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EINSTEIN N.º 212 Dezembro 2015 Mensal Portugal € 3,50 (Continente) Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento 5 601753 002096 00212 www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante O regresso de Um século depois, nem tudo vai bem com a relatividade Clima O ativista adolescente Saúde Cuide do seu nariz Oxitocina A hormona que manda em nós Ideias O passado e o futuro

Super interessante nº 212

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Page 1: Super interessante nº 212

EINSTEIN

N.º 212

Dezembro 2015

Mensal Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

5601753002096

00212

www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante

O regresso de

Um século depois, nem tudo vai bem com a relatividade

Clima

O ativista adolescente

Saúde

Cuide do seu nariz

Oxitocina

A hormona que manda em nós

Ideias

O passado e o futuro

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2 SUPER

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3Interessante

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Observatório 4

O Lado Escuro do Universo 5

Motor 8

Super Portugueses 10

Histórias do Tejo 14

Caçadores de Estrelas 16

Sociedade Digital 20

Flash 48

Marcas & Produtos 98

H abituámo-nos de tal modo a considerar a teoria da relatividade geral como uma das criações maiores do génio humano que, para muita gente, é into-

cável. Acontece que, em ciência, não há intocáveis. Basta começarem a surgir pe-quenas discrepâncias entre as previsões e as medições para que toda a maquinaria se ponha em marcha. A relatividade geral surgiu há precisamente um século. Deu boa conta dos fenómenos gravitacionais à escala macroscópica e explicou muitas das diferenças entre as observações e a mecânica newtoniana, como a precessão do periélio de Mercúrio. Além disso, são as correções relativísticas que nos permitem usar satélites para fazer navegação por GPS. A teoria está bem ancorada nos resul-tados práticos. No entanto, ninguém conseguiu “cosê-la” com a mecânica quântica. À escala atómica, a relatividade não faz sentido. No entanto, a mecânica quântica também tem provas dadas. Além disso, vários investigadores têm apontado, aqui e além, nos últimos anos, variações mínimas entre a velocidade ou a posição de naves espaciais e aquilo que a teoria indica. Por fim, resultados divulgados em outubro parecem indicar ter sido alcançado algo que a relatividade geral impede: ação ins-tantânea à distância. Para a relatividade, nada pode viajar mais depressa do que a luz no vácuo, nem mesmo informação. Pois os cientistas conseguiram demonstrar, numa experiência considerada pelos seus pares como irrepreensível (sem erros de medição nem de conceção), que, ao fazer colapsar a função de onda de um eletrão, essa informação se transmitia instantaneamente a outro, situado a 3,7 quilómetros de distância, com o qual estivera emparelhado. Bingo! E agora, sr. Einstein? Vamos ter de revogar alguma coisa, não é? C.M.

Olhar para cima O concurso de astrofotograia do Real Observatório de Greenwich recebeu este ano 2700 fotos. Mostramos-lhe algumas das que foram premiadas. Pág. 24

Sociedade de vigilantesA paranoia social transforma-se facilmente num sentido geral de insegurança. Um bom exemplo são os controlos nos aeroportos: não servem para apanhar terroristas, só nos fazem sentir mais indefesos. Pág. 74

EINSTEIN

N.º 212

Janeiro 2016

Mensal Portugal

€ 3,50 (Continente)

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

5601753002096

00212

www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante

O regresso de

Um século depois, nem tudo vai bem com a relatividade

Clima

O ativista

adolescente

Saúde

Cuide do

seu nariz

Oxitocina

A hormona que

manda em nós

Ideias

O passado

e o futuro

Centenária e revogávelDezembro 2015212

SECÇÕES

www.superinteressante.pt

Frio, frio, frio!Diversas equipas de cientistas esforçam-se por chegar mais perto do zero absoluto e saber como se comporta a matéria nessas condições. Pág. 30

FÍSICA

O puzzle não encaixa42

Retratos de estrelasFOTOGRAFIA 24

www.assinerevistas.com

Por este rio abaixoOs rios, as ribeiras e as suas margens são importantes ecossistemas. Só em tempos recentes começaram a ser estudados e revelaram muitas surpresas.Pág. 80

Assi e c u c ique!

CORPO

Uma saúde de narizes68

DOCUMENTO

20 ideias revolucionárias49

Uma ideia de génioFÍSICA 36

FÍSICA

Um frio de rachar30

BIOTECNOLOGIA

Como curar o incurável44

PSICOLOGIA

Investigar a oxitocina62

PSICOLOGIA

Vigie a paranoia74

JO

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AMBIENTE

Clima: geração Guardiães88

FOTOGRAFIA

O mundo em grande94

AMBIENTE

Os tesouros do ribeiro80

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SUPER4

Observatório

Conflito e Sobrevicência foi este ano o tema da competição de fotogra-fia amadora organizada pela Real Sociedade de Biologia, de Londres.

Fotógrafos de todo o mundo aceitaram o desafio de retratar em grande plano a luta pela sobrevivência de diversas espécies vegetais e

animais (incluindo a humana), em grande e em pequena escala. Entre as fotos premiadas, podem ver-se os violentos combates de bovi-nos árticos, as guerras pela comida travadas pelas aves marinhas, parasitismo entre espé-cies. As que aqui mostramos tiveram um pré-mio ou uma menção honrosa.

A luta pela sobrevivência

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Luta entre dois machos de boi-almiscareiro na época de acasalamento (agosto), no Parque Nacional de Dovrefjell-Sunndalsfjella (Noruega).

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Pescadores do Sri Lanka passam o dia à espera de apanhar um peixe.

Duas rãs copulam sobre uua folha de lótus em Barrackpore (Bengala Ocidental, Índia).

Page 7: Super interessante nº 212

Interessante 5

E ntre os candidatos a massa escura, me-recem destaque os axiões, dada a sua

capacidade de se transformarem em fotões (e vice-versa) na presença de fortes campos magnéticos, no que se conhece por efeito Primakoff. Deve-se a Peccei e Quinn a ideia dos axiões, numa tentativa de explicar a au-sência da quebra das simetrias combinadas de carga e paridade (CP) em interações nucleares fortes. Sem carga elétrica e de massa muito baixa (entre os mili e os micro eletrão-Volt/c2), os axiões poderão ser pro-duzidos, por exemplo, no interior do Sol, através da conversão de fotões térmicos na presença dos campos de Coulomb de pro-tões e eletrões do plasma solar. Devemos assim esperar um fluxo de axiões na Terra, que seria detetado por instrumentos como o CAST, a sigla inglesa para Telescópio de Axiões Solares do CERN. Na presença do magnete supercondutor do CAST, os axiões (com uma energia média de cerca 4,2 keV) deviam converter-se novamente em fotões, mais propriamente em raios-X.Sendo muito baixas as suas interações forte e fraca, os axiões são “escuros” nesse sentido, mas primeiro está por provar a sua existência, veriicando-se depois se as suas propriedades correspondem ou não às restrições impostas pelas características da massa escura. Outro aspeto cativante dos axiões é que podem igualmente explicar em parte a energia escura, ao fazer “desapare-cer” parte da luz de supernovas distantes, que assim parecerão menos brilhantes, ou seja, ainda mais distantes. Com o Sol aqui tão perto, não espanta, portanto, que haja muitas experiências à procura dos axiões.Em outubro de 2014, uma equipa da Universidade de Leicester (Inglaterra) publicou uma análise muito completa dos dados acumulados ao longo de doze anos pelo XMM, um satélite de raios-X da Agên-cia Espacial Europeia. O resultado sur-preendente tem a ver com um excesso de raios-X observado apenas quando o XMM se encontra entre a Terra e o Sol, mas não quando se encontra do lado da Terra mais distante do Sol. Não sendo capaz de expli-car tais dados por outras formas, os autores admitem a hipótese de que tais raios-X resultem da conversão de axiões solares ao encontrarem o campo magnético terrestre. É possível, dizem uns. Outros argumentam que não, que provavelmente nos estará a faltar uma compreensão mais detalhada de interações no plasma residual do campo magnético terrestre.Enquanto não temos conirmação categóri-ca da existência dos axiões e se de facto são “material escuro” ou não, outra avenida a

explorar é a dos sinais de polarização linear da luz causada pelos axiões. Entre outros exemplos, anãs brancas com fortes campos magnéticos (apenas cerca de 3% do total da população de anãs brancas) devem emitir luz mais polarizada linearmente do que outras anãs brancas, caso os axiões existam. A polarimetria de raios-X produzi-dos por estrelas de neutrões (com campos magnéticos tipicamente mais intensos do que os das anãs brancas) é igualmente uma mina a explorar. O problema é que o luxo de raios-X de tais corpos estelares é muito baixo e infelizmente a polarimetria de altas energias (raios-X e gama) tem sido negli-genciada nas últimas décadas. Trata-se de uma das últimas janelas ainda por abrir em astrofísica, a ponto de merecer destaque em alguns programas de inanciamento de coordenação cientíica a nível da União Europeia. Naturalmente, pode-se perguntar se o Sol proporciona um luxo maior, ou mais facilmente observável, de tais sinais polarimétricos. Sabemos que as erupções de raios-X estão associadas a fortes campos magnéticos da coroa solar. Satélites como o RHESSI (da NASA) e o Coronas-F (Rússia) têm feito medidas da anisotropia dos feixes de eletrões e da coniguração magnética da coroa solar, para detalhar os processos de aceleração que aí ocorrem, na génese da emissão de raios-X. Lamen-tavelmente, porém, a situação com o Sol também não é totalmente satisfatória, pois as medidas polarimétricas sofrem de elevado ruído ou são feitas por detetores de baixa sensibilidade.Com alguns dos meus alunos, temos andado a pensar um pouco em tudo isto e estamos prestes a submeter uma proposta experimental, para voar num balão estra-tosférico inanciado pela NASA. Os nossos parceiros séniores, de peso, são de Portugal e de Itália, tratando-se para já de uma expe-riência mais passiva, para medir o ruído de fundo em termos de polarização gama e X. Conforme as coisas evoluírem, poderemos mais tarde pensar em algo dedicado ao Sol, para ver se podemos dar algum contributo instrumental para clariicar a polarização linear dos raios-X. Só depois de se concreti-zar essa multitude de passos é que a ciência poderá, talvez, icar mais perto de detetar axiões solares por via polarimétrica.

O Lado Escuro do Universo

Axiões e polarimetria de raios-X

PAULO AFONSO

Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográico, embora sob protesto.

Vermes parasitaram estes caracóis através do aparelho digestivo. A foto foi obtida em Genemuiden (Países Baixos).

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Alevins de peixe-palhaço refugiam-se em anémonas do mar das Filipinas.

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Observatório

Entre as constelações do Cisne e da Lira, brilha uma estrela desconcertante para os astrónomos que manejam o telescópio espacial Kepler e deteta-

ram o anormal padrão luminoso enviado pelo objeto, chamado KIC 8462852 e situado a 1480 anos-luz. O Kepler procura automaticamente estrelas que sofrem a intervalos regulares pequenas quedas de brilho durante umas horas ou uns dias, o que indica a possível presença de um planeta a orbitá-las. No entanto, com a KIC 8462852, passa-se algo raro: a sua lumi-nosidade cai 20 por cento, demasiado para poder ser um planeta, e o fenómeno dura entre cinco e 80 dias. Há quem acredite que o obscurecimento poderia dever-se a uma megaestrutura, construída por uma civilização mais avançada do que a nossa, por exemplo para recolher energia da sua estrela. Esta hipó-tese recupera uma das ideias mais inovadoras do físico Freeman Dyson, que especulou, nos anos 60, sobre a possibilidade de civilizações avançadas construírem centrais energéticas em torno das estrelas. No entanto, a maioria dos astrónomos deixa esta explicação para última opção. Entre as outras causas propos-tas, conta-se uma cintura de asteroides, uma nuvem de cometas ou, simplesmente, uma avaria do telescópio.

A microgravidade acarreta consequências físicas para os astronautas que passam longas tempo-

radas no espaço. Podem perder até dois por cento da sua massa óssea, e a sua coluna vertebral chega a cres-cer sete centímetros, visto que não tem de suportar o peso do corpo. Muitos deles acabam as missões com fortes dores de costas, e estima-se que tenham quatro vezes mais probabilidades de sofrer uma hérnia discal. Para evitar estes e outros males, o engenheiro aeroes-pacial australiano James Waldie concebeu o SkinSuit, que se cola ao seu utilizador como uma segunda pele e contraria parte dos efeitos da falta de gravidade so-bre o sistema músculo-esquelético. O SkinSuit aperta o corpo, desde os ombros até aos pés, com uma força semelhante à que sentimos quando estamos na super-fície terrestre. Após testes em voos parabólicos, foi experimentado em outubro pelo astronauta Andreas Mogensen, da ESA, na Estação Espacial Internacional (na foto). A análise dos resultados ditará se é ou não uma solução para o problema.

Ataviados para o espaço

A estrela

obscura

Duas explicações para o obscurecimento da estrela: uma esfera de Dyson para aproveitar a sua energia (em cima) ou uma nuvem de asteroides como a que rodeia Vega (em baixo).

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Page 10: Super interessante nº 212

Dentro da sua colaboração com o estado japonês, para a redução de acidentes de trânsito, a Toyota introduziu no seu modelo de topo

para o mercado doméstico, o Crown, um novo sistema que estabelece comunicação entre o automóvel e infraestruturas dedicadas ins-taladas nas ruas das cidades, para alertar o condutor de possíveis situações de perigo. A prioridade foi dada aos cruzamentos, onde acontecem 45 por cento dos acidentes mais graves, sobretudo nas situações de viragem à direita, cruzando o trânsito que vem em sen-tido contrário – não esquecer que, no Japão, se conduz à esquerda. Um emissor instalado em alguns cruzamentos deteta se está a che-gar tráfego de frente e emite um aviso para o painel de instrumentos do Crown que estiver prestes a virar à direita, possivelmente atrás de um camião e por isso sem visibilidade. O condutor pode assim travar e evitar a manobra de risco. Outra funcionalidade já em funciona-

Segurança cooperativa

Motor

8 SUPER

mento é o avisador de semáforos, que acon-selha o condutor do Crown com antecedência se deve acelerar ou travar, consoante o tempo que resta de sinal verde. Esta função tem tam-bém a vantagem de avisar da probabilidade de peões a atravessar uma passadeira, após uma viragem à direita. O sistema está em cres-cimento e prevê alertas para mais situações de perigo, bem como a comunicação entre automóveis. Neste caso, será necessário que ambos os automóveis estejam equipados com o sistema, o que permitirá ao carro da frente avisar o de trás, por exemplo em caso de engarrafamento súbito ou acidente na via. Esta função pode até funcionar através do cruise control adaptativo, que assim se torna também cooperativo. O governo japonês e os municípios tomaram a responsabilidade de financiar e instalar as infraestruturas de aviso nas ruas, existindo para já apenas vinte em Tóquio, com plano para aumentar o seu número para cinquenta até março de 2016.

Raio X

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A nova geração do Audi R8 mudou mais do que parece, olhando para a estética

exterior. Uma visão de raio-X permite des-cobrir as novidades tecnológicas do modelo mais desportivo da Audi, que se tornou um verdadeiro superdesportivo, rivalizando com adversários da Lamborghini e da Fer-rari. Custa 243 mil euros. 1 – Asa traseira em ibra de carbono. Em conjunto com o fundo plano, gera 140 quilos de downforce à velocidade máxima. 2 – Motor de 5,2 litros, V10 com injeção direta e indireta, a primeira para baixas car-gas. As duas funcionam a cargas intermédias e a segunda faz 85% do trabalho, a cargas

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BMW X1 18d sDrive

A BMW substituiu o seu SUV mais pequeno por uma nova geração, com o novo X1

a utilizar uma nova plataforma, conhecida internamente como UKL e partilhada com os modelos da Mini. Além de um claro aumento de eficiência, esta plataforma tem a grande diferença de passar a ter motor transversal, em vez de longitudinal, e de a tração às rodas traseiras ter mudado para as dianteiras, nas versões de tração apenas a duas rodas, como o sDrive aqui testado. Também existem versões xDrive de quatro rodas motrizes. O motor 18d é partilhado com outros modelos da marca, tratando-se de um 2,0 litros de 150 cavalos. A carroçaria aumentou claramente de altura, face

ao anterior BMW X1, tendo agora as propor-ções convencionais de um SUV e uma posição de condução mais alta, o que facilita a visibi-lidade sobre o trânsito. A colocação relativa de bancos, pedais, volante e alavanca da caixa é exemplar e, na versão conduzida, com caixa de velocidades automática de oito relações, a facilidade de operação é, logicamente, melhor. No interior, merecem destaque as funciona-lidades de ligação à internet, o amplo espaço disponível nos três lugares traseiros e a elevada qualidade dos materiais empregues, realmente no topo do segmento. Em termos dinâmicos, a condução em cidade mostra-se muito fácil, com boa resposta do motor Diesel a baixos regimes,

CARRO DO MÊS

Audi R8 V10 Plus

Page 11: Super interessante nº 212

A segurança rodoviária continua a ser um problema mundial. Onde quer

que haja carros, há acidentes e fatalida-des. Até agora, o papel das autoridades estatais na guerra a este problema tem--se resumido à rede viária e ao policia-mento: melhorar as estradas, melhorar a sinalética e depois policiar a velocidade máxima. É pouco, como evidentemente os resultados têm demonstrado. O estado japonês parece estar a tomar uma nova abordagem, motivado por um objetivo de redução das fatalidades nas estradas em quase metade, nos próximos quatro anos. São metas muito ambiciosas que o governo japonês traçou para si próprio, por isso não será suficiente con-tinuar com a mesma atitude de sempre, é preciso fazer algo de novo. As autori-dades decidiram, assim, instalar disposi-tivos eletrónicos capazes de comunicar com alguns automóveis, equipados para o efeito, de que o primeiro exemplo é o Toyota Crown, como se pode ler nestas páginas. Para já, é só o princípio deste programa, com a monitorização e o lan-çamento de alertas aos automobilistas em cinco tipos de situações de trânsito potencialmente perigosas, mas outras situações estão a ser estudadas e vão ser implementadas, com o número de dispo-sitivos instalados a crescer rapidamente. Como todas as boas ideias, no Japão, a sua disseminação é sempre muito acele-rada, e o estado não tem problemas em chamar a si a responsabilidade de finan-ciar o programa, em colaboração com as autoridades locais. Em vez de gastar o dinheiro em asfalto e betão, gasta-o em novas tecnologias na esperança de resolver o problema antigo com uma solução nova, em vez de insistir apenas na solução de sempre. O pragmatismo é uma das virtudes culturais dos japone-ses, sempre foi, e um motivo de inveja para aqueles que confundem o interesse público com o interesse do público.

Opinião

O papel do estado

altas. Tem desativação de cilindros, quando se rola nas quatro das sete relações superiores, para poupar consumos. Não tem turbocom-pressores, nem precisa, pois a potência máxima é de 610 cavalos às 8250 rotações por minuto. O Audi R8 V10 Plus atinge os 330 quilómetros por hora e acelera de 0 a 100 km/h em 3,2 segundos. 3 – Caixa de dupla embraiagem e sete relações, com patilhas no volante e função “bolina”, que desengata o motor da transmissão, quando se desacelera a ritmos constantes, para poupar gasolina. Consumo médio: 12,3 l/100 km. 4 – Travões de composto de cerâmica e ibra de carbono, perfurados. São 12,5 kg mais leves do que os travões de aço. Maxilas de seis êmbolos, à frente, e quatro, atrás.

5 – Transmissão às quatro rodas com embraiagem multidiscos e comando eletro--hidráulico para distribuir binários entre o eixo da frente e o de trás. Começa nos 20 por cento para a frente e 80% para trás, mas pode chegar aos 100% para um dos eixos, em situações de diferença extrema de aderência. 6 – Estrutura mista de alumínio com 13% de ibra de carbono nos pilares centrais do tejadilho, na parede de separação entre habitáculo e motor e no túnel central. É 10 kg mais leve do que se fosse toda em alumínio e 44% mais rígida. 7 – Suspensão de triângulos sobrepostos com amortecimento ajustável pelo condu-tor em três níveis.

Interessante 9

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FRANCISCO MOTA

Diretor técnico do Auto Hoje

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mas a suspensão podia ser um pouco mais confortável. Em autoestrada, a serenidade a bordo só é incomodada pelo ruído do motor, que consegue consumos muito bons, na casa dos quatro litros aos 100 qui-lómetros, respeitando os limites de veloci-dade. Passando para estradas secundárias com muitas curvas, o X1 é sempre seguro e previsível, mas não é tão divertido de guiar como os outros BMW X, o que poderá desiludir os condutores mais entusiastas. O preço base desta versão é de 41 194 euros, mas a lista de opcionais é tão grande e completa que facilmente se acrescentam vinte mil euros.

Page 12: Super interessante nº 212

SUPER10

D. Afonso Henriques fundou o reino

independente de Portugal, mas D. Afonso II,

seu neto, fez deste reino um verdadeiro estado.

Foi um “medieval moderno”.

SUPER Portugueses

P oucos terão sido os his to riadores ou mesmo os simples estudiosos que anotaram uma coin ci dên cia curiosa: o “reconhe ci men to internacional” de

D. Afon so Hen riques como rei de Por tugal es tá contido na bula Ma nifestis Pro batum (1179), do papa Alexandre III; ora, em 1218, o papa Ho nó­rio III enviou a D. Afonso II uma outra bula cujo título é exa ta mente o mesmo e que, essen cial­mente, confirma o que está ex pres so na pri­meira Manifestis Pro batum. Pode não ter sido por aca so que Honório III escolheu aque le nome, mas certamente o pon tífice não podia, então, apreciar o significado da ação do rei por tuguês. No entanto, a sua bula co mo que consagra uma segunda fundação…

Tudo isto seria mais conhecido dos portugue­ses se o terceiro rei de Portugal não fosse um enjeitado da história. Foi­o, essencial men te, por ser gordo e não ter no seu ativo um único feito militar.

O que se há de fazer com um rei assim, para mais numa época heroica de reconquista cristã e grandes feitos de armas? Fingir que ele não existiu. Mas esperem, o homem fez coisas que são, como hoje se diz, incontornáveis! Bem, nesse caso, fala­se dele o me nos possível, evita­­se atribuir­lhe diretamente os méritos e faz­­se do tipo uma exceção à gloriosa regra, uma ovelha negra.

O problema está em que o que sa bemos de Afonso II não cor res ponde a essa imagem e que é impossível não lhe atribuir os mé ritos de uma ação política que foi sua. Este homem, gordo por doença, sofrendo também de uma doença de pele (falou­se mes mo em lepra, mas há outras hi póteses), que não podia envergar uma armadura, foi um go ver nante enérgico mas também es pantosamente inovador. Ape sar da sua frágil saúde, não se poupou a

O segundo fundador

esforços – físicos, in clu sive – para cumprir os seus de veres. Aliás, talvez seja com ele que surge em Portugal a noção do dever e da res­ponsabilidade do governante.

Os nossos dois primeiros reis fo ram, essen­cialmente, batalhado res. Não que Afonso I e Sancho I não se tenham preocupado com a va lo rização e o povoamento do ter ri tó rio, mas a expansão para sul e a defesa das conquistas feitas ti nham prioridade, mesmo porque eram, perante a Santa Sé (o mes mo é dizer: perante a Europa), a ra zão de ser e a fonte de le gi ti mi­da de da jovem monarquia por tu gue sa.

Porém, após o governo de dois bons chefes militares, faltava ao no vo reino uma coerência interna, um corpo legislativo comum e uma defi nição clara do papel e da posição da coroa como poder cen tral. Sem esta estrutura básica, esse Portugal recém­nascido po dia facilmente implodir e desa pa recer como unidade política, des truído pelos jogos e pelas ambições dos senhores feudais.

AGILIDADE POLÍTICAFoi esse o grande trabalho de Afon so II, e não

se pode dizer que tivesse subido ao trono nas me lho res condições para o executar, bem pelo contrário: por um la do, os almóadas ameaçavam os rei nos cristãos da península e Por tugal não era exceção; por ou tro, o testamento de D. San cho I, prevendo larguíssimos benefí cios para a Igreja e para os fi lhos do rei, legítimos e bastardos, cons tituía um autêntico desafio à ideia de um poder central capaz de assumir plenamente as suas fun ções. Era, digamos, um “testa men to feudal”, mas o testamen tei ro, esse, tinha um espírito bem mais moderno. D. Afonso II não es ta va disposto a sacrificar a po si ção da coroa às decisões do pai, lar ga­mente motivadas por re mor sos e pelo medo

das puni ções com que os eclesiásticos o amea ça vam.

Logo após a sua aclamação, o no vo rei não perde tempo. Come ça por convocar cortes para Coim bra; são as primeiras de que há notícia em Portugal e talvez, até, ele as tenha convocado ainda em vida do pai. É destas Cor­tes de Coimbra (1211) que sai o primei ro corpo legislativo português – e é notável a moderni­dade do seu es pírito. A coroa afirma­se como so berana, acima dos grandes e dos pequenos, mas ela também obri gada a respeitar as leis.

Entretanto, D. Afonso II apressa­se a enfrentar o problema do tes tamento do pai. Paga a Roma os censos em atraso: o seu avô pro clamara o reino vassalo de São Pedro, mas nem ele nem o seu pai tinham sido vassalos pontuais nos pagamentos devidos. Ora, o rei precisa de uma trégua com a San ta Sé para resolver as ques tões que se levantam com os le ga dos de San cho I aos seus irmãos e irmãs.

A mais grave dessas questões re lacionou­­se com as heranças das infantas D. Teresa e D. Sancha, pois ambas tinham recebido vá rias terras e castelos. Ora, o rei con cordava em exe­cutar o testa men to, desde que elas lhe pagas­sem os direitos régios, e desde que aceitas­sem, para os castelos, alcaides que ele próprio no mea ria.

As irmãs não se submeteram: ape laram para Roma e também pa ra Afonso IX de Leão. Não caberá neste espaço a história desse conflito, que envolveu guerra ci vil, uma invasão estran­geira, em baixadas e conversações. Durou, aliás, todo o reinado, pois só veio a terminar em 1223, o ano da mor te de Afonso II.

Terminou com a vitória do rei, mas, entre­

O selo do rei foi usado em numerosos documentos deste monarca que se distinguiu como bom administrador do reino.

Page 13: Super interessante nº 212

Interessante 11

D. AFONSO II (1185–1223)

O rei e o reino

A ação legislativa de D. Afonso II veio estabelecer, sem am bi­

gui dades, um princípio que, na Eu ro pa medieval, estava longe de ser ge ralmente aceite: o reino não é propriedade do rei. A coroa es tá, co mo os seus súbditos, su jei ta à lei.É interessante considerar algumas das disposições legais estabe le cidas pelas Cortes de Coimbra de 1211. Assim, por exemplo: icava abo lida a prática de a fazenda régia ou os grandes senhores poderem ad quirir produtos a preço inferior ao justo valor; salvo no caso de ata que ao rei ou à família real, a co roa não podia tomar posse dos bens dos criminosos sentenciados, que per­tenceriam aos herdeiros le gí ti mos; o matrimónio passava a ser livre e ninguém poderia ser for ça do a con­traí­lo; era proibida a vin gança pri­vada; uma sentença de mor te ou de mutilação (que só po dia ser dada pelo rei) nunca seria exe cutada antes que se passassem trinta dias, para evitar que o monarca aplicasse a justiça “em sanha”, isto é, dominado pela cólera. Quanto às conirmações e às in quirições, visavam airmar o po der real e corrigir desvios que sub traíam rendimentos devidos à coroa, mas visavam igualmente fazer jus tiça a favor dos mais pobres, ví ti mas de abusos por parte dos gran des. Importa também mencionar o tes­tamento de D. Afonso II. Na épo ca, os testamentos reais eram fon tes de direito, e este, em particu lar, tem um profundo signiicado. O rei, que já estava doente, estabeleceu que, se morresse antes da maiori­da de do herdeiro da coroa, a tutela des se herdeiro e a tutela do próprio rei no (isto é, a regência) icariam en tregues aos vassalos. Por “vas­salos” entende­se, evi den temente, os nobres, pois é mui to cedo para se falar, politicamen te, em “povo”, mas o princípio as sim enunciado é muito claro: a re gên cia e a educa­ção do herdeiro não são assunto de família e sim as sunto de estado; o rei e a sua fa mí lia não são donos do reino.

tanto, custara muito san gue e muitos sacrifícios. É sig ni ficativo que D. Afonso II, po lí tico realista e hábil, capaz de jo gar aos avanços e recuos, haja si do tão persistente: tinha a per fei ta noção de que estava em causa a própria estrutura do estado, em bo ra certamente não lhe desse es ta designação.

Assim, recuando quando sentia me nos força, avançando quando ti nha vantagem, foi condu­zindo a luta contra as irmãs. Ao mesmo tem po, e para que as leis aprovadas em Coimbra não ficassem letra morta, começou a reorganizar a administração, apoiado no sábio chanceler Julião Pais, que já ser vira os seus dois anteces­sores.

Um tal trabalho, evidentemente, não se presta à composição de epo peias. Não é poético nem lírico criar um notariado para registar e dar valor

jurídico a documentos pri vados. Nem criar o posto de ta be lião régio. Na verdade, a maior par te do governo de Afonso II foi con sumida nestas e noutras tarefas semelhantes. Porém, se os poetas não encontraram nele inspiração – e, de facto, não encontraram –, a população encontrou grandes be nefícios, diretos e indi­retos, em vida do rei e no futuro. De fac to, parte do mérito de D. Dinis foi conseguir impor como prática aqui lo que fora concebido pelo seu avô, D. Afonso II.

Além da reforma administrativa e legislativa, além do conflito com as irmãs, o rei gordo tinha ain da ou tro objetivo prioritário: im por a auto­ridade da coroa ao al to clero e travar o exage­rado en ri queci men to da Igreja. O que, au to ma­ti camente, o colocava em con fli to com Roma. A segunda bu la Manifestis Probatum, já refe ri da,

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JOÃO AGUIAR

Este artigo foi publicado originalmente

na SUPER 122. João Aguiar faleceu em 2010.

marcou somente uma curta tré gua, tal como o pagamento do cen so em atraso não fora mais do que um prelúdio suave. Afonso II teve con­flitos com o bispo de Lis boa e com o arcebispo de Braga – que, aliás, fugiu para Roma – e foi ex comungado por duas vezes.

NÃO GUERREOU, MAS VIAJOUÉ verdade que, pela primeira vez desde a

fundação da monarquia, as tropas portuguesas com ba teram sem ter à frente o seu rei. Es te rei não tinha físico para isso, nem se interessou pela expansão do território. Protegeu as ordens mi li tares, que considerou impor tan tes para a defesa; respondeu ao apelo de Afonso VIII de Castela, en viando­lhe um contingente de tro pas que fez muito boa figura na cé lebre batalha de Navas de To lo sa, ao lado dos efetivos cas te lha­nos, aragoneses e franceses, que es magaram a ofensiva almóada; e per mitiu, sem se meter de ma sia do no assunto, que Alcácer do Sal fos se definitivamente con quis ta da aos mouros. Poderemos cri ti cá­lo, talvez, por não se ter apli ca do mais – afinal de contas, a sua au sência em Navas de To lo sa permitiu que Afonso VIII se apre sen tasse como o campeão da cris tan dade. A bem dizer, Afon so II de Portugal não estava in te res sado nesse pa pel, pelo menos antes de “con quis tar” o seu pró prio reino para a auto­ridade da coroa.

Nesta conquista interna, o rei não se poupou. Percorreu inces san temente o país para fazer con fir mações, ou seja, para avaliar a va lidade das doações feitas pelos mo narcas anteriores

e confirmá­las – ou não. Isto mexeu, e muito, com o orgulho e os interesses dos gran des senhores, incluindo os mem bros da hierarquia eclesiástica, mas D. Afonso II mostrou uma energia e uma persistência pou co comuns.

Não ficou por aqui. Em 1220, or denou que fossem feitas in qui ri ções sobre os direitos dos possui do res de terras. Tal como as con fir­mações, esta iniciativa foi uma ino vação em Portugal – que, de res to, se antecipou a outros reinos, como a França, em mais de vin te anos. Estas primeiras inqui ri ções poucos efeitos terão tido, tan to mais que o rei morreu três anos depois e que o seu sucessor ime diato, Sancho II, não mostrou ser propriamente um génio admi nis trativo, mas tiveram o grande mé rito de dar um exemplo e esta be lecer um princípio.

Num balanço, ainda que breve, po de mos dizer que Afonso II teve um reinado decisivo para a nossa his tória e foi, portanto, um ver da dei ro superportuguês. Exagero? Devaneio poético? Nem tanto. Foi preciso aquele homem obeso e na da guerreiro, mas inteligente, de ter minado e politicamente ho nes to, para estabelecer o primado do di reito sobre a força, para lan­çar as bases de uma administra ção capaz de assegurar aquilo a que poderíamos (se não fosse ana cró ni co) chamar “unidade na cio nal”. Tarefa pouco vistosa, mas muito, muito impor­tante.

SUPER Portugueses

Os sucessores

É curioso verificar a evolução po lítica portuguesa a seguir à mor te de

D. Afonso II. Como se sa be, os dois sucessores imedia tos fo ram ambos filhos seus: D. San cho II e D. Afonso III. Com San cho II, a prioridade volta a ser o esforço mi litar de reconquista; por mui­tos de feitos que possam ser apontados a este monarca, há que reconhecer que foi um ex ce lente general. Assim, o reino, cuja coerência interna e cuja má quina administrativa haviam si do alicerçadas por Afonso II, lan ça­se de novo na expansão ter ritorial. Porém, Sancho II foi um mau ad mi nis trador e um político inábil; es sas fa lhas, pagou­as ao ser afas tado do poder e substituído pe lo irmão, Afon so, conde de Bo lo nha. Em D. Afon so III operou­se como que uma síntese positiva dos reinados an te rio res, ou seja, es te rei juntou as qua lidades do pai e do irmão mais velho: capaci da de política e ad mi nis trativa as so ciada a uma al ta capacidade de comando mi li tar. Não se per deu, portanto, a orien ta ção dada por Afonso II, e se a este se devem as primeiras cortes de que há registo, ao seu ilho Afon so III devem­se as primeiras cor tes (Lei ria, 1254) em que toma ram as sento representantes dos con ce lhos, que assim passaram a par ti ci par na vida política, tal co mo o clero e a nobreza.

D. Sancho II foi um bom general, mas mau administrador. Afonso II não esteve presente n a batalha de Navas de Tolosa, mas enviou as melhores tropas.

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Nos tempos antigos, o Tejo foi palco de solenes e festivas entradas de princesas em Lisboa

– o equivalente, no passado, ao tapete vermelhoque leva as estrelas de Hollywood da limusina

à entrada da cerimónia dos Óscares.

Histórias do Tejo

Os casamentos reais eram de con‑veniência. Não importava a idade, a beleza ou a personalidade da princesa, desde que politicamente

fosse um bom partido – alguma estrangeira de uma família nobre de um qualquer estado europeu que, nesse momento, convinha puxar para o lado dos amigos. Muitas vezes, os reis nem conheciam a mulher ou menina com quem iam trocar falsos votos de fideli‑dade eterna. No caso português, quase todas as noivas reais tinham um ponto em comum: uma faustosa entrada em Lisboa pelo Tejo. Não havia melhor forma de impressionar uma futura rainha.

Entre os casamentos por interesse, poucos tiveram a importância do matrimónio do prín‑cipe Afonso, filho de João IV. O pai reconquis‑tara a autonomia de Portugal, face à dinastia dos Filipes, em 1640, e uma inteligente união do herdeiro à Coroa seria meio caminho andado para a sua consolidação (a morte de Teodósio, o primogénito do rei português, lançara o frágil Afonso na direção do trono). França, reino inimigo de Espanha, foi o terreno de caça escolhido: Luís XIV, o famoso Rei‑Sol e a cara do absolutismo (“O estado sou eu”…), partilhava a mesma vontade e disponibilizou uma menina do seu sangue. Em 1655, ficou então acordado o casamento entre Afonso e Maria Francisca Isabel de Saboia – duas crianças de doze e nove anos. No ano seguinte, João IV morreu e o filho tomou o seu lugar como Afonso VI, com a mãe, Luísa de Gusmão, a assegurar a regência até o rapaz completar 18 anos.

Em 1666, Maria Francisca, já com a mais do que casadoira idade de 20 anos, partiu de Paris para La Rochelle, na costa francesa do golfo

da Biscaia. Aí, em junho, foi assinado o matri‑mónio, por procuração, sem que os noivos alguma vez se tivessem visto. A nova rainha de Portugal embarcou, no dia 4 do mês seguinte, num navio oferecido pelo tio, o duque de Beaufort, rumo à capital portuguesa. Uma esquadra de dez vasos de guerra acompa‑nhava Maria Francisca, não fossem os espa‑nhóis tentarem intercetar o navio e raptá‑la. O dote real a bordo, equivalente a 324 contos de reis da época, tornava a jovem um alvo ainda mais apetitoso.

A viagem acabou por correr sem incidentes. A 9 de agosto, pouco mais de um mês após a partida, a frota entrou no Tejo e fundeou ao largo da Junqueira. O conde de Castelo Melhor, primeiro‑ministro, subiu à embarca‑ção, para cumprimentar a rainha e conduzi‑la ao Paço Real de Alcântara, onde a esperava Afonso. Contam os cronistas da época que a beleza de Maria Francisca entusiasmou o rei, embora os retratos da francesa não lhe pare‑çam fazer a devida justiça, certamente por incompetência dos artistas. Numa igreja do palácio, junto à margem do rio, o casal confir‑mou o casamento.

UNIÃO DE POUCA DURAA curta vida da união entre Afonso VI e

Maria Francisca ficou marcada pela maior humilhação pública que um rei português alguma vez passou – e provocada pela rai‑nha. Poucos dias depois do casamento, já a consorte se queixava ao seu confessor que dificilmente o país teria um sucessor ao trono. Seguiu‑se um julgamento em que mais de meia centena de testemunhas jurou que o rei era impotente. O papa anulou o casamento

por falta de consumação, Afonso VI abdicou e desterrou‑se nos Açores e Maria Francisca casou‑se com o cunhado, Pedro II, novo rei de Portugal. O pobre Afonso morreria em cati‑veiro em setembro de 1683; ironicamente, a sua desleal ex‑mulher sucumbiu a uma doença três meses mais tarde, com 37 anos.

D. Pedro II apanhou‑se viúvo, sem filhos varões, e imediatamente ordenou aos seus conselheiros que lhe procurassem esposa. Desta vez, o rei não escolheu às cegas: man‑dou um homem da sua confiança espreitar ao vivo as várias princesas disponíveis e escre‑ver‑lhe um pormenorizado relatório sobre cada uma. Optou pela germânica Maria Sofia Isabel de Neuburgo.

Em agosto de 1687, Maria Sofia (já casada com Pedro II por procuração) largou de Hei‑delberg e subiu o Reno até ao mar do Norte.

Passadeira de rainhas

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Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro(A Esfera dos Livros, 2013)http://bit.ly/1hrY8Zc

Uma embarcação emprestada pelo rei inglês, Jaime II, levou‑a a Plymouth, de onde reembar‑cou para Lisboa, escoltada por uma armada. Chegou à Barra ao final da manhã do dia 12 de agosto. O rio engalanou‑se para receber a rainha, em cujo ventre tantas esperanças tinham sido depositadas (Maria Francisca só dera à luz uma menina de frágil saúde, a prin‑cesa Isabel Luís, que morreria aos 21 anos). Navios de guerra cobertos por bandeiras encontravam‑se ancorados em perfeita posi‑ção de boas‑vindas, todas as igrejas lisboetas badalavam os seus sinos, foguetes faziam‑se ouvir nas alturas, canhões das fortalezas dis‑paravam salvas e centenas de barquinhos, de todas as cores, tamanhos e feitios, flutuavam no Tejo – o povo queria ver a sua soberana de perto, e quem que não possuía um simples bote acotovelava‑se nas margens.

Ao contrário do seu irmão Afonso, Pedro II mostrou‑se um cavalheiro e não hesitou em ir pessoalmente buscar a rainha. Com o caminho aberto por 24 bergantins coloridos repletos de membros da nobreza, a galeota real aproximou‑se do iate, impulsionada por dezenas de remadores vestidos com roupas berrantes e cintilantes. O rei subiu ao convés, desceu ao quarto da rainha, deu‑lhe a mão e acompanhou‑a afetuosamente até à galeota, rodeados por um povo em êxtase, num dos mais românticos momentos alguma vez pre‑senciados por aquelas águas. Desembarcaram num cais da Casa da Índia coberto por ricos e sumptuosos ornamentos, construído de pro‑pósito para o evento, e seguiram para a capela real do Paço da Ribeira, sempre debaixo das mais vivas e sonoras aclamações, para rece‑berem a bênção nupcial. Um matrimónio de

conto de fadas, sabe‑se, nem sempre resulta numa feliz e fiel vida conjugal: Pedro II teve várias amantes e perfilhou dois rapazes de pelo menos duas delas, enquanto durou o casamento.

Ao contrário da sua antecessora, Maria Sofia alimentou o amor e a admiração do povo, nos anos seguintes, mas não teve uma vida longa. Morreu 12 anos depois da gloriosa chegada a Lisboa, a dois dias de fazer 32 anos, e depois de gerar oito crianças (sublinhe‑se: em 12 anos), incluindo o futuro D. João V, o Rei‑Sol português.

FILHA DE IMPERADOR

A nora de Maria Sofia Isabel de Neuburgo percorreu praticamente os mesmos passos. Maria Ana de Áustria (Maria era um nome popu‑lar entre a realeza europeia), filha do impera‑dor alemão Leopoldo, casou com D. João V – seu primo direito pelo lado da mãe – por interposta pessoa, embarcou no mar do Norte, passou por Inglaterra e navegou para Lisboa, guardada por 18 navios.

Maria Ana viu a capital portuguesa pela pri‑meira vez a 27 de outubro de 1708, mas não contou com o mesmo empenho lírico por parte de João V que o seu sogro dedicara a Maria Sofia de Neuburgo. O rei não se terá dado ao trabalho de abandonar o Paço da Ribeira. A rainha desembarcou no meio dos festejos que a ocasião exigia e foi conduzida para junto do rei numa excursão de sete magníficos coches.

Nos anos seguintes, a frieza de D. João V para com a sua mulher manteve‑se – ao con‑trário do calor que reservava para as suas inúmeras amantes, incluindo várias freiras –, e a rainha encontrou um companheiro no pró‑prio Tejo. Ladeada pelas suas damas de com‑panhia, dava longos passeios pela margem do rio, tentava não perder o lançamento de novos navios dos Estaleiros da Ribeira e até

D. Amélia foi a última rainha portuguesa a chegar a Lisboa pelo Tejo, embora já sem vida. Morreu no exílio em 1951, e uma fragata foi buscar o seu corpo a França. Milhares de pessoas esperavam-na nas margens do rio.

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embarcava em bergantins para navegar nas reconfortantes águas do estuário, coisa ainda pouco comum à época. Num dia ou noutro, cruzava‑se no Tejo com o marido, que ia mui‑tas vezes de barco até Belém, Paço de Arcos e Carcavelos para pescar. Ou não.

Mais de cem anos após a chegada de Maria Ana (na verdade, 101 anos depois), outra rai‑nha chamada Maria protagonizou, no Tejo, mais um famoso episódio da história portu‑guesa – desta vez, usou a passadeira para fazer o caminho inverso. Estava‑se no final de novembro de 1807, as tropas de Napoleão palmilhavam os últimos quilómetros antes de Lisboa e a família real embarcava apressada‑mente na frota ancorada no rio, preparada para navegar para o Brasil e assim escapar aos franceses. Na lufa‑lufa, com toda a gente espicaçada pelo medo, a rainha Maria I soltou a frase “Não corram tanto, que vão pensar que estamos a fugir”. Por estas e por outras, a regência estava nas mãos do filho, João VI, e D. Maria I passou aos anais como “Rainha Louca”.

Passou‑se mais meio século e outra popu‑lar rainha consorte entrou em Lisboa pelo Tejo: Estefânia de Hohenzollern‑Sigmaringen, mulher de D. Pedro V , eternizada como “Dona Estefânia”. A sua chegada teve um interesse acrescido – a viagem serviu para inaugurar a corveta real Bartolomeu Dias, o primeiro

navio português com motor (a vapor, claro). A rainha de origem germânica, casada, como habitual, por procuração, assomou a Belém no dia 17 de maio de 1858, com 20 anos de idade (era dois meses mais velha do que o marido), e confirmou a união na Igreja de São Domingos, no dia seguinte, ao lado de D. Pedro V. O rei e a rainha não se conheciam, mas logo cres‑ceu um enorme carinho entre os dois jovens. Passeavam de mão dada, trocavam presentes, visitavam hospitais e faziam obras de caridade juntos. A felicidade durou pouco. Estefânia morreu de difteria 15 meses depois de chegar a Portugal, aos 22 anos; Pedro sucumbiu à febre tifoide dois anos depois, com 24.

EM VIDA E NA MORTE

A morte do casal, sem descendência, obri‑gou o irmão mais novo de Pedro a subir ao trono. A Luís I calhou em sorte a princesa italiana Maria Pia de Saboia. O casamento foi assinado por representantes seus, em Turim, no dia 27 de setembro de 1862. Dois dias depois, o rei enviou à rainha um longo e por‑menorizado programa das festas, para assegu‑rar que a italiana não seria surpreendida pelo protocolo, à chegada ao Tejo, marcada para o dia 6 de outubro. Referindo‑se‑lhe como “minha muito amada e prezada esposa” (é o que se chama amor antes da primeira vista – recorde‑se que nunca os dois se tinham sequer

visto), Luís I descreveu como decorreriam os cinco dias de comemorações. Assim que hou‑vesse notícias da sua aproximação ao Tejo, o seu irmão Augusto, duque de Coimbra, iria ao seu encontro, ainda ao largo da costa; à pas‑sagem da Barra, os fortes de São Julião e de São Lourenço disparariam salvas, seguidas por todas as outras torres e navios de guerra ancorados no rio; o rei e a sua família subiriam, então, a bordo, para cumprimentar a rainha; só no dia seguinte Maria Pia desembarcaria no Terreiro do Paço.

O casamento durou 27 anos, até a rainha consorte ficar viúva de D. Luís I. A italiana viveu para passar pela dolorosa morte do filho e do neto, no regicídio de 1908, e morreu exatamente nove meses após a implantação da República.

A sua nora, a inglesa Amélia de Orleães, viria a ser a derradeira rainha de Portugal e também a última a chegar a Lisboa pelo Tejo, mas já sem vida. Obrigada a abandonar Portugal em 1910, Dona Amélia morreu no exílio em 1951. A moderna fragata Bartolomeu Dias (homó‑nima da corveta que transportara as rainhas Estefânia e Maria Pia) foi buscar o seu corpo a França e transportou‑o para Lisboa. À chegada, milhares de pessoas esperavam‑na nas mar‑gens do rio – mesmo morta, a última rainha foi recebida com as honras das suas antecessoras, ao longo dos séculos.

Histórias do Tejo

Cinco dias de festa

O extenso programa das celebrações à chegada de Maria Pia a Lisboa, enviado

por D. Luís, não deixava de fora um único pormenor. “As fortalezas de mar e terra e os navios de guerra portugueses darão as salvas do estilo. Serão permitidas as iluminações, os repiques de sinos e quaisquer outras de‑monstrações de regozijo público. […] O primeiro dia de gala será o da chegada de Sua Majestade a Rainha, destinado para a mesma augusta senhora receber, a bordo da corveta que a conduz, a visita da Família Real. O segundo dia será do desembarque de Sua Majestade a Rainha para a sua entrada solene em Lisboa, e para a celebração das cerimónias da ratiicação do real consórcio e bênçãos nupciais. Em se anunciando telegraicamente estarem à vista as embarcações que conduzem Sua Majestade a Rainha e o séquito respetivo, sairá Sua Alteza Real o Sereníssimo Senhor Infante Dom Augusto a cumprimentar Sua Majestade. […] Assim que chegar à foz do Tejo, as torres de S. Lourenço e S. Julião da Barra, e todas as outras fortalezas e os navios de guerra darão uma salva real. Além destas

salvas gerais, cada uma das fortalezas dará, por seu turno, uma salva de continência quando pela frente delas passar a corveta real. Nos vasos de guerra, embandeirados de gala, haverá conjuntamente estas demonstrações do estilo, dadas pelas equipagens sobre as vergas. […] A corveta fundeará em frente ao Cais de Belém. Nessa mesma ocasião, Sua Majestade El‑Rei, acompanhado de toda a Família Real, e seguido de uma guarda de honra de cavalaria, sairá do Paço da Ajuda pa‑ra aquele cais. Ali estará preparada a galeota, em que El‑Rei há de embarcar com a Família Real, a im de irem a bordo da corveta visitar pessoalmente Sua Majestade a Rainha. No trânsito para a corveta Sua Majestade El‑Rei será acompanhado pelo Ministério, pelo Con‑selho de Estado e pelos oiciais‑mores da Casa Real, em escaleres do Estado.[…] Quando Sua Majestade El‑Rei embarcar na corveta, e quando dali sair para terra, as fortalezas e navios do Estado darão uma salva real. […] No dia seguinte, pelas nove horas e meia da manhã, a corveta, levantando ferro, virá anco‑rar em frente ao Cais das Colunas. Nesse dia,

terá lugar a entrada e receção pública de Sua Majestade a Rainha em Lisboa, desde o lugar do desembarque na Praça do Comércio até à igreja do extinto convento de S. Domingos, destinada para a celebração das cerimónias religiosas dos desposórios reais, e desde aque‑le templo até ao Paço da Ajuda. À entrada da Praça do Comércio, entre o Cais das Colunas e a estátua equestre, haverá um pavilhão para Suas Majestades receberem as felicitações da câmara municipal de Lisboa. No terceiro dia à noite tencionam Suas Majestades honrar com a sua Augusta presença o teatro nacio‑nal de Dona Maria II. No quarto dia, Suas Majestades receberão no Paço da Ajuda, pela uma hora da tarde, as felicitações do corpo diplomático, e seguidamente as homenagens da Corte, tribunais, câmaras municipais de Lisboa e Belém, e mais corporações e pessoas que costumam ser admitidas a semelhantes solenidades. À noite, irão Suas Majestades assistir à representação lírica no Teatro de S. Carlos. No quinto dia, Sua Majestade El‑Rei passará revista a todas as tropas formadas em grande parada no Campo Pequeno.”

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Não é certo que se torne visível a olho nu, mas constitui boa expectativa, tanto mais que se trata de um cometa que, quase de certeza,

não voltará a passar pelo Sol. Descoberto em finais de 2013, no âmbito de um programa de observação do céu desenvolvido na Universi-dade do Arizona, o cometa receberia o nome do referido projeto (Catalina) e não deixaria de ser seguido com o objetivo de lhe determinar a trajetória e prever a evolução do seu brilho à medida que se aproximasse do Sol.

Deduziu-se já que se tratará de um cometa recentemente saído da “nuvem de Oort”, uma região que envolve o sistema solar a uma dis-tância estimada em 50 mil unidades astronó-micas (uma unidade astronómica é a distância entre a Terra e o Sol) e que recebeu o nome do holandês Jan Oort, o segundo astrónomo

(depois de Ernst Opik) que, como justificação para o facto de surgirem cometas de todas as direções do espaço, sugeriu a existência de uma “nuvem” de aglomerações de material congelado, numa distribuição esférica em torno da parte central do sistema solar.

Para além disso, o que as observações já per-mitiram calcular indica que o Catalina tem uma “órbita aberta”, significando isso que, depois de ter passado o mais perto possível do Sol (a um pouco mais de 120 milhões de quilómetros), em meados de novembro, continuará viagem para o exterior do sistema solar, o que, a con-firmar-se, terá como consequência não voltar a ser visto da Terra.

Depois de visibilidade favorável para o hemis-fério sul do nosso planeta – por se projetar em regiões da esfera celeste visíveis daquela parte da Terra –, o Catalina emergiu recen-

Caçadores de Estrelas

Vem aí um cometa!temente no horizonte das nossas latitudes e elevar-se-á durante algum tempo. Não fosse o facto de a observação só ser possível de madru-gada, dir-se-ia ser uma boa prenda de Natal, mesmo que se tivesse de utilizar binóculos e telescópios para o contemplar. Mesmo assim, valerá a pena o sacrifício de retirar algumas horas ao sono e apreciar alguns aspetos que, para além do cometa, o céu proporcionará. Por exemplo, na madrugada do dia 8 de dezembro, uma eventual tentativa de ver o Catalina – por volta das seis da manhã – será, certamente, suspensa pela bela visão do brilhante planeta Vénus, situado ligeiramente acima do fino “crescente” que a Lua apresenta. Vénus estará então à esquerda de uma estrela notável – Espiga, da constelação da Virgem – sendo bem visível, um pouco mais acima e no alinhamento das três estrelas que constituem a cauda da

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O céu de dezembro

N o céu deste mês, já é possível ver, ao princípo das noites, as mais be-

las “constelações de inverno”, das quais se destaca Orionte, que aparece já com-pletamente acima do horizonte, embora ainda suficientemente “baixa” para que a atmosfera terrestre prejudique a nitidez da magnífica nebulosa (M42) que ocu-pa a região central da constelação, um pouco abaixo das “três Marias”, as três estrelas alinhadas que, em conceções antigas, correspondiam ao cinturão de um gigante ali imaginado. À esquerda – e um pouco acima –, encontra-se a cons-telação dos Gémeos, região do céu de onde parecerá “cair” a “chuva de estrelas cadentes” conhecida pelo nome de “Gé-minidas”, exatamente porque o radiante da “chuva” de meteoros que todos os anos ocorre com maior intensidade por volta de 14 de dezembro se situa naquela constelação. Se o céu não estiver nubla-do, a ocasião é ideal, não só porque toda a constelação está acima do horioznte e se podem ver meteoros em todas as di-reções, mas também porque, tendo sido Lua Nova três dias antes, ainda não há luar que “apague” os traços luminosos de menor intensidade. Como habitualmen-te, as previsões mais otimistas indicam que poderemos ver até 120 meteoros em cada hora, embora tal suposição impli-que a observação e contagem a partir de um local escuro e por um método (um grupo de várias pessoas ou um equipa-mento fotográfico que possa cobrir toda a esfera celeste) que garanta que se vê todo o céu, de modo a não “escapar” um. Cinco dias depois, no dia 19, ocorrerá outra “chuva”, então muito menos co-piosa, admitindo-se que a “taxa” seja de apenas cinco meteoros por hora. Nesta ocasião, o radiante situa-se na constela-ção da Cabeleira de Berenice, uma cons-telação constituída por estrelas de pe-quena luminosidade e que se situa perto

da extremidade da cauda da Ursa Maior. Nesta época, a Cabeleira de Berenice só se avistará a partir do início da madru-gada, o que significa que nas primeiras horas da noite se avistarão ainda menos meteoros do que os cinco previstos. Este mês de dezembro não terminará sem um outro fenómeno fácil de observar, que envolve alguma beleza e, neste caso, não exige qualquer sacrifício. Trata-se da ocultação de uma estrela notável pela Lua e… logo ao princípio da noite. No dia 23, antevéspera de Natal, pouco depois de o Sol se esconder, começam a ser visíveis as estrelas de maior brilho. Uma delas – Aldebarã, da constelação do Touro – estará ligeiramente à esquerda da Lua, então a dois dias de Lua Cheia e, devido ao deslocamento do nosso sa-télite natural em relação às estrelas, uma observação atenta e ao longo de algum tempo (uma ou duas horas, por exem-plo) permitirá ver o bordo esquerdo da Lua a tapar Aldebarã. O acontecimento começará às 18 horas, ou seja, nesse momento a estrela ficará por detrás da Lua e só voltará a ser avistada um pouco mais de uma hora passada, por volta das 19h05. O momento mais interessante será talvez o início da ocultação, pois a Lua, como ainda não alcançou a fase de Lua Cheia, não mostrará o bordo esquerdo completamente iluminado, do que resultará o “apagar” repentino da estrela numa parte do céu onde nada se vê. No entanto, a porção de limbo lunar não iluminada está lá! Depois, é esperar uns minutos mais do que uma hora para ver Aldebará reaparecer no bordo lunar que – à vista desarmada ou com binócu-los – se vê no lado direito, agora como que “colada” ao limbo e separando-se progressivamente da Lua que, em cada hora que passa, se deslocará para a es-querda uma porção de céu equivalente ao seu diâmetro.MÁXIMO FERREIRA

Diretor do Centro Ciência Viva de Constância

Vénus e a Lua, em 9 de outubro passado.

Ursa Maior, a estrela Arcturo, com a sua carac-terística coloração avermelhada. O cometa encontra-se sobre a linha imaginária que “liga” Vénus a Arcturo, embora mais perto do planeta do que da estrela.

Até ao final do ano, haverá boas condições para olhar o cometa, tendo em conta a sua altura acima do horizonte. Ainda que exista a expectativa de que ele se torne observável à vista desarmada, será melhor encarar a hipó-tese de ser necessário recorrer a binóculos ou telescópios ou, de preferência, a procurar locais (observatórios, clubes de astronomia…) onde existam pessoas e equipamentos que ajudem a alcançar o objetivo de forma o mais agradável possível.

Tirada em 11 de agosto, esta foto do Observatório de Siding Spring (Austrália) mostra o cometa Catalina, descoberto em 2013, em todo o seu esplendor.

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Mapa do Céu

Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta ique apon ta da para norte. Se se voltar em qual quer das outras direções (norte, este, oeste), pode ro dar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 21h30 do dia 5. A alteração que se veriica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

Como usar

As fases da Lua

Quarto Minguante Dia 3 às 07h40Lua Nova Dia 11 às 10h29Quarto Crescente Dia 18 às 15h14Lua Cheia Dia 25 às 11h11

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Interessante 21

NORTE

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SUPER22

O Parlamento Europeu deliberou há poucas semanas sobre a questão da neutralidade da rede e sobre o fim do roaming no espaço europeu.

O que foi mais noticiado na comunicação social foi a questão do roaming, mas o que era ver-dadeiramente importante era o resto! Em primeiro lugar, porque a regulamentação da neutralidade da internet afeta uma grande diversidade de serviços e, em segundo lugar, porque todas as estatísticas demonstram que hoje gastamos mais tempo a processar dados nos nossos telemóveis do que a fazer chama-das de voz, e “processar dados” significa, em termos práticos, “navegar na internet”.

Tim Berners-Lee, o criador da World Wide Web, emitiu uma declaração antes da votação, na qual defendia, como tem vindo a fazer nos últimos anos, que a manutenção de uma internet livre e aberta é fundamental para estimular a inovação e o progresso social, e que a neutrali-dade da rede é o elemento central que tem per-mitido manter a internet livre e aberta desde a sua criação.

À primeira vista e numa leitura superficial (que foi aquela que a maioria das pessoas fez), a legislação agora aprovada pelo Parlamento Europeu até afirma o objetivo de preservar a neutralidade da rede, mas, como refere Tim Berners-Lee, a verdade é que deixa muitos alçapões em aberto que permitem aos distri-buidores de sinal criar uma internet a várias velocidades. Ou seja, os operadores compro-metem-se a não discriminar no serviço que atualmente propõem, mas na condição de poderem criar “vias rápidas” para certos “ser-viços especializados”. Ou, em alternativa, pode-rem isentar do pagamento do tráfego certos serviços e fornecedores de conteúdos, dando--lhes assim uma vantagem comparativa sobre todos os concorrentes. Ambas as coisas são,

ao fim ao cabo, uma internet “não-neutral”.Há cerca de um ano, o debate sobre a neutra-

lidade da rede esteve igualmente muito aceso nos Estados Unidos e, após grande pressão da opinião pública e dos movimentos ativistas, o presidente Obama acabou por recomendar à entidade reguladora que categorizasse a inter-net como um serviço de telecomunicações e não como um serviço de informação, colo-cando-a assim a salvo das ameaças mais ime-diatas à neutralidade.

POR QUE RAZÃO É IMPORTANTE?Porque é que a neutralidade da internet é tão

importante? A questão fica mais clara quando se explica com um exemplo simples. Hoje em dia, considerando que os pacotes de informa-ção que circulam na internet são tratados todos da mesma forma, uma pessoa que decida criar um blogue tem as mesmas possibilidades de ser ouvida e encontrar audiência que qualquer website importante. Com uma internet a duas velocidades, esse blogue pessoal navegaria na “faixa lenta” da internet, enquanto o site de referência pagaria um preço para navegar na “faixa rápida”. O que isso significa, do ponto de vista social, é que o potencial nivelador e “empoderador” da internet seria muito mais limitado do que é hoje. Do ponto de vista eco-nómico, por outro lado, isso quereria dizer que novos serviços propostos na internet teriam de enfrentar uma barreira de entrada mais limita-dora do que aquela que enfrentam atualmente. Muitos dos novos serviços que todos os dias surgem na internet não poderiam despontar se esse fosse o contexto económico vigente.

Por isso é que podemos ver o estado atual da internet como uma oposição entre o valor social da abertura e o valor económico do fecha-mento. Por um lado, a abertura e a facilidade de acesso permitidas pela internet são um ele-

Sociedade Digital

Uma sinistra

aliança As duas grandes ameaças à neutralidade

da internet são os governos, por um lado,

e as empresas, por outro. Em nome de uma

internet mais “controlável” e mais “rentável”,

pode estar a formar-se entre ambas uma sinistra

aliança prejudicial aos cidadãos europeus.

mento que permite aumentar a capacitação dos indivíduos e das comunidades, constituindo portanto uma melhoria da sua vida social. Por outro lado, a abundância de informação (e de canais de informação) que a internet implica é um elemento desvalorizador dos modelos de negócio associados à produção e à distribui-ção de informação. Ou seja, a abertura gera a abundância, e o fechamento, neste contexto, gera uma forma artificial de escassez que torna mais viável a criação de novos modelos de negócio associados à internet. Se houver uma distinção entre quem pode navegar na “faixa rápida” da internet e quem só pode usar a “faixa lenta”, a internet assume uma natureza “escassa” que contradiz artificialmente não só os seus objetivos iniciais como os seus pró-prios fundamentos tecnológicos.

Estamos, portanto, perante dois interesses contraditórios: o interesse social em manter a abertura e a liberdade da internet, através da sua neutralidade, e o interesse económico no seu fechamento e aproveitamento comercial, de que a “internet a duas velocidades” é um

Tim Berners-Lee, o “pai” da WWW, defendeu em http://webfoundation.org uma internet livre e aberta para todos os cidadãos, mas a aliança entre governos e empresas levou a melhor.

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elemento estruturante. No fundo, trata-se de permitir ou não que a internet deixe de ser o meio de comunicação neutro e aberto que hoje é para se transformar em mais um canal de entretenimento para exploração comercial. É isso que está em causa quando se fala em “serviços especializados”, na regulamentação europeia recentemente aprovada.

POLÍTICA E NEGÓCIOSDesde que existe a internet tal como hoje a

conhecemos que se discute com alguma regu-laridade se a maior ameaça à sua abertura e neutralidade (à sua liberdade, portanto) virá do poder político, preocupado com a perda de controlo que a desregulação implica, ou do poder económico, assustado com a deterioração dos seus modelos de negócio tra-dicionais. Ora, o que torna a situação presente particularmente periclitante é o facto de o poder político e o poder económico terem neste caso um interesse simbiótico no con-trolo da internet e na sua compartimentação. Uma internet a várias velocidades, com acesso

reservado e regulamentado a cada uma delas, interessa tanto aos governos como às empresas. Esta realidade é ainda mais evi-dente na Europa, porque, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, nós não temos sequer um setor de internet suficientemente forte para defender a atual regulamentação de acesso à rede.

Compete portanto aos cidadãos, se real-mente acharem que os benefícios sociais de uma internet aberta e livre merecem ser defendidos, meterem mãos à obra para o faze-rem, seja apoiando as campanhas nesse sen-tido, seja pressionando os seus representantes políticos para o fazerem.

Como dizia Tim Berners-Lee num evento recente realizado na Europa, “se nós gasta-mos 95 por cento do nosso tempo a usar a internet, então devemos usar cinco por cento a defendê-la para que continue aberta e livre”. Porque uma internet que não seja aberta e livre, que não esteja igualmente ao alcance de todos os cidadãos, não é a internet tal como a imaginamos.

H á uns meses, o Facebook anunciou o lançamento daquilo a que cha-

mou Instant Articles. Uma nova forma de publicar conteúdos noticiosos naquela rede social que “vivem” dentro da pró-pria aplicação do Facebook e que, devido a esse facto, carregam mais depressa e são mais amigos do utilizador. Os edito-res e as empresas de media reagiram com excitação à novidade, por várias razões. Em primeiro lugar, porque não existe atualmente outro “sítio” que concentre tanta audiência como o Facebook; em segundo lugar, porque os Instant Articles preveem uma partilha de receitas publici-tárias entre o fornecedor de conteúdo e a rede social. Para os executivos de media, essa partilha de receitas poderia acabar por ser mais rentável do que tentar atrair os utilizadores do Facebook a visitarem os seus sites, para então aí lhes servirem publicidade. Parecia (parece), portanto, um negócio vantajoso para todas as par-tes: para os utilizadores, que recebem os conteúdos mais bem apresentados; para o Facebook, que recebe mais conteúdos; para os próprios media, que obtêm mais receita pelos seus conteúdos. O problema é o controlo. Houve quem invocasse Fausto, sublinhando que os media que embarquem nesta aventura estão de certo modo a “vender a alma ao diabo”, permitindo ao Facebook contro-lar o que resta da internet e desistindo de tentar captar audiências com os seus próprios argumentos.O que está aqui em causa, no fundo, é outra forma de limitar a neutralidade da rede. Se estes Instant Articles carregam muito mais depressa nos telemóveis dos utilizadores, isso quer dizer que… todos os outros conteúdos carregam mais devagar, e que só os produtores de con-teúdos que aceitam os termos do acordo proposto pelo Facebook estarão no grupo dos que navegam na “faixa rápida”. Se consideramos que o Facebook é a maior rede social online e que para muitos utili-zadores ela é quase sinónimo de internet (é, comprovadamente, por exemplo, a principal fonte de notícias para a maioria dos utilizadores), então aplica-se neste caso tudo o que foi dito no texto prin-cipal sobre o interesse das empresas em fechar os utilizadores dentro da rede e o interesse social em que ela seja o mais aberta e neutra possível.

Opinião

A outra ameaça

JOSÉ MORENO

Mestre em Comunicação e Tecnologias de Informação

[email protected]

23Interessante

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SUPER24

Fotografia

Dança astral. A 26 de março, a Lua interpôs-se entre a Terra e o Sol. O eclipse solar viu-se melhor em terras mais a norte, como as ilhas Svalbard, a meio caminho entre a Noruega (a que pertencem) e o Polo Norte. Esta foto foi a grande vencedora da edição do concurso em 2015.

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25

A arte de registar o universo

Retratos de ESTRELAS

O Real Observatório de Greenwich (Reino Unido)

criou em 2009 um concurso anual para eleger

as melhores imagens do cosmos. Este ano,

houve mais de 2700 fotos em competição, que

os jurados tiveram de analisar até chegarem às 32

premiadas. Estas são algumas das vencedoras.

Interessante

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SUPER26

A exposição das fotos vencedorasestará patente até junho de 2016

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Céu de seda. Uma delicada aurora boreal ergue-se sobre o peril de uma montanha do Parque Nacional de Abisko, no norte da Suécia.

Tudo gira. O Pico do Pôr do Sol é a terceira montanha mais alta de Hong Kong (869 metros) e um bom lugar para olhar o céu. Uma longa exposição registou o movimento das estrelas durante a noite.

À tangente. O cometa C/2013 A passa junto a Marte e recorda-nos de forma

inquietante que, por vezes, estes objetos se aproximam perigosamente dos planetas.

Chamuscados. A nossa estreladá-nos vida, mas é melhor não chegar muito perto. Esta violenta labareda alcançou um comprimento de mais de 700 mil quilómetros, quase o dobro da distância entre a Terra e a Lua.

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Interessante 27

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Protagonista. A uns 1500 anos-luz dos problemas humanos, a nebulosa

de Orion é a rainha do céu noturno.

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SUPER28

A maioria das fotos foi feita com câmaras acopladas a telescópios

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Carrocel de cores. A galáxia do Triângulo gira em espiral a quase três milhões de anos-luz de distância. No núcleo, podem ver-se estrelas em tons azulados e nebulosas avermelhadas.

Simetria perfeita As planícies e as crateras da parte do nosso satélite banhada pela luz solar veem-se aqui com grande nitidez, assim como o terminador lunar, a fronteira que separa a zona iluminada da que permanece oculta numa escuridão absoluta.

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Interessante 29

Dardo espacial Há coisas que só se

veem uma vez na vida: o cometa C/2014 E2 (Jacques) atravessa

o universo tendo como pano de fundo a nebulosa

NGC 896, situada na constelação de Cassiopeia,

a 6000 anos-luz de nós.

Page 32: Super interessante nº 212

SUPER30

Física

A ciência do zero absoluto

Um frio de RACHAR

O lugar mais gélido conhecido não se encontra na

Antártida nem no espaço exterior, mas num dos

poucos laboratórios que competem para alcançar

o limite das baixas temperaturas: –273,15 ºC,

altura em que até os átomos se imobilizam.

No próximo ano, o sítio mais frio do universo estará cerca de 400 quiló-metros acima das nossas cabeças, na Estação Espacial Internacional.

O responsável será o projeto Cold Atom Labora-tory, integrado por uma espécie de frigorífico atómico que será colocado no laboratório orbi-tal para tentar algo de extraordinário: descer abaixo dos 100 picokelvin, apenas dez bilioné-simos acima do zero absoluto (ou –273,15 ºC), uma temperatura a que praticamente cessa o movimento dos átomos.

Para podermos compreender o que isto significa, há que recordar que a temperatura é, essencialmente, uma medida da agitação atómica, ou seja, um reflexo da energia dos átomos. O zero absoluto seria, pois, um ponto em que não existiria qualquer tipo de energia calorífica que se pudesse extrair de uma subs-tância. Porém, se os átomos e as moléculas se encontram, segundo a física clássica, numa contínua vibração (exceto quando se alcança o zero absoluto), um sistema nunca poderá encontrar-se num estado de energia zero, devido às flutuações quânticas. O chamado princípio da incerteza formulado por Heisen-berg não o permite.

Isso significa que, à medida que nos aproxi-mamos de –273,15 ºC (equivalente a zero graus Kelvin, ou 0 K), os efeitos mecano-quânticos são cada vez mais importantes. Encontramos um exemplo disso no hélio, a única subs-tância na natureza que não congela a uma pressão normal, o que se deve ao facto de,

mesmo nos limites do zero absoluto, os átomos não deixarem de vibrar, mesmo que debilmente.

Ora, a atração que surge entre dois átomos do levíssimo hélio é muito pequena. Até a escas-síssima energia que o estado fundamental possui no zero absoluto é suficiente para impedir que se unam, formando uma rede sólida. Assim, o hélio permanece líquido mesmo quando sofre um arrefecimento intenso: para se tornar sólido, seria necessário submetê-lo a uma pressão superior a 25 atmosferas. Poderíamos perguntar se o mesmo acontece com o hidro-génio, o elemento mais leve do cosmos. A res-posta é não. A energia da união que surge entre os átomos de hidrogénio é maior do que as flu-tuações quânticas associadas ao zero abosluto: o hidrogénio solidifica.

PROEZA IMPOSSÍVELEm 1908, o físico holandês Heike K. Onnes

conseguiu o que parecia, na altura, quase impossível: liquefazer hélio. Tratava-se de uma verdadeira façanha, sobretudo se tomarmos em consideração que esse elemento ferve a –269 ºC. Depois disso, Onnes utilizou o hélio líquido para congelar outras substâncias, como o mercúrio, que solidifica a –38,89 ºC. Desse modo, descobriu uma das propriedades ocultas no frio: ao medir a condutividade elétrica do mercúrio, observou que quanto menor era a temperatura melhor conduzia a corrente. A –269 ºC, a resistência elétrica desaparecia por completo. Acabava de descobrir a supercon-dutividade.

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Interessante 31

Gelado de CO2. O gelo seco é dióxido

de carbono sólido. Embora não funda, sublima a –78 ºC, isto é, passa diretamente

do estado sólido para o gasoso.

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SUPER32

O ultrafrio permitiu fabricarum novo estado da matéria

pelo indiano Satyendra Nath Bose, em 1925: o condensado de Bose-Einstein (CBE), um novo estado de agregação da matéria que antecede o sólido. Ambos teorizaram que, quando se baixa a temperatura de uma substância até se aproximar do zero absoluto, transforma-se num CBE.

ESTRANHAS PROPRIEDADES

Ora isso só pode acontecer com partículas que sejam bosões, isto é, cujo número quântico de spin seja um número inteiro (0, 1, 2 e 3). As partículas, ou grupos de partículas, com um spin semi-inteiro (1/2, 3/2 ou 5/2), como o dos eletrões ou dos protões, são designadas por fermiões e não partilham o mesmo destino. Por exemplo, o segundo elemento mais abundante do universo, o hélio, pode ser encontrado em duas versões ou isótopos: o hélio-4, que possui dois protões e dois neutrões, e o hélio-3. O primeiro é um bosão; o segundo, um fermião. Essa subtil diferença faz os dois apresenta-rem propriedades muito diferentes: assim, enquanto o 4He alcança a superfluidez abaixo de 2,17 K (–270,98 ºC), o 3He fá-lo a tempera-turas inferiores a 0,000.93 K.

Além disso, é possível apinhar todos os bosões que quisermos no mesmo espaço e ao mesmo tempo, algo impossível com os fermiões. O que

Curiosamente, Onnes passou ao lado de uma das propriedades mais supreendentes do hélio líquido que surgem a tais temperatu-ras: a superfluidez. Trata-se de um fenómeno semelhante ao da supercondutividade, mas relacionado com a viscosidade.

Todos os líquidos oferecem uma certa resis-tência a fluir devido à fricção que surge entre as moléculas do próprio fluido e as das paredes do recipiente que o contém. No caso do hélio, quando a temperatura desce abaixo de –271 ºC, a condutividade térmica aumenta, passando a ser 200 vezes maior do que a do cobre, e a sua viscosidade desce para um décimo milé-simo da do hidrogénio gasoso. Por outras palavras, desaparece e o hélio transforma-se num superfluido. As consequências do fenó-meno são extraordinárias. Como não existe fricção com as paredes do recipiente, não há maneira de contê-lo, pois sobe por elas acima e derrama-se. Além disso, escoa-se por qual-quer orifício, mesmo com um diâmetro inferior a poucos milésimos de milímetro.

A superfluidez foi descoberta, em 1937, pelo russo Piotr Kapitsa e pelos canadianos John Allen e Austin Misener. No ano seguinte, o físico Fritz London sugeriu que essa transição para a superfluidez poderia ser um exemplo de um fenómeno já descrito por Albert Einstein e

significa isso? A temperaturas normais, os áto-mos de um gás, seja de bosões ou de fermiões, estão distribuídos por todo o volume do reci-piente que os contém. Porém, quando são extremamente baixas, de poucos bilionésimos de grau acima do zero absoluto, os bosões perdem a sua identidade e comportam-se como se fossem um único superátomo. É o CBE.

O princípio de exclusão de Pauli não é favo-rável aos fermiões: como dois não podem ocu-par o mesmo estado quântico, também não conseguem formar um condensado. Se dois se unirem para ficarem ligados, o resultado será um bosão, que irá comportar-se como tal. Assim, os eletrões são fermiões, mas podem formar uma associação denominada “pares de Cooper”, em honra de Leon N. Cooper, um dos autores da teoria padrão da supercondu-tividade, pelo que podem formar um CBE. Se o processo de criação de um par de Cooper pudesse ser copiado num gás de, por exem-plo, hélio-3, representaria um avanço notável na compreensão de um dos grandes mistérios da física, com importantes consequências tec-nológicas: a supercondutividade de alta tem-peratura.

Até 1995, tudo o que se pudesse dizer do CBE era pura teoria. Nesse ano, Wolfgang Ket-terle, do Instituto Tecnológico do Massachu-setts, Carl Wieman, da Universidade do Colo-rado em Boulder, e Eric Cornell, do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos, criaram o primeiro CBE. Para isso, os três investigadores arrefeceram 2000 átomos

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Gelo quântico. Em 2001, Wolfgang Ketterle (na foto) Eric. A. Cornell e Carl E. Wieman partilharam o Nobel pelos seus estudos sobre o condensado de Bose-Einstein.

Milagre! Alguns graus acima do zero absoluto, a resistência elétrica de alguns materiais desaparece, um fenómeno que se aplica nos ímanes supercondutores para conseguir a levitação magnética.

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Interessante 33

de rubídio a uma temperatura de apenas 170 bilionésimos de grau acima do zero absoluto.

É esse o cenário em que se insere o referido projeto Cold Atom Laboratory, da Estação Espa-cial Internacional, cujo objetivo é observar o que acontece quando se colocam em contato dois CBE. A teoria assegura que eles não se mis-turam como um gás normal, mas podem inte-ragir como as ondas num lago: camadas finas e paralelas de matéria separadas por outras igualmente finas de espaço vazio. Por outras palavras: um CBE pode unir-se a um átomo de outro e não produzir qualquer átomo. Um dos principais objetivos da experiência é estudar essa surpreendente propriedade, além da mais óbvia, a de misturar gases a temperaturas muito baixas.

“Trata-se de combinar diferentes tipos de átomos que podem flutuar juntos quase total-mente livres de perturbações, o que nos per-mitirá medir interações muito fracas”, explica o físico molecular Robert Thompson, um dos impulsionadores do projeto, do Jet Propulsion Laboratory da NASA. O certo é que o estudo destes gases ultra-arrefecidos num meio de microgravidade, algo inacessível na superfície do nosso planeta, poderia permitir aos cientis-tas encontrar novos fenómenos quânticos até hoje ignorados.

MATÉRIA CONDENSADADurante o século XX, ir à caça das temperatu-

ras mais baixas era uma das diversões de uma estranha espécie de cientistas, os físicos da

Armadilha para neutrinos

U m exemplo de como esta corrida para chegar à temperatura mais

próxima do zero absoluto pode iluminar aspetos obscuros de outros campos da física pode ser encontrado no CUORE (Observatório Criogénico Subterrâneo para Eventos Raros). Em setembro do ano passado, os cientistas que participam no projeto, uma colaboração entre 130 investigadores de Itália, Estados Unidos, China, Espanha e França, reduziram a temperatura de um recipiente de cobre de um metro cúbico e 400 kg de peso a –273,144 ºC. Durante quinze dias, o Instituto de Física Nuclear do Laborató-rio Nacional de Gran Sasso, o pico mais alto dos montes Apeninos, alojou o me-tro cúbico mais frio do universo conheci-do. Contudo, o objetivo do CUORE não é obter baixas temperaturas, mas estudar as propriedades dos neutrinos e procurar processos estranhos, como aqueles que possam proporcionar pistas sobre a ma-téria e a energia escuras.

matéria condensada. O que está subjacente a essa denominação, aparentemente frívola, é a compreensão das propriedades da matéria e o desenvolvimento de novas tecnologias, como os SQUIDS (dispositivos supercondutores de interferência quântica, utilizados, por exemplo, nas magnetoencefalografias), ou o desenvolvi-mento de relógios atómicos precisos.

Seja como for, é impossível prever o que poderá aparecer ao arrefecer a matéria. Mesmo a temperaturas criogénicas, muito acima das que temos vindo a referir, muitos materiais com-portam-se de forma insólita. Assim, a borracha torna-se extremamente quebradiça. Se intro-duzirmos uma corrente elétrica num anel metálico arrefecido até se tornar um semicon-dutor, a corrente continua a circular pelo anel e pode ser detetada horas depois. As possibilida-des tecnológicas de tudo isto são inimagináveis. Por exemplo, a capacidade de um semicondutor para manter uma corrente inspirou a criação de módulos experimentais de memória para com-putador que funcionam a temperaturas extre-mamente baixas.

No mesmo sentido, uma descoberta feita, em 2012, pelo físico Leo Kouwenhoven e pela sua equipa da Universidade Tecnológica de Delft (Países Baixos), pode significar um gigan-tesco passo em frente no desenvolvimento de uma nova forma de computação. Os investi-gadores descobriram, dentro de um pequeno semicondutor de vidro, arrefecido a uma tem-peratura inferior à do espaço exterior, uma estranha partícula conhecida por “fermião de

Majorana”, um fermião que é a sua própria antipartícula. Confirmaram, assim, a teoria defendida, em 1937, pelo esquivo cientista ita-liano Ettore Majorana, que desapareceria sem deixar rasto no ano seguinte. Segundo Michael Freedman, o génio da matemática que dirige a Estação Q da Microsoft, empenhada no desen-volvimento de um qubit topológico capaz de codificar os dados de uma forma atualmente inimaginável, essa descoberta abre as portas ao futuro computador quântico. Tudo graças ao frio extremo.

ARREFECIMENTO POR ETAPASComo se consegue arrefecer uma substância

a temperaturas tão baixas? O segredo é fazê-lo por etapas. As primeiras são semelhantes aos métodos que já existiam na época em que Onnes conseguiu liquefazer o hélio. Um baseia-se na expansão de um gás comprimido. Vemo-lo dia-riamente, por exemplo, quando utilizamos um spray para limpar o teclado do computador. À medida que sai, o aerossol arrefece. O outro, muito mais eficaz, baseia-se na evaporação de um líquido induzida por bombear o seu vapor. Para compreender o processo, temos de saber como se comportam os fluidos à escala mole-cular. Um líquido (ou um gás) é uma coleção de moléculas que se movem a diferentes velocida-des, seguindo a distribuição de Maxwell: algu-mas deslocam-se muito devagar, outras muito depressa, mas a maior parte fá-lo a uma veloci-dade intermédia entre as duas anteriores.

O que acontece quando uma das moléculas

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SUPER34

bombearmos essas moléculas para fora do reci-piente, o líquido continuará a perder energia e as moléculas mais rápidas continuam a esca-par. O efeito observável é que o líquido vai arrefecendo.

No entanto, não podemos fazê-lo para sem-pre. Se ficarmos sem a pressão do vapor sobre a superfície do líquido, não poderemos conti-nuar a bombear vapor. Isso ocorre quando se atinge determinada temperatura, que depende do tipo de substância que estejamos a utilizar. Por exemplo, com o oxigénio, ocorre ao alcan-çar algumas dezenas de graus Kelvin; com o hélio, quando se atinge cerca de 1 K, ou –272 ºC.

Curiosamente, é possível alcançar por este processo, aproveitando as diferentes proprie-dades dos dois isótopos do hélio, temperaturas de 300 milikelvin. Heinz London explicou como fazê-lo num congresso sobre baixas tempera-turas realizado em Oxford, em 1951. Teve a ideia de bombear hélio-3 num meio que tivesse

rápidas de um líquido se aproxima da superfície? Consegue escapar-se. Do nosso ponto de vista, o que ocorre é que se forma vapor sobre a superfície do líquido. Porém, isso não pode acontecer constantemente. Há um momento em que a superfície fica saturada de vapor. O que acontece se começarmos a extrair o vapor que se formou? Nessa altura, nunca atinge a saturação e, por conseguinte, as moléculas rápidas podem continuar a escapar-se.

A velocidade das moléculas de um líquido está relacionada com a sua temperatura: quanto maior a velocidade, maior a energia. Assim, quanto mais depressa se movem as partículas que formam um fluido, maior será a sua temperatura. Se as moléculas mais velozes (as que têm mais energia) são as que passam a fazer parte do vapor que mencionámos, o líquido está a perder energia, algo que deixa de suceder quando se suspende a fuga e o sistema líquido-vapor alcança o equilíbrio. Se

Alguns laboratórios conseguemchegar a 0,000.000.000.1 K

Explosão de borracha. A muito baixas temperaturas, muito materiais comportam-se de forma estranha. A borracha, por exemplo, torna-se tão quebradiça como o vidro

Abaixo de zero

E mbora os físicos tenham consciência de que não se pode alcançar exata-

mente o zero absoluto, por muito que se arrefeça um sistema, alguns continuam a interrogar-se sobre se não seria possível conceber uma forma de fazer o termó-metro ir mais longe e marcar uma tempe-ratura absoluta negativa. À partida, pare-ce um contrassenso. Como alcançar uma temperatura negativa quando se tem de passar pelo zero? Ou não será assim? A primeira coisa a tomar em consideração é que um sistema com temperatura negativa armazena muito mais calor do que outro com temperatura positiva. Isto é: se forem colocados em contato, o de temperatura negativa cederá energia ao de positiva. Neste ponto, há que ter em linha de conta que, aqui, a temperatura não se define como um movimento molecular, mas como o intercâmbio de energia e entropia, uma quantidade associada ao nível de desordem de um sistema: se acrescentarmos energia a um sistema com temperatura positiva, a sua entropia aumentará; noutro com tem-peratura negativa, diminuirá. Claro que estamos perante um fenómeno estrita-mente quântico, sem paralelo no mundo que vemos com os nossos olhos. Porém, não é apenas uma ideia teórica: em 2013, investigadores da Universidade Ludwig--Maximilians, de Munique, e do Instituto Max-Planck, de Garching (Alemanha), desenvolveram um gás atómico que pos-sui temperaturas negativas.

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Interessante 35

maior pureza do que o vácuo. Será que existe algo assim? Sim: um superfluido. Assim, se sub-mergirmos 3He num superfluido, poderemos continuar a bombear mesmo a temperatura zero. O mais interessante é que o 4He se torna um superfluido a pouco mais de 2 K, pelo que podemos usá-lo como um parceiro silencioso. Se utilizarmos uma mistura de ambos os isó-topos de hélio nas quantidades adequadas, atingiremos o nosso objetivo: um refrigerador de diluição.

Contudo, nem mesmo com esse engenhoso dispositivo se consegue alcançar temperaturas a roçar o zero absoluto. Para isso, temos de recorrer à técnica da desmagnetização adiabá-tica, que utiliza campos magnéticos num tipo de materiais denominados paramagnéticos, como o alumínio, os quais se transformam em ímanes na sua presença. Quando se retira o campo, deixam de sê-lo, perdem energia e, por conseguinte, a temperatura diminui.

Assim, é possível alcançar 0,002 K; se, em vez de átomos, a mesma técnica for aplicada aos núcleos atómicos, é possível descer abaixo de 0,000.01 K. Em 2004, Rudi Grimm e os seus colegas da Universidade de Innsbruck (Áustria)

aproveitaram o fenómeno para obter um con-densado fermiónico (semelhante ao CBE, mas com superfluidez) a partir de um gás de lítio arrefecido a 5 bilionésimos de grau acima do zero absoluto.

RECORD MUNDIAL

Por sua vez, Juha Tuoriniemi e o seu grupo do Laboratório de Baixa Temperatura (Finlân-dia) arrefeceram um pedaço de ródio a 100 pK: 0,000.000.000.1 graus acima do zero absoluto. Demoraram nove anos a completar os prepa-rativos. O seu objetivo não era bater o record da baixa temperatura (embora ainda dete-nham o título), mas estudar o magnetismo dos núcleos deste metal que reveste, habitual-mente, as joias de ouro branco. Cada um dos milhares de milhões de núcleos presentes nesse pedaço de ródio possui um diminuto momento magnético, que podemos imaginar como sendo a agulha de uma bússola. Ao descer a tem-peratura, os cientistas esperavam que esses momentos congelassem (ou seja, que ficassem a apontar todos na mesma direção), como acontece com o cobre ou a prata. Todavia, isso não aconteceu, o que abre as portas a novas

interrogações. Além disso, descobriram que o ródio se transforma em supercondutor a uma temperatura de apenas 325 microkelvin.

Os estudos com CBE levaram-nos à desco-berta de novas propriedades da matéria ocultas no frio extremo. A física dinamarquesa Lene Vestergaard Hau, da Universidade de Harvard (Estados Unidos), utilizou um CBE para abran-dar a luz até conseguir detê-la. Ao projetar um feixe laser em direção a um CBE, Hau reduziu a sua velocidade à de uma bicicleta e, depois, conseguiu pará-la, mantê-la engarrafada dentro do CBE, observá-la, brincar com ela e, depois, libertá-la. Alguns cientistas consi-deram que a descoberta permitirá melhorar enormemente a velocidade de processamento dos computadores. Entretanto, Hau e os seus colaboradores arrefeceram uma nuvem de átomos de rubídio a 200 microkelvin para ser lançada contra um nanotubo de carbono, com uma carga de 300 volts, situado a dois centí-metros. O estudo da interação entre átomos ultra-arrefecidos e nanossistemas poderá representar um gigantesco passo em frente no campo da nanotecnologia.

M.A.S.

Computação quântica. O físico Leo Kouwenhoven descobriu, num nanocabo de

antimonieto de índio arrefecido quase até ao zero absoluto, o fermião de Majorana,

uma partícula que poderá ser fundamental no desenvolvimento dos computadores quânticos.

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Física

A relatividade faz um século

Uma ideia de GÉNIO

Como se veria o mundo a cavalo de um raio

de luz? Foi dessa pergunta que nasceu a teoria da

relatividade geral, que celebra cem anos em 2015.

Contamos-lhe a história da proeza intelectual

que transformaria Albert Einstein no cientista

mais admirado de todos os tempos.

A7 de novembro de 1915, o diário lon-drino Times publicava em grandes parangonas: “Revolução na ciência. Uma nova teoria do universo. Ideias

de Newton ultrapassadas.” Poucos dias depois, o New York Times afirmava que Albert Einstein alcançara “um dos maiores êxitos – senão o maior – da história do pensamento humano”.

Tudo começara oito anos antes, em 1907. Einstein, sentado à sua secretária no Depar-tamento de Patentes de Berna (Suíça), como perito técnico de segunda classe, refletia sobre as implicações da teoria da relatividade (a que agora chamamos “restrita”), que for-mulara em 1905 e da qual deriva a célebre equação E=mc2. Queria responder à pergunta que o obcecava desde os 16 anos: como se veria o mundo a cavalo de um raio de luz?

De repente, teve uma ideia: “Se uma pes-soa cai livremente, não sente o próprio peso.” Diria mais tarde ao seu velho amigo Michele Angelo Besso, que também trabalhava no Departamento de Patentes, que fora o pensa-mento mais feliz da sua vida. Einstein deparara com o chamado “princípio de equivalência”: fechados num armário, não há maneira de dis-tinguir se nos encontramos num planeta ou se nos conduzem pelo espaço a uma aceleração constante. Isto é, gravidade e aceleração são equivalentes. Acabava de descobrir a solução para desenvolver uma teoria relativista que incorporasse a gravitação, a futura teoria da relatividade geral.

Porém, como qualquer boa história, esta encerra um mistério. Entre 1907 e 1911, o físico alemão permaneceu silencioso. Não sabemos se trabalhou no problema durante esse período, no qual publicou artigos científicos sobre outros temas. Em 1911, trocou a Suíça por Praga a fim de dar aulas na universidade alemã daquela cidade. Foi ali que deu os primeiros passos rumo à sua revolucionária hipótese.

CHOQUE COM A MATEMÁTICAA primeira coisa que fez foi desenvolver

formalmente o princípio da equivalência. Em seguida, mostraria que a luz proveniente de um objeto de grande massa sofre um desvio para o vermelho. Porque é que isso acontecia? Não fazia a mínima ideia, pois não possuía suficien-tes conhecimentos matemáticos; só sabia que tinha de acontecer. De igual modo, ao mover-se por um campo gravitacional, um raio luminoso experimentaria esse fenómeno: como a ener-gia do feixe se reduz ao passar pelo campo e a velocidade da luz é invariável, o que diminui é a frequência. Por outras palavras, aumenta o comprimento de onda e a sua cor desloca-se para o lado vermelho do espectro.

Foi o seu primeiro embate com a matemática. A relatividade especial não lhe exigira equações muito complexas, mas, se queria incluir a gravidade, tinha necessidade de um potente aparelho do qual sabia muito pouco: o cál-culo tensorial. Felizmente, tinha amigos que podiam ajudá-lo. Um era um matemático vinte

Fama global. Quando Albert Einstein apresentou à Academia Prussiana das Ciências a sua teoria da relatividade geral, em 25 de novembro de 1915, os seus pares consideraram-na instantaneamente o maior feito da física desde Newton. O fíasico tornou-se de um momento para o outro uma celebridade internacional. Nesta foto, durante uma conferência promovida em Viena, em 1921. No ano seguinte, ganharia o Prémio Nobel, pela explicação do efeito fotoelétrico, um tema totalmente diferente da relatividade.

Sem eles, não teria sido possível

G raças ao trabalho e aos conse-lhos destes cientistas (nem sem-

pre recordados), Einstein conseguiu ligar todos os pontos e convencer o mundo da sua teoria.Karl Schwarzschild – Vaticinou os buracos negros com as equações de Einstein.Georg Alexander Pick – Sugeriu as bases matemáticas para incluir a gravidade.Marcel Grossmann – Ajudou o génio a lidar com a geometria não--euclidiana. E. Finlay-Freundlich – Foi o primeiro a tentar demonstrar a teoria durante um eclipse.

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Em 1914, a teoria da relatividadeainda tinha muitos problemas

conheceu em Praga desagradava-lhe. Contudo, antes de partir, chegou a uma conclusão revo-lucionária: o espaço em redor de um corpo maciço não é euclidiano.

Para compreender o que isto significa, temos de recuar 2300 anos e viajar até Alexandria. Ali, o grego Euclides escrevera uma das obras mais influentes da ciência, Elementos de Geo-

metria, na qual estabelecia tudo o que se sabia sobre essa disciplina e um método de trabalho para a matemática: com base em alguns postu-lados, aceites sem necessidade de demonstra-ção por serem evidentes, deduzem-se todas as consequências possíveis.

DESMONTAR EUCLIDES

Especificamente, Euclides baseava a geo-metria em cinco postulados. O problema era o quinto, que diz o seguinte: dada uma reta e um ponto não pertencente à referida reta, apenas se pode traçar uma linha paralela à primeira que passe por esse ponto. Durante muito tempo, tentou-se deduzi-lo dos outros quatro, mas sem êxito. Foi em 1817 que um dos matemáticos mais brilhantes da história, Carl Friedrich Gauss, se apercebeu de que se tratava de um postulado independente dos outros. De facto, descobriu

anos mais velho e ao qual a história não fez a devida justiça: Georg Alexander Pick.

Os dois gostavam de tocar violino e costu-mavam passear por Praga a falar de matemá-tica. Além disso, Pick conhecia o trabalho de dois italianos, Gregorio Ricci e Tullio Levi-Civita, que se ajustava perfeitamente à teoria de Ein-stein. É possível que o tenha aconselhado a ler os seus artigos, mas, se assim foi, Einstein não prestou atenção. Esse esquecimento atrasaria vários anos o seu trabalho.

O terceiro passo foi descobrir que os objetos com massa não só atraem outros corpos como, também, a luz. Não se tratava de uma ideia nova, pois já tinha sido prevista na física de Newton. De facto, o astrónomo alemão Johann Georg von Soldner conjeturava, em 1801, que, se a luz era formada por pequenas partículas, um raio que passasse junto da superfície do Sol iria desviar-se 0,84 segundos de arco. Os cálculos de Einstein adiantavam outros valores, que depois estabeleceria com exatidão.

Pouco após chegar à capital checa, o nosso protagonista recebeu uma proposta para dar aulas no Instituto Politécnico de Zurique. Não pensou duas vezes, pois a atitude simultanea-mente pretenciosa e servil das pessoas que

que, se o rejeitasse, se desenhasse mais de uma linha paralela a uma reta por determinado ponto, o edifício teórico continuava a ser consis-tente. Todavia, Gauss não se atreveu a publicar os resultados obtidos. Foi um dos seus discí-pulos, Georg F.B. Riemann, que estabeleceu as bases da geometria não-euclidiana em 1854.

Einstein não sabia muito sobre o assunto. Após meses de cálculos infrutíferos, escreveu a Marcel Grossmann, um velho amigo: “Gross-mann, tens de me ajudar, se não enlouqueço!” Assim foi: trabalharam juntos no desenvolvi-mento de um primeiro esboço das equações, mas havia um longo caminho a percorrer.

Em 1913, Max Planck, pai da teoria quântica, e outro físico, Walther Hermann Nernst, con-venceram Einstein a aceitar um cargo de pro-fessor universitário em Berlim sem obrigações docentes. Assim, o adolescente que renun-ciara à cidadania alemã regressava, já adulto, à capital do país.

O que mais preocupava o pai da relatividade era obter uma confirmação experimental. Desta vez, foi ajudado por um entusiasta da sua teoria, Erwin Finlay-Freundlich, um astrónomo que conhecera em Praga. Einstein estava con-vencido de que a luz se curvava ao passar por um corpo maciço, e tinha pressa de demonstrá--lo. A primeira coisa que Finlay-Freundlich fez foi observar se a passagem da luz das estrelas junto de Júpiter produzia esse efeito: nada...

Nessa altura, compreendeu que o corpo

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Massa atrativa. Reprsentação artística da nave Gravity Probe B, cuja missão era veriicar experimentalmente a distorção provocada pelo nosso planeta no tecido espácio-temporal. Os resultados, apresentados em 2011, são coerentes com os cálculos de Einstein.

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Interessante 39

celeste mais pequeno mas com massa suficiente para se conseguir medir o desvio era o Sol, mas era impossível ver estrelas de dia. No final de 1912, um dos dois apercebeu-se de que havia uma altura única que permitiria fazê-lo: tinham de organizar uma expedição para efetuar observações por ocasião do próximo eclipse solar total, que se produziria a 21 de agosto de 1914. A 6 de abril desse ano, Einstein instalou-se em Berlim. No dia 2 de julho, era nomeado membro da Academia Prussiana das Ciências. Assim, pôde dedicar-se aos preparativos para a expedição.

PRESOS COMO ESPIÕESA 19 de julho, Finlay-Freundlich viajou para

a Crimeia acompanhado de dois técnicos, mas não conseguiram sequer montar o telescópio: a 1 de agosto, rebentava a Primeira Guerra Mundial, e os russos prenderam os três mem-bros da equipa, que tomaram por espiões. Felizmente, os alemães tinham detido vários oficiais russos e a Academia exerceu pressão para serem trocados pelos cientistas. Einstein, em vez de se alegrar por ter o amigo de volta, zangou-se com ele.

Em 1914, a relatividade geral estava longe de ser uma teoria completa. Einstein perfilava cada um dos seus pontos fracos numa corrida de tentativa e erro. Enfrentava dois grandes pro-blemas: o primeiro é que as suas equações ser-vissem para um sistema em rotação; o segundo

era explicar exatamente o avanço do periélio de Mercúrio. Além disso, tinha de calcular cor-retamente a deflexão da luz. A 4 de novem-bro de 1915, apresentou uma nova versão das suas equações na Academia Prussiana das Ciên-cias, apesar de reconhecer que não avançara muito desde as primeiras tentativas com Gross mann. No dia 11, deu um passo em falso e voltou ao início. Uma semana depois, fez novas alterações e, para sua surpresa, descobriu a razão do avanço de 43 segundos de arco por século da órbita de Mercúrio que a mecânica newtoniana não explicava. Além disso, obteve um número exato para a deflexão da luz: 1,75 segundos de arco. Einstein continuou a traba-lhar febrilmente: a 25 de novembro, já tinha diante dos olhos as equações definitivas. Foi o momento mais feliz da sua vida, segundo diria.

No entanto, uma coisa é formular equações, outra é resolvê-las. Curiosamente, não foi o autor da teoria que o conseguiu, mas Karl Schwarzs child, diretor do Observatório Astro-nómico de Potsdam. Aos 40 anos, abandonara a tranquilidade do seu cargo para se alistar como voluntário. Nas trincheiras da frente russa, estudou as fórmulas einsteinianas para encontrar, em menos de um mês, uma solução para o problema da presença de uma massa pontual no espaço vazio: acabava de prever a existência dos buracos negros. Enviou os seus cálculos a Einstein, que os apresentou na Aca demia em janeiro e fevereiro de 1916.

A tualmente, a teoria da relati-vidade é considerada como a

descrição mais correta da gravitação e constitui o pilar da moderna cos-mologia. Em 1993, a atribuição do Prémio Nobel da Física a Joseph Hooton Taylor Jr. consagrou uma das suas previsões mais fascinantes: a existência de ondas gravitacionais. Outra consequência, descoberta expe-rimentalmente em 1979, é o chamado “efeito de lente gravitacional”, que os astrónomos aproveitam para observar galáxias muito distantes, tão débeis que podem passar despercebidas mes-mo aos telescópios mais potentes. Em determinadas condições, os cúmulos galácticos comportam-se como autên-ticas lupas e conferem visibilidade a esses remotos conjuntos de estrelas. Uma dessas objetivas naturais é o cúmulo Abell 2218, situado a 2345 milhões de anos-luz, na constelação do Dragão. Para podermos fazer uma ideia, o efeito de lente gravitacional amplifica cinco vezes a imagem do que existe por detrás e multiplica o seu brilho por trinta.

Ondas e lentes gravitacionais

Lupa cósmica. A gravidade do cúmulo Abell 2218 ampliica o brilho do que está por detrás e permite ver muito mais longe.

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seu redor. Ou seja, irá “orbitar” em redor do peso.Faltava, porém, o derradeiro episódio. Para

o astrofísico inglês Arthur Stanley Eddington, a relatividade geral não precisava de ser demonstrada: bastava a elegância e a beleza da sua formulação. Todavia, em 1918, perto do final da guerra, o governo britânico aumen-tou a idade de recrutamento para os 35 anos. Eddington tinha menos um e, como bom quaker, ia declarar-se objetor de consciência, o que era um problema para a Universidade de Cambridge, onde dirigia o observatório. Era preciso evitar que o enviassem para a prisão.

O eclipse de 29 de maio de 1919 tornar-se-ia a sua salvação. Graças à influência do astrónomo real, Frank Watson Dyson, o exército não o chamou para integrar as suas fileiras. Em con-trapartida, chefiaria uma missão científica para pôr à prova a relatividade geral. O armistício chegaria a 11 de novembro, mas os dois navios da expedição partiram a 8 de março de 1919.

Schwarzs child morreu a 11 de maio, num hospi-tal de Potsdam, vítima de uma estranha doença.

Dois meses antes, Einstein enviara à revista Annalen der Physik uma exposição completa da sua relatividade geral. Dava a conhecer, assim, a teoria que ligava a geometria do espaço à matéria: o valor da curvatura em determinado ponto é uma medida da sua gravidade. Por outras palavras, quanto maior a curvatura, maior a gravidade. O exemplo clássico para visualizá-lo é o da cama elástica como representação bidi-mensional do universo. Quando nada tem em cima, a sua forma é totalmente plana. Todavia, quando se coloca no centro um peso de ferro (uma estrela), a superfície fica deformada: é a gravidade. Prosseguindo, se atirarmos, depois, um berlinde (um planeta, uma sonda…), vere-mos que ele se desloca em linha reta sobre a superfície até chegar à distorção. Então, consoante o ângulo de incidência, cairá pelo declive ou descreverá uma trajetória curva em

Novembro de 1915 foium mês frenético para Einstein

Explosão de borracha. A muito baixas temperaturas, muito materiais comportam-se de forma estranha. A borracha, por exemplo, torna-se tão quebradiça como o vidro

Vulcano, o planeta que nunca existiu

E m 1859, o astrónomo francês Urbain Le Verrier detetou pe-

quenas anomalias na órbita de Mer-cúrio. Segundo as leis de Newton, deveria descrever uma elipse em redor do Sol. Porém, se incluirmos os puxões gravitacionais dos outros planetas, surge um efeito singular: a deslocação não se mantém estática no espaço, mas entra em rotação. O fe-nómeno é conhecido por “precessão do periélio” (o ponto da órbita mais próximo do Sol), e pode ser calcula-do com ajuda da teoria newtoniana da gravidade. O resultado é de 531 segundos de arco por século. Por ou-tras palavras, o periélio de Mercúrio descreve uma volta completa ao Sol cada 244 mil anos. Contudo, as ob-servações de Le Verrier não se enqua-dravam na previsão: o dito periélio avançava 8 por cento mais depressa do que a mecânica celeste estabelecia. O cientista postulou que isso se devia à influência de um planeta ainda não detetado, que batizou com o nome de Vulcano. Após intensas e infrutíferas buscas, os astrónomos decidiram que o objeto não existia e adiaram a explicação para a quase insignificante discrepância de 43 segundos de arco por século. Essa simples pedra no sapato da astronomia seria uma das provas que confirmaram a teoria geral da relatividade de Einstein.

Gravura de 1895 em que se vê o suposto planeta Vulcano a orbitar entre Mercúrio e o Sol.

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Apagão oportuno. Os eclipses totais do Sol (na foto, o de 2002) são uma ocasião única para observar como a gravidade distorce a trajetória de um raio de luz.

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Interessante 41

Uma das embarcações, na qual Eddington via-java, dirigiu-se para a ilha do Príncipe, na então província ultramarina portuguesa de São Tomé e Príncipe, na costa ocidental africana, enquanto o outro atracaria em Sobral, um lugar isolado no norte do Brasil. Ambas as equipas fizeram as suas medições e regressaram a Inglaterra.

CIRURGIA ESTÉTICAOs técnicos enviados ao Brasil obtiveram 19

placas com a ajuda de um astrógrafo (apare-lho para fotografar o firmamento) e oito com um telescópio, enquanto Eddington só con-seguiu duas placas fotográficas nítidas. As imagens do telescópio davam um valor médio de deflexão da luz de 1,98 segundos de arco, enquanto as do astrógrafo mostravam uma deslocação de 0,86, como previa a teoria de Newton. Por sua vez, as fotos obtidas na ilha do Príncipe mostravam uma deflexão de 1,31 e 1,91. As medidas não eram, em absoluto, defi-nitivas: apenas as oito obtidas pelo telescópio de Sobral e as duas da ilha do Príncipe se enqua-dravam na relatividade geral. Foram essas que Eddington selecionou. Segundo John Wal-

ler, historiador da ciência, “submeteu os resul-tados a uma operação de cirurgia estética”. A 6 de novembro de 1919, uma reunião con-junta da Royal Society e da Royal Astronomical Society proclamou que a teoria da relatividade geral estava correta, embora os presentes no encontro não compreendessem bem os dados. Einstein acabava de ascender ao Olimpo científico.

As consequências ultrapassavam esses segundos de arco. Em fevereiro de 1917, o físico enviou um artigo à Academia Prussiana no qual chegava à conclusão de que o universo se tem de expandir para não colapsar sobre si mesmo. Ficou horrorizado: o cosmos tinha de ser está-tico! Para evitá-lo, introduziu um conceito alheio à teoria: a constante cosmológica. Após a descoberta da expansão do universo por Edwin Hubble em 1929, Einstein começou a olhar com reticências para o seu “remendo” e, em 1931, rejeitou-o. O que ninguém podia imaginar é que a constante ressurgiria, em 1998, como uma misteriosa energia escura que expande aceleradamente o cosmos, mas isso é outra história.

M.A.S.

Explosão de borracha. A muito baixas temperaturas, muito materiais comportam-se de forma estranha. A borracha, por exemplo, torna-se tão quebradiça como o vidro

Cronologiade uma vida14 de março de 1879 – Albert Ein-stein nasce na cidade alemã de Ulm.Outubro de 1896 – Inicia os estudos no Instituto Politécnico de Zurique (Suíça).Junho de 1902 – Consegue emprego no Departamento de Patentes de Berna.9 de junho de 1905 – Vê publicado o seu trabalho sobre o efeito fotoelé-trico (pelo qual receberia, mais tarde, o Prémo Nobel), na revista Annalen der Physik.28 de setembro de 1905 – A mesma revista publica o seu artigo sobre a teoria especial da relatividade.21 de novembro de 1905 – Numa revisão da relatividade especial, intro-duz a célebre equação E = mc2.15 de janeiro de 1906 – Obtém o doutoramento pela Universidade de Zurique.Agosto de 1912 – Começa a co-laborar com o matemático Marcel Grossmann sobre a teoria geral da relatividade.Abril de 1913 – Instala-se em Berlim.Novembro de 1915 – Completa a formulação da relatividade geral.6 de novembro de 1919 – A Royal Society e a Royal Astronomical Society dão o seu aval à teoria geral da rela-tividade. Einstein torna-se mundial-mente famoso.9 de novembro de 1922 – Atribui-ção do Prémio Nobel. Einstein não comparece na cerimónia.1928 – Inicia esforços, infrutíferos, para uniicar gravidade e eletromag-netismo.1933 – Abandona a Alemanha. Vive em França, na Bélgica, no Reino Uni-do e, inalmente, nos Estados Unidos.18 de abril de 1955 – Morre em Nova Jersey.

Na sua casa de Berlim, em 1925, rodeado de livros e apontamentos.

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Física

Um lado escuro na teoria?

O puzzle não ENCAIXAAlguns cientistas criticam os esforços para

procurar entes fantasmagóricos como a matéria

ou a energia escuras, sem os quais a relatividade

geral não funciona. Talvez seja necessário

modificar a centenária teoria de Einstein.

Arelatividade geral é o núcleo central da cosmologia e é considerada, a par da mecânica quântica, o pilar da física moderna. Efetivamente, grande

parte dos esforços dos especialistas durante as últimas décadas destinou-se a encaixar ambas numa única descrição: a magnífica ideia de Einstein não serve quando passamos para o tamanho do átomo. Para poder aplicá-la, seria preciso quantizá-la, algo que ainda não se con-seguiu: “As duas teorias não se dão bem”, diz o físico argentino Juan Martin Maldacena.

Apesar desse inconveniente, a relatividade geral é tida por uma descrição absolutamente precisa da gravitação em grandes escalas. No entanto, embora todas as suas previsões tenham sido experimentalmente ratificadas, pequenos pormenores parecem indicar que algo não se ajusta.

Uma dessas inconsistências provém de cer-tos movimentos lunares. Em 2006, James G. Williams, do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL, na sigla em inglês), da NASA, analisou 38 anos de medições da distância Terra-Lua e des-cobriu que a diferença entre o ponto mais lon-gínquo e o mais próximo aumenta anualmente seis milímetros. Além disso, tomando em con-sideração fatores que podem influir no fenó-meno, como as fricções das marés no interior da Terra e da Lua, uma importante parte ficava por explicar. Mistério.

Algo de semelhante ocorre quando os astrónomos determinam o valor da unidade astronómica (UA), definida como a distância

média entre a Terra e o Sol. A margem de erro situa-se entre um e dez metros, o que permite determinar o seu valor com uma exati-dão de onze algarismos (1 UA=149 597 870 700 metros). Todavia, Erland Myles Standish, tam-bém do JPL, afirmou, em 2004, que a UA pare-cia aumentar com o tempo. No mesmo ano, os russos Georgij Krasinski e Victor Brumberg, do Instituto de Astronomia Aplicada de São Petersburgo, analisaram mais de 200 mil obser-vações e descobriram que a aparentemente imutável UA aumentava quinze metros a cada cem anos. Em 2005, Yelena Pitieva, da Academia Russa das Ciências, publicou uma análise ainda mais detalhada de 317 mil registos, obtidos entre 1913 e 2003. Os seus resultados revelaram que a distância cresce certa de sete metros por século.

SINGULARIDADES POR TODO O LADO

Todos estes trabalhos lançaram mais lenha para a fogueira do que se transformou num dos mistérios mais chamativos do Sistema Solar. No final dos anos 90, um grupo de cientistas exa-minou os dados reunidos, durante onze anos, pela sonda Pioneer 10, e durante quatro pela sua gémea, a Pioneer 11. Descobriram, assim, que as naves sofriam uma débil mas constante desaceleração: em 1998, a primeira estava 58 mil quilómetros mais perto do que se esperava, e a segunda, 6000. São distâncias insignificantes comparadas com os 10 500 milhões de quiló-metros que nos separam delas, mas a mecânica celeste não admite desvios.

Contudo, as singularidades não terminam aqui. Em 2008, cientistas do JPL anunciaram a descoberta de desfasamentos na energia orbi-tal de seis naves que passaram perto da Terra para aproveitar o balanço gravitacional na sua viagem rumo a outros planetas: a respetiva velocidade era um pouquinho maior do que se calculara, entre 2 mm/s e 13,5 mm/s. O efeito das fontes que podem provocar essa acele-ração imprevista (a atmosfera terrestre, as marés oceânicas, as marés na parte sólida da Terra, a carga da sonda, o campo magnético ou o vento solar) é mil vezes mais pequeno do que seria necessário para afetar as astronaves. Serão todos esses estranhos fenómenos indí-cios de que há algo nas nossas teorias sobre a gravidade que não funciona adequadamente?

A relatividade geral enraizou-se de tal forma que a imensa maioria da comunidade científica tem dificuldade em conceber que possa ser corrigida. No entanto, há quem pense que há motivos para fazê-lo. O mais importante é a matéria escura. A sua existên-cia foi postulada pelo astrónomo Fritz Zwicky em 1933, quando descobriu, juntamente com Sinclair Smith, que as galáxias dos cúmu-los da Cabeleira de Berenice e da Virgem se deslocavam a velocidades tão elevadas que, se a sua massa total fosse apenas a visível, já se teriam disperso pelo espaço. Segundo Zwicky, isto apenas podia ser explicado se houvesse mais matéria do que aquela que os telescópios podiam detetar. Zwicky chamou--lhe “massa perdida”, mas ela não voltaria a

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Interessante 43

aparecer no horizonte da astronomia até 1977.Nesse ano, a astrónoma Vera Rubin desco-

briu que as estrelas das regiões mais periféricas das galáxias espirais – como a nossa – não se deslocavam da forma prevista pela teoria, pois a sua velocidade orbital deveria diminuir à medida que se afastassem do centro. Con-tudo, os astros situados nos extremos movi-mentam-se à mesma velocidade dos restantes. Para poder explicar a curva de rotação desse tipo de agrupamentos estelares, seria neces-sário muito mais massa do que a que se pode encontrar em forma de estrelas e nebulosas. No caso da Via Láctea, por exemplo, seria pre-cisa uma massa dez vezes maior.

NOVA TEORIASupor que existe essa enorme quantidade

de matéria não detetada, que não absorve nem emite energia, é apenas uma de duas pos-sibilidades. A outra reside em aceitar que não possuímos uma teoria da gravidade completa e que, por conseguinte, Einstein e Newton têm de ser corrigidos. Ambas as opções são radicais: suponhamos, por um lado, que a gravitação não funciona como pensamos à escala cósmica e, por outro, que existe um ente fantasmagórico do qual nada sabemos. Nesta última hipótese, o que a astrofísica teórica nos está a pedir é um autêntico ato de fé.

“A matéria escura não desempenha qual-quer papel nas primeiras fases do universo”, explica o físico John W. Moffat, da Universi-dade de Toronto (Canadá): “Porém, o cosmos

expande-se e, quando chegamos aos 400 mil anos depois do Big Bang, as coisas mudam. Nenhum dado recente é passível de ser expli-cado se partirmos do princípio de que há apenas matéria bariónica [convencional]: o modelo padrão tem de invocar outra coisa para a gravi-dade de Einstein se poder ajustar aos dados.” Segundo este especialista, um heterodoxo da gravitação, “a procura da matéria escura pode transformar-se na maior experiência nula desde a de Albert Abraham Michelson e Edward Morley, que não conseguiram detetar o éter, no final do século XIX”.

CONSTANTES VARIÁVEISComo se isto não fosse suficiente, desco-

briu-se, em 1997, que o universo se expandia aceleradamente, o que se torna impossível no quadro da relatividade geral: algo deve estar a empurrá-lo. Foi assim que nasceu um con-ceito ainda mais estranho do que o da maté-ria escura. Estamos a falar de uma espécie de impulso que ninguém compreende muito bem e que não se sabe o que faz aqui: a energia escura. Segundo Martin Kunz e Domenico Sapone, da Universidade de Genebra (Suíça), o problema é que não há forma de distinguir experimentalmente entre este fenómeno e uma teoria modificada da gravidade.

Benoit Famaey, da Universidade de Bona, também pensa que se tem de fazer alterações na teoria: “A matéria escura parece saber como a convencional se distribui. É como se ambas conspirassem para conseguir que a

gravidade da massa visível e o raio caracterís-tico do halo escuro sejam sempre os mesmos, independentemente da galáxia que estejamos a observar. É surpreendente, pois seria de esperar que tal relação dependesse da história específica de cada galáxia.”

Em 1983, o físico israelita Mordehai Milgrom publicou um modelo segundo o qual a gravidade agia de forma diferente se houvesse densidades de matéria extremamente baixas. Assim, tal como a teoria de Newton não se aplica em campos gravitacionais intensos e deve ser substituída pela de Einstein, talvez se devesse propor uma nova lei para regiões com campos muito débeis. Embora tenha alguns defensores, a chamada “dinâmica newtoniana modificada” enfrenta importantes obstáculos, tanto teóri-cos como experimentais, pois não se ajusta bem às últimas observações por raios X dos cúmulos galácticos.

Uma alternativa com maiores possibilidades é a da gravidade modificada, do já referido John W. Moffat, que trabalha nela desde 1978. Consiste, essencialmente, em comparar as equações dos campos eletromagnéticos e gra-vitacionais. O que daí deriva não agrada à maio-ria: por um lado, surge uma quinta força igno-rada, e, além disso, a famosa constante da gra-vitação universal (G) não é, na realidade, uma constante, nem tão-pouco a velocidade da luz (c). O que seria verdadeiramente imutável, neste caso, é o seu quociente: G/c. O tempo dirá quem tem razão.

M.A.S.

E m janeiro de 2010, um especialis-ta holandês da teoria das cordas,

Erik Verlinde, da Universidade de Amesterdão, causou uma certa agi-tação no reduzido mundo dos físicos teóricos ao afirmar que a gravidade é uma ilusão. Isso não significa que as coisas não caiam realmente, mas que a força gravitacional, em si mes-ma, não existe. Estaríamos, pois, a falar de uma propriedade que surge quando se passa do mundo microscó-pico para o macroscópico. Verlinde dá como exemplo a temperatura: “Apercebemo-nos dela todos os dias; podemos senti-la. Todavia, não existe no âmbito do diminuto, pois tem a ver com as propriedades das moléculas em conjunto.” Para este físico, a gravi-tação seria algo semelhante: quando colocamos muitos átomos juntos, surgem determinadas equações, como as de Einstein, e é daí que deduzimos a gravidade. Mais nada.

A gravidade não existe?

SP

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SUPER44

Como curar o INCURÁVEL

Biotecnologia

Novos materiais fazem milagres

As nanopartículas e os hidrogeis criados pela

cientista canadiana Molly Shoichet, uma das

vencedoras do Prémio L’Oréal-Unesco 2015 para

as Mulheres na Ciência, poderão revolucionar

tratamentos contra o cancro ou a cegueira.

Apenas 30 por cento dos investigado-res mundiais são mulheres, segundo dados da Unesco. Na Europa Oci-dental, a percentagem sobe para

32%, e Portugal distingue-se pela positiva, com cerca de 40%. Como assinala a agência das Nações Unidas para a ciência e a educação, “há muitas mulheres que se matriculam na universidade (somam, agora, mais de metade dos alunos), mas relativamente poucas aca-bam por escolher uma profissão científica”.

Para ajudar a colmatar essa brecha, a Unesco atribui, desde 1998, em conjunto com a Fun-dação L’Oréal, cinco prémios anuais às inves-tigadoras que mais se destacaram em cada ano, a par de quinze bolsas a jovens prome-tedoras. Os promotores da distinção subli-nham: “Não premiamos mulheres cientistas, mas cientistas excecionais que, por acaso, são mulheres.”

Uma das galardoadas de 2015 foi Molly Shoi-chet, professora catedrática de engenharia química e biomédica na Universidade de Toronto (Canadá). Embora os seus avanços na criação de biomateriais para tratar problemas graves de saúde tenham sido o que a tornou merecedora do prémio, o júri também valorizou o seu compromisso para com os direitos huma-nos e a ciência aplicada. Não é por acaso que o lema do seu laboratório é “Resolver proble-mas importantes juntos”.

Em que consiste exatamente o seu trabalho? Por um lado, Shoichet procura recuperar as ligações das células nervosas que se perderam

devido a acidentes ou lesões, através do transplante de células estaminais. A cientista canadiana explica que a investigação está a ser desenvolvida em várias modalidades: “Utiliza-mos células estaminais humanas pluripotentes induzidas (ou seja, células adultas reprograma-das para se transformarem, praticamente, em qualquer tecido do organismo) para as lesões da medula espinal; células embrionárias neu-roectodérmicas, provenientes de um tecido que dará, depois, origem ao sistema nervoso central, para os acidentes vasculares cerebrais; células estaminais neurais, extraídas de cérebros de ratos ou ratazanas, que poderão revelar-se úteis no tratamento de acidentes vasculares cerebrais e lesões medulares; e células esta-minais adultas da retina de ratos ou de seres humanos, para obviar casos de cegueira.”

NOVA VIA A EXPLORAR

Existe uma via que Shoichet ainda não explo-rou, embora não afaste a hipótese de fazê-lo no futuro: a das células de glia envolvente olfativa (CGEO, na sigla em inglês), provenientes do bulbo olfativo. Em outubro de 2014, soube-se que um implante destas células devolveu a um tetraplégico a capacidade de andar. Shoichet elogia o trabalho do investigador Geoffrey Raisman, do University College London, res-ponsável por esse incrível avanço: “Trata-se de uma população celular prometedora para tratar as lesões da medula espinal.”

O próximo grande desafio consiste em man-ter as células introduzidas com vida durante A

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45Interessante

Inspiração. Molly Soichet no seu laboratório: “Procuramos resolver grandes

problemas partindo de uma perspetiva diferente”, diz a cientista canadiana.

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SUPER46

o tempo suficiente para se poderem integrar no sistema nervoso. A investigadora responde com a invenção de um novo material. “É um hidrogel composto de ácido hialurónico e meti-lcelulose (um derivado da celulose) que favo-rece a sobrevivência e a distribuição das células depois do implante”, explica. Estudos reunidos pela revista Biomaterials demonstraram que a substância gelatinosa funciona com animais.

Outra linha de investigação desta cientista ligada à medicina regenerativa e à engenharia de tecidos procura encontrar forma de o encé-falo humano se autorregenerar quando sofre uma lesão. A sua estratégia consiste em des-pertar, com recurso a fármacos, as células estaminais presentes na máquina pensante, incapazes de reagir por si próprias.

Esses compostos incorporam “um poderoso componente que estimula o crescimento celu-lar, o fator de crescimento epidérmico, acom-panhado de eritropoietina, que promove a dife-renciação dos neurónios; para levar os com-postos diretamente ao cérebro, procuramos iludir a barreira hematoencefálica, que impede o restabelecimento das ligações perdidas”, explica Shoichet. A parede celular funciona como uma alfândega para repelir as substân-cias tóxicas ou estranhas (incluindo, e é esse o problema, os medicamentos), enquanto deixa passar oxigénio e nutrientes. “Procuramos um caminho alternativo: em vez de utilizar o sis-tema vascular, concebemos um mecanismo que nos permite contorná-lo”, explica a cien-tista. Os resultados dos promissores ensaios com este método foram publicados, há dois anos, no Journal of Controlled Release.

PARTÍCULAS AMBÍGUASNão é a única técnica que Shoichet e a sua

equipa desenvolveram relacionada com o transporte e a administração de fármacos. Foram também responsáveis por significativos avanços para enfrentar um dos grandes desa-fios da medicina atual: libertar as substâncias terapêuticas diretamente nas células malignas. Cientistas de todo o mundo estão envolvidos nessa missão, fundamentalmente através da utilização de nanopartículas. “Inventámos polímeros biodegradáveis com moléculas anfi-fílicas, isto é, que são hidrófilas [apresentam afinidade pela água] e, simultaneamente,

A cientista canadiana

fez também grandes avanços contra o cancro

hidrófobas [fogem da água]”, afirma Shoichet. Isso significa que possuem a faculdade de atrair e de repelir a água. “As moléculas autoorgani-zam-se dessa forma, como as que formam um sabonete”, compara. Enquanto a parte hidro-fóbica protege o fármaco no interior da nano-cápsula, o exterior é hidrofílico, para fluir sem entraves pelos vasos sanguíneos tumorais.

“Além de evitar a utilização de determinados compostos tóxicos, conseguimos assim que a carga da quimioterapia se acumule nas células malignas, e não nas saudáveis, como acontece nas fórmulas tradicionais”, diz a cientista. O derradeiro objetivo é atenuar os efeitos secun-

Um chuto na medula

O hidrogel criado por Molly Shoichet e a sua equipa funciona como uma espé-

cie de fato espacial. Com capacidade para se expandir ou diminuir consoante as circuns-tâncias, favorece a sobrevivência das frágeis células estaminais que são transplantadas para reparar as lesões de uma medula espinal danificada. Aumentam, assim, as possibilida-des de elas se integrarem no tecido nervoso, principal desafio destes tratamentos.

Hidrogelcarregado de célulasestaminais

Espaço intratecal(ocupado pelolíquido cefalorraquideano)

Medula espinalLesão medular

Colunavertebral

Dura-mater

Espaçoepidural

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Interessante 47

dários dos tratamentos anticancerígenos, como a anemia, a queda de cabelo, a irritação intestinal ou um funcionamento anómalo do sistema imunitário. Os primeiros resultados dos estudos com estas nanopartículas, muito animadores, foram publicados, em 2012, na revista Biomaterials.

Shoichet sublinha que as conquistas alcan-çadas até agora se tornaram possíveis graças, evidentemente, ao trabalho dos membros da sua equipa, mas também à colaboração dos biólogos celulares Derek van der Kooy, Cindi Morshead e Andras Nagy. “Procuramos resol-ver grandes problemas partindo de uma pers-petiva diferente. Como não estamos limitados pelo dogma de determinado campo, podemos explorar novas abordagens sem entraves”, assegura. Já com 215 publicações no seu currí-culo, Shoichet estuda, desde 1998, diferentes soluções para múltiplas doenças.

ATRAIR MENTES CURIOSAS

Além de se concentrar na ciência, a bioquímica canadiana está igualmente preocupada com a sua divulgação. “Embora se trate de projetos a muito longo prazo, é importante atrair a aten-ção das mentes curiosas e inspirar a imagina-ção das pessoas para o que poderá tornar-se, amanhã, uma realidade ”, considera. De facto, é uma das impulsionadoras da campanha Research2Reality, iniciativa que utiliza as redes sociais para fazer o público perceber a impor-tância das investigações e dar visibilidade a cientistas canadianos de vanguarda.

Família de pioneiras

A mãe de Molly Shoichet foi também inovadora na sua época, não no

âmbito científico, mas no do género. “Quando obteve a licenciatura univer-sitária na década de 50, havia poucas oportunidades para as mulheres, exceto o trabalho de secretária. Mais do que um teto de vidro [figura que simboliza uma barreira invisível na carreira laboral feminina], havia uma casa de vidro. Ela e as mulheres da sua geração desbravaram o caminho, embora continue a existir, inequivocamente, um teto de vidro”, diz a cientista. Perguntámos-lhe se acredita que é importante incentivar as raparigas a seguirem estudos científicos ou tec-nológicos. “Encorajo sempre as minhas colegas a avançarem nas suas careiras pa-ra quebrar essa barreira. As descobertas de hoje serão as inovações de amanhã”, reflete a investigadora. “Para podermos usufruir de uma vida melhor, temos de investir na ciência: estamos a procurar resolver grandes problemas e responder a perguntas complexas. Precisamos de inventar o futuro todos juntos, homens e mulheres. Os países que não aproveita-rem o seu potencial criativo ficarão para trás.” Um estudo de 2014 do Boston Consulting Group e da L’Oréal mostra que, enquanto a percentagem de rapa-zes e raparigas que terminam a escola secundária na modalidade de ciências é semelhante, apenas uma em cada três jo-vens acaba por obter uma licenciatura ou um doutoramento científico. “O número desce para 11% se falarmos das mulheres que seguem as suas carreiras de investi-gadoras em posições de liderança. Por conseguinte, é óbvio que enfrentamos uma canalização com fugas que têm de ser reparadas”, explica a cientista, de for-ma muito gráfica.

Nesse sentido, Shoichet considera impres-cindível envolver mais estudantes nas carreiras científicas. “Os investigadores devem acreditar que o seu trabalho lhes proporcionará qualidade de vida. O facto de os que seguem uma vocação científica não o fazerem para ficar ricos não significa que não devam ser compensados adequadamente”, afirma, acrescentando: “Quando alguém investe cinco anos, em média, para obter um doutoramento, tem de sentir que haverá um pote de ouro à sua espera do outro lado do arco-íris!”

Se as remunerações dos investigadores dei-xam muito a desejar, em geral, esse défice é ainda mais visível no caso das mulheres. A dis-criminação por género reflete-se claramente na disparidade salarial: um relatório da Secre-taria do Trabalho dos Estados Unidos (equiva-lente ao nosso ministério), por exemplo, reve-lou que as médicas e cirurgiãs recebem quase 40% menos do que os seus homólogos mascu-linos (em Portugal, segundo os últimos dados revelados pelo Eurostat, as mulheres ganham, em média, menos 13% do que os homens). Salários à parte, Shoichet reconhece que foi capaz de evitar, em grande medida, a discrimi-nação existente: “Cresci com dois irmãos mais velhos e sempre fui apaixonada pela ciência. Quando estava na escola secundária, os alunos mais inteligentes eram sempre raparigas, mas, quando entrei no MIT [Instituto Tecnológico do Massachusetts, onde estudou química] as mulheres representavam apenas 23%, pelo que me habituei a trabalhar com homens”, refere.

“Consegui evitar os que praticam a discri-minação e rodear-me de pessoas que me dão apoio. Sinto-me grata a todos os meus mento-res, tanto masculinos como femininos. Agra-deço também à L’Oréal e à Unesco por terem criado um galardão que reconhece a excelência no campo da ciência, assim como ao júri que me concedeu essa honra”, afirma Shoichet. Para concluir, faltava reconhecer o papel de publi-cações como a SUPER: “Agradeço igualmente o vosso interesse no nosso trabalho, pois é através dos meios de comunicação social que podemos incentivar e manter um maior inte-resse pela investigação científica.”

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Rede criativa. Molly Soichet (ao centro) gosta de sublinhar que

as suas conquistas não seriam possíveis sem o trabalho de

centenas de colegas e estudantes de várias formações diferentes.

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SUPER

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Interessante 49

Documento

20 ideias revolucionárias

Do passado Pág. 50

Mostramos-lhe algumas das inovações e tendências

que mudaram (ou vão mudar) a história da nossa espécie,

desde o desenvolvimento da linguagem e a fundação

das primeiras cidades até às viagens interestelares. R.C.

Do futuro Pág. 56

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Documento

O que nos mudouO aparecimento da linguagem, melhor alimentação,

a possibilidade de viajar até mais longe, a observação

dos astros, a matemática... Tudo isto impulsionou

o crescimento do cérebro e o desenvolvimento social.

Pedras misteriosas. Cerimónia em Stonhenge, ao estilo dos antigos druidas celtas. Os especialistas continuam a debater se este complexo megalítico de Wiltshire (Inglaterra) era um templo religioso, para além de um observatório astronómico.

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Interessante 51

IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

Que diferenças existem entre os seres humanos que começaram a usar pedras e ramos para criar ins-trumentos afiados e os que con-

cebem, atualmente, a tecnologia que aspira conquistar o Sistema Solar? Escrever em tabuínhas de barro e navegar pela internet parecem duas atividades muito diferentes, mas existe entre ambas uma constante da história humana: transformar, através das nossas invenções, o mundo que nos rodeia. A invenção (e o correlato da curiosidade, sem a qual não se criariam tais artefactos) é o fio que une o passado ao futuro da nossa espécie. Stanley Kubrick soube resumir essa história em breves segundos, no início de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, quando um macaco antropoide atira um osso que se transforma, em pleno voo, numa nave espacial. No espaço de um suspiro, sintetiza dois milhões de anos de progresso.

O passado explica o presente, de modo que é possível recuar (por vezes, até tempos muito remotos) para compor uma cronologia de criações e inovações que se tornaram perfeita-mente banais. Expomos, em seguida, dez ideias que contribuíram em especial para o desen-volvimento da mente humana e da civilização.

ASTRÓNOMOS E MATEMÁTICOSEm 2013, foi descoberto em Aberdeenshire

(Escócia) aquele que é considerado o calendá-rio mais antigo do mundo. Trata-se de covas alinhadas, com dez mil anos de idade, que reconstituem as fases da Lua e permitem determinar a passagem das estações e os sols-tícios. O instrumento teria ajudado os caçado-res-recoletores a determinar as mudanças de estação para prever com maior exatidão a pas-sagem de animais nas suas migrações periódi-cas. Stonehenge, o célebre círculo de pedras

de 3100 a.C. situado no sul de Inglaterra, é outro exemplo da astronomia neolítica. A pedra mais antiga do conjunto assinala o sols-tício de verão. Outras pedras talvez ajudassem a calcular os eclipses solares.

Muito mais recentes são as chamadas “rodas medicinais” ou “de cura”, formadas por um círculo de pedras e habituais no norte dos Estados Unidos. Três dos elementos da roda de Big Horn, no Wyoming, construída por volta do ano 1200, assinalam o aparecimento anual das três estrelas mais brilhantes das noites de verão: Aldebarã, Rígel e Sírio.

Os primeiros instrumentos matemáticos foram os paus talhados, utilizados para estabe-lecer quantidades. No osso de Lebombo (Sua-zilândia), com 40 mil anos de antiguidade, há 29 entalhes. O de Ishango (República Demo-crática do Congo), com 20 mil anos, é for-mado por três colunas de traços que incluem múltiplos. Uma das colunas regista números pri-mos. Este tipo de ferramentas para contagens foi utilizado até à Idade Média.

Na Mesopotâmia, as tabuínhas de barro, como a denominada Plimpton 322, que data de 1800 a.C., exibem trios pitagóricos. Por sua vez, o papiro egípcio Rhind, de 1700 a.C., é uma obra espantosa. Trata-se do mais antigo manual de matemática conhecido, no qual se expõem conhecimentos sobre números primos, uma abordagem ao número pi e mesmo processos para resolver equações lineares. Arquimedes, Galileu, Newton, Darwin e Einstein são os prin-cipais protagonistas da bem-sucedida história da ciência.

A CAPACIDADE DE FALARSegundo o biólogo evolutivo Ignacio Men-

dizabal, “todos os indícios assinalam que não somos a única espécie a dispor da linguagem, A

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Os criadores de Stonehenge alinharam as pedras para indicar o solstício de verão.

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Documento

mas que houve outras, como a linhagem nean-dertal”. O investigador, que estuda há décadas os fósseis de Atapuerca (Espanha), considera que “a linguagem apareceu muito cedo e desen-volveu-se em paralelo nas diferentes estirpes humanas, mas a origem é comum e muito antiga”.

Baseia essa conclusão num estudo inovador dos ossos do ouvido: “Trata-se de um órgão que fossiliza quase por completo e que inter-vém na comunicação oral. A capacidade de produzir sons muito subtis, de percebê-los e de utilizá-los coevoluiu com o ouvido.” O nosso órgão auditivo identifica sons de forma mais nítida do que o dos outros primatas, devido à sua adaptação à linguagem.

Segundo os linguistas, boa parte dos idiomas modernos deriva do indoeuropeu, uma língua que teria sido falada no quarto milénio antes de Cristo. O idioma teria tido diferentes varie-dades. Há 11 mil anos, haveria na Europa três blocos de dialetos: um na península Ibérica, outro em Itália e outro nos Balcãs. Segundo os investigadores, essa separação terá sido causada pela última grande glaciação, que cobriu o nosso continente de permafrost. As populações humanas abrigaram-se nesses três refúgios meridionais e ficaram isoladas.

Segundo o linguista norte-americano Merritt Ruhlen, semelhanças fonéticas presentes em todos os idiomas sugerem que todos eles (tanto os indoeuropeus como os que possuem outras raízes, como o chinês, o tibetano e o bantu)

anos, algo que só seria possível com a ajuda dos seus congéneres. Além dos cuidados, poste-riormente, já no Neolítico, foram também pra-ticadas trepanações de forma habitual. Muitas vezes, os fósseis indicam que indivíduos com os crânios brutalmente perfurados conseguiam sobreviver durante vários anos.

Quando os homens começaram a domesticar e a conviver com animais, foram também con-tagiados pelos suas doenças (zoonoses). As pandemias tornaram-se frequentes e letais, dizimando a população humana, mas as gera-ções posteriores desenvolveram sistemas imunológicos com capacidade para resistir aos novos agentes patogénicos.

No século X a.C., surgiram a medicina chi-nesa e, pouco depois, a ayurvédica da Índia e a hipocrático-galénica dos gregos, sistemas que abordavam a doença tratando, sobretudo, o contexto do paciente. A primeira coisa que perguntavam a uma pessoa doente era onde vivia e em que condições. Em contrapartida, a medicina ocidental concentrou-se diretamente na doença. Os principais feitos da história da nossa ciência médica foram os hospitais, a higiene, a invenção das primeiras vacinas e o aparecimento dos antibióticos.

CONVIVÊNCIA NA CIDADEUma cidade é uma entidade complexa que

exige, por um lado, uma administração e, por outro, arquitetos que saibam criar edifícios

tiveram uma origem comum: a língua falada pelas comunidades humanas que saíram de África há 50 mil anos.

MÉDICOS E ENFERMEIROSA doença dançou ao compasso da vida e esta

respondeu, protegendo-se. Os seres vivos encontraram soluções para resistir ao ataque de outros organismos desde épocas muito remotas da evolução, como demonstra o facto de a mosca da fruta e os seres humanos partilharem recetores de tipo toll, fundamentais para o organismo reconhecer e se defender da agres-são de vírus, bactérias e outros micróbios.

A compaixão pode ter sido uma das primeiras respostas encontradas pelos antigos humanos ao ver um congénere com artrite, um tumor, um trauma ou uma malformação. Um crânio com 1,77 milhões de anos de antiguidade, encon-trado em Dmanisi (Geórgia), pertencente a um indivíduo da espécie Homo erectus, mostra que ele viveu algum tempo sem dentes antes de morrer, pelo que teve forçosamente de receber ajuda para se alimentar. Para os autores da descoberta, “os hominídeos de Dmanisi podem ter oferecido uma assistência a indivíduos muito para além do nível observado em pri-matas não-humanos”.

Outro crânio afetado por graves deforma-ções, com 530 mil anos de antiguidade e encon-trado em Atapuerca, pertenceu a uma menina Homo heidelbergensis. Viveu até aos dez

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Encontro. Uma hipotética reunião entre homens primitivos e neandertais, espécie que talvez também tivesse uma linguagem.

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IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

que cumpram diferentes funções. Foi no IV milénio a.C. que surgiram, entre os rios Tigre e Eufrates, as primeiras cidades, A mais antiga conhecida é Uruk, um centro urbano situado junto do rio Eufrates que chegou a ter 50 mil habitantes, por volta do ano 3500 a.C.

Segundo o arqueólogo J.L. Montero, “a cidade não é uma evolução progressiva das aldeias, tal como se pensava tradicionalmente. Durante o Neolítico, o homem tornou-se seden-tário e transformou-se em agricultor e criador de gado. A humanidade do IV milénio a.C. tor-nara-se uma sociedade complexa que exigia uma nova organização para poder progredir no aspeto económico, político e sociocultural”. Os avanços nos sistemas de regadio e o comér-cio internacional de longa distância foram os fatores que contribuiram para o aparecimento de cidades.

Não surgiram, porém, isoladas, pois faziam parte de um sistema complexo: “O primeiro urbanismo do sul da Mesopotâmia no IV milé-nio a.C. foi um fenómeno global, que trans-formou o modo de vida dos seus habitantes. A partir desse núcleo de urbanização inicial, os habitantes de Uruk encetaram um pro-cesso de expansão colonial pelos territórios dos atuais Irão, Síria e Turquia, levando con-sigo o modelo urbano”. Desde então, a vida desenvolveu-se em cidades: Tebas, Babilónia, Atenas, Jerusalém, Roma, Constantinopla, Tenochtitlán...

NOVOS ALIMENTOSNo livro O Macaco Obeso, o médico espanhol

José Campillo Álvarez, especialista em nutrição e história da alimentação, explica que “acon-tecimentos cruciais na nossa evolução, como a perda dos dentes caninos, a postura ereta e o desenvolvimento cerebral, são consequências das adaptações aos diferentes ambientes ali-mentares”. Na sua opinião, podemos dividir a história evolutiva humana em quatro etapas, em função dos hábitos alimentares, que estavam sujeitos ao clima e à geologia. Cada adaptação ficou gravada no ADN e deixou uma marca indelével na nossa identidade.

Há cerca de oito milhões de anos, os australo-pitecos eram herbívoros e viviam em florestas, num clima extraordinariamente benigno. A essa primeira fase de abundância, seguiu-se, há cinco milhões de anos, uma de escassez, razão pela qual a alimentação ficou reduzida a raízes e vegetais pouco nutritivos. Segundo Campillo, “somos, em certa medida, primatas que tiveram de se adaptar a milhões de anos de fome”. A resposta evolutiva foi “a modifi-cação da dentadura e a bipedestação”. É a este período que pertence Lucy, o célebre exem-plar de Australopithecus afarensis.

Há dois milhões de anos, o cérebro cresceu e os indivíduos tornaram-se mais inteligentes, mas, para obter a energia que esse órgão de maior dimensão exigia, acrescentaram a carne ao seu regime alimentar. Essa primeira espécie

omnívora, com capacidade para criar ferramen-tas, foi o Homo habilis. O primatólogo britânico Richard Wrangham considera que esta diversi-ficação na alimentação só foi possível graças ao domínio do fogo.

A quarta fase já corresponde plenamente ao Homo sapiens, que começou a cultivar cevada e trigo, há dez mil anos, no Médio Oriente, e a criar porcos e outros animais. Novos alimentos como o pão, o queijo e o vinho foram integra-dos na dieta, e surgiram os métodos de con-servação.

Por fim, já no nosso tempo, nomeadamente desde a segunda metade do século XX, a revo-lução nas técnicas de produção e distribuição de alimentos levou a que se passasse de sofrer de desnutrição a comer em excesso, primeiro no Ocidente, depois no resto do mundo.

GRANDES MIGRAÇÕESO rasto de 70 pegadas com 3,5 milhões de

anos de antiguidade, deixadas por australopi-tecos enquanto caminhavam sobre as cinzas de uma explosão vulcânica em Laetoli (Tanzânia), constitui o vestígio mais antigo que se conhece do nosso deambular sobre a Terra. A hipótese de que os seres humanos saíram de África a pé para conquistar o mundo é a que suscita maior consenso entre os especialistas. É o que indicam os estudos genéticos baseados nas mutações de ADN (utilizadas como relógio molecular) e os restos fossilizados desenterrados, pois os mais

Carniceiros. Um grupo de Homo habilis, hominídeos omnívoros, desmancha uma zebra com a ajuda de ferramentas de pedra.

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54 SUPER

antigos foram todos encontrados em África.Por que teriam os humanos primitivos come-

çado a deslocar-se? O paleontólogo francês Jean Chaline considera, em Um Milhão de Gera-ções, que talvez tivessem seguido o rasto de manadas, pois os gnus, os antílopes e as zebras efetuavam frequentes viagens sazonais de centenas de quilómetros em função do clima e dos pastos. Chaline refere, igualmente, a procura de parceiros sexuais e “a curiosidade e o gosto pelo novo, muito acentuado entre os homens modernos, e que teve de se desen-volver, de forma progressiva, entre os nossos antepassados”.

O Homo erectus protagonizou a primeira grande debandada, há 1,8 milhões de anos, quando membros dessa espécie se estabelece-ram pela Europa, na ilha de Java, na Índia e na China. Há 50 mil anos, tribos de Homo sapiens iniciaram a segunda vaga, a qual levou o ser humano aos quatro cantos do globo. Ir a pé foi a principal forma de viajar até à domesticação do cavalo nas estepes euroasiáticas (4000 a.C.). Os cavalos revelar-se-iam um extraordinário meio de transporte e um instrumento de guerra imbatível.

COMÉRCIO CIVILIZADORPara o historiador britânico Peter Watson, o

comércio surgiu há 150 mil anos, com o apare-cimento do Homo sapiens. A troca de produtos era essencial para a sobrevivência, embora só ocorresse entre membros da mesma tribo. Os caçadores-recoletores eram autossufi-cientes, embora houvesse, esporadicamente, intercâmbio de bens com estrangeiros. Com a revolução agrícola, as tribos estabeleceram--se e criaram pequenas redes de comércio. Os indivíduos tendiam a especializar-se, mas não a tempo inteiro.

A verdadeira mudança surgiu com as primeiras cidades. Com a aglomeração de pessoas, a especialização adquiria todo o sentido: um indi-víduo podia dedicar-se exclusivamente a uma tarefa, pois haveria suficientes pessoas a solici-tar os seus serviços. Assim, as cadeias de trocas de favores tornaram-se complexas. Quantas maçãs eram precisas para ter um par de sapatos novos? Quanto trigo em troca de um recipiente de barro?

A invenção do dinheiro, um meio universal de troca que permite às pessoas transformar quase tudo em quase tudo, como diz Yuval Noah Harari em De Animais a Deuses (Sapiens) – Uma Breve História da Humanidade, é con-sequência de uma revolução mental. O his-toriador assinala que o dinheiro não nasceu com a cunhagem de moedas. Antes, foram utilizadas conchas de moluscos na África, na Ásia e na Oceania, ou barras de sal como uni-dade de câmbio. Segundo o historiador grego Heródoto, as primeiras moedas foram cunha-

das na Ásia Menor, no século VII a.C., com o objetivo de cobrar impostos.

A REVOLUÇÃO DA ESCRITASegundo a antropóloga e arqueóloga cana-

diana Genevieve von Petzinger, da Univer-sidade de Victoria, é surpreendente que nin-guém se tivesse interessado por analisar os estranhos traços (como semicírculos ou triân-gulos) que acompanham as figuras de animais e caçadores das pinturas rupestres. Após um estudo comparativo de exemplares com dez a 35 mil anos de antiguidade, observou que se usavam sinais idênticos em cavernas muito dis-tantes entre si, e que o sistema gráfico quase não sofrera alterações durante esse tempo.

Para Von Petzinger, tal conclusão só podia

ser explicada partindo de princípio de que se tratava de manifestações de um código utili-zado pelas primeiras tribos que migraram de África: “Essa incrível diversidade e a continui-dade de utilização sugerem que a revolução simbólica pode ter ocorrido antes da chegada dos seres humanos à Europa”, considerou a canadiana no seu estudo.

Trata-se de uma verdadeira escrita ou deve-mos considerar que constituem os primeiros esforços para representar ideias através de símbolos? Os especialistas acreditam que são preâmbulos e que a escrita propriamente dita nasceu no IV milénio a.C., simultaneamente no Egito e na Mesopotâmia. A escrita, um feito transcendental para a história humana, poderá ter tido origem em Uruk, por volta de 3200 a.C.

Documento

Sábios. Sócrates, Platão e Aristóteles, entre outros, surgem no fresco Escola de Atenas, de Rafael, no Vaticano.

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55Interessante

IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

Era formada por sinais pictográficos escritos sobre tabuínhas de barro, usadas como sis-tema de contabilidade para os cereais, o gado e a cerveja. Foi também encontrada, no México, uma mensagem com 2650 anos, dirigida a um rei olmeca, que constitui a primeira amostra de escrita no continente americano. Alguns dos mais antigos textos escritos, como os da civi-lização proto-elamita (surgida no território do atual Irão, também no IV milénio a.C.), conti-nuam por decifrar.

PERFEIÇÃO PELA EDUCAÇÃOSegundo Francisco Vergara, coautor de uma

História da Educação, esta “existe desde que existe o primeiro homem”. Vergara define-a como um ideal de perfeição que está presente

desde a Antiguidade nas culturas orientais e ocidentais. Trata-se de uma atividade associada ao desenvolvimento da própria civilização, modelo social que exige que as novas gerações se cultivem. Na Babilónia, o sacerdote era res-ponsável por transmitir a cultura.

De acordo com o especialista, “os pensado-res gregos estabeleceram os grandes ideais de perfeição humana de modo formal: Sócrates afirmava que a virtude existe e que pode ser alcançada através da educação”. Foi também na Grécia que surgiram as primeiras institui-ções docentes, como a Academia de Platão e o Liceu aristotélico. “Eram instituições magis-trocêntricas”, indica Vergara, nas quais todo o ensino girava em redor de um mestre, seguido pelos seus discípulos.

Em contrapartida, a universidade é uma insti-tuição genuinamente medieval, que nasceu no século XIII e se distingue por se tratar de uma “corporação de professores e estudantes que se reúnem para adquirir o saber na sua máxima aceção”. O mais importante da ins-tituição pedagógica já não é o mestre, mas a própria universidade.

A universidade representa um passo em direção à abstração: em vez de mestres e discípulos, há professores e estudantes. Era um espaço consagrado a cultivar o saber e à transmissão do conhecimento. As primeiras universidades foram fundadas a partir do final do século XI: Bolonha (1088), Paris (1150), Oxford (1167)... Após a Revolução Francesa, o ensino passou a ser competência do estado.

FILHOS DA VIOLÊNCIAO primeiro crime documentado da história

ocorreu em Atapuerca, onde foi encontrado um fóssil com 430 mil anos pertencente a um jovem morto com dois golpes profundos na cabeça. Ignora-se com que arma foi agredido. Não se trata de um caso isolado de violência na nossa evolução. Embora se tenha generali-zado a ideia de que os caçadores-recoletores viviam pacificamente em contacto com a natureza, arqueólogos e paleontólogos estão a descobrir vestígios de episódios brutais.

Na caverna de Ofnet, na Baviera (Alemanha), foram encontrados os restos de 38 indivíduos do Mesolítico (homens, mulheres e crianças) mortos de forma traumática, com vértebras separadas do tronco. O cemitério de Jebel Sahaba (Sudão) guarda ossos fossilizados de há 12 mil anos, com setas e lanças incrus-tadas. Na jazida arqueológica de Téviec, na Bretanha (França), há um esqueleto com duas flechas nas vértebras. Os nossos avós agrediam-se com garrotes, facas, flechas... Havia guerras pelo domínio de um território, mas também se registavam numerosos assas-sínios rituais.

Os níveis de agressividade variavam de uma região para outra. Em algumas escavações, a média de mortes violentas é semelhante à atual, mas muito superior noutras regiões. Segundo o historiador Yuval Noah Harari, os caçadores-recoletores demostravam um grau de beligerância muito variado. Enquanto havia paz e tranquilidade em algumas zonas e em cer-tos períodos de tempo, sucediam-se ferozes conflitos noutras áreas. Depois de estudar tribos como a dos yanomamis, na Amazónia, que mantêm até hoje estilos de vida que cons-tituem janelas para o passado, o antropólogo Napoleon Chagnon, da Universidade do Mis-souri, documentou um grande número de conflitos e episódios violentos, o que afasta a ideia de que a vida dos caçadores-recoletores decorria em paz e harmonia.

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SUPER56

Documento

O que nos vai mudarOs constantes avanços em eletrónica, biociências e materiais

permitem entrever um futuro hipertecnológico, no qual

cidades inteligentes dominarão a paisagem, e os seus habitantes,

mais saudáveis e longevos, poderão comunicar por pensamento.

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Interessante 57

IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

Do mesmo modo que os nossos ante-passados conseguiram avanços revolucionários, os nossos descen-dentes irão desenvolver tecnologias

que poderão mudar tudo. Foi o que aconteceu, há não muito tempo, com a internet, que trans-formou tanto as comunicações como a própria essência das relações humanas. Contudo, o futuro, além de incerto, é complexo, e qualquer tentativa de abordá-lo torna-se, inevitavel-mente, simplista.

Até para os especialistas em antecipação tecnológica é impossível prever o emaranhado de conexões e os efeitos que uma inovação poderá exercer no tecido social. Isto é, não

temos maneira de saber, com absoluta certeza, se continuaremos a progredir muito mais, se permaneceremos muito tempo numa espécie de ponto morto (durante o Paleolítico, o modo de afiar pedras não se alterou durante milhares de anos), ou se a nossa espécie sobreviverá.

Sejamos, porém, otimistas. A que podemos aspirar se as coisas não derem para o torto? O astrofísico russo Nikolai Kardashov considera que em breve dominaremos todo o potencial da Terra, o que, na sua singular classificação, nos transformaria numa civilização de tipo I. Uma civilização de tipo II controlaria o Sistema Solar; uma de tipo III, toda a galáxia. Muito antes disso, talvez possamos deparar com

Destino: Lua. É inevitável que, nas próximas décadas, nos instalemos de forma mais ou menos permanente na Lua. A questão, agora, é encontrar as melhores formas de o fazer.

alguns dos dez pressupostos que apresenta-mos em seguida; com efeito, já todos estão em marcha, de uma maneira ou de outra.

COLONOS DO COSMOS

O astrofísico Stephen Hawking está razoa-velmente convencido de que a nossa espécie não sobreviverá se não conseguir expandir-se pelo espaço. Efetivamente, na opinião do cien-tista, nem será preciso passar mil anos antes que um grande desastre natural, uma guerra nuclear ou um vírus nos encoste às cordas. De facto, talvez micróbios terrestres já tenham alcançado outros pontos do Sistema Solar, a bordo de sondas mal esterilizadas.

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Documento

Alguns micr0-organismos extremófilos já demonstraram conseguir resistir às duras con-dições do espaço exterior, mas não é o caso do ser humano. Os astronautas que desempe-nham missões prolongadas na Estação Espacial Internacional têm de lidar com as radiações que inundam o espaço e desenvolvem diversos problemas físicos, como perda de musculatura e de massa óssea. Alguns poderiam ser resolvi-dos com a construção de naves e infraestrutu-ras orbitais que proporcionem uma gravidade artificial, mas, possivelmente, só a manipulação genética nos permitirá sobreviver às longas viagens interestelares.

Neste campo, há muitas ideias, mas poucas se materializam. A ESA e o Sasakawa Interna-tional Center for Space Architecture contem-plam propostas tão engenhosas como utilizar impressoras 3D para construir uma base no nosso satélite in situ, com recurso ao rególito lunar. Por sua vez, o projeto 100 Year Starship analisa as tecnologias necessárias a desenvol-ver nos próximos cem anos para podermos construir uma nave capaz de alcançar outros sistemas num espaço de tempo razoável.

Seja como for, não iremos muito longe se não se registarem avanços nos sistemas de propulsão. Com os atuais, levaríamos dezenas de milhares de anos a viajar até Proxima Cen-tauri, uma anã vermelha que fica a apenas 4,2 anos-luz. O motor elétrico VASIMR (ainda um protótipo), concebido pela companhia Ad Astra, permitiria, segundo os seus responsá-veis, chegar a Marte em 39 dias. A nave Curio-sity, por exemplo, levou oito meses.

AMONTOADOS EM MEGACIDADESAlguns modelos demográficos sugerem que,

por meados do século XXI, cerca de 8000 milhões de pessoas (três quartos da humani-dade, na altura) viverão em enormes cidades. A própria existência desses imensos espaços urbanos já constitui uma resposta ao problema da massificação; se todos os seus habitantes vivessem dispersos, seria necessário construir uma gigantesca rede de infraestruturas e o consumo energético subiria em flecha.

Assim, o aumento da população exigirá que as próximas grandes metrópoles, que surgirão na China, na Índia e em África (possivelmente nas margens do lago Vitória), tenham de se adaptar para poder acolher um número cres-cente de pessoas. Inevitavelmente, estas vive-rão mais apinhadas, o que dará origem a um problema de sustentabilidade. Como satisfazer as suas necessidades sem comprometer o futuro? Num tal cenário, os recursos continua-rão a ser limitados, de forma que o acesso à água potável e às fontes de energia provocará ten-sões importantes.

Os especialistas em prospetiva científica e tecnológica consideram que se deverão criar,

dos recursos. As cidades do futuro, completa-mente interligadas, serão autónomas e poderão regular o trânsito, controlar a poluição e o trata-mento das águas residuais, coordenar as equi-pas de emergência e segurança e promover a assistência na saúde.

COLAPSO IDIOMÁTICONo ano passado, o linguista John H. McWhorter,

da Universidade de Columbia (Nova Iorque), avisava num artigo publicado no Wall Street Journal que, provavelmente, só se falarão 600 línguas em todo o mundo no princípio do século XXII, isto é, um décimo das que existem atualmente. A perda seria favorecida pela migração em massa do campo para a cidade que os especialistas vaticinam, pois os descendentes

para evitá-lo, zonas em redor de cada centro urbano onde se produzam bens de primeira necessidade e se reciclem os resíduos. As cida-des serão, por conseguinte, autossuficientes.

Como é óbvio, a tecnologia será fundamental. Não só garantirá a obtenção e o processamento dos recursos como promoverá a interligação e a cooperação entre os cidadãos de um modo nunca visto. O conceito de cidade inteligente, a cujo nascimento estamos a assistir, tornar-se-á uma realidade.

Numerosas administrações urbanas já desen-volvem projetos nesse sentido. Consistem, essencialmente, em utilizar recursos tecnoló-gicos, redes de comunicação e sensores para reunir dados, oferecer serviços mais personali-zados e conseguir maior eficiência na utilização

Mundos cruzados. Os bairros mais avançados das grandes cidades abraçarão os antigos centros rurais.

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IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

dos emigrantes preferirão adotar os costumes do novo ambiente.

Quando se partilha uma língua, promove-se o intercâmbio e a colaboração. No entanto, com o aperfeiçoamento dos sistemas de tra-dução automática, o idioma de cada interlo-cutor poderá acabar por se tornar irrelevante. É possível que os avanços em computação e miniaturização de componentes eletrónicos permitam interpretar instantânea e eficaz-mente qualquer idioma.

Num futuro próximo, embora a influência económica de um país continue a ser determi-nante para que um grande número de pessoas adote a sua língua, outros fatores poderão limitar esses efeito. É o caso do mandarim. A dificuldade em dominá-lo poderá levar as elites

do colosso asiático a optarem por exercer a sua autoridade em inglês. Além disso, é pro-vável que espanhol, francês e português con-tinuem a ser muito relevantes. Contudo, os idiomas sobreviventes serão muito diferentes das suas atuais versões. A comunicação será facilitada com a absorção de novos termos e expressões. Não só serão menos falados, como mudarão com rapidez.

BIFES ARTIFICIAISA alimentação do futuro será definida por

uma total adaptação às necessidades do con-sumidor, de modo que intolerâncias e aler-gias deixem de constituir um problema. Por exemplo, já se desenvolveu trigo transgénico apto para celíacos, que deverá ser lançado

no mercado dentro de três ou quatro anos. Graças a este tipo de produtos adaptados às nossas enzimas e ao nosso metabolismo, será também mais fácil tratar outros problemas que continuarão a existir, como a obesidade.

Os alimentos personalizados resultarão da exploração de organismos transgénicos, gene-ticamente modificados para apresentarem as características pretendidas. Atualmente, já são utilizados, mas ainda suscitam muitas reticên-cias. Segundo os especialistas, isso deve-se sobretudo ao facto de apenas beneficiarem, atualmente, alguns agricultores. A rejeição diminuirá quando se desenvolverem transgéni-cos que beneficiem diretamente o consumidor, como tomates que evitam o cancro ou carne com baixo teor de colesterol.

A outra grande alteração na nossa forma de comer será protagonizada pelas carnes arti-ficiais. Ficção científica? Nada disso. Em 2013, investigadores da Universidade de Maastricht (Países Baixos) apresentaram o primeiro ham-burger de laboratório, elaborado com base em células estaminais de vaca. Os cientistas esti-mam que, em pouco mais de uma década, este tipo de produtos poderá ser comercializado em grande escala, o que reduzirá o impacto ambiental suscitado pela criação de gado.

SAÚDE EM CASAO historiador José Pardo Tomás considera que

a medicina, em si, é um fator pouco relevante nos progressos verificados na saúde da popu-lação em geral. Segundo o especialista, é mais importante o ambiente doméstico ser saudá-vel, poder dispor de uma rede de saneamento básico e as escolas conseguirem impor respeito pelas normas de higiene. No entanto, nos próximos anos, a prevenção e o diagnóstico conhecerão um avanço considerável.

Para Roderic Guigó, um especialista em bio-logia computacional que estuda o modo como se exprime a informação contida no ADN, em breve uma simples análise sanguínea permitir--nos-á detetar de imediato se temos diabetes ou predisposição para sofrer de uma doença cardiovascular. Além disso, graças a um maior conhecimento do funcionamento metabólico, poderemos ter acesso a tratamentos persona-lizados. Para isso, teremos em casa dispositivos para controlar o nosso estado de saúde e nos avisar de imediato se detetarem uma patologia.

A tecnologia também virá em nosso socorro quando precisarmos de substituir um órgão. A equipa coordenada por Anthony Atala, diretor do Instituto de Medicina Regenerativa Wake Forest (Estados Unidos), conseguiu produzir bexigas e rins em laboratório. Embora ainda falte muito para as primeiras vísceras obtidas com impressoras 3D serem testadas em seres humanos, já estão a verificar-se grandes avan-ços nesse sentido.

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GUERREIROS DE ALTA TECNOLOGIANo final de 2014, o primatólogo Richard

Wrangham, da Universidade de Harvard (Esta-dos Unidos), afirmou durante uma reunião de especialistas no estudo das nossas origens que a espécie humana estava a domesticar-se a si própria. O processo teria envolvido alterações morfológicas e comportamentais. Por um lado, os seres humanos modernos são mais ágeis e atléticos do que os seus robustos antepassa-dos. Por outro, Wrangham assinalou que está a verificar-se uma diminuição dos comportamen-tos violentos em geral, tese também defen-dida pelo psicólogo cognitivo Steven Pinker. Este afirma que, apesar dos conflitos regionais e episódios violentos que conhecemos, vivemos na época mais pacífica da história.

Isso não significa o fim das guerras. Conti-nuarão a existir, mas os cenários mudarão. A sociedade, cada vez mais dependente da inter-net, será vulnerável aos ciberataques, e os terroristas já incluem entre os seus objetivos infraestruturas informáticas, centros de dados, etc. O filósofo norte-americano Daniel Dennett expôs a situação sem meias palavras numa das suas conferências: “Se a internet for abaixo, assistiremos a vagas de pânico mundial.” Dennett considera fundamental, por esse motivo, manter as principais estruturas sociais fora da rede digital.

Contudo, esta será apenas uma das dimen-sões das formas de guerra não convencionais que surgirão no futuro. Por exemplo, já foram dados passos para o desenvolvimento de dro-nes de combate autónomos, com capacidade para desempenhar missões sem intervenção humana, e trajes de camuflagem ativos, que tornam invisível quem os veste.

EXAMES DIGITAISNo futuro imediato, continuará a haver esco-

las, pois desempenham uma função impres-cindível para o desenvolvimento a todos os níveis. Na etapa da escolaridade obrigatória, as escolas dão formação às crianças, mas tam-bém se ocupam delas para que os pais possam trabalhar. Haverá quadros interativos nas aulas e os alunos terão dispositivos digitais pessoais. Isso permitirá ajustar o ensino à evolução de cada um e facilitará o trabalho em equipa. As disciplinas também se adaptarão aos novos tempos: as centradas na programação e nas atividades digitais adquirirão maior peso.

Na fase do ensino superior, não obrigatório, as ferramentas e os cursos virtuais serão cada vez mais importantes. Essa tendência já pode ser observada em projetos como os da Khan Academy, que proporciona milhares de vídeos educativos de primeira qualidade sobre biolo-gia, física, química... Além disso, muitas uni-versidades já oferecem cursos gratuitos online através de diversas plataformas. Porém, as

aulas presenciais não desaparecerão, pois um bom professor é um valor acrescentado.

CIÊNCIA SEM CIENTISTASTudo parece indicar que, nas próximas déca-

das, desaparecerá a figura do investigador soli-tário a trabalhar no seu laboratório. O trabalho científico será muito mais fruto de colaboração do que atualmente, e já existem exemplos disso. Em 2015, um estudo sobre o bosão de Higgs publicado na revista Physical Review Letters era

assinado por mais de 5000 autores. Todavia, o método científico não sofrerá alterações. É a opinião do físico Jorge Wagensberg, o qual considera que este “é o que permite distinguir o que é ciência daquilo que deixou de sê-lo”. “O método será o mesmo; a metodologia é que poderá variar”, afirma o especialista.

Muitos cientistas e divulgadores concordam com Wagensberg. Contudo, o antigo diretor da revista Wired, Chris Anderson, adverte que o volume de dados que se produz atualmente

Documento

Lição individual. O uso de avançadas interfaces digitais permitirá proporcionar a cada aluno materiais pedagógicos personalizados.

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IDEIAS REVOLUCIONÁRIAS

torna obsoleto o método científico, pois já é possível analisá-los sem partir da comparação de hipóteses. Anderson resume deste modo o futuro que se avizinha: “Podemos introdu-zir os valores obtidos em supercomputado-res e permitir que os algoritmos encontrem padrões que a ciência convencional não é capaz de descobrir.” Um exemplo ainda rudi-mentar dessa tendência é o programa Eureqa, que deteta leis e correlações ocultas num con-junto de dados.

MILIONÁRIOS NA NUVEMAs autoridades da Dinamarca e da Alemanha

estudam há já algum tempo a possibilidade de eliminar o dinheiro real, de modo que os paga-mentos só possam ser feitos através de dispo-sitivos eletrónicos. É o que já acontece com cartões, telemóveis e relógios digitais. Seja como for, é provável que o método acabe por se impor. Não é por acaso que, hoje, mais de 90 por cento da riqueza mundial não passa de pura informação, armazenada em inúmeros

servidores. Porém, uma coisa são os paga-mentos e as cobranças por meios digitais e outra, muito diferente, a utilização de moedas virtuais, como o Bitcoin, criado em 2009.

Uma moeda virtual apresenta interessantes vantagens. Por exemplo, não precisamos de um banco para poder usá-la, e não pode ser controlada por qualquer estado. “Devolve o poder e a liberdade de escolha à sociedade civil num âmbito essencial para a cooperação, o desenvolvimento e o bem-estar”, explica Miguel Vidal. O especialista assegura que a moeda digital garante a privacidade entre particulares e permite ao utilizador não ter de confiar as suas poupanças a terceiros.

Talvez esta moeda virtual não triunfe, mas os peritos concordam que a tecnologia subja-cente, denominada “cadeia de blocos”, aca-bará por se impor. Miguel Vidal define-a deste modo: “É a base de dados que todos os par-ticipantes partilham que confere ao Bitcoin as suas propriedades únicas; através dela, as transações ficam registadas e são seguras, irreversíveis e públicas, sem necessidade de confiar na outra pessoa, num banco ou num notário. É um novo paradigma que poderá reconfigurar totalmente a atividade social.”

CIBERTELEPATASNo livro O Futuro da Nossa Mente, o físico teó-

rico Michio Kaku, da Universidade da Cidade de Nova Iorque, especula sobre a possibilidade de utilizar a tecnologia para comunicarmos mentalmente com os computadores, e poder-mos assim telefonar, pagar faturas, reservar um hotel ou escrever sem mexer um músculo.

A ideia é captar a atividade cerebral para criar um dicionário do pensamento, no qual se estabelece uma correlação entre os dados obtidos e o que o indivíduo pensa e apreende. Assim, esse glossário seria utilizado para tra-duzir as ideias em instruções, as quais seriam então processadas por um computador.

Até agora, Jack Gallant, especialista em neurociência cognitiva e computacional da Universidade da Califónia em Berkeley, já demonstrou que é possível reconstituir as imagens que uma pessoa está a ver em tempo real através da sua atividade mental, registada por uma ressonância magnética funcional. Noutras experiências desenvolvidas por dife-rentes equipas de neurocientistas, tetraplégi-cos com microelétrodos implantados no cére-bro conseguiram controlar braços robóticos apenas com impulsos nervosos.

De facto, a Agência de Investigação de Pro-jetos Avançados para a Defesa (DARPA), dos Estados Unidos, mostrou, em 2015, a forma como uma mulher imobilizada por uma doença neurodegenerativa, a quem fora implantada uma ligação neural, dirigia com a mente um simulador de um caça.

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Investigar aOXITOCINA

Psicologia

Controlamos o comportamento?

É bom pensar que temos o controlo sobre o que decidimos ou fazemos, mas, afinal, basta uma troca

de olhares ou um toque no nosso corpo para produzir alterações químicas no cérebro capazes de nos levar a confiar ou cooperar com alguém.

A neurobióloga Diana Prata explica como.

O projeto ganhou forma há quatro meses e, ao longo dos próximos cinco anos, vai estudar os com-portamentos de cooperação, con-

fiança e competição em cerca de 300 pessoas. O objetivo é compreender os mecanismos e os efeitos da oxitocina, uma substância produzida no hipotálamo que tem a capacidade de influen-ciar a nossa disposição para colaborar com as outras pessoas. Pelo meio, surgem duas perguntas incómodas. Até que ponto o com-portamento humano é biologicamente deter-minado? É possível manipulá-lo através de fár-macos? À frente do estudo, e de uma equipa formada por um médico, um engenheiro biofí-sico, duas psicólogas, uma bióloga e uma mate-mática, está a neurobióloga Diana Prata, ven-cedora de uma bolsa Marie Curie de Integração Carreira, da União Europeia, no valor de cem mil euros.

O quartel-general onde as investigações terão lugar é o Instituto de Medicina Molecu-lar, da Universidade de Lisboa. Aí, e ao longo de dois dias, os candidatos serão submetidos a uma bateria de testes, com destaque para as imagens por ressonância magnética, para ver o que acontece no cérebro em tempo real. “Estou interessada em jogos que envol-vam dilemas sociais, para ver o que as pessoas decidem e o que acontece no cérebro quando estão a fazê-lo”, explica a cientista. Basica-mente, quer-se saber que zonas se ativam quando nos decidimos por um comporta-

mento pró-social ou egoísta, por exemplo. Já agora, que mecanismos são desencadeados na massa cinzenta quando vemos uma cara que nos inspira mais ou menos confiança? A equipa vai também medir os níveis de oxito-cina no sangue e ver que genes podem ter um papel a desempenhar.

Um dos desafios deste tipo de estudos é desmontar muitas das assunções que temos sobre nós próprios, mesmo que sejam ilusão. Neste capítulo, Diana Prata é perentória: as pessoas acreditam que existem fatores bioló-gicos ligados às doenças psiquiátricas, mas não que eles estejam associados aos comporta-mentos do dia a dia. “Ora, isto não faz sentido”, diz. “Se a biologia está envolvida numa das situações, então também está na outra.” Está dado o mote para a conversa.

MANIPULAÇÃO SOCIALA equipa que lidera vai tentar perceber como

os fatores biológicos influenciam a cognição e o comportamento. Contudo, grande parte da vossa atenção recai sobre um único suspeito, a oxitocina. O que tem ele de tão especial?

É o que estamos a tentar descobrir. Há estudos que demonstram que as pessoas “manipuladas” pela oxitocina, ou seja, quando a inalam pelo nariz, não só têm comportamentos mais pró--sociais, conseguindo adivinhar melhor as emo-ções de outras pessoas ao olhar para as suas fotografias, como se revelam mais generosas. Por exemplo, em alguns testes, e em média,

quem recebia oxitocina dava a outra pessoa uma maior parte de um prémio entregue pelo experimentador. Há, igualmente, outros estudos relacionados com a confiança, em que um jogador espera que o seu ato coope-rante seja retribuído pelo outro. Por exemplo, quanto mais dinheiro eu investir inicialmente em alguém, mais espero que essa pessoa parti-lhe o que vier a ganhar, embora ela possa ficar com o dinheiro todo. Nesses testes, verificou-se que os que mais davam eram os que, anterior-mente, tinham recebido a oxitocina. Todas estas experiências são ainda muito prelimina-res, faltando mais estudos que deem consis-tência aos resultados.

Em que partes do cérebro atua a oxitocina? Com que efeitos?

A oxitocina reduz a atividade da amígdala, uma zona do cérebro que sinaliza o medo, como quando vemos expressões de medo nos outros. Ela faz a amígdala ser menos ativada e, julgamos nós, isso leva a que o medo se reduza, pois tam-bém se observou que a oxitocina reduz a ansie-dade. Em algumas experiências, as pessoas passaram, depois de inalarem oxitocina, a identificar algumas caras como sendo menos assustadoras, em comparação com o que tinham antes indicado. Também há indícios de que ela aumenta a ativação do centro de “aprendizagem por recompensa” no cérebro, o estriado.

MAIS PRAZER, MAIS CONFIANÇAÉ isso que faz aumentar a nossa confiança em

relação a alguém e querer cooperar mais?Pelo menos, quando se trata de uma pessoa

que não pertence a outro grupo competidor, pensa-se que a oxitocina nos ajuda a aproximar dela, levando a que haja uma atitude de maior confiança, podendo crescer com a repetição de interações cooperantes. O que estamos a tentar fazer no Instituto de Medicina Molecular é perceber o mecanismo envolvido. O projeto que estamos agora a começar quer entender como é que ela atua na amígdala e no estriado. Uma das hipóteses que avançamos é que a atitude de confiança poderá dever-se a uma estimulação no sistema de prazer, tornando mais recompensante uma interação social que consideramos ser boa. Essa interação pode já ser recompensante, mas talvez a oxitocina torne a sensação ainda mais forte, e, dessa forma, aumente a suscetibilidade para confiar e cooperar. Para isto, precisamos de saber, por exemplo, onde estão exatamente e como tra-balham os recetores de oxitocina no cérebro humano.

Curiosamente, as experiências para conhecer melhor a influência da oxitocina só se tornaram comuns há cerca de uma década, apesar de se saber, há muito, que são várias as situações em que o corpo a produz de forma natural.

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63Interessante

O que se passa no cérebro?Diana Prata vai estudar, ao longo dos próximos cinco anos, até que

ponto o comportamento humano é biologicamente determinado pela

oxitocina, uma substância capaz de estimular a vontade para cooperar

e coniar nas outras pessoas.

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SUPER64

Ela está sempre presente no nosso corpo, mas o seu nível aumenta, e muito, em deter-minadas situações sociais: quando recebemos uma massagem ou fazemos festas a um animal, por exemplo. Aliás, sabe-se que basta olhar para um cão para o nível de oxitocina aumentar, tanto no nosso cérebro como no do animal. Ou seja, este acréscimo ocorre em situações de interação, até por via de um simples toque no nosso corpo, quando há um abraço, uma troca de olhares ou durante o orgasmo, sendo que neste último caso a oxitocina é libertada explosivamente. O seu nível também aumenta durante o parto e a amamentação. Durante muito tempo não se investigou a oxitocina porque ela estava muito associada, precisa-mente, ao parto e à amamentação: daí que se manipulasse o nível de oxitocina para induzir ou retardar o parto, ou então fazia-se com que as mulheres a inalassem para as ajudar a amamentar, quando não o conseguiam. Só há cerca de dez anos se começou a estudar a influência da oxitocina nos homens. Foi então que se percebeu que também tinha efeito nas atitudes sociais, fora da maternidade.

Os nossos genes costumam ter uma palavra a dizer no que respeita aos comportamentos que desenvolvemos. Vão procurar ligações entre eles e a oxitocina?

Vamos procurar mutações no recetor da oxi-tocina que possam ter impacto na tendência para as pessoas cooperarem e, além disso, na ativação do sistema de prazer no cérebro quando se está a receber a cooperação de outra pessoa. Também vamos ver como outros fatores nas nossas células podem regular o efeito dessas mutações. Acaba por ser uma forma de estudar a influência da oxitocina sem ser necessário fazer uma manipulação dos seus níveis. Quer dizer, posso dar oxitocina a uma amostra de pessoas e a outra não, e ver o que acontece em ambos os casos, mas também posso fazer uma comparação entre pessoas que, naturalmente, têm um maior e um menor nível de oxitocina, sendo que essa diferença natural pode dever-se, em parte, aos genes.

SEM CONFIANÇA, NÃO HÁ SOCIEDADEA cooperação é uma das principais caracte-

rísticas de uma sociedade, permitindo-lhe pros-perar e enfrentar dificuldades. Tendo em conta o que hoje se conhece, podemos afirmar que aprendemos a cooperar porque foi a nossa parte biológica que o ditou? Houve circunstâncias

específicas que deram vantagem aos mais pre-dispostos à cooperação?

As duas coisas trabalham juntas e, ao longo da evolução, as possibilidades vão sendo criadas ao mesmo tempo que surgem as necessidades. A seleção natural para os comportamentos de cooperação, que são mediados pela oxitocina, terá tido um papel importante. Se não tivesse existido qualquer pressão ou necessidade de cooperar com outros, se não estivéssemos a viver em grupo ou não fosse preciso caçar em grupo, e se não tivéssemos de cuidar de um bebé (algo que custa muito em humanos e que lucra com a ajuda de um parceiro), então não teria existido essa pressão seletiva. Provavel-mente, a oxitocina terá sido, em primeiro lugar, selecionada pela natureza devido ao papel cru-cial que tinha na reprodução e na maternidade. Contudo, parece que ambos os sexos (tanto nos humanos como noutros mamíferos, nomeadamente primatas, ratos e morcegos) a aproveitaram para as mais diversas situações sociais, como o estabelecimento de relações de cooperação. Deste modo, a proximidade deixou de ocorrer somente com os filhos ou com o parceiro sexual, estendendo-se às res-tantes pessoas.

No fundo, tudo se resume a confiar. A con-fiança nos outros é a argamassa das sociedades humanas…

Para interagirmos com todas as pessoas em

Basta olhar para um cão

para aumentar o nível de oxitocina

nosso redor, é sempre preciso um grau de con-fiança nos outros. Ela está subjacente a quase tudo o que fazemos, desde fazer amizades e filhos a comprar ações nos mercados, assinar contratos de trabalho, etc. É graças a essa con-fiança que os sistemas políticos e económicos se mantêm vivos, por exemplo.

TRATAR O AUTISMOOutra das áreas em que tem feito investiga-

ção é a das doenças mentais. Existe alguma rela-ção entre estas e a oxitocina?

Tudo indica que existe uma disfuncionali-dade nos casos de autismo. Quando se estimula exteriormente os níveis de oxitocina em autistas, eles conseguem reconhecer com maior eficácia as expressões faciais, pois vão olhar mais para a cara das pessoas, nomeadamente para os olhos. Ou seja, os seus sintomas melhoram, mas ainda não se percebe muito bem o que acontece, nem se sabe, com total certeza, se os níveis de oxitocina são mais baixos no autismo: os dados existentes são inconsistentes. Talvez seja uma questão de recetores: pode haver menos recetores de oxitocina em áreas fulcrais do cérebro, como as que estão ligadas ao comportamento social, ou então essas áreas foram simplesmente construídas de forma diferente.

De momento, ainda não existe um spray mila-groso, um fármaco à base de oxitocina, capaz de

Ele gosta. Julga-se que a oxitocina seja a responsável pela forte relação que existe entre humanos e caninos.

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Interessante 65

Na década de 80, o politólogo Robert Axelrod lançou a hipótese de o comportamento altruísta ter evoluído a partir do egoísmo

A longo prazo, o altruísmo ganha sempre

A lei de Talião, cuja origem remonta a muito antes da era cristã, consiste na

ideia de que para cada crime deve existir uma retaliação (uma pena) rigorosamen-te igual: olho por olho, dente por dente. Os biólogos usam um conceito parecido, neste caso para explicar como os grupos de animais evoluíram e passaram a viver em sociedades grandes e cooperativas, privilegiando o altruísmo em vez do indi-vidualismo: os anglo-saxónicos dão a esta ideia o nome de tit for tat, que em portu-guês pode traduzir-se por “olho por olho”. Trata-se de uma estratégia segundo a qual determinado agente (por exemplo, uma pessoa) responderá de forma reciproca-mente igual a uma ação anterior de um outro indivíduo. Ou seja, se o oponente cooperou antes, a pessoa fará o mesmo; se o primeiro não o fez, então sofrerá uma retaliação por parte do segundo indiví-duo.Coube ao politólogo norte-americano Robert Axelrod trazer o conceito de “olho por olho” para o seio da teoria dos jogos, popularizando-o, tendo organizado em 1980 um torneio em que os participantes tinham de encontrar uma estratégia para um jogo baseado no “dilema do prisionei-ro”. As premissas deste dilema são simples. Dois amigos cometeram um crime e foram presos, mas cada um está numa cela diferente, o que os impede de comunicar. Entretanto, a polícia faz um acordo com ambos: (1) se um deles confessar e o outro negar a autoria do crime, o primeiro é solto e o companheiro cumpre uma pena de dez anos de prisão; (2) se ambos confessarem, receberão uma pena de seis anos; (3) se os dois negarem ter cometido o crime, então irão para a prisão durante seis meses. O que deve fazer cada amigo? Outro jogo baseado neste é o “dilema do prisioneiro iterado”. A

diferença é a possibilidade de os dois prisio-neiros poderem jogar várias vezes seguidas. Nesta nova versão, eles conhecem a decisão que o amigo tomou anteriormente, o que lhes permite mudar de estratégia. Deste modo, cada jogador tem a possibilidade de castigar o outro quando este não optou pela cooperação em jogos anteriores, pelo que os comportamentos egoístas podem ser castigados.Entre os 14 participantes no torneio, estava Anatol Rapoport, um matemático e psicó-logo russo que desenvolveu um algoritmo assente na estratégia do “olho por olho”. O programa de computador que apresentou só tinha duas regras: começar o jogo a colaborar e imitar o que o oponente fez na ronda anterior. Apesar de ser a mais simples de todas as estratégias, foi aquela que obteve maior pontuação, superando as que privile-giavam ações mais egoístas: a longo-prazo, estas tendiam a pontuar cada vez menos. No mesmo ano, fez-se outro torneio quase semelhante e, mais uma vez, a estratégia do “olho por olho” prevaleceu.Quatro anos depois, Axelrod publicou A Evolução da Cooperação, um livro cujas ideias foram inluenciadas pelos resultados obtidos nos dois torneios. Através dele, apresentou a hipótese de que os mecanis-mos do comportamento altruísta evoluíram a partir dos comportamentos egoístas, por via da seleção natural.Entretanto, vários estudos em torno do comportamento pró-social dos animais che-garam a uma conclusão semelhante, com a estratégia do “olho por olho” a surgir como explicação mais forte para a evolução do al-truísmo nas comunidades animais. De acor-do com eles, os mecanismos que punem os elementos que não cooperam acabam por ser decisivos para regular o altruísmo recíproco no seio de uma sociedade.

alterar o nosso estado cognitivo e induzir com-portamentos. É possível que ele venha a existir?

Os testes clínicos que estão a ser feitos com a oxitocina já estão na sua última fase, pelo que é possível que venham a surgir fármacos baseados nela. Poderão vir a ser receitados pelos psiquiatras a quem tenha autismo, espe-cialmente às crianças, pois é nessa altura que os sintomas da doença começam a notar-se. Esse poderá ser o melhor momento para se fazer uma intervenção, pois se dermos ao cérebro da criança a “vontade” de olhar para os olhos de outras pessoas, então podemos estar a abrir uma janela de oportunidade. Ela começará a treinar e a aprender o que significam deter-minadas expressões ou olhares. Há outras doenças mentais em que a oxitocina poderá ajudar, como a anorexia ou a esquizofrenia. A par disto, também é um ansiolítico muito robusto, existindo vários testes em que conse-gue diminuir o stress e baixar a tensão arterial, o que traz benefícios a nível cardiovascular. Todavia, isso não significa que seja mais eficaz do que a medicação atualmente existente para tratar estes casos. Ainda são precisos mais testes e existem também dúvidas sobre os efeitos secundários de uma toma prolongada de oxitocina pelos seres humanos. Poderá ela suscitar efeitos nefastos de habituação e dependência? Se sim, isso seria especialmente grave em crianças.

MIK

E B

AIR

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SUPER66

Não compete aos cientistas

pensar nos aspetos éticos

Quem garante que um possível novo com-posto, resultante das investigações que se fazem um pouco por todo o mundo, não será usado para fins que vão além dos de âmbito terapêutico? Parece ficção científica, mas poderá haver quem veja aí uma forma de con-seguir produzir determinados comportamentos em pessoas que são completamente saudáveis. Este tipo de investigações não corre o risco de cair num limbo ético?

Vou fazer um paralelismo. A ressonância magnética (tal como o uso de oxitocina ina-lável) permite entender os mecanismos que operam no nosso cérebro e que estão sub-jacentes aos comportamentos que temos. A verdade é que as agências de publicidade tam-bém começaram a usá-la para fins comerciais. O que queremos fazer, enquanto cientistas, ao administrar oxitocina ou ao usar a ressonân-cia magnética, é compreender o mecanismo endógeno ligado à oxitocina, ou investigar, a par das farmacêuticas, se melhora os sinto-mas da doença. As ponderações éticas, sobre

Cooperantes e egoístas

A vida humana obedece às leis da biologia. Surgimos através da evo-

lução por seleção natural, mas há mais. Para o biólogo e naturalista norte-ame-ricano Edward O. Wilson, “quanto mais aprendemos sobre a nossa existência física, mais aparente se torna que mesmo as mais complexas formas do comporta-mento humano são afinal biológicas”, es-creve em A Conquista da Terra – A Nova História da Evolução Humana. Contudo, a ideia perilhada por Wilson (e outros investigadores) que mais tinta tem feito correr no seio da comunidade de biólogos é a de que a força dinâmica que levou o ser humano a evoluir, até quase se tornar uma entidade divina, reside na seleção natural multinível. Basicamente, preconiza que a um nível mais elevado os diferentes grupos competem entre si, mas “privilegiando os traços sociais cooperantes entre membros do mesmo grupo”. Contudo, e a um nível infe-rior, os membros de um mesmo grupo “competem entre si de uma forma que conduz a um comportamento egoísta”. A oposição entre estes dois níveis da seleção natural terá resultado num “genótipo quimérico” para cada pessoa,

com cada um de nós a ter o seu quê de santo e de pecador, airma. O destaque recai na seleção de grupo (que ocorre entre grupos, não entre indivíduos), e este processo é o grande responsável pelo comportamento social avançado.Esta interpretação sobre as forças de seleção humanas choca com a teoria da aptidão inclusiva, baseada na sele-ção de parentesco, segundo a qual os indivíduos cooperam entre si, ou não, conforme a sua proximidade genealó-gica. Mais especiicamente, ela diz-nos que o altruísmo dentro de um grupo em que os indivíduos têm maior laço de parentesco entre si, ou seja, em que existe maior percentagem de genes partilhados, permite que esses genes passem para as gerações seguintes. A disseminação destes genes partilhados poderá, assim, ter desencadeado a evolução dos comportamentos sociais avançados, como a cooperação. Um dos proponentes desta teoria, o biólogo evo-lutivo Richard Dawkins, acrescentou, no seu livro O Gene Egoísta, que o altruísmo não evoluiu ao nível do organismo ou do grupo, mas sim ao nível dos genes. O de-bate entre estas duas visões da evolução humana promete continuar.

Para o biólogo e naturalista Edward O. Wilson, os comportamentos sociais avançados evoluíram a partir da competição entre grupos humanos

Todos juntos. Se não coniássemos nas pessoas à nossa volta, os complexos sistemas políticos e económicos das sociedades modernas colapsariam.

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Interessante 67

possíveis utilizações de oxitocina inalável, na doença ou fora dela, devem ser deixadas à sociedade, não aos cientistas. No nosso tra-balho quotidiano, em todas as investigações, há comissões de ética perante as quais, antes de fazer qualquer tipo de experiência, temos de justificar porque e como vamos fazê-la, se os benefícios são maiores do que os custos e garantir que não fazemos as pessoas incorre-rem em riscos para a sua saúde.

A ILUSÃO DO LIVRE-ARBÍTRIOFace ao que tem vindo a explicar, parece

que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão, na medida em que, sem darmos conta, os nossos comportamentos podem ser alterados por via de fármacos ou pela simples interação com alguém. Isto não coloca em causa a ideia que o ser humano costuma ter de si, de que é dono do que decide e quer fazer?

Coloca, sim. O livre-arbítrio é uma ideia bonita e dá muito jeito acharmos que temos o controlo sobre o que fazemos, que fazemos escolhas deliberadas. Sofremos imensas pressões do exterior e temos consciência de algumas delas, não de outras, mas também há pressões que estão dentro do nosso corpo, como, por exemplo, os níveis hormonais. No fundo, há uma interação entre o nosso interior e o exterior. O problema é que só temos acesso a alguns dos fatores e e algumas das conse-quências dessas interações. Não temos noção do porquê de muitas das coisas que realizamos.

Há um estudo em que se tentou saber quem dava mais gorjetas a um empregado de mesa, se alguém que era tocado no ombro por ele ou outro que não o era. As pessoas podem não ter noção, mas a verdade é que as que foram tocadas deram uma gorjeta maior. Isto aconteceu por-que houve um sentimento de proximidade ou de confiança, talvez mediado por aumentos breves de oxitocina que ocorreram no momento do toque. No entanto, é preciso ver que, ao fim e ao cabo, não é possível separar os fatores inter-nos do livre-arbítrio. Eles são parte do livre--arbítrio.

A ideia de que controlamos por inteiro as nos-sas acões é útil para a vida humana?

Não conseguiríamos viver sem pensar que somos donos das nossas ações. Provavel-mente, trata-se de uma grande adaptação, do ponto de vista evolutivo, sentirmos que temos um imenso poder sobre o nosso destino: é ver-dade que temos poder sobre ele, apenas não tanto como pensamos. Se achássemos que a nossa vida dependia, e muito, de outros fato-res (entre os quais o acaso), isso poderia levar à nossa imobilização. Daí que seja bom pen-sarmos que não estamos condicionados. Isso poderá explicar o motivo para o nosso cérebro não estar feito para prestar atenção a todos esses condicionamentos. Fazemos muitas coi-sas sem nos darmos conta, portanto. Por outro lado, também temos o poder de induzir deter-minados comportamentos junto de outras pessoas, manipulando-as.

Fazemos muitas coisas sem nos darmos conta, portanto. Por outro lado, também temos o poder de induzir determinados comportamen-tos junto de outras pessoas, manipulando-as.

A chamada “teoria maquiavélica” sobre a evolução humana defende que o córtex pré--frontal do nosso cérebro evoluiu e ficou grande de modo a termos a habilidade de detetar quando alguém está a manipular-nos. Por exemplo, consegue detetar quando se está perante um “sorriso amarelo”. Sabemos que, quando alguns músculos à volta dos olhos não ficam contraídos, durante um sorriso, então é porque se trata de um “sorriso amarelo”. Con-sequentemente, acabamos por não confiar na pessoa que o expressa. Esses músculos que temos junto dos olhos só se contraem involun-tariamente, pelo que não conseguimos fingir facilmente um sorriso com os olhos. O ser humano é muito bom a detetar estas peque-nas expressões, bem como comportamentos egoístas, e a perceber se está a ser manipulado. Todavia, ao mesmo tempo que evoluimos para tentar perceber se os outros estão a enganar--nos, quem está do outro lado também evolui para conseguir enganar-nos. É uma espécie de corrida às armas do ponto de vista evolutivo. A teoria maquiavélica põe a ênfase no “enga-nar”, mas, no fundo, a vantagem está igual-mente em identificarmos em quem devemos confiar, no meio de tantos toques no ombro, tantos sorrisos e tantos olhares...

J.P.L.

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SUPER68

Corpo

A nova ciência do olfato

Uma saúde de NARIZESA perda de capacidade olfativa pode ser

o primeiro indício de doenças como

a de Alzheimer ou a de Parkinson. Esta é apenas

uma das surpresas que está a proporcionar

o estudo do sentido mais poderoso.

LA

UR

EN

SH

EA

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69

A incapacidade para identificar alguns odores pode constituir um indicador precoce do risco de morte em pes-soas idosas. Foi a essa inquietante

conclusão que chegou, em finais de 2014, um estudo da Universidade de Chicago, publicado na revista PLOS ONE e coordenado pelo cirur-gião e professor universitário Jayant Pinto. Teve a participação de 3000 pessoas entre os 57 e os 85 anos de idade, nas quais foi avaliada a capacidade para identificar cinco odores: a menta, a peixe, a laranja, a rosas e ao couro. Os resultados não deixaram margem para dúvi-

das: 39 por cento dos pacientes mais idosos, que não conseguiram identificar todos os

aromas, mostraram maior propensão para morrer no espaço de cinco anos.

“A perda do sentido do olfato é como o canário na mina de carvão”,

escreveu Pinto na apresentação do estudo. “O seu declínio não

causa diretamente a morte, mas é um presságio, um sistema de

alerta precoce. O nosso traba-lho poderia proporcionar um

teste clínico útil, uma forma rápida e barata de identi-

ficar os doentes com maior risco de morte.”

Esta é apenas uma d a s n u m e r o s a s

inves ti ga ções que de mons tram a

grande com-

plexidade de um sentido que permaneceu, durante muitos anos, à sombra de outros, como a vista e o ouvido, considerados os protagonis-tas da perceção sensorial. Porém, algo mudou para sempre em 2004, quando os cientistas norte-americanos Richard Axel, do Instituto Médico Howard Hughes da Universidade de Columbia (Nova Iorque), e Linda Buck, do Cen-tro Fred Hutchinson de Investigação do Cancro (Seattle), pioneiros do estudo olfativo e res-ponsáveis por trabalhos de referência sobre os genes do olfato, foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina e reavivaram o inte-resse pelo funcionamento do nariz humano.

EXTRAORDINARIAMENTE PODEROSO

A verdade é que se trata de um sentido extraordinariamente poderoso. Os nossos olhos conseguem distinguir vários milhões de cores diferentes, e o ouvido discrimina cerca de 340 mil tons distintos. Surpreendente, não é? Pois o nariz ultrapassa folgadamente os dois. Contém um tecido sensorial do tamanho de um selo de correio, o epitélio olfativo, que reveste o teto da cavidade nasal. Possui cerca de 400 tipos de recetores diferentes, cada um formado por um gene distinto, o que torna a informação captada mais precisa do que a recebida, por exemplo, pelos roedores, com os seus 1200 recetores. De facto, a reação olfativa é imediata e estende-se ao cérebro sem intermediários. É o único lugar do corpo onde os neurónios se encontram diretamente expostos ao ambiente.

Interessante

Janela para o mundo. O olfato é o nosso sentido mais primitivo e está diretamente ligado ao sistema límbico, relacionado com a memória e as emoções. Daí o seu grande poder como evocador de recordações.

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O nosso nariz pode distinguirmais de um bilião de odores

via de entrada para o mundo das emoções. É aquilo que se tornou conhecido por “marke-ting olfativo”: consiste em usar aromas especí-ficos a fim de modificar as emoções e influenciar o comportamento do consumidor e o estado de espírito dos funcionários. Em 2013, um estudo de mercado da Universidade Rockefel-ler proporcionou dados supreendentes e reve-ladores: recordamos 1% daquilo em que toca-mos, 2% do que ouvimos, 5% do que vemos, 15% do que provamos e 35% do que cheiramos!

MECANISMO DE DEFESA

Parece que os odores simples são os mais eficazes para provocar o desejo de comprar, segundo revela uma investigação publicada na revista Journal of Retailing por um grupo de investigadores da Universidade do Estado de Washington. Além disso, o olfato é um meca-nismo de defesa, que nos alerta para situações de perigo (fugas de gás, incêndios...) e nos pro-tege da ingestão de alimentos em mau estado.

Um estudo recente desenvolvido por inves-tigadores do Laboratório de Neurogenética da Universidade Rockefeller (Nova Iorque), publicado na revista Science, vai mais longe a atribui-lhe ainda maior dimensão. Até agora, pensava-se que conseguíamos distinguir dez mil odores distintos, mas, segundo estes espe-cialistas, podemos diferenciar pelo menos um bilião de cheiros diferentes.

Conhecido como o sentido mais irracional, com um enorme poder de evocação e associado às recordações, o olfato é, também, o que mais memória possui. Segundo os especialistas, uma imagem ou uma melodia bonita têm grande dificuldade em competir com as sensações que um aroma pode despertar. As recorda-ções relacionadas com o olfato possuem uma carga emocional muito forte, por serem, em parte, processadas por áreas do cérebro onde se localizam as experiências emocionais.

Não é por acaso que as grandes empresas descobriram no olfato, há anos, uma poderosa

Reaprender a usá-lo

A anosmia, ou perda do sentido do olfato, pode ser tratada. Exemplo

disso é o terapia inovadora aplicada pela Unidade do Olfato do Hospital Ruber Internacional de Madrid, destinada a reabilitar a capacidade olfativa. O obje-tivo é, por um lado, ajudar os pacientes a reaprender os odores essenciais e, por outro, voltar a ensinar o cérebro a identificá-los. Segundo Adolfo Toleda-no, professor de otorrinolaringologia e responsável pela referida unidade, “consiste numa reabilitação do olfato através de exercícios baseados no treino feito pelos provadores de vinhos e que se fundamenta em bases neuropsicoló-gicas: assim, conseguimos criar reflexos condicionados aos estímulos olfativos”. O tratamento pode ajudar todas as pessoas com perda de olfato por causas neurossensoriais, isto é, provocada por traumatismos cranianos ou por um acidente vascular cerebral. “Essas cir-cunstâncias são responsáveis por 25 por cento das perdas de olfato e são as que têm um tratamento de reabilitação. Em contrapartida, a sinusite crónica, com ou sem polipose nasal, representa 75% do total das causas dos distúrbios do olfato, e o tratamento é farmacológico.” Atual-mente, o cultivo de células estaminais do epitélio olfativo também pode contribuir para a recuperação da vítima de anosmia.

Por outro lado, a sensibilidade olfativa faz parte da nossa personalidade: as coisas não têm um cheiro igual para toda a gente. Cada nariz é um universo, e a forma como interpreta os odores é única. Os responsáveis são os genes, e podemos dizer que o circuito que se entende do bolbo olfativo ao cérebro é diferente em cada pessoa. Apreender um odor consiste em aspirar, literalmente, as moléculas das substân-cias aromáticas que se encontram dissemina-das no ar. Estas entram no nariz e penetram na mucosa olfativa. Ali, esperam-nas entre vinte e trinta milhões de células olfativas, revestidas de outras sensíveis ao aroma, ou de recetores olfativos, que transmitem ao cérebro a infor-mação na forma de sinais elétricos. Primeiro, passam pelo sistema límbico e pelo hipo-tálamo, as regiões cerebrais responsáveis pelas emoções e também relacionadas com a memó-ria. Dali, parte da informação viaja até ao córtex cerebral, onde o odor é identificado e, se for caso disso, reconhecido.

Em 2013, Hiroaki Matsunami, professor associado de genética molecular e microbiolo-gia da Faculdade de Medicina da Universidade Duke (Estados Unidos), demonstrou que os recetores olfativos não funcionam do mesmo

Sem bússula. Jennifer Leigh, do Illinois, perdeu o olfato. Para cozinhar, tem de coniar na memória.

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Interessante 71

modo em todas as pessoas. De facto, dos 400 genes que governam os recetores do nariz, há mais de 900 mil variações. Quando cheiramos algo, os recetores ativados podem ser muito diferentes de um indivíduo para outro, em fun-ção dos respetivos genomas. Daí que o mesmo cheiro possa encantar uma pessoa e parecer muito desagradável a outra.

Chama também a atenção o caso das pessoas que possuem maior sensibilidade olfativa do que os restantes mortais, isto é, os que sofrem de hiperosmia, um limiar olfativo superior ao normal. Incluem pessoas com maior índice de gordura corporal, mais sensíveis ao cheiro da comida, segundo dados de um trabalho da Universidade de Portsmouth (Inglaterra).

De igual modo, é também interessante comprovar a forma como a sensibilidade olfativa pode modificar-se em função de alte-rações hormonais, como as que acontecem nas mulheres quando ovulam. Foi o que des-cobriu uma investigação publicada, em 2014, na revista Hormones and Behavior. Por outro lado, a passagem dos anos também afeta o olfato: com a idade, produz-se habitualmente uma diminuição da capacidade olfativa.

Contudo, o sistema do olfato renova-se ao

longo de toda a vida. Até à década de 1960, pen-sava-se que os neurónios não se regeneravam no cérebro dos adultos, e que as funções dos que morriam eram distribuídas pelos que se mantinham ativos. Porém, um estudo do Instituto Karolinska (Suécia), publicado em 2013 na revista Cell, abriu a porta a um cenário muito diferente: mais de um terço dos neurónios renova-se periodicamente e ao longo de toda a existência no hipocampo, região do cérebro especialmente importante na aprendizagem e na memória. Efetivamente, novos neurónios nascem diariamente e podem, portanto, apoiar as funções cognitivas nos adultos.

RENOVAÇÃO NEURONALPara chegar a esta surpreendente conclu-

são, os investigadores do Instituto Karolinska analisaram a quantidade de carbono-14 pre-sente nos seres humanos. Foi assim que surgiu a descoberta, diretamente relacionada com o olfato. O sistema olfativo possui a capacidade de substituir continuamente os neurónios em duas zonas: o epitélio e o bolbo olfativo. Fá-lo durante toda a vida do organismo, num meca-nismo conhecido por “neurogénese adulta”.

A capacidade olfativa constitui, na verdade,

um autêntico marcador biológico, relacionado de uma ou de outra forma com diferentes pro-cessos internos do organismo. Poderia mesmo ser um indicador de que se está a engendrar uma doença.

Segundo Doron Lancet, geneticista do Ins-tituto Weizmann de Ciências, em Rehovot (Israel), uma em cada 5000 pessoas nasce sem sentido do olfato, isto é, sofre de anosmia congénita. Por sua vez, 82 milhões de europeus manifestam algum tipo de disfunção olfativa: 19,4% têm dificuldade em detetar odores; 20% sofrem de disfunção olfativa total, a anosmia, ou parcial, a hiposmia; 56% manifestam dificul-dade em reconhecer odores, memorizá-los ou recordá-los; 50,7 % não conseguem identificá-los. Estes dados são do Olfacat, o primeiro grande estudo europeu sobre o assunto, publicado na revista British Medical Journal.

Dado que o olfato está estreitamente ligado a vários processos fisiológicos, não será de estranhar que os especialistas o considerem um interessante marcador biológico. De facto, são cada vez mais os estudos a afirmar que um olfato anormal ou fraco pode ser um indica-dor precoce de doenças sem gravidade, mas também de alguns problemas graves, como

Máquina de sensações

O sofisticado e preciso sistema olfativo

transforma sinais químicos externos em impulsos elétricos dirigidos ao cérebro.

As moléculas odoríferas chegam às fossas nasais através do nariz e da via

retronasal (ao comer e beber). Ali, alcançam as células

recetoras olfativas, as quais irão transmitir a informação, através dos axões, ao bolbo olfativo; por sua vez, este irá enviá-la ao sistema límbico

(amígdala e hipocampo, entre outras estruturas) e ao neocórtex, que a processa.

Célula olfatória

Célula de suporte

Moléculas odoríferas

Cílios olfatórios

Muco

Bolbo olfativo

Cavidade nasal

Ossoetmoide

SP

L

GE

TT

Y

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SUPER72

a doença de Parkinson ou a de Alzheimer. Em relação às duas últimas, explica o neuro-logista Alberto Marcos Dolado: “Há já alguns anos que se sabe que essas doenças neurode-generativas podem ter começado anos antes de surgirem os primeiros sintomas caracterís-ticos, como a perda de memória ou de mobili-dade, com uma anosmia, isto é, a perda do sen-tido de olfato. Isso não significa que sempre que uma pessoa deixa de ter sentido do olfato é por essas doenças estarem no início. De facto, é muito mais frequente a deterioração do olfato dever-se a problemas nasais, como as rinites virais, a depressão ou os traumatis-mos cranianos. No entanto, não podemos, simplesmente, eliminar a hipótese de uma doença neurodegenerativa.” Todavia, vários estudos apresentados na Conferência da Asso-ciação Internacional de Alzheimer (CIAC) de 2014, realizada em Copenhaga, reafirmam que a diminuição da capacidade para identificar os odores é um indício da deterioração cognitiva, uma característica clínica precoce da doença.

Há alguns meses, um trabalho da Escola Médica de Harvard apontava no mesmo sentido

Do mesmo modo, a perceção dos odores de uma forma ou com uma intensidade anormais pode ser premonitória de uma crise de enxa-queca que está prestes a atacar a pessoa com tal alteração do olfato. Além da dor de cabeça, os pacientes podem sofrer de excessiva sen-sibilidade à luz e aos ruídos, assim como aos odores. “Trata-se de algo transitório que dura apenas alguns minutos, embora se possa pro-longar durante horas. Muitas vezes, acontece antes da própria dor de cabeça, e passa a fazer parte do quadro, geralmente a par de altera-ções visuais e de outro tipo”, explica Dolado.

Parece, pois, que sobram razões para afirmar que o olfato é um sentido com papel de pro-tagonista na nossa saúde, e também para con-firmar que, felizmente, cada vez estamos mais conscientes da sua importância. Por isso, a visita ao otorrino já se transformou em algo habitual.

Marta Tafalla, doutorada em filosofia e autora do livro Nunca Saberás a que Cheira Bagdad, não tem sentido de olfato desde que nasceu e sabe muito bem o que é viver sem conseguir sentir qualquer cheiro. Por isso, decidiu há alguns anos escrever um romance inspirado na sua própria experiência, no qual procura descrever como vivem e interpretam a realidade os anósmicos. É difícil imaginar um mundo sem aromas...

N.C.

após descobrir como os participantes com níveis elevados de placas senis (depósitos pro-teicos que se formam nos cérebros afetados pela doença de Alzheimer) identificavam muito pior os cheiros, além de apresentarem maior índice de morte neuronal. Essa incapacidade olfativa poderia ter origem na deterioração neurológica associada à doença, que também afeta muitas vezes as células nervosas funda-mentais para o sentido do olfato.

ALUCINAÇÕES REVELADORASA relação entre olfato e saúde não acaba aqui.

O leitor já ouviu falar de alucinações olfativas? Segundo a Academia Norte-Americana de Neu-rologia, ocorrem quando uma pessoa experi-menta breves episódios olfativos de odores fortes e desagradáveis, como um fedor a peixe. O mais interessante é que se produzem quando, na realidade, não existem, e são unicamente experimentados pela vítima da alucinação. Embora os especialistas concordem que não se trata de algo comum, conseguiram relacionar o fenómeno com o risco de sofrer um AVC ou um ataque cardíaco.

Uma em cada 5000 pessoas nasce sem capacidade olfativa

SP

L

Para toda a vida

Um recém-nascido é investigado num berço no qual se libertam aromas para determinar se se recorda dos sabores do líquido amniótico, já que os dois sentidos estão ligados.

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Interessante 91

| AS GRANDES DESCOBERTAS DA ARQUEOLOGIA |• A destruição causada pelas guerras • O saque do mundo antigo

• Escavar debaixo de água • Os métodos de datação• As origens do homem em quatro continentes

HISTÓRIA

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Page 76: Super interessante nº 212

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Psicologia

A doença que intoxica a sociedade

Vigie a PARANOIA!

O medo é um magnífico invento evolutivo

para enfrentar perigos. Porém, no mundo atual,

sem predadores que nos persigam, a mente

cria temores infundados que se retroalimentam

e nos fazem permanecer em eterna vigilância.

O temor alimenta-se a si próprio. Não importa que o pânico seja infundado. O próprio estado de paranoia faz-nos adotar compor-

tamentos que aumentam os nossos medos e amplificam as razões para ficarmos ainda mais apreensivos. Um exemplo deste efeito “bola de neve”: segundo uma sondagem de opinião realizada nos Estados Unidos pela Uni-versidade Fairleigh Dickinson, de Nova Jersey, 44 por cento dos entrevistados, eleitores do Partido Republicano, acredita que poderá ser necessária, nos próximos anos, uma revolução armada para proteger as suas liberdades. É esse o argumento esgrimido pela National Rifle Association daquele país para defender a posse de armas pelos cidadãos. Ou seja, o medo em si faz-nos ter ainda mais medo.

Foi este efeito multiplicador que afetou o xadrezista russo Viktor Korchnoi, há algumas décadas. Em 1978, o grande mestre e dissidente no exílio disputava o título mundial a Anatoli Karpov, num confronto épico que ficaria na história, tanto por razões desportivas como políticas. Karpov ganhou cinco das seis primei-ras partidas; depois, Korchnoi recompôs-se e venceu as quatro seguintes. Parecia que ia tor-nar-se o novo campeão mas, nessa altura, sur-giu um protagonista inesperado: o dr. Zukhar, um suposto hipnotizador e parapsicólogo que, segundo Korchnoi, fora enviado pelo governo soviético para alterar o seu jogo com recurso a ondas mentais. No final, foi derrotado por Kar-pov... e também pelo pânico infundado que o levou a cometer erros absurdos.

Temer o perigo é necessário. O médico aus-tro-húngaro Hans Selye identificou, em 1950, o mecanismo do stress, ou síndrome geral de adaptação), que engloba o conjunto de reações inespecíficas que o organismo desencadeia em situações de emergência. O objetivo é mobi-lizar as reservas energéticas necessárias para enfrentar o perigo. Confrontado com uma situação que classifica como preocupante, o cérebro analisa os novos elementos, compara--os com recurso à memória de conjunturas semelhantes e, se achar que não dispõe de energia suficiente, envia ordens para que o organismo liberte adrenalina e se prepare ade-quadamente para reagir: aumenta a frequência cardíaca, os músculos tornam-se tensos e a mente entra num estado de demência transi-tória que a leva a considerar qualquer estímulo como uma ameaça potencial.

MECANISMO EVOLUTIVO

Trata-se de um mecanismo de defesa que se revelou adaptativo ao longo da história do ser humano. Se, por exemplo, no Paleolítico, alguém achava ter visto um tigre dentes-de--sabre a rondar nas proximidades, a estratégia mais útil era recorrer à síndrome geral de adap-tação: permanecer alerta durante alguns dias e classificar como suspeito qualquer ruído, cheiro ou sombra estranha.

Todavia, na nossa época, esse estado de hipervigilância pode transformar-se num vírus mental que nos limita. O neurologista Robert Sapolsky, autor de Why Zebras Don’t Get Ulcers, afirma no livro que tais estados de ati- G

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Gelado de CO2. O gelo seco é dióxido de carbono sólido. Embora não funda,

sublima a –78 ºC, isto é, passa diretamente do estado sólido para o gasoso.

Centro do mundo. A paranoia manifesta-se muitas vezes como mania da perseguição:

a vítima tem o delírio de que alguém a espia para lhe fazer mal ou ter algum benefício.

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O pensamento paranoico

procura apenas sinais que

o confirmem

mandou isolar o Rockefeller Center e a população correu, em massa, a comprar máscaras antigás completamente inúteis contra o carbúnculo e a medicamentar-se com substâncias nem sem-pre eficazes. Passaram catorze anos desde os acontecimentos e o clima de paranoia coletiva caiu no esquecimento, assim como o terror suscitado por um suposto ataque jihadista. Depois, soube-se que quem enviara as cartas fora o microbiólogo norte-americano Bruce Ivins, que trabalhara na investigação de vaci-nas, durante 18 anos, no Instituto Militar para o Estudo de Doenças Infeciosas, e que acabou por se suicidar em 2008. Em suma, um episódio novelesco protagonizado por um cientista louco.

Como assinala Bauman, uma das caracte-rísticas do “medo líquido” é que pode adotar diferentes formas. Tendo o mesmo receio ines-pecífico como pano de fundo, entramos em estado de alerta com diferentes manifestações. Não interessa se a ativação decorre de um falso alarme ou de um perigo sobredimensionado: o pânico nunca se desmente e é sempre reno-vado. O episódio do antraz passou a fazer parte das razões para temer o jihadismo, apesar de nada ter tido a ver com o assunto.

Chegamos, assim, à definição de paranoia. Trata-se de um distúrbio psíquico que induz uma desconfiança constante do mundo e que leva a pessoa afetada a sentir-se cada vez mais oprimida pelo efeito de convicções anormais, tenham ou não a ver com os seus temores. O estado delirante pode manifestar-se de diver-sas formas (ideias persecutórias, sintomas psi-cossomáticos, ciúmes doentios…), embora a ideia de fundo seja sempre a mesma: algo ou alguém persegue ou ataca a vítima. Esse sen-

vação, adequados para situações em que era preciso arriscar a vida, foram substituídos por preocupações que têm a ver com as relações sociais: temores indefinidos, complexos e suscetíveis de ser antecipados. Assim, temos tendência para projetar como e quando irá surgir o perigo, e com que fatores podere-mos enfrentá-lo. Esse caráter complexo dos medos modernos pode conduzir facilmente à paranoia.

Tal como acontecia com o xadrezista Korch-noi, parece que estamos sempre pendentes de pessoas ou situações que nos assustam, sem sabermos muito bem porquê. O portal norte-americana Edge coloca, todos os anos, uma questão a intelectuais e pensadores de prestígio que se destacaram em diversos cam-pos. A pergunta de 2013 foi: “O que deveria preocupar-nos?” As respostas mostram como são difusos e abstratos os atuais temores. O psicólogo social David Buss, por exemplo, sentia-se alarmado com a possibilidade de a escassez de casais poder aumentar, no futuro, a brutalidade humana; a preocupação do empreendedor e bloguista Dave Winer era que deixemos de sentir o desejo de sobreviver; a antropóloga Christine Finn inquietava-se com a perda de contacto com o mundo físico. Havia mesmo quem receasse que deixássemos de ter medo: o psicólogo Daniel Goleman temia que o nosso cérebro fosse incapaz de imaginar os problemas mais graves que supostamente nos devem perturbar.

MEDO LÍQUIDOConvivemos, pois, com o que o sociólogo

Zygmunt Bauman denomina “medo líquido”. Um facto ocorrido nos Estados Unidos, em 2001, pode servir de exemplo dessa facilidade do mundo contemporâneo para gerar pânico irracional ou paranoia. No outono desse ano, uma semana depois do 11 de Setembro, foram enviadas cartas que continham esporos de antraz a vários meios de comunicação social e aos senadores democratas Tom Daschle e Patrick Leahy. Dos 22 infetados, cinco mor-reram, e o alarme informativo foi exagerado, Os ataques foram rapidamente atribuídos à Al Qaeda. A 12 de outubro, um noticiário da CNN dedicou quinze minutos ao caso; no mesmo dia, a notícia dos duzentos civis mortos num bombardeamento anglo-norte-americano no Afeganistão apenas ocupou um minuto.

O terror espalhou-se: o mayor de Nova Iorque

timento é transformado em algo irrefutável. O facto de mais ninguém ver a perseguição será considerado pela pessoa afetada como sinal de que os inimigos se escondem.

TRAÇOS PSICOLÓGICOSQuando falamos de paranoia a nível indivi-

dual, há certos traços psicológicos associados. Este tipo de delírio costuma verificar-se em pessoas muito narcisistas, com um conceito de si próprias suficientemente elevado para acre-ditar que um monte de pessoas ou de circuns-tâncias se irão aliar contra si. Esses indivíduos sentem, regra geral, que não foram tratados pela vida como merecem. Se somarmos a isso uma propensão genética, será fácil ao indiví-duo explicar tais frustações com base numa teoria conspiratória. Interpretará estímulos sem importância como um sinal, e construirá com eles uma narrativa de vitimização para explicar os seus fracassos.

De onde vem a tendência biológica para interpretar como relevante o que não é trans-cendente? Um dos fatores mais estudados tem sido a dopamina, neurotransmissor que aumenta a sensibilidade das células cerebrais aos estímulos. Normalmente, é útil para exa-cerbar a tomada de consciência em momentos de stress e de perigo, como se assinalava no início deste texto. Porém, advertem especia-listas como Mary Seeman, da Universidade de Toronto (Canadá), em determinados indi-víduos, a soma do efeito da dopamina e de um estado cerebral já hiperativo pode induzir um estado de delírio paranoico. Para os parti-dários desta hipótese, a hiperatividade dopa-minérgica (isto é, o nível excessivamente ele-

Os suspeitos do costume. Os controlos nos aeroportos não conseguiram acabar com o terrorismo, mas aumentaram a sensação de insegurança sentida pelos passageiros.

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vado dessa catecolamina) pode ser a causa da reação exagerada de algumas pessoas a estí-mulos irrelevantes. Seja qual for o detonador, sabemos que produz uma tendência para uma atenção seletiva inadequada.

Os seres humanos possuem a capacidade de reagir a certos estímulos (sinal) enquanto igno-ram outros semelhantes que não lhes interes-sam (ruído). Por exemplo, numa festa, pode-mos selecionar uma conversa e concentrar--nos nela sem processar o que outros estão a dizer, mesmo que estejam mais próximos.

Todavia, essa aptidão parece estar ausente nos indivíduos com inclinações paranoicas. Constance Holden, investigadora da Universi-dade do Maine, reuniu num estudo várias expe-riências que indicavam que esses indivíduos têm grande dificuldade em eliminar os estímulos irrelevantes e ficar com o material pertinente quando se trata de resolver um problema. Cir-cunstâncias sem relevância, como as gotas de chuva num janela, a repetição de determinada palavra numa conversa ou acasos fortuitos distraem a sua atenção da cena global ou da mensagem do interlocutor que está a falar.

O PAPEL DOS MEDIA

Muitos investigadores interrogam-se se tal propensão biológica pode ser fomentada por uma sociedade que incita à paranoia. Estará a nossa cultura a inibir a atenção seletiva? Muitos analistas veem a questão dessa perspetiva. Por exemplo, Gavin de Becker, assessor de segu-rança de governos e grandes empresas e autor do livro The Gift of Fear – Survival Signals that Protect Us from Violence, analisou o papel desempenhado pelos meios de comunicação

social no aumento do temor coletivo inespecí-fico. Segundo ele, as televisões e os jornais, em especial os locais, com menos notícias para dar, têm tendência para apresentar um mundo povoado de terroristas, corruptos e pedófilos.

A tragédia vende e a informação trans-forma-se, por vezes, em correia de transmissão do terror. Para isso, é necessário criar uma sen-sação de sinal onde só existe ruído. Tal clima é utilizado, na sua opinião, pelos traficantes do medo: políticos, empresários ou grupos religio-sos que recorrem à intranquilidade paranoica para os seus fins. Como exemplo, De Becker cita as medidas inúteis que nos complicam a vida, como os controlos nos aeroportos que, embora não sirvam para deter terroristas, ali-mentam a perceção generalizada de alarme e mesmo a insegurança. O pior é que a sensação de estar indefeso perante um perigo inespe-cífico pode, tal como aconteceu a Korchnoi, alterar o comportamento e transformá-lo em inadaptação.

Eis um exemplo: Mai Stafford e a sua equipa do Departamento de Saúde Pública do Univer-sity College London fizeram um estudo com 6500 voluntários de diferentes faixas etárias aos quais pediram para quantificar o nível de preocupação que sentiam perante a possibili-dade de serem vítimas de algum incidente vio-lento, sem especificar de que tipo. Em seguida, estudaram a sua saúde física e mental.

Os dados revelaram que os participantes com maior nível de medo indeterminado tinham 1,93 vezes maior propensão para sofrer de depressão, e eram 1,75 vezes mais propensos a mostrar sintomas de ansiedade. Além disso, verificaram que tinham menos tendência

para praticar exercício físico e se relacionavam pouco com os amigos. As suas paranoias (eram isso, pois, na realidade, o nível de insegurança dos cidadãos diminuiu nos últimos anos) aca-bavam por funcionar como uma profecia que se autocumpria: interpretar qualquer aconteci-mento como um perigo potencial para a saúde acabava por conduzi-los a um estado em que esta estava realmente em risco.

QUEM VIGIA OS VIGILANTES?Durante anos, vivemos obcecados com o

prémio de risco, embora a imensa maioria das pessoas não saiba definir o conceito nem expli-car por que razão era importante. O mesmo aconteceu com outras preocupações (pedó-filos, bandos de delinquentes juvenis...) que estiveram omnipresentes nos títulos de jornais e caíram depois no esquecimento. Isso conti-nuará a acontecer com outros temores, que nos irão manter em alerta e depois esfumar-se nos próximos anos.

“A única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo”, afirmou, em 1933, o presi-dente norte-americano Franklin D. Roosevelt. Oito décadas depois, as suas palavras man-têm-se atuais: câmaras que filmam continua-mente indivíduos que também têm câmaras; armas para se defender de armas; vigilantes que vigiam enquanto nos perguntamos, como acontecia na célebre banda desenhada Watch-men, quem vigia os vigilantes? Corremos o risco de entrar na era da paranoia se sobredimen-sionarmos socialmente qualquer perigo, real ou imaginário, e agirmos de forma irracional, levados pelo medo.

L.M.

Qual o risco de sofrer de paranoia?

O questionário seguinte não pode servir de diagnóstico, mas poderá ajudá-lo a

conhecer a tendência para ser demasiado pa-ranoico e viver limitado pelas suas obsessões. Responda às quinze perguntas e veja o grupo em que se enquadra. Escolha um número en-tre 1 e 4. 1 significa que a frase não se aplica a si em absoluto; 2, que apenas se identifica em raras ocasiões; 3, que se aplica quase sempre à sua forma de ser; 4, que está totalmente de acordo com a frase.

1. Os meus fracassos foram causados por outras pessoas ou pelas circunstâncias. 2. Sinto que há muitas pessoas à espera de ver o que faço. 3. Sinto que tudo acontece por alguma razão, tudo tem uma causa e é importante que a conheça. 4. Ocupo posições (no trabalho, na família, no meu grupo de amigos...) que muita gente inveja. 5. Em muitas ocasiões, chego a uma reunião

e as pessoas calam-se porque estavam a falar de mim. 6. Tento estar bem com toda a gente para o caso de alguém me poder eventualmente prejudicar. 7. Há muitos acasos estranhos na minha vida. 8. Sei que há pessoas más que procuram destruir-me.9. Fico muito nervoso quando ouço conver-sas que já vão a meio ou quando não sei tudo sobre certas histórias que ocorrem à minha volta. 10. Procuro manter em segredo a informa-ção sobre muitas áreas da minha vida. 11. Tenho necessidade de saber tudo o que acontece à minha volta.12. Sou uma pessoa especial que teve má sorte na vida. 13. Quando leio um livro ou vejo um ilme, sinto que de alguma forma falam de mim. 14. Há pessoas que desejam o meu fracasso. 15. Fico habitualmente com vontade de ma-nifestar as minhas opiniões e necessidades.

RESULTADOSSome as pontuações obtidas e veja em que grupo se enquadra.

Até 15 pontos – É uma pessoa coniante, e isso permite-lhe ter uma visão otimista da vida e dos outros. A parte negativa é que essa coniança pode levá-lo a não antecipar suicientemente os perigos.De 16 a 45 pontos – É uma pessoa com um bom equilíbrio no seu relacionamento com o mundo. Se consegue encontrar o seu próprio interruptor para saber em que altura pode coniar e em que momentos deve ser caute-loso, o seu sistema de alarme pode tornar-se muito adaptativo.Mais de 45 pontos – Tem tendência para desconiar do mundo e das pessoas que o rodeiam. A vantagem é que pode antecipar o perigo em algumas ocasiões. A outra face da moeda é que esse contínuo estado de alerta pode acabar por se tornar uma limitação na sua vida e prejudicar a sua saúde.

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Flash

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Beleza assassina

Ao olhar para este peixe colorido, ica-se com a ideia de que a fotograia foi tirada num aquário tropical. Porém, por incrível que pareça, esta imagem foi recolhida na ribeira da Sertã, um exíguo curso de água localizado bem no centro de Portugal. Como é que este animal aquático, oriundo da América do Norte, chegou até ali? Não sabemos. O que se sabe é que a perca-sol (Lepomis gibbosus) terá chegado à Europa no último quartel do século XIX para aquarioilia, tendo sido referida em Portugal (nos rios Tejo, Sado e Guadiana) nos anos 70 do século passado. Desde aí, espalhou-se por todo o território continental e, na atualidade, está presente na totalidade das bacias hidrográicas nacionais. É um habitante comum nas zonas lênticas (águas calmas), com escassa profundidade e densa vegetação, e suporta bem a falta de oxigénio e as altas temperaturas.Trata-se de um dos peixes mais belos entre os que foram introduzidos em águas

continentais portuguesas. Ostenta uma cor muito vistosa, com bandas azuladas que irradiam da cabeça até aos lancos, ventre amarelo e uma mancha negra e vermelha na parte posterior do opérculo. Porém, por detrás da sua atraente beleza, esconde-se uma terrível predadora de insetos e de ovos e alevins de outras espécies aquáticas. É considerada uma praga, devido ao seu caráter invasor, e uma das principais responsáveis pelo desaparecimento dos peixes autóctones. Recorde-se que a introdução de espécies exóticas na natureza pode originar situações de predação ou competição com espécies nativas, a transmissão de agentes patogénicos ou de parasitas e afetar seriamente a diversidade biológica, as atividades económicas ou a saúde pública, com prejuízos irreversíveis e de difícil contabilização. Foto: Jorge Nunes.

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Os tesouros do RIBEIRO

Ambiente

Invertebrados dulçaquícolas

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Quando se fala em animais ameaçados, pensa-se de

imediato em grandes mamíferos, como o lobo ou

o lince, ou em aves, como a águia-real. Porém, são

muitos os pequenos organismos que se encontram

em perigo de extinção. Um projeto inovador

visa preservar os bichos sem esqueleto interno

que sustentam os ecossistemas de água doce.

Orio Paiva, que nasce na serra de Leomil (Moimenta da Beira) e desa-gua em Castelo de Paiva, na mar-gem esquerda do rio Douro, tinha

tudo para passar despercebido no panorama hidrográfico nacional. Todavia, nos últimos anos, tem vindo a tornar-se cada vez mais conhecido, tanto pela sua indolência e frescura estival, que atrai incontáveis veraneantes, como pela sua ferocidade invernal, que cativa inú-meros amantes das águas bravas, vindos de aquém e além-fonteiras, e ainda pelos cenários magníficos que oferece aos turistas, durante todo o ano, quer chova, quer faça sol.

Houve tempos em que as margens do Paiva eram palmilhadas unicamente por habitantes locais e pescadores, mas há muito que deixou de ser assim. Durante o estio, são cada vez mais os banhistas, amantes do sossego e das praias fluviais, que procuram as suas águas frescas, puras e cristalinas. Com o regresso dos dias chu-vosos, surgem praticantes de desportos radi-cais, como o rafting e a canoagem, sedentos de adrenalina. Perante a incredulidade de muita gente, os intrépidos aventureiros metem-se nuns barquitos de borracha ou de plástico e enfrentam com bravura a fúria das águas tumultuosas. Afinal, falamos daquele que é considerado o rio mais selvagem de Portugal.

Como se não bastasse, em junho deste ano, o Paiva tornou-se um lugar de romaria para

milhares de portugueses: perto de quinze mil pessoas por dia, segundo dados oficiais. Che-garam atraídos pelas notícias que davam conta da inauguração de espetaculares miradouros e passadiços de madeira, na zona de Arouca, suspensos sobre as falésias e os desfiladeiros que caracterizam a margem esquerda, de onde se colhem inesquecíveis vistas cénicas.

Curiosamente, apesar de ser um espaço natural que cativa tanta gente, a maioria dos visitantes desconhece que se trata de um sítio de importância comunitária, classificado no âmbito da Natura 2000, a rede ecológica euro-peia, que visa proteger os habitats naturais mais vulneráveis e as espécies de fauna e flora mais ameaçadas do velho continente. Além disso, poucas pessoas sabem que, nas suas margens e nas suas águas, se abrigam relíquias animais e vegetais em vias de extinção.

RELÍQUIAS RIBEIRINHASO rio Paiva é considerado um curso de água

de média dimensão, com cerca de 110 quilóme-tros de comprimento e 77 km2 de bacia hidro-gráfica, abarcando vários concelhos: Arouca, Castelo de Paiva, Castro de Aire, Cinfães, Moi-menta da Beira, São Pedro do Sul, Sátão, Ser-nancelhe, Vila Nova de Paiva e Viseu.

De acordo com a ficha de caracterização da Rede Natura 2000, o troço inicial do Paiva per-corre um planalto onde predominam os matos,

Vida em risco. Nas margens do rio Paiva e nas suas águas, abrigam-se relíquias animais e vegetais em vias de extinção.

campos agrícolas, prados e carvalhais, apre-sentando uma vegetação de caráter conti-nental. O troço médio corresponde a um vale encaixado, com encostas revestidas por pinhais e eucaliptais, matos, carvalhais e sobreirais. Devido à orientação do rio, às vertentes de declive elevado e ao substrato xistoso, pre-domina uma vegetação mediterrânica. As mar-gens rochosas alternam com zonas de terra, onde a vegetação ripícola, também chamada “ripária” ou “ribeirinha”, se encontra bem con-servada e desenvolvida. No troço final, apesar do aumento da área plantada com eucaliptos, surge uma elevada cobertura e boa densidade vegetal, sobretudo, de caráter atlântico.

Embora existam, pelo menos, dezoito habi-tats naturais dignos de registo ao longo do Paiva, iremos abordar, com mais pormenor, as galerias ripícolas, que consistem na vegetação que se desenvolve longitudinalmente, acom-

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panhando o curso de água. Estes corredores verdes constituem aquilo que em ecologia se designa por “ecótono” (do grego: oikos, casa, e tonus, tensão): zona de transição ambiental onde duas ou mais comunidades ecológicas, ecossistemas ou biomas entram em contacto.

Nas galerias ripícolas, imperam os salgueiros (Salix salviifolia), os amieiros (Alnus glutinosa) e os freixos (Fraxinus angustifolia), implantados, geralmente, em solos encharcados ou alaga-diços. Estes bosques, que bordejam os cursos de água, constituem zonas de transição entre o meio terrestre, como os pinhais e os carvalhais, e o meio aquático, formado pela coluna de água. Uma vez que possuem condições edáficas e climáticas mistas, são, habitualmente, zonas de elevada biodiversidade, onde se encontram seres vivos característicos de ambos os meios e espécies que surgem somente nestes singu-lares habitats.

UM DOS MELHORES DA EUROPA

Em termos de qualidade da água, o Paiva é considerado um dos melhores rios da Europa, pelo que, entre a fauna dos bosques ripícolas, encontram-se alguns mamíferos de hábitos aquáticos, como a lontra (Lutra lutra), a tou-peira-de-água (Galemys pyrenaicus) e o rato--de-água (Arvicola sapidus).

A lontra reconhece-se pelo corpo esguio, com perfil hidrodinâmico, cauda comprida e forte, que funciona como órgão propulsor e leme, e pelagem espessa e sedosa (responsá-vel pela impermeabilização e pelo isolamento térmico). As patas são espalmadas, com mem-branas interdigitais, os olhos e as narinas sur-gem em posição superior e os ouvidos e as fos-sas nasais fecham-se hermeticamente durante os períodos de imersão. Trata-se de uma espé-cie autóctone, que ocorre no nosso país em populações estáveis, contrariando a tendência

de declínio populacional, nos restantes países europeus.

A toupeira-de-água vive em regatos límpidos e muito oxigenados e em rios com correntes fortes, onde passa a maior parte do tempo a nadar, procurando os insetos aquáticos que lhe servem de alimento. Reconhece-se facilmente pelo focinho em forma de tromba, pela cauda longa e revestida de escamas, pelas patas com cinco dedos ligados por uma fina membrana interdigital e pela pelagem castanho-escura, espessa, longa e impermeável.

Os ratos-de-água vivem nas margens com vegetação densa, cheias de húmus e terra esponjosa, onde facilmente escavam os seus túneis e galerias. São extraordinários mergulha-dores e excelentes nadadores, que atravessam os lençóis de água sem quaisquer dificuldades. Têm pelo castanho-escuro no dorso e cinzento na região ventral. Os adultos medem cerca de

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20 centímetros, a que acrescem 12 cm de cauda.Também existem inúmeras aves, com desta-

que para as que são típicas de habitats aquá-ticos, como o guarda-rios (Alcedo atthis), a garça-real (Ardea cinerea) e o melro-de-água (Cinclus cinclus), entre muitas outras.

O guarda-rios, também conhecido como “pica-peixe”, é uma das mais belas aves euro-peias, que pode ser facilmente reconhecida pelo dorso e asas azuis e pelo peito e ventre laranja. Contudo, geralmente, a sua visão resume-se a um clarão azul-turquesa que corta o ar com a rapidez de uma bala. Além da beleza, merece referência a sua requintada téc-nica de pesca e a sua pontaria admirável: após alguns minutos de concentração, lança-se repen tinamente sobre a água, como uma fle-cha, e em menos de dois segundos regressa com um peixe a contorcer-se no bico.

A garça-real, também conhecida por “garça--cinzenta”, deve o seu nome às majestosas dimensões (com cerca de um metro de altura, é a maior das garças que ocorrem em Portugal) e à sua silhueta elegante, de que se destaca o longo pescoço e a coloração acinzentada, que a tornam inconfundível. Pode observar-se ao longo de todo o ano, sendo claramente mais numerosa durante o outono e o inverno.

O melro-d’água destaca-se por ser o único

passeriforme com a capacidade de mergulhar. Além disso, nada velozmente dentro de água (e consegue caminhar sobre o fundo dos ribeiros), atrás de pequenos peixes ou à cata de macro-in vertebrados que constituem a sua principal dieta alimentar.

RÉPTEIS E ANFÍBIOSAo nível dos répteis e anfíbios, a atenção vai

para as espécies com importância de conser-vação, por serem endemismos ibéricos, como o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), a sala-mandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica) e a rã-ibérica (Rana iberica).

Como o nome indica, o lagarto-de-água ocorre em zonas relativamente húmidas, pró-ximas de cursos de água com coberto vegetal denso. Veste-se, habitualmentem de tons esverdeados ou amarelados, com um ponteado preto relativamente denso e uniforme nos machos e grandes manchas negras nas fêmeas.

A salamandra-lusitânica, também chamada “salamandra-dourada” ou “quioglossa”, exibe um corpo alongado, com membros curtos e delgados e uma coloração negra com duas bandas dorsais longitudinais alaranjadas ou douradas. Possui ainda uma cauda muito longa (cerca de dois terços do seu comprimento total), que pode chegar aos 15 cm. A cabeça

Os mexilhões de água doce são organismos quase ignorados

é pequena e achatada, com os olhos proe-minentes colocados em posição lateral. Os adultos possuem hábitos terrestres, essencial-mente noturnos, utilizando o meio aquático apenas para se refugiarem de predadores ou para depositarem os seus ovos.

Embora todos nós já tenhamos visto rãs-ver-des, poucos saberão que, em solo luso, ocorre também uma rã-castanha, conhecida por “rã--ibérica”, de menores dimensões (não ultra-passa, geralmente, 6 cm de comprimento). Além do tamanho, distingue-se da sua congé-nere mais comum pela coloração dorsal acas-tanhada ou acinzentada e pela presença de uma banda pós-ocular escura e muito nítida. Os olhos são grandes e protuberantes, com pupila horizontal elíptica.

Por incrível que pareça, as comunidades piscícolas e de invertebrados aquáticos (tanto num caso como no outro existem várias espé-cies raras e endémicas, no rio Paiva) benefi-ciam igualmente da existência de bosques ribeirinhos extensos e saudáveis, não só por serem uma importante fonte de alimento para a ictiofauna (bem como para a fauna terrestre), mas também por oferecerem abrigos e contro-larem a quantidade de luz que atinge a super-fície da água, regulando simultaneamente a temperatura e a oxigenação.

Por fim, convém não esquecer que as árvo-res e os arbustos da beira-rio são fundamentais para manter a estabilidade das margens, impe-dindo a sua acentuada erosão. Além disso, aju-dam a reduzir o teor de substâncias dissolvidas

Escondidos. Para ver mexilhões de rio no seu habitat natural é necessário equipamento especial. Um dos maiores conhecedores nacionais destes bichos é Joaquim Reis.

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e em suspensão, dada a sua capacidade de fil-tração e remoção de nutrientes, e melhoram a satisfação estética, um dos importantes servi-ços culturais dos ecossistemas.

PROJETO ECOTONE

Temos vindo a falar do rio Paiva porque ele é umas das áreas de intervenção de um ino-vador projeto, denominado Ecotone (o termo inglês que corresponde ao vocábulo português “ecótono”, abordado acima), que visa recupe-rar os habitats ripícolas, de modo a contribuir para a conservação de alguns invertebrados ameaçados. Se há coisa que a Rede Natura 2000 nos ensinou, desde a sua fundação, em 1992, foi que a conservação da natureza não se pode centrar apenas nas espécies, mas deve focar-se, sobretudo, nos seus habitats. Afinal, são eles os suportes fundamentais de toda a biodiversidade.

Para conhecermos melhor o Projeto Eco-tone, coordenado em Portugal pela Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natu-reza e cofinanciado pelo programa LIFE+, da União Europeia, precisamos de deixar as mar-gens do Paiva e viajar quase duas dezenas de quilómetros para sul, até Figueiró dos Vinhos. O centro nevrálgico das operações localiza-se no antigo Posto Aquícola de Campelo, onde outrora os Serviços Florestais criavam trutas para repovoamento dos rios. É exatamente aí que Paulo Lucas, coordenador do grupo de trabalho sobre biodiversidade da Quercus, nos explica que este projeto tem como finali-

dade a conceção, implementação e avaliação de metodologias de gestão ativa do habitat prioritário da Rede Natura 2000 “Florestas aluviais de Alnus glutinosa e Fraxinus excelsior (Alno-Padion, Alnion incanae, Salicion albae)”, com o intuito de aumentar as populações de odonatos e melhorar o estado de conservação das populações de náiades ameaçadas.

Uma vez que o objetivo enunciado surge num palavreado científico que pode não ser inte-ligível para a maioria dos leitores, impõe-se descodificá-lo. Assim, as “florestas aluviais” referem-se aos bosques ribeirinhos de amiei-ros, freixos e salgueiros, já mencionados a propósito do Paiva; as populações de odona-tos correspondem às libélulas e libelinhas, e as de náiades a bivalves de água doce, como os mexilhões-do-rio. É verdade: há mexilhões nos rios e nas ribeiras portugueses. São animais enigmáticos e fascinantes, cujas singularidades biológicas têm despertado a curiosidade da comunidade científica.

O termo “náiades” era usado, nas lendas romanas, para designar as ninfas dos rios e das fontes. Referia-se a belas criaturas femininas aquáticas, com dons de profecia, cura e controlo das águas. Na atualidade, porém, utiliza-se para criaturas biológicas que, não sendo de “carne e osso”, são de “carne e concha”: tal como os restantes moluscos bivalves, o seu corpo encontra-se protegido por duas conchas.

Os mexilhões de água doce encontram-se, geralmente, enterrados no substrato (areia ou lodo), onde se alimentam, tal como os seus

congéneres marinhos, por filtração das partí-culas em suspensão. Os cientistas consideram--nos verdadeiras sentinelas dos rios, uma vez que são extremamente sensíveis às alterações do meio, servindo como excelentes bioindi-cadores da qualidade da água. Além disso, funcionam como pequenas estações de trata-mento de águas, uma vez que filtram e depu-ram enormes volumes de água. Por exemplo, uma colónia de 700 indivíduos da espécie Mar-garitifera margaritifera, em que cada exemplar não vai além de 13 cm, pode filtrar cerca de 35 mil litros de água por dia.

A M. margaritifera, conhecida como “náiade--do-norte”, é uma das espécies ameaçadas sob a mira do Projeto Ecotone. Embora tenha sido dada como extinta em Portugal, foi redesco-berta, em 2001, no âmbito do projeto Atlas dos Bivalves Portugueses, coordenado pelo investigador Joaquim Reis. Nessa publicação, o biólogo alertava que esta espécie, apesar de ocorrer nos rios Cávado, Neiva, Paiva, Rabaçal e Tuela, apresenta uma situação estável e com sucesso reprodutor unicamente nos dois últi-mos, dado que nos restantes cursos de água enfrenta risco eminente de extinção.

A náiade-do-norte vive exclusivamente em cursos de águas frias (temperatura inferior a 20 graus), límpidas, pobres em nutrientes (oli-gotróficas), nomeadamente em cálcio (águas macias), e muito oxigenadas, sendo extrema-mente intolerante a qualquer tipo de poluição. À semelhança dos seus congéneres, estes mexilhões vivem parcialmente enterrados no

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Descobriu-se que a náiade-do-sul só existe na península Ibérica

lodo ou na areia, embora pareçam preferir fun-dos rochosos-arenosos, com pouco lodo. Atin-gem a idade adulta entre os 10 e os 15 anos de idade, quando o comprimento alcança cerca de 6,5 cm, podendo crescer até aos 15 cm (em Portugal, raramente excedem 10 cm). Apesar de ser considerada a espécie com maior lon-gevidade entre os invertebrados, podendo atingir 190 anos, na península Ibérica chega, habitualmente, apenas aos 60 anos.

O outro mexilhão de rio eleito pelo projeto, considerado, na atualidade, uma das espécies ibéricas de náiades mais ameaçadas, é o Unio tumidiformis, conhecido como “náiade-do-sul” ou “náiade-pequena”. O nome vulgar alude ao facto de ser um mexilhão de pequeno porte, que raramente excede os 5 cm de compri-mento. Segundo Joaquim Reis, embora com-partilhe alguns caracteres morfológicos com populações do centro e norte da Europa de U. crassus, a sua espécie-irmã em termos gené-ticos, esta é claramente distinta de todas as espécies europeias do género Unio. Assim, após muitas amostras efetuadas em toda a península, incluindo a análise da morfologia, da anatomia, da distribuição geográfica e do ciclo de vida, foi possível concluir que, afinal, o U. tumidiformis é uma espécie nova, que se res-tringe às bacias do Atlântico Sul da península Ibérica, como o Sado, o Mira e o Guadiana.

A náiade-do-sul apresenta a concha com

coloração variável, sendo habitual a presença de estrias bem marcadas. Vive em pequenos cursos de água, sujeitos a secas frequentes e extremas, muito enterrada nos sedimentos finos (areia e lodo) perto das margens, tendo sido já identificadas cinco espécies de peixes do género Squalius como hospedeiros das suas larvas. Como nem o habitat nem a distribuição dos hospedeiros podem explicar a sua distri-buição restrita, a espécie deve certamente a sua origem a uma longa história de isolamento. Por esta razão, está definido que deve manter o estatuto de conservação jurídica reconhe-cido para a sua congénere, o U. crassus.

De modo a incluir também a náiade-pequena como espécie-alvo, o Projeto Ecotone teve necessidade de se expandir ainda mais para sul, até à ribeira do Torgal, em Odemira, integrada no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina e no Sítio de Importância Comunitária Costa Sudoeste. Recorde-se que esta área protegida inclui uma das paisagens naturais mais bem preservadas da Europa, na qual abundam valores patrimoniais (biológicos, geológicos, paisagísticos e culturais), que inte-ressa preservar.

ESTRANHAS RELAÇÕESOutra característica singular das náiades é a

forma como se relacionam com determinados peixes, como a truta ou o escalo, dos quais

Vida dupla

O Projeto Ecotone visa a conservação dos bosques ripícolas, tanto no rio

Paiva (Castro Daire) como na ribeira do Torgal (Odemira), dado que a vitalidade destes habitats beneficiará toda a comuni-dade de fauna e flora ribeirinhas. Porém, a maior originalidade deste projeto é o facto de se dirigir, primordialmente, a organismos invertebrados, como as náiades (mexilhões do rio) e as libélulas e as libelinhas.Se é verdade que os mexilhões de água doce são moluscos praticamente ignorados, devi-do ao facto de habitarem no fundo dos rios e das ribeiras, longe do olhar, não é menos verdade que as libélulas e as libelinhas (in-setos pertencentes à ordem dos Odonatos), apesar de darem mais nas vistas, são quase desconhecidas. Senão vejamos: quantas espécies existem em Portugal? A maioria das pessoas responderá: uma ou duas. A resposta correta, por incrível que pareça, é sessenta e cinco!Os odonatos, que incluem cerca de 6000 es-pécies em todo o mundo, são insetos incon-fundíveis, que se distinguem pelos corpos longos e por terem dois pares de asas, nos quais se pode ver um complexo sistema de nervuras, que dão consistência à área mem-branosa e concedem um batimento rápido e uma velocidade apreciável, que pode chegar aos 30 quilómetros por hora. As antenas são muito curtas e possuem dois enormes olhos compostos, que lhes proporcionam uma excelente visão. As libélulas (anisópteros) apresentam, geralmente, um corpo robusto e asas anteriores e posteriores distintas, e costumam pousar com as asas abertas. Ao invés, as libelinhas (zigópteros) têm um corpo delgado e asas anteriores e posterio-res semelhantes, e costumam pousar com as asas fechadas.De um modo geral, os odonatos osten-tam colorações admiráveis, que vão do vermelho ao verde, passando pelo amarelo, pelo castanho e pelo azul-metalizado. No entanto, as suas cores brilhantes desapa-recem depois da morte. Por isso, não são muito procurados pelos colecionadores de insetos, contrariamente ao que sucede com as borboletas, que mantêm as suas belas co-res mesmo depois de mortas, sobretudo se forem guardadas em condições adequadas, como acontece nas coleções dos museus de história natural. Reira-se, no entanto, que as cores das libélulas e das libelinhas não servem apenas para nos deleitar: desempe-nham múltiplas funções na sua sobrevivên-cia, desde a deteção e identiicação dos par-ceiros sexuais até à camulagem, passando pela manutenção da temperatura corporal, através da iltragem dos raios ultravioletas da luz solar.

Nova vida. O centro das operações do Projeto Ecotone localiza-se no antigo Posto Aquícola de Campelo, onde os Serviços Florestais criavam trutas para repovoamento dos rios nacionais.

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Além disso, os odonatos são verdadeiros acrobatas aéreos, havendo espécies que conseguem até voar para trás. Esta habilidade e a desenvoltura no voo devem-se ao facto de os dois pares de asas se movimentarem independentemente um do outro e de cada asa poder mover-se isoladamente. Só assim se compreende que, após a perda total ou parcial de uma asa, motivada pelo ataque de um pre-dador, por exemplo, o inseto possa continuar a voar e a fazer a sua vida normal, como caçar as suas presas no ar.Falamos, obviamente, dos animais no estado adulto. No estado larvar, o seu aspeto é totalmente diferente, tendo levado a que, nos primórdios da classiicação dos seres vivos, tivessem sido consideradas espécies distintas. Recorde-se que estes insetos têm metamor-fose incompleta (hemimetabolismo), ou seja, apresentam três estádios de desenvolvimento: ovo, larva e adulto.O mais interessante, porém, é o facto de, ao contrário dos adultos, que se passeiam livremente pelos ares, as larvas serem aquáticas, estando totalmente dependentes da água para a sua sobrevivência. Por esta razão, estes orga-nismos são ótimos bioindicadores da qualidade do meio, uma vez que são muito sensíveis às modiicações que ocorrem nos seus habitats. “Um rio ou um ribeiro onde exista apenas uma ou duas espécies de libélulas não é, com toda a certeza, um habitat bem preservado”, lembra Sónia Ferreira, investigadora do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto.Assim, não admira que os principais fatores de ameaça aos odonatos sejam a deterioração da qualidade da água, devido à poluição agrícola,

industrial e urbana; as alterações nos cursos de água, com construção de barragens e de canais de irrigação, artiicialização das margens e entubamento dos leitos; a utilização de pesti-cidas; e a destruição da vegetação ripícola.Segundo os especialistas, em Portugal ocor-rem pelo menos quatro espécies ameaçadas, que constam da Lista Vermelha das Libélulas Europeias, estando abrangidas pela Convenção de Berna e pela Diretiva Habitat: libelinha de Mercúrio (Coenagrion mercuriale), libélula--esplêndida (Macromia splendens), libélula--esmeralda (Oxygastra curtisii) e libélula-das--patas-denteadas (Gomphus graslinii). Destas, as três últimas são consideradas espécies-alvo do Projeto Ecotone.A libélula-esplêndida distingue-se pelo seu corpo negro, no qual sobressaem marcas dorsais amarelas em forma de coração, e pelos olhos verdes metalizados. Podem atingir 7,5 centímetros de comprimento e mais de dez de envergadura. Tanto os adultos como as larvas apresentam patas muito desenvolvidas. Vivem em rios com alguma largura e profundidade, preferindo as zonas de remanso com vegeta-ção nas margens. As larvas surgem, sobretudo, em zonas tranquilas e lodosas, onde se escon-dem entre as raízes submersas. O seu ciclo de vida é de dois a três anos, observando-se os adultos em voo nos meses de junho e julho.A libélula-esmeralda é fácil de identiicar, uma vez que é a única em Portugal que tem o corpo verde-escuro, metalizado, com pequenas marcas longitudinais amarelas e olhos verde--esmeralda. Podem atingir 5,5 cm de compri-mento e oito de envergadura. Habitam em rios e ribeiros com pouca corrente, situados nas orlas das lorestas. As larvas vivem entre as

raízes e os detritos vegetais dos cursos de água de pequena dimensão, com águas límpidas e bem oxigenadas. O seu ciclo de vida também é de dois a três anos, observando-se os adultos em voo entre abril e agosto.A libélula-das-patas-denteadas pode confundir-se facilmente com as outras duas espécies do género Gomphus existentes em Portugal, uma vez que todas têm asas hialinas e a coloração amarela com marcas negras, distinguindo-se somente por pormenores morfológicos que não estão ao alcance de um olho destreinado. Podem atingir 5 cm de comprimento e mais de seis de envergadura. Vivem em rios e ribeiros com águas limpas e bem oxigenadas. O seu ciclo de vida parece ser relativamente longo (três a quatro anos), observando-se os adultos em voo nos meses de junho a setembro.Ao centrar-se na recuperação e na manu-tenção dos habitats, o Projeto Ecotone não promove apenas as condições para o aumento das populações destas três espécies ameaçadas, mas contribui igualmente para a conservação de todos os odonatos e de muitos outros organismos ribeirinhos. Convém não esquecer que, no rio Paiva, foram identiica-das 25 espécies de odonatos, das quais 15 de libélulas e dez de libelinhas, e na ribeira do Torgal 23 espécies, das quais 15 de libélulas e oito de libelinhas, que constituem importantes elos das cadeias alimentares. Não nos esqueça-mos que os odonatos constituem vorazes predadores de insetos e são presas frequentes de grande número de animais, como aranhas, rãs, lagartos, peixes e aves, contribuindo, de forma inegável, para o equilíbrio ecológico dos ecossistemas dulçaquícolas.

No rio Paiva, foram identiicadas 25 espécies de odonatos, das quais 15 de libélulas e dez de libelinhas, e na ribeira do Torgal 23 espécies, das quais 15 de libélulas e oito de libelinhas, que constituem importantes elos das cadeias alimentares.

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O ciclo de vida do mexilhão de rio só foi compreendido recentemente

dependem para a sua sobrevivência. Na ver-dade, devido à sua reduzida capacidade de locomoção e por habitarem zonas de reduzida corrente, as larvas dos mexilhões de rio são parasitas obrigatórias dos peixes, o que lhes permite “andar à boleia”, ou seja, uma disper-são muito mais ampla e rápida, nomeadamente para locais distantes e a montante dos locais onde ocorrem as populações dos progenitores.

As náiades são espécies dioicas (com sexos separados), pelo que, na época da reprodução, que varia conforme a espécie, os machos liber-tam o esperma na água, acabando por fecun-dar os óvulos que se encontram no interior das fêmeas. Após a fecundação, os ovos são incu-bados no interior das brânquias femininas, transformadas em marsúpio, dando origem a larvas, denominadas “gloquídeos”.

A estranha relação entre os moluscos ribeiri-nhos e os peixes dulçaquícolas começa quando as fêmeas de mexilhão libertam na água as suas larvas. Estas mantêm-se ativas durante alguns dias, enquanto esperam pela oportunidade de se agarrarem aos filamentos branquiais dos seus hospedeiros. Refira-se, por curiosidade, que a náiade-do-norte parasita, sobretudo, tru-tas (Salmo trutta), enquanto a náiade-do-sul se aloja em escalos do género Squalius, como o bordalo (S. alburnoides), o escalo do Mira (S. torgalensis) e o escalo-do-sul (S. pyrenaicus).

Após um período de enquistamento, de vários dias a muitos meses, nas brânquias dos hospedeiros, as larvas, que têm pouco mais de 0,3 mm de comprimento, completam a sua metamorfose e transformam-se em miniaturas dos adultos. Nessa fase do ciclo de vida, sol-tam-se dos peixes e deixam-se cair no leito dos rios, onde acabam por se enterrar, passando a levar uma vida completamente autónoma. Trata-se de uma curiosa estratégia que permite a dispersão dos moluscos, aproveitando o movimento dos seus peixes-hospedeiros: deste modo, podem colonizar locais muito distantes das regiões onde se encontram os seus proge-nitores. Por tudo isto, é fácil perceber por que razão o ciclo de vida dos mexilhões do rio per-maneceu um mistério durante tantas décadas, tendo apenas sido revelado recentemente.

Talvez valha a pena recordar que temos estado a falar de invertebrados, ou seja, literal-mente “daqueles que não têm vértebras”: um vasto conjunto de animais que se caracterizam, genericamente, pela ausência de coluna ver-tebral e esqueleto interno. Constituem 95 por cento de todos os organismos conhecidos e pensa-se que haja ainda milhões (as estimativas variam entre três e cem milhões de espécies) que só serão descobertos pelas gerações vindouras.

Já agora, também existem camarões de água doce, como o camarão-do-rio (Atyae-

phyra desmaresti). É um crustáceo similar ao parente marinho, mas que prefere águas doces tranquilas (embora resista bem a gran-des variações de salinidade e temperatura, sendo contudo muito sensível à poluição), bem oxigenadas e com abundância de vegetação aquática. Possui um regime alimentar omní-voro, sobretudo à base de algas, zooplâncton, cadáveres e partículas minerais e orgânicas. Embora não costume ultrapassar os 4 cm de comprimento, trata-se de um organismo muito importante nas teias alimentares fluviais, uma vez que serve de alimento a diversos peixes (sendo também usado como isco pelos pesca-dores). Uma das curiosidades a seu respeito é o facto de apresentar hábitos coprófagos, que lhe permitem a utilização das suas próprias fezes, cujo teor em matéria orgânica é, por vezes, mais elevado do que o do lodo: isto deve--se à matéria orgânica não digerida, às bacté-rias, protozoários e fungos que nelas se desen-volvem e ainda às substâncias mucosas que envolvem os excrementos. Ao contribuir para a formação e o enriquecimento dos sedi-mentos, intervém também como importante agente biogeoquímico, no seu habitat.

Afinal, quem disse que os invertebrados não têm utilidade? Embora sejam uma vizinhança que ignoramos, constituem um elo fundamen-tal na complexa teia da vida.

MATERNIDADE DE MEXILHÕESAgora, que já conhecemos as espécies-alvo

e as áreas de intervenção do Projeto Ecotone, é chegada a hora de regressar ao posto Aquí-

Paciência de relojoeiro. Alexandrina Pipa passa horas inindáveis à lupa binocular,

à cata de gloquídeos. Passados uns meses, os juvenis serão colocados em tanques

com areia, para crescerem (página oposta).

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Assim, as trutas, com milhares de gloquídeos enquistados nas suas brânquias, serão manti-das em cativeiro, durante um período de seis a nove meses. Findo esse tempo, quando são atingidas determinadas condições de tempe-ratura, estes, já transformados em juvenis, libertam-se, obrigando Alexandrina a passar dias e dias de olhos na lupa, à cata deles, pois continuam a ser minúsculos, não indo além de 0,4 mm de comprimento.

PLANTAÇÃO NA AREIAApós a triagem e a recolha dos juvenis (mais

de 3000 por dia), Alexandrina procede à sua “plantação”, uma designação muito curiosa, se tivermos em conta que estamos a falar de animais. No entanto, esta expressão tem a sua razão de ser, pois os juvenis são quase tratados como sementes: vão ser colocados em tanques com areia, muito oxigenados, onde irão crescer, enterrados no fundo. Como são organismos filtradores, os mexilhões não precisam de ser alimentados, pois filtram a água da ribeira de Alge através de um sistema de cílios que retém as partículas nutritivas. Porém, quando são usados para realizar experiências laborato-riais, sobretudo nas fases iniciais do seu desen-volvimento, podem ser nutridos com algas, criadas especificamente para o efeito. Após esta fase, que pode durar um ano, os pequenos mexilhões serão libertados no seu habitat natural, no rio Paiva (náiade-do-norte) e na ribeira do Torgal (náiade-do-sul).

Tudo isto, porém, é apenas uma pequena amostra do que tem sido o projeto Ecotone, que

está prestes a terminar. Uma vez que decorre entre janeiro de 2013 e janeiro de 2016, ainda não há resultados finais, mas os dados já obti-dos são bastante animadores. Ao longo de quase três anos, fizeram-se inúmeras ativi-dades, como, por exemplo, a caracterização e inventariação da vegetação, da ictiofauna, dos odonatos e das náiades nas áreas de inter-venção, e a gestão dos bosques ribeirinhos, totalizando cerca de 16 hectares. Procedeu--se ainda à reabilitação do Posto Aquícola de Campelo para permitir reproduzir náiades, bem como o escalo do Mira. Aí, infestaram-se dezenas de trutas com gloquídeos de náiade--do-norte, das quais se obtiveram mais de 161 mil juvenis, alguns dos quais já libertados no Paiva. Capturaram-se também quase 26 mil juvenis de náiade-do-sul, dos quais mais de 24 mil já foram colocados na ribeira do Torgal, onde também foi feito o repovoamento com 986 escalos do Mira e 80 bordalos. Além disso, fizeram-se painéis informativos, folhetos e brochuras para informar e sensibilizar os cida-dãos, sobretudo, os visitantes e residentes das zonas sensíveis onde se realizou a intervenção.

Resta-nos desejar que, num futuro próximo, surjam mais projetos análogos, que se preo-cupem com os invertebrados: tal como uma casa precisa de ter alicerces fortes, também as teias alimentares necessitam de bases estáveis para se manterem equilibradas e saudáveis. Os pequenos bichos sem esqueleto interno são o sustentáculo vital de qualquer ecossistema, seja ele de água doce, salgada ou terrestre.

J.N.

cola de Campelo, onde Alexandrina Pipa, uma das técnicas do projeto, nos revelará alguns segredos deste empreendimento.

Após obras de restauro e adaptação, os tan-ques de cimento, onde antigamente se cria-vam as trutas para repovoamento dos rios por-tugueses, continuam a ser alimentados pelas águas frescas e cristalinas da ribeira de Alge, nascida na serra da Lousã, mas surgem, atual-mente, com uma nova cara, cheios de vegeta-ção, fazendo lembrar pequenos ribeiros. A pre-sença de várias espécies botânicas ribeirinhas, como salgueiros, tábuas ou fetos-reais, pre-tende recriar as condições naturais do habitat dos escalos e bordalos que nadam no seu inte-rior. São centenas de peixes, raros e em vias de extinção, que aguardam a sua libertação no habitat natural, podendo, mais tarde, vir a servir de hospedeiros às náiades igualmente ameaçadas.

Já que falámos em náiades, deixemos os tanques exteriores e passemos para o interior do edifício, onde se encontra o laboratório científico, com pequenos tanques e aquários que constituem uma singular maternidade de mexilhões. É aí que a Alexandrina passa horas infindáveis à lupa binocular, com uma paciência de relojoeiro, à cata de gloquídeos. Recorde-se que estes medem somente cerca de 0,2 mm, pelo que não são visíveis a olho nu.

Após serem recolhidos, os gloquídeos são usados para parasitar as brânquias das trutas. “Poder-se-ia libertar os peixes nesta fase, mas não conseguiríamos monitorizar o sucesso do repovoamento”, esclarece a investigadora.

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GeraçãoGUARDIÃES

Ambiente

Contra as alterações climáticas

Quando um miúdo de 15 anos acordou

consciências na Assembleia Geral das Nações

Unidas, percebeu-se que os mais jovens podem

ter um papel decisivo na salvação do planeta:

Xiuhtezcatl e os seus Earth Guardians

são um fenómeno à escala mundial

N o dia 29 de junho último, um miúdo de 15 anos, com aspeto índio, os cabelos negros compridos caindo--lhe pelas costas, de fato e camisa

branca, sobe em passos lentos até ao púlpito da Assembleia Geral das Nações Unidas, que em Nova Iorque discute o problema das alte-rações climáticas. Apresenta-se, mas começa a falar numa língua estranha e desconhecida, o dialeto nahuatl, que leva muitos delegados a socorrerem-se dos auscultadores, em busca da tradução. A situação, porém, só melhora quando ele passa a pronunciar-se em espanhol, e depois em inglês. Serenamente, sem recorrer uma única vez aos apontamentos, fala, durante cerca de dez minutos, da necessidade de olhar sem hesitações para as alterações climáticas, de como se tornou imperativo que as pessoas ali presentes, com capacidade de decisão, atuem para salvar o planeta, em prol das gerações vindouras. Não se perturba com olhares dis-traídos, apertos de mãos ocasionais, sinais de algum desinteresse, entre tanta gente respon-sável. No final, os aplausos parecem circuns-tanciais, mas a mensagem não o fora.

O miúdo chama-se Xiuhtezcatl Roske-Martinez, nasceu no Colorado e é a voz de uma geração. De uma geração de guardiães, que rompeu com a velha ideia de que quem decide são os adultos, as crianças que esperem pelas suas decisões. Roske-Martinez, diretor para a juventude do movimento Earth Guardians, está a inspirar milhares de jovens em todo o

mundo na luta pela salvação do planeta. Os seus vídeos no YouTube tornaram-se virais (nomeadamente o filme Kid Warrior, que conta a sua extraordinária história), já há mais de 300 núcleos formados em 25 países, de todos os continentes, e até há quem lhe chame o “anti-Bieber”. Barack Obama atribuiu-lhe um prémio (em 2013, por Serviço Comunitário) e incluiu-o no seu Conselho da Juventude, e uma música dos Earth Guardians, Speak for the Trees (ele é também artista hip-hop), será o som de fundo da Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a realizar em Paris entre 30 de novembro e 11 de dezembro.

MUDAR O CURSO DA HISTÓRIAO que disse Xiuhtezcatl nas Nações Unidas?

Tudo, e em palavras simples: “O que muita gente parece não querer ver é que as alterações climáticas não são um problema do futuro. Está já a afetar o gelo nos polos e a subir o nível das águas nos oceanos. Afeta-nos agora, e vai continuar a piorar.” Apelou à ação: “O que está nas nossas mãos, hoje, é a sobrevivência desta geração e a continuação da raça humana.” Apontou medidas: “É tempo de olhar para os céus para procurar as soluções de que precisa-mos. O futuro da energia não está num buraco. Precisamos de perceber que não podemos continuar a tirar o que queremos sem dar nada em troca, sem compreender o dano que esta-mos a fazer ao planeta.”

O seu apelo é dramático: “Estamos a ser

Falar ao mundo. Xiuhtezcatl acredita que o seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas alertou os delegados para a necessidade de deixar às gerações futuras um planeta habitável.

desafiados para usar a nossa coragem, a nossa inovação, a nossa criatividade e a nossa paixão para trabalharmos por um novo mundo. Neste mundo em colapso que vemos, que melhor altura para nascer se não agora? Esta geração, as pessoas nesta sala, têm a oportunidade de mudar o curso da história. Os humanos criaram a maior crise da história do planeta, e este é o maior desafio para vencer. Quero que o façam connosco.”

LIGAÇÃO À TERRABoulder, Colorado: é aqui que vive o miúdo

que tenho na minha frente, via Skype. Xiuhtez-catl tem uma segurança e uma convicção raras em alguém com a sua idade. Para ele, tudo isto é uma coisa natural, relacionada com a forma como cresceu: “Sempre aprendi a respeitar a Terra; ganhei, desde pequeno, essa ligação, que tem a ver com a cultura azteca; sempre

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aprendemos que éramos gente da Terra, guar-diães da Terra, e ao crescer fui entendendo que estamos a destruir o único planeta que temos. Por isso, senti a necessidade de o defender.”

Xiuhtezcatl nasceu em Boulder, filho de pai mexicano e de mãe norte-americana. Do pri-meiro, apreendeu uma forma ancestral de liga-ção à terra, transmitida oralmente, de geração em geração. Da mãe, herdou um ativismo convicto: Tamara Rose fundou em 1992, em Maui, no Hawai, uma escola chamada Earth Guardians, focada na transmissão dos valores sobre a Terra, os costumes, a necessidade de proteger o meio ambiente.

“A primeira vez que falei em público, tinha seis anos, num evento em Boulder… Falei das alte-rações climáticas, do problema que estávamos a provocar; tínhamos de assumir responsabi-lidades e ajudar a proteger o planeta. Depois disso, juntei-me com um grupo de amigos para

alertar para os químicos que estavam a destruir os pastos, falámos com os responsáveis da cidade e conseguimos alterar a situação… Como me fui apercebendo das situações? Vi mui-tos documentários desde pequeno, sobre ani-mais, sobre o planeta, do National Geographic… A minha mãe e o meu pai também estavam muito identificados com a questão do ambiente, e alguns dos meus irmãos integraram antes de mim o movimento Guardiães da Terra…”

SEGUIR OS SONHOS

Fala com a segurança de um adulto. É um adolescente, mas aparentemente não é igual aos outros… Só aparentemente: “Sou normal, como os outros… Gosto de estar com os ami-gos, de fazer caminhadas, de praticar desporto, de jogar futebol… Tenho também os problemas normais dos adolescentes. Não tenho muito dinheiro, e a grande diferença é que trabalho

muito, tento seguir os meus sonhos e fazer algo de bom, falar, fazer música, transmitir coisas que aprendi e que podem fazer uma diferença positiva na minha comunidade.”

Seja como for, o crescimento dos Earth Guardians à escala mundial já mudou a vida de Xiuhtezcatl. De tal forma que, no primeiro semestre deste ano, não pode ir à escola: “Estou a viajar muito, todos os fins de semana… Vou à Califórnia amanhã, estive antes em Los Angeles, e antes em Nova Iorque… Como viajo muito, não é possível ir à escola… Em janeiro, regresso, e já sei que será muito difícil! Quando viajo, aproveito também para ter alguns tem-pos livres, para ir à praia, para conhecer… e também para aprender muito! Quando estou a viajar, aprendo mais do que sentado a ler livros. Experienciar o mundo é uma coisa de que muitos jovens não têm oportunidade, e todos os dias dou graças pelo que recebi.”

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Xiuhtezcatl (lê-se “chuTEZcat”) está muito ligado à cultura azteca, e o seu nome provém da língua nahuatl, segundo a tradição mashika. “Significa espelho”, esclarece. De uma forma mais correta, significa os reflexos do Sol e do céu. O nome foi-lhe atribuído às seis semanas de vida, numa cerimónia denominada Dia Mun-dial da Paz e da Oração, integrada numa tradição azteca denominada Arvol Looking Horse, com a contribuição do avô Xolotl Martinez, também ele um líder indígena, no Dakota do Sul. O nome foi escolhido com base no calendário azteca e no alinhamento astral à hora em que nasceu.

Com uma relação tão profunda a algo tão ancestral, parece incrível a naturalidade com que este jovem de 15 anos chegou a algo tão atual como a assembleia da ONU. Sorri com simplicidade quando lhe colocamos a questão: “Muitas culturas por todo o planeta estão a desaparecer, a espiritualidade está a desapa-recer… Eu tenho uma missão para um mundo novo, com paz, liberdade, sustentabilidade, onde estejamos mais ligados com o outro e com a Terra… A minha ambição passa por combinar a tecnologia que agora temos com as vozes ancestrais, percebendo que as coisas

que nos ensinaram são muito importantes para o planeta. Todos estamos ligados, e temos obrigação de proteger e dar graças à Terra. Se temos água, dar-lhe graças, se temos Sol, agra-decer-lhe, se temos chuva, dar graças à chuva.”

Por isso, Xiuhtezcatl não considera desper-diçados os dez minutos de discurso em Nova Iorque: “A princípio, os delegados estavam distraídos. Comecei a falar em nahuatl, não entenderam nada, não havia tradução, todos se interrogavam: ‘O que disse ele, o que disse ele?’ Depois… A minha mensagem era tão pura e inocente, perceberam que eu não estava ali por razões políticas ou por dinheiro, mas sim pela minha gente, pelas pessoas, pela Terra. Acho que eles escutaram e aprenderam que as decisões que tomam vão afetar as gera-ções futuras.”

A ÚLTIMA OPORTUNIDADEUm dos papéis assumidos pelos Guardiães da

Terra é o de responsabilizar os líderes políticos. Nesse sentido, e embora Xiuhtezcatl tenha recebido o prémio de Barack Obama, e de ter sido incluído na sua Comissão para a Juventude, o grupo colocou o país em tribunal: “Temos

Colocaram em tribunal

Obama e os Estados Unidos

uma ação contra os Estados Unidos e contra Obama, dizendo-lhes que não fizeram o seu trabalho de proteger o meio ambiente. Não fizeram o suficiente, e está na hora de fazerem a parte deles… Passei os últimos nove anos da minha vida a fazer a minha parte. Queremos um plano para travar as alterações climáticas, e Obama já disse muitas coisas boas, mas ao mesmo tempo deixou que a Shell perfurasse o Ártico… Precisamos de mais ação!”

A ação foi apresentada pela organização Our Children’s Trust: em nome de 21 jovens ativistas, juntamente com James Hansen, res-ponsabiliza os Estados Unidos pela “extração contínua, transporte, exportação e queima de combustíveis fósseis, apesar de se saber que todas estas atividades causam danos graves na vida da juventude atual e das gerações futuras”. Outra ação corre em tribunal, contra a Comissão de Conservação do Petróleo e do Gás do Colorado, mais uma vez em colabora-ção com o Our Children’s Trust: em causa está a proibição total do fracking (o fraturamento hidráulico para extração de petróleo, que polui os lençóis freáticos) no Colorado.

O jovem ativista estará em Paris em dezem-bro, para acompanhar a conferência do clima: “Paris é talvez a última oportunidade para mudar a situação. A partir de agora, terá de haver ação. Sinto que vai acontecer algo de extraordinário, que vai mudar muito o que

Pelos ouvidos. O ativista usa a música para fazer chegar a sua mensagem a jovens que possam

estar alheados do problema.

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Vinte anos a reunir

O que se espera de Paris? Ativistas, ambientalistas e movimentos de ci-

dadãos exigem ação imediata, alegando que já não há mais tempo a esperar. O que farão os responsáveis políticos, os decisores? Alix Mazounie, responsável pelas políticas internacionais do Réseau Action Climat France, afirmou numa entrevista ao Actu Environment que o ideal seria que os estados programassem já o fim das energias fósseis e a chegada progressiva das renováveis. Não acredita, porém, que seja possível negociar o fim das energias fósseis, a nível mundial, até 2050. “Tanto o Grupo Internacional sobre a Evolução do Clima como a Agência Internacional de Energia dizem que é preci-so manter dois terços de energias fósseis no solo para que haja possibilidade de manter a subida da temperatura global abaixo dos dois graus Celsius”, explica Mazounie.Assim, o mais provável é que a conferência de Paris acabe por redundar em compro-missos para não aumentar o consumo de energias fósseis, sem, porém, grandes acordos para a redução do que já existe. Há mesmo quem considere que será impossí-vel um acordo que mantenha a subida do aquecimento global abaixo dos 2 ºC. Na realidade, segundo o Met Oice (o insti-tuto de meteorologia britânico), num rela-tório divulgado no início de novembro, as temperaturas globais entre janeiro e setem-bro deste ano já estiveram 1,02 ºC acima da média registada entre 1850 e 1900. Os cientistas acrescentavam que, a manter-se a tendência, 2015 poderá ser o primeiro ano em que as temperaturas globais ultrapassam aquela referência histórica em mais de 1 ºC. Dito de outra maneira, já estamos a meio do caminho até aos 2 ºC...Com estes e outros dados, espera-se que os estados se comprometam em Paris com reduções em períodos sucessivos de cinco anos e que, de forma coletiva, se estabeleça um objetivo a longo prazo. Por exemplo, que em 2050 o mundo apenas utilize ener-gias renováveis. Será isto possível?O pontapé de saída em todo este proces-so foi dado em 1992, no Rio de Janeiro. A Convenção do Clima, realizada no âmbito da Conferência das Nações sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, foi o primeiro sinal de que começavam a ser ouvidos os alertas de ambientalistas e ecologistas sobre a forma como o estilo de vida ocidental estava a alterar as condições climáticas. A partir daí, o clima não voltou a sair da agenda.A COP – Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas – teve a sua primeira edição em 1995 e reúne todos os

anos os países que assinaram e ratiicaram a Convenção e o Protocolo de Quioto, que este ano deverá ser substituído por um novo acordo. Eis o que se avançou em vinte anos de reuniões.Berlim, 1995 – Começaram a negociar-se metas e prazos para a redução da emissão dos gases com efeito de estufa pelos países desenvolvidos.Genebra, 1996 – Foram criadas obrigações legais de metas de redução da emissão dos gases com efeito de estufa.Quioto, 1997 – Japão, Estados Unidos e União Europeia assumem reduções maiores, respetivamente de 6, 7 e 8 por cento. Porém, os Estados Unidos não ratiicam o acordo, que por isso não entra em vigor.Buenos Aires, 1998 – Discutiu-se a imple-mentação e ratiicação do protocolo de Quio-to, através da criação de alguns mecanismos de compensação.Bona, 1999 – Discutiu-se o papel desempe-nhado pelas lorestas e pelo uso da terra na redução das emissões de gases com efeitos de estufa.Haia, 2000 – A COP6 foi suspensa e adiada para o ano seguinte; foram criados meca-nismos de compensação, nomeadamente o comércio de emissões.Bona, 2001 – Foram debatidos os limites de emissão para países em desenvolvimento e a ajuda inanceira pelos países desenvolvidos.Marraqueche, 2001 – Deinição dos meca-nismos de lexibilização e estabelecimento de fundos de ajuda a países em desenvolvimento.Nova Deli, 2002 – Adesão da iniciativa priva-da e de organizações não governamentais ao Protocolo de Quioto.Milão, 2003 - Estabelecidas regras para projetos de relorestação, essenciais para a obtenção de créditos de carbono.

Buenos Aires, 2004 – Aprovadas regras de implementação do Protocolo de Quioto; divulgação de inventários de emissão de gases com efeito de estufa.Montréal, 2005 – Primeira Conferência das Partes do Protocolo de Quioto, inalmente em vigor. Instituições europeias defendem redução das emissões de 20 a 30% até 2030.Nairobi, 2006 – Revisão de itens do Proto-colo de Quioto. Estabelecidas regras para o inanciamento de projetos de adaptação às mudanças climáticas.Bali, 2007 – Estabelecidas metas de emissão até 2009, e compromissos para a redução das emissões causadas pelo desmatamento das lorestas tropicais.Poznan, 2008 – Discutido um possível acordo climático global; participação do ex-vice-pre-sidente norte-americano, Al Gore, e mudança de posição dos países em desenvolvimento.Copenhaga, 2009 – Impasse sobre metas de redução de emissões; ixado um limite máximo de 2 ºC de aumento da temperatura média global.Cancún, 2010 – Criação do Fundo Verde do Clima, para administrar o dinheiro que os países ricos se comprometeram a dar para esta luta.Durban, 2011– Países comprometidos a deinir metas até 2015, para serem colocadas em prática a partir de 2020.Doha, 2012 – Mantém-se o impasse entre os países do norte e do sul; estendido o prazo do Protocolo de Quioto, que porém só vale para os países desenvolvidos que emitam gases de estufa abaixo dos 15%.Varsóvia, 2013 – Antecipação de questões e debates para a COP21, em Paris.Lima, 2014 – Rascunho de um novo acordo global a entrar em vigor em 2021, a ser aprovado em Paris, substituindo o Protocolo de Quioto.

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se está a passar. Estarei lá, nas reuniões, mas também nas ruas, com as pessoas… O mundo vai ver como são importantes as nossas vozes. Estamos num ponto crítico e não há muito tempo para salvar o planeta… Talvez cinco anos, é esse o tempo que temos… Não sou eu que o digo, são os cientistas.”

NADA CONTRA JUSTIN BIEBER

Pelos vistos, a mensagem dos Earth Guar-dians (http://www.earthguardians.org) está a passar. A toda a hora, há novos núcleos a formarem-se no mundo. Pergunto-lhe porque ainda não há um em Portugal: “Temos um grupo no Brasil (Águas de Prata, São Paulo), que está a passar todos os nossos textos para português, para que isso seja mais fácil.” Na página online do movimento, estão todas as informações necessárias, incluindo um guia básico para cada um de nós poder começar a defender o planeta a partir de sua casa.

Outra forma de captar apoiantes é a música. Além de ativista, Xiuhtezcatl é artista hip-hop, o que faz em conjunto com o seu irmão, Itz-cuauhtli, de 13 anos. É uma forma, diz, de ir ao encontro das preferências da sua geração: “Há música por todo o lado, e esta é uma forma de passar uma mensagem positiva, falando-lhes das alterações climáticas.” Nada, contudo, que justifique a alcunha de “anti-Bieber” com que às vezes o caracterizam: “Isso foi um nome que me deu o Washington Post… Não sei porquê,

Bandeiras nacionais

E m Portugal, o movimento ambienta-lista nunca teve uma expressão muito

forte, mas gradualmente, sobretudo após o 25 de Abril, veio ganhando algumas vozes. Num livro publicado em 2005 pelas Publi-cações Europa-América, intitulado Raízes do Ambientalismo em Portugal, o filósofo e historiador Viriato Soromenho-Marques faz uma boa resenha dessa evolução. Começa, primeiro, por tentar compreender um certo alheamento da sociedade portuguesa em relação a estas questões – ruralidade, pou-co espírito competitivo, escassa literacia, burocracia –, para depois explicar algumas reações no período pós-25 de Abril, nomea-damente a contestação da opção nuclear, com destaque para Afonso Cautela, diretor do Movimento Ecológico Português, e Del-gado Domingos, académico com reflexões muito importantes sobre o tema.Foi depois deste período inicial que sur-giram vozes como as de Gonçalo Ribeiro Telles ou Carlos Costa Marques. Quando o partido ecologista alemão Os Verdes passou a barreira dos 5 por cento, em 1983, constituindo um grupo parlamentar, tudo começou a mudar, sobretudo na Europa. Em Portugal, surgiu também um partido Os Verdes, e em 1985 várias organizações não governamentais participaram no 1.º Encontro Nacional de Ecologistas. A partir de então, foi crescendo, na sociedade por-tuguesa, a consciência sobre os problemas ambientais, e em inais da década de 80 organizações como a Quercus, a Liga para a Proteção da Natureza e o GEOTA já mostravam capacidade de airmação.“A Quercus tem feito muito trabalho nos últimos 30 anos, na sensibilização ambiental sobre alterações climáticas, uso racional de energia e transportes, maioritariamente em escolas, mas também para a população em geral”, resume João Branco, presidente da Direção Nacional da Quercus. O ambienta-lista dá relevo à participação da organização, desde 1999, nas Conferências das Partes sobre Alterações Climáticas.A Quercus tem online uma página sobre a COP21, na qual João Branco deposita muitas expectativas: “O que se espera é um acordo ambicioso dos países com assen-to nas Nações Unidas, para redução das emissões com gases de efeito de estufa até 2030. Neste momento, já existe um texto muito adiantado para este acordo, no qual está bem claro que é necessário limitar o aumento da temperatura global a 2 ºC. Es-pera-se também que haja metas indicadoras para 2020 e revisão dos compromissos de cinco em cinco anos, para certiicar que se continua no caminho certo de redução das emissões”.

João Branco compreende as diiculdades que marcaram as anteriores conferências (“É necessário uma mudança drástica, que leva tempo a ser construída, e leva tempo a convencer a classe política a tomá-la.”), mas acredita que ainda é possível salvar o planeta: “A encíclica papal foi muito impor-tante para chamar a atenção da comunidade católica, e da população em geral, para esta problemática. O papa Francisco tem tido uma intervenção muito importante nesta temática, desde a sua participação na ci-meira da ONU em que foram aprovados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em setembro passado, até à reunião com os ministros europeus antes do Conselho do Ambiente da União Europeia, onde foram deinidos os objetivos que a EU vai levar para Paris.”O líder da Quercus considera que Portugal tem tido um papel interessante na produção de energias renováveis, mas, diz, “falta agora a aposta na energia fotovoltaica de forma descentralizada, e próximo do local de consumo”. João Branco pede também “uma aposta clara nos transportes públicos e integração dos modos suaves na rede de mobilidade urbana”.Portugal não é, aliás, um país de grandes “combates” ambientalistas; grande parte das questões referem-se, naturalmente, a pro-blemas no litoral e na zona costeira, onde atualmente talvez se trave a “batalha” mais signiicativa a nível interno: as perfurações na costa algarvia (e alentejana) para procu-rar petróleo e gás já levaram à formação da Plataforma Algarve Livre de Petróleo, que junta 15 organizações de cariz ambiental, entre as quais a Quercus, a Liga para a Pro-teção da Natureza, o GEOTA, a Almargem ou a SPEA. Uma luta “agendada” para 2016, quando se preveem as perfurações.

João Branco está coniante nos resultados da COP21.

No sangue. Dos irmãos, Itzcuauhtli, de 13 anos, é o que mais acompanha Xiuhtezclatl nas lutas dos Earth Guardians.

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Os cinco irmãos de Xiuhtezcatl partilham a causa ambiental

nunca disse nada contra o Justin Bieber.”Aos 15 anos, Xiuhtezcatl é um adolescente

completamente comprometido com uma causa. Como será daqui por alguns anos, já adulto? Há quem o indique como um futuro líder político, talvez mesmo presidente, mas não é assim que ele se vê: “Ah… Quero fazer música, viajar, não quero perder o que tenho… Política? Vi as pessoas nas Nações Unidas e percebi que a política consome toda a energia, a paixão, a inspiração, tudo o que temos de bonito… Não creio que venha a ser um líder político. De movimentos, sim...”

O que vier promete. Para trás, em nove anos de ativismo, ficam ações de significado inegável: colaboração com mais de 50 organizações ambientais para banir os pesticidas dos parques de Boulder; negociações para impor uma taxa sobre os sacos de plástico; regulamento sobre o uso das cinzas do carvão; moratória sobre o fracking no Colorado; centenas de apresenta-ções, sobre fracking e alterações climáticas, em escolas e conferências; trabalho com o cien-tista James Hansen, da NASA, para elaborar um plano de recuperação da atmosfera, com o apoio já conseguido de mais de 80 elementos do Congresso norte-americano. Em 2012,

Xiuhtezcatl esteve no Rio de Janeiro, na confe-rência das Nações Unidas sobre o clima, sendo um dos mais jovens oradores. Também compo-sitor de piano, gravou o álbum Journey, e é da sua autoria a banda sonora do documentário Trust Colorado, premiado em 2012 como Melhor Documentário sobre Ambiente.

Prémios, aliás, não faltam a este adolescente fenomenal: desde 2012, multiplicam-se, e vão desde o International Eco Award, ao Peace Maker of the Year e ao Volunteer of the Year. Recentemente, deslocou-se a Nova Iorque para receber mais um: o Peace First, que dis-tin gue jovens, entre os 8 e os 22 anos, que per so nificam causas e movimentos para a paz mundial.

NA ESTEIRA DE XIUHTEZCATL

O jovem ativista tem cinco irmãos, todos empenhados na salvação do planeta. Itz-cuauhtli (lê-se “itSQUATli”), de 13 anos, é aquele que mais o acompanha em diversas ações mobilizadoras, nomeadamente nas músicas hip-hop que muitas vezes servem como cha-mariz de jovens que não estariam identificados com o movimento. A HBO produziu o vídeo da canção Be the Change, e o álbum Generation

Ryse. Três irmãs, Isa Caress, Tonantzin e Jas-mine, atuam muitas vezes com eles.

Itzcuauhtli tem uma mensagem forte, que não pode deixar ninguém indiferente: “Os oceanos estão a acidificar, os ecossistemas estão a colapsar, vemos tempestades cada vez mais fortes e desastres em todo o planeta, deslocando pessoas e destruindo lares. Estamos a viver a maior extinção em massa desde a era dos dinossauros. Estava sentado no aeroporto de Newark, com a minha família, para regressar ao Colorado, e pensei: de que serve ir para a escola e para a universidade aprender aquilo tudo, se depois não há um mundo em que valha a pena viver?”

Isto levou-o a pensar em fazer algo drástico. Assim, em 2014, decidiu fazer um voto de silêncio, durante 15 dias, de forma a inspirar as pessoas a falarem sobre as gerações futuras. Milhares de jovens, em todo o mundo, junta-ram-se a ele em 10 de dezembro de 2014. Uma ação semelhante está proposta para 10 de dezembro deste ano: uma hora, ou um dia, em silêncio. Antes, no dia de abertura da con-ferência de Paris, os Earth Guardians propõem uma greve: que os jovens não se desloquem à escola mas vão para as ruas mostrar a sua posição sobre a situação. O movimento conta apresentar ao secretário-geral da ONU, Ban Ki--moon, um milhão de assinaturas, que estão a ser recolhidas pela internet.

J.S.

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SUPER94

O mundo em GRANDE

Fotografia

Prémio para panorâmicas

Desde 2009, os prémios Epson International Pano

Awards trazem ao público o género fotográfico

que tenta abarcar o campo de visão humano

numa única imagem: as panorâmicas.

Mostramos-lhe algumas das fotos distinguidas

pelo júri na última edição.

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AIG

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95Interessante

Fila indiana

Passeio turístico em Cable Beach, uma praia do noroeste da Austrália

muito apreciada pelas suas areias brancas.

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SUPER96

MA

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Momento decisivo. O fotógrafou aguentou até ao último instante, quando as ondas já ameaçavam engolir a câmara, num glaciar islandês.

Em paz. A Igreja do Bom Pastor debruça-se sobre as águas do lago Tekape, rodeado pelos Alpes neozelandeses.

À vista de pássaro. Bando de Grus rubicunda num lago de fundo argiloso na Terra de Arnhem (Austrália). A foto foi obtida de um parapente.

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Interessante 97

Na última edição,

participaram quase 4000 fotografias,

de 871 autores

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Flecha alada. Um martim-pescador (Alcedo azurea) emerge do rio com a sua presa. Ao mergulhar, esta ave ultrapassa os 70 quilómetros por hora.

Seara heroica. Construído para cenário de Super-Homem – O Regresso (2006), um celeiro sobressai na bucólica paisagem australiana.

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Marcas & Produtos

Diretor Carlos Madeira ([email protected])Coordenador Filipe Moreira ([email protected])Colaboraram nesta edição Francisco Mota, José Moreno, Máximo Ferreira e Paulo Afonso (colunistas), Alfredo Redinha, Esther Paniagua, Isabel Joyce, João Pedro Lobato, Joaquim Semeano, Jorge Nunes, Luis Muiño, Miguel Ángel Sabadell, Nuria Corredor e Roger Corcho.Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.comSara Tomás ([email protected]) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

Coordenadora de Publicidade Susana Mariano ([email protected])Assistente Comercial Elisabete Anacleto ([email protected])

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