que se propunha?

Dossier

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ENSINO SUPERIOR

Antes de mais, há que ter em conta a sua dimensão política. O propósito do Processo de Bolonha, enquanto projeto político, passou pela criação de um espaço europeu de ensino superior, de forma a promover a mobilidade, a empregabilidade e a atratividade dos dife-rentes sistemas de ensino. O que se pretendia era, sobretudo, tornar os graus de ensino dos vários sistemas comparáveis entre si. Con-tudo, falta fazer uma avaliação à persecução destes objetivos. Ou seja: na prática, em que se traduziu essa aparente convergência para as pessoas? Elas sentem, de facto, que estão num espaço europeu de ensino superior, ou ainda falam de um sistema de ensino portu-guês, de um sistema alemão ou de um sistema austríaco, por exemplo? Na minha opinião, e tendo em conta este objetivo, penso que esta-mos muito longe de o atingir, mas ainda não foi feita uma avaliação que nos permita ver o que aconteceu a nível prático.

Qual o motivo para essa avaliação estar por realizar?

Politicamente, ela é muito difícil de fazer, pois não há interesse em apontar obstáculos. Os países querem mostrar que se portaram bem e que os objetivos foram conseguidos. As ins-tituições de ensino, por sua vez, aplicaram Bolonha mais em forma (mudando apenas os nomes dos ciclos de ensino e a forma como

O objetivo não é convergir Universidades como a de Oxford, no Reino Unido (na foto), não aderiram, por exemplo, ao sistema de acumulação e de transferência de créditos curriculares, destinado a facilitar o reconhecimento das qualiicações.

O Processo de Bolonha

A ssinada em 1999 por 30 países euro-peus (atualmente, são 47 as nações

signatárias), a Declaração de Bolonha foi complementada, nos quatro anos seguintes, com a assinatura de dois documentos que levaram à criação do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES). Através dele, pre-tende-se que os diferentes sistemas de en-sino superior de cada país adotem critérios e princípios semelhantes. Foi assim que se conseguiu dinamizar a mobilidade de alu-nos, professores e investigadores dentro do EEES, pois ficou mais fácil, para as institui-ções de ensino, reconhecer as qualificações de quem venha de outro estado. A tudo isto,

deu-se o nome de “Processo de Bolonha”.Em Portugal, a reforma começou a ser aplicada há pouco mais de dez anos, gra-dualmente. O que mudou a nível formal? Essencialmente, o ensino superior passou a estar dividido em três ciclos de estudos (licenciatura, mestrado e doutoramento) cada um com uma duração menor do que antes. Por exemplo, as antigas licenciaturas de quatro ou cinco anos passaram para três. Entretanto, os mestrados passaram a ter uma vertente mais proissionalizante. Com isto, encurtou-se o tempo de formação e, consequentemente, em teoria, a entrada no mercado de trabalho.

Neste momento, são 47 os países signatários do Processo de Bolonha, formando o Espaço Europeu de Ensino Superior (a verde). A inclusão da Bielorrússia (no centro) foi vetada em 2012, por se duvidar de que consiga respeitar a liberdade académica.

estavam estruturados) do que em substância. Portanto, quando se quer fazer um balanço, o que surge é um ponto de interrogação. A arti-culação da dimensão pedagógica e curricular com a dimensão política ainda não foi feita, de modo a perceber, efetivamente, que efeitos ocorreram.

As expectativas em relação à reforma que se quis fazer eram demasiado altas?

Existiu algum otimismo a mais. A intenção era demorar dez anos a construir o espaço europeu de ensino superior, sendo que, politicamente, foi importante estabelecer essa meta, mas isto é incompatível com o tempo das instituições, onde as coisas acabam por ser mais lentas:

demoram a ser aprendidas e enraizadas. Uma reforma desta natureza não se leva a cabo em dez anos, demora muito mais.

LICENCIATURAS PARA QUÊ?Uma das queixas que se ouvem, por parte

dos alunos, é que a licenciatura, por si, acaba por não ser valorizada no mercado de trabalho, pelo que é necessário obter, também, um mes-trado. Ou seja, os estudantes acabam por fazer os mesmos cinco anos que já faziam nas licencia-turas pré-Bolonha. O que falhou aqui?

Os estudantes são, de uma forma mais con-sistente, os que têm chamado a atenção para vários dos problemas que existem em torno do

avaxhm.com

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Pretende-se que hajapartilha

de valores e estratégias

Só licenciado? O mercado de trabalho ainda olha de soslaio para as licenciaturas obtidas em três anos, pelo que as oportunidades poderão não ser famosas. Devido à desconiança, os alunos e as universidades têm apostado nos mestrados-integrados.

processo de Bolonha. Um dos seus objetivos era colocar rapidamente no mercado de tra-balho os licenciados, mas acabou por suceder algo de que já se estava à espera e que deveria ter sido acautelado antes, pois não é em dez anos que tudo muda. A consolidação de uma reforma e a perceção que o mercado de traba-lho vai ter, em relação às novas formações, têm o seu tempo de adaptação. Houve, portanto, uma reação expectável por parte do mundo do trabalho, dado que não se absorvem os novos graduados sem conhecer bem o que estes sabem fazer e quais as suas qualificações, dentro dos novos moldes.

Como contrarreação à desconfiança exis-tente, boa parte dos alunos teve de matricular--se em mestrados-integrados, que incluem licen-ciatura e mestrado...

A promoção da empregabilidade, como é feita pelo Processo de Bolonha, e dentro de um con-texto mais alargado, coloca um grande desafio que, em Portugal, é bastante visível. Até que ponto o número de anos necessário para um jovem se preparar e entrar no mercado de tra-balho se coaduna com o ensino superior e o eli-tismo dessa formação? As universidades fize-ram os possíveis para reformar os seus planos de estudo, de modo a tornar estes jovens empregáveis ao fim de três anos, mas o mercado de trabalho não é algo abstrato.

As ordens profissionais também se queixam do pouco tempo das licenciaturas…

Em Portugal, isso aconteceu de uma forma muito evidente, quando se começou a discutir a formação em áreas como a engenharia ou a psicologia. As ordens e as organizações profis-sionais que representam os profissionais des-tas áreas viram com maus olhos uma formação de três anos, ser-se engenheiro ou psicólogo ao fim desse tempo. Toda esta situação acabou por nos atirar para o modelo do mestrado--integrado, sendo precisamente isso o que se verifica em algumas áreas.

Não voltámos ao mesmo de antes? Ou seja, antes de Bolonha, eram necessários cinco anos para concluir algumas licenciaturas. Hoje, um mestrado-integrado leva os mesmos cinco anos.

Foi exatamente isso o que aconteceu. Voltou a ser o mesmo de antes. Temos mestrados-inte-grados para áreas nas quais, a nível europeu,

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o acesso está regulado, como acontece com os médicos e os arquitetos, sendo necessário um número definido de anos de formação para se poder exercer a profissão. Isto não acontece com todas as áreas, como em engenharia e psi-cologia, o que criou uma grande pressão, em Portugal e noutros países, para que existisse uma oferta de mestrados-integrados, para garantir, junto do mercado de trabalho, e não só, que a formação fosse vista como sólida.

UNIVERSIDADES TÊM DE COOPERARAté à data, são 47 os países signatários da

Declaração de Bolonha. O reconhecimento das qualificações entre os diferentes países ficou facilitado?

Não se sabe. É algo que não foi estudado. No entanto, se para o reconhecimento das quali-ficações for usada, como base, a confiança entre as instituições, então essa questão torna-se secundária. Se a instituição A conhe-cer a instituição B, e souber o que lá acontece, não é por existir mais um documento – a certi-ficar que a formação aí dada é de qualidade e tem validade – que vai haver maior facilidade no reconhecimento das qualificações entre as instituições. Acima de tudo, penso que é importante saber como é que Bolonha pode promover uma relação de confiança entre as entidades, confiança essa que considero essencial para que exista o reconhecimento, entre todos, das qualificações.

A cooperação entre universidades, nomea-damente a nível europeu (criando uma rede de confiança), será então crucial, de futuro?

É pela via da cooperação que se poderá fomentar um conhecimento mútuo por parte das instituições, gerando, ao mesmo tempo,

uma confiança entre estas, os professores e os alunos. É a única maneira, já que não existe um atalho para facilitar estes mecanismos.

Olhando para o que ocorreu nos últimos anos, devido a Bolonha, o que prefere destacar como de mais positivo?

Um dos aspetos verdadeiramente positivos é o facto de ter colocado na agenda política as políticas de educação. Elas são fundamentais para o nosso desenvolvimento futuro. Neste sentido, a questão em torno da cooperação é, para mim, essencial. O que poderá compro-meter a existência de um espaço europeu de ensino superior não são as diferenças entre os sistemas de cada país, ou os diferentes tipos de investigação ou áreas científicas que pre-dominam em cada um, até porque é bom que exista esta diferença: os ministros dos países signatários, inclusivamente, evitam a palavra “convergência”. O que se pretende é que haja uma partilha de valores e estratégias, capazes de posicionar os sistemas nacionais dentro da área europeia, de forma a promover, por exemplo, a mobilidade dos estudantes.

E o aspeto mais negativo?Para se fazer reformas como as que estão

contempladas no espírito de Bolonha, exigir--se-ia uma alocação de meios, financeiros e não só. Uma reforma curricular e pedagógica, den-tro das instituições, implica ter financiamento para atividades e projetos específicos. Contudo, isso não aconteceu. Não houve verbas para, por exemplo, requalificar o pessoal docente ou diminuir o número de alunos por turma, ou para que existisse uma oferta contínua de aulas numa língua que não seja a do país em que está a instituição.

J.P.L.

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Portugal tem muitas jovens matriculadas em cursos de ciência, assim como investigadoras,

quase tantas quanto os homens. Todavia, apesar de as antigas clivagens estarem a esbater-se, elas continuam afastadas dos lugares de decisão. Além do mais, urge criar alternativas de carreira,

que tenham em conta a maternidade: ter filhos não pode ser um empecilho para

quem pretende uma carreira científica de sucesso.

Cada vez mais, mas ainda poucas

Mulheres na CIÊNCIA

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A s estatísticas deixam antever que algo não está bem na sociedade portuguesa, nomeadamente no que respeita à igualdade entre homens

e mulheres, pese embora o muito que já se conseguiu desde o 25 de Abril. Antes sequer de esmiuçarmos o que se passa na área da ciência, olhemos para o topo. Na Assembleia da República, somente 31 por cento dos deputados são do sexo feminino, enquanto no elenco governativo, por sua vez, apenas encontramos três mulheres com uma pasta ministerial. Muito pouco. No setor empresarial, o fenómeno parece ainda mais preocupante: das 18 empresas presentes no PSI20, ou seja, as mais cotadas na bolsa de valores de Lisboa, não existe um único nome feminino a liderá-las. Quanto se analisam os conselhos de administra-ção de todas as empresas cotadas, ficamo-nos por 3,7% do total.

Números que causam perplexidade, especial-mente porque as mulheres representam mais de metade da população portuguesa e, no ensino superior, ultrapassam os homens: 53,5% dos matriculados em 2014. No ano passado, a Comissão Europeia patrocinou um relatório em que é feito o ponto da situação, na União

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Europeia: “As mulheres são mais suscetíveis de possuir um diploma de ensino superior (mais de 60% dos novos licenciados), mas estão muito subrepresentadas em estudos e carreiras nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática, investigação e em cargos supe-riores de todos os níveis de ensino, incluindo o superior.”

Em Portugal, existiam, em 2014, cerca de 194 mil mulheres matriculadas no ensino superior público e privado, contra 168 mil homens. Em que áreas de formação estão elas mais repre-sentadas? Os cursos em educação são domi-nados pelas mulheres, com 80% dos matricu-lados, tal como os de saúde e proteção social, com 76,6%. Seguem-se as áreas de ciências sociais, comércio e direito (58,5%), artes e humanidades (58%), agricultura (57%) e serviços (42,6%). Onde acabam por estar francamente subrepresentadas é nos cursos ligados a enge-nharia, indústrias transformadoras e constru-ção: somente 26,7%. Quanto à tão importante área de ciências, matemática e informática, verifica-se, aí, uma quase paridade, com 47,5%. Apesar desta boa notícia, tem-se assistido, nos últimos 15 anos, a um ligeiro declínio do número de mulheres inscritas. É preciso atenção!

MUITAS PORTUGUESAS EM CIÊNCIAA cada três anos, é publicado um importante

relatório, também com o apoio da Comissão Europeia, para medir o peso das mulheres no ensino superior e, particularmente, na ciência. O último, publicado em 2013, conclui que a Europa ainda está longe de uma paridade entre géneros na área da ciência, com prejuízo para as mulheres. Não obstante, o estudo (http://ow.ly/LcZeH) confirma que, nos últimos anos, o fosso tem vindo a diminuir.

Face aos dados recolhidos para o relatório She Figures 2012 – Gender in Research and Inno-vation, a então comissária europeia para Inves-tigação, Ciência e Inovação, a irlandesa Máire Geoghegan-Quinn, afirmava que “as mulhe-res ainda estão subrepresentadas nos setores público e privado destinados à investigação, com apenas um terço dos investigadores euro-peus a ser composto por mulheres, e a propor-ção a cair para menos de um quinto dentro das

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ENSINO SUPERIOR

empresas”. Mas há mais: “No ensino superior, e apesar de existirem mais mulheres licencia-das do que homens, estas só representam dez por cento dos reitores das universidades. Além disso, ainda existe uma representação desequilibrada entre mulheres e homens nos órgãos de decisão, havendo, em média, apenas uma mulher por cada dois homens em conselhos científicos e de administração”.

Pegando em alguns dos dados que cons-tam neste estudo, verifica-se que, em 2010, o número de doutorados do sexo feminino, na UE, era superior em todas as áreas de estudo, com exceção de ciência, matemática e infor-mática (uma média de 40%), assim como em engenharia, indústrias transformadoras e construção (26%), precisamente as duas áreas com maior número de doutorados no Velho Continente.

E Portugal? No nosso país, a percentagem de cientistas e engenheiros, em relação à popula-

ção ativa, continua abaixo da média europeia, embora, nas últimas décadas, tenhamos recu-perado muito do tempo perdido. Um ponto a nosso favor é que somos um dos poucos esta-dos-membros com uma percentagem quase igual entre géneros. Melhor: a proporção de investigadoras, em 2009, correspondia a 46% do total (39,5 mil mulheres contra 46,8 mil homens), uma das percentagens mais elevadas dentro da Europa e bem acima da média euro-peia (33%).

LONGE DOS CENTROS DE DECISÃOO setor empresarial português, contudo, faz

má figura, com apenas 30% de mulheres entre as suas equipas de investigadores: a média europeia fica-se pelos 19%. É preciso salientar que grande parte dos investigadores nacio-nais, assim como no resto da UE, trabalha para instituições governamentais ou do ensino superior.

Quando se analisa com maior pormenor os dados estatísticos do relatório She Figures 2012, chega-se a outra constatação preocupante: em quase todos os países escrutinados, as car-reiras académicas das mulheres caracterizam--se por uma forte segregação vertical, Portugal incluído. Se formos ver a proporção de reitores, vice-reitores e professores catedráticos do sexo feminino, em Portugal o número fica-se pelos 22%, ligeiramente acima do valor médio na UE (20%). Engenharia e tecnologia são as áreas mais problemáticas para o nosso país, com apenas 7% de mulheres nesses cargos, opondo-se a 33,2% em ciências naturais (o segundo valor mais alto da UE).

Percentagem de mulheres que lideram insti-tuições do ensino superior? Somente 7,3%, um dos números mais baixos, equivalendo a metade da média europeia. Nos conselhos cien-tíficos e de administração, a disparidade man-tém-se, embora atenuada: 38%, ou seja, muito

É fixe ser cientista. Em Portugal, 47,5% dos matriculados nas áreas

de ciências, matemática e informática, em 2014, eram mulheres. Todavia, o número

decresceu nos últimos 15 anos.

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Elas são melhores na escola,

mas depois evitam as áreas

científicas

Exemplo a seguir. A iraniana Maryam Mirzakhani tornou-se, em 2014, a primeira mulher a ser condecorada com a medalha Fields, o equivalente ao Prémio Nobel da matemática.

perto do que se verifica na maior parte do con-tinente. Subsiste, ao que parece, uma barreira a separar as mulheres dos órgãos de decisão.

VELHOS ESTEREÓTIPOS NÃO AJUDAMApesar de as clivagens entre homens e

mulheres estarem a reduzir-se, em favor das gerações mais novas, a questão é que este desequilíbrio, dentro da área da investigação, não se corrigirá por si próprio, de forma espon-tânea, garante a antiga comissária europeia Máire Geoghegan-Quinn. Daí que seja neces-sário, no seu entender, “redobrar os esforços” para chegar a uma situação de igualdade.

De modo a encontrar soluções para o pro-blema, é preciso ter em conta, todavia, que a maternidade ainda constitui um entrave para a carreira de muitas investigadoras, salienta a CE. Por motivos culturais, as mulheres acabam por ser mais afetadas do que os homens, pois recai sobre elas o peso de tomar conta dos filhos e, ainda, a responsabilidade da lida doméstica. Quer dizer: além de medidas gerais, que faci-litem a entrada das mulheres no mercado de trabalho e melhorem as suas condições contra-tuais, é preciso criar políticas especificamente dirigidas às organizações e empresas que fazem investigação, no sentido de estas apoiarem o avanço na carreira das mulheres que têm filhos. É o que diz o relatório.

Atualmente, o argumento da discriminação sexual para justificar estas diferenças parece aplicar-se cada vez menos às profissões cientí-ficas. Foi esta, pelo menos, a conclusão a que chegaram dois investigadores da Universidade de Cornell (Estados Unidos), num estudo que teve impacto junto dos especialistas que ana-lisam o assunto. A investigação, publicada em 2011, na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (http://ow.ly/LcZcU), explica que a menor representativi-dade das mulheres na ciência deve-se, princi-palmente, à educação que tiveram em criança e no seio familiar, às expectativas de género que se criaram em relação a elas, às suas esco-lhas de vida e às preferências profissionais, com estas últimas a serem moldadas antes ou durante a adolescência.

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“Quando são novas, as mulheres escolhem não seguir uma carreira que exija maior nível de matemática, com poucas adolescentes a mostrarem vontade de serem engenheiras ou formarem-se em física, preferindo ser médicas, veterinárias, biólogas, psicólogas e advogadas”, dizem os autores. “Elas fazem esta escolha apesar de, na escola, obterem melhores notas a matemática e ciência, em comparação com os rapazes.”

Como inverter a situação? Entre as recomen-dações do estudo, destaca-se a necessidade de as raparigas terem acesso a informação mais realista sobre as oportunidades de carreira. Além disso, deveriam ser expostas a exemplos que possam seguir, provenientes das áreas (profissões) em que a matemática é essencial. Com isto, não se pretende que optem por deter-minadas carreiras em detrimento de outras, onde as mulheres já são maioritárias; o objetivo é que não façam as suas escolhas com base em estereótipos e informações erradas.

CIENTISTA E MÃEUma mulher que queira ter filhos e fazer car-

reira como investigadora vai esbarrar com exi-gências que nem sempre consegue cumprir: o que se pede, na prática, é que dê os seus maio-res contributos intelectuais na mesma altura em que protagoniza um dos maiores esforços físicos e emocionais da sua vida biológica.

De acordo com os autores da pesquisa, é por esta razão que, no mundo académico, as mulheres têm menos filhos do que os homens. Por outro lado, muitas das que preferem a maternidade veem-se obrigadas a abandonar o trabalho a tempo inteiro, de modo a criar os filhos, com consequências para o seu sucesso profissional.

Entre as estratégias que se aconselham, de forma a ter em conta a biologia da mulher, está o ajustamento do tempo de trabalho e a conces-são de subvenções para que elas possam estar com os filhos, tal como financiamento para que as instituições, durante as licenças de mater-nidade, possam contratar alguém temporaria-mente: deste modo, os trabalhos de investiga-ção não sofreriam com a falta de pessoal. Tam-bém se recomenda a diminuição das respon-sabilidades de docência que tenham, assim como garantir serviços de creche de alta quali-dade, quando têm de se ausentar com urgência por motivos profissionais.

Em síntese: o tradicional e linear percurso de carreira de um cientista, feito à medida para os homens e a sua biologia, “não pode ser a única rota para o sucesso”, advertem os dois autores, sendo necessário testar e financiar (de modo a encorajar), opções de carreira alterna-tivas, capazes de ter em conta as escolhas de vida de cada género.

J.P.L.

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Pictogramas

Novo sistema mundial

Sinais de PERIGO

Até junho deste ano, entram em vigor os novos pictogramas para rotulagem dos produtos

químicos. É um mundo novo, uma harmonização que tem riscos e que está em curso desde 2009.

U m losango vermelho, com fundo branco, e no meio dele... um ponto de exclamação. O que significa isto? A partir do próximo verão,

qualquer pessoa, em Portugal ou noutro país da Europa, deveria responder imediatamente: “Perigo para a saúde, irritante ou nocivo.” Seria o cenário perfeito, mas a verdade é que

mais facilmente identificamos esse perigo num sinal quadrado, com fundo amarelo e um carregado “X” negro no meio. Em breve, este último sinal e outros da mesma “coleção” vão desaparecer dos rótulos dos produtos quími-cos, e então será essencial saber identificar os sinais dentro dos losangos vermelhos.

Em causa está uma mudança de pictogramas,

Atenção a eles! Estamos rodeados de produtos químicos, alguns dos quais encerram

riscos para a saúde ou para o ambiente, se forem mal manuseados. A igura de Napo

foi criada para divulgar os novos símbolos.

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A grande harmonização

mundialcomeçou a ser

preparada em 1992

em curso desde 2009, e que terá o seu desenlace este ano, sobretudo a partir de junho. O obje-tivo é harmonizar os avisos internacionalmente conhecidos, o que foi feito pelo Regulamento CRE (Classificação, Rotulagem e Embalagem), que adapta a anterior legislação da União Euro-peia ao GHS (Sistema Mundial Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Quí-micos) – em vigor desde 2003, com regulares atualizações, a última das quais em 2013 –, promovido pela Organização das Nações Uni-das e já adotado em muitos países em todo o mundo.

ATÉ 2017Foi em 1992, na Conferência sobre Ambiente

e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, que se adotou o GHS e se estabeleceram as etapas da harmonização. O Regulamento CRE entrou em vigor em janeiro de 2009, subs-tituindo progressivamente duas diretivas euro-peias sobre substâncias perigosas e suas respe-tivas preparações. Até 1 de dezembro de 2010, as substâncias foram reclassificadas; até 1 de dezembro de 2012, as substâncias colocadas no mercado tiveram de passar a respeitar a nova rotulagem de acordo com o CRE. A partir de 1 de junho deste ano, as misturas (antes desig-nadas como “preparações”) têm de ser classi-ficadas de acordo com o Regulamento. Até 1 de junho de 2017, todos os produtos existentes no mercado devem ser rotulados e embalados segundo as novas diretrizes.

Ou seja, não estamos a falar apenas de uma mudança de símbolos, mas também de rotula-gem e terminologia: “pictogramas” em vez de “símbolos”, “misturas” em vez de “prepara-ções”, “palavras-sinal” em vez de “indicações de perigo”, etc., etc. E atenção aos códigos nos rótulos: as “frases de risco” (R) passam a “advertências de perigo” (H) e as “frases de segurança” (S) passam a “recomendações de prudência” (P).

Entende-se a tentativa de harmonização, mas, como todas as mudanças, não é fácil: em 2012, um estudo da Comissão Europeia concluía que os portugueses, por exemplo, tinham difi-culdade em interpretar corretamente os novos símbolos. Uma situação preocupante, já que estas mudanças vão abranger todos os produ-tos que misturam substâncias químicas, como os produtos de limpeza.

Nove símbolos a conhecer

A ntes, havia sete símbolos. Agora, há no-ve, um dos quais se repete, para fazer

uma lista de dez. Foram acrescentados dois, alertando para substâncias ou misturas que podem provocar efeitos graves a longo pra-zo na saúde, tais como carcinogenicidade

ou sensibilização respiratória, e perigos menos graves, como irritantes, sensibilizan-tes cutâneos e de toxicidade menos grave. Além disso, há agora um símbolo especíico para riscos para o ambiente. Veja abaixo a lista completa.

Explosivos. Substâncias autorreativas e peróxidos orgânicos que podem provocar explosões sob a ação do calor.

PERIGOS FÍSICOS

PERIGOS PARA A SAÚDE

PERIGOS PARA O AMBIENTE

Inflamáveis. Gases, aerossóis, líquidos e sólidos. Substâncias e misturas suscetíveis de autoaquecimento. Líquidos e sólidos pirofóricos, que podem incendiar-se em contacto com o ar. Substâncias que, em contacto com a água, emitem gases inlamáveis. Substâncias autorreativas ou peróxidos orgânicos que podem provocar incêndios sob a ação do calor.

Comburentes. Gases, sólidos e líquidos que podem provocar ou intensiicar incêndios e explosões.

Gases. Gás sob pressão, risco de explosão sob a ação do calor. Gás refrigerado, pode provocar queimaduras ou lesões criogénicas. Gases dissolvidos.

Corrosivos. Substâncias e misturas corrosivas para os metais e/ou que podem causar queimaduras graves na pele e danos nos olhos. Aparece também na secção de perigos para a saúde.

Toxicidade aguda. Substâncias e misturas altamente tóxicas em contacto com a pele, e que poderão ser fatais se inaladas ou ingeridas.

Corrosivos. Substâncias e misturas que podem causar queimaduras graves na pele e danos nos olhos e/ou corrosivas para os metais. Aparece também na secção de perigos físicos.

Irritantes. Substâncias e misturas extremamente tóxicas (nocivas), e/ou que provocam sensibilização cutânea e irritação cutânea e ocular, irritação das vias respiratórias ou sonolência e tonturas (narcóticos), e/ou perigosas para a camada de ozono.

Perigo de aspiração. Substâncias e misturas cancerígenas, que afetam a fertilidade e o nascituro e/ou provocam mutações. Sensibilizantes respiratórios, podendo provocar alergias, asma ou diiculdades respiratórias quando inalados. Substâncias tóxicas para órgãos especíicos. Podem ser fatais ou nocivas por ingestão ou penetração nas vias respiratórias.

Poluição. Substâncias e misturas perigosas para o meioambiente e/ou capazes de provocar toxicidade aquática.

Interessante 77

DIVULGAÇÃOA dificuldade da mudança levou a Agência

Europeia para a Segurança e a Saúde no Traba-lho a promover diversos esforços de divulga-ção. Assim, foi criada uma personagem de ani-mação, o Napo, que, de uma forma divertida, vai alertando para a necessidade de ter atenção aos rótulos e saber qual é a informação que é transmitida pelos pictogramas presentes nes-ses rótulos (http://napofilm.net/pt). O herói surgiu nos ecrãs em 1998, mas o primeiro filme para a Agência Europeia data de 2003. Dis-

A revolução Isotype

E stamos rodeados de pictogramas. Para onde quer que olhemos, lá estão eles.

Era inevitável. Afinal, os pictogramas são praticamente tão antigos como a língua, a comunicação humana. Os historiadores si-tuam a sua origem na antiguidade, na escri-ta cuneiforme e nos hieróglifos. Em 2003, foram descobertos em Jiahu (China) aque-les que se crê serem os mais antigos picto-gramas da história, gravados em carapaças de tartaruga: onze, representando “olho”, “janela” e números, em túmulos neolíticos, há cerca de 8600 anos. No entanto, foi só no século XX, quando a comunicação co-meçou a tornar-se cada vez mais global, que esta arte se tornou mais presente no dia a dia de cada pessoa. O primeiro grande impulso aconteceu em Viena, por inspiração de Oto Neurath, que encabeçou, na década de 1920, o movimento Isotype (International System of Typograph Picture Education, sistema internacional de educação tipográica pic-tórica). A ideia era comunicar informação através de um sistema não-verbal: Neurath idealizou o sistema e Gerd Arntz ilustrou-o.O seu sistema revolucionou o mundo da comunicação, dando origem à infograia e ao moderno design gráico. Hoje, os pictogramas estão espalhados por todo o lado, e basta levantarmos a cabeça para darmos conta da sua existência, porque as ideias de Neurath foram sendo aplicadas e reproduzidas nas mais diversas situações. Um outro momento-chave acontece em 1964, quando Masaru Katzumie criou um sistema de pictogramas para identiicar as modalidades nos Jogos Olímpicos de Tó-quio. A partir de então, todas as Olimpía-das tiveram o seu conjunto de pictogramas.Em 1976, o American Institute of Graphic Arts criou um sistema de sinalização pictográico para o departamento de trans-portes dos Estados Unidos, dando início a uma sucessão de símbolos para uso no espaço público, nos mais diversos setores. No fundo, caminhava-se no sentido de estabelecer uma linguagem mais univer-

ponível está também um cartaz (http://bit.ly/1NZr8bi), em todas as línguas da União Europeia,que pode ser descarregado pela internet e divulgado, tal como um folheto informativo (http://bit.ly/1AuQ1Ta).

Em Portugal, o programa do 7.º ano de esco-laridade já contempla, em Físico-Química, a alteração dos pictogramas, num esforço para integrar de imediato os mais novos. Simulta-neamente, a Autoridade para as Condições do Trabalho e a Direção-Geral do Consumi-dor desenvolveram uma brochura (http://bit.

ly/18RTQKs) para informar sobre a existência dos novos pictogramas de perigo.

Tantos esforços, porém, ainda vão passando despercebidos ao mais comum dos cidadãos: embora nas escolas os alunos tenham con-tacto com os novos pictogramas, no exterior há um desconhecimento quase total sobre esta novidade: nem os filmes do Napo passam na televisão, nem os cartazes e as brochuras estão suficientemente divulgados em locais públicos.

J.S.

sal, como disse Neurath em 1940: “Talvez o método Isotype se torne um dos fatores que irão ajudar a criar uma civilização na qual todas as pessoas compartilham uma cultura comum e poderá desaparecer o vão que separa as pessoas educadas e as não educadas.”Em 2016, nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, será dado um novo passo: pela primeira vez, todos os desportos olímpicos e paralímpicos serão representados individualmente. Para tal, uma equipa de designers do Comité Organiza-dor estudou as diferentes deiciências dos atle-tas participantes nos paralímpicos, retratando próteses e os mais diversos equipamentos, de uma forma nunca antes realizada. O trabalho durou 16 meses, para um total de 64 pictogra-mas, 41 olímpicos e 23 paralímpicos.

Símbolos olímpicos (em cima) e paralímpicos (à direita) das próximas Olimpíadas, a realizar no Rio de Janeiro, em 2016.

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LIVROS

“Não há perguntas simples”, diz Randall Munroe. Por isso, decidiu abordar no seu site as questões

mais raras, por vezes a roçar o absurdo, mas sempre de um ponto de vista solidamente

científico. Agora, reuniu algumas das perguntas e respostas mais interessantes num livro que surge entre nós com a chancela da Saída de Emergência. Publicamos aqui a introdução (na página seguinte)

e os dois primeiros capítulos.

VENDAVAL GLOBAL

Q ue aconteceria se a Terra e todos os objetos terrestres parassem de girar de repente, mas a atmosfera mantivesse a velocidade? (per-

gunta de Andrew Brown)Quase toda a gente morreria. A seguir, as

coisas ficariam interessantes.No equador, a superfície da Terra move-se

a cerca de quatrocentos e setenta metros por segundo, pouco mais de mil e seiscentos qui-lómetros por hora, relativamente ao seu eixo. Se a Terra parasse e o ar não, o resultado seria um vento repentino de mil e seiscentos quiló-metros por hora.

O vento seria mais intenso no equador, mas todos e tudo o que existisse entre qua-renta graus norte e quarenta e dois graus sul, incluindo 85% da população mundial, teriam de lidar subitamente com ventos supersónicos.

Os ventos mais fortes durariam apenas alguns minutos junto à superfície. A fricção com o solo abrandá-los-ia. No entanto, esses minu-tos seriam suficientes para reduzir a ruínas praticamente todas as construções humanas.

Boston, onde vivo, fica suficientemente a norte para ficar fora da zona de ventos supersónicos, mas, mesmo assim, os ventos na minha cidade teriam o dobro da intensi-dade dos ventos que constituem os tornados mais poderosos. Os edifícios, de cabanas de madeira a arranha-céus, seriam arrasados, arrancados aos alicerces e arrastados para longe.

Os ventos seriam mais fracos perto dos polos, mas não existem cidades suficientemente dis-tantes do equador para escapar à devastação. Longyearbyen, na ilha norueguesa de Sval-

E se?...

bard, a cidade com a latitude mais elevada no planeta, seria devastada por ventos iguais aos dos ciclones tropicais mais poderosos.

Se pretendesse esperar por uma melhoria, um dos melhores sítios para o fazer talvez fosse Helsínquia, na Finlândia. Apesar de a sua latitude (acima de 60º N) não ser suficiente para impedir a destruição provocada pelos ventos, o solo rochoso de Helsínquia alberga uma rede sofisticada de túneis, juntamente com um centro comercial subterrâneo, um ringue de hóquei, um complexo de piscinas e outros equipamentos.

Nenhum edifício ficaria a salvo. Até estru-turas suficientemente fortes para sobreviver aos ventos teriam problemas. Como disse o comediante Ron White acerca dos furacões: “O problema não é o vento que sopra e sim o que o vento sopra.”

Imagine que estava num abrigo gigantesco construído com um material capaz de supor-tar ventos de mil e seiscentos quilómetros por hora.

Seria bom e estaria a salvo se fosse a única pessoa com um abrigo. Infelizmente, era pro-vável que tivesse vizinhos e, se o vizinho mais próximo na direção de onde o vento soprava tivesse um abrigo com uma construção menos sólida, teria de suportar o embate do seu abrigo a mil e seiscentos quilómetros por hora.

A espécie humana não se extinguiria (não imediatamente, pelo menos). No geral, muito poucas pessoas sobreviveriam à superfície. Os destroços soprados pelo vento pulverizariam qualquer coisa que não tivesse sido atomica-mente endurecida. No entanto, muita gente debaixo do chão ficaria ilesa. Se estivesse numa cave funda (ou, melhor ainda, num túnel

de metro) quando acontecesse, teria boas hipóteses de sobreviver.

Haveria outros sobreviventes afortunados. As dúzias de cientistas e pessoal técnico da estação de investigação Amundsen-Scott no Polo Sul estariam a salvo dos ventos. Para eles, o primeiro sinal de perigo seria o silêncio súbito do resto do mundo.

O silêncio misterioso talvez os distraísse durante algum tempo, mas alguém acabaria por reparar numa coisa ainda mais estranha:

O ARCom o abrandar dos ventos à superfície, as

coisas ficariam ainda mais estranhas.As rajadas de vento transformar-se-iam

em rajadas de calor. Normalmente, a energia cinética do vento é suficientemente baixa para ser ignorada, mas não se trataria de um vento normal. Com a sua paragem turbulenta, o ar começaria a aquecer.

Nos continentes, isto provocaria tempera-turas escaldantes e, nas áreas de ar húmido, trovoadas globais.

Ao mesmo tempo, o vento que soprasse sobre os oceanos agitaria e atomizaria a camada superficial da água. Por um momento, o oceano deixaria de ter superfície. Seria impossível perceber onde terminavam as explosões de gotas e onde começava o mar.

Os oceanos são muito frios. Abaixo da fina camada superficial, mantêm-se a uma tempera-tura bastante uniforme de 4 ºC. A tempestade faria subir água fria mais profunda. O influxo de água fria em contacto com o ar sobreaquecido criaria um tipo de clima nunca antes visto na Terra, uma mistura caótica de vento, aguacei-ros, névoa e mudanças de temperatura rápidas.

Interessante 79

Perguntas hipotéticas

E ste livro é uma compilação de res-postas a perguntas hipotéticas. Es-

tas perguntas foram-me colocadas atra-vés do meu site, onde (além de funcionar como uma espécie de Consultório Senti-mental para cientistas loucos) publico o xkcd, um webcomic com iguras dearame.Fazer banda desenhada não foi a minha primeira ocupação. Estudei Física e, depois de obter o meu diploma, traba-lhei no departamento de robótica da NASA. Deixei a NASA para fazer banda desenhada a tempo inteiro, mas o meu interesse pela ciência e pela matemática não esmoreceu. Acabei por desco-brir uma nova forma de o satisfazer: responder às perguntas estranhas (e por vezes preocupantes) da internet. Este livro contém uma seleção das minhas respostas favoritas entre todas as que foram publicadas no site, além de várias perguntas novas que serão respondidas aqui pela primeira vez.Desde que me lembro, uso a matemá-tica para tentar responder a perguntas estranhas. Quando tinha cinco anos, a minha mãe teve uma conversa comigo que anotou e guardou num álbum de fotograias. Quando soube que escrevia este livro, encontrou a transcrição e enviou-ma. Aqui está ela, reproduzida textualmente do seu pedaço de papel com vinte e cinco anos:

Randall: Há mais coisas macias ou duras na nossa casa?Julie: Não sei.Randall: E no mundo?Julie: Não sei.Randall: Bom, cada casa tem três ou quatro almofadas, certo?Julie: Certo.Randall: E cada casa tem uns 15 íma-nes, certo?Julie: Acho que sim.Randall: 15 mais 3 ou 4, pode ser 4, dá 19, certo?Julie: Certo.Randall: Então deve haver uns três mil milhões de coisas macias e... cinco mil milhões de coisas duras. Qual ganha?Julie: Acho que são as coisas duras.

Até este dia, não percebo onde fui buscar os “três mil milhões” e os “cinco mil milhões”. Claramente, ainda não percebia bem como funcionavam os números.A minha matemática melhorou um pouco com os anos, mas o meu motivo para a aplicar não mudou desde os meus cinco anos: quero responder a pergun-tas.

Diz-se que não há perguntas estúpidas. Obviamente, isso é um erro. Acho que a minha pergunta sobre coisas duras e coisas macias, por exemplo, é bastante estúpida. Mas tentar responder pormenorizadamente a uma pergunta estúpida pode levar-nos a

sítios muito interessantes.Continuo sem saber se há mais coisas duras ou macias no mundo, mas aprendi muitas outras coisas pelo caminho. O que se segue são alguns dos meus mo-mentos preferidos dessa viagem.

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LIVROS

Esta deslocação das águas provocaria uma inundação de nutrientes nas camadas supe-riores. Ao mesmo tempo, resultaria numa enorme mortandade entre peixes, carangue-jos, tartarugas-marinhas e outros animais inca-pazes de suportar o influxo de água pobre em oxigénio vinda das profundezas. Qualquer animal que precisasse de respirar ar, como as baleias e os golfinhos, teria dificuldades para sobreviver na superfície turbulenta do mar.

As ondas varreriam o globo, de leste para oeste, e todas as costas voltadas para leste enfrentariam as maiores tempestades da sua história. Uma nuvem cegante de gotas de água do mar avançaria pela terra dentro, trazendo atrás de si uma parede de água imparável que avançaria como um tsunami. Em alguns locais, as ondas galgariam muitos quilómetros.

Os vendavais projetariam grandes quanti-dades de pó e detritos para a atmosfera. Ao mesmo tempo, um manto denso de nevoeiro formar-se-ia sobre as superfícies marinhas frias. Isto provocaria a queda abrupta da tem-peratura global.

Pelo menos, de um lado da Terra.Se a Terra parasse de girar, o ciclo normal de

dias e noites chegaria ao fim. O Sol não pararia por completo de cruzar o céu, mas, em vez de se erguer e de se pôr uma vez por dia, aconte-ceria apenas uma vez por ano.

Cada dia e cada noite duraria seis meses, mesmo no equador. No lado diurno, a super-fície tornar-se-ia insuportável com a luz cons-tante e, no lado noturno, haveria quedas verti-ginosas de temperatura. A convecção no lado diurno provocaria tempestades imensas na área diretamente por baixo do Sol (mas, sem a força inercial de Coriolis, ninguém poderia calcular em que direção avançariam).

De algumas formas, a Terra parecer-se-ia com um dos exoplanetas com acoplamento de maré comummente encontrados na zona habi-tável em torno de uma estrela anã vermelha, mas poderá fazer-se uma comparação mais acertada com o planeta Vénus nos seus pri-mórdios. Devido à sua rotação, Vénus, como a Terra travada do nosso exemplo, mantém a mesma face virada para o Sol durante meses. No entanto, a sua atmosfera densa circula a uma velocidade considerável, o que resulta num equilíbrio de temperatura aproximado entre a face diurna e a face noturna.

Apesar da alteração na duração do dia, não haveria alteração na duração do mês! A Lua não deixaria de girar em torno da Terra. No entanto, sem a rotação da Terra para ali-mentar o seu movimento, a Lua pararia de se afastar gradualmente da Terra (como acon-

tece atualmente) e voltaria a aproximar-se lentamente.

Na verdade, a ação da Lua, nossa fiel companheira, contribuiria para desfazer os estragos provocados pelo cenário proposto pelo Andrew. Neste momento, a Terra gira mais depressa do que a Lua e o nosso aco-plamento de maré abranda a rotação terres-tre, enquanto afasta a Lua de nós (ver Leap Seconds, http://what-if.xkcd.com/26, para uma explicação do que motiva isto). Se parássemos de girar, a Lua pararia de se afastar de nós. Em vez de nos abrandar, o acoplamento de maré aceleraria o nosso movimento. Aos poucos, com cuidado, a gravidade da Lua atuaria sobre o nosso planeta...

... e a Terra recomeçaria a girar.

BASEBOL RELATIVISTA

Q ue aconteceria se alguém tentasse bater uma bola de basebol lançada a 90% da velocidade da luz? (per-gunta de Ellen McManis)

A resposta será “muitas coisas” que acon-tecerão muito depressa e em simultâneo e sem que o batedor (ou o lançador) tenham bom fim. Debrucei-me sobre alguns livros de Física, um boneco articulado do Nolan Ryan e um monte de cassetes de vídeo de testes nucleares, tentando esclarecer os pormeno-res. O que se segue é a minha melhor tentativa de conseguir um retrato dos acontecimentos, nanossegundo a nanossegundo.

A bola viajaria tão depressa que tudo o resto ficaria praticamente imóvel. Até as moléculas

Anulação. Uma bola de basebol com velocidade relativista faria desaparecer

o estádio e toda a zona em volta.

Interessante 81

artigo, Hans Rinderknecht, físico do MIT, con-tactou-me para dizer que tinha simulado este cenário nos computadores do seu laboratório. Descobriu que, na fase inicial do voo da bola, a maioria das moléculas de ar mover-se-iam com demasiada velocidade para provocar a fusão e atravessariam a bola, aquecendo-a de forma mais lenta e uniforme do que foi descrito no meu texto.]

Estes raios gama e as partículas expandir--se-iam numa bolha com o monte do lança-dor como centro. Começariam a desfazer as moléculas do ar, arrancando os eletrões aos núcleos e transformando o ar no estádio numa bolha crescente de plasma incandescente. O exterior desta bolha aproximar-se-ia do bate-dor com velocidade comparável à da luz, ape-

nas ligeiramente adiantado em relação à bola.A fusão constante na parte dianteira da

bola empurrá-la-ia em sentido contrário, abrandando-a, como se fosse um foguetão voando com a cauda para a frente e ativando os motores. Infelizmente, a bola mover-se-ia com tamanha velocidade que nem a força tre-menda desta explosão termonuclear conse-guiria abrandá-la de forma significativa. Mas a sua superfície começaria a ceder, projetando fragmentos minúsculos de bola em todas as direções. Estes fragmentos viajariam tão depressa que, quando atingissem moléculas de ar, desencadeariam mais duas ou três ocor-rências de fusão.

Cerca de setenta nanossegundos depois, a bola chegaria à base. O batedor nem sequer teria visto o lançador libertá-la, já que a luz transportando essa informação chegaria até ele ao mesmo tempo que a bola. As colisões com moléculas do ar teriam corroído a bola quase por completo e esta ter-se-ia transfor-mado numa nuvem de plasma (sobretudo carbono, oxigénio, hidrogénio e [azoto]) em expansão e com forma de bala, viajando atra-vés do ar e desencadeando mais fusões pelo caminho. O batedor seria atingido em primeiro lugar pela carapaça de raios X e, um punhado de nanossegundos depois, chegaria a nuvem de partículas.

Quando chegasse à base, o centro da nuvem continuaria a mover-se a uma fração considerável da velocidade da luz. Atingiria o taco em primeiro lugar e, em seguida, o bate-dor, a base e o apanhador seriam empurrados para trás pela barreira enquanto se desinte-gravam. A carapaça de raios X e de plasma sobreaquecido expandir-se-ia para fora e para cima, engolindo a barreira, os bancos das duas equipas, as bancadas e o bairro envolvente. Tudo isto no primeiro microssegundo.

Imagine-se que alguém assistia de uma montanha fora da cidade. A primeira coisa que veria seria uma luz cegante muito mais intensa que a do Sol. Dissipar-se-ia gradualmente em poucos segundos e uma bola de fogo erguer--se-ia até formar uma nuvem em cogumelo. Depois, com um grande trovejar, a onda de choque arrancaria árvores e despedaçaria casas.

Tudo o que existisse num raio de aproxi-madamente quilómetro e meio em torno do estádio seria arrasado e uma colossal massa de chamas envolveria a cidade em redor. O campo de basebol, agora uma cratera de tamanho considerável, ficaria centrado algu-mas centenas de metros atrás da anterior loca-lização da barreira. A regra 6.08(b) da Major League Baseball sugere que, nesta situação, o batedor seria considerado “atingido pelo lançamento” e poderia avançar até à primeira base.

no ar ficariam paradas. Vibrariam para trás e para diante a centenas de quilómetros por hora, mas a bola mover-se-ia através delas a quase mil milhões de quilómetros por hora. Isto significa que, no que à bola diria respeito, seria como se estivessem paralisadas.

Os preceitos da aerodinâmica não se apli-cariam aqui. Normalmente, o ar flui em torno de qualquer coisa que se mova através dele. Mas as moléculas do ar diante desta bola não teriam tempo para serem empurradas para fora do seu caminho. A bola atingi-las-ia em cheio e com tanta violência que os átomos nas moléculas de ar se fundiriam com os átomos na superfície da bola. Cada colisão provoca-ria uma explosão de raios gama e partículas dispersas. [Depois da publicação original deste

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Arqueologia

Picassos das cavernas

Os primeiros ARTISTASA descoberta, em Java, de uma concha com desenhos feitos há 500 mil anos reacende o

debate sobre quando surgiram a arte e a mente complexa. Tudo indica que o Homo erectus da

Ásia se adiantou aos pintores rupestres europeus. O antropólogo e sociólogo Pablo Herreros

faz o ponto da situação.

F oi Picasso que disse, durante uma visita às grutas de Altamira: “Está tudo inventado. Depois disto, tudo parece decadente; nenhum de nós

seria capaz de pintar o que existe aqui.” Uma frase categórica, sem dúvida, embora o aspeto mais interessante seja que os homens do Paleolítico que retrataram com tanta habi-lidade aqueles bisontes, há 15 mil anos, talvez pensassem exatamente o mesmo em relação aos seus antecessores, os quais foram, como agora sabemos, cada vez com mais pormenor, ótimos artistas, muitos milhares de anos antes.

Uma concha de água doce recentemente encontrada em Trinil, no interior da ilha de Java (Indonésia), exibe curiosas gravuras geométri-cas de tipo abstrato, em forma de ziguezague. O estudo da peça, efetuado pela bióloga Jose-phine Joordens, da Universidade de Leiden (Países Baixos), e publicado na revista Nature, causou grande impacto na comunidade de especialistas. Joordens investigava a vida do Homo erectus, um antepassado dos neander-tais e dos seres humanos modernos, e a forma como tinha explorado os recursos marinhos no Sueste asiático. Pois bem, segundo a datação efetuada, os traços que se veem no molusco teriam sido feitos há quase 500 mil anos. A concha apresenta uma perfuração num dos lados, que teria servido para poder ser aberta. Na superfície, há linhas mais ou menos direitas

entre cruzadas, com um centímetro de compri-mento.

Podemos falar em arte, ou as linhas seriam apenas uma consequência da utilização de ferramentas enquanto se tentava abri-la? Os autores da descoberta rejeitam esta hipótese, pois foi possível comprovar, com recurso a um microscópio eletrónico, que as linhas foram deliberadamente gravadas. A continuidade do traço, o facto de não se ter levantado a mão ao desenhá-las, prova que houve intencionalidade na sua elaboração. A conclusão implica que, há 400 a 500 mil anos, quando a nossa espé-cie ainda nem sequer existia, um hominídeo a quem se negava a capacidade de abstração, até agora, conseguia criar uma forma artística incipiente.

PENSAMENTO SIMBÓLICOCamilo José Cela Conde, especialista na

matéria, considera que, embora a descoberta da concha seja muito interessante, “é sur-preendente que os seus autores tenham esque-cido que possuímos exemplos de gravuras geométricas muito antigos, atribuídos aos Homo erectus da África do Sul, que poderiam ser uma forma incipiente de Homo sapiens”.

Por que é tão importante saber quando foram feitas as primeiras pinturas e gravuras em pedras, cavernas ou objetos? Trata-se de perceber se a nossa espécie foi a única que

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Os desenhos mais antigos. Em cima, concha aberta através de uma perfuração, nas mãos de Josephine Joordens, da universidade holandesa de Leiden. A investigadora também descobriu a casca de um molusco decorado com linhas em ziguezague (à esquerda). São trabalhos de há meio milhão de anos, obra dos Homo erectus de Java, na Indonésia. Na foto maior, simulação artística de um grupo de Homo sapiens a decorar as paredes das grutas de Lascaux, em França, há cerca de 18 mil anos.

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A mente simbólica possibilitoua fala, a arte e a religião

A evolução da nossa arte

conseguiu desenvolver a criatividade artística, que exige um elevado nível de cognição, e se é verdade que fomos nós que abrimos um novo caminho na evolução que fez surgir o pensa-mento simbólico, ou se, pelo contrário, tal capa-cidade surgiu muito antes, o que significaria

a arte nasceu muito antes do que pensávamos. Há muitos exemplos fora do nosso continente, incluindo as gravuras em pedra de Diepkloof e Blombos, na África do Sul, com cerca de 60 a 70 mil anos de antiguidade. As jazidas ilustram o comportamento do Homo sapiens num dos momentos mais incipientes da nossa evolução. Além das pedras decoradas com motivos geo-métricos, foram encontradas conchas de cara-cóis perfuradas e diversos ornamentos. Nou-tras zonas do mundo, há mais exemplos notá-veis, como as vénus de Tan-Tan (Marrocos) e de Berejat Ram (Israel), ou os petroglifos na gruta de Daraki-Chattan (Índia), dos quais alguns poderiam ter mais de cem mil anos.

Tesouro vermelho. Em cima, fragmentos de ocre (minerais de hematite e óxido de ferro) com desenhos abstratos e marcas geométricas encontrados da gruta de Blombos, na África do Sul (à esquerda). Os vestígios encontrados rondam os 70 mil anos de antiguidade.

280 000400 000500 000 anos

que se trata de uma herança que os nossos antepassados nos deixaram e que partilhámos, a dada altura, com outras espécies irmãs com as quais convivemos, como os neandertais.

O certo é que as últimas descobertas dos paleoantropólogos indicam que, efetivamente,

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Pedras de amolar

Marcas na concha de um mexilhão poderiam ser a primeira evidência conhecida de pensamento simbólico

Até há 300 mil anos, a indústria lítica habitual

eram os bifaces

Pigmentos (ocres)

A descoberta da concha com riscos geométricos, em Java, obriga a recuar

cerca de 500 mil anos para encontrar o possível nascimento do pensamento simbólico. Depois, os nossos antepas-

sados dedicaram-se a fabricar

bifaces inicialmente toscos. Pouco a pouco, foram incorporando técnicas, ferramentas e pigmentos, até chegarem a dominar a pin-tura com a destreza patente nos bisontes, bois e cavalos das grutas de Altamira (Espa-nha) ou Lascaux (França).

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Por tudo isto, não é descabido pensar que os seres humanos modernos desenvolveram uma cultura e uma capacidade mental para o pensa-mento simbólico antes de abandonarem África, e não, como consideravam até agora os paleoar-queólogos, ao chegarem à Europa ou à Ásia. A concha de Java, as gravuras da África do Sul e as vénus africanas apontam para mais longe.

A mente abstrata exige a capacidade de pen-sar através de imagens e símbolos, atribuindo--lhes um sentido e um significado. O pensa-mento simbólico é fundamental para poder-mos ser o que somos atualmente, pois trata-se da capacidade prévia subjacente a coisas tão humanas como a linguagem falada, a arte e a

religião. Sem essa capacidade, tais fenómenos que nos caracterizam como espécie seriam impossíveis. Durante décadas, muitos cientistas evolutivos pensaram que essas aptidões nos diferenciavam dos outros animais e das espécies de hominídeos que nos antecederam, sendo, por isso, capacidades exclusivamente humanas.

EPICENTRO CRIATIVOPor outro lado, a Europa sempre foi conside-

rada o epicentro criativo, onde teriam surgido a arte e o pensamento simbólico. A descoberta, em 1994, por três espeleólogos da gruta de Chauvet, situada no departamento de Ardèche (sul de França), parecia constituir uma prova

contundente. No interior, viam-se pinturas de animais, sobretudo de cavalos e ursos, com 39 mil anos de antiguidade. Tratava-se, então, do exemplo mais antigo de criatividade plástica de que se tinha conhecimento.

Alguns anos depois, a capa da Science de junho de 2012 dizia que Espanha tinha as primeiras pin-turas da humanidade, segundo um estudo de Alistair Pike, arqueólogo da Universidade de Bristol (Reino Unido). A datação da arte rupes-tre de diversas grutas da Cantábria e das Astú-rias apontava para uma antiguidade de 40 800 anos. Consistiam em discos, pontos, uma ima-gem em forma de um pau ou bastão, descoberta em Altamira, e (o mais significativo) uma mão.

200 000 100 000 40 000 HOJE

Aperta aí! Em outubro de 2014, o arqueólogo Maxime Aubert descobriu doze impressões de mãos como esta,

datadas de há 35 a 40 mil anos, nas grutas de Maros (Indonésia).

Consumo de moluscos

Pontas de projéteis

Pesca Peças dentadas

Pinturas rupestres

Transporte de materiais (como o sílex) a grandes distâncias

Utensílios de osso

Contas

Marcas notacionais (calendários?)

Mineração

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A primeira dúvida que as descobertas susci-taram aos especialistas foi a quem se poderia atribuir a autoria das obras de arte, pois é pro-vável que tenham convivido, naquela época, na península Ibérica, neandertais e Homo sapiens. Não há, por enquanto, resposta para esta interrogação. Se fossem encontradas pin-turas anteriores à chegada dos seres humanos modernos à nossa geografia (o que se estima ter ocorrido há cerca de 42 mil anos), não resta-riam dúvidas de que teriam sido criadas pelos nossos primos direitos na evolução, os nean-dertais, desaparecidos há 20 a 30 mil anos no sudoeste da península Ibérica.

O problema reside no facto de os paleoar-queólogos terem sempre negado essa capaci-dade tanto aos neandertais como aos Homo erectus. Até há pouco, o Homo neanderthalen-sis era imaginado e ilustrado nas revistas cientí-ficas e nos livros escolares como um hominídeo pouco inteligente e muito primitivo. No entanto, há indícios (ornamentos e gravuras sobre ossos e ferramentas) de que os nossos primos direitos tinham uma mente desenvol-vida. Nas paredes da gruta de Gorham, em Gibraltar, local habitado por um grupo nean-dertal, o arqueólogo Joaquín Rodríguez-Vidal chegou mesmo a descobrir símbolos em forma de pregadeira que foram batizados como

hashtags (etiquetas), pela sua semelhança com o símbolo utilizado nas redes sociais. Nos arre-dores, foram encontradas cerca de trezentas ferramentas fabricadas por aqueles seres.

Por sua vez, na gruta de Nerja (Málaga), des-coberta em 1959, existem estranhos símbolos que um especialista, José Luís Sanchidrian, pro-fessor da Universidade de Córdova (Espanha), pensa poderem ter sido pintados por neander-tais. Em 2012, vários vestígios orgânicos asso-ciados a pinturas de focas foram datados em 42 mil anos, mas ainda falta efetuar análises aos pigmentos, as quais poderão, sem dúvida, pro-porcionar dados mais precisos.

SURPRESAS ASIÁTICASRelativamente às zonas geográficas de ori-

gem, os estudiosos da evolução humana que consideravam ser a Europa o berço da arte estão cada vez mais embaraçados, pois não cessa de surgir, todos os anos, um número cres-cente de surpresas na Ásia. Há alguns meses, foram encontradas mãos estampadas em algu-mas grutas da ilha de Sulawesi (Indonésia), cuja antiguidade aproximada ultrapassa os 40 mil anos. Na mesma jazida, há também pin-turas de búfalos e de porcos selvagens, cuja criação é atribuída ao Homo sapiens. Tanto os temas como a sua datação são muito seme-

Últimas notícias de Atapuerca

S e Altamira é a Capela Sistina da arte rupestre, Atapuerca (Espanha) con-

serva vestígios paleontológicos excecio-nais, entre os quais se destacam os mais de 5000 fósseis de, pelo menos, quatro espécies de hominídeos: Homo sp. da Si-ma do Elefante, Homo antecessor, Homo heidelbergensis e Homo sapiens. Contudo, a jazida não é pródiga em arte, até pela sua antiguidade. De facto, foi na Sima dos Ossos que se encontrou, em 2013, o ADN humano mais antigo, com 400 mil anos. O objeto mais emblemático (na foto) é um biface com 13,5 centíme-tros de comprimento em pedra talhada (também com 400 mil anos), usado como machado de mão, no Paleolítico inferior, pelo Homo heilderbergensis. Foi descoberto em 1998 e batizado com o nome Excalibur, em honra da espada do rei Artur. Foi talhado num tipo de pedra muito pouco comum na região, uma quartzite de cor vermelha. Tratava-se de um objeto simbólico? Parece que sim, pois estava junto dos restos de trinta esqueletos, talvez como parte de um dote funerário. Numa parede em frente à entrada da gruta de Portalón, há uma pintura que representa a cabeça de um cavalo, mas a análise de óxido e duas fotos, de 1913 e 1947, nas quais as cores são muito mais vivas do que atualmente, fazem pensar que foi feita no início do século XX. Além disso, na Galeria do Sílex, veem-se 400 pinturas a preto e a vermelho, além de gravuras. Trata-se de formas lineares e geométricas, e também de algumas figuras de seres humanos e de animais. A datação vai do Neolítico à Idade do Bronze. L.O.

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Para pintar os tetos das grutas,precisaram de algum andaime

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lhantes aos das obras rupestres encontradas no norte de Espanha e no sul da França. Eric Delson, paleoantropólogo da Universidade de Nova Iorque, considera que essa analogia faz sentido apesar da distância, pois há indícios de que um grupo de Homo sapiens teria emigrado para a Ásia e para a Austrália, e é provável que tivesse levado consigo a sua arte.

A metodologia utilizada para calcular a idade de uma pintura ou gravura também não está isenta de problemas. As figuras que não foram feitas com elementos orgânicos (por exemplo, as que foram desenhadas com pigmentos extraídos do mineral de ferro, que produzem tons vermelhos) não podem ser datadas pelo método do radiocarbono. Nesses casos, são estudadas as formações cálcicas que cresceram posteriormente sobre a obra, as quais são ana-lisadas através de testes de urânio.

Independentemente da espécie que as criou, que sentido tinham aquelas pinturas? Poderiam ter muitos: informação sobre os animais, passatempo, forma de impressionar o grupo, invocações rituais... Quanto aos dese-nhos abstratos, a sua interpretação é ainda mais complexa. Os mais ousados falam em pos-síveis mapas, dados, ideias ou símbolos de clãs, quando surgem outros semelhantes em caver-nas distantes. Há também os partidários das hipóteses mágicas e xamânicas. O arqueólogo francês Jean Clottes fala em experiências de transes, sonhos e visões. Contudo, não passam de especulações, impossíveis de comprovar.

Na minha experiência pessoal, depois de ter

visitado dezenas de grutas com arte rupestre, creio que coexistem vários motivos e inten-ções que só podemos interpretar parcial-mente e, por vezes, apenas por eliminação. Por exemplo, em algumas jazidas, surgem cenas murais em espaços muito amplos, cujas pinturas podem ser apreciadas em grupo. Há mesmo as que estão a vários metros de altura e, para pintá-las, os autores precisaram de algum tipo de andaime ou de ajuda. Por vezes, foram pen-sadas para serem vistas mal se entra, como se fossem símbolos de identidade do lugar. É o caso de uma corça que está na entrada da gruta de Covalanas, na Cantábria.

PARA APRECIAR A SÓSOutras, todavia, parecem convidar à intros-

peção e a ser contempladas de forma solitária, como as das grutas de Castillo ou de La Pasiega, também na Cantábria. Encontram-se em vãos ou recantos tão estreitos que apenas permitem o acesso de uma pessoa de cada vez, por vezes com grande dificuldade. Porque não foram pin-tadas em zonas mais espaçosas? Parece haver uma intencionalidade sobre o lugar escolhido, embora não saibamos qual foi. Por vezes, o objetivo é aproveitar as saliências das rochas e as suas formas naturais. Tal como nos acon-tece quando, deitados sobre a relva, olhamos as nuvens e imaginamos formas, os antigos faziam-no sobre as paredes de grutas e caver-nas. Em algumas figuras, torna-se evidente que visualizaram, antes, a forma do animal sobre a pedra, e depois completaram-na com uma

simples pincelada ou um traço, para lhe confe-rir pleno sentido.

A crescente complexidade da pintura rupes-tre ao longo da história parece seguir uma ordem lógica e até, por vezes, modas. O que encontramos, primeiro, são pontos, riscos e discos. Parece terem pertencido a diversas escolas pictóricas, tal como se sucederam, misturaram e voltaram a ser recuperados os movimentos clássico, impressionista, surrea-lista e abstrato. “Podemos apreciar diversos estilos a instalarem-se e a serem abandonados em diferentes períodos”, afirma Alistair Pike. Talvez dependesse da destreza do autor, mas, por exemplo, nas grutas cantábricas, há veados com 15 mil anos desenhados com algumas linhas, enquanto já estavam a ser pintados, em simultâneo, os magníficos e complexos bisontes da vizinha Altamira.

Porém, de tudo o que foi descrito aqui, depreende-se outro dado interessante. A arte, tal como acontece com as línguas e inúmeras outras inovações da humanidade, não tem uma origem geográfica concreta: avança e converge, por vezes, de vários pontos do pla-neta em simultâneo. Ainda é preciso desenvol-ver centenas de estudos, mas é já evidente que essas práticas mergulham as suas raízes mais profundamente no tempo do que se pensava até agora. Talvez mesmo antes de a nossa espécie ter abandonado África e começado a espalhar-se pela Terra, há 200 mil anos, para iniciar a viagem que nos trouxe até hoje.

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Apogeu paleolítico. À esquerda, cópia em tamanho natural das pinturas da gruta francesa de Lascaux, a joia do Paleolítico europeu, juntamente com Altamira. Em cima, trabalhos de restauro das iguras do teto e das paredes da réplica à escala real desta gruta espanhola.

SUPER88

Tecnologia

Desta vez, é a sério

Novo mundo VIRTUAL

Os velhos equipamentos de realidade virtual, pesados e incómodos, não permitiam

aproveitar todo o potencial desta tecnologia. Uma nova geração de visores permite

percorrer outros mundos em alta definição.

A realidade virtual (RV) voltou a estar na moda. Todos recordamos como era uma referência constante nos anos 80 e 90. Os filmes de ficção

científica da época utilizavam-na como mais um elemento para vender uma imagem singular do nosso futuro, no qual os cidadãos viveriam isolados, mas ciberligados através de capacetes especiais, sensores e outros estranhos dis-positivos. As limitações técnicas fizeram tais ideias cair no esquecimento. A verdade é que os computadores não tinham a velocidade necessária para se ter acesso a esse tipo de cenários. Os equipamentos de RV eram muito caros e estavam pouco desenvolvidos.

Agora, porém, a tecnologia parece disposta a dar-nos o que não tínhamos há vinte anos. Tudo para tentar cumprir as mesmas profecias da ficção científica: a criação de um novo mundo, povoado por pessoas solitárias, metidas em casa, mas que estarão, simultaneamente, hiperconectadas de forma virtual com muitas outras em todos os recantos do planeta.

O nome imprescindível para entender esse renascimento é Palmer Luckey, fundador da companhia Oculus VR, criador do visor Oculus Rift e um autêntico fanático de tudo o que cheire a RV. Cansado da fraquíssima qualidade de imagem proporcionada pelos capacetes de realidade virtual que havia no mercado e, sobre-tudo, da lentidão da reação aos movimentos do utilizador, este jovem californiano tomou a decisão de criar o seu próprio modelo.

Em 2011, aos 18 anos, Luckey desenhou o pri-

meiro, que serviria de base ao projeto Oculus Rift. Durante os meses que se seguiram, con-cebeu novas versões do protótipo, melhorou a sensação de 3D, conseguiu que mostrasse gráficos com maior resolução, acrescentou-lhe uma ligação sem fios e reduziu o peso e o tama-nho. Graças às redes sociais e aos contributos dos adeptos de transformar componentes informáticas, o que fora apenas um projeto pessoal adquiriu uma sólida reputação.

O nome do sexto modelo incluía o termo Rift, em referência à rutura que representava com tudo o que fora feito anteriormente. Nessa altura, Luckey decidiu oferecer kits do produto a potenciais investidores através de um portal de micromecenato, e fundou a Oculus VR. A sua pretensão inicial era conseguir financiamento para uma centena de unidades. Nunca imaginou que o dispositivo que criara se transformaria num fenómeno de massas.

MÁQUINA DE FAZER DINHEIROUm dos primeiros engenhos foi parar às mãos

de John Carmack, programador de famosos jogos de vídeos, como a saga Doom. Carmack anunciou na feira E3 de 2012 a sua intenção de lançar uma versão modificada de Doom 3, com-patível com dispositivos de RV como o Oculus Rift. O projeto era muito mais ambicioso do que tudo o que fora feito nesse campo. Todos os olhares se voltaram para Luckey, que teve de deixar os seus estudos universitários para se concentrar no monstro que acabara de criar.

Os grandes executivos da indústria dos

Realidade alternativaNo Gabinete de Inteligência Naval, da Marinha dos Estados Unidos, os técnicos do projeto Blueshark usam uma versão especialmente adaptada do visor Oculus Rift para testar o sistema de controlo de um navio.

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videojogos começaram a interessar-se pelo seu protótipo. Foi o caso de Gabe Newell, diretor executivo da Valve, uma empresa norte-ame-ricana que está a revolucionar o setor com a sua plataforma PC Steam. A campanha lançada por Luckey arrecadou cerca de 2,5 milhões de dólares, 974 por cento acima do objetivo que estabelecera para produzir os primeiros kits. A fim de satisfazer todos os pedidos, a empresa cresceu e chamou a atenção de outro jovem empreendedor: Mark Zuckerberg.

Assim, em março de 2014, o fundador do Facebook adquiriu a totalidade da Oculus VR por 2000 milhões de dólares. A partir do momento em que a compra foi oficialmente anunciada, as coisas aqueceram. Alguns cria-dores proclamaram de imediato que deixariam

Interessante 89

de trabalhar em versões dos seus jogos para o Oculus Rift. Talvez o caso mais falado fosse o de Markus Persson, autor do famoso Mine-craft. Contudo, acabou por desistir da ideia e soube-se que, afinal, vai haver uma edição do jogo num cenário de realidade virtual. Por sua vez, Carmack deixou a Bethesda, para a qual entrara como trabalhador independente, e assinou pela nova companhia. A reação da Bethesda foi denunciar o genial programador por alegado roubo de ideias.

A fim de acalmar as coisas, o Facebook e a Ocu-lus VR fizeram alguns anúncios importantes: primeiro, que o Facebook tenciona vender o visor a preço de custo. A ideia de Zuckerberg não é obter lucros com o dispositivo, mas apro-veitá-lo para dar origem a uma comunidade

gigantesca. De facto, os planos da companhia são vender cerca de um milhão de exemplares do Oculus Rift nas edições iniciais, até conseguir introduzir vários dispositivos em cada agre-gado familiar. Aliás, Brendan Iribe, cofundador da Oculus VR, afirmou que o ideal seria que mil milhões de pessoas pudessem jogar online em simultâneo, todos com os seus Oculus Rift diante dos olhos.

Os números parecem excessivamente oti-mistas, mas o certo é que, devido à gigan-tesca dimensão do projeto, soube-se há alguns meses que a Oculus VR e o Facebook andavam à procura de sócios tecnológicos para conse-guirem satisfazer os pedidos dos utilizadores. Os responsáveis pela Oculus VR consideram-se bons criadores de hardware e software, mas

admitem que são mais fracos em processos de fabrico. Por isso, pretendem licenciar o invento para que outros o produzam. Um dos primeiros gigantes a manifestar interesse foi a Sony, que em breve poderia fabricá-lo em grande escala e vender o seu próprio visor.

ENTRAM OS PESOS PESADOSO interesse despertado pelo Oculus Rift, ou

seja, a sensação de estar a viver uma profunda mudança tecnológica, não passou desperce-bida dos pesos pesados da diversão digital. Em seguida, a Sony pensou dotar a sua última consola, a PlayStation 4, de um visor de reali-dade virtual exclusivo. Por enquanto, é conhe-cido por Project Morpheus: um aparelho que combina vários conceitos novos com os que a

SUPER90

Centenas de milhões de pessoasviverão em mundos digitais

multinacional japonesa já tinha vindo a desen-volver. Por um lado, trata-se de um dispositivo estereoscópico de alta resolução, o que não representa um desafio novo para a Sony. De facto, a empresas dedica-se há bastantes anos à produção de leitores individuais de vídeo de elevada qualidade. Um dos seus modelos mais avançados e ergonómicos, o HMZ-T3W, permite ver filmes em 3D e proporciona uma magnífica sensação envolvente. O preço ronda os 1300 euros.

Por outro lado, o sistema de reconhecimento de movimentos do Project Morpheus poderá recorrer à tecnologia desenvolvida para os comandos Move, utilizados pela PlayStation, e à câmara da própria consola. Esta encarregar--se-ia de traçar um mapa tridimensional da sala em que o utilizador se encontra, de situar per-manentemente a sua posição e de captar os sinais luminosos emitidos pelos comandos e pelo visor. Além disso, com a sua PlayStation 4 plenamente estabelecida no mercado (em

menos de um ano, vendeu mais de dez milhões de unidades), a Sony já teria percorrido parte do caminho exigido para a comercialização de um produto deste tipo.

Joga também a seu favor o facto de a rea-lidade virtual ser, em princípio, perfeitamente compatível com praticamente qualquer jogo do mercado. Vejamos o caso, por exemplo, dos títulos de disparos na primeira pessoa, como os da saga Call of Duty. A tecnologia que serve para captar movimentos não é a mais adequada para ser utilizada como único sistema de controlo neste género de jogos. Com um sistema de RV, as coisas mudam de figura, e muito, pois o uti-lizador pode integrar-se por completo na ação.

Assim, em teoria, a Sony já disporia, quando chegar a altura de lançar o Project Morpheus, de uma ampla base formada por vários milhões de potenciais jogadores e por uma grande quantidade de títulos que poderiam ser adap-tados sem grandes problemas. O aspeto nega-tivo é que, ao contrário do que acontece com o

Oculus Rift, que funciona com um computador, o Project Morpheus reduz-se à PlayStation 4, uma plataforma fechada e que não pode ser ampliada. Isso significa, em princípio, que não se pode alterar o seu hardware (por exemplo, a placa gráfica), o que constitui um obstáculo.

GUERRA DE PREÇOSContudo, não nos podemos esquecer da

espinhosa questão do dinheiro. Quanto deveria custar este visor de realidade virtual, de elevada qualidade, quando for lançado no mercado? Atualmente, o kit de desenvolvimento do Ocu-lus Rift (o modelo DVP Kit 2) pode ser encon-trado por 350 dólares. Poderá a companhia nipónica oferecer um produto semelhante a esse preço? Só a consola de que estamos a falar já implica uma despesa na ordem dos 400 euros. Seria estranho que a empresa se arris-casse a disponibilizar um acessório com um preço semelhante ao do hardware principal.

A realidade virtual, em especial no que se

Gruta das maravilhas. O sistema de visualização CAVE2, da Universidade do

Illinois, permite observar de forma imersiva o comportamento de uma partícula de ouro.

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refere à indústria dos vídeojogos, lançou um desafio em que participam, por enquanto, outros três grandes concorrentes: Microsoft, Nintendo e Valve. O colosso de Redmond pos-sui como trunfos as bem-sucedidas consolas Xbox e as possibilidades, praticamente infini-tas, proporcionadas pela total compatibilidade de qualquer desenvolvimento com o Windows. A Nintendo, apesar da crise que atualmente atravessa, continua a ser uma das referên-cias indiscutíveis em tudo o que diz respeito ao setor do ócio eletrónico. A Valve começa a impor-se na parte do mercado dedicada aos jogos para PC, e estabeleceu uma série de especificações para os programadores desen-volverem um misto de computador e consola especialmente pensado para jogar.

A única das três empresas a anunciar as suas intenções foi a Valve, que está atualmente a produzir o seu próprio modelo de visor de RV. Em termos gerais, o projeto é muito seme-lhante ao da Oculus VR: óculos especiais e uma câmara que determina a posição do utilizador. Não há uma data prevista para a sua comer-cialização e, por enquanto, também não se conhecem muitos pormenores. Seja como for, o plano da empresa é oferecer uma alternativa

Faça você mesmo!

E nquanto as grandes empresas se dedicam ao fabrico de dispositivos

de realidade virtual de alta qualidade e desempenho (e elevado custo), outros entusiastas da tecnologia encontraram uma fórmula para fazer algo semelhante mas a um preço mais reduzido. Pensemos nos populares óculos estereoscópicos do século XIX. Para conseguir um efeito 3D, era apenas necessário ter duas lentes, um suporte e um par de fotos ligeiramente diferentes, uma para cada olho. Agora, imaginemos que essas fotos possuem movimento e que, além disso, vêm pre-paradas para saber quando o utilizador mexe a cabeça: é exatamente isso que faz o Oculus Rit. É possível obter o mesmo efeito com um telemóvel. É o que propõe o projeto Cardboard, que aproveita uma técnica 3D side-by-side, na qual o ecrã do smartphone ica dividido em dois. Desse modo, cada parte mostra uma das ima-gens que formam a visão estereoscópica.

ao Oculus Rift, mas sem excluir este equipa-mento da sua plataforma, que seria compatí-vel com ambos os periféricos.

Quanto à Microsoft, sabe-se que os seus engenheiros estão a trabalhar num conceito conhecido por Project Fortaleza (também designado por Kinect Glasses), que combina diferentes abordagens à realidade virtual de uma forma extremamente interessante. Fun-damentalmente, a iniciativa utilizaria um equi-pamento que funcionaria como os óculos inte-ligentes Google Glass e que se poderia utilizar em conjunto – ou não – com a consola Xbox One. Deste modo, o dispositivo ofereceria ao utilizador informação adicional sobre o que estivesse a ver. Por exemplo, no caso de um jogo, mostraria as personagens com que esta-mos a interagir ou qualquer outro elemento no meio da nossa sala.

Das três grandes marcas referidas, a Nin-tendo é, sem dúvida, a que mais está a demorar para dar um passo em direção à RV. Os seus responsáveis não parecem entusiasmados com a tecnologia, ou com o seu atual grau de evolução, apesar de algumas das figuras mais destacadas da companhia, como Masahiro Sakurai, que dirigiu o título Super Smash Bros.,

estarem convencidas de que se trata da tec-nologia do futuro e que se devia apostar forte na RV. Seja como for, o sistema de reconheci-mento de movimentos do comando da Wii U ou da consola portátil Nintendo 3DS já oferecem aspetos de algo que estaria a meio caminho entre a realidade virtual e a aumentada.

Os visores de RV podem ser utilizados para muitas coisas, desde realizar experiências sociais a simulações de combate, mas a futura comercialização em massa está nitidamente relacionada com a sua utilização para fins lúdi-cos. De momento, já é possível testá-los com uma dezena de modernos jogos que permi-tem avaliar as possibilidades dos dispositivos, como o aguardado Alien: Isolation, baseado no mundo do filme Alien – O Oitavo Passageiro. Os resultados são espetaculares. Para conseguir que um jogo se torne viciante, nada melhor do que meter o jogador lá dentro... literalmente.

Não se sabe ao certo a data em que nos poderemos transformar nos seres hiperconec-tados de que falava a literatura ciberpunk dos anos 80, mas tudo indica que estão próximas. Este poderá ser o ano decisivo para a nova rea-lidade virtual.

V.S.

Quando se vê assim um ilme, temos uma sensação de profundidade semelhante à pro-porcionada pela Nintendo 3DS. Em htp://bit.ly/1nPM9vs explica-se como construir um visor 3D com um smartphone, elásticos, duas lentes, ímanes e umas tiras de velcro.

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Após recortar as peças de cartão e dobrá--las segundo as instruções, basta ixar o telemóvel e as lentes. Na mesma página, pode descarregar um kit de desenvolvi-mento de sotware, para fazer as suas pró-prias aplicações.

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Tecnologia

Medir a eficácia de um quebra-gelos ou analisar a manobrabilidade de um superpetroleiro são

dois dos tipos de testes que se realizam na HSVA, uma empresa alemã que ajuda a conceber navios a partir de maquetas, programas informáticos

e tanques de água e gelo.

Como desenhar o navio perfeito

Superbarcos à ESCALA

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Quebrar o gelo. Soisticadas técnicas de congelação permitem simular os

desaios enfrentados pelos quebra-gelos. O Departamento de Tecnologia Ártica da

HSVA possui dois tanques de 78 e 30 metros de comprimento. Os seus peritos analisam a dinâmica dos mares gelados

e dos icebergues, assim como o comportamento dos navios nessas águas.

A resistência dos submarinos alemães que tanto dano causaram na Pri-meira Guerra Mundial foi avaliada nos seus tanques de água com 350

metros de comprimento. Hoje, muitos dos sofisticados navios capazes de navegar nos oceanos polares testam as suas característi-cas nas mesmas instalações, que reproduzem fielmente as condições dos mares mais frios.

Há um século que a empresa alemã Ham-burgische Schiffbau-Versuchsanstalt (HSVA) oferece os seus tanques e túneis de cavita-ção (usados para estudar hélices e lemes) aos construtores de todos os tipos de navios, que desafiam com modelos à escala as possibilida-des das suas embarcações. Os resultados dos testes permitem aos engenheiros navais afi-nar o desenho das suas criações antes de elas serem lançadas à água.

Durante um século cuja primeira metade foi

marcada por duas guerras e pela destruição cau-sada por elas, a empresa de Hamburgo passou por altos e baixos que quase a afundaram nos anos 20, contribuiu para o milagre alemão que reconstruiu o país após 1945 e beneficiou da prosperidade da construção naval nos anos 70.

Na atualidade, os avanços nos programas informáticos de dinâmica de fluidos permitem--lhe melhorar ainda mais os testes de cascos e propulsores. Resultado: navios cada vez mais complexos e eficientes. A HSVA analisa a flu-tuação, a flexibilidade e a propulsão de barcos para clientes de todo o mundo, mede o seu comportamento dinâmico e a sua manobrabi-lidade em quaisquer condições, tem na flores-cente navegação ártica uma das suas maiores apostas de futuro, e os quebra-gelos feitos com a sua ajuda chegam aos locais mais inós-pitos do gélido mar que rodeia o polo norte.

F.J.

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Geradores de ondasproduzem

tempestades em miniatura

Sem medo da tempestadeO Ulstein Group, norueguês, constrói grandes navios de abastecimento e mantutenção para plataformas offshore, como as explorações petrolíferas em alto mar. A lutuabilidade dos seus cascos patenteados XBow (em cima) é testada em profundidade nos tanques da empresa de Hamburgo. A madeira, de que antigamente eram feitos os barcos reais, serve hoje para construir as maquetas que permitirão aperfeiçoar os desenhos dos engenheiros. À direita, especialistas da HSVA empregam uma espécie africana para reproduzir a forma de um casco desenhado no computador.

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Às voltas com a tecnologia. A propulsão naval é um assunto complexo, que combina a hidrodinâmica e o artesanato de precisão. Quando as hélices de madeira saem dos tornos, um funcionário altamente especializado remata-as com limas e lixa, até icarem exatamente como foram desenhadas, com uma precisão que chega aos centésimos de milímetro (em cima). O rendimento dos propulsores é depois examinado em túneis de cavitação hidrodinâmica tão grandes (11 metros de comprimento, 2,8 de largura e 1,6 de altura) que podem conter modelos à escala real. As hélices giram tão depressa que fazem ferver a água que as rodeia (em baixo).

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Marcas & Produtos

A Seaside acaba de inaugurar uma loja na baixa lisboeta. É no Rossio, 57, que o novo espaço da marca se apresenta com enorme diversidade

de calçado para senhora, homem e criança, carteiras, cintos e chapéus, entre outros acessórios de moda, além de vasta secção de modelos casual e para desporto. Trata-se de um re styling da anterior loja, surgindo agora num look totalmente diferente, sofisticado, tal como outros recentes espaços da nova “gera-ção” Seaside, mais modernos e funcionais para conforto dos clientes. Na reabilitação da loja foram mantidos os traços originais do que foram o antigo Café Portugal e a loja Valentim de Carvalho, com a utilização da mesma caixa de escada e das mesmas cores. Sofia Ribeiro (na imagem) e Pedro Teixeira, embaixadores da marca, estiveram presentes, distribuindo autógrafos e sorrisos e deixando-se fotogra-far com os fãs.

Seaside no Rossio

Em busca de beijos?

A agência matrimonial Amore Nostrum está a realizar no Facebook, até ao final de abril,

um passatempo em que o beijo é o grande pro-tagonista. Dirigido a todos os singles (solteiros, viúvos ou divorciados) que queiram deixar de o ser, e que estejam nesta primavera à procura do seu “amor-perfeito”, o passatempo oferece a cada participante uma Consulta de Análise de Perfil, em que os pretendentes explicam qual o tipo de pessoa que consideram ideal para uma relação séria. Os interessados só têm de escre-ver uma frase criativa que inclua as palavras “Amore Nostrum”, “agência matrimonial” e “beijo”ou “beijos”.

Dia lorido

N a edição especial limitada Swatch Dia da Mãe, Roses4U, a toalha de piquenique

está estendida na relva, as flores arranjadas e a boa disposição vem incluída no menu. Todas as mães vão adorar este presente: as suas flores não necessitam de jarras nem de serem regadas. As rosas substituem os números e um pequeno

círculo de botões de rosa no interior do mostra-dor simboliza o forte elo entre mãe e filho, que, mesmo na idade adulta, nada pode desvanecer. O tema floral está representado em toda a bra-celete de tecido, com flores cor de rosa borda-das sobre a toalha de piquenique aos quadrados azul-turquesa e branco. €58.

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Foto do Mês

Na mina a céu aberto de Hambach (Alemanha), as maiores escavadoras do mundo (220 metros de comprimento, 96 de altura, 13 500 toneladas de peso) perfuram o terreno para extrair lenhite, um carvão mineral muito poluente, mas apreciado

no país após a paralisação do programa nuclear alemão, devido ao acidente de Fukushima. A mina estende-se ao longo de 85 quilómetros quadrados e contém 2500 milhões de toneladas de lenhite, a uma profundidade de até 450 metros.

Profundas cicatrizes

Diretor Carlos Madeira ([email protected])Coordenador Filipe Moreira ([email protected])Colaboraram nesta edição Francisco Mota, Máximo Ferreira e Paulo Afonso (colunistas), Abraham Alonso, Alfredo Redinha, Angela Posada-Swafford, Francisco Cañizares, Francisco Jódar, Isabel Joyce, João Pedro Lobato, Joaquim Semeano, Jorge Nunes, Pablo Colado, Pablo Herreros e Victor Sánchez.Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Sara Tomás ([email protected]) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

Diretora de Publicidade Joana Pimenta Araújo ([email protected])Gestoras de contas Paula Duarte ([email protected]) e Susana Ma-riano ([email protected])Assistente Comercial Elisabete Anacleto ([email protected])

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