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416 Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) O realismo de entidades de Nancy Cartwright Tales Carnelossi Lazarin * RESUMO Nancy Cartwright apresenta uma posição intermediária entre o empirismo e o realismo científico, conjugando uma atitude antiteórica sobre as leis científicas fundamentais com o realismo a respeito das entidades inobserváveis postuladas pela ciência. A autora sustenta, por um lado, que apenas leis fenomenológicas que buscam descrever regularidades empíricas de maneira direta podem ser verdadeiras, enquanto que leis teóricas ou fundamentais, que são mais abstratas e a partir das quais as primeiras podem ser derivadas e explicadas, não descrevem os fatos literalmente (isso por uma série de razões alegadas, como essas leis requererem a condição ceteris paribus ou haver perdas de adequação empírica com a ampliação de seu poder explicativo). Por outro lado, Cartwright entende que a ciência pode obter conhecimento a respeito de entidades que não são diretamente observáveis (e.g. elétrons), e o faz recorrendo a situações experimentais em que essas estariam envolvidas. A autora alega que a existência das causas (i.e. entidades) do que é constatado em um experimento controlado é requerida para que uma explicação causal seja aceita; e afirma também que, mesmo que os cientistas sejam estimulados a formular modelos diversificados para dar conta de certos fenômenos, que apenas uma história causal é, por fim, admitida pela comunidade científica - o que reforça seu entendimento sobre o compromisso ontológico envolvido nas explicações causais. Cartwright detalha posteriormente sua posição sobre o realismo de entidades, sustentando que as regularidades empíricas não são fundamentais, mas sim resultado da ação de certas ‘capacidades causais’ (i.e. disposições ou tendências de certos objetos em se comportarem de determinadas maneiras ou de produzirem certos efeitos em condições específicas). É a combinação de objetos com certas capacidades causais em configurações estáveis e repetitivas que ela denomina sugestivamente de ‘máquinas nomológicas’ – que geraria as regularidades empíricas que as leis científicas descrevem. * Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].

Tales Lazarin

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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)

O realismo de entidades de Nancy Cartwright

Tales Carnelossi Lazarin*

RESUMO

Nancy Cartwright apresenta uma posição intermediária entre o empirismo e o realismo

científico, conjugando uma atitude antiteórica sobre as leis científicas fundamentais com o

realismo a respeito das entidades inobserváveis postuladas pela ciência. A autora sustenta, por

um lado, que apenas leis fenomenológicas – que buscam descrever regularidades empíricas de

maneira direta – podem ser verdadeiras, enquanto que leis teóricas ou fundamentais, que são

mais abstratas e a partir das quais as primeiras podem ser derivadas e explicadas, não

descrevem os fatos literalmente (isso por uma série de razões alegadas, como essas leis

requererem a condição ceteris paribus ou haver perdas de adequação empírica com a

ampliação de seu poder explicativo). Por outro lado, Cartwright entende que a ciência pode

obter conhecimento a respeito de entidades que não são diretamente observáveis (e.g.

elétrons), e o faz recorrendo a situações experimentais em que essas estariam envolvidas. A

autora alega que a existência das causas (i.e. entidades) do que é constatado em um

experimento controlado é requerida para que uma explicação causal seja aceita; e afirma

também que, mesmo que os cientistas sejam estimulados a formular modelos diversificados

para dar conta de certos fenômenos, que apenas uma história causal é, por fim, admitida pela

comunidade científica - o que reforça seu entendimento sobre o compromisso ontológico

envolvido nas explicações causais. Cartwright detalha posteriormente sua posição sobre o

realismo de entidades, sustentando que as regularidades empíricas não são fundamentais, mas

sim resultado da ação de certas ‘capacidades causais’ (i.e. disposições ou tendências de certos

objetos em se comportarem de determinadas maneiras ou de produzirem certos efeitos em

condições específicas). É a combinação de objetos com certas capacidades causais em

configurações estáveis e repetitivas – que ela denomina sugestivamente de ‘máquinas

nomológicas’ – que geraria as regularidades empíricas que as leis científicas descrevem.

* Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].

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Nancy Cartwright apresenta uma posição intermediária entre o antirrealismo empirista

e o realismo científico, conjugando uma atitude antiteórica sobre as leis científicas

fundamentais com o realismo a respeito das entidades inobserváveis postuladas pela ciência.

Nesta comunicação discorrerei sobre algumas das posições da autora, expondo seu argumento

em favor da existência de entidades inobserváveis, e também sua defesa posterior das

capacidades naturais e das ‘máquinas nomológicas’ em que essas são articuladas, dando

origem às regularidades constatadas empiricamente.

… eu não estou preocupada exclusivamente com o que pode ser observado. Eu acredito em entidades teóricas e em processos causais também. Todo tipo de coisas inobserváveis está em ação no mundo, e mesmo se quisermos prever apenas resultados observáveis, ainda teremos de olhar para suas causas não observáveis para obter as respostas certas.

Nancy Cartwright

O debate sobre o realismo científico tem sido um dos mais movimentados na Filosofia

da Ciência das últimas três décadas (ao menos...) sendo que a tese realista pode ser

apresentada, de maneira resumida, como a alegação de que as teorias científicas aceitas são

descrições aproximadamente verdadeiras da realidade nos domínios respectivos, o que inclui

alegações sobre a existência de entidades que não podem ser diretamente observadas (e.g.

elétrons, campos eletromagnéticos, genes, estados mentais...) que são representadas por essas

mesmas teorias (cf. Boyd, 1984). O assunto da presente comunicação são algumas concepções

científicas de Nancy Cartwright (1983, 1989, 1999), filósofa que investiga a ciência

principalmente da perspectiva de sua prática, com especial atenção ao emprego de modelos no

desenvolvimento de experimentos científicos e de aplicações tecnológicas.

Na citação inicial, Cartwright (1983) soa quase como uma perfeita realista,

asseverando a existência de entidades inobserváveis e relações causais das quais essas

participam - e que podem bem ser requeridas para explicar certas ocorrências observáveis.

Entretanto, a autora se autodeclara ‘uma empirista’ e, embora divirja dessa tradição filosófica

com relação a diversos pontos sensíveis, define seu empirismo não com relação ao que é

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estritamente observável sem o auxílio da instrumentação científica (como faz van Fraassen,

1980/2006), mas sim com respeito àquilo que pode ser empiricamente testado e medido. Essa

perspectiva se constitui em uma ampliação em relação a um empirismo mais estrito, uma vez

que ocorrências subobserváveis podem, ocasionalmente, ser testadas e medidas de maneira

engenhosa pelos cientistas (e.g. com o uso de microscópios) e, por conseguinte, o

conhecimento a seu respeito pode ser assim estabelecido.

Porém, Cartwright (1983) assume uma posição antirrealista com relação às leis

fundamentais da natureza, dedicando boa parte de seu influente e controverso livro How the

laws of physics lie buscando justamente mostrar que tais leis não representam a realidade

literalmente e, portanto, não podem ser (aproximadamente) verdadeiras como alegado pelos

realistas. A autora distingue dois tipos de leis seguindo o uso que fazem os cientistas. Leis

fenomenológicas apenas descrevem regularidades empíricas específicas da maneira mais fiel

possível (e.g. leis da refração e reflexão, leis fenomenológicas dos gases); enquanto que as leis

fundamentais ou teóricas (e.g. leis de Newton, a equação de Schrödinger) são gerais, unificam e

explicam as regularidades descritas pelas leis fenomenológicas, sendo capazes de derivá-las

(em conjunto com informações específicas da situação). A autora contraria toda uma tradição

na Filosofia da Ciência que privilegia as leis fundamentais em detrimento das leis

fenomenológicas (cf. Hempel, 1965), e aqui menciono alguns motivos para seu ceticismo com

respeito às primeiras.

Um dos problemas é que Cartwright (1983) alega que as leis fundamentais devem ser

interpretadas como requerendo a condição ‘ceteris paribus’ (todo o mais constante), uma vez

que são formuladas para descrever tipos de efeitos específicos (e.g. força elétrica pela lei de

Coulomb e força da gravidade pela lei da gravitação universal), mas, considerando que a

interação entre fatores causais de naturezas diversas (e.g. interação de forças elétricas e

gravitacionais em partículas carregadas) ocorre via de regra, isso faz com que o comportamento

observado divirja do que é estritamente ditado pelas leis tomadas isoladamente. A autora

replica, então, que essas leis não descrevem os fatos literalmente – isto é, são estritamente

falsas, - ou o fazem somente em condições muito simples (como aquelas obtidas em

laboratório) ou idealizadas.

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Outro ponto enfatizado por Cartwright (1983) é que enquanto as leis fenomenológicas

são confirmadas diretamente pela evidência empírica, as leis fundamentais são confirmadas

apenas indiretamente pela derivação das primeiras. A autora opõe-se ao modelo nomológico

dedutivo de explicação científica apresentado por Hempel (1965), realizando estudos de caso

(e.g. sobre lasers e circuitos elétricos) que mostram que tais derivações não são diretas como

prescrito, mas sim mediadas por modelos da situação, de modo que informações específicas a

respeito dessa são empregadas para melhorar o que é ditado pelas leis fundamentais; e

também mostrando que há passos nas derivações que são tomados mais por conveniência

matemática do que pela obediência aos fatos empíricos. Cartwright (1983, p. 2) alega que razão

para muitos desses problemas com as leis fundamentais é que o custo do poder de explicar e

organizar de forma conveniente uma ampla gama de fenômenos empíricos em poucos

princípios científicos é uma inevitável perda de sua adequação empírica, de modo que “o poder

explicativo manifesto das leis fundamentais não é argumento para sua verdade” – afirmação

que se constitui na negação, pela autora, de tese central aos realistas científicos tradicionais (cf.

BOYD, 1984).

Retornando ao assunto do realismo de entidades, Cartwright (1983, p. 87) rejeita, com

outros empiristas como van Fraassen e Duhem, a inferência à melhor explicação em que os

realistas se apoiam para sustentar que as teorias fundamentais devem ser ao menos

aproximadamente verdadeiras. A autora segue uma linha instrumentalista clássica afirmando

que “explicações organizam breve e eficientemente a desajeitada, e talvez impossível de ser

aprendida, massa de conhecimento altamente detalhada que temos dos fenômenos”, mas

replicando que “o poder organizativo não tem nada a ver com a verdade”. Por tal concepção,

uma explicação falsa ainda poderia satisfazer todos os requisitos do que seja uma boa

explicação, ou seja, a verdade é entendida como ‘externa’ às explicações, um ‘ingrediente

adicional’ cujo estabelecimento não é constitutivo ou requerido pelas mesmas (e.g. teorias

falsas com valor instrumental como a astronomia de Ptolomeu ou a mecânica newtoniana).

Entretanto, Cartwright (1983, p. 89-90) pensa que os autores instrumentalistas citados

“eliminam mais do que deveriam”, entendendo que as explicações causais são de um tipo

especial das quais a verdade é, sim, constitutiva, e que apoiam a crença nas entidades

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inobserváveis. A autora discorre então sobre as explicações causais, afirmando que estas não

explicam somente “no sentido de organizar e de tornar claro, mas também de apresentar ...

uma causa” e oferece o seguinte exemplo:

Meu limoeiro recém-plantado está doente, as folhas amareladas e caindo. Eu finalmente explico isso dizendo que a água se acumulou no fundo do recipiente: a água é a causa da doença. Eu furo um buraco na base do barril de carvalho onde vive o limoeiro e água suja escorre. (...) Deve haver água para a explicação ser correta. Uma explicação de um efeito por uma causa tem um componente existencial, não apenas um ingrediente extra opcional.

O ponto enfatizado por Cartwright (1983, p. 90-91) é que aceitar uma explicação

causal requer a admissão da causa apresentada - pois sem isso a explicação não faria sentido

uma vez que o fator que realiza a explicação seria eliminado. O mesmo raciocínio do efeito à

causa pode ser empregado para estabelecer a existência de entidades inobserváveis:

Da mesma maneira, quando eu explico a mudança na taxa de queda de uma pequena gotícula em um campo elétrico, asseverando que há elétrons e pósitrons nessa esfera, eu estou inferindo do efeito para a causa, e a explicação não faz nenhum sentido sem a implicação direta de que há elétrons e pósitrons na esfera. Aqui, não há como furar um buraco para deixar os elétrons escorrerem diante dos nossos olhos. Porém, há a geração de outros efeitos: se a esfera está carregada negativamente, eu a pulverizo com um emissor de pósitrons e então mudo a taxa de queda da esfera: os pósitrons do emissor aniquilam os elétrons da esfera. O que eu invoco ao completar essa explicação não são leis fundamentais da natureza, mas antes propriedades dos elétrons e pósitrons, e alegações muito complexas e muito específicas sobre como o seu comportamento leva a essa situação. (...) Eu infiro à melhor explicação, mas apenas de uma forma derivativa: eu infiro à causa mais provável, e a causa mais provável é um item específico, o que nós chamamos de entidade teórica.

Aqui, há a inferência do efeito – a variação na taxa de deslocamento da gotícula

eletricamente carregada – para as causas que são os elétrons e pósitrons, entidades que não

podem ser diretamente observadas. A explicação é elaborada a partir de considerações sobre

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as propriedades que as entidades inobserváveis supostamente possuem (e.g. carga elétrica) e

sobre as condições específicas da situação experimental. De maneira análoga ao exemplo

anterior, Cartwright (1983) sustenta que é necessário conceder a existência das entidades

teóricas se essa explicação causal for aceita – caso contrário não faria sentido apresentá-las

como as causas do que foi empiricamente constatado.

Ao final da citação, Cartwright (1983) esclarece que o raciocínio não envolve a

chamada ‘inferência à melhor explicação’, que os realistas empregam para estabelecer a

verdade aproximada das teorias científicas, mas apenas uma forma derivativa e mais restrita de

raciocínio que ela chama de ‘inferência à causa mais provável’, que requer apenas o

entendimento de como as causas apresentadas produzem o efeito em situações específicas.

Por certo, a aplicação dessa inferência requer um conhecimento de fundo considerável, mas a

autora entende que as leis teóricas não estão envolvidas de modo essencial como alegam os

realistas.

A posição moderada de Cartwright (1983, p. 93) como realista sobre as entidades

inobserváveis e antirrealista a respeito das teorias fundamentais pode ser entendida também à

luz dos dois tipos de explicação científica abordados pela autora. Ela diz que “o que há de

especial sobre a explicação por uma entidade teórica é que ela é uma explicação causal, e a

existência é uma característica de alegações causais”, mas complementa afirmando que “não

há nada de similar para as leis teóricas”. Cartwright (1983, p. 94, grifo original) cita Adolf

Grünbaum que diz que “...leis são explicadas não por mostrarem que as regularidades que

essas afirmam serem o produto da operação de causas, mas antes por reconhecer que sua

verdade é um caso especial de verdades mais compreensivas.” Assim, uma lei fundamental

pode ser capaz de derivar uma lei fenomenológica se informação específica sobre a situação for

fornecida, mas tal derivação não é a ‘causa’ da regularidade descrita pela última, de modo que

essa explicação não requer a verdade da primeira. De fato, uma das razões em favor do

instrumentalismo é que várias leis fundamentais podem ser capazes de derivar uma mesma lei

fenomenológica, de modo que explicações distintas e incompatíveis para as mesmas

regularidades empíricas são sempre uma possibilidade em aberto.

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É relevante comentar sobre algumas críticas que o realismo de entidades proposto por

Cartwright (1983, p. 93) tem recebido na literatura1. Primeiramente, a própria autora concede

que seu argumento é limitado ao afirmar que “van Fraassen não acredita em causas,” e que ele

as toma “como uma ficção”; isto é, um cético a esse respeito não aceitaria explicações causais

em quaisquer circunstâncias e estaria desobrigado de conceder a existência das causas (i.e.

entidades) mencionadas como requerido pela argumentação anterior.

Outros questionamentos buscam enfatizar a relação que é de fato obtida entre as

teorias e as evidências em favor das entidades teóricas. Em um extremo, é possível supor uma

visão mínima do realismo de entidades como simplesmente alegando a existência de certos

inobserváveis científicos sem que esses estejam mais firmemente atrelados a qualquer teoria

ou descrição específica (cf. Devitt, 1984/1997). Porém, de novo, um instrumentalista poderia

concordar prontamente com todos os efeitos diretamente observáveis sem conceder a

existência das entidades em questão, ou das propriedades a elas atribuídas, uma vez que tais

efeitos poderiam, em princípio ao menos, ser o resultado de algo distinto. Noutro extremo, é

possível negar de forma bastante enfática a independência das evidências empíricas das teorias

fundamentais, sustentando que, sem o recurso a essas últimas, a construção dos experimentos

não faria sentido, ou os dados obtidos não poderiam ser apropriadamente interpretados (cf.

ELSAMAHI, 1994). Assim, o realismo de entidades seria uma posição ‘incoerente’ ao negar a

verdade de teorias que são requeridas para estabelecer a evidência empírica que é apresentada

em seu apoio.

O ponto que gostaria de enfatizar é que é possível uma leitura intermediária sobre o

papel das descrições das entidades – nem mínima, nem fortemente influenciada por teorias –

que penso ser mais apropriada. No exemplo anterior da gotícula carregada eletricamente,

Cartwright (1983) apoia a inferência causal em regularidades conhecidas e dados detalhados

1 Hacking (1983) também propôs, de forma independente, uma formulação particular do realismo de entidades, mas sua versão foca na manipulabilidade experimental dessas, enquanto que a de Cartwright (1983) se apoia na análise das explicações causais. Os autores tiveram conhecimento do trabalho paralelo antes da publicação de seus textos, o que reconheceram explicitamente nos mesmos. Na literatura subsequente, muitas vezes o realismo de entidades é tratado como uma única posição, desconsiderando diferenças envolvidas no tratamento dado por cada um dos autores a suas propostas. Por outro lado, dada a similaridade de suas posições, muitas das críticas feitas a um aplicam-se, sem prejuízo, ao outro também.

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sobre a situação experimental, que permitem inferir a partir do efeito constatado (e.g. variação

na taxa de queda) para suas causas (e.g. elétrons e pósitrons). O ponto importante, porém, é o

papel das propriedades dessas entidades (e.g. sua carga elétrica e o fato de elétrons e pósitrons

se aniquilarem mutuamente), que são, em última análise, as efetivas responsáveis por sua ação

causal. A concepção mínima aludida anteriormente não resiste a essa consideração uma vez

que há, sim, descrições de propriedades firmemente relacionadas às entidades - que estão

envolvidas, inclusive, no apoio à alegação de sua existência. Por outro lado, isso tampouco

significa um compromisso integral com as teorias fundamentais - e a autora se esforça para

mostrar que, ao menos nos casos abordados, essas não são requeridas. Em textos

subsequentes, Cartwright (1989; 1999) desenvolve novas considerações a respeito das

propriedades causais - sobre o que passo a contextualizar e comentar.

Em The Dappled World, que Cartwright (1999, p. 23) considera uma continuação do

livro já comentado, a autora diz que seu trabalho anterior foi por vezes considerado como um

ataque o realismo científico (i.e. concebido de forma tradicional), e afirma em tom conciliatório

que foi “iludida pelo inimigo” e que não é o realismo, mas o fundamentalismo que deseja

combater. Esse último é concebido pela autora como uma mescla de universalismo – a tese de

que as leis científicas se aplicam de maneira irrestrita – e de reducionismo – a alegação de que

a diversidade dos fenômenos naturais pode ser subsumida a leis de nível fundamental – teses

que a autora toma, por vezes, de maneira indistinta.

Cartwright (1999, p. 1) critica o ideal positivista, ainda arraigado, de que a ciência se

constituiria em um sistema de leis dedutivo, fechado e hierarquizado entre as várias disciplinas

científicas. Ela sustenta que a falha repetida de ciências com tendências ‘imperialistas’ (e.g. a

física para as ciências naturais e a economia para as sociais) em assumir o controle e governar

as demais é evidência a favor de um mundo misturado e bagunçado, afirmando também que a

“desordem da natureza é aparente” e que uma imagem mais fiel da ciência é a de uma colcha

de retalhos de leis (patchwork of laws) relacionadas maneiras complexas e que descrevem

partes específicas da realidade sem que haja continuidade ou subordinação essencial entre

elas. A autora até supõe, em favor do argumento, que as leis fundamentais possam ser

verdadeiras – possibilidade questionada anteriormente por problemas nas derivações -, mas

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afirma que ainda assim não haveria justificativa para o fundamentalismo. A razão é que

conceitos abstratos das teorias (e.g. força) descrevem a realidade apenas com a ajuda de

modelos que os interpretam de maneira mais concreta (e.g. o oscilador harmônico simples);

entretanto, os modelos disponíveis nas ciências se aplicariam, segundo a autora, apenas em

certas situações específicas (e.g. pêndulo simples, corda vibrando...) - e os conceitos abstratos,

por conseguinte, apenas a uma gama limitada de fenômenos cobertos por eles (cf. Giere, 1988,

para exemplos de modelos na mecânica clássica).

Retornando à questão do realismo, Cartwright (1989) já havia realizado em um texto

anterior a defesa de que a ciência pode descobrir ‘capacidades’ da natureza e também de seu

papel central na explicação das ocorrências empíricas. As capacidades são concebidas pela

autora como disposições ou tendências de certos objetos em se comportarem de determinadas

maneiras ou de produzirem certos efeitos em condições específicas (e.g. o paracetamol,

quando ingerido, tem a capacidade de amenizar as dores de cabeça; corpos eletricamente

carregados têm a capacidade de atrair ou repelir outros corpos próximos também carregados).

As capacidades estariam em ação mesmo quando há interação ou interferência de outras

causas - ‘tentando’ realizar seus efeitos mesmo contra resistências e, assim, influenciando o

resultado final; e podem ser descobertas e descritas pelas ciências com o controle de outras

ocorrências que não a ação da própria capacidade investigada, que então, livre de

impedimentos e de interferências significativas, realiza-se plenamente (esse procedimento é

chamado de ‘método de Galileu’).

Por certo um empirista tradicional poderia objetar à ‘inflação metafísica’ do retrato do

mundo pela admissão das capacidades, mas essa é compatível com o empirismo de Cartwright

(1999, p. 81), uma vez que ela alega que podem ser descobertas e testadas pelo método

descrito. Não obstante, isso certamente significa um flerte com o essencialismo, o que a autora

reconhece. Porém, ela também assinala uma diferença fundamental entre o essencialismo

aristotélico e a sua posição, afirmando que “para a ciência moderna o que algo é – como ele é

identificado e definido – e o que está em sua natureza fazer são coisas distintas”. O exemplo

oferecido pela autora é o de átomos em estado excitado que, agitados, produzem luz (i.e.

fótons). Está em sua natureza emitir luz, mas isso não é o mesmo que ser um átomo em estado

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excitado – ou seja, estar nesse estado é uma característica estrutural do átomo, identificada

pela ciência de forma distinta da maneira com que esse se comporta por sua natureza (e.g.

emitir luz).

Cartwright (1989, p. 140) também sustenta que as capacidades são centrais para o

objetivo da ciência de explicar a natureza, e que os testes e experimentos científicos não têm

por objetivo descobrir ‘leis’, mas sim as capacidades naturais nos domínios respectivos. Para

entender o ponto é preciso considerar outra alegação da autora, de que “as regularidades não

são, de nenhuma maneira, fundamentais ontologicamente ... elas são consequências da

operação de capacidades.” Assim, ela diverge também nesse ponto do empirismo tradicional -

que defende uma concepção ‘regularista’ da ciência -, colocando as capacidades como

ontologicamente fundamentais e, portanto, aptas a explicarem as próprias regularidades

descobertas empiricamente. Porém, as capacidades identificadas talvez sejam pouco efetivas

por si e precisam ser articuladas em estruturas causais para que sejam obtidos efeitos estáveis

ou repetitivos. Ao elaborar esse ponto, Cartwright (1999, p. 50) define o que seria uma

máquina nomológica:

...um arranjo (suficientemente) fixo de componentes ou fatores, com capacidades (suficientemente) estáveis que no tipo apropriado de ambiente estável irão, com a repetida operação, fazer surgir o tipo de comportamento regular que nós representamos nas nossas leis científicas.

Cartwright (1999) alega que as regularidades descritas pelas leis científicas são geradas

por máquinas nomológicas, sejam esses arranjos dados naturalmente (e.g. o sistema solar,

células) ou criados artificialmente em laboratórios e aparatos tecnológicos (e.g. aceleradores de

partículas, circuitos de aparelhos eletrônicos...); e afirma também que os modelos

desenvolvidos nas ciências se assemelham muito a projetos para a construção de máquinas

nomológicas. Assim, é possível entender como as regularidades – então vistas como exceções e

não como a regra - podem surgir em um mundo bagunçado e desordenado como delineado

pela autora. Além disso, os modelos que são utilizados para ‘concretizar’ princípios e leis

abstratas das ciências aplicando-os a situações específicas servem, na prática, como espécies de

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projetos que orientam cientistas e engenheiros a articular máquinas nomológicas - e, por

conseguinte, a instanciar as regularidades descritas pelas leis respectivas.

Enfim, mesmo declarando-se uma empirista, Cartwright (1999) parece buscar reverter

empirismo inglês clássico, seguido pelo positivismo, que expurgou a metafísica da ciência e

privilegiou as regularidades observadas (cf. AYER, 1936/1946). Para a autora, as entidades

inobserváveis e as capacidades naturais podem ser descobertas empiricamente – e,

apropriadamente articuladas, essas últimas podem originar (e explicar!) as regularidades tão

caras aos empiristas tradicionais.

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