Upload
ordinas
View
244
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
educação infantil
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
TENSES CONTEMPORNEAS NO PROCESSO DE PASSAGEM DA EDUCAO
INFANTIL PARA O ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
VANESSA FERRAZ ALMEIDA NEVES
BELO HORIZONTE
2010
VANESSA FERRAZ ALMEIDA NEVES
TENSES CONTEMPORNEAS NO PROCESSO DE PASSAGEM DA EDUCAO INFANTIL PARA
O ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
Tese apresentada Faculdade de
Educao da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial
obteno do ttulo de Doutor em
Educao.
Orientadora: Maria Cristina Soares de
Gouva
Co-orientadora: Maria Lcia Castanheira
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE EDUCAO/UFMG
2010
Aos meus pais, por tudo.
Ao Bernardo, pela alegria de estarmos
juntos: youre always on my mind...
Ao Francisco e Felipe, pelo carinho.
AGRADECIMENTOS
Cris e Lalu, por aceitarem compartilhar comigo essa caminhada. A orientao de vocs foi
fundamental para que este momento se concretizasse. Muito obrigada!
Professora Lcia Afonso, orientadora do mestrado, com quem iniciei as primeiras
aproximaes com a pesquisa acadmica.
Ao Professor Jos Alfredo Debortoli, com quem primeiro discuti o projeto de pesquisa para
a realizao do doutorado.
Ao Professor William Corsaro, com quem tanto aprendi durante a realizao do Estgio
Doutorado Sanduche na Indiana University.
s Professoras Maria Machado Malta Campos, Lvia Maria Fraga Vieira e Maria Ins Mafra
Goulart pelas valiosas sugestes no meu exame de qualificao e pela disponibilidade para
participar da banca de defesa da tese.
s escolas e professoras, que generosamente abriram suas portas para a realizao desta
pesquisa. Aprendi muito com cada uma de vocs.
Aos amigos da Secretaria Municipal de Educao de Belo Horizonte e da Gerncia Regional
de Educao Noroeste, com quem compartilhei as inquietaes que me impulsionaram
nesta jornada.
Aos amigos, Ftima, Meily, Gabriela, Graa, Rosvita, Adriana, Rogrio e Levindo cujo apoio e
conversas tanto me ajudaram.
minha famlia, pais, irmos, sogros, cunhados, sobrinhos, tios, primos... Compartilhar a
vida com vocs torna tudo muito mais fcil!
Ao Bernardo, Francisco e Felipe, amores queridos, por suportarem meu distanciamento em
tantos momentos. Bernardo, sem voc, esta tese no teria fim!
Ao apoio financeiro, em diferentes momentos, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
da FAPEMIG e do CNPq.
O homem da orelha verde
Gianni Rodari
Um dia num campo de ovelhas Vi um homem de verdes orelhas Ele era bem velho, bastante idade tinha S sua orelha ficara verdinha Sentei-me ento ao seu lado A fim de ver melhor, com cuidado Senhor, desculpe minha ousadia, mas na sua idade de uma orelha to verde, qual a utilidade? Ele me disse, j sou velho, mas veja que coisa mais linda De um menininho tenho a orelha ainda uma orelha-criana que me ajuda a compreender O que os grandes no querem mais entender Ouo a voz das pedras e passarinhos Nuvens passando, cascatas e riachinhos Das conversas de crianas, obscuras ao adulto Compreendo sem dificuldade o sentido oculto Foi o que o homem de verdes orelhas Me disse no campo de ovelhas.
RESUMO No contexto da ampliao do ensino fundamental para nove anos, investiguei como foi
vivida, por um grupo de crianas, a transio de uma escola de educao infantil para uma
de ensino fundamental em Belo Horizonte. O processo de construo e anlise dos dados da
pesquisa baseou-se nas abordagens da sociologia da infncia (CORSARO, 2005) e da
etnografia interacional (CASTANHEIRA, CRAWFORD, DIXON e GREEN, 2001). Os dados da
pesquisa incluram anotaes no dirio de campo; gravaes em vdeo das salas de aulas;
gravaes em udio de entrevistas informais e semi-estruturadas com professoras e
crianas; e artefatos escritos usados e/ou produzidos nas salas de aulas. Ao longo do
processo investigativo, buscou-se apreender a multiplicidade dos contextos que
informavam as prticas educativas: a cultura de pares, a cultura escolar e dos professores e
o sistema educacional. Compreende-se que, portanto, as interaes entre os sujeitos nos
contextos locais so negociadas em relao a contextos globais.
Verificou-se que as prticas educativas que assumiram centralidade na educao infantil e
no ensino fundamental estruturaram-se em torno da brincadeira e do letramento, ambas
situadas diferencialmente nos dois segmentos. Argumento que a falta de dilogo presente
na organizao do sistema educacional brasileiro em relao aos dois primeiros nveis da
educao bsica refletiu-se no processo de desencontros vivenciados pelas crianas
pesquisadas na passagem da educao infantil para o ensino fundamental. Nesse sentido a
investigao, ao ter como foco o registro da experincia infantil na transio entre os dois
segmentos, evidenciou a necessidade de uma maior integrao entre o brincar e o
letramento nas prticas pedaggicas da educao infantil e do ensino fundamental, ambas
dimenses fundamentais para as crianas, dentro e fora das escolas.
Palavras-chave: educao infantil; ensino fundamental; transio; cultura de pares.
ABSTRACT
I investigated the transition of a group of children from preschool to elementary school in
Belo Horizonte, considering the context of the new legislation in education. The processes of
data collection and analysis were guided by the sociology of childhood (CORSARO, 2005)
and by an interactional ethnographic perspective (CASTANHEIRA, CRAWFORD, DIXON and
GREEN, 2001). Data sources included field notes, videotape records of classrooms lives,
audiotape records of semi-structured and informal interviews of teachers, children, and
written artifacts used and/or produced in the classrooms. I searched for an understanding
of the multiplicity of contexts influencing the everyday life of the classrooms: peer culture,
school and teachers culture, and the educational system. Therefore, it is understood that
local contexts are influenced by global contexts.
The educational practices that were central in both preschool and elementary school were
related to play and literacy, although different in each one of the classrooms. I argue that
the lack of dialogue in the Brazilian educational system regarding early childhood and
elementary education was reflected upon the process of rupture experienced by the
children in their transition from preschool to elementary school. The research, focusing on
the childrens perspective, evidenced that it is necessary a closer integration between
literacy and play in both preschool and elementary school: both dimensions are
fundamental to childrens lives, inside and outside of schools.
Key Words: early childhood education; elementary school; transition; peer culture.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Um modelo interpretativo de socializao.................................................... 22 Figura 2 Modelo da teia orbital. 23 Figura 3 Tas filma sua turma....................................................................................... 83 Figura 4 Plantas baixas dos dois andares da escola de educao infantil................... 95 Figura 5 Planta baixa da sala de aula da educao infantil.......................................... 96 Figura 6 Oficina de Artes ............................................................................................. 97 Figura 7 Ptio descoberto da escola de educao infantil........................................... 98 Figura 8 Sala de aula pesquisada na escola de educao infantil................................ 99 Figura 9 Cantinho da Fantasia...................................................................................... 99 Figura 10 Biblioteca da escola de educao infantil...................................................... 101 Figura 11 Registro de Marcela sobre a brincadeira de que mais gostou....................... 104 Figura 12 Sociograma das relaes construdas entre as crianas na turma de
educao infantil............................................................................................
113 Figura 13 Calendrio da turma...................................................................................... 118 Figura 14 Apresentao da histria Dona Baratinha.................................................. 145 Figura 15 Amanda e Marcela tentam escrever carneiro e rato..................................... 145 Figura 16 Primeira escrita no Dirio de Campo............................................................. 147 Figura 17 Amanda escrevendo na Oficina de Artes....................................................... 152 Figura 18 Escrita da Amanda......................................................................................... 153 Figura 19 Renata escreve o prprio nome..................................................................... 164 Figura 20 Paula conta a histria Joo e o p de feijo............................................... 166 Figura 21 Desenho de Lcio........................................................................................... 177 Figura 22 Desenhos de Isadora e Wanda....................................................................... 178 Figura 23 Desenho de Carlos......................................................................................... 179 Figura 24 Vista de cima da escola de ensino fundamental............................................ 184 Figura 25 Planta baixa do segundo andar da escola de ensino fundamental................ 185 Figura 26 Planta baixa da sala de aula do ensino fundamental..................................... 185 Figura 27 Mosaico Sejam bem-vindos........................................................................ 186 Figura 28 Ptio interno da escola de ensino fundamental............................................ 186 Figura 29 Palco da escola de ensino fundamental......................................................... 187 Figura 30 Quadra coberta e biblioteca da escola de ensino fundamental.................... 187 Figura 31 Sala de aula pesquisada na escola de ensino fundamental........................... 187 Figura 32 Desenhos de Amanda e Isadora..................................................................... 201 Figura 33 Desenhos de Renata e Lcio.......................................................................... 201 Figura 34 Os passeios instrutivos................................................................................... 202 Figura 35 Temas desenvolvidos pela professora na primeira conversa com a turma... 205 Figura 36 Temas introduzidos pelas crianas na primeira conversa com a professora. 217 Figura 37 Atividades de discriminao visual e coordenao motora realizadas por
Elisa................................................................................................................
229 Figura 38 Cpia de letras por Wanda e Elisa.................................................................. 232 Figura 39 Dinmica do cotidiano da sala de aula........................................................... 233 Figura 40 Isadora ajuda Wagner a circular as letras A e ajuda Amanda a apagar e
escrever o numeral quatro.........................................................................
235
LISTA DE FIGURAS - CONTINUAO
Figura 41 Sociograma das relaes construdas entre as crianas nos primeiros dias de aula na escola de ensino fundamental......................................................
236
Figura 42 Fatores que favoreceram a indisciplina na turma de ensino fundamental 250 Figura 43 Atividade realizada por Elisa.......................................................................... 254
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Construo dos dados da pesquisa............................................................... 56 Tabela 2 Trabalho de campo na Escola de Educao infantil - 2008........................... 58 Tabela 3 Trabalho de campo na Escola de Ensino fundamental - 2009...................... 59 Tabela 4 Mapa de Eventos - Turma I - 09/04/08......................................................... 64 Tabela 5 Mapa de Eventos: evidenciando os espaos Interacionais........................... 68 Tabela 6 A Roda de conversa. 73 Tabela 7 Desdobramentos das questes da pesquisa................................................ 77 Tabela 8 Sistematizao das primeiras observaes na Turma I................................ 78 Tabela 9 Sinais utilizados nas transcries.................................................................. 86 Tabela 10 Escolaridade dos pais e mes das crianas da turma de educao
infantil..........................................................................................................
94 Tabela 11 Mapa de eventos - 18/08/08........................................................................ 108 Tabela 12 Sequncia interacional - Frias ou feriado?.................................................. 111 Tabela 13 Dinmica do evento Brincadeiras diferentes............................................ 121 Tabela 14 Roda 1: Lendo uma brincadeira.................................................................... 123 Tabela 15 Interao entre Carlos e Wanda - Provocao............................................. 131 Tabela 16 Taxonomia da presena da escrita na sala de aula da educao infantil..... 143 Tabela 17 Mapa de eventos - 13/08/08. 149 Tabela 18 Sequncia Interacional I - O que o diferente?............................................ 159 Tabela 19 Sequncia Interacional II - Meu nome est diferente................................... 162 Tabela 20 Wanda l O leo e o ratinho - Sequncia I................................................ 169 Tabela 21 Wanda l O leo e o ratinho - Sequncia II............................................... 170 Tabela 22 Wanda l O leo e o ratinho - Sequncia III.............................................. 171 Tabela 23 Wanda l O leo e o ratinho - Sequncia IV.............................................. 172 Tabela 24 Wanda l O leo e o ratinho - Sequncia V............................................... 173 Tabela 25 Escolas de educao infantil frequentadas pelas crianas da turma de
ensino fundamental pesquisada...................................................................
191 Tabela 26 Quadro de professoras e disciplinas na turma de ensino fundamental....... 192 Tabela 27 Mapa de eventos do primeiro dia de aula (03/02/09)................................. 195 Tabela 28 Sequncia interacional - Tem gente ainda com cinco anos?!...................... 207 Tabela 29 Artefatos culturais disponveis nas salas de aula pesquisadas..................... 214 Tabela 30 Contrastando eventos... 222 Tabela 31 Classificao das atividades xerocadas.. 226 Tabela 32 Interaes ao longo do Evento Ligando formas iguais (09/02/09)........... 238 Tabela 33 Mapa de Eventos - 31/03/09........................................................................ 251 Tabela 34 Sequncia Interacional - Como se escreve?.................................................. 255
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Uso e distribuio do tempo - 09/03/08..................................................... 65 Grfico 2 Espaos utilizados - 09/03/08..................................................................... 66 Grfico 3 Uso e Distribuio do Tempo - 24/04/08.................................................... 102 Grfico 4 Espaos utilizados - 24/04/08..................................................................... 102 Grfico 5 Uso e Distribuio do Tempo - 12/06/08................................................... 103 Grfico 6 Espaos utilizados - 12/06/08..................................................................... 103 Grfico 7 Uso e distribuio do tempo - 18/08/08..................................................... 109 Grfico 8 Espaos utilizados - 18/08/09..................................................................... 109 Grfico 9 Uso e distribuio do tempo - 13/08/08..................................................... 150 Grfico 10 Espaos utilizados - 13/08/08..................................................................... 150 Grfico 11 Uso e distribuio do tempo - 03/02/09..................................................... 198 Grfico 12 Espaos Utilizados - 03/02/09..................................................................... 198 Grfico 13 Uso e Distribuio do tempo - 31/03/09.................................................... 252 Grfico 14 Espaos Utilizados - 31/03/09..................................................................... 252
SUMRIO
INTRODUO..
13
1 - O PROCESSO DE ESCOLARIZAO DA INFNCIA........................................................ 17 1.1 - As crianas, a cultura de pares e a reproduo interpretativa.................................. 17 1.2 - A obrigatoriedade escolar......................................................................................... 26 1.3 - Encontros entre a educao infantil e o ensino fundamental em diferentes contextos...........................................................................................................................
37
2 - ABORDAGEM TERICO-METODOLGICA: EDUCANDO O OLHAR E AS EMOES..........................................................................................................................
49
2.1 - A abordagem etnogrfica como escolha terico-metodolgica............................... 50 2.2 - Os locais e os participantes da pesquisa................................................................... 52 2.3 - O desenvolvimento de uma lgica de investigao................................................... 59 2.3.1 - O desdobramento das questes de investigao e primeiras anlises.................. 62 2.4 - As filmagens, as entrevistas com as crianas e as formas de transcrio.................
81
3 - A ESCOLA DE EDUCAO INFANTIL............................................................................. 87 3.1 - Contextualizando a escola de educao infantil....................................................... 88 3.2 - A turma pesquisada: seus sujeitos e suas prticas.................................................... 93 3.3 - A preponderncia da Roda e do brincar na turma pesquisada................................. 105 3.3.1 - Um dia na Turma da Cachoeira.............................................................................. 107 3.3.2 - Os eventos na Oficina de Artes............................................................................... 110 3.3.3 - Roda na sala de aula............................................................................................... 117 3.3.4 - Brincadeiras diferentes: lendo e brincando no ptio.......................................... 121 3.4 - Eventos de letramento na Turma da Cachoeira........................................................ 140 3.4.1 - A relao das crianas com a linguagem escrita.................................................... 146 3.4.2 - Deixa eu escrever no seu caderno?..................................................................... 148 3.4.3 - Letra cursiva?!........................................................................................................ 157 3.4.4 - Lendo livros............................................................................................................ 164 3.5 - Despedindo-se da educao infantil.........................................................................
175
4 - A ESCOLA DE ENSINO FUNDAMENTAL........................................................................ 181 4.1 - Essa escola muito, muito, muito grande............................................................. 182 4.2 - A turma pesquisada: os sujeitos e suas prticas....................................................... 190 4.2.1 - Construindo formas de participao: O primeiro dia de aula................................ 193 4.2.2 - A primeira conversa................................................................................................ 204 4.3 - O primeiro ms: A dinmica do cotidiano da sala de aula ........................................ 221 4.3.1 - A cultura de pares: As crianas constroem a ponte que as ajuda a atravessar a passagem para o ensino fundamental...............................................................................
234
4.4 - A construo do ideal da escrita: Ns estamos aprendendo a ler..........................
246
5 - CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................
262
6 - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................................... 267
Introduo 13
Introduo
A pesquisa que ora apresento dialoga com minha trajetria profissional, bem
como com minha histria de vida. O fio condutor do meu percurso profissional e pessoal se
encontra nas variadas experincias que tive com crianas de diversas idades. A criana que
fui e minhas experincias na infncia dialogam com minhas escolhas, com minha vida atual
e com minha profisso. Dialogam tambm com a memria dessa infncia, com a infncia
das crianas e professoras com as quais trabalho, com a infncia em uma perspectiva
histrica... Enfim, so infncias se entrecruzando em uma pluralidade de tempos e espaos.
Como professora e psicloga, trabalhei em escolas particulares e municipais em
Belo Horizonte. Ao longo desse processo, vrias questes foram surgindo relativas s
prticas educativas com as crianas. Naquele momento, buscava a construo de uma
prtica que se voltasse para o respeito aos processos de aprendizagem vivenciados pelas
crianas. Assim, acompanhada de algumas poucas colegas de trabalho, voltei-me para uma
prtica construtivista, uma vez que os pontos principais dessa perspectiva terica
encaminhavam-se para a valorizao das crianas e as hipteses que elas elaboravam em
relao ao mundo. A criana era reconhecida como sujeito do conhecimento no processo
ensino-aprendizagem. Posteriormente, a partir da implantao do Projeto da Escola Plural
(1994) na Prefeitura de Belo Horizonte, esse reconhecimento se tornou um guia para a
prtica com as crianas. Para alm da sala de aula, houve a possibilidade da incluso de um
dilogo com a comunidade escolar como um todo, e com as famlias em particular.
Trabalhei em creches particulares na Inglaterra, por dois anos (1994-1995), e nos
Estados Unidos, por um ano (1998). Nestes pases, pude perceber e vivenciar a carncia de
creches pblicas para crianas abaixo de cinco anos e a dicotomia entre o cuidar e o educar
nas relaes que eram estabelecidas entre educadoras e crianas no contexto institucional.
Outra constatao foi a pequena valorizao do profissional que trabalha nas creches
particulares: extensa jornada de trabalho e baixos salrios. Nestas instituies, o dilogo
com as crianas era incipiente: elas eram mais objeto das prticas institucionais e menos
sujeito dessas prticas, uma vez que suas demandas nem sempre eram escutadas.
Em 2002, como tcnica do Centro de Educao Infantil da Gerncia de Educao
da Regional Noroeste, rgo ligado Secretaria Municipal de Educao de Belo Horizonte,
Introduo 14
tive a oportunidade de trabalhar, e principalmente aprender, com as creches comunitrias
conveniadas com a Prefeitura sobre o atendimento prestado s crianas provenientes das
camadas populares do nosso municpio.
Algumas inquietaes foram surgindo durante este percurso, relativas
concepo de infncia que permeava o atendimento nas creches1 e, principalmente,
concernentes prpria infncia, tal qual era vivenciada e significada nesse contexto
institucional. Partindo do princpio de que as crianas, assim como os adultos, buscam
ativamente dar sentido s experincias vividas, questionava: Como as crianas e adultos
organizam e significam o cotidiano, particularmente o cotidiano dentro da creche? Como o
sentido atribudo ao seu mundo apropriado nas relaes com outras crianas e adultos
dentro da instituio? Quais so as referncias que as crianas e adultos usam para darem
sentido ao seu mundo? Foram essas as principais questes que me impulsionaram a realizar
a pesquisa que resultou em minha dissertao de mestrado, que teve como tema de estudo
a infncia e sua relao com as instituies de educao infantil, particularmente, as creches
comunitrias do municpio de Belo Horizonte (NEVES, 2005). Essas questes continuam
como pano de fundo para a presente pesquisa.
Busquei, na pesquisa de mestrado, entender o sujeito criana, tomando-a como
produtora e consumidora de cultura. A infncia foi considerada mais do que uma mera fase
de desenvolvimento do ser humano e preparao para a importante vida adulta. Entendo
que h uma pluralidade de infncias e de formas de se vivenciar o ser criana e, por
conseguinte, diferentes formas de se relacionar com essa fase da vida. Ao me aproximar
deste objeto de estudo, as crianas e suas infncias, procurei abord-lo em relao a outros
atores sociais, e em relao ao contexto da sociedade contempornea. Portanto, questes
como gnero, classe social, etnia, polticas pblicas e representaes historicamente
construdas sobre a infncia foram tomadas como planos de anlise das relaes dentro da
instituio.
1 A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB, Lei 9.394), em seu artigo 30, incisos I e II, define
que a educao infantil ser oferecida em creches para crianas de at 3 anos de idade, e em pr-escolas, para
crianas de 4 a 6 anos de idade. Entretanto, a partir da sua prpria histria, algumas instituies de educao
infantil, mesmo atendendo a uma faixa etria de 0 a 6 anos, se auto-denominam creches uma vez que a
denominao creche comunitria tem um significado importante enquanto mobilizador para a luta, enquanto
delimitador de interesses, enquanto forma de trabalhar, etc. (DIAS e FARIA FILHO, 1990, p. 31).
Introduo 15
Ao longo da pesquisa de mestrado, pude apropriar-me de uma metodologia que
uniu a etnografia e a pesquisa-ao, propondo que a escuta das vozes infantis e dos adultos,
colocadas em dilogo umas com as outras, proporcionasse uma reflexo e mudana em
algumas prticas educativas dentro da instituio pesquisada (NEVES, 2006).
Atualmente, meu percurso continua, e novas/velhas questes me instigaram a
propor esta pesquisa. Questes que mantm sua relao com o estudo das infncias e, mais
especificamente, relacionam-se com a compreenso da passagem da educao infantil para
o ensino fundamental. Fao, aqui, uma opo pelo termo passagem por entend-lo como
um ponto de ligao e comunicao entre dois lugares distintos e tambm por ser um
conceito ao qual o campo da antropologia faz referncias importantes, ao trabalhar os ritos
de passagem em diversas culturas.
Assim, as seguintes perguntas orientaram a presente pesquisa: Como vivida a
passagem da educao infantil para o ensino fundamental, na perspectiva das crianas?
Como as culturas escolares dos dois nveis de ensino expressam essa transio? Quais
processos interferem nesse acontecimento? So vrias as questes que surgem ao
pensarmos essa passagem, questes que remetem a permanncias e deslocamentos nesse
processo. Afinal, as crianas que so atendidas em uma instituio de educao infantil so
as mesmas que frequentam o ensino fundamental, mas nem sempre a histria educacional
anterior da criana colocada como um plano de anlise na continuidade de sua
escolarizao. Temos mltiplas representaes acerca das crianas e suas infncias
circulando entre as diversas escolas, tanto na educao infantil quanto no ensino
fundamental. Investigo como essas imagens dialogam ou contrapem-se na experincia
escolar desses sujeitos, envolvendo-os de formas diferentes, posicionando-os socialmente a
partir de prticas educativas diferenciadas em cada nvel de ensino.
Este texto, resultado das reflexes realizadas ao longo do processo de pesquisa,
est organizado em cinco captulos. O primeiro deles, aps esta introduo, situa o processo
de escolarizao da infncia no contexto das leis federais acerca da ampliao da
obrigatoriedade escolar desde 2006. Procuro dialogar com alguns conceitos do campo da
Sociologia da Infncia, em particular, com os conceitos de cultura de pares e reproduo
interpretativa. O segundo captulo situa a abordagem terico-metodolgica, os
participantes e os locais da pesquisa, explicitando as escolhas feitas ao longo da pesquisa e a
lgica de investigao desenvolvida. A seguir, o terceiro e o quarto captulos analisam o
Introduo 16
contexto das prticas educativas na educao infantil e no ensino fundamental,
respectivamente, objetivando evidenciar as permanncias e os deslocamentos entre tais
prticas e suas consequncias para as crianas. No captulo final, teo consideraes sobre o
processo vivenciado pelas crianas pesquisadas, argumentando que as interaes entre os
sujeitos so negociadas tanto em relao ao contexto local das salas de aula quanto em
relao a contextos mais amplos.
O processo de escolarizao da infncia 17
1- O processo de escolarizao da infncia
Inicio esse captulo realizando uma breve incurso pelo campo da nova
Sociologia da Infncia, explorando os conceitos de cultura de pares e reproduo
interpretativa, em busca de uma compreenso sobre o movimento de insero e
participao das crianas no contexto social e, mais especificamente, no contexto escolar.
Nesse sentido, recorro tambm ao conceito de cultura escolar. Ao explorar tais conceitos e
ao iniciar as anlises dos dados da pesquisa de campo, tornou-se claro que as interaes
entre os sujeitos no contexto das salas de aula so negociadas em relao ao contexto mais
amplo das polticas pblicas educacionais. Foi necessria, ento, uma investigao sobre
alguns aspectos da legislao educacional relativos educao infantil e ao ensino
fundamental, sinalizando o que esta legislao aponta sobre uma possvel articulao entre
esses dois nveis de ensino. Tendo percorrido esse caminho, finalizo o captulo recorrendo a
algumas pesquisas nacionais e internacionais que tiveram como objeto de investigao as
diferentes formas de relao entre a educao infantil e o ensino fundamental.
1.1- As crianas, a cultura de pares e a reproduo interpretativa
O campo da nova Sociologia da Infncia constituiu-se ao longo das duas ltimas
dcadas do sculo passado, em contraposio percepo da criana como objeto passivo
do processo de socializao e em direo anlise da infncia como categoria sociolgica do
tipo geracional (MONTANDON, 2001; SIROTA, 2001; CORSARO, 2005; SARMENTO, 2008).
Embora em variadas vertentes, a nova Sociologia da Infncia possui como ponto central a
considerao de que as crianas participam coletivamente, de maneira ativa, na sociedade
da qual fazem parte (CORSARO, 2005; SARMENTO, 2008). Assim, busca-se a compreenso
das crianas, como agentes sociais ativos e criativos que produzem e reproduzem cultura, e
da infncia, como categoria estrutural, entendida como o perodo social e historicamente
construdo no qual as crianas vivem suas vidas, sendo expostas s mesmas presses sociais
que a fase de vida adulta (CORSARO, 2005). Sarmento considera que:
O processo de escolarizao da infncia 18
Ao incorporar na sua agenda terica a interpretao das condies atuais de vida das crianas, a Sociologia da Infncia insere-se definitivamente na construo da reflexividade contempornea sobre a realidade social. por isso que, na verdade, ao estudar a infncia, no apenas com as crianas que a disciplina se ocupa: , com efeito, a totalidade da realidade social o que ocupa a Sociologia da Infncia (SARMENTO, 2008, p. 19).
Nesse sentido, os dois temas centrais da nova Sociologia da Infncia (a infncia,
como categoria estrutural, e as crianas, como atores sociais) so analisados em relao ao
contexto amplo da sociedade (QVORTRUP, CORSARO e HONIG, 2009). Situo, a seguir,
algumas contribuies especficas de Florestan Fernandes, no contexto brasileiro, e William
Corsaro, considerado um dos principais autores no campo da nova Sociologia da Infncia,
pioneiro nos estudos sobre as interaes entre as crianas.
O conceito de cultura infantil foi abordado por Florestan Fernandes em seu
inovador trabalho sobre As trocinhas do Bom Retiro (1947). Os imaturos, termo usado
por Fernandes para se referir s crianas, foram tomados como sujeitos sociais capazes de
produzir cultura, e transmiti-la a outras crianas. Assim, quando ele pergunta a elas onde
haviam aprendido alguma brincadeira ou parlenda infantil, a resposta rpida e pronta era
Aprendi na rua, ou seja, no grupo infantil. Fernandes sustenta que h uma cultura
infantil, cujo suporte social consiste nos grupos infantis, em que as crianas adquirem, em
interao, os diversos elementos do folclore infantil *...+ que provm da cultura do adulto
(op. cit., p.35). No incio, eram elementos restritos cultura dos adultos, que passaram aos
grupos infantis atravs de um processo de aceitao e recriao. De acordo com Fernandes,
o notvel nisso tudo que a maioria dessas composies j desapareceu entre os adultos,
mesmo em Portugal, permanecendo, entretanto, entre as crianas (op. cit., p.36). Com a
passagem destes elementos para os grupos infantis, ocorreram modificaes no interior dos
prprios grupos e que foram repassadas a outras crianas atravs do aprender na rua,
evidenciando um processo cultural especfico entre as crianas.
Florestan Fernandes ressalta, em vrias passagens do seu trabalho, a
importncia da convivncia com os pares na socializao das crianas, uma vez que
possibilita a insero do indivduo em seu meio com a assimilao e permanente re-
construo da cultura. Concluindo seu estudo sobre as trocinhas, esse autor percebe uma
grande aproximao entre o folclore infantil brasileiro e composies ibricas,
principalmente no que tange s brincadeiras e cantigas de roda, aproximao que no foi
O processo de escolarizao da infncia 19
constatada em relao ao folclore indgena ou africano, provavelmente pelo assujeitamento
promovido pela colonizao portuguesa. Assim, traos da cultura do adulto passaram para a
cultura infantil e sua permanncia deveu-se aos grupos infantis, que garantiram, ao mesmo
tempo, sua transformao e continuidade de gerao a gerao (FERNANDES, op. cit.,
p.116-120). O trabalho pioneiro de Florestan Fernandes vem sendo retomado na produo
contempornea sobre a nova Sociologia da Infncia.
William Corsaro (1985, 1992, 2003, 2005) elabora dois conceitos, intimamente
relacionados, em busca de uma compreenso sobre os processos de socializao da criana,
enfatizando que este um processo que no se restringe adaptao e internalizao, mas
que envolve a apropriao, a reinveno e a reproduo. O primeiro conceito, cultura de
pares, aproxima-se, no meu entender, do conceito de cultura infantil proposto por Florestan
Fernandes.
Corsaro apoia-se em Geertz (1989) para a compreenso do conceito de cultura1,
entendida como a construo de uma teia de significados e a sua anlise no contexto social.
De acordo com Corsaro, as crianas coletivamente negociam, compartilham e criam cultura
com os adultos e umas com as outras no intuito de compreender e se inserir no contexto
social do qual fazem parte, ao mesmo tempo em que atendem s curiosidades e demandas
do prprio grupo de pares. Assim, a cultura de pares compreendida como as atividades,
rotinas, artefatos, valores e interesses construdos e compartilhados pelo grupo geracional
na interao social.
O segundo conceito cunhado por Corsaro, reproduo interpretativa, refere-se
ao movimento dos sujeitos infantis em relao cultura, em um processo coletivo que
ocorre no espao pblico ou social (CORSARO, 1988). Assim, a entrada em instituies de
educao infantil marca uma importante mudana no desenvolvimento social das crianas,
uma vez que elas comeam a perceber as prprias habilidades de produzir um mundo
compartilhado, a cultura de pares, sem dependncia direta dos adultos (CORSARO, 1992).
Corsaro apresenta dois elementos essenciais ao elaborar esse conceito, em um modelo
1 Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado. () Como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu chamaria smbolos, ignorando as utilizaes provinciais), a cultura no um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos; ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel - isto , descritos com densidade (GEERTZ, 1989, pp.4-10).
O processo de escolarizao da infncia 20
interpretativo de socializao: a importncia da linguagem e das rotinas culturais e a
natureza reprodutiva do processo de pertencimento das crianas na cultura. Esse autor
defende que:
A linguagem central na participao das crianas em sua cultura tanto como um sistema simblico que codifica a estrutura local, social e cultural e tambm como uma ferramenta para estabelecer (isto , manter, criar) as realidades social e psicolgica (OCHS, 1998, p. 2102). Essas caractersticas inter-relacionadas da linguagem e da linguagem em uso esto profundamente incorporadas e *so+ instrumentais na realizao das rotinas concretas da vida social (SCHIEFFELIN, 1990, p. 193). (CORSARO, 2005, p. 19. Traduo minha4).
H, portanto, uma concepo da linguagem como um processo interpretativo do
mundo social, o qual construdo nas interaes entre os sujeitos. Corsaro enfatiza a
importncia das rotinas culturais, uma vez que elas fornecem a todos os atores sociais a
segurana e o entendimento partilhado de pertencimento a um grupo social (2005, p. 19.
Traduo minha5). a previsibilidade de tais rotinas que possibilita a construo de um
quadro de referncias a partir do qual o conhecimento cultural pode ser produzido,
evidenciado e interpretado. Simultaneamente, as rotinas culturais permitem enfrentar as
ambiguidades da vida social em busca de um entendimento compartilhado com outros
atores sociais. Por outro lado, a repetio de tais rotinas propicia oportunidades de
mudanas nas formas de participao das crianas, possibilitando oportunidades de
elaborao e enriquecimento, ou mesmo transformao, das atividades (CORSARO, 1992).
Corsaro explica a reproduo interpretativa nos seguintes termos:
O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participao das crianas na sociedade, indicando o fato de que as crianas criam e participam
2 OCHS, E. Culture and language development: Language acquisition and language socialization in a Samoan
village. New York: Cambridge University Press. 1998. 3 SCHIEFFELIN, B. The give and take of everyday life: Language socialization of Kalui children. New York: Cambridge University Press. 1990. 4 Language is central to childrens participation in their culture both as a symbolic system that encodes local, social, and cultural structure and as a tool for establishing (that is maintaining, creating) social and psychological realities (OCHS, 1998, p. 210). These interrelated features of language and language use are deeply embedded and instrumental in the accomplishment of the concrete routines of social life (SCHIEFFELIN, 1990, p. 19) (CORSARO, 2005, p. 19). 5 [Cultural routines] provide all social actors with the security and shared understanding of belonging to a social group (CORSARO, 2005, p. 19).
O processo de escolarizao da infncia 21
de suas culturas de pares singulares por meio da apropriao de informaes do mundo adulto de forma a atender aos seus prprios interesses enquanto crianas. O termo reproduo significa que as crianas no apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produo e a mudana cultural. Significa tambm que as crianas so circunscritas pela reproduo cultural. Isto , as crianas e suas infncias so afetadas pelas sociedades e culturas das quais so membros. (CORSARO, 2009, p. 31).
Assim, segundo Corsaro, as crianas, em suas interaes com outras crianas e
em particular com os adultos, buscam interpretar a cultura da qual fazem parte. Como
salientado, as crianas no apenas adquirem os significados do mundo, internalizando
valores e normas culturais, mas tambm contribuem para sua produo e mudana.
Integrar-se cultura, portanto, significa (re)produzi-la e (re)cri-la. Esse o movimento da
reproduo interpretativa, que necessariamente individual e coletivo:
individual no sentido de que a tarefa de cada criana criar significados pessoais a partir do particular e necessariamente limitado conjunto de recursos aos quais ela exposta (...). coletivo no sentido de que esses recursos foram criados por geraes anteriores e so disponibilizados criana por outras pessoas. Ao responder e negociar com seus cuidadores e pares nos encontros do dia a dia com os recursos culturais, as crianas moldam suas prprias experincias de desenvolvimento enquanto, ao mesmo tempo, contribuem para a produo da ordem social. (...) As premissas chaves [das abordagens interpretativas] referem-se (1) ao situacionismo do significado e do desenvolvimento, (2) ao ativo e afetivo processo de criao de significado, e (3) ao poder constitutivo da linguagem (GASKINS, MILLER e CORSARO, 1992, pp. 6-9. Traduo minha6).
De fato, ressalta-se novamente que considerar as especificidades das culturas de
pares implica a anlise do contexto social no qual tais culturas se inserem. As Figuras 1 e 2,
nas pginas seguintes, explicitam as relaes entre a cultura de pares e o contexto no qual
esto inseridas, apresentando diferentes representaes do processo de reproduo
interpretativa e da produo da cultura de pares como intrinsecamente relacionadas.
6 It is individual in that each childs task is to create personal meanings out of the particular, necessarily limited set of resources to which he or she is exposed (...). It is collective in that these resources were created by previous generations and are made available to the child by other people. By responding to and negotiating with caregivers and peers in day-by-day encounters with cultural resources, children shape their own developmental experiences while at the same time contributing to the production of the social order. () The key premises [of the interpretive approaches] concern (1) the situatedness of meaning and of development, (2) the active, affective process of meaning creation, and (3) the constitutive power of language (Gaskins, Miller e Corsaro, 1992, pp. 6-9).
O processo de escolarizao da infncia 22
Figura 1: Um modelo interpretativo de socializao (CORSARO, 1992, p. 170. Traduo
minha).
Corsaro argumenta que modelos esquemticos nem sempre conseguem
representar adequadamente processos complexos. A Figura 1, por exemplo, no captura o
processo de mudanas histricas que ocorrem na infncia ao longo dos anos, o que, de
certa forma, mais bem representado na Figura 2. Entretanto, esse modelo torna possvel
visualizar as diversas relaes entre aspectos da vida social influenciando e sendo
influenciados pela produo da cultura de pares.
O processo de escolarizao da infncia 23
Figura 2: Modelo da teia orbital (CORSARO, 2005, p. 26. Traduo minha).
Nesse segundo modelo, h uma nfase nos campos institucionais da vida social,
os quais afetam e so afetados pelas culturas de pares. Entretanto, Corsaro enfatiza que
enquanto marcadas por muitas experincias que ocorrem baseadas em interaes com o
mundo adulto e encontros nos campos institucionais, as culturas de pares so inovadoras e
reprodues coletivas criativas (CORSARO, 2005, p. 25. Traduo minha7). Os dois modelos
explicitam que as crianas participam e fazem parte de duas culturas simultaneamente: a
cultura adulta e a de pares, estando essas duas culturas entrelaadas. Corsaro compreende
que mesmo que alguns aspectos da cultura de pares passem das crianas mais velhas para
as mais novas, como no caso das brincadeiras e parlendas analisadas por Florestan
7 While affected by the many experiences that occur through interactions with the adult world and
encounters in institutional fields (), childrens peer cultures are innovative and creative collective reproductions (CORSARO, 2005, p.25).
O processo de escolarizao da infncia 24
Fernandes, as culturas de pares no so estruturas pr-existentes que as crianas
encontram ou confrontam (CORSARO, 2005, p.25. Traduo minha8). As culturas de pares
so construdas ao longo das interaes entre as crianas, considerando-se o papel dos
adultos como mediadores da cultura mais ampla.
Portanto, para investigar as formas de insero das crianas nessas culturas,
necessrio examinar suas atividades coletivas, entre si e com os adultos, sendo fundamental
considerar as crianas como parte de um grupo social localizado na estrutura social mais
ampla (CORSARO, 2005). Sarmento, nessa mesma direo, sustenta que as culturas da
infncia exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto
das culturas adultas, ao mesmo tempo em que veiculam formas especificamente infantis de
inteligibilidade, representao e simbolizao do mundo (SARMENTO, 2004, p.22).
As elaboraes tericas da nova Sociologia da Infncia, em particular as
contribuies de Corsaro, foram fundamentais na anlise dos dados construdos ao longo
desta investigao, permitindo evidenciar as aes das crianas no processo de criao de
significados, em um movimento de insero no contexto social e de atendimento s
prprias demandas e curiosidades, muitas vezes transformando e ampliando as informaes
e atividades propostas pelas professoras. Assim que, na escola de educao infantil, a
convivncia diria com as crianas indicou um grande interesse pelo uso e reflexo sobre a
linguagem escrita. Na escola de ensino fundamental, por outro lado, algumas das atividades
propostas pelas professoras foram transformadas em momentos de brincadeiras entre as
crianas. A investigao seguiu o percurso das crianas em seu movimento de reproduo
interpretativa das prticas educativas das escolas pesquisadas.
Nesse processo, considerando o poder constitutivo da linguagem (GASKINS,
MILLER e CORSARO, 1992), a anlise das interaes discursivas entre as crianas e entre
essas e os adultos permitiram evidenciar os diferentes posicionamentos dos sujeitos no
contexto das salas de aula. Ao mesmo tempo, evidenciou-se que o que estava disponvel aos
sujeitos nas duas salas de aula, bem como as formas de organizao do tempo e do espao,
relacionava-se com a cultura escolar das duas instituies.
Faria Filho e colaboradores nos ajudam a articular dois conceitos, escolarizao
e cultura escolar, em um campo fecundo de investigao para a pesquisa educacional
8 peer cultures are not preexisting structures that children encounter or confront (CORSARO, 2005, p. 25).
O processo de escolarizao da infncia 25
brasileira. Para esses autores, a noo de escolarizao remete a dois sentidos que se
relacionam: o estabelecimento de processos e polticas de organizao de uma rede de
ensino e a paulatina produo de referncias sociais em que a escola se torna eixo
articulador de sentidos e significados (FARIA FILHO, GONALVES, VIDAL, e PAULILO, 2004,
pp. 152-153). As culturas escolares so estudadas, no campo da histria da educao, em
um mbito que prope pensar saberes, conhecimentos e currculos; espaos, tempos e
instituies escolares; e materialidade escolar e mtodos de ensino (op. cit., p. 150).
Dominique Julia define a cultura escolar como:
...um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de prticas que permitem a transmisso desses conhecimentos e a incorporao desses comportamentos; normas e prticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as pocas (...). Mas, para alm dos limites da escola, pode-se buscar identificar, em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que no concebem a aquisio de conhecimentos e habilidades seno por intermdio de processos formais de escolarizao. (...) Enfim, por cultura escolar conveniente compreender tambm, quando isso possvel, as culturas infantis (no sentido antropolgico do termo), que se desenvolvem nos ptios de recreio, e o afastamento que apresentam em relao s culturas familiares. (JULIA, 2001, p.11).
Julia se volta para as prticas cotidianas e suas vrias possibilidades, tanto na
perspectiva da escola quanto na dos sujeitos. Assim, ao mesmo tempo em que as prticas
culturais so produzidas pelos sujeitos, elas os produzem, articulando lugares no prprios
em um jogo de resistncias, tticas e estratgias (CERTEAU, 1998). Os sujeitos ativamente
negociam formas de pertencimento na cultura, (re)construindo suas identidades sociais
nesse processo. Por outro lado, a cultura que caracteriza as instituies escolares se projeta
para fora delas, estabelecendo tenses com outras instituies sociais como a famlia. Nesse
sentido, alguns autores (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, por exemplo) defendem que a
forma escolar de socializao hoje hegemnica, estando presente no apenas na escola,
mas tambm nas interaes entre os sujeitos nos mais diversos espaos, instaurando
formas de apropriao do mundo via uma pedagogizao das relaes sociais.
A cultura escolar tambm entendida a partir das interaes que se
estabelecem no interior da escola, entre os alunos, entre os professores e entre os alunos e
os professores. Parto, assim, da ideia de que as formas de participao e o processo de
O processo de escolarizao da infncia 26
tornar-se membro de um determinado grupo, bem como as culturas de pares destes
grupos, relacionam-se com a cultura escolar e com o sistema educacional, que igualmente
se faz presente de forma contundente no interior das escolas, contribuindo para que
algumas interaes ocorram ou no. Na prxima seo, examino alguns aspectos do
processo de escolarizao da infncia e das polticas educacionais brasileiras.
1.2- A obrigatoriedade escolar
A infncia tem sido acolhida, ao longo do tempo, em diferentes instituies, em
um processo contnuo de construo de representaes acerca da sua escolarizao e das
suas identidades. Gouva esclarece:
A emergncia de um tempo escolar, nas sociedades ocidentais, com o advento da Modernidade, relaciona-se com a definio de um marco cronolgico no decorrer da vida do indivduo, ao longo do qual este deveria inserir-se na escola, a chamada idade escolar. Esse marco no constitui um recorte absoluto, mas fruto de uma construo histrica, ao longo da qual se modificaram os parmetros de sua definio. Para analisar essa relao, cabe compreender a produo da representao da infncia como perodo de formao para a vida adulta, no interior da instituio escolar, de acordo com princpios pedaggicos caractersticos de tal instituio. Princpios esses centrados no pressuposto da educabilidade desse perodo de vida. (...) A identidade do aluno produziu-se superposta identidade geracional. (GOUVA, 2004, pp. 265-268).
Temos, ento, a construo de representaes em que o sujeito criana assume
a posio social de aluno, em um tempo e em uma instituio especficos. A definio
jurdica da idade de entrada e permanncia das crianas na escola um processo de
construo histrica, que incide sobre sujeitos sociais concretos: as crianas se situam em
uma idade da vida, em um tempo de aprender (GOUVA, op. cit.) a ser realizado nos
espaos escolares.
No caso brasileiro, essa construo acontece apoiada, entre outros aspectos, na
legislao educacional e nas polticas pblicas. J a partir do sculo XIX, no Brasil, comea a
ser construda a obrigatoriedade da frequncia escola. No caso da Provncia de Minas
O processo de escolarizao da infncia 27
Gerais, a Lei 13 de 1835 constituiu-se como um marco ao estabelecer a obrigatoriedade
escolar para os meninos livres de 8 a 14 anos de idade e a possibilidade da aplicao de
multas aos pais que no a cumprissem. Contudo, como observam Faria Filho e Gonalves, a
partir da anlise dessa legislao no sculo XIX e incio do sculo XX, a construo discursiva,
por parte de polticos e legisladores, de colocar-se a favor da obrigatoriedade e da
necessidade de escolarizao do povo, mas, ao mesmo tempo, argumentar sobre a
impossibilidade de sua adoo no Brasil naquele momento, j fazia histria (...). (2004, p.
175). Assim, o direito educao, em relao ao qual a obrigatoriedade escolar est
estreitamente vinculada como dever do Estado (HORTA, 1998), no plenamente efetivado
em nosso pas, mas instaura um campo de tenso sobre os espaos de formao da infncia
famlia, escola e trabalho.
Ao longo do sculo XIX e nos seguintes, a legislao que regulamenta a educao
no Brasil sofreu vrias transformaes, nem sempre mantendo a obrigatoriedade escolar,
que apenas regulamentada em nvel federal na Constituio de 1934. A Lei n 4.024, de
1961, estabelecia quatro anos de obrigatoriedade escolar. Somente na Emenda
Constitucional de 1969, entretanto, afirma-se a educao como direito de todos e dever do
Estado. Atualmente, a legislao vigente (Constituio Federal de 1988; Emenda
Constitucional 14, 1996; Lei de Diretrizes e Bases da Educao, 1996; Cdigo Penal, 1940;
Estatuto da Criana e do Adolescente, 1990) afirma a obrigatoriedade do ensino
fundamental como direito da criana, responsabilidade da famlia e do poder pblico.
Recentemente, as Leis Federais 11.114/2005 e 11.274/2006 instituram uma
nova organizao do ensino fundamental, a ser iniciado aos seis anos de idade e com
durao de nove anos, provocando inmeros debates no campo acadmico. Tal ampliao
j havia sido assinalada na Lei de Diretrizes e Bases da Educao (Lei Federal 9.394/1996).
Campos (1999) alerta que essa lei, ao prever a mesma formao para as professoras das
crianas de 0 a 10 anos de idade, avana em direo a uma educao da infncia que
poderia ser articulada em uma continuidade, considerando as especificidades de cada nvel
de ensino.
Santos e Vieira consideram, na anlise da Lei 11.274/2006, que no se tratava
to somente de uma antecipao da escolaridade, mas de aumento da obrigatoriedade,
fazendo-se acompanhar de uma reforma pedaggica (2006, p. 778). Essa mudana no
ensino fundamental incide diretamente sobre a educao infantil, que passa a atender as
O processo de escolarizao da infncia 28
crianas na faixa etria de 0 a 5 anos, enfatizando de forma ainda mais contundente que a
infncia e sua educao no sejam pensadas de forma segmentada. necessrio, portanto,
que tratemos o ingresso da criana de 6 anos no ensino fundamental como objeto de
pesquisa, como fenmeno a ser interrogado, na perspectiva de uma anlise poltica,
sociolgica e pedaggica (SANTOS e VIEIRA, op. cit., p. 789)9.
Minas Gerais, antecipando-se s leis federais citadas, instituiu a nova
organizao do ensino fundamental j em 2004. De acordo com Santos e Vieira (op. cit.),
dois motivos foram apontados pelo ento Secretrio adjunto de Educao de Minas Gerais,
Joo Antnio Filocre Saraiva, para tal antecipao. O primeiro deles relaciona o sucesso
escolar extenso do tempo de ensino obrigatrio, garantindo s crianas das camadas
populares igualdade na idade de acesso escola. O segundo seria uma disponibilidade de
salas e professores ociosos no sistema educacional estadual. Percebe-se, assim, o
estabelecimento de polticas educacionais no cruzamento de fatores pedaggicos e aqueles
voltados para a resoluo de problemas funcionais.
A partir de 2005, as escolas estaduais do ensino fundamental de Minas Gerais
passam a receber crianas que completam seis anos at 30 de junho, data limite definida
em um processo de negociao com a Secretaria Municipal de Educao de Belo Horizonte.
Belo Horizonte defendia a manuteno do recorte etrio para ingresso no ensino
fundamental at 30 de abril, como nos anos anteriores. Recentemente, as novas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (2009) propem que as crianas que
completem seis anos aps 31 de maro sejam matriculadas na educao infantil. Essas
negociaes sobre a forma de se colocar em prtica a nova organizao da educao bsica
evidenciam que esse um campo de disputas. Nesse sentido, torna-se imperativo
entendermos a legislao como um discurso que instaura prticas e tenses no cotidiano
das crianas, famlias e professoras.
9 No nvel internacional, o Relatrio da UNESCO (2007) aponta que vrios pases j incluram as crianas de seis anos no ensino fundamental h muito tempo. Apenas como exemplo, podemos citar que a obrigatoriedade escolar em vrios pases de doze anos (Barbados, EUA, Inglaterra, entre outros), onze anos (Armnia, Guatemala, Peru, entre outros), dez anos (Dinamarca, Porto Rico, Togo, entre outros), nove anos (ustria, Argentina, Chile, China, entre outros) ou menos. Angola situa-se como o pas que exige o menor nmero de anos, quatro, de escolaridade obrigatria. Fonte: Nation Master, http://www.nationmaster.com/graph/edu_dur_of_com_edu-education-duration-of-compulsory. http://www.nationmaster.com/graph/edu_dur_of_com_edu-education-duration-of-compulsory. Acesso em 11/10/10.
http://www.nationmaster.com/graph/edu_dur_of_com_edu-education-duration-of-compulsoryhttp://www.nationmaster.com/graph/edu_dur_of_com_edu-education-duration-of-compulsory
O processo de escolarizao da infncia 29
Constata-se, por conseguinte, que a instaurao de um determinado tempo de
aprender no acontece de maneira linear. O princpio da obrigatoriedade escolar, de acordo
com Cury, significa uma interveno dos poderes pblicos no sentido de criar espaos de
socializao que conduzam a uma igualdade de oportunidades na oferta de conhecimentos
bsicos e na aquisio de valores bsicos de referncia (2006, p. 667). Soares, nesse
mesmo sentido, argumenta que:
No h como ter escola sem ter escolarizao de conhecimentos, saberes, artes: o surgimento da escola est indissociavelmente ligado constituio de saberes escolares, que se corporificam e se formalizam em currculos, matrias e disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela inveno, responsvel pela criao da escola, de um espao de ensino e de um tempo de aprendizagem (SOARES, 2006, p. 20. Grifos no original).
O processo de escolarizao da infncia, seja na educao infantil ou no ensino
fundamental, coloca os sujeitos sociais frente a prticas especficas pertinentes a essas
instituies, com tempos e espaos diferenciados, posicionando-os em lugares socialmente
demarcados. Cabe perguntar, ento, quais seriam as diretrizes curriculares para a educao
infantil que, mesmo no sendo obrigatria, frequentada por uma significativa parcela da
populao infantil10, e para o ensino fundamental. No mbito da presente pesquisa,
interessa indagar como os documentos oficiais se posicionam em relao definio de
especificidades para cada um desses segmentos e como eles se referem s relaes entre os
dois nveis de ensino.
O documento Poltica Nacional de Educao Infantil: pelo direito das crianas de
0 a 6 anos educao (BRASIL, MEC, 2006) estabelece as diretrizes da poltica nacional de
educao infantil. Destaco algumas delas:
*A educao e o cuidado das crianas de 0 a 6 anos so de responsabilidade do
setor educacional.
*A Educao Infantil deve pautar-se pela indissociabilidade entre o cuidado e a
educao. 10 Em 2009, de acordo com a Pesquisa de Amostra por Domiclio, a taxa de escolarizao para pessoas de 4 ou 5 anos foi de 74,8% e para pessoas de 6 a 14 anos foi de 97,5% (IBGE, PNAD, 2009). Mesmo sendo quase universalizado em 2009, no h ainda a finalizao do ensino fundamental por todos os alunos. Em 2006, dos ingressantes no 1 ano do ensino fundamental, apenas 54% completaram esse nvel de ensino (BRASIL, MEC, 2009). Esses dados sugerem que o processo de passagem entre os dois segmentos da educao bsica est posto para um grande nmero de crianas, independentemente da classe social.
O processo de escolarizao da infncia 30
*A Educao Infantil tem funo diferenciada e complementar ao da famlia,
o que implica uma profunda, permanente e articulada comunicao entre elas.
*O processo pedaggico deve considerar as crianas em sua totalidade,
observando suas especificidades, as diferenas entre elas e sua forma privilegiada de
conhecer o mundo por meio do brincar.
*A poltica de Educao Infantil em mbito nacional, estadual e municipal deve
se articular com as de Ensino Fundamental, Mdio e Superior, bem como com as
modalidades de Educao Especial e de Jovens e Adultos, para garantir a integrao entre
os nveis de ensino, a formao dos profissionais que atuam na Educao Infantil, bem
como o atendimento s crianas com necessidades especiais (Grifos meus).
Alm dessas diretrizes, o referido documento faz algumas recomendaes,
sendo a primeira delas que a prtica pedaggica considere os saberes produzidos no
cotidiano por todos os sujeitos envolvidos no processo: crianas, professoras e professores,
pais, comunidade e outros profissionais (BRASIL, MEC, 2006, p. 27).
As primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (BRASIL,
MEC, 1999) estabeleceram:
Art. 3 - So as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao
Infantil:
I As Propostas Pedaggicas das Instituies de Educao Infantil devem
respeitar os seguintes Fundamentos Norteadores:
a) Princpios ticos da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do
respeito ao bem comum;
b) Princpios polticos dos direitos e deveres de cidadania, do exerccio da
criticidade e do respeito ordem democrtica;
c) Princpios estticos da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da
diversidade de manifestaes artsticas e culturais.
III As Instituies de Educao Infantil devem promover em suas Propostas
Pedaggicas, prticas de educao e cuidados, que possibilitem a integrao entre os
aspectos fsicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingusticos e sociais da criana,
entendendo que ela um ser completo, total e indivisvel.
Observa-se, nos dois documentos supracitados, a sinalizao de uma nfase na
dimenso ldica no processo educativo das instituies de educao infantil e o
O processo de escolarizao da infncia 31
reconhecimento da associao entre cuidar e educar nesse nvel de ensino. Tal nfase
aparece tambm nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil
(BRASIL, MEC, 2009), no Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil11 (BRASIL,
MEC, 1998) e nos Parmetros de Qualidade para a Educao Infantil (BRASIL, MEC, 2006a).
Nesses documentos, bem como na Poltica Nacional de Educao Infantil (BRASIL, MEC,
2006), menciona-se uma desejvel articulao da educao infantil com os outros nveis de
ensino, com uma recomendao explcita de que as secretarias municipais de educao
adotem medidas para garantir uma transio pedaggica adequada na passagem das
crianas da Educao Infantil para o Ensino Fundamental (BRASIL, MEC, 2006a, p. 20).
significativo que as relaes entre os nveis de ensino sejam aludidas, ainda que no estejam
explcitas quais seriam as medidas para que a passagem entre a educao infantil e o ensino
fundamental ocorresse de maneira adequada. O Artigo 11 das novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educao Infantil (2009) estabelece:
Art. 11 - Na transio para o Ensino Fundamental a proposta pedaggica deve
prever formas para garantir a continuidade no processo de aprendizagem e
desenvolvimento das crianas, respeitando as especificidades etrias, sem antecipao dos
contedos que sero trabalhados no Ensino Fundamental.
A transio da educao infantil para o ensino fundamental aparece em duas
passagens do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil, a primeira delas no
primeiro volume:
Com a sada das crianas, as famlias enfrentam novamente grandes mudanas. A passagem da educao infantil para o ensino fundamental representa um marco significativo para a criana podendo criar ansiedades e inseguranas. O professor de educao infantil deve considerar esse fato desde o incio do ano, estando disponvel e atento para as questes e atitudes que as crianas possam manifestar. Tais preocupaes podem ser aproveitadas para a realizao de projetos que envolvam visitas a escolas de ensino fundamental; entrevistas com professores e alunos; programar um dia de permanncia em uma classe de primeira srie. interessante fazer um ritual de despedida, marcando para as crianas este momento de passagem com um evento significativo. Essas aes ajudam a desenvolver uma disposio positiva frente s futuras mudanas demonstrando que, apesar das perdas, h tambm crescimento (BRASIL, MEC, 1998, Volume 1, p.84).
11
Este documento sofreu vrias crticas no meio acadmico (ANPED, 1998). Uma delas refere-se didatizao dos contedos propostos para a educao infantil, revelando uma subordinao [da educao infantil+ ao que pensado para o ensino fundamental (CERISARA, 2002, p. 337).
O processo de escolarizao da infncia 32
Nessa primeira passagem, destaca-se o reconhecimento de que h a
necessidade de interveno pedaggica para que a transio das crianas de um nvel de
ensino a outro ocorra de maneira positiva, no sentido de que as perdas sejam associadas a
um crescimento. Tais perdas podem ser melhor compreendidas a partir de uma leitura da
segunda passagem, no segundo volume desse documento, em que h uma referncia s
prticas disciplinadoras, consideradas mais frequentes no ensino fundamental:
Tradicionalmente, as instituies escolares associam disciplina a silncio e veem a conversa como sinnimo de baguna, indisciplina. Embora mais consolidada no ensino fundamental, essa viso influencia tambm a prtica na educao infantil, em que no raro o comportamento que se espera da criana o da simples obedincia, o silncio, a imobilidade. Essa expectativa incompatvel com um projeto educativo que valoriza a criana independente, que toma iniciativas e que coordena sua ao com a de outros (BRASIL, MEC, Volume 2, 1998a, p.39).
Aponta-se, portanto, para a diferenciao das prticas de disciplinamento como
um elemento que pode provocar uma ruptura no processo de escolarizao das crianas. J
as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (BRASIL, MEC, 2009)
trazem uma meno explcita ao processo de aprendizagem das crianas, orientando,
entretanto, que as prticas pedaggicas da educao infantil no antecipem os contedos
do ensino fundamental.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL, MEC,
1998b) estabelecem os mesmos fundamentos norteadores da educao infantil, excluindo,
entretanto, tanto a ludicidade quanto o cuidar/educar, e incluindo a relao sistematizada
dos sujeitos com o conhecimento:
Art. 3 - So as seguintes as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental:
I - As escolas devero estabelecer como norteadores de suas aes pedaggicas:
a) Princpios ticos da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do
respeito ao bem comum;
b) Princpios dos direitos e deveres da cidadania, do exerccio da criticidade e do
respeito ordem democrtica;
O processo de escolarizao da infncia 33
c) Princpios estticos da sensibilidade, da criatividade e da diversidade de
manifestaes artsticas e culturais.
III - As escolas devero reconhecer que as aprendizagens so constitudas pela
interao dos processos de conhecimento com os de linguagem e os afetivos, em
consequncia das relaes entre as distintas identidades dos vrios participantes do
contexto escolarizado; as diversas experincias de vida de alunos, professores e demais
participantes do ambiente escolar, expressas atravs de mltiplas formas de dilogo, devem
contribuir para a constituio de identidades afirmativas, persistentes e capazes de
protagonizar aes autnomas e solidrias em relao a conhecimentos e valores
indispensveis vida cidad.
IV - Em todas as escolas dever ser garantida a igualdade de acesso para alunos
a uma base nacional comum, de maneira a legitimar a unidade e a qualidade da ao
pedaggica na diversidade nacional. A base comum nacional e sua parte diversificada
devero integrar-se em torno do paradigma curricular, que vise a estabelecer a relao
entre a educao fundamental e:
a) a vida cidad atravs da articulao entre vrios dos seus aspectos, como:
1. a sade, 2. a sexualidade, 3. a vida familiar e social, 4. o meio ambiente, 5. o
trabalho, 6. a cincia e a tecnologia, 7. a cultura, 8. as linguagens;
b) as reas de conhecimento:
1. Lngua Portuguesa, 2. Lngua Materna, para populaes indgenas e
migrantes, 3. Matemtica, 4. Cincias, 5. Geografia, 6. Histria, 7. Lngua Estrangeira, 8.
Educao Artstica, 9. Educao Fsica, 10. Educao Religiosa, na forma do art. 33 da Lei
9.394, de 20 de dezembro de 1996;
No primeiro volume dos Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, MEC, 1997)
referentes aos quatro primeiros anos do ensino fundamental, est expressa uma
preocupao na continuidade das prticas escolares nas transies dentro do prprio ensino
fundamental, alertando que os professores realizem adaptaes sucessivas da ao
pedaggica s diferentes necessidades dos alunos, sem que deixem de orientar sua prtica
pelas expectativas de aprendizagem referentes ao perodo em questo (p. 43). H uma
nica meno educao infantil, confirmando a nfase no processo de sistematizao do
conhecimento no ensino fundamental:
O processo de escolarizao da infncia 34
A ideia de um ensino guiado pelo interesse dos alunos acabou, em muitos casos, por desconsiderar a necessidade de um trabalho planejado, perdendo-se de vista o que deve ser ensinado e aprendido. Essa tendncia, que teve grande penetrao no Brasil na dcada de 30, no mbito do ensino pr-escolar (jardim de infncia), at hoje influencia muitas prticas pedaggicas (BRASIL, MEC, 1997, p.31).
Nota-se que, assim como nos documentos sobre a educao infantil h uma
referncia implicitamente negativa ao ensino fundamental, relativa s prticas
disciplinadoras, tambm nos documentos acerca do ensino fundamental revela-se uma
referncia igualmente negativa educao infantil, relativa pouca sistematizao do
conhecimento. H uma sutil construo discursiva que sugere a afirmao de aspectos
positivos de um nvel de ensino (ludicidade e integrao do cuidar/educar na educao
infantil e sistematizao do conhecimento no ensino fundamental) em contraposio a
aspectos percebidos como negativos do outro nvel.
A anlise dos documentos citados indicam nfases distintas para cada nvel de
ensino. Essa configurao comea a ser repensada em documentos recentemente
elaborados pelo Ministrio da Educao no mbito do Programa Currculo em Movimento,
como por exemplo, nos documentos Ensino Fundamental de nove anos Orientaes Gerais
(BRASIL, MEC, 2004), Ensino Fundamental de nove anos - Orientaes gerais para a incluso
das crianas de seis anos (BRASIL, MEC, 2006b) e nos Subsdios para diretrizes curriculares
nacionais especficas da educao bsica (BRASIL, MEC, 2009a). Nos dois primeiros
documentos, incluiu-se uma discusso sobre a importncia do ldico tambm no ensino
fundamental, alm de orientar as escolas no sentido de reorganizar a sua estrutura, as
formas de gesto, os ambientes, os espaos, os tempos, os materiais, os contedos, as
metodologias, os objetivos, o planejamento e a avaliao, de sorte que as crianas se sintam
inseridas e acolhidas num ambiente prazeroso e propcio aprendizagem (BRASIL, MEC,
2004, p. 22). No terceiro documento, prope-se a reviso das diretrizes curriculares dos trs
segmentos da educao bsica. As novas Diretrizes Curriculares para a Educao Infantil
(BRASIL, MEC, 2009) inclui uma discusso acerca dos processos de aprendizagem das
crianas (Artigos 3, 6, 7, 8, 9) e avaliao do seu desenvolvimento (Artigo 10).
Em Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Educao elaborou, em um
processo dialgico com professores municipais e consultores externos, as Proposies
Curriculares para o Ensino Fundamental (BELO HORIZONTE, SMED, 2009) e as Proposies
O processo de escolarizao da infncia 35
Curriculares para a Educao Infantil (BELO HORIZONTE, SMED, 2009a). Essas Proposies,
alm de estarem referidas ao contexto nacional de reformulaes curriculares, relacionam-
se ao contexto municipal do Programa Escola Plural (BELO HORIZONTE, SMED, 1994), que,
entre outros aspectos, organizou as escolas de ensino fundamental em Ciclos de Formao e
ampliou esse nvel de ensino para nove anos, incluindo as crianas de seis anos no 1 ano do
ensino fundamental.
Segundo Miranda, vrios aspectos conduziram ao nome Escola Plural,
especialmente a ideia de uma escola mais democrtica, mais ampla, mais aberta s
diferentes culturas e comunidades (2007, p. 69). A Escola Plural estruturou-se com o
objetivo principal de garantir a permanncia das crianas na escola, em uma tentativa de
responder aos problemas identificados na escola seriada, como a distoro idade/srie
consequente da repetncia e da evaso escolar. So vrios os aspectos que a Escola Plural
trabalhou. Destaco aqui dois deles. O primeiro refere-se organizao do ensino
fundamental em trs Ciclos de Formao (1 Ciclo: crianas de 6 a 8 anos; 2 Ciclo: crianas
de 9 a 11 anos; 3 Ciclo: pr-adolescentes de 12 a 14 anos), o que repensa os usos do tempo
nesse nvel de ensino. O segundo aspecto refere-se ao nmero de professoras na escola,
feita atravs da razo duas turmas para trs professoras. Assim, as escolas se organizam
com professoras que assumem cada turma pela maior parte do tempo, chamadas de
professoras referncias. As outras professoras lotadas nas escolas assumem o trabalho de
coordenao dos turnos e horrios especficos nas turmas. Essa forma de organizao
permite a existncia de horrios de planejamento e reunio para o grupo de professoras.
Esse projeto sofreu crticas por parte dos professores municipais, algumas delas
relativas pouca clareza dos conhecimentos curriculares a serem sistematizados com os
alunos. As Proposies Curriculares, apresentadas em textos preliminares e abertas a
possveis reformulaes, procuram oferecer uma discusso acerca da organizao dos
conhecimentos referentes s disciplinas escolares, s atitudes, aos valores, numa proposta
curricular claramente definida (BELO HORIZONTE, 2009a, p.7). Nesses documentos, h a
incluso da dimenso ldica no trabalho com as crianas no ensino fundamental e do
trabalho com o desenvolvimento de capacidades/habilidades na educao infantil, aspectos
justificados a partir de uma reflexo acerca da articulao entre os dois segmentos da
educao bsica.
O processo de escolarizao da infncia 36
Percebe-se, tanto no contexto nacional quanto no nvel municipal, um
movimento de traar propostas curriculares no sentido de articular uma continuidade entre
os diferentes segmentos da educao bsica. A nova organizao do ensino fundamental
pode, assim, ser considerada como um marco nas polticas educacionais no sentido de
provocar uma maior articulao e debate entre a educao infantil e o ensino fundamental.
Kramer (2006) prope que essa articulao seja feita a partir da experincia do sujeito com
a cultura. Estamos diante de grandes desafios, segundo a autora, o de pensar a creche, a
pr-escola e a escola como instncias de formao cultural; o de ver as crianas como
sujeitos de cultura e histria, sujeitos sociais (KRAMER, op. cit., p. 810). Ou seja, a proposta
voltar-se para o sujeito infantil e suas especificidades, tanto no ensino fundamental
quanto na educao infantil. Esse um aspecto levantado por Maria do Pilar L. A. Silva, ex-
Secretria Municipal de Educao de Belo Horizonte e atual Secretria de Educao Bsica
do Ministrio da Educao, ao defender a entrada das crianas de seis anos nas escolas
municipais de Belo Horizonte, a partir da implantao do Projeto da Escola Plural. Segundo a
secretria, as professoras se defrontaram com as necessidades e as especificidades da
educao da infncia, passando a consider-las em sua prtica pedaggica (SANTOS e
VIEIRA, op. cit., p. 778).
Cabe salientar, entretanto, que a prtica pedaggica no est dissociada do
processo de formao dos professores. Sem dvida, a formao de professores para a
educao infantil e para os primeiros quatro anos do ensino fundamental, especialmente no
contexto da ampliao da obrigatoriedade escolar, encontra vrios desafios na tentativa de
combinar uma slida formao geral com a especializao por faixa etria e por
modalidade de atendimento (CAMPOS, 2007, p. 140).
Tendo em vista que, no quadro institucional indicado pela legislao educacional
brasileira, a relao entre a educao infantil e o ensino fundamental vem sendo
problematizada, voltei-me para entender como este embate entre os dois nveis de ensino
aconteceu no caso especfico de algumas pesquisas nacionais e internacionais sobre o tema.
O processo de escolarizao da infncia 37
1.3- Encontros entre a educao infantil e o ensino fundamental em diferentes contextos
A discusso sobre a relao entre a educao infantil e o ensino fundamental
vem adquirindo destaque na produo acadmica internacional buscando a apreenso dos
processos de transio entre os distintos espaos de socializao da criana (CORSARO e
MOLINARI, 2005; MOSS, 2008; PETRIWSKYJ, THORPE e TAYLER, 2005; ROSEMBERG e
BORZONE, 2004; VOGLER, P., CRIVELLO, G. e WOODHEAD, M. 2008, por exemplo). Nessa
seo irei me limitar a apresentar algumas dessas pesquisas, com suas principais concluses,
e, a seguir, retomarei as pesquisas nacionais sobre esse tema.
Peter Moss (2008) indica quatro possibilidades de relacionamento entre a
educao infantil e o ensino fundamental. A primeira caracteriza-se por uma subordinao
da educao infantil em relao ao ensino fundamental. A educao infantil teria, ento,
como funo preparar as crianas para um melhor desempenho no ensino fundamental. A
segunda caracteriza-se por um impasse, em que ambos os nveis de ensino recusam um
dilogo entre si, definindo-se a partir de uma negao recproca. A terceira possibilidade,
preparando a escola para as crianas, inverte o modelo preparatrio no sentido de adotar
prticas da educao infantil no ensino fundamental, adaptando a escola desse nvel de
ensino s crianas. A viso de um lugar de encontro pedaggico a quarta possibilidade
apontada e defendida por Moss. Nessa forma de relao, as prticas e as concepes de
ambos os nveis de ensino so integradas a partir do reconhecimento de suas diferentes
histrias, valores e concepes. Entendo que a tipologia proposta por Moss poderia auxiliar
uma melhor compreenso das pesquisas que apresentarei a seguir.
Corsaro e Molinari (2005) descrevem um processo que corresponderia ao quarto
modelo descrito acima. Esses autores tratam da transio entre os dois nveis de ensino,
enfatizando as experincias dos sujeitos, no contexto educacional de Modena, Itlia. Por
meio de uma etnografia longitudinal que teve sete anos de durao, Corsaro acompanhou
uma turma de crianas de cinco anos na educao infantil e sua passagem para o ensino
fundamental, bem como nas sries subsequentes. O interesse principal dos autores assim
descrito:
...ns estvamos interessados em desenvolver um entendimento interpretativo das mudanas nas vidas das crianas (em particular a transio
O processo de escolarizao da infncia 38
da pr-escola para o ensino fundamental) e como as percepes e representaes sociais das crianas (bem como de seus pais e professores) acerca dessas mudanas estavam apoiadas naquilo que denominamos eventos de preparao (CORSARO e MOLINARI, op. cit., p. 11. Grifos dos autores. Traduo minha12).
O conceito de eventos de preparao relaciona-se com a teoria dos ritos de
passagem de Arnold van Gennep (1960). Teoricamente, esse autor analisou os rituais de
passagem em trs fases: (i) separao/preparao, (ii) acontecimento/transio e (iii)
adaptao/incorporao. A primeira fase se refere a uma separao da posio social
anterior do indivduo e preparao para a nova posio a ser assumida. A segunda fase
relativa ao acontecimento das cerimnias de transio, quando os indivduos se encontram
em um estado de liminaridade, ou seja, j no pertencem posio social anterior, mas
tambm no assumiram um novo lugar no grupo. A terceira fase caracteriza-se pelos
movimentos de ascenso nova posio social atravs da incorporao do participante ao
novo grupo. Os rituais de passagem representam, portanto, uma ruptura e uma
continuidade, mantendo preservadas as distncias simblicas que separam as diversas
posies sociais possveis dentro de um mesmo grupo cultural. Os eventos de preparao
so, nesse sentido, atividades simblicas que permitem s crianas e ao seu grupo social
contribuir ativamente para suas experincias de transio, antecipando as mudanas
eminentes em suas vidas e ajudando-as a construir significados acerca desse processo.
Conversando com as crianas e observando suas brincadeiras na pr-escola,
Corsaro enfatiza algumas das preocupaes desses sujeitos ao pensarem sobre a escola de
ensino fundamental: mais exerccios, menos tempo para brincar e a aprendizagem da leitura
e escrita de forma mais sistemtica. A progressiva adaptao dessas crianas nas turmas da
escola de ensino fundamental foi acompanhada e analisada a partir de alguns eventos de
preparao: visitas escola de ensino fundamental, projetos de letramento ao longo da
educao infantil, festas de fim de ano e atividades na comunidade especficas para as
crianas. Foi identificada uma suave transio de um nvel de ensino para o outro para a
grande maioria das crianas, o que atribudo, por um lado, a vrias semelhanas entre as
duas escolas: a manuteno do mesmo grupo de crianas com as mesmas professoras
12 ...we were interested in developing an interpretive understanding of changes in childrens lives (most especially the transition from preschool to elementary school) and how the childrens (as well as their parents and teachers) perceptions and social representations of these changes were grounded in what we identified as priming events (Corsaro e Molinari, 2005, p. 11. Grifo dos autores).
O processo de escolarizao da infncia 39
durante todo o ensino fundamental, o que tambm acontecia na educao infantil; os
projetos de trabalho de longa durao; os dilogos e as discusses dirias com as crianas; e
o uso de atividades de arte ou linguagem grfica como suplemento e ajuda no
desenvolvimento das habilidades de escrita e leitura. Houve tambm vrios encontros entre
as professoras das duas escolas para discutirem projetos e relatrios individuais de cada
criana. Outro fator relevante foi a integrao das famlias com as duas escolas e com os
processos vivenciados pelas crianas.
Por outro lado, a suave transio das crianas pesquisadas por Corsaro e
Molinari se deve tambm s polticas de educao na Itlia, que proporcionam uma
continuidade entre os dois nveis de ensino, e alta qualidade da educao infantil ofertada
em Modena. Percebe-se, portanto, que o lugar de encontro pedaggico nas escolas
pesquisadas por Corsaro e Molinari foi construdo em diversos nveis, tanto no contexto
especfico das salas de aula, nas prprias escolas e nos eventos comunitrios, quanto no
sistema educacional.
Rosemberg e Borzone (2004), em escolas de educao infantil e ensino
fundamental em Buenos Aires, analisaram o contexto de interaes entre alunos e
professoras como um importante fator para a articulao entre esses dois nveis de ensino,
partindo do
pressuposto de que poderia haver diferenas nos padres [interacionais] entre a escola infantil e a escola primria, diferenas que poderiam manifestar na estrutura das interaes a ruptura que se menciona em termos gerais em relao s tarefas e estilos ou modalidades particulares de trabalhos prprios de cada um dos nveis (ROSEMBERG e BORZONE, op. cit., p. 3. Traduo minha13).
Por meio de observaes e gravaes de udio e vdeo de treze turmas (cinco
turmas de educao infantil crianas com cinco anos de idade, quatro turmas do primeiro
ano e quatro turmas do terceiro ano do ensino fundamental), as autoras analisaram as
semelhanas e as diferenas nas interaes discursivas entre professoras e alunos nos dois
nveis de ensino. As semelhanas entre os dois nveis se relacionaram com a assimetria do
13 Se parte del supuesto de que podra haber diferencias en estos patrones entre la escuela infantil y la escuela primaria, diferencias que podran poner de manifiesto en la estructura de las interacciones la fractura que se menciona en trminos generales en relacin con las tareas y estilos o modalida