Suturas - Introdução de Marcelo Reis de Mello

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texto sobre o livro suturas, de daniel link

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Quem (no) ser Daniel Link? Talvez todos ou nenhum de ns, exceto ele. Ao recorrer pongianamente ao dicionrio veremos que de seu sobre/nome (Link) derivam palavras como atalho, caminho, elo ou ligao, bordas de onde se pode comear a percorrer agora, em traduo ao portugus brasileo, algumas suturas sobre Suturas (sutura = costura, linha de juno, ou ainda: operao que consiste em coser os lbios de uma ferida).Na capa do livro vemos estampado o nome do escritor, um nome que nos interpela instantaneamente sobre o presente aberto s possibilidades da internet: ligao entre redes, onde o conhecimento se organiza ou se desorganiza atravs de links. Na mesma capa, um pouco acima do nome do autor vemos o nome do livro Suturas (ou alguma nova rearticulao editorial) que parece reiterar o apellido anglfilo de quem o digita, embora indique tambm um novo salto entre os elementos grficos de um virtual corpus e este nosso corpo animal feito de pele, carne e ossos: o corpo ferido ou seccionado que talvez seja preciso suturar. Daniel Link opera nos ensaios reunidos aqui uma srie de articulaes entre a vida onde necessariamente est inscrito o nome batismal do escritor e as artes, as imagens, as reescritas possveis do nome, seus mltiplos links. Como no brilhante ensaio sobre o queer, em que nos informamos como e por que o fotgrafo Charles Dodgson busca obsessivamente um pseudnimo (Lewis Carrol) para subscrever as histrias de Alice, onde ele dispara: Traduo e inverso constituem as lgicas da imaginao carrolliana (do nome do autor, mas tambm da obra). Isso o queer. Ou ainda: Escrever (mas tambm falar) traduzir o mundo e a vida, e nomear no depende tanto de um sistema de representaes quanto de uma srie de equivalncias incessantes.Os nomes no so (apenas) representaes daquilo que nomeiam justamente porque possibilitam por uma extrapolao lgica inverter a imagem daquilo que se quer dizer. E ento possvel experimentar a imagem sob um outro ngulo, como Alice teve a chance de aprender ao cair na toca do Coelho. A arte, que aqui no se afasta da arte (techn) de viver, depende menos de um nome prprio para cada coisa do mundo do que de tradues ou equivalncias que as faam arder, pirar. Por isso que Daniel Link, hoje um dos escritores mais prolficos da Argentina, oferece poucas respostas e faz muitas perguntas, e por isso que nos seus ensaios os parntesis e os pontos indicam no tanto uma hierarquia entre aquilo que se diz, mas faz questo de expor as feridas e as suturas do texto: el agujero, a toca do coelho.Neste livro todos os nomes: Susan Sontag, Clarice Lispector (bruxa), Roland Barthes, Manuel Puig, Federico Garca Lorca, Albertina Carri, Csar Aira, James Franco... so fendas (no caso de Franco, o bonito de Hollywood, a fenda tambm pode ser o seu sorriso irresistvel) atravs das quais suavemente deslizamos com Link para encontrar no a Verdade sisuda e vitoriosa as alegres estranhezas ou estranhas alegrias de cada personagem, sua queerness. E alm de estranho (queer) e alegre (gay), este um livro snob. Pois ao negar a Histria como uma sequncia puramente lgica de eventos beligerantes e discursos triunfalistas (onde sempre se impem verdade e mentira), opta por fundar no imaginrio a sua tica. O imaginrio para Link / Barthes, com quem ele se enlaa h anos, j no funciona como discurso, mas como prtica. bonito o gesto editorial e no poderia ser mais pertinente publicar no Brasil uma traduo do ensaio Snob exatamente no ano em que Roland Barthes completaria cem anos. E com ele, um punhado de ensaios que vo ao encontro da sua prtica do imaginrio, ensaios que nos ajudam a iluminar (na sua intermitncia de vagalume) o presente, a fundao de uma tica, das formas de pensar as possibilidades de coabitar o mundo. E mais do que isso: de se reencantar com ele, apesar de tudo.