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TAIEIRAS: RELIGIOSIDADE E SOCIABILIDADE NA FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, EM MONTE DO CARMO (TO). Noeci Carvalho Messias 1 [email protected] Realizando atualmente uma pesquisa de doutoramento focalizo o meu olhar para os festejos religiosos de uma pequena cidade tocantinense, Monte do Carmo. Atualmente a cidade de Monte do Carmo tem cerca de 6 mil habitantes, dos quais a maior parte é negra 2 . A cidade de Monte do Carmo apresenta variadas peculiaridades no contexto da história da região do estado do Tocantins. Fora vagamente conhecida ao longo do período histórico que pertencia ao território de Goiás, aparecendo na literatura historiográfica como sendo um dos arraiais que produziu abundante ouro, no século XVIII. Naquele contexto além dos indígenas que há tempos ali habitavam, a região foi frequentada por bandeirantes empenhados na exploração de minérios. Também afluíram para aquele arraial escravos africanos para trabalharem nas minas de ouro como instrumentos facilitadores para a exploração dessa riqueza. No cenário atual desta pequena cidade, a população cultiva anualmente diversas celebrações, festas e folguedos que simbolizam espiritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e sociabilidade da vida cotidiana. Tais manifestações cotidianas guardam fortes traços de referências africanas e portuguesas. Esse é um aspecto que nos chamou a atenção para essas celebrações, uma vez que estas não se perderam totalmente no exercício da diáspora, mas foram ressignificadas nas experiências locais. Todos os anos, no período de 7 a 18 de julho, pessoas de várias cidades da região do estado do Tocantins e também de outros Estados, acompanham uma diversificada programação, que mobiliza a população residente na área rural com destino a cidade. Durante os dias de festejos, o cenário da cidade se transforma em um espetáculo teatral em que o giro da folia, cortejos de rei, rainha, imperador e imperatriz, cavaleiros, caçadeiras, congos, alferes, foliões e taieiras, com vestimentas coloridas, dançam, cantam e percorrem ruas e praças da cidade, numa mescla de cultura popular e religiosidade, que homenageia os santos e santas protetores da cidade. O objetivo deste texto é mostrar 3 a invenção ritualística das taieiras que acontece dentro das celebrações que homenageia Nossa Senhora do Rosário. O foco desse olhar sobre a manifestação das taieiras nos remete ao pensamento de Hobsbawm; Ranger (1997, p. 9) uma vez que no entender desses autores “tradição inventada” consiste em práticas de natureza rituais e simbólicas que inculcam certos valores e normas através da repetição e que estabelecem continuidade com um passado histórico apropriado. O ritual das taieiras na cidade de Monte do Carmo é realizado duas vezes durante o ano: no mês de julho e outubro, uma vez que curiosamente Nossa Senhora do Rosário é celebrada duas vezes durante o ano pela comunidade carmelitana 4 . A explicação para este fato está associada às particularidades locais. Os moradores nos informam que no passado, não se sabe precisar a data, Monte do Carmo ficou desassistida religiosamente por parte dos líderes religiosos, isto é não tinha a presença de padres de forma 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Professora no curso de Serviço Social (Modalidade EaD) na Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS. 2 A maioria da população de Monte do Carmo reside na área rural. Segundo senso do IBGE de 2000, a população consistia em 5.982 habitantes, sendo 2.201, na área urbana, e 3.781, na área rural. 3 Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa que pretendo problematizá-los na tese de doutoramento. 4 A população residente na cidade e na região e/ou pertencente a este se denomina carmelitanos (as).

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TAIEIRAS: RELIGIOSIDADE E SOCIABILIDADE NA FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO, EM MONTE DO CARMO (TO).

Noeci Carvalho Messias1 [email protected]

Realizando atualmente uma pesquisa de doutoramento focalizo o meu olhar para os festejos religiosos de uma pequena cidade tocantinense, Monte do Carmo. Atualmente a cidade de Monte do Carmo tem cerca de 6 mil habitantes, dos quais a maior parte é negra2.

A cidade de Monte do Carmo apresenta variadas peculiaridades no contexto da história da região do estado do Tocantins. Fora vagamente conhecida ao longo do período histórico que pertencia ao território de Goiás, aparecendo na literatura historiográfica como sendo um dos arraiais que produziu abundante ouro, no século XVIII. Naquele contexto além dos indígenas que há tempos ali habitavam, a região foi frequentada por bandeirantes empenhados na exploração de minérios. Também afluíram para aquele arraial escravos africanos para trabalharem nas minas de ouro como instrumentos facilitadores para a exploração dessa riqueza.

No cenário atual desta pequena cidade, a população cultiva anualmente diversas celebrações, festas e folguedos que simbolizam espiritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e sociabilidade da vida cotidiana. Tais manifestações cotidianas guardam fortes traços de referências africanas e portuguesas. Esse é um aspecto que nos chamou a atenção para essas celebrações, uma vez que estas não se perderam totalmente no exercício da diáspora, mas foram ressignificadas nas experiências locais.

Todos os anos, no período de 7 a 18 de julho, pessoas de várias cidades da região do estado do Tocantins e também de outros Estados, acompanham uma diversificada programação, que mobiliza a população residente na área rural com destino a cidade. Durante os dias de festejos, o cenário da cidade se transforma em um espetáculo teatral em que o giro da folia, cortejos de rei, rainha, imperador e imperatriz, cavaleiros, caçadeiras, congos, alferes, foliões e taieiras, com vestimentas coloridas, dançam, cantam e percorrem ruas e praças da cidade, numa mescla de cultura popular e religiosidade, que homenageia os santos e santas protetores da cidade.

O objetivo deste texto é mostrar3 a invenção ritualística das taieiras que acontece dentro das celebrações que homenageia Nossa Senhora do Rosário. O foco desse olhar sobre a manifestação das taieiras nos remete ao pensamento de Hobsbawm; Ranger (1997, p. 9) uma vez que no entender desses autores “tradição inventada” consiste em práticas de natureza rituais e simbólicas que inculcam certos valores e normas através da repetição e que estabelecem continuidade com um passado histórico apropriado.

O ritual das taieiras na cidade de Monte do Carmo é realizado duas vezes durante o ano: no mês de julho e outubro, uma vez que curiosamente Nossa Senhora do Rosário é celebrada duas vezes durante o ano pela comunidade carmelitana4.

A explicação para este fato está associada às particularidades locais. Os moradores nos informam que no passado, não se sabe precisar a data, Monte do Carmo ficou desassistida religiosamente por parte dos líderes religiosos, isto é não tinha a presença de padres de forma

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Professora no curso de Serviço Social (Modalidade EaD) na Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS. 2 A maioria da população de Monte do Carmo reside na área rural. Segundo senso do IBGE de 2000, a população consistia em 5.982 habitantes, sendo 2.201, na área urbana, e 3.781, na área rural. 3 Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa que pretendo problematizá-los na tese de doutoramento. 4 A população residente na cidade e na região e/ou pertencente a este se denomina carmelitanos (as).

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permanente. Os padres só podiam cumprir com os trabalhos de acompanhar os festejos religiosos nos meses de férias, ou seja, dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Por isso, passou-se a festejar Nossa Senhora do Carmo, Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário no mesmo período, isto é, no mês de julho. Segundo os depoentes outro motivo que veio associar a este diz respeito às dificuldades dos moradores do sertão para deslocarem várias vezes durante o ano para participarem das festas, posto que fossem realizadas em épocas distintas. Muitos não poderiam deixar suas plantações e criações. Neste sentido, a junção das festas favoreceu também aos moradores residentes na área rural na medida em que possibilitou maior comodidade de locomoção dos festeiros e festeiras garantindo a participação de maior número de pessoas e ao mesmo tempo estes puderam permanecer por mais tempo em suas casas, na área rural, cuidando dos seus pertences.

Durante a festa que celebra Nossa Senhora do Rosário uma gama de rituais, brincadeiras, danças, cantorias são representadas no espaço urbano da cidade. O contexto destas cerimônias denota diversificados elementos repletos de sentidos e que favorecem a população construir laços e estabelecer diversificadas formas de sociabilidades naquele universo. Uma das mais significativas práticas recém enraizada no seio da comunidade carmelitana são as manifestações das taieiras (foto 1).

As taieiras formam um grupo de mulheres que acompanham o cortejo da rainha e do rei de Nossa Senhora do Rosário. Na ocasião percorrem as ruas da cidade em direção a igreja sempre dançando e cantando. Essas mulheres usam saias rodadas e coloridas, bem como colares de várias cores e na cabeça usam um turbante branco com uma rosa pendurada. Além de muitas pessoas que reverenciam o rei e a rainha, o cortejo é também seguido por congos, tocadores, rezadeiras e tambozeiros. No trajeto os dois grupos, congos e taieiras, se apresentam juntos. (fotos 2, 3, 4 e 6).

Arthur Ramos (2007, p. 68) ao estudar o folclore brasileiro pondera que

São congos e as taieiras, evidentemente fragmentações do antigo auto dos congos-cucumbis. Havia, na procissão, três negras vestidas de rainha, com seus mantos e coroas douradas, ladeadas de duas alas de congos, vestidos de branco e armados de espadas. De tempos em tempos, a procissão parava e as duas filas de negros congos se degladiavam, terçando espadas e disputando coroa da rainha principal, a quem chamava Rainha Perpétua. Andores e irmandades completavam o séquito, destacando-se o andor de Nossa Senhora do Rosário, guardado pelas taieiras, grupo de mulatas graciosamente vestidas à baiana.

Em dezembro de 19785 a escolha para rainha de Nossa Senhora do Rosário fugiu aos padrões estabelecidos pela tradição. A professora Sônia foi escolhida para ser a rainha de Nossa Senhora do Rosário, devido ao fato de nenhuma candidata ter-se apresentado para aquele ano6. Ela narra com detalhes esse episódio, que trouxe uma nova performance para o cortejo da rainha e do rei de Nossa Senhora do Rosário. Afirma ela que sua escolha foi uma surpresa, pois estava passando o final de semana com a família, próximo a cidade de Monte do Carmo, quando chegaram várias pessoas com sanfonas e foguetes dizendo-lhe que ela foi escolhida para ser a rainha de Nossa Senhora do Rosário e ela não teve como dizer não. A formação religiosa fez com que a depoente visse nessa escolha uma graça divina, um recado de Deus, uma vez que nunca tinha pensado em ser rainha. Naquele momento

5 - A festa realizou-se em julho de 1979. 6 - Tradicionalmente no dia 18 de julho, dia da homenagem a Nossa Senhora do Rosário, era anunciado publicamente à rainha do ano seguinte. No entanto, naquele ano nenhuma rainha se candidatou e tendo em vista que se aproximava o período da festa à comunidade preocupada com tal situação nomeou a professora Sônia para ser a rainha.

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não tinha sequer condições de pleitear algo nesse sentido, pois estava grávida de sete meses; a depoente relata sua escolha:

Em 1979 eu fui escolhida para ser rainha porque este ano estava sem rainha. Quando foi no mês de dezembro a comunidade me elegeu para tomar a festa da rainha. Ai junto com meu esposo, o Lulu Pereira, a nossa família que nos ajudaram muito então nós abraçamos esta causa. Com isso eu comecei a fazer pesquisa para saber como que era a festa. Conversei com as pessoas mais velhas aqui da cidade. Nestas pesquisas o pessoal mais velho me falou das taieiras então eu fui atrás para saber mais sobre as taieiras, fui até Porto Nacional atrás de pessoas que moravam aqui antes para me orientar sobre como eram as taieiras, como eram as vestes, os cantos, as danças e a comunidade daqui [de Monte do Carmo] me ajudou muito a ensinar as danças. Inclusive as taieiras que participaram da minha festa foram aquelas mulheres idosas que conheciam mesmo a festa que foram nos ensinar como treinar, como fazer a roupa. Que foi a tia Júlia, a Aurora que já partiram não está mais aqui com a gente e muitas pessoas aqui da comunidade que não irei citar nomes para não correr o risco de deixar de falar nomes de pessoas importantes que nos ajudaram muito naquela época.

Em sua narrativa fica evidente a devoção por Nossa Senhora do Rosário. Ela ressalta que não é fácil fazer a festa, porém a festa acontece e não falta nada, pelo contrário é muita fartura de tudo, de comida, bolos, de bebidas. Ela argumenta que são as bênçãos divinas que estão sobre o festeiro e que a finalidade da festa consiste em aumentar e renovar a fé das pessoas. A depoente assim resume:

Eu acho que foi uma graça muito grande que eu recebi. Tanto é que eu já tinha devoção a Nossa Senhora do Carmo, a Nossa Senhora do Rosário, mas depois de ser rainha passei a ter mais devoção. Nós mudamos daqui da cidade de Monte do Carmo, mas todos os anos nós retornamos aqui durante os festejos reforçando nossa fé, pedindo a nossa Senhora para nos cobrir com seu manto. Nós recebemos uma graça tão grande, nós criamos nossos sete filhos estão todos formados, estão bem, com saúde. [...]

A depoente ressalta a importância da solidariedade da comunidade carmelitana, uma vez que pelo fato de não ter nenhuma indicação de rainha, a comunidade abraçou essa causa porque não queria deixar sem rainha, sem fazer a festa para Nossa Senhora do Rosário. Sempre dizem “não podemos deixar a festa acabar”; por sua vez, as taieiras significaram a volta de uma manifestação antiga, que muita gente não conhecia mais. Ela não sabe precisar o período que ficou sem o ritual das taieiras, embora suponha que foram muitos anos, pois as senhoras informantes na época disseram que se lembravam das taieiras quando eram jovens7. As taieiras não eram de conhecimento para muitas pessoas mais jovens da comunidade. “Tinha somente os congos, mas as taieiras não”, diz ela.

A partir daquele momento, todos os anos as taieiras se apresentam durante os festejos de Nossa Senhora do Rosário que acontece no mês de julho e no de outubro. Ela observa que continua praticamente do mesmo jeito, com pouca alteração: as roupas coloridas, saias rodadas (foto), os cânticos mudaram um pouco, o jeito de dançar também continua como antes.

Outros depoentes que direta ou indiretamente participam dos festejos também confirmam o fato de que foi após a festa feita pela rainha Sônia que as taieiras voltaram ao cenário dos festejos de

7 Sônia afirma que suas informantes tinham na época [em 1979] aproximadamente 70 anos.

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Nossa Senhora do Rosário. Isto é, que foi a partir de 1979 a reintrodução da representação da dança dessas mulheres.

Para afiançar o ineditismo da festa sob patrocínio da rainha Sônia e a novidade que a mesma teria reintroduzido, o depoente Aristeu8 afirma que começou a dançar congo com aproximadamente vinte anos e conta que quando começou a dançar não tinha taieiras e só após a festa da rainha Sônia essa tradição foi inventada:

Quando eu comecei a dançar congo eu não conhecia negócio de taieiras. Eu não conhecia. Ai teve um festejo aqui de rainha de Sônia de Lulu Pereira. Aí é que veio taieiras. Eu não conhecia. Nessa época nós não tinha taieiras. Nem jovenzinho eu não conheci taieira. Não tinha não. Só depois que Sônia foi rainha é que começou taieiras.

Segundo relatos orais colhidos em Monte do Carmo, ser taieira é uma forma singular de expressar devoção a Nossa Senhora do Rosário.

Foto 1 - Taieiras – julho / 2008

Na ocasião do cortejo da rainha e do rei, a frente do quadrado onde estes se posicionam, além da presença das taieiras, doze homens, os congos, em pares e em filas dançam e cantam em homenagem a rainha. Vestem roupas coloridas com detalhes contratantes. Na cabeça levam adornos, uma espécie de coroa ornamentada com papel coloridos e penas de aves. Utilizam instrumentos de percussão como pandeiro, caixa, reco-reco fabricados por eles próprios. Constantemente cantando cânticos que se repetem e dançando ritmadamente, com evoluções das filas e passos laterais para frente e para trás manifestam a sua fé.

Todos os anos nos meses de julho e outubro o mesmo ritual se repete. No dia da homenagem a Nossa Senhora do Rosário, nas primeiras horas da manhã, os congos juntamente com as taieiras

8 O depoente Aristeu tem atualmente 64 anos de idade.

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buscam a rainha na “Casa da Festa”, com o objetivo de levá-la até a igreja. (foto 4). Como todas as demais etapas nas comemorações, esta também é revestida de um ritual seguido a risca pelos participantes. Antes de se dirigirem à Igreja, os congos e as taieiras tomam café, juntamente com a rainha. Após o café o rei dos congos que se posiciona na ala da frente canta chamando a rainha para ir para a igreja, com o seguinte refrão:

São Benedito marinheiro sai pra fora que eu quero ver.

São Benedito marinheiro sai pra fora que eu quero ver. (bis)

Hei Rainha de grande valor (bis)

E os outros congos que se posicionam na ala de trás respondem:

Direto pra igreja visitar Nosso Senhor (bis)

Foto 2 - Cortejo da rainha - Outubro / 2008

No trajeto de ida à igreja as taieiras não cantam, somente dançam acompanhando os congos. Como bem expressa uma depoente, taieira: “[...] nós vamos caladas, só dançando mesmo, vai lá vem cá até chegar à igreja [...] e os congos vão dançando e cantando”

As taieiras cantam inicialmente quando a rainha e o rei saem da igreja9 antes de descerem às escadarias como podemos verificar no trecho a seguir:

Alô, alô quem nos chamou

Rei e a rainha quem convidou

Vamo meu rei e minha rainha

Coroa de prata de Portugal

Vamo meu rei e minha rainha

Coroa de prata de Portugal

Vamo passear na rua festejar Senhora do Rosário 9 - Após o término da celebração religiosa, na igreja.

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Vamo passear na rua festejar Senhora do Rosário

Posteriormente, no trajeto de volta para a casa da rainha ou Casa da Festa taieiras e congos revezam durante a cantoria, isto é cada grupo canta separadamente. Formam-se duas alas em que, como diz uma depoente, duas taieiras puxam na frente cantando e as outras respondem cantando atrás. Veja trecho a seguir:

Alô, alô quem nos chamou

Rei e rainha quem convidou

Lá no céu tem sete estrelas mais clara do que a lua

Nossa Senhora do Rosário está passeando na rua

Seu rei de congo não pode falar

Vendeu a rainha de Portugal [...]

Foto 6 - Congos e taieiras – julho / 2008

A cada dia a manifestação das taieiras se populariza e passa a fazer apresentações além do espaço urbano local. Em 2001 as taieiras e os congos participaram do XXV Encontro Nacional de Folguedos em Teresina, Piauí. Em setembro de 2002 se apresentaram no I Encontro Folclórico do Norte e Nordeste, no Tocantins, que foi realizado na capital do Estado, Palmas. Veja no texto a seguir:

Os congos e taieiras de Monte do Carmo vieram com 40 integrantes, para mostrar a união da súcia com o tambor e os ritos das festas do Carmo. Após apresentar a rainha e o rei no palco, os congos e taieiras passearam entre o público, dançando, cantando e saudando os presentes. Em meio ao povo, o grupo mostrou o melhor da súcia e dos tambores carmelitanos. O ato relembrou as paradas que o grupo costumeiramente faz nas casas de amigos durante as festas de Nossa Senhora do Rosário. (ALMANQUE CULTURAL DO TOCANTINS, 2002, p. 13).

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Foto 3 - Cortejo da rainha - Outubro / 2008

Foto 4 - Taieiras – julho / 2008

Câmara Cascudo (2001, p. 289) em leitura de Silvio Romero nos dá notícia que em Lagarto, em Sergipe, no século XIX, no dia de Reis “celebra-se a festa de São Benedito e apreciam-se então ali dois folguedos especiais, o dos congos, que é próprio dos negros, e o das taieiras, feito pelas mulatas”.

É razoavelmente unânime entre alguns autores a tese de que as taieiras se acabaram. Observa-se uma nostalgia quando Edson Carneiro (2008, p. 20) salienta que “as taieiras são simples recordações”. Esta também é a posição de Alceu Maynard Araújo (2004, p. 83) ao assinalar que “há um processo evolutivo, dinâmico, transformando as manifestações coletivas do lazer popular. As danças tradicionais estão desaparecendo; de algumas, como as taieiras, só nos resta o nome”.

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Observa-se que Raul Lody (2006, p. 14) induz a uma possível diferenciação particularmente esclarecedora com relação ao processo de ressignificação do ritual das taieiras. Ao refletir sobre religiões afro o mesmo autor destaca que as taieiras consiste numa entre outras manifestações que vivem momentos de diferenciados revivalismo por ações de intelectuais e de organizações comunitárias que apóiam a construção de identificações e identidades afro.

Esse é um aspecto que nos faz deduzir que o ritual das taieiras, na cidade de Monte do Carmo, não se perdeu totalmente na experiência da transculturalidade, mas foi ressignificado nas experiências locais. As taieiras é, assim, o resultado contemporâneo de ritmos e sons que foram misturados e reconstruída ao longo do percurso histórico, configurando uma identidade entre os participantes e os apreciadores, como bem argumenta Hall (2000, p. 108)

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discurso, praticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação.

Para além deste texto, ao observar o significado social da manifestação das taieiras penso que é possível perceber que, junto às analises historiográficas sobre a construção das identidades negras, é necessário também construir interpretações e problematizações que nos ajudem a entender as estratégias individuais desenvolvidas pelos negros e pelas negras na construção e reconstrução do seu processo identitário.

Foto 5 - Casa da Festa – outubro / 2008

Sem dúvida, o ritual das taieiras pode ser pensado como uma expressão de reconhecimento das raízes africanas, uma vez que o processo de formação da cidade de Monte do Carmo desencadeou o contato entre diferentes identidades, especialmente indígenas, africanos e portugueses. Esse é um desafio para os historiadores dos tempos atuais. Como já mencionei

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anteriormente a reflexão desses desafios não comportam nos limites deste texto. Por conseguinte, o registro do ritual das taieiras abrem novas possibilidades de pesquisas que nos instigam em buscar compreender historicamente as manifestações culturais construídas por diversos atores sociais.

REFERÊNCIAS

Almanaque Tocantins de Cultura, Ano 4 nº 30, Maio de 2002.

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional II: danças, recreação e música. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2004.

CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. 3ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

CASCUDO, Câmara Luis da. Antologia do folclore brasileiro. 5ª Ed. São Paulo: Global, 2001.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA,Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

LODY, Raul. O povo do santo. 2ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.