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TEMAS DE DIREITO PRIVADO - UNI7 | Fortaleza€¦ · vita est quasi mortis imago.” Vous entendez cela, et vous savez le latin sans doute. MONSIEUR JOURDAIN: Oui, mais faites comme

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TEMAS DE DIREITO PRIVADOUma homenagem ao professor Agerson Tabosa

Edição Especial da Revista Jurídica da FA7Volume VII - Nº 1 - Abril/2010

EDITOR

Felipe dos Reis Barroso

CONSELHO EDITORIAL

Agerson Tabosa Pinto, Alécio Saraiva Diniz Ângela Teresa Gondim Carneiro, Danilo Fontenelle Sampaio, Ednilo Gomes de Soárez, Fernando Antônio Negreiros Lima,

Ionilton Pereira do Vale, João Luis Nogueira Matias, José Feliciano de Carvalho, Luiz Dias Martins Filho e Maria Vital da Rocha

CONSELHO INTERNACIONAL

Antonio Fernández de Buján (Universidade Autônoma de Madri, Espanha)

Luís Rodrigues Ennes (Universidade de Vigo, Espanha)

Maria José Bravo Bosch (Universidade de Vigo, Espanha)

PROJETO EDITORIAL

SUPERVISÃO EDITORIAL

Solange Gomes

REVISÃO

Fernando Filgueiras

CAPA

Cláudio Queiroz

EDIÇÃO DE TEXTO

Edwaldo Junior

Tiragem: 500 exemplares

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NOTA DO ORGANIZADOR

MAÎTRE DE PHILOSOPHIE: Ce sentiment est raisonnable: “nam sine doctrina vita est quasi mortis imago.” Vous entendez cela, et vous savez le latin sans doute.MONSIEUR JOURDAIN: Oui, mais faites comme si je ne le savais pas: expliquez-moi ce que cela veut dire.

Molière em Le Bourgeois Gentilhomme (I, 4)

Ele foi meu professor de Direito Romano, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, nos idos de 1980. Tempo em que ainda tínhamos um governo militar, tempo em que a universidade pública andava (e infelizmente continua) em penúria, tempo em que a estátua de Clóvis Beviláqua defronte à Faculdade quedava-se (e continua) cabisbaixa, decerto envergonhada com estripulias de uma dona Têmis hoje menos pudorosa. Tempo em que datilografávamos os trabalhos, tomávamos caipirinha na Volta e paquerávamos cocotas vestindo blusinha frente única, ao som da Blitz (não falo de Clóvis nem de Agerson, mas dos alunos).

Ele era diretor da Faculdade e eu, diretor de Imprensa do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua e editor do Jornal do CACB. Por aí, percebe-se que podia haver certa animosidade no ar. Hoje ensinamos no curso de Direito da FA7. Ingressamos juntos para lecionar na primeira turma, em 2002. Colegas, compartilhamos gentilezas e ideias sobre livros, viagens e avaliação de alunos.

Os colaboradores desta obra – uns colegas, outros ex-alunos do professor Agerson – prontamente juntaram-se para prestar tributo a um docente que, com competência, seriedade e inquietude, dignifi ca a carreira acadêmica. Aqui há professores brasileiros e estrangeiros, e alunos da graduação e da pós-graduação que trataram de relevantes temas de Direito Privado, cujo estudo deve interessar a qualquer profi ssional do Direito.

Ao comemorar dez anos de sua fundação, a FA7 homenageia um professor que se dedicou exclusivamente ao magistério, diferentemente de tantos outros da área jurídica. Um professor que publicou seus livros e artigos e que, ainda hoje, septuagenário, ministra aula na graduação e participa de eventos jurídicos mundo afora.

Que a dedicação profi ssional do professor Agerson sirva de exemplo aos que vêm por aí.

Vale!Comecinho das chuvas em Fortaleza, em 2010.

FB

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Muita gente boa para agradecer: aos colaboradores, pela pronta resposta e disponibilidade; à professora Maria Vital da Rocha, pelo apoio; à diretoria da FA7, que patrocinou a publicação; aos meus pitaqueiros de plantão, sempre alertas; e ao pessoal da BookMaker, pelo empenho profi ssional.

O Organizador

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FACULDADE 7 DE SETEMBRORua Alm. Maximiano da Fonseca, 1395

Bairro Eng. Luciano Cavalcante CEP 60811-024 - Fortaleza, Ceará, Brasil

Fone: (+55.85) 4006.7600www.fa7.edu.br

Diretor-GeralEdnilton Gomes de Soárez

Diretor AcadêmicoEdnilo Gomes de Soárez

Vice-Diretor AcadêmicoAdelmir de Menezes Jucá

Secretária-GeralFani Weinschenker de Soárez

Coordenadores de CursoAdministração: Hercílio Brito

Ciências Contábeis: Emílio CapeloComunicação Social: Juliana Lotif

Direito: Maria Vital da RochaPedagogia: Selene Penaforte

Sistemas de Informação: Marum Simão

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PREFÁCIO

Invadiu-me uma dupla sensação ao ser convidado para escrever este prefácio, fruto de uma feliz iniciativa do prof. Felipe dos Reis Barroso para reverenciar este que é o mestre de todos nós, o prof. Agerson Tabosa Pinto.

Sinto simultaneamente a alegria de poder participar dessa justa homenagem e a enorme responsabilidade de escrever o prefácio de uma obra que reúne competentes operadores de Direito que, nas últimas cinco décadas, tiveram o privilégio de ser discípulos do mestre homenageado.

Prof. Agerson iniciou sua formação superior no conceituado Seminário da Prainha, em Fortaleza, quando lançou os alicerces que lastrearam sua sólida formação humanística.

Ao perceber sua pouca inclinação para o exercício do sacerdócio, deixou o seminário e dedicou-se aos estudos do vernáculo e da ciência jurídica, graduando-se, respectivamente, em Letras Neolatinas e Direito pela UFC.

Prosseguindo sua jornada à busca de conhecimentos mais aprofundados, cursou o mestrado em Ciência Política (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, IUPERJ) e o doutorado em Direito do Estado (USP).

Com essa aprimorada formação acadêmica, pôde exercer com maestria a sua verdadeira vocação — o magistério.

A partir daí, ministrou a milhares de alunos conhecimentos em Direito Romano, em nível de graduação, na Faculdade de Direito da UFC e na Unifor; em Sociologia no curso de Economia na Faculdade de Economia da UFC; e em Sociologia Jurídica no mestrado em Direito da UFC.

Durante dez anos, foi diretor da Faculdade de Direito da UFC.Professor por vocação, pode-se dizer dele o que Eça de Queirós dizia de Ramalho

Ortigão: “Não ensina apenas por ensinar, ensina por fi lantropia”.Publicou os seguintes livros:• Noções de Sociologia. 1. ed. (1970) 4. ed (2000). Fortaleza: UFC.• Estudos de Sociologia Especial. Fortaleza: UFC, 1976.• O Banco do Nordeste e a Modernização Regional. Fortaleza: UFC, 1977.• Da Representação Política na Antiguidade Clássica. Fortaleza: UFC, 1987.• Teoria Geral do Estado. Fortaleza: UFC, 2002.• Sociologia Geral e Jurídica. Fortaleza: Qualigraf, 2005.• Direito Romano. 3. ed. Fortaleza: FA7, 2007.

Aposentado da UFC em 1993, recusou ao otium cum dignitate e continuou exercendo o magistério na Unifor (1994 a 2003), e, desde 2002, ministra a disciplina de Direito Romano na FA7.

Tive a feliz oportunidade de participar, como convidado, de um tribunal de doutorado (nome dado na Espanha à nossa banca examinadora de doutorado), na Faculdade de Direito de Ourense (Universidade de Vigo). A banca compunha-se de cinco doutores em Direito, dos quais dr. Agerson era o único estrangeiro. Senti orgulho, como brasileiro, de assistir à sua participação, impressionando a todos os presentes por seus comentários, pertinentes e judiciosos, em que demonstrava seus profundos conhecimentos em Direito Romano.

Prof. Agerson participa das seguintes instituições e entidades profi ssionais:

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• Membro do Conselho de Representantes da Associação dos Professores de Ensino Superior do Ceará (APESC);

• Diretor do Colégio Brasileiro da Faculdade de Direito;• Membro Diretor da Associación Ibero-Americana de Derecho Romano, com sede

em Oviedo (Espanha);• Membro do International Institute for Sociology of Law (ISL), com sede em Oñati

(País Basco, Espanha).

Com o mestrado em Ciência Política, desejou sentir o que Camões defi niu como “o saber de experiência feito”, aceitando o honroso convite do governador Virgílio Távora para dirigir a Casa Civil no seu segundo mandato, quando coordenou as atividades de todas as secretarias do estado do Ceará. Naquela época, pôde vivenciar o difícil funcionamento dos órgãos públicos, muitas vezes emperrados por uma asfi xiante burocracia cartorial.

No exercício da cidadania, aceitou a indicação feita pelo deputado estadual Roberto Pessoa para presidir o Instituto Tancredo Neves (ITN), que visa à conscientização da população, especialmente de jovens, em relação à realidade política nacional e na busca de soluções dos endêmicos problemas que têm emperrado o desenvolvimento socioeconômico de nosso país.

Prof. Agerson pode ser, como ninguém, classifi cado como polivalente face às suas atividades no Rotary Club International e nos esportes.

Foi presidente do Rotary Club Alagadiço, governador do Distrito 4490 (englobando os estados do Ceará, Piauí e Maranhão) e presidente da Comissão Distrital da Fundação Rotária (desde 1990), tendo sido agraciado com a Medalha do Mérito Rotário “Raimundo Oliveira Filho”.

Ostenta o título de ser o brasileiro que mais participou das Convenções Internacionais do Rotary, com mais de vinte atuações ao redor do mundo.

Nos esportes, sempre disputou animadas partidas de futebol, religiosamente, aos sábados à tarde, no Azevedão. Quando mais jovem, caracterizou-se por ser um veloz ponta-esquerda e, com o tempo, achou mais prudente jogar na defesa, em que sempre foi um vigoroso e combativo lateral-esquerdo.

Participou também do Tribunal Esportivo do Ceará como juiz e exerceu a presidência da Federação Cearense de Voleibol durante dois mandatos.

Integrou, por diversas vezes, como dirigente, as delegações de acadêmicos cearenses na disputa de Jogos Universitários Brasileiros.

É casado com a dra. Maria Vital da Rocha, pai de duas fi lhas, Ana Cristina e Adriana Flávia, e avô de quatro netos.

Concluo, afi rmando que o dr. Agerson, por sua competência profi ssional na área do Direito e por sua importante participação nos diversos segmentos sociais de nosso Estado, já não se pertence.

É um autêntico patrimônio que engrandece a terra de Iracema.É uma lenda viva e um exemplo a ser seguido pelas gerações pósteras.Rogamos a Deus, de quem o prof. dr. Agerson Tabosa Pinto é um fi el seguidor, que

continue a derramar, sobre ele e seus queridos, copiosas bênçãos, concedendo-lhe generosos e dilatados anos sobre a Terra para que possamos continuar a usufruir de sua companhia sempre edifi cante e agradável.

Ednilo SoárezDiretor Acadêmico da FA7

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AUTORES BRASILEIROS

A Proteção Legal do Nome da Pessoa Natural no Direito BrasileiroArthur Maximus Monteiro

Direito Fundamental Social à Saúde e a Relaçãoentre ParticularesAruza Albuquerque de Macedo

Danos a um Projeto de Vida?Denise Sá Vieira Carrá e Bruno Leonardo Câmara Carrá

Cultura Livre: Colaboração e CompartilhamentoEdvaldo de Aguiar Portela Moita

A Constitucionalização da Função Social da Propriedade: Alteração na Dogmática do Direito CivilEmanuel de Abreu Pessoa

A Prescrição e a Decadência no Código CivilEneas Romero de Vasconcelos

A Infl uência Perene do Processo Civil Romano nas Instituições Processuais ContemporâneasFernando Antônio Negreiros Lima

Sociedade Limitada: Evolução e Função EconômicaJoão Luis Nogueira Matias

Reinvestigando a Natureza Jurídica da PropriedadeJosé Vander Tomaz Chaves

Direito Fundamental à Educação e Home Schooling: a Educação Doméstica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação NacionalJuliana Cristine Diniz Campos

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SUMÁRIO

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Monitoramento de Correio Eletrônico Corporativo no Ordenamento Jurídico Brasileiro: Estudos JurisprudenciaisLígia Maria Saraiva Barroso

Responsabilidade Patrimonial dos Sócios na Execução TrabalhistaLucas de Brandão e Mattos

Responsabilidade Civil e Contratos de Locação Predial UrbanaMarcelo Sampaio Siqueira

A Teoria Econômica da Propriedade no Neoliberalismo Nathalie de Paula Carvalho

Estudo Dogmático do Contrato de Comodato no Código Civil Alemão Otavio Luiz Rodrigues Junior

A Cláusula Penal do Contrato de Trabalho Desportivo no BrasilRafael Teixeira Ramos

Usufruto: do Direito Romano aos Direitos Português e BrasileiroRaimundo Chaves Neto

Relação de Trabalho x Relação de Consumo: Uma Análise Sobre a Limitação da Competência da Justiça do Trabalho Saulo Nunes de Carvalho Almeida e Antonia Morgana Coelho Ferreira

Obstáculos Epistemológicos: o Ceticismo PirrônicoSérgio Borges Nery

AUTORES ESTRANGEIROS

Consequências da Ruptura Ilícita do Contrato de Trabalho Desportivo na Lei Portuguesa – Uma Má Solução Albino Mendes Baptista

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El Derecho Romano como Elemento de Armonización del Nuevo Derecho Común EuropeoAlfonso Murillo Villar

Clasicidad del Derecho Fiscal RomanoAntonio Fernández de Buján y Fernández

A Administração da Justiça no Direito RomanoA. Santos Justo

La Tabula Heracleensis: Organización MunicipalCarmen López-Rendo Rodriguez

Será que o Direito é um Fenômeno Natural? Uma Crítica da Posição de Pontes de MirandaGünther Maluschke

Posiciones Romanísticas en Torno a la Solidaridad Natural y Jurídica de la Prestación de Alimentos entre HermanosJuan Miguel Alburquerque

El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, fechado en 1639 Justo García Sánchez

Derecho Romano y Etica Convergente Luis Aníbal Maggio

Eclipse y Renacimiento de la Adopción en su Devenir HistóricoLuis Rodríguez Ennes

El Edictum de ConvicioMaría José Bravo Bosch

Notas Sobre la Abogacía en el Mundo RomanoModesto Barcia Lago

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AD – Ação Direta de InconstitucionalidadeBGB – Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão)CC – Código Civil brasileiroCDC – Código de Defesa do ConsumidorCF/88 – Constituição FederalCLT – Consolidação das Leis do TrabalhoCPC – Código de Processo CivilCPP – Código de Processo PenalFA7 – Faculdade 7 de SetembroJECC – Juizados Especiais Cíveis e CriminaisOAB – Ordem dos Advogados do BrasilOIT – Organização Internacional do TrabalhoONU – Organização das Nações UnidasPIB – Produto Interno BrutoRE – Recurso extraordinárioRevJurFA7 – Revista Jurídica da FA7STF – Supremo Tribunal FederalSTJ – Superior Tribunal de JustiçaTJ/CE – Tribunal de Justiça do Estado do CearáUFC – Universidade Federal do CearáUFPE – Universidade Federal de PernambucoUnB – Universidade de BrasíliaUnifor – Universidade de FortalezaUSP – Universidade de São Paulo

LISTA DE ABREVIATURAS

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A Proteção Legal do Nome da Pessoa Natural no Direito Brasileiro

Arthur Maximus MonteiroMestrando em Direitos Fundamentais pela Univer-sidade de Lisboa. Pós-graduado em Direito Pro-cessual Civil pela UECE/FESAC. [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Direito ao nome. 2. Proteção jurídica do nome. Referências.

Resumo: Neste artigo procuraremos analisar os principais aspectos relacionados ao nome da pessoa natural no direito brasileiro. O primeiro problema diz respeito à própria delimitação da matéria: o que se entende por direito ao nome? Afastando fi gu-ras correlatas que possuem a mesma origem – a personalidade –, a pesquisa centrar-se-á no exame dogmático da matéria. Serão defi nidos: 1 – os elementos constitutivos do nome; 2 – o que se entende por pseudônimo; 3 – qual é a proteção jurídica dispensada pelo nosso ordenamento ao nome, seja no campo penal, seja no campo civil.

Palavras-chave: Direito privado. Direitos da personalidade. Direito ao nome.

INTRODUÇÃO

A ciência jurídica possui natureza intrinsecamente conservadora. Entenda-se: seja-se organicista ou contratualista, é inequívoco concluir que o Estado existe para manter e conservar um determinado status quo. E o instrumento utilizado para man-ter e conservar uma determinada ordem das coisas é precisamente o Direito.

Cuida o Direito de estabelecer regras de conduta que permitam aos seres hu-manos conviverem com um mínimo de harmonia. Daí porque, se há um só sujeito, não há Direito; o Direito pressupõe o mínimo de dois sujeitos a se relacionarem para então surgir e aplicar-se.

O estabelecimento, a conservação e a reparação de relações sociais é a função última do sistema jurídico. Seu pressuposto é, pois, a existência de uma sociedade – ou, mais espe-cifi camente, de uma pluralidade de indivíduos – cujas relações o Direito pretende regular.

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Temas de Direito Privado14

Mas, para que os indivíduos possam relacionar-se, é indispensável que se iden-tifi quem. É natural que busquem diferenciar-se uns dos outros não somente por sinais físicos, mas também por sinais distintivos. É parte da natureza humana, portanto, atribuir-se um nome1.

É o nome o primeiro bem jurídico associado à pessoa. É por ele que o sujeito se individualiza perante os demais. É o símbolo gráfi co e fonético pelo qual a pessoa será conhecida por toda sua existência, e mesmo depois dela. É, talvez, aquilo que lhe é mais próprio e caro, a tal ponto que não exageraríamos se disséssemos que chega a se confundir com a própria personalidade individual.

Embora intuitivamente já se pudesse pensar que a ordem jurídica protegia o nome como verdadeiro bem jurídico da pessoa, foi com o Novo Código Civil que esse direito foi defi nitivamente incorporado ao ordenamento nacional.

1 DIREITO AO NOME

Antes de entrarmos na controvérsia doutrinária acerca do direito ao nome, é necessário estabelecer precisamente do que se trata.

O direito ao nome não é o mesmo que o direito de dar um nome. O primeiro é próprio do indivíduo; o segundo, dos pais. Como lembra Venosa, “ao nascermos, ganhamos um nome que não tivemos a oportunidade de escolher” (Venosa, 2006, p. 185). E não o tivemos porque o direito de escolha do nome é, em princípio, dos pais, e não do indi-víduo. Este tem o direito de receber e possuir um nome; mas a escolha do nome é algo que,

1 A necessidade de identif icar-se é problema que não escapa sequer aos poetas. É o caso, por exemplo, de João Cabral de Melo Neto, célebre poeta pernambucano, autor do clássico da literatura brasileira Morte e Vida Severina: um auto de natal pernambucano. No primeiro capítulo, logo em seu início, a personagem principal – Severino – indaga-se como apresentar-se à plateia:

“O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos, com mães chamadas Maria, fi quei sendo o da Maria do fi nado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um Coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias lá da Serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos amais cinco havia, com nomes de Severino, fi lhos de tantas Marias, mulheres de outros tantos, já fi nados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia”.

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A Proteção Legal do Nome da Pessoa Natural no Direito Brasileiro 15

em princípio, não lhe cabe, mas aos seus ascendentes. Tanto é assim que somente nos casos autorizados em lei o sujeito pode alterar seu nome. A escolha dos pais, em princí-pio, é defi nitiva e insusceptível de mudança.

A rigor, cuida-se não somente de um direito, mas também de um dever. Tem-se, na verdade, um poder-dever dos pais quanto à escolha do nome do fi lho. Mas não se trata, obviamente, de um direito absoluto. A própria lei estabelece balizas para a es-colha do nome no ordenamento brasileiro. Os pais não podem, por exemplo, atribuir ao fi lho um nome que o sujeite ao ridículo. A despeito de essa posição não ser pacífi ca (Pontes de Miranda, 2000, p. 305), cremos ser ela mais consentânea com o regramento positivo existente no direito brasileiro.

É importante destacar, também, que o direito ao nome não se confunde com o direito à honra, à reputação e ao bom nome (Dray, 2006, p. 41/42). Conquanto os demais também sejam direitos da personalidade, com ele não se confundem. Tratam, na ver-dade, de aspectos diversos da personalidade do indivíduo, relativos ao conceito que a sociedade e o próprio indivíduo faz de si mesmo. Não cuidam, propriamente, do direito de individualizar-se perante os demais (Carvalho, 1972, p. 37).

1.1 CONCEITO DE NOME

As defi nições de nome são tão variadas quanto o próprio tema. Afi rma-se, com frequência, que o nome é um sinal distintivo do sujeito, que serve para diferenciá-lo de seus semelhantes (De Cupis, 1950, p. 139; Venosa, 2006, p. 185). Há ainda os que rela-cionam o nome à identifi cação da ascendência – materna, paterna ou ambas – do ser humano (Pereira, 1998, p. 155). Mas isso ainda não nos diz precisamente o que é o nome.

Dizer-se que o nome serve para identifi car o sujeito, ou mesmo para indicar sua origem familiar, não é propriamente um conceito de nome2, mas a sua função. Além disso, há ainda de se lembrar que o nome designa não somente pessoas, mas coisas inanimadas, animais, lugares e mesmo apenas ideias (Coelho, 1953, p. 168).

2 Sobre esse aspecto, é inevitável não recordar Julieta, uma Capuleto, a expressar sua frustração pelo fato de não poder amar um integrante da casa dos Montecchios, em razão do ódio existente entre as duas famílias:

“‘Tis but thy name that is my enemy; Thou art thyself, though not a Montague. What’s Montague? it is nor hand, nor foot, nor arm, nor face, nor any other part belonging to a man. O, be some other name! What’s in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet; So Romeo would, were he not Romeo call’d, retain that dear perfection which he owes without that title. Romeo, doff thy name, and for that name which is no part of thee take all myself”. SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. Act II, Scene 2.

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Temas de Direito Privado16

Antes de mais nada, o nome é um sinal gráfi co ou fonético3. Gráfi co, porque nor-malmente expresso na forma escrita. Fonético, porque à escrita corresponde um certo modo ou forma de pronúncia, a identifi car oralmente o indivíduo4. Estabelecido o sinal, atribui-se-lho a um sujeito. E é dessa atribuição que, então, o nome passa a mani-festar seu traço distintivo. O conceito, pois, precede a função, e não o contrário.

Os hebreus costumavam ter apenas um nome (Moisés, Jacó, Davi). Com o tempo, com a pluralidade de indivíduos, foram acrescentando outros nomes para diferenciarem-se uns dos outros. Esses nomes ordinariamente designavam ou a origem topográfi ca ou mes-mo a profi ssão do sujeito. Daí Iesus Nazarenus – Jesus de Nazaré, porque provindo de família radicada em Nazaré, na Judeia. Pela mesma razão, João tornou-se Batista, para designar o ofício que lhe fora encarregado por Deus: batizar toda a gente5.

Os gregos, por sua vez, identifi cavam os seus com dois nomes, mas foram pioneiros ao acrescentar um terceiro nome ao nome da pessoa. O primeiro – prenome, como nome próprio; o segundo, o nome patronímico, identifi cando a origem familiar; e o terceiro, gentílico, identifi cando o nome de toda a gens. Como tudo na sociedade romana remetia à Grécia, os romanos também adotaram o estilo de identifi cação com três nomes.

Com a invasão dos bárbaros e a queda de Roma, retornou-se ao costume do nome único. Na Idade Média, por infl uência da Igreja Católica, passou-se a atribuir às pessoas nomes de santos. Daí porque o calendário católico atribuía a cada dia um santo, de modo a “orientar” os fi éis quanto à escolha dos nomes dos fi lhos (Venosa, 2006, p. 187/188).

Mas, evidentemente, o tempo trouxe consigo novamente a necessidade de diferen-ciação dos nomes dos sujeitos. Voltou-se, pois, a precisar de sobrenomes para diferenciar uns dos outros. As referências eram as mesmas da antiguidade: origem de nascimento (Borgonha) e profi ssão (Ferreiro) (Baudry-Lancatinerie e Houques-Fourcade, 1907, p. 278). O expurgo dos judeus e o aparecimento dos cristãos novos fez surgir os sobrenomes ligados a animais (Coelho) e plantas (Pinheiro) (De Cupis, 1950, p. 145).

3 A partícula alternativa justifi ca-se na medida em que a escrita nem sempre acompanhou a humanidade. Hodiernamente, é fato que na maioria das sociedades a todo nome corresponde uma representação gráfi ca, cuja forma é designada pelo alfabeto ao qual o povo do indivíduo está vinculado (grego-romano, cirílico, ideogramático etc). Mas nem sempre assim o foi. Além disso, a escrita é a última forma de inter-relaciona-mento humano. Precedem-na a expressão corporal e, obviamente, a expressão oral.

4 O caráter fonético possui ainda mais relevo do que o gráfi co especialmente nos idiomas tonais, como o mandarim, o coreano e o japonês. Uma mesma representação ideogramática pode ter “n” possibilidades de pronunciação, e a cada qual corresponderá uma ideia ou, mais apropriadamente, um nome diferente.

5 É curiosa, nesse aspecto, a análise da Bíblia. No Velho Testamento, especialmente nos livros do Pen-tateuco, aos sujeitos é atribuído um único nome: Adão, Eva, Abraão, Sara, Moisés etc. Já no Novo Testamento, abundam os casos de sujeitos com dois nomes: Jesus de Nazaré, João Batista, Saulo de Tarso etc. É evidente que esse acréscimo não deriva unicamente da Providência Divina, mas retrata mesmo a evolução histórica da identifi cação dos sujeitos.

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A Proteção Legal do Nome da Pessoa Natural no Direito Brasileiro 17

Atualmente, existem três grandes sistemas de denominação das pessoas (Car-valho, 1972, p. 19): o sistema árabe e eslavo, no qual, além do prenome, predominam designações de qualidade e procedência da pessoa (Raynaud, 1976, p. 798); o sistema europeu, no qual há apenas a obrigatoriedade de um único nome próprio e outro, fa-miliar (em geral o paterno); e o sistema peninsular, adotado na península ibérica e em grande parte dos países colonizados por Portugal e Espanha, no qual, ao lado do nome próprio, fi guram os nomes familiares materno e paterno.

No Brasil, como se sabe, adota-se o sistema peninsular: a par do prenome, seguem-se normalmente os nomes familiares indicativos da ascendência materna e paterna.

Surge, então, o problema da classifi cação e identifi cação das partículas integran-tes do nome. O que se entende por nome propriamente dito? O que serão o prenome, o sobrenome, o nome patronímico e o agnome? É o que veremos a seguir.

1.2 ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO NOME

Por nome entende-se o conjunto de vocábulos gramaticais que representam, gráfi ca ou foneticamente, determinado indivíduo (Capelo de Sousa, 1995, p. 250). Na Antiguidade e em grande parte da Idade Média, como vimos, o nome era composto por uma única partícula: o nome próprio. O acréscimo de designações de família, ofício ou lugar foram integrando-se ao nome e ganhando as mais diversas denominações. Todavia, há séria divergência quanto às defi nições precisas dos elementos constitutivos do nome. O próprio Código Civil de 2002 estabelece a distinção6, sem, contudo, defi nir precisamente quais são os elementos do nome. É necessário, portanto, procurar sistematizar e defi nir de forma clara tais elementos a fi m de não nos confundirmos na análise da matéria.

O primeiro desses elementos constitutivos é o chamado prenome. É talvez o único dos elementos integrantes do nome sobre o qual não pairam grandes dúvidas.

Prenome é o primeiro nome, o vocativo pelo qual normalmente designa-se o sujeito. É a parte do nome que efetivamente lhe é própria e destinada a identifi cá-lo e diferenciá-lo como indivíduo, à diferença dos demais elementos constitutivos, des-tinados a identifi car a sua origem familiar ou gentílica. Não é por outra razão que o prenome também é conhecido por nome próprio.

6 Cf. “Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.

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Em “José Ferreira da Silva”, por exemplo, “José” é o prenome ou nome próprio. Enquanto “Ferreira da Silva” designa a sua origem familiar – e isso estava posto antes mesmo de o sujeito ser concebido – “José” é o elemento que o distingue dentre os seus. Pode haver muitos irmãos, tios, sobrinhos e primos, mas, na família Ferreira da Silva, somente ele é “José”7.

Os romanos adotavam estrutura semelhante (Coelho, 1953, p. 169). Em Marcus Tulius Cícero, isso representava um indivíduo chamado Marcos, da gente dos Túlio, da família Cícero8. Cada partícula do nome servia a um propósito, e o propósito do prenome não era outro senão de diferenciar o sujeito dentre os mem-bros de sua própria família.

O prenome pode ser simples ou composto. Simples, quando constituído por uma única partícula; composto, quando a este se sobrepuserem uma ou mais de uma9. Nos exemplos acima, temos claramente prenomes simples: José e Marcos. Mas abundam casos de prenomes compostos: Júlio César, João Luiz, Ana Maria, Maria Paula etc. E – mais que isso – não são raros os casos de prenomes compostos por nomes que, individualmente, representam gêneros diferentes: José Maria, Maria João etc.

No entanto, para além de sua função primária – de distinção do indivíduo – o nome também possui a função de relacionar o sujeito à família de que provém (Coelho, 1953, p. 169). Daí a importância do sobrenome.

Por sobrenome entende-se tudo aquilo que se acresce ao prenome. Costuma-se tam-bém designar o sobrenome de apelido, nome patronímico ou mesmo nome de família.

Verdadeiramente, o sobrenome precede o prenome em sua origem. Desde antes de sua concepção, o sujeito está destinado a levar consigo o nome de seus pais. É, na verdade, uma decorrência natural de pertencer a uma família. A atribuição do pre-nome pressupõe, antes, a determinação do nome familiar (Raynaud, 1976, p. 798).

7 Registre-se que aqui se cuida de traço distintivo relativo à diferenciação do sujeito dentro da própria família. Não se pretende com isso defender ou entender que há um direito à exclusividade do nome. Tal direito não há, nem poderia haver.

8 Mas isso era privilégio dos patrícios. Os escravos e a plebe tinham um nome, ou no máximo dois, quando o segundo decorria do prenome do dono.

9 Era costume nos séculos XVIII e XIX atribuírem-se uma quantidade imensa de prenomes aos sujeitos, especialmente quando membros da nobiliarquia. É clássico o exemplo de Dom Pedro I (ou Dom Pedro IV, em Portugal), cujo nome completo era Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafi m de Bragança e Bourbon. Talvez por isso mesmo a legislação portuguesa tenha restringido a quantidade de nomes a serem atribuídos a uma pessoa: dois, no caso de nome próprio; quatro, no caso de sobrenome. Cf. art. 128, nº. 1, do Código de Registo Civil Português.

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Há doutrinadores que preferem chamar o sobrenome de nome patronímico. A rig-or, a identidade é falsa, porque patronímicos são somente os sobrenomes que se formam com desinência de genitivo para indicar a fi liação do sujeito (Pontes de Miranda, 2000, p. 304). É o caso, por exemplo, de Domingues, para identifi car o fi lho de Domingos; Fernandes, para identifi car o fi lho de Fernando; Henriques, para identifi car o fi lho de Henrique10. No entanto, a associação ganhou curso, e hoje não raro tem-se doutrina-dores e operadores do direito a apontar como patronímico todo e qualquer vocábulo que designe a ascendência familiar do indivíduo.

Fala-se, além do sobrenome, na existência do agnome. Por agnome, entende-se todas as partículas que vêm após o nome familiar, com o

fi m de designar alguma qualidade particular ou característica do sujeito, ou ainda, nos casos de homonímia familiar, a diferenciar sujeitos dentro de sua própria família. São agnomes, pois: Magno, Grande, Júnior, Filho, Neto, Sobrinho, Segundo etc. Foram os romanos os primeiros a adotá-lo. Sua função ia além da individualização do sujeito, mas quase sempre servia à exaltação de imperadores ou comandantes militares. Daí Alexandre, o Grande e Cipião, o Africano.

Mas, como dito, os agnomes podem servir não só para designar qualidades na acepção positiva da palavra. Podem também indicar traços negativos da personali-dade (Pedro, o Cruel, rei de Portugal), ou mesmo a baixa estatura de um governante (Pepino, o Breve).

Nos termos da redação do art. 16 do Novo Código Civil, podemos afi rmar que a lei reconhece três elementos: nome, prenome e sobrenome. Há quem possa entender que, em verdade, apenas os dois últimos são reconhecidos como partículas integrantes do nome, sendo este entendido apenas em seu conjunto. Não negamos que se possa dar sentido global ao termo “nome”, de modo a abarcar todo o direito a ele referido. Por outro lado, é regra elementar de hermenêutica que a lei não contém palavras inúteis. Assim, além de o termo “nome” constituir a designação pela qual o legislador refere-se ao conjunto de vocábulos gramaticais representativos do nome do sujeito, podemos também afi rmar que o “nome”, como tal, é um elemento do nome em seu conjunto. Desse modo, com base no que há no art. 16 do Código Civil e as disposições da Lei nº. 6.015/73, entendemos que a sistematização pode dar-se da seguinte forma:

1 – Prenome, ou nome próprio: vocábulo que identifi ca e diferencia o sujeito perante a sua própria família e gente;

2 – Sobrenome: vocábulo que se segue ao prenome, a identifi car a ascendência familiar materna;

10 E como não nos lembrarmos dos patronímicos anglo-saxões? “Mc”, no caso da língua inglesa – Douglas McArthur, Douglas fi lho de Arthur; e “Von”, no caso da língua alemã – Friedrich Carl Von Savigny.

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3 – Nome, nome familiar, ou nome patronímico: vocábulo que se segue ao sobrenome, a identifi car a ascendência familiar paterna.

4 – Agnome: partícula que se segue às demais, a designar uma característica ou qualidade particular do sujeito, ou, ainda, a diferenciar, em casos de homonímia, sujeitos de uma mesma família.

Além da classifi cação dos elementos integrantes do nome, a ordem de aparição dos vocábulos também gera confusões. Na tradição europeia havia uma ordem de aparição dos nomes indicativos da ascendência materna e paterna. Entendia-se, então, que, quanto mais próximo do prenome, mais honroso o lugar. Daí porque, à época, o primeiro nome indicado era o do pai. À mãe restava o último assento (Carvalho, 1972, p. 93). Com o passar dos tempos, essa tradição foi invertendo-se, passando o nome do pai a ocupar o último lugar. A mudança tópica deu-se por obra da disseminação dos costumes inglês e francês, segundo os quais somente o último nome era transmitido aos descendentes. Logo, a manter-se a ordem até então adotada, os fi lhos passariam aos seus descendentes somente nome materno, e não o paterno, como se entendia que deveria ser.

Com a Constituição Federal de 1988 e as novas disposições da Lei de Registros Públicos (6.015/73), permitiu-se que os pais escolhessem quais dos nomes de suas respectivas ascendências desejavam passar adiante. A ordem também passou a ser desimportante: tanto o nome do pai como o nome da mãe poderiam vir em último lugar. Cabe aos pais a escolha dos nomes e sua ordem de aparição do nome do fi lho.

A despeito do interesse teórico, é importante destacar que o nome – todo ele, seja em que ordem for – é juridicamente protegido, independentemente da classifi cação ou sistematização que se venha a adotar. É passível, pois, de tutela em caso de violação.

1.3 PSEUDÔNIMO

Mas não é somente o nome que é objeto de proteção pela norma. Há outro elemento de identifi cação que se associa à pessoa, mas que constitui elemento integrante do nome em seu sentido estrito. Trata-se do pseudônimo.

A etimologia da palavra traduz o seu sentido: do grego pseudo = falso; nomos = nome. Ou seja: pseudônimo é um “nome falso”. “Falso” – entenda-se – não no sen-tido pejorativo do termo, mas porque não integra o nome stricto sensu, o seu nome de registro. Trata-se de um vocábulo representativo do indivíduo, atribuído por si ou por outrem, pelo qual o indivíduo diferencia-se no seu meio social.

Com efeito, o pseudônimo serve ao indivíduo como substituto do próprio nome, e não como partícula ou elemento a ser-lhe somado (Coelho, 1953, p. 177). Como, em regra, é o próprio indivíduo que escolhe seu pseudônimo (Voirin, 1970, p. 22), é comum que a ele se afeiçoe mais do que ao seu próprio nome. Às vezes por

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razões estéticas; outras, por razões sentimentais. Mas o caso mais comum é que o su-jeito adote um pseudônimo por razões puramente comerciais11.

Por tais razões é que, não raro, o pseudônimo sobrepõe-se ao próprio nome do indivíduo no que toca à identifi cação do sujeito. Os casos são inúmeros: desde atletas (Pelé – Édson Arantes do Nascimento), passando por atores (Lima Duarte – Ariclenes Venâncio Martins; Susana Vieira – Sônia Maria Vieira Gonçalves; Fernanda Mon-tenegro – Arlette Pinheiro Esteves da Silva); e também autores (Stendhal – Henri-Marie Beyle; George Orwell – Eric Arthur Blair), e tantos outros.

Os pseudônimos artísticos são, talvez, a hipótese mais comum de pseudônimos protegidos juridicamente. Mas não são os únicos. Há casos em que não há propria-mente um pseudônimo, mas um heterônimo.

Heterônimo constitui, à primeira vista, um nome como outro qualquer. Seu traço distintivo é que ao heterônimo não corresponde uma pessoa factual. Trata-se de nome atribuído por um sujeito que já possui nome próprio a um alter ego seu. Não passa, portanto, de um nome fi ctício atribuído a uma personagem12.

À diferença do pseudônimo, o heterônimo não é associado diretamente à pessoa. Em regra, a natureza etérea do heterônimo mantém-se sigilosa, muitas vezes por razões pessoais; em outras, por questões de segurança13. Mas, nem por isso as obras “criadas” pelos heterônimos estão à margem de proteção jurídica. O criador do heterônimo pode perfeitamente exercer os direitos de seu alter ego como direitos seus. Basta revelar e com-provar que o heterônimo não existe e que é ele o verdadeiro autor das obras.

O pseudônimo, desde que adotado para atividades lícitas, goza da mesma proteção conferida pela lei ao nome14. Trata-se de extensão natural da proteção do direito ao nome. Ora, se o direito ao nome implica a proteção aos símbolos gráfi cos e fonéticos pelo qual a pessoa é identifi cada, da mesma forma deve assim se proceder quanto a outros vocábulos pelos quais se identifi ca a pessoa. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio.

Mas, para que tenha lugar a proteção ao pseudônimo, não basta simplesmente usá-lo uma vez. É indispensável que seja notório, de modo que toda gente saiba e relacione o pseudônimo à verdadeira pessoa que se oculta por trás dele (Gonçalves, 1929, p. 222).

11 Talvez a indústria fonográfi ca entendesse difícil produzir discos de um grego cujo nome é Geórgios Kyriácos Panayiótou. Mais fácil seria comercializar sua música adotando-se um nome de raiz inglesa: George Michael.

12 Fernando Pessoa era pródigo em atribuir a pessoas imaginárias obras suas. Algumas de suas mais belas passagens têm a autoria de Álvaro de Campos, Ricardo Reis ou mesmo Bernardo Soares, pessoas que jamais existiram factualmente, senão na própria mente de seu criador.

13 Daí porque Chico Buarque, perseguido pela ditadura militar no Brasil e praticamente impedido de comercializar sua música, criou o heterônimo Julinho d´Adelaide, com o qual escreveu sucessos como Joana Francesa, até que o heterônimo foi revelado e a música, censurada.

14 Cf. Código Civil de 2002: “Artigo 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome”.

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Convém não confundir o pseudônimo com os popularmente conhecidos apelidos15, também chamados de alcunha, epíteto ou hipocorístico (Carvalho, 1972, p. 76). Estes são formas afetivas ou pejorativas de se tratar alguém. Muitas vezes, o apelido nasce de uma desinência diminutiva ou aumentativa do nome (Zezinho, Marcão etc.). Outras vezes, o apelido surge em razão de alguma característica física do sujeito (Careca, Baleia, Negão) ou mesmo de algum episódio marcante da vida do indivíduo (Fujão).

Em certos casos, especialmente quando o sujeito adquire notoriedade, o apelido também pode ser objeto de proteção tanto quanto o nome. No Brasil, tem-se o exemplo de Jô Soares ( José Eugênio Soares), humorista e apresentador de renome, cujo primeiro vocábulo deriva da abreviação afrancesada de seu primeiro nome.

Postas essas considerações introdutórias, passemos a analisar qual é a natureza jurídica do direito ao nome.

2 PROTEÇÃO JURÍDICA DO NOME

O nosso ordenamento, seguindo a linha clássica da tripartição dos poderes16, concedeu a um órgão específi co a função de exercer, preponderantemente, a atividade jurisdicional. Esse órgão é, pois, o Judiciário.

A Constituição Federal, rompendo com paradigmas inaceitáveis de restrição de tutela de direitos existentes no ordenamento anterior – fruto de regime de exceção –, estabeleceu o amplo e ilimitado acesso dos indivíduos ao Poder Judiciário. Garante-se não somente a atuação punitiva e reparatória, decorrente da inobservância de regras de conduta, mas, também, a própria garantia de impedir que a lesão se consume, mediante atuação preventiva e inibitória. Ou, nas palavras do legislador constituinte originário, o Poder Judiciário pode e deve atuar para reparar a “lesão”, mas também deve impedir que se concretize a “ameaça a direito”17.

Vendo-se o ordenamento como uma sucessão de círculos concêntricos, cujo cen-tro de irradiação é a dignidade da pessoa humana, é evidente que a tutela dos direitos dela decorrentes assume posição de destaque (Viana e Monteiro, 2009, p. 53). E assim também deveria ocorrer com o nome. Mas não é isso o que se vê no ordenamento jurídico brasileiro.

15 Não confundir com o termo apelido adotado pelo ordenamento português , e o apellido, do ordenamento espanhol. Em ambos, o termo serve a designar o que nós chamamos de nome familiar ou patronímico. Não há razão para confundir o termo com outras designações constantes no direito comparado.

16 Mais apropriadamente, tripartição das funções estatais, dado que o poder é uno.17 Cf. Artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988.

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Na sua redação original, o Código Penal previa um tipo específi co de “usur-pação de nome ou pseudônimo alheio”. Neste crime incorreria quem atribuísse “falsa-mente a alguém, mediante o uso do nome, pseudônimo ou sinal por ele adotado para designar seus trabalhos, a autoria de obra literária”.

Cuidava-se, como se vê, não de verdadeira proteção ao nome, mas de proteção ao direito autoral. Posteriormente, esse equívoco legislativo foi corrigido com a Lei nº. 10.695/03, suprimindo-se esse tipo penal.

Há, ainda, o caso do tipo de falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal. No entanto, aqui também não há propriamente uma proteção ao nome, mas apenas uma punição a quem não utilizar de seu próprio nome para identifi car-se. Privilegia-se, assim, somente o aspecto publicístico do nome, mas não o seu aspecto privado.

O mesmo raciocínio aplica-se ao tipo previsto no artigo 309 do CPB (fraude de lei sobre estrangeiro). Nesse tipo, prevê-se ser crime “usar o estrangeiro, para entrar ou permanecer no território nacional, nome que não é o seu”. Novamente aqui se sobressai o interesse público, sem que se manifeste qualquer proteção ao nome no aspecto privado.

Talvez o dispositivo que mais toque ao direito ao nome no âmbito penal seja o tipo que descreve a falsidade ideológica. Previsto no art. 299 do Código Penal, cometerá crime aquele que “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fi m de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”. Para isso, a lei comina pela pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular”. Mas há mais. O parágrafo único estabelece que “se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsifi cação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte”.

Ou seja: quando a falsidade ideológica implicar falsifi cação ou alteração do registro civil, o legislador estabelece uma causa de aumento da pena. Ressalta-se, portanto, a maior ofensa ao bem jurídico tutelado (a fé pública) quando presente esta causa de aumento, cominando-se pena maior do que a normal para o delito.

No que toca ao aspecto civil, a proteção é mais ampla. Em relação ao aspecto publicístico, a proteção está dada com a regra geral de

imutabilidade do nome (Planiol e Ripert, 1925, p. 101). Somente nas hipóteses legais pode-se alterar o nome de registro, assegurando-se uma perfeita individualização dos sujeitos.

No seu aspecto privatístico, o próprio Código Civil estabelece, em seu art. 17, que “o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória”. Desse modo, aquele que tiver seu nome veiculado em publicações ou representações sem sua devida autorização, poderá acionar judicialmente quem o veiculou.

No entanto, convém destacar que, como tudo na ordem jurídica, esse direito não é absoluto. Há de sopesar-se sua aplicação no caso concreto para que não se conduza o

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intérprete a conclusões absurdas. Por exemplo: um político que tenha seu nome associado a um rumoroso caso de corrupção. É evidente que se trata de um fato jornalístico. Portanto, merece a atenção da imprensa, e é dever dela dar conhecimento do fato ao distinto público. É fato, também, que a própria Constituição Federal assegura expressamente a liberdade de imprensa (art. 220, caput, CF/88), vedando qualquer forma de embaraço ou censura ao seu exercício. Desse modo, o político em questão jamais poderia, sob o pretexto de inexistência de autorização, buscar judicialmente proibir a circulação de revistas e jornais que noticiassem o fato (Viana e Monteiro, 2009, p. 51).

Outra hipótese prevista no Código Civil acerca da proteção ao nome diz res-peito à imposição de que, “sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propa-ganda comercial” (art. 18).

Aqui, à diferença do que ocorre no art. 17, tem-se uma proteção mais ampla. Com efeito, é difícil imaginar que alguém possa, sem autorização, utilizar licitamente o nome de outrem para promover determinado produto ou serviço. Ainda que se trate de produto ou serviço de renome, ainda que se imagine que o produtor ou fornecedor poderia pagar vasta soma em dinheiro pela utilização do nome veiculado, o titular do nome pode, potestativa-mente, não querer ver seu nome vinculado a nada, por maior que seja a recompensa em pecúnia. Trata-se de direito potestativo do sujeito: é dado a ele – e somente a ele – decidir se aceita ou não ter seu nome veiculado a certa propaganda comercial.

Também aqui, à diferença do artigo anterior, pode-se pensar que o sujeito que tenha seu nome vinculado indevidamente poderia pleitear judicialmente a suspensão da veiculação da propaganda, além, é claro, de indenização pela sua utilização indevida (Viana e Monteiro, 2009, p. 52).

Destaque-se, ainda, que a proteção jurídica do nome engloba não somente este em sentido estrito. Também os pseudônimos gozam da mesma proteção. É o que infere do art. 19 do Novo Código, quando afi rma que “o pseudônimo adotado para atividades ilícitas goza da proteção que se dá ao nome”.

Exemplifi cativamente, pode ser que pouco efeito comercial tenha a vinculação de determinado suplemento alimentar ao fato de um certo “Edson” consumi-lo. Entretanto, a questão muda de fi gura quando esse mesmo produto é defi nido como “o suplemento que o Pelé usa”.

É importante destacar, no entanto, que a proteção ao pseudônimo somente se dá quando sua violação ocorrer dentro do mesmo ramo de atividade (Carvalho, 1972, p. 71). Há casos em que um pseudônimo é idêntico a outro, embora seus portadores sejam pessoas diferentes. Um caso emblemático é o de “Xuxa”, apelido originalmente designativo de uma apresentadora de televisão, mas hoje também alcunha conhecida de um famoso nadador brasileiro. Embora o pseudônimo deste tenha se originado do primeiro, é evidente que a apresentadora de televisão não poderá promover ação contra o nadador por ter usado o seu pseudônimo na promoção de um material esportivo qualquer.

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Todavia, o ordenamento pátrio ressente-se de uma tutela mais detalhada e específi ca, destinada a coibir eventuais violações ao direito ao nome. Assim como aos demais direitos de personalidade, deveria ser dispensada maior atenção do legislador, impedindo-se que todas as questões resolvam-se somente pela invocação de princípios da ordem constitucional.

Poder-se-ia pensar, de lege ferenda, em alterar-se a redação do artigo 17 do Código Civil, para englobar não só os casos em que a reprodução ou emprego do nome alheio exponha ao desprezo público. Conviria alargar o dispositivo legal para todo e qualquer caso em que o uso do nome alheio dê-se de forma abusiva.

Mas, a despeito de eventuais omissões, pode-se dizer que o novo paradigma estabelecido pelo Novo Código Civil tem o mérito de positivar o direito ao nome como direito da personalidade e representa um primeiro passo em direção à excelência no tratamento dogmático da matéria.

REFERÊNCIAS

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. v. I. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

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VOIRIN, Pierre. Manuel de Droit Civil – Tome I. 17. ed. Paris: Librairie Géné-rale de Droit et Jurisprudence, 1970.

THE LEGAL PROTECTION OF THE NAME OF THE NATURAL PERSON IN BRAZILIAN LAW

Abstract: In this article we will try to analyze the main aspects related to the name of the natural person in Brazil. The fi rst problem concerns the very defi nition of the matter: what is meant by the right to a name? Departing related fi gures that have the same origin – the personality – the research focus on an examination of the dogmatic issue. It will be defi ned: (1) the constituent parts of the name; (2) what is meant by pseudonym; (3) what is the legal protection given to the name by our legal system, whether in the criminal or in the civil area.

Keywords: Private Law. Rights of Personality. Right to a Name.

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Direito Fundamental Social à Saúde e a Relação entre Particulares

Aruza Albuquerque de MacedoBacharela em Direito pela [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica e conceito dos direitos fundamentais sociais. 2. Incidência dos pre-ceitos constitucionais e dos princípios fundamentais do contrato nos planos privados de saúde. 3. Reco-nhecimento da efi cácia horizontal do direito social à saúde. 4. Apreciação jurisprudencial. Considerações fi nais. Referências.

Resumo: Os direitos fundamentais surgiram para defender o cidadão do arbítrio do Estado. Com a evolução da sociedade, está cada vez mais presente a participação do indivíduo na atuação que antes se restringia ao ente estatal. Diante desta evolução percebe-se que as relações no âmbito privado podem ser desequilibradas ao ponto que violem direitos constitucionais. É com essa fi nalidade que se procurou estudar sobre a problemática da aplicação do direito fundamental à saúde na relação entre os particu-lares, a fi m de saber se a ordem fundamental exposta na Constituição deve ser aplicada aos entes públicos e privados, ainda que as relações particulares sejam regidas pelo regime jurídico privado.

Palavras-chave: Direito fundamental à saúde. Princípio da boa-fé. Efi cácia horizontal.

INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais sociais desempenham importante papel nas relações públicas e privadas. No âmbito público, seu reconhecimento não gera grandes contro-vérsias, haja vista que cabe principalmente ao Estado buscar por sua proteção, respeito e promoção, conforme preceitua a Constituição Federal. Já no que tange às relações en-tre particulares, o assunto não é pacifi cado. É esse ponto que será discutido no presente artigo, a inserção no âmbito privado da efetivação dos direitos fundamentais sociais.

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Especifi camente no que diz respeito ao direito fundamental à saúde, faz-se necessário abordá-lo do ponto de vista de sua efetivação realizada por particulares, não sendo estes apenas os seus titulares, como acontece quando ao Estado cabe sua prestação, mas também, de ser o indivíduo tratado como sujeito passivo das ações necessárias na aplicação desse direito.

Sabe-se que a prestação do serviço público de saúde no Brasil é defi ciente, tendo em vista a grande demanda que necessita do serviço em contraposição à má distribuição dos recursos públicos destinados a este fi m. É na defi ciência ou insufi ciência da prestação deste serviço que os planos privados atuam. Hoje, boa parte da população possui este tipo de plano, são pessoas que carecem do serviço e quando recorrem ao Estado não logram êxito na sua prestação. Por tratar-se de um direito intrinsecamente relacionado à vida, a demora na sua prestação poderá ocasionar um maior gravame àquele indivíduo.

Percebe-se com isso a necessidade de debater em torno do problema exposto, a fi m de buscar uma maior efetivação do direito fundamental social à saúde, ainda que seja prestado por particulares através do serviço de plano privado.

Desta forma, é patente afi rmar que se o particular estiver prestando este tipo de serviço através de plano de saúde, deverá fazê-lo do mesmo modo que o Estado, obedecendo às prescrições constitucionais e legais quanto a sua aplicação. Ainda que se trate de uma relação contratual entre particulares, e que o regime jurídico aplicável seja de direito privado, reconhece-se a infl uência das normas de direito público, espe-cifi camente à Constituição Federal. Tal alegação tem por fundamento a presença do direito fundamental social à saúde, sendo este o objeto primordial desta relação que, considerando a sua natureza constitucional, possui normatividade potencializada.

O trabalho é iniciado com uma abordagem sucinta acerca da evolução e do con-ceito dos direitos fundamentais sociais para, assim, justifi car a importância do direito fundamental social à saúde e a necessidade da sua efetivação por particulares.

Em seguida, trata-se da aplicação dos preceitos constitucionais no direito civil, constitucionalizando esse ramo do direito e vinculando-o primordialmente ao princípio constitucional basilar da dignidade da pessoa humana. Aborda-se ainda, os princípios fundamentais dos contratos.

Logo adiante, centraliza-se no reconhecimento da efi cácia horizontal dos direi-tos fundamentais sociais. Esses direitos não devem ser observados apenas pelo Estado frente ao cidadão, mas devem ser direcionados também aos agentes privados.

Com o intuito de demonstrar exemplifi cadamente a relevância prática do assunto examinado no presente trabalho, reserva-se espaço para a apreciação de jurisprudência que, em respeito ao consumidor, afaste cláusulas contratuais que não respeitam os preceitos constitucionais e legais.

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1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

O século XIX marcou a presença dos direitos fundamentais sociais na vida do cidadão. A Revolução Industrial foi palco para a consagração desses direitos, pois, apesar de trazer desenvolvimento econômico, sacrifi cou a classe trabalhadora e aqueles que se encontravam à margem da sociedade, fazendo com que fosse preciso a intervenção estatal na prestação de mecanismos capazes de realizar a justiça social.

Para que esses direitos fossem assegurados se fez necessária a sua positivação nos textos constitucionais, como forma de alcançar força e possibilitar a sua exigibilidade inicialmente perante o ente estatal. E essa foi a tendência durante o século XX. As nor-mas que defi nem os direitos sociais foram primeiramente previstas nas Constituições Mexicana (de 1917) e de Weimar (de 1919), que, por representarem uma verdadeira revolução no campo dos direitos humanos, tornaram-se verdadeiros marcos na positi-vação desses direitos (MEIRELES, 2008).

Os direitos sociais foram inscritos e positivados internacionalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, colaborando assim para a efetivação do Estado Democrático de Direito. Foi a partir da Declaração Universal que “o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto mais alto do século XX. Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma síntese” (BONAVIDES, 2007, p. 574).

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, já aprovada pelos franceses, ganha status internacional, com sua aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, sendo esta “a única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca de sua validade” (BOBBIO, 1992, p. 26).

Em 1966, os direitos de segunda dimensão foram disciplinados em um único documento, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A norma foi adotada pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. O pacto abrangeu um rol mais extenso de direitos que os elencados na Declaração Universal. O Brasil promulgou esse diploma, através do Decreto nº 591, em 1992.

Para Meireles, os direitos sociais podem ser defi nidos como:

[....] aqueles direitos advindos com a função de compensar as desigualdades sociais e econômicas surgidas no seio de sociedade seja ela de uma forma em geral, seja em face de grupos específi cos; são direitos que têm por escopo garantir que a liberdade e a igualdade formais se convertam em reais, mediante o asseguramento das condições a tanto necessárias, permitindo que o homem possa exercitar por completo a sua per-sonalidade de acordo com o princípio da dignidade humana (2008, p. 88).

São normas jurídicas diferenciadas, visto que apresentam um poder normativo potencializado. E a força jurídica é tida como potencializada por se tratar de norma de hierarquia superior, tanto por ter status de norma constitucional quanto pela sua importância axiológica (conteúdo material do direito).

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O conteúdo das normas defi nidoras de direitos sociais privilegia a igualdade material, ao considerá-la condição essencial para o exercício pleno de outros direitos. Bonavides reforça essa ideia afi rmando que os direitos sociais “nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula” (2007, p. 564).

Os direitos fundamentais sociais possuem um conteúdo essencial de direitos inerentes à dignidade da pessoa humana (fundamentalidade material), tendo-a como núcleo intangível. A dignidade da pessoa humana – expressamente positivada na Constituição brasileira – é tida como fundamentalidade e fundamentação dos direitos sociais, pois a mesma representa o valor maior vinculante de toda ordem jurídica.

Ainda que inicialmente tenham sido criados com o intuito de limitar o poder e arbítrio estatal, os direitos fundamentais sociais funcionam também nas relações entre particulares, pois diante de sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, não podem os indivíduos, para atender os seus interesses, violar os preceitos constitucionais em suas relações.

O Brasil acompanhou a tendência mundial em relação ao prestígio dado aos direitos fundamentais sociais após a Segunda Guerra. A Constituição Federal de 1988 simboliza essa novidade, reservando espaço especial para cuidar do direito à saúde e dos demais direitos sociais.

1.1 DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição cidadã elencou a saúde em seu artigo 6º, no título reservado aos direitos e garantias fundamentais, reconhecendo-o como um direito estendido a todos. A este direito é assegurado todas as benesses dos direitos fundamentais, tais como: apli-cabilidade direta e imediata (artigo 5º, § 1º, CF); normatividade potencializada (norma de hierarquia superior); irrevogabilidade (cláusula pétrea).

O direito fundamental à saúde tem intrínseca relação com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. O texto constitucional fez previsão expressa de que o sujeito passivo dessa relação de consagração do direito à saúde não é somente o Estado. Ao particular, de forma facultativa, pode ser requerida a efetivação deste direito.

Ainda que o artigo 196 da CF assegure que o direito à saúde é dever do Estado, o artigo 199 do texto constitucional franqueou à iniciativa privada a assistência à saúde de forma complementar. O § 1º deste artigo atesta a complementaridade do serviço: “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio [....]”.

Desta forma, os planos de saúde poderão contratar com os particulares para prestá-los a assistência que a Constituição Federal previu. Entretanto, conforme dita o

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§1º retromencionado, a atuação dos entes privados deverá ser regida pelos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (artigo 7º, Lei 8.080/90), dentre os quais estão: universalidade do acesso a serviços; integralidade de atendimento; preservação da autonomia das pessoas; igualdade da assistência à saúde.

Ainda que deva seguir os princípios determinados pelo SUS, as empresas de plano de saúde não vêm respeitando os direitos dos consumidores, causando-lhes danos e sofrendo a interferência do Poder Judiciário para que sejam afastadas as práticas abusivas e desleais e inseridas medidas que apliquem a proteção do direito fundamental à saúde.

No intuito de melhor atender aos interesses dos consumidores de plano e seguro de saúde, é instituída a Lei 9.656/98, que regulamenta os contratos-padrão. A legislação estabelece três modalidades de planos: plano-referência, plano-mínimo e plano-ampliado. Como o estudo da lei não é objeto do artigo, restringe-se a sua menção.

2 INCIDÊNCIA DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO CONTRATO NOS PLANOS PRIVADOS DE SAÚDE

Com a chegada do Estado Social, a Constituição (documento que estabelece limitação do poder estatal) e o Código Civil (institui as regras relacionadas de direito privado) não puderam mais ser dissociados, sendo constituído o direito civil constitucional.

O direito civil é fundado em princípios constitucionais e só terá tutela do Estado se houver obediência constitucional. As relações jurídicas privadas são pautadas em três princípios constitucionais: dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial.

Sob a infl uência do texto constitucional de 1988, esse ramo do direito privado insere a pessoa humana nas relações entre particulares, os valores existenciais se sobrepõem aos valores patrimoniais enraizados no Código Civil de 1916. O indivíduo está no centro do sistema jurídico, os demais ramos do direito gravitam em torno da tutela da pessoa humana.

As relações privadas não são mais relações de direitos opostos, onde as partes contratantes divergem nos interesses presentes no objeto do contrato. Pelo contrário, os interesses presentes nesta relação são de cooperação. Em qualquer relação privada as partes devem ser iguais na forma e substância. Não pode haver desequilíbrio entre as partes. Esses três princípios fundamentam as relações civis como um todo.

Diante da presença desses princípios, vê-se que as pessoas não estão livres para pactuarem da forma que desejam sem que se respeitem os limites ético-jurídicos. Com isso, não deve prosperar a ideia de que o princípio do pacta sunt servanda (o que está no contrato deve ser cumprido) seja absoluto, pois diante do caso concreto, devem ser observadas as cláusulas contratuais e só poderão ser cumpridas aquelas que não violarem os direitos fundamentais.

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Os contratos não podem atender somente os interesses das partes, devem cumprir também sua função social. A função social do contrato tem como escopo “promover a realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre con-tratantes” (GONÇALVES, 2004, p. 4). A função social presente na legislação civil decorre da função social da propriedade presente no artigo 5º, inciso XXIII da CF de 1988.

O Código Civil de 2002 faz previsão expressa acerca da função social. O artigo 4211, anuncia que a liberdade de contratar deverá se dar em razão e nos limites da função social. Vê-se que o legislador não restringiu o contrato como veículo guiador das partes contratantes. Assim como não o fez no artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor2, que prevê “[....] nas relações de consumo se atenderá ao princípio da harmonização dos interesses dos participantes, sempre com base na boa-fé e no equilí-brio nas relações entre consumidores e fornecedores” (RODRIGUES, 2004, p. 60).

Os contratos de plano de saúde também devem atender à função social. É necessário que haja uma adequada ponderação na aplicação dos princípios regentes dos contratos: autonomia da vontade, boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual. As partes presentes no contrato devem ser livres para pactuarem da melhor forma, é nesse sentido que Gonçalves aduz que a autonomia privada, elemento nuclear do contrato:

[....] se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado (2004, p. 20).

Entretanto, sofrendo a incidência da aplicação dos direitos fundamentais, este princípio é relativizado, não estando os particulares livres para expressar sua vontade con-tratual através de cláusulas que não respeitem o exposto na Constituição. O artigo 4223 do Código Civil traz a boa-fé como princípio de presença obrigatória na execução e conclusão dos contratos. O princípio da boa-fé “é um conceito ético, moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade, pautando sua atitude pelos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de ninguém prejudicar” (RODRIGUES, 2004, p. 61).

1 Art. 421, CC: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.2 Art. 4º, CDC: A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das

necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995).

3 Art. 422, CC: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

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As cláusulas contratuais que violem a boa-fé são consideradas abusivas, conforme preceitua o artigo 51, IV do CDC4. Entende-se por cláusula abusiva, “aquela notoriamente desfavorável à parte mais fraca na relação contratual, que, no caso de nossa análise, é o consumidor, aliás, por expressa defi nição do art. 4º, nº I, do CDC” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 142). As cláusulas abusivas são consideradas inválidas.

As empresas de saúde privada, visando sempre o lucro excessivo, não prestam como deveriam o serviço contratado, além de restringir o consumidor de uma série de necessidades que em determinadas situações se fariam imprescindíveis para a manutenção da saúde. Entretanto, tendo em vista a falência do sistema público de saúde, o cidadão se submete às cláusulas contratuais que são impostas pela assistência privada.

Nos contratos de adesão, como é o caso dos contratos de plano privado de saúde, é comum o desequilíbrio entre as partes contratantes. As cláusulas presentes na avença, em sua maioria são abusivas ou desleais, por exemplo, quando o consumidor não pode realizar determinada intervenção cirúrgica tendo em vista que seu plano possui restrição de cobertura. O contratante se submete ao exposto no contrato, aos períodos de carência, aos reajustes exorbitantes, ao acréscimo pela faixa etária do paciente, à exclusão de enfermidades adquiridas antes da assinatura do contrato, enfi m, possibilita a vulnerabilidade do consumidor, encontrando evidente desequilíbrio nessa relação contratual.

Quanto ao poder privado, de fato é manifesto que entre o particular e o plano de saúde há uma forte relação de poder estabelecida, não apenas de natureza econômica, mas também técnica. O que, todavia, não tem como conseqüência direta e necessária a afi rmação de que, neste caso há efi cácia direta em função desta relação de poder. O que se pode afi rmar é que haverá uma maior intensidade de intervenção do direito fundamental à saúde (MATEUS, 2008, p. 140).

O direito constitucional à saúde, ainda que prestado por particular, deverá ser regido pelo respeito à dignidade da pessoa humana e aos demais preceitos constitu-cionais. Dessa forma, não pode a empresa privada de plano de saúde visar somente o lucro do negócio jurídico estabelecido, ela deverá primar pela efetivação do direito fundamental que resguarda.

Conforme visto, a aplicação dos direitos fundamentais não existe somente em uma relação vertical, onde o Estado encontra-se em patamar superior ao indivíduo. Os particulares também estão vinculados a efetivação destes direitos.

4 Art. 51, CDC: São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

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3 RECONHECIMENTO DA EFICÁCIA HORIZONTAL DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE

Os valores presentes nos direitos fundamentais estão projetados igualmente nas relações entre particulares. Atualmente, os entes privados devem se guiar pelos pre-ceitos presentes na Constituição, em especial aqueles de conteúdo fundamental como o direito à saúde, pois os particulares também podem gerar gravame aos indivíduos, violando direitos fundamentais, e se exceder na sua atuação assim como o Estado.

Os direitos fundamentais se apresentam como valores básicos que irradiam para todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, não servindo somente como instrumento de limitação do poder estatal. Na sua dimensão objetiva, estes são base do ordenamento jurídico do Estado brasileiro. Essa dimensão objetiva apresentada pelos direitos funda-mentais faz com que a interpretação jurídica seja realizada de acordo com a Constituição, “os direitos fundamentais passam a ocupar uma função estratégica de fundamentação e de legitimação do sistema normativo como um todo” (MARMELSTEIN, 2008, p. 328).

A efi cácia horizontal dos direitos fundamentais foi inicialmente aplicada em 1958, no caso Lüth, pelo Tribunal Constitucional Alemão. Em síntese, o caso tratava de um boicote realizado pelo Erich Lüth (presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo) contra o fi lme Unsterbliche Geliebte, do diretor Veit Harlan, apoiador do nazismo. Lüth defendeu a não distribuição do fi lme de Harlan. A produtora e distribuidora do fi lme ingressaram com ação judicial a fi m de impedir o boicote, alegando prejuízos em decorrência do pedido de Lüth. A Corte Estadual deferiu o pleito em favor da produtora e distribuidora do fi lme, condenando Lüth a reparação dos danos causados a estas, conforme previa o artigo 826 do Código Civil da Alemanha. O presidente do Clube de Imprensa recorreu da decisão, invocando a liberdade de expressão, pois não poderia ser proibido de se manifestar acerca de um assunto. O TFC decidiu a favor de Lüth, considerando o boicote legítimo, já que decorria do exercício legítimo de um direito fundamental. O Tribunal confrontou esse entendimento com a ideia de que as cláusulas gerais do direito privado deveriam ser interpretadas de acordo com os valores previstos na Constituição (MARMELSTEIN, 2008).

A efi cácia dos direitos fundamentais no âmbito privado pode ser conceituada como a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, os princípios de direito privado quando contrapostos com preceitos fundamentais relevantes não devem pros-perar. Os direitos fundamentais têm efi cácia irradiante, estabelecendo uma ordem de valores para que estes sejam aplicados no confronto entre particulares.

Os direitos fundamentais têm como fi m originário proteger o indivíduo da inter-ferência do Estado. Entretanto, estes direitos são dirigidos também à sociedade como um todo, estando os indivíduos vinculados a buscarem pela sua efetivação. Conforme visto no caso alemão, no confronto direto entre princípios de direito privado e os direi-tos fundamentais, por sua íntima relação com a dignidade da pessoa humana, este deve se sobrepor àquele. Vale ressaltar que a solução para o entrave se dará à luz do caso concreto, sendo adotada a técnica da ponderação de valores.

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No que importa aos direitos fundamentais, em situações onde os indivíduos se encontram em desigualdade, ao poder privado devem ser aplicadas as mesmas obrigações sujeitas ao Estado. Em relação aos planos de saúde, o desequilíbrio entre as partes presentes no contrato é evidente, por isso “nas relações estabelecidas entre os desiguais, aquele que detém o poderio econômico estaria vinculado diretamente a direitos fundamentais” (MATEUS, 2008, p. 125).

Quando o Poder Judiciário afasta as cláusulas presentes nos contratos de planos de saúde tidas como abusivas ou desleais e aplica medida que assegure melhor o direito do consumidor, demonstra que as relações privadas e a autonomia que as orienta não são absolutas. Os princípios contratuais são relativizados em respeito ao exposto na Constituição e nas legislações que sofreram infl uência dos valores fundamentais, con-forme visto anteriormente.

4 APRECIAÇÃO JURISPRUDENCIAL

Na maioria das vezes, o Poder Judiciário tem se manifestado a favor do con-sumidor. O Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, na Apelação Cível de nº 2007.0003.4156-6/1, em votação unânime decidiu:

EMENTA. APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E LEI DOS PLANOS E SEGUROS DE SAÚDE. MIOCARDIOPATIA DILATADA. CONTRATO QUE PREVÊ A EXCLUSÃO DO USO DE PRÓTESES E ÓRTESES DE QUALQUER NATUREZA EM CIRURGIA. RESTRIÇÃO ILEGÍTIMA. ART. 10, V, DA LEI 9.656/98 EM COLISÃO COM O ART. 51, IV, DA LEI 8.078/90. O RESTABELECIMENTO DA SAÚDE DO BENEFICIÁRIO DEVE SER A FINALIDADE PRIMORDIAL DO PLANO DE SAÚDE CONTRATADO, DE FORMA QUE A CLÁUSULA CONTRATUAL E O DISPOSTIVO LEGAL QUE VEDAM A UTILIZAÇÃO DE MATERIAL NECESSÁRIO NA INTERVENÇÃO CIRÚRGICA VIOLAM ESSA FINALIDADE E PREJUDICAM O BEM ESTAR DO CONTRATANTE. APELO CONHECIDO, MAS NÃO PROVIDO.

A parte apelada, contratante durante vinte anos do plano de saúde, ora ape-

lante, pleiteou por via administrativa o fornecimento de instrumentos necessários para a realização de cirurgia a qual se fazia imprescindível diante de sua enfer-midade. Entretanto, sob o argumento de ausência de cobertura, o plano de saúde negou-se a fornecer o que fora pedido.

Recorrendo à via judicial, a consumidora teve seu pedido julgado procedente. O Magistrado a quo, alegou que, por força do artigo 51, IV, § 1º, II, do CDC, “as cláusulas serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.

O plano de saúde então apresentou recurso de apelação, onde sustentava ser em virtude da cláusula nona do contrato celebrado entre as partes, que faz previsão

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das condições não cobertas pelo contrato, expressamente se encontram os instrumentos necessários para a cirurgia da contratante. Afi rmou ainda que “não se pode atribuir ao ente particular obrigações que originariamente são do Estado ou do próprio benefi ciário”. O recurso foi julgado improcedente, sendo mantida a decisão de primeiro grau e o ente privado compelido a fornecer as próteses necessárias.

Diante do exposto, vê-se que, ainda que não tenha previsão expressa no contrato estabelecido entre as partes, quando necessário e visando o benefício do consumidor e o respeito aos preceitos constitucionais, as cláusulas contratuais que não obedeçam a princípios basilares serão afastadas e aplicar-se-á a melhor medida que assegure ao consumidor a efetivação dos seus direitos. No que tange aos planos de saúde, busca-se pela consagração do direito à saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo procurou tratar da problemática da efetivação do direito fun-damental social à saúde nas relações entre particulares, a fi m de discutir a possibilidade da supremacia dos direitos fundamentais com sua dimensão objetiva serem aplicados nos contratos de plano de saúde.

Os valores constitucionais regem os demais ramos do direito, auxiliando-os na resolução de confl itos entre os particulares. Entretanto, em relação aos direitos fun-damentais, sabe-se que, anteriormente, o particular era apenas detentor dos direitos e nunca sujeito passivo. A realidade mudou, está cada vez mais aceita a possibilidade de inserção destes direitos nas relações contratuais privadas.

No que tange ao direito à saúde, viu-se que este trata de garantia fundamental com estreita relação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Ainda que a relação pactuada entre o plano de saúde e o indivíduo submeta-se a regime jurídico de direito privado, este sofre infl uência de regime jurídico de direito público devido ao objeto avençado tratar-se de norma de hierarquia superior.

Reconhece-se que os direitos fundamentais geram efeitos nas relações privadas, que sofreram incidência dos preceitos constitucionais. Como os direitos fundamentais correspondem às normas supremas do texto constitucional, as relações privadas devem buscar sempre a efetivação destes direitos, especialmente o direito à saúde. Contudo, deve-se considerar que, ainda que não estejam hierarquicamente em um patamar mais elevado, os princípios de direito privado que regem as relações contratuais devem ser observados, de forma equilibrada e ponderada, juntamente com os princípios de direi-tos presentes na Constituição Federal.

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REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 8 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2 ed. V. 3. São Paulo: Saraiva, 2004.

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

MATEUS, Cibele Gralha. Direitos fundamentais sociais e relações privadas: o caso do direito à saúde na Constituição brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

MEIRELES, Ana Cristina Costa. A efi cácia dos direitos sociais. Salvador: Editora Podivm, 2008.

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 30 ed. V. 3. São Paulo: Saraiva, 2004.

FUNDAMENTAL RIGHT TO HEALTH

Abstract: Fundamental rights have emerged to defend the citizen. With the evolution of society, private companies are increasingly present in the daily business activities, previously restricted to the state. Given this trend, it is observed that relations in the private sector may be unbalanced to the point to violate constitutional rights. The problem focused here concerns the application of the fundamental right to health in the relationship between individuals in order to ascertain whether the underlying order set out in the Constitution should apply to public and private entities, although private relations are governed by private law regime.

Keywords: Fundamental right to health. Principle of good faith. Brazilian constitution.

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Danos a um Projeto de Vida?

Denise Sá Vieira CarráMestre em Direito pela UFC. Professora da [email protected]

Bruno Leonardo Câmara CarráMestre em Direito pela UFC. Juiz Federal no Ceará[email protected]

Sumário: 1. Dignidade Humana e Responsabilidade Civil. 2. A Vontade como Bem Indenizável: O Projeto de Vida. 3. Projeto de Vida e Dano Moral. Referências.

Resumo: A valorização dos direitos humanos contribuiu, sob muitos aspectos, para a reformulação da própria ideia de Responsabilidade Civil ao longo do Século XX. Lesões pessoais que difi cilmente seriam passíveis de repercussão jurídica no passado atualmente gozam de plena proteção legal, e até mesmo possuem tratamento ideológico superior aos chamados danos materiais. Dentro dessa contextura é que se analisa a existência dos danos a um projeto de vida. Em sua estrutura conceitual encontra-se a defesa da liberdade do ser humano sob um enfoque que supera a noção estática de liberdade tal como defi nido tradicionalmente nos Códigos ocidentais. Se bem que a eventual falta de nomeação explícita por parte da legislação em vigor não possa ser oponível como impedimento ao reconhecimento desses danos, sua compreensão sistemática é medida que se impõe para dar-lhes adequada fundamentação epistemológica.

Palavras-chave: responsabilidade civil. Danos à pessoa. Liberdade e vontade. Exis-tencialismo. Projeto de vida. Reparação. Danos morais.

1 DIGNIDADE HUMANA E RESPONSABILIDADE CIVIL

Em sua conhecida tese sobre a “era dos direitos”, que constitui o marco epistemológico no qual estamos situados, Norberto Bobbio defende o caráter materialista histórico das conquistas jurídicas dos últimos séculos, as quais tiveram começo já algum tempo atrás. O autor peninsular deixa claro que, desde as lutas revolucionárias que culminaram com a criação do Estado Moderno, houve uma mudança irreversível na dinâmica das relações de poder, que passaram a ser projetadas não mais sob a

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perspectiva do soberano e sim do cidadão (BOBBIO, 1996. pp. 15-25). Naturalmente, o Estado Moderno já não existe mais como estrutura ideológica. Sem embargo, sua tradição libertária foi não apenas guardada como transmitida para os séculos vindouros que, talvez por terem vivenciado convulsões de intensidade ainda maior, souberam conservá-la e principalmente ampliá-la sob nova dinâmica.

No âmbito do Direito Civil, para além dos campos como o Direito de Família e naturalmente dos Direitos da personalidade, esse complexo cenário importou também a reformulação da própria ideia de Responsabilidade Civil, pois, como assinala Patrice Jourdan, a valorização da pessoa humana conduziu os cidadãos a demandar cada vez mais do Estado-providência (JOURDAN, 2003. p 10).

Somado a esse contexto sociopolítico, ou mesmo até infl uenciando-o, destaca Jorge Mario Galdós que a tríplice revolução (digital, informática e genética) acontecida ao longo de todo o século XX terminou por, a despeito de todos os imensos benefícios que possibilitou, impactar negativamente sob muitos outros aspectos sob a pessoa hu-mana, dando origem a uma “convergência inescindible de nuevas causas de dañosidad, nuevas técnicas y procedimientos cientifi cos para identifi car otros daños, nuevos bienes jurídicos tutelados, todo lo que amplifi ca el elenco de las garantías y derechos que tute-lan al ‘individuo espiritual’” (GALDÓS, 2005 p. 160).

Atualmente, com efeito, eventos que um século atrás difi cilmente seriam passíveis de repercussão jurídica hoje não apenas gozam de pronta proteção, como possuem, ade-mais, dimensão valorativa nitidamente superior aos chamados danos materiais, até al-gum tempo atrás os únicos indenizáveis pelos ordenamentos jurídicos de tradição liberal1. Num simples e feliz arremate, Jorge Mosset Iturraspe diz que a Responsabilidade Civil, que foi construída a partir da noção da culpa, hoje se qualifi ca a partir do dano, que por sua vez refl ete uma intenção não encoberta de privilegiar a vítima no lugar do agressor (ITURRASPE, 2004, p. 37).

Por isso mesmo, ainda de acordo com outros autores, as principais diretrizes da Responsabilidade Civil nos dias presentes podem ser observadas nas seguintes orientações cardiais: a) a extensão dos danos reparáveis; b) a objetivação da responsabilidade civil; c) a prevenção dos danos; d) o aumento da relação de fatores de atribuição; e) a ampliação da legitimidade passiva e ativa em demandas indenizatórias; f) a diminuição para a vítima dos ônus probatórios; g) a socialização gradual dos riscos por meio do seguro obrigatório e da seguridade social (GUTIÉRREZ, 1997, p. 18).

No que diz respeito à proteção da dignidade humana, tal expansão pôde ser sentida, por exemplo, na consolidação daqueles que poderíamos chamar genericamente danos morais, aplicados na França desde o acórdão da Corte de Cassação datado de 25 de junho de 1833. Seja a partir de sua manifestação inicial como danos decorrentes

1 Sobre o assunto cf.: BAPTISTA, 2005; GUTIÉRREZ, 1997; TUNC, 1989.

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de um abalo psicológico, seja na sua atual concepção objetiva de qualquer agressão a algum direito da personalidade, dão inegável testemunho da mudança ideológica sofrida pelas sisudas regras da Responsabilidade Civil.

Mais recentemente, os danos decorrentes do abuso de direito, do dano por ricochete, do dano de ordem genética (ou ao patrimônio genético), do dano estético (quer se reconheça ser ele autônomo ou não ao dano moral), o dano por perda de uma chance e tantos outros representam, igualmente, exemplos cotidianos da crescente expansão de bens juridicamente protegidos tendo como base no respeito à pessoa humana (JOURDAN, 2003. p. 121).

É, assim, possível afi rmar com segurança que toda construção legislativa, doutrinária e jurisprudencial acontecida no Século passado em relação aos danos orientou-se no sentido de contextualizar as defi nições clássicas com as novéis experiências de uma sociedade de massas, o que, por outro lado, também ocasionou em certos casos algum exagero, até mesmo ao limite do rompimento de certos padrões morais2.

O exagero, inegável em muitos casos, não pode servir, entretanto, de argumento para sustentar qualquer postura ideológica que defenda uma estagnação, ou mesmo o retrocesso da reconfi guração da Responsabilidade Civil em vista a uma mais efi caz e plena defesa das vítimas.

Se existe o problema da “propagação irracional” dos danos, como também observam Guildo Alpa e Mario Bessone, ele deverá ser resolvido reconhecendo-se que o progresso tecnológico e humanitário vivenciado dentro do século XX produziu uma modifi cação irreversível no âmbito da reparação civil de modo que se bem nem todo dano possa ser indenizável, pelo menos e cada vez mais os danos e dentre eles os danos sofridos diretamente pelos seres humanos tornam-se bens juridicamente tutelados (ALPA; BESSONE, 2001. p. 5). Para a solução racional e razoável do assunto, portanto, deve medrar uma necessária harmonização entre as normas de responsabilização civil e esses novos bens jurídicos que continuam a surgir, cada vez mais e mais, em uma sociedade cada vez mais dinâmica.

2 Destaca-se, especifi camente, o caso da jurisprudência que se formou na respeitadíssima Corte de Cassação francesa a partir do chamado “Arrêt Perruche” (Court de Cassation, Assemblée Plénière, 17/11/2000), quando se aceitou a possibilidade de responsabilização civil por erro médico consub-stanciado na ausência de informação aos pais de um nascituro que era portador de rubéola. Sendo a interrupção da gravidez admitida na França e havendo o casal Perruche expressamente afi rmado que desejaria interromper a gravidez nessas circunstâncias, a Corte de Cassação entendeu que deveriam ser indenizados pelos “prejuízos resultantes dessa defi ciência”, em função de não terem podido evitar o nascimento da criança. A questão, pela sua intrínseca dimensão moral, ensejou ainda uma série de re-percussões legislativas que foram parar na Corte Européia dos Direitos do Homem. Para uma leitura do caso Perruche sob o enfoque multidisciplinar, consultar o “dossier Perruche”. Disponível em: <http://www.senat.fr/evenement/dossier_perruche.html> Acesso em: 25 jan. 2010).

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Daí porque assistir razão a Carlos Alberto Ghersi quando afi rma que a noção de dano juridicamente reparável vai sofrendo uma ampliação diária, sobretudo por força da realidade socioeconômica e que, em tempos atuais, seria necessária uma revisão das regras da responsabilidade civil para melhor adaptá-la ao momento histórico que vivenciamos, onde tais normas jurídicas precisariam estar fundamentadas em sérias projeções de análise econômica sobre a produção, circulação e comercialização de bens e serviços para não deixar frustradas vítimas em um mundo globalizado (GHERSI, 1996, pp. 29-37).

Dentro dessa complexa contextura (contexto) é que se mostra interessante analisar o predicado dano a um projeto de vida. Em sua estrutura conceitual encontra-se a defesa da liberdade do ser humano, conceito esse que sempre mereceu a atenção dos ordenamentos jurídicos desde o Código Napoleão e que, particularmente no Direito brasileiro, sempre teve sua privação direta indenizável tanto pelo Código Civil de 1916 (art. 1550), embora se discutisse em um primeiro momento a natureza jurídica da reparação, como pelo vigente Código Civil de 2002 (art. 954), agora já sob o manto também do dano moral.

Nada obstante, a ideia de “projeto de vida” e as consequências psicossomáticas que nele são predicadas superam em muito ao estático conceito de privação de liberdade tal como defi nido tradicionalmente nos Códigos ocidentais.

2 A VONTADE COMO BEM INDENIZÁVEL: O PROJETO DE VIDA

Não se pode dissociar liberdade e valorização da pessoa humana, pois traduzem conceitos siameses, onde o menosprezo de um invariavelmente refl ete no do outro. Embora costume-se dizer que a vida é o principal dos direitos, pois todos os demais (direitos) começam por ela, não se deve correr o risco de considerar a liberdade como algo a ela inferior. É a liberdade, ou simplesmente a aptidão para ser livre, o traço fundamental que defi ne o ser humano de toda e qualquer espécie animada. Vida, sem liberdade, já não é vida humana.

É pela valorização da liberdade que se chega, fi nalmente, ao conceito de dignidade da pessoa humana, ou, simplesmente, dignidade do homem. De todos os animais, apenas o homem possui liberdade e, ainda mais importante, a consciência dela, que o faz sofrer pela sua privação, quando ela vem a ser atacada, ou de algum modo diminuída.

Um expressivo e pioneiro exemplo da defesa política do homem e de sua liberdade pode ser encontrado na Oratio de Hominis Dignitate de 1486. Aí, Giovanni Pico della Mirandola já postulava o irrestrito respeito à liberdade, na medida em que a plenitude do ser humano somente poderia ser atingida com seu irrestrito respeito. Por outro lado, o ultraje à plenitude do ser humano consistiria verdadeira estultice na medida em que privaria a admiração de todas as facetas desse “nosso camaleão”, que em tudo poderia transformar-se se lhe fossem garantidas condições sufi cientes para seu fl orescimento e desenvolvimento (PICO DELLA MIRANDOLA, 1989. p. 52).

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As conexões entre direito e liberdade puderam ser sentidas com maior intensidade neste último século, onde, na correta explicação de Jorge Mosset Iturraspe, a constituição do dano à pessoa apareceu como resposta a toda uma corrente personalista ou existencialista do Direito que, como “um novo renascimento volta a colocar a pessoa humana como eixo ou centro das preocupações jurídicas” (ITURRASPE, 2004, p. 281).

Com esse cenário por pano de fundo é que Carlos Fernánez Sessarego vem a desenvolver sua tese sobre os danos ao projeto de vida. Diz esse respeitado professor peruano que as pessoas não podem simplesmente ser tratadas sob um aspecto puramente estático no que se relaciona ao exercício de sua liberdade. O caráter intrinsecamente libertário do ser humano impõe, em última análise, que a liberdade seja levada em consideração pelo ordenamento jurídico como valor e bem passível de ser apreciável a título, também, de reparação civil em face de seu caráter dinâmico:

Pues bien, después de lo dicho cabe preguntarse una vez más si existe un “proyecto de vida”. Por nuestra parte, desde antiguo, estamos convencidos de ello porque, fundamentalmente, vivenciamos nuestra libertad y sabemos de nuestros proyectos, de lo que hemos elegido realizar en la vida para otorgarle sentido, y de la valoración vocacional que ello signifi ca. Es decir, somos conscientes de que existe una razón para vivir. Lo que no es poco, si apreciamos en todo su valor y signifi cación el precioso don de la vida.

Después de lo hasta aquí expresado es lícito preguntarse si es posible causar un daño que frustre nada menos que el proyecto de vida de la persona. De ello estamos plenamente convencidos, pero lo que pretendemos intentar con estas refl exiones es contribuir en la tarea de precisar los alcances y la importancia de una protección plena e integral del ser humano en todo lo que él signifi ca y representa (SESSAREGO, 1996, p. 19).

Ao proteger a liberdade dos seres humanos, o ordenamento jurídico estaria protegendo e resguardando o direito que cada ser humano tem de realizar seu pessoal “projeto de vida”, aí excluídas, claro, as condutas ou projetos tendentes a ofender a moral, os bons costumes, a ordem pública, ou, simplesmente, venha prejudicar aos demais.

A explicação faz-se necessária para que não se venha a autorizar a conclusão no sentido de que qualquer projeto de vida seja permitido pelo ordenamento jurídico e, assim, possa ser constituído como um prejuízo indenizável, porque há, como sabido, uma confl uência entre os conceitos de liberdade e responsabilidade, de modo que a garantia que se outorga para seu uso pressupõe, como não poderia ser diferente, um agir responsável. Como outros conceitos dialéticos (e talvez mais que todos) na defi nição mesma de liberdade estão incorporados elementares de responsabilidade e respeito à liberdade alheia, quer seja individual ou coletiva.

Com efeito, trata-se de conhecida lição proferida por Sartre:

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Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de por o homem na posse do que ele é e de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens (SARTRE, 1987, p. 6).

Logo, a liberdade que é juridicamente protegida é a liberdade individual em harmonia ou sintonia com o outro. Em possíveis termos heideggardianos, poder-se-ia dizer que a liberdade protegida pelo ordenamento jurídico é a liberdade-com, que refl ete a legítima formação do caráter humano em companhia com seus semelhantes (“das dasein”) e não a liberdade-contra que se dirige, justamente, em reprimir ou privar a liberdade existencial dos demais indivíduos.

Não há dúvidas, como já referido, que os ordenamentos jurídicos de cunho ocidental vêm outorgando ao valor liberdade um zelo especial. Não se trata de defender a liberdade atrelada questões puramente econômicas, como a liberdade contratual, que, paradoxalmente, até experimenta uma diminuição em virtude de toda uma legislação imbuída de profundo viés público, como, por exemplo, a que regulamenta a proteção e a defesa dos consumidores e que pode chegar ao extremo de determinar situações de contratação obrigatória.

A incidência da dimensão existencial do Direito sobre as regras da responsa-bilidade civil dão um enfoque destinado, portanto, a toda uma projeção inercial que se tinha da liberdade humana. Não é a simples privação da liberdade que se almeja indenizar ou reparar; não é tão somente a dor psicológica sentida pelo sentimento de impotência resultante de tal privação, mas sim a justa reprimenda que deve ser imposta a quem frustra ou impede de se permitir a realização de um projeto humano.

Repousam aí as premissas fundamentais da obra de Carlos Fernández Sessa-rego, para quem os danos à pessoa são divididos em apenas duas categorias: a) danos psicossomáticos; b) danos a um projeto de vida.

Na primeira categoria de danos incluem-se toda e qualquer lesão sofrida pelo soma, isto é o corpo em seu sentido estrito, nela incluída a “psiquê”. A junção dos danos estritamente físicos com os danos à “psiquê” é justifi cada porque o homem constitui uma unidade incindível, de forma que “os danos somáticos repercutem, necessariamente e em alguma medida na psique e os danos psíquicos, por sua vez, geram repercussão somática” (SESSAREGO, 1996, p. 18).

Naturalmente, o que estamos acostumados a chamar de dano moral também é visto como uma forma de dano psicossomático, na obra desse autor peruano. Por conseguinte, todas as novas espécies de danos, cujos conceitos estão intrinsecamente atrelados a uma repercussão lesiva sobre o corpo do indivíduo, igualmente passam a ser classifi cados como danos psicossomáticos, tais como o dano biológico, o dano estético, o dano à saúde, o dano genético etc.

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Por outro lado, a liberdade ontológica, em virtude de seu especial papel para o desenvolvimento dos seres humanos, desafi a reparação autônoma, acaso violada. É esse dano à liberdade fenomênica, ou em uma palavra, à vontade que se procura reconhecer e sancionar sob a noção de dano a um projeto de vida. A vontade deve ser livre, plenamente livre, para satisfazer um projeto de vida, ou, sendo o caso, mesmo não o querer realizado, mas sempre deverá ser uma decisão livre, o que já é algo bem limitado em razão das atávicas correlações biogenéticas do ser humano, como já ensinava, dentre outros fi lósofos modernos, Luis Recasén Siches3.

A diferença entre o dano psicossomático e o dano ao projeto de vida surge quando é colocado em relevo o elemento vontade. Constituir-se o dano psicossomático como um dano que deixa marcas, quer no corpo, quer na alma (moral), mas não atrapalha necessariamente que a vítima possa, mercê de suas forças volitivas, prosseguir sua jornada existencial e vir a realizar-se enquanto ser humano. O dano ao projeto de vida, ao contrário, pressupõe essa privação de ordem substancialmente volitiva, no qual é constituído. Uma vez mais, as palavras de Carlos Sessarego:

es oportuno señalar que si bien el ser humano es una ‘unidad psicosomática constituida y sustentada en su libertad’, se suele confundir, frecuentemente, la libertad, que es el ser mismo del hombre, con la unidad psicosomática en la que ella está implantada o con un particular aspecto o función de la misma. Esta confusión es más notoria tratándose de la voluntad, que es una de las vertientes psíquicas, sin percatarse que ésta se halla, como la unidad psicosomática en su conjunto, al servicio del ‘yo’, del ser mismo, de su decisión libre. La envoltura psicosomática es un medio o instrumento del cual se vale la libertad para su realización como proyecto (SESSAREGO, 1996. p. 44).

Em suporte às ideias de Carlos Sessarego, não seria equivocado tomar emprestado, dentre outros fi lósofos, o respeitado pensamento de Hannah Arendt que afi rmava: “pensar y recordar, hemos dicho, es la manera humana de echar raíces, de ocupar el propio lugar en el mundo, al que todos llegamos como extraños. Lo que solemos llamar persona o personalidad, como algo distinto de un simple ser humano o de un nadie, brota efectivamente del enraizamiento que se da en este proceso de pensamiento.” (ARENDT, 2007, p. 115).

Deste modo, pretende-se esclarecer que para a construção do eu de cada indivíduo, é necessário que haja toda uma zona formada tanto por projeções (futuro) como por recordações (passado), que dialeticamente se miscigenam até formar o presente, ou seja, o eu que efetivamente existe e que, então, torna-se objeto de ação.

3 “Vida signifi ca la forzosidad de realizar el proyecto de existencia que cada cual es. Este proyecto en que consiste el yo, no es una idea o plan ideado por el hombre y libremente elegido. Es anterior a todas las ideas que su inteligencia forma, a todas las decisiones de su voluntad. Más aún, de ordinario no tenemos de él sino un vago conocimiento, y, sin embargo, es nuestro auténtico ser, nuestro destino. Nuestra voluntad es libre para realizar o no ese proyecto vital que últimamente somos, pero no puede corregirlo, cambiarlo, prescindir de él o sustituirlo” (SICHES, 2008, pp. 252-253).

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Os elementos de índole puramente somática são, na opinião de Hannah Arendt, inclusive dispensáveis para a defi nição da personalidade do ser humano, na medida em que:

[.…] la cualidad de ser persona, como distinta del simple ser humano, no figura entre las cuali-dades, dones, talentos o defectos individuales con que nacen los hombres, y de los que pueden usar o abusar. La cualidad personal de un individuo es precisamente su cualidad ‘moral’, si no tomamos la palabra en su sentido etimológico ni en su sentido convencional, sino en el de la filosofía moral (ARENDT, 2007, p. 98).

Por decorrência, não se trata de indenizar, a título de dano a um projeto de vida qualquer frustração ocasional, como a decorrente de um atraso, ou um dissabor qualquer. Estas continuam a ser indenizadas pelas formas próprias, as quais, no nosso Direito posi-tivo, têm previsão explícita nas regras dos artigos 186, 953 e 954 do Código Civil.

Por outro lado, apenas situações de extrema gravidade é que teriam guarida sob título de dano a um projeto de vida, que possui sempre confi guração de dano futuro, por signifi car a perda ou a diminuição da vontade enquanto elemento anímico que nos orienta à realização de um projeto egológico4. A perda da vontade, ou sua obliteração em condições juridicamente indenizáveis, como demonstram as regras ordinárias da experiência, não se faz por atos de menor dimensão. Um contratempo, é certo, sempre terá impacto sobre a vontade humana, mas a existência é formada também por tais dissabores e angústias. O ser humano, em princípio, naturalmente não se rende a eles e, por não se render, como no mito grego de Prometeu, é que inventou a aventura humana.

A eventual falta de nomeação explícita por parte da quase totalidade dos orde-namentos jurídicos, outrossim, não pode ser entendida como impedimento oponível ao seu reconhecimento, já que, embora seja certo que não houve ainda a ruptura do marco teórico que propugna que os direitos somente são indenizáveis quando juridica-mente protegidos (danos juridicamente apreciáveis), não é menos certo que a descrição “numerus clausus” das sanções reparatórias, da qual a mais autorizada representante foi a hermética escola da Exegese, deu lugar defi nitivamente, ainda no Século passado, a um sistema topográfi co e maleável de atribuição de responsabilidades civis tendo por base o elemento principiológico que anima a criação do Direito.

No caso brasileiro, pode-se afi rmar, com relativa facilidade, que o dano ao pro-jeto de vida, na medida em que representa uma agressão concreta à liberdade de um ser humano, deva ser indenizado com fundamento no artigo 186 do Código Civil de 2002 e ainda do próprio texto constitucional de 1988, ou seja, na condição de dano moral.

4 Ou seja, um projeto relativo a própria conduta humana: “Pero hay otros objetos culturales cuyo substrato es la propia acción o conducta humana; ahora se trata de la corporización de un sentido que es el sentido del comportamiento humano […] Llamamos a éstos objetos egológicos, porque siendo conducta el substrato de ellos, la conducta es inseparable del ego actuante: en el substrato de estos objetos hay un ego como ego” (COSSIO, 2007, p. 64).

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Tal conclusão, entretanto, longe de pacifi car a questão, na verdade faz é apro-fundá-la. Isso porque, em sua construção original, Carlos Sessarego recusa-se a admitir que os danos ao projeto de vida consistam em espécie ou modalidade de dano moral, compelindo a um exame sistemático desses danos como medida necessária para dar-lhes adequada fundamentação epistemológica, em cujo teste, efetivamente, poder-se-á descobrir suas verdadeiras raízes ontológicas.

3 PROJETO DE VIDA E DANO MORAL

Desde 1998 a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem articulado pronunciamentos onde é explícita a referência a essa modalidade de danos, os quais, por conseguinte, mereceram efetiva reparação jurídica nos termos do Pacto de São José da Costa Rica.

O dano a um projeto de vida é defi nido pela Corte como um atentado contra a reali-zação pessoal do indivíduo afetado, considerando sua vocação, atitudes, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitam fi xar, de forma razoável, determinadas expectativas e alcançá-las. Enfi m, como restou precisado no chamado caso “Maria Elena Loayza Tamayo contra o Estado peruano”, uma redução objetiva da liberdade fenomênica5.

Partindo-se, assim, da premissa de que o dano ao projeto de vida tem como fundamento uma agressão séria à liberdade fenomênica dos indivíduos, é dizer, sua vontade pode-se, portanto, sistematizá-lo em três subespécies distintas: a) danos que frustram parcialmente um projeto de vida; b) danos que se manifestam em um retar-damento na realização de um projeto de vida; c) danos que determinam a frustração completa de um projeto de vida.

Há, portanto, que saber dimensioná-las concretamente. Não se pode exigir, de um lado, que apenas casos extremos, como os que se relacionam a própria morte da vítima, permitam a incidência de tais danos. Por outro lado, não é também qualquer desmotivação passageira que irá autorizar sua aplicação.

5 Nesse sentido, consultem-se as seguintes decisões, todas da Corte Interamericana de Direitos do Homem: caso “Maria Elena Loayza Tamayo Vs. Peru”, de 27 nov. 1998; caso de “Los Niños de La Calle Vs. Guatemala”; de 26 maio 2001; caso de “Cantoral Benavides Vs. Peru”, de 3 dez. 2001; Caso “del Caracazo Vs. Venezuela”, de 29 ago. 2002; Caso “Maritza Urrutia Vs. Guatemala”, de 27 nov. 2003; caso “Molina Theissen Vs. Guatemala”, de 03 jul. 2004; Caso de “los Hermanos Gómez Paquiyauri Vs. Perú”, de 08 jul. 2004; Caso “Carpio Nicolle y otros Vs. Guatemala”, de 22 nov. 2004; Caso de “las Hermanas Serrano Cruz Vs. El Salvador”, 1º mar. 2005; Caso “Gutiérrez Soler vs. Colombia”, de 12 set. 2005; Caso “del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú”, de 25 nov. 2006; Caso de “la Masacre de La Rochela Vs. Colombia”, de 11 mar. 2007; Caso “Cantoral Huamaní y García Santa Cruz vs. Perú”, de 10 jul. 2007; Caso “Valle Jaramillo y otros vs. Colombia”, 27 nov. 2008.

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Assim, o defendido dano ao projeto de vida, sem embargo de seu reconhecimento como espécie própria de agressão a um bem jurídico reconhecido pelo ordenamento jurídico, não pode ser compreendido como um elemento autônomo para fi ns de fi xação da indenização civil. As propostas lançadas por Carlos Fernández Sessarego, a despeito de toda sua originalidade, nesse ponto dão provas de um corte epistemológico arbitrário que, com as mais respeitosas vênias, não guarda simetria com a realidade existencial na qual ele se inspira.

A liberdade que é violada e que dá ensejo à frustração ao projeto de vida é obvia-mente um elemento somático, como não poderia deixar de ser. Não há que se dizer que o soma seja um instrumento da liberdade, como que estabelecendo uma gradação artifi cial entre eles, senão que a liberdade ela própria também está indiscutivelmente associada ao soma. Por outro lado, ainda que projetada para o futuro, a frustração aos sonhos e anseios de uma pessoa difi cilmente poderá ser concebida sem qualquer repercussão psicossomática.

O próprio autor peruano afi rma que todo dano a um projeto de vida tem como antecedente um dano psicossomático. Parece, assim, ser invencível a contradição que vai se seguir quando, logo após, é sustentada uma alteridade categórica entre ambos os conceitos (dano psicossomático e dano a um projeto de vida).

É preciso ter-se em conta que não apenas a frustração de um projeto de vida mas igualmente (talvez até mesmo em maior medida) que a própria realização dele em função do exercício mais pleno da liberdade acarreta ao indivíduo profunda carga de stress emocional que repercute invariavelmente sobre seu corpo, ou sua saúde. Realizar ou não realizar um projeto de vida, qualquer que seja a razão, legítima ou ilegítima para tanto, sempre apresentará algum grau de repercussão sobre o corpo do indivíduo, o que afasta qualquer possibilidade de tratar a ambos separadamente.

Encarreguemos, portanto, a ninguém menos que Eric Fromm o arremate dessa nossa afi rmação:

¿Puede haber idea más simple? Únicamente la forma de vida más superfi cial, más enajenada, puede no exigir decisiones conscientes, pero sí provoca multitud de síntomas neuróticos y psicosomáticos, como las úlceras y la hipertensión, que son manifestación de confl ictos inconscientes. Quien no haya perdido por completo la capacidad de sentir, quien no se haya convertido en un robot, no podrá evitar el afrontar decisiones dolorosas (FROMM, 2007, p. 93).

Perceba-se que não se está, de forma alguma, pugnando pela falta de sentido ou que se advoga o caráter prescindível da noção de dano a um projeto de vida. O dano à liberdade deve sim ser considerado como uma forma de dano a ser especial-mente considerado quando presentes as elementares que autorizam sua concreta con-fi guração. Nada obstante, e diferentemente da linha metodológica desenvolvida por Carlos Fernández Sessarego, não consideramos que as categorias dano a um projeto de vida e dano psicossomático suplantem a já clássica categoria dano moral, porquanto nela ainda existem peculiaridades que não apenas tornam reais os prejuízos imateriais decorrentes

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da frustração a um projeto de vida, como, inclusive, ajudam a divisar-lhe um sentido e um limite razoável.

Consideradas tais defi ciências epistemológicas da classifi cação proposta por Carlos Fernández Sessarego, a categorização dos danos encontrada na obra dos Mazeaud e Chabas pode representar uma solução cientifi camente mais adequada para a compreensão e sistematização do dano ao projeto de vida, o qual não deixaria de estar vinculado ao chamado prejuízo moral, dele não se apartando, porém, redimensionando-o.

Os consagrados autores franceses partem do pressuposto que a classifi cação dialógica entre dano material e dano moral, realmente não pode mais ser empregada em virtude do caráter absolutamente distinto (“tercius genus”) do chamado dano corporal (“dommage corporel”), que, por isso mesmo, passa a ter uma dimensão própria.

O dano corporal é defi nido como um meio-caminho entre o dano material e o dano moral, pois cuida de perdas que vão além da objetividade estrita que caracteriza o dano material por englobar justamente as ofensas à integridade física da pessoa, esse fi no material que, por infl uxo dos valores que dão forma ao que se denomina Direito oci-dental, merece superior atenção. Por outro lado, não se pode considerar como agressão puramente imaterial, vez que deixa seqüelas no mundo sensível.

Em sendo assim, o dano corporal trata das ofensas físicas à pessoa, traduzindo-se, principalmente, pela incapacidade temporária total e pela incapacidade permanente parcial (e algumas vezes pela incapacidade parcial temporária). Dentro dessa perspectiva são indenizáveis tanto os danos puramente físicos, como os incidentes pecuniários decorrentes dos ferimentos sofridos, ainda que ela não tenha profi ssão, ou tenha sofrido perda de seus rendimentos (MAZEAUD; MAZEAUD; MAZEAUD; CHABAS, 1998, p. 413).

Nisso o dano corporal se diferencia do dano estritamente material, que, inclusive, pode ter incidência mesmo diante de agressões contra a integridade corporal de alguém. É o caso, justamente, daquelas circunstâncias onde as lesões impostas à pessoa geram refl exos estritamente pecuniários, como exemplifi cam o pagamento dos honorários médicos e demais custas hospitalares, bem como a perda de renda propriamente dita em função de uma agressão corporal (MAZEAUD; MAZEAUD; MAZEAUD; CHABAS, 1998, p. 422).

Por isso, advogam esses renomados autores que as espécies de danos deveriam ter uma divisão tripartite e, assim, deveriam ser tratados por: a) danos materiais; b) danos corporais; c) danos morais. A propósito, para o Direito Francês, essa separação não é apenas doutrinária, uma vez que seu Código da Seguridade Social alude, pelo menos indiretamente, a prejuízos corporais (físicos) e morais, como pode ser visto da leitura de seu art.454-I.

Separado do dano corporal, que poderia ser conceituado como dano fi sicamente sensível, isto é, que tem repercussão estritamente física, o dano moral apresenta-se como lócus de incidência de todos os demais danos que afetam a existência anímica propria-mente dita, ainda que tenha projeções psicossomáticas. O elemento que serve de que

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é a origem. Se a consequência psicossomática está associada a fatores de perturbação de origem puramente emocional, devem ser indenizados como danos morais e não propriamente como danos corporais, salvo se as intercorrências danosas forem de tal expressão que também se projetem sobre o corpo, nele deixando marcas6.

Interessante destacar que, sob essa nova perspectiva, a noção de dano moral tor-na-se visivelmente mais ampla. Capaz de albergar situações antes havidas como simples desfrute, que não convinha à ideia de homem trabalhador, ou homem produtor (“homo fabris”) então em voga. Atualmente, portanto, existe uma perfeita consciência de que da gravi-dade de qualquer desrespeito, corporal ou espiritual, à integridade biológica dos seres humanos, bem como que “la apetencia respecto del goce de la vida, del estado de la salud, de la ‘alegría de vivir’ no son ya patrimonio de uma clase social o de grupos determinados, alcanza a todos los miembros de la comunidad” (ITURRASPE, 2004, p. 318).

Assim redimensionado o conceito de dano moral, torna-se possível, sem qualquer entrave reducionista, nele implantar a ideia de dano a um projeto de vida como uma de suas muitas espécies, como são o dano ao bem-estar, ou os de natureza afetiva concebi-dos há muito tempo pela jurisprudência francesa. Tal solução a nosso ver tem a dupla função. Em primeiro lugar, reafi rma a vontade humana, enquanto elemento formata-dor de sua liberdade fenomênica, como bem jurídico sedento de merecer o tratamento que lhe corresponde pelas regras da responsabilidade civil ao passo que, por outro lado, não procura distorcer a lógica dos institutos jurídicos em vigor, mas tão somente harmonizá-los com o mundo em que vivemos hoje.

6 Por tal razão é que a Corte de Cassação considera o dano sexual relacionado com a frigidez ou a impotência masculina como um caso de “préjudice d’agrément” (dano ao bem-estar) e como tal o in-deniza a título de dano moral e não propriamente dano corporal, salvo quando, como informado, com a disfunção orgânica é acompanhada alguma forma de lesão estética (Cf. MAZEAUD, MAZEAUD; MAZEAUD; CHABAS, 1998, p. 426).

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REFERÊNCIAS

ALPA, Guido; BESSONE, Mario. La Responsabilità Civile. 3. ed. atual. por Pietro Maria Putti. Milano: Giuffrè, 2001.

ARENDT, Hannah. Responsabilidad y Juicio. Trad. de Miguel Canel e Fina Birulés. Barcelona: Paidós, 2007.

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DAMAGES TO A LIFE PROJECT?

Abstract: The appreciation of the human rights has contributed, in many ways, for the reformulation of the very idea of torts over the twentieth century. Injuries or harms that could hardly have legal repercussions in the past, currently enjoy full legal protection, and even counting with some sort of superior ideological treatment than merely monetary losses. Within this texture, we approach the so-called “life project damage”. In its conceptual framework is the defense of human freedom from a perspective that goes far away from the static notion of freedom as defi ned traditionally in the western codes. Although the lack of an express appointment by the existing legislation cannot be invoked as a reason to not endorse the recognition of such damages, it still demands a systematical understanding in order to give these damages a proper epistemological perspective.

Keywords: Tort Law. Personal Injuries. Freedon and will. Existen-tialism. Life Project. Liability. Pain And Suffering.

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Cultura Livre: Colaboração e Compartilhamento

Edvaldo de Aguiar Portela MoitaAluno do curso de Direito da [email protected]

Sumário: Introdução; 1. A tentativa de adaptação de um modelo antigo sob perspectivas novas; 2. Um novo modelo de paradigma de produção: o modelo colabo-rativo; 3. O licenciamento público de obras intelectuais: o Creative Commons; 3.1 Alguns exemplos de modelos colaborativos. Conclusão. Referências.

Resumo: A propriedade intelectual não mais comporta os avanços sociais provocados pela internet e pela tecnologia digital, os quais são responsáveis pelo desenvolvimento de novas relações sociais. Como alternativa ao regime tradicional de direitos autorais, surgem movimentos que procuram uma maior socialização do conhecimento. Assim, a partir da obra Direito, tecnologia e cultura, do autor Ronaldo Lemos, é que o presente trabalho pretende apresentar alguns esboços desses movimentos, mormente o Creative Commons, defendendo os benefícios de uma mitigação da propriedade intelectual.

Palavras-chave: Informação. Direitos Autorais. Cultura Livre. Creative Commons.

INTRODUÇÃO

Uma das características marcantes do mundo atual é a velocidade com que as informações1 são transmitidas. A internet acabou por diminuir drasticamente as fron-teiras físicas entre os quatro cantos do mundo, não só propiciando a troca instantânea de informação, como desenvolvendo novos processos de relações sociais.

Conjuntamente, a tecnologia digital passou a desempenhar um papel funda-mental na convivência humana, em que, cada vez mais, sua utilização se apresenta

1 Aqui o termo ‘informação’ será tratado num sentido mais genérico, não só englobando um conjunto de conhecimentos reunidos sobre determinado assunto ou pessoa como, também, uma mensagem suscetível de ser tratada pelos meios informáticos ou o conteúdo dessa mensagem.

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como essencial para o funcionamento da sociedade como um todo. Pode-se notar isso desde a necessidade de uso pessoal de um computador até a utilização de bancos de dados no próprio aparato estatal.

No entanto, é necessário destacar alguns aspectos jurídicos desse contexto que passam a se inter-relacionar tanto com a tecnologia digital como com a internet, os quais se submetem ao regime de propriedade intelectual, lidando “com os direitos de propriedade das coisas intangíveis oriundas das inovações e criações da mente” (Ministério da Cultura, 2009, on-line), com o fi nco de proteger todas essas criações, dando aos seus titulares direitos econômicos sobre produtos e serviços que incorporam tais criações.

A propriedade intelectual pode ser subdividida em três ramos de proteção: propriedade industrial, cultivares e direito autoral. Sendo este “os direitos que o criador de obra intelectual exerce sobre suas criações” (Ministério da Cultura, 2009, on-line) conjuntamente com os direitos a ele conexos (os do artista, do produtor de fonogramas, dos organismos de radiodifusão), o presente trabalho se propõe a analisar, revelando a insufi ciência dos regimes normativos atuais, algumas linhas de fuga encontradas pela sociedade para se esgueirar dessa proteção jurídica, a qual não mais comporta os fatos sociais contemporâneos.

1 A TENTATIVA DE ADAPTAÇÃO DE UM MODELO ANTIGO DIANTE DE FATOS NOVOS

A partir do conceito de direito autoral explicitado acima, tem-se por obra intelectual a “criação do espírito, expressa por qualquer meio ou fi xada em qualquer suporte, tangível ou intangível” (Ministério da Cultura, 2009, on-line). No Brasil, a legislação, para fi ns de regulação, divide as obras intelectuais em programas de computador, cuja lei específi ca é a 9.609/98, e as literárias, artísticas e científi cas, protegidas pela lei 9.610/98.

Parte dos problemas enfrentados hoje com a violação dos direitos autorais, também conhecidos pelo termo copyright, remete ao contexto internacional dessa década de 90, a qual foi marcada pelo “boom” da expansão da rede mundial de computadores, o que viria a aumentar não somente a velocidade de envio de informações pelo mundo mas também a facilidade na cópia, modifi cação e transferência de conteúdos, demonstrando em parte a incapacidade dos dispositivos normativos de conter essa novidade. Como menciona Lemos (2005, p. 31-32):

Pregava-se, no começo da década de 1990, que era impossível regular a inter-net pelos meios jurídicos tradicionais. Naquele momento, tal crença permitiu o florescimento da rede de forma nunca sequer imaginada, fazendo com que, em 1995, ela fosse o meio mais livre e democrático, bem como pluralista, de circu-lação de informações. Ao longo de um curto período de tempo, tal crença cedeu lugar à sua antítese: a hipertrofia de formas tradicionais de proteção à proprie-dade intelectual como reação à suposta “anarquia” da internet. O que era livre passou a ser severamente controlado.

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O temor precoce por uma anarquia da rede acabou por resultar em medidas legislativas excessivamente restritivas, pendendo-se para a proteção dos direitos autorais sem que se sopesassem devidamente todas as outras problemáticas envolvidas, tais como o direito à informação e a liberdade de expressão. Um exemplo dessas medidas é o Digital Millenium Copyright Act (DMCA), a qual foi adotada pelos Estados Unidos em outubro de 1998 como uma tentativa de fortalecer os direitos autorais. O DMCA acabou por criminalizar a produção e difusão de tecnologias destinados a contornar o acesso a obras protegidas pelo copyright, inclusive os atos que tenham por fi nalidade burlar um eventual controle de acesso, ainda que não tenha havido violação dos direitos autorais em si, majorando, ainda, as penas por violação desses direitos na internet2 (Wikipédia, 2001, on-line).

No Brasil, as leis 9.609/98 e 9.610/98, criadas dentro mesmo contexto do DMCA, sobrelevando os direitos autorais, não conseguiram tratar de todas as questões envolvidas, deixando certos aspectos de lado. Aponta Lemos (2005, p. 96-97):

Como resultado disso, questões cruciais - como, por exemplo, a responsabilidade dos provedores de acesso à internet, a privacidade, os direitos de uso legítimos de informações na internet, a responsabilidade dos prestadores de serviços on-line, os incentivos à cultura nacional, a criação de um regime sufi cientemente diferenciado para a proteção do software que o torne distinto do modelo de proteção do direito autoral atualmente empregado e, sobretudo, a proteção aos bens intelectuais e ao patrimônio cultural local em face dos avanços e das pressões cada vez maiores exercidos no âmbito da globalização – fi caram de fora dos textos legais que naturalmente as abrigariam.

A adoção intempestiva dessas restrições contribuiu para a produção de um descompasso entre os textos normativos e a realidade que começaria a surgir, resultando num ambiente em que a informação passaria a se difundir, seja ao largo das regulamentações existentes, incluindo-se os mais diversos tipos de burla aos direitos autorais, como gravação de CDs e DVDs, cópias não autorizadas de livros, downloads de fi lmes, utilização de softwares piratas; seja através da criação de novos modelos de produção, emergindo aqui a ideia de uma cultura livre cujas fi nalidades são a colaboração e compartilhamento.

2 UM NOVO PARADIGMA DE PRODUÇÃO: O MODELO COLABORATIVO

É de se notar algumas alternativas buscadas pela sociedade ao modelo tradicional de propriedade intelectual. Vê-se aqui a insurgência de vários movimentos sociais para

2 Do original: It criminalizes production and dissemination of technology, devices, or services intended to circumvent measures [….] that control access to copyrighted works. It also criminalizes the act of cir-cumventing an access control, whether or not there is actual infringement of copyright itself. In addition, the DMCA heightens the penalties for copyright infringement on the Internet. (tradução livre do autor).

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além desse regime de direitos autorais. O projeto pioneiro se deu com a criação do Linux, um sistema operacional de computadores cuja inovação estava na abertura do seu código-fonte3, permitindo que qualquer usuário pudesse modifi car o seu conteúdo (Linux Online, 1994, online). Desse modo, inaugurou-se uma nova forma de produção de obras intelectuais, baseada na descentralização e cooperação aberta.

A criação do Linux deu início ao movimento do Software Livre (Free Software). Como se vê em Lemos (2005, p. 71-72):

O movimento do software livre é produto da subversão das tradicionais ideias [sic] de propriedade com relação aos “bens intelectuais”. Originou-se da insatisfação relativa ao regime tradicional de direito autoral quando aplicado ao software, na medida em que ele impedia as possibilidades de se atender a objetivos que fossem além daqueles puramente econômicos. Nesse sentido, o movimento do soft-ware livre teve como escopo transformar a proteção da propriedade intelectual para criar bens intelectuais abertos, amplamente acessíveis tanto com relação ao uso, quanto à possibilidade de inovação e modifi cação, não só do ponto de vista econômico, como também do ponto de vista cognitivo.

A novidade se voltava para a criação de programas de computadores a partir da cooperação de várias pessoas, independentemente da ideia de empresa ou mercado, sendo possível tanto o acesso ao código-fonte do software quanto a sua modifi cação e, inclusive, a criação de trabalhos derivados a partir dele. É daí que surge o copyleft como a prática de utilizar a lei de direitos autorais para eliminar as restrições à distribuição de cópias e versões modifi cadas de um trabalho para os outros e exigir que as mesmas liberdades sejam preservada nas versões modifi cadas4 (Wikipédia, 2001, online). O termo é utilizado em contraposição ao copyright, pois se utiliza deste para sua fundamentação. Assim, é a partir das prerrogativas de autor dadas pelo direito autoral que as obras regidas pelo copyleft têm permissão para serem livremente redistribuídas e copiadas, desde que sempre permaneçam com o caráter de livres.

A partir do movimento do software livre, uma esperança de livre acesso à informação estaria confi gurada, tendo-se uma nova perspectiva quanto aos moldes tradicionais da propriedade intelectual. Uma possibilidade de solução frente à incapacidade do direito para com a realidade, dando início a um novo paradigma de produção de obras intelectuais: um modelo colaborativo.

3 Pode-se entender como código-fonte um sistema de símbolos utilizados em um determinado programa de computador para que seja possível sua alteração.

4 Do original: Copyleft is a play on the word copyright to describe the practice of using copyright law to remove restrictions on distributing copies and modifi ed versions of a work for others and requiring that the same freedoms be preserved in modifi ed versions (tradução livre do autor).

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O objetivo dessa nova forma de organização das forças de produção, somente possível a partir da internet e da tecnologia digital, é a criação de obras intelectuais abertas, com fi nalidades, principalmente, cognitivas. A inovação está na possibilidade de se ter a participação de inúmeros autores numa mesma obra, sem ter a preocupação de quem será o seu detentor, já que ela estará disponível para todos. Assim, os autores são movidos por incentivos não econômicos, como divertimento, lazer, novas experiências, sensação de retribuição de conhecimento à sociedade. À medida que a colaboração de cada um aumenta, o projeto apresenta grandes chances de se tornar mais complexo e funcional. Inúmeras são as possibilidades de aplicação, não comportando somente softwares como também músicas, documentos, livros, vídeos. Todo e qualquer tipo de criação suscetível de ser digitalizada, daí em diante poderá ser regida pelo regime de copyleft.

3 UMA FRENTE DE LUTA POR UMA CULTURA LIVRE: O CREATIVE COMMONS

Sob o lema “É fácil quando você não precisa de intermediários”, o Creative Commons é uma instituição criada em 2001 nos Estados Unidos por Lawrence Lessig, com o objetivo de desenvolver licenças que visam à disponibilidade e ao compartilhamento de obras intelectuais (Creative Commons, 2001, on-line). Ao contrário dos direitos autorais, os quais funcionam a partir da máxima “todos os direitos reservados” (all rights reserved), as licenças Creative Commons remetem à ideia de “alguns direitos reservados” (some rights reserved).

À frente do modelo colaborativo, pode-se dizer que o Creative Commons con-stitui parte do movimento denominado cultura livre, cujo principal objetivo é a sociali-zação do conhecimento com a livre propagação da informação, aumentando, conse-quentemente, o domínio público. No entanto, as autorizações criadas pelo Creative Commons, as quais são caracterizadas pelo regime de copyleft, não inserem a obra no domínio público e sim criam um regime alternativo ao da propriedade intelectual tradi-cional, em que tanto se protege os direitos do autor como podem permitir o uso, modifi -cação e distribuição da sua obra, a depender da licença utilizada. Com isso, objetivam a propagação de conteúdos livres, facilitando o compartilhamento entre os seus usuários.

Nota-se que esse modelo apresenta todo um aparato jurídico criado fora dos organismos legiferantes convencionais, não havendo intervenção estatal em sua organização. Os agentes de transformação são os próprios indivíduos, os quais, utilizando-se dos direitos autorais, criam uma maneira diferente de utilizá-los. Demonstra Lemos (2005, p. 83):

Essas licenças criam uma alternativa ao direito da propriedade intelectual tradicional, fundada de baixo para cima, isto é, em vez de criadas por lei, elas se fundamentam no exercício das prerrogativas que cada indivíduo tem, como autor, de permitir o acesso às suas obras e a seus trabalhos, autorizando que outros possam utilizá-los e criar sobre eles.

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Desse modo, o Creative Commons cria licenças-modelo para que o autor possa escolher, conforme sua conveniência, uma dentre a gama de opções existentes. As autorizações podem ser concedidas para qualquer tipo de obra intelectual, desde um livro até a criação de um carro, como demonstrarão alguns exemplos no tópico 3.1.

Disponíveis em mais de quarenta jurisdições, essas licenças-modelo, cada vez mais, vão se espalhando pelo mundo, apresentando novas formas de criação de obras intelectuais. Sendo permitido ao autor que o mesmo escolha mais de uma licença e, até mesmo, combinar as existentes, da maneira que melhor lhe convir, elas podem ser condicionadas a alguns termos dentre outros, sendo os principais:

Atribuição (Attribution) (abreviatura: by)Sendo a menos restritiva, o autor autoriza a livre distribuição, exibição, execução e, inclusive, a criação de obras derivadas, desde que sempre sejam atribuídos os devidos créditos ao autor original.

Vedados Usos Comerciais (Non-Commercial) (abreviatura: nc)Através dessa licença, o autor autoriza a livre distribuição, exibição, execução e, inclusive, a criação de obras derivadas, desde que seja para fi ns não comerciais.

Não a obras derivadas (No Derivative Works) (abreviatura: nd) O autor autoriza a livre distribuição, exibição e execução da obra, mas veda a criação de qualquer obra derivada.

Compartilhamento pela mesma licença (Share Alike) (abreviatura: sa) Através dessa licença, o autor autoriza a livre distribuição, exibição, execução e, inclusive, a criação de obras derivadas, desde que seja para fi ns não comerciais.

No Brasil, a adaptação desses termos e licenças é feita em parceria pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, com o apoio do Ministério da Cultura. Citam-se algumas criadas nesse país, com propósitos mais específi cos, por exemplo, a GNU General Public License (CC-GPL) e GNU Lesser General Public License (CC-LGPL), as quais são adaptações das licenças da Free Software Foundation para o contexto do Creative Commons. Ambas dão ao programa de computador os direitos básicos do software livre, quais sejam a liberdade de ser executado para qualquer propósito, estudado, adaptado, redistribuído, modifi cado (Creative Commons, 2001, online). A diferença é que na CC-GPL o programa deve continuar sendo distribuído sob os mesmos termos da licença, enquanto que na CC-LGPL o programa, em algumas circunstâncias poderá ser distribuído sob outros termos.

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Um marco para a utilização do Creative Commons no Brasil foi a Campus Party, um evento ocorrido entre os dias 25 e 31 de janeiro em São Paulo. Mais precisamente no dia 29, Lawrence Lessig e Ronaldo Lemos lançaram a versão 3.0 dessas licenças, adaptando-as ainda mais ao contexto brasileiro. As novidades fi cam por conta da reedição das cláusulas relativas aos direitos morais e do rol de defi nições das licenças, de modo a tornar mais claro e preciso o seu âmbito de atuação, diminuindo as possibilidades de ambiguidade e interpretações adversas (Creative Commons, 2001, on-line).

3.1 ALGUNS EXEMPLOS DE MODELOS COLABORATIVOS

Destacam-se as inúmeras possibilidades de aplicação das licenças Creative Commons, por exemplo, livros, noticiários, músicas, blogs, enciclopédias, carros. Sempre com o fi nco de aumentar os conteúdos de acesso livre, a fl uidez da informação contribui não somente para o avanço técnico-científi co como, também, para a demo-cratização dos canais de comunicação, consequentemente, proporcionando uma maior possibilidade de efetivação da democracia.

Dentre os grandes projetos engajados no modelo colaborativo, pode-se citar a Wikipédia, uma enciclopédia online cujos autores são seus próprios usuários. Podendo ser editada por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, a Wikipédia está disponível em 268 idiomas ou dialetos, contando com mais de 14 milhões de artigos (Wikipédia, 2001, on-line). Tem seu conteúdo totalmente livre para o acesso, o que permite sua cópia e distribuição para qualquer um que desejar. Cada leitor poderá se tornar um colaborador da enciclopédia, o que acaba por potencializar o projeto, atribuindo-lhe números que difi cilmente um projeto regido pelos meios de produção normal chegaria. É o que se vê no Quadro 1, comparando a Wikipédia com outras duas maiores enciclopédias do mundo:

Quadro 1 (Fonte: Wikipédia, 2001, online)

WIKIPÉDIA BRITANNICA ENCARTAVerbetes 7,5 milhões (anglófona) 28 mil 28 milArtigos 3 milhões (anglófona) 120 mil 45 milFundação 15 de Janeiro de 2001 1768, (versão on-line em 2001) 1993Idiomas 268 (idiomas e dialetos) 1 (inglês) 8 (com limitações)Acesso Ilimitado, gratuito Ilimitado, pago Versões On-line e DVD Impressa e on-line CD-ROM e on-line (edição em alemão)Revisão Instantânea (on-line). Anual. Editores especializados Internautas, especialistas ou não nos assuntos

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É necessário, no entanto, notar que esse modelo adotado pela Wikipédia também traz alguns pontos negativos, tais como a possibilidade de algum usuário não especializado no assunto criar um conteúdo de maneira imprecisa. Entretanto a Nature, uma renomada revista científi ca inglesa, em uma pesquisa feita, demonstrou que enquanto a média de erros encontrados por itens na Wikipédia teria uma média de quatro, a de itens on-line da Britannica teria três, o que resultaria num empate técnico (Nature.com, 1995, on-line). Ademais, numa realidade como a brasileira, difi cilmente poderia se estabelecer a veracidade das informações produzidas a partir dos modelos provindos do mercado convencional, visto que sempre há por trás uma força de interesses políticos e econômicos.

Uma iniciativa bastante inovadora, no Brasil, é o projeto Fiat Mio, iniciado pela empresa Fiat. Sob o slogan “Um carro para chamar de seu”, a ideia é criar um carro colaborativo, todo projetado a partir das licenças Creative Commons. Assim, todos terão acesso ao conteúdo do projeto, podendo utilizá-lo e modifi cá-lo, inclusive as empresas concorrentes dos ramos de carro. Qualquer pessoa poderá ser participante, seja dando novas ideias ou tomando parte da montagem técnica, bastando apenas entrar no sítio eletrônico do projeto (Fiat Mio, 2009, on-line). O intuito é promover um carro de acordo com a necessidade dos consumidores, possibilitando, assim, uma maior integração entre empresa e cliente.

Vê-se, ainda, a quantidade crescente de livros que passam a ser disponíveis ao público, por meio do Creative Commons, permitindo que seus conteúdos sejam baixados gratuitamente pela internet, utilizados e modifi cados. A título ilustrativo, menciona-se a obra Direito, Tecnologia e Cultura, do autor Ronaldo Lemos, obra licenciada pela combinação das condições de atribuição, vedados usos comerciais e compartilhamento pela mesma licença (by-nc-sa). Sendo tomada por texto base, é que o presente trabalho a utiliza para criar um texto derivado. Destarte, não é preciso pedir autorização ao autor original, visto que a permissão já é automaticamente concedida quando se recorre ao Creative Commons. O livro poderá ser obtido gratuitamente na internet através do endereço eletrônico http://www.overmundo.com.br/banco/livro-direito-tecnologia-e-cultura-ronaldo-lemos.

O governo brasileiro também possui algumas iniciativas nesse campo. O Terra Crime, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Tecnologia da Informação da Casa Civil da Presidência da República, é um software livre pela licença CC-GPL. O programa funciona a partir do mapeamento de áreas com incidência criminal, a fi m de “embasar não só a repressão policial, mas a formulação e distribuição de programas sociais, rondas policiais e outras abordagens nas estratégias de combate à criminalidade” (Portal Software Livre, on-line).

Enfi m, são vários os exemplos que denotam a abrangência do uso do Creative Commons, demonstrando a crescente importância da criação de novos tratamentos à propriedade intelectual, implicando novas relações sociais e de produção.

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CONCLUSÃO

Com os avanços proporcionados pela internet e pela tecnologia digital, a sociedade contemporânea passou a se deparar com novas transformações, tanto no campo técnico-científi co como nas relações sociais. A propriedade intelectual, base da proteção dos direitos autorais, é o instrumento jurídico expressamente previsto na Constituição Federal brasileira (art. 5º, XXVII) que se interliga diretamente com esses avanços, mas que vem se mostrando incapaz de se adaptar aos novos contornos dessa sociedade, na medida em que protege de maneira demasiada os criadores das obras intelectuais em detrimento de outros valores igualmente importantes como a liberdade de expressão e o direito à informação; este é considerado até como direito fundamental de quarta geração, essencial ao funcionamento da democracia moderna.

Nas palavras de Hayek (apud Lemos, 2005, p. 75):

[....] seria interessante descobrir em que medida uma visão crítica realmente séria dos benefícios do direito autoral para a sociedade (...) teria a chance de ser discutida em uma sociedade na qual os canais de expressão encontram-se tão largamente controlados por pessoas que têm um interesse direto na situação existente [....]

Assim, a difi culdade numa nova estruturação dos direitos autorais pode ser superada a partir de iniciativas provindas diretamente da sociedade civil. É aqui onde se apresenta uma alternativa a esse regime: o Creative Commons. O licenciamento público de obras intelectuais dá uma nova visão de organização de produção dessas obras, privilegiando-se um modelo colaborativo, em que todos estão aptos a participar e usufruir igualmente desses bens.

A consequência imediata desse modelo é a democratização dos canais de comunicação, a qual se mostra, cada vez mais, necessária numa sociedade em que, praticamente, toda a informação é passada na medida da audiência que a mesma pode proporcionar.

Portanto, funcionando como uma maneira de engajamento coletivo, se cada indivíduo se propuser a fi car com apenas alguns direitos reservados, pode-se vislumbrar o nascimento de uma nova sociedade fundada em uma cultura livre, seja de verdades incontestes, seja da privatização do conhecimento; este que é um direito fundamental de todos.

No entanto, ressalta-se que esse novo tipo de licenciamento não pode ser considerado o estágio fi nal de evolução da sociedade no que tange à propriedade intelectual. O Creative Commons ainda é pautado num modelo de produção que abre espaço para o mercado capitalista, principalmente o de conteúdos, como Youtube, Google, MySpace, em que são criadas novas formas de remuneração exclusivas dessas empresas, por exemplo, através da publicidade e ao largo dos autores das obras. Cria-se, então, um conteúdo de livre acesso global, mas, em contrapartida, são fortalecidas as grandes corporações que acabam se tornando verdadeiros monopólios mercadológicos de conteúdos, gerando consequências ainda obscuras. Lembra Paiva (2008):

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Assim, em benefício da livre concorrência, mas em nome da “função social” da “propriedade intelectual”, o patrimônio imaterial dos povos deve ser regido por um marco jurídico focado no “acesso equitativo às expressões culturais” e na “abertura às culturas do mundo”. Nada disso me é estranho, pois na lógica mais primitiva do capitalismo toda produção só tem sentido se gerar lucro, de preferência lucro fácil, sempre em cima dos elos mais fracos da cadeia socioeconômica.

Uma visão mais crítica não pode permitir o vislumbre de uma socialização apenas do conhecimento, enquanto se mantêm os contornos de uma sociedade degradada econômica, ambiental e socialmente. Assim, não há que se encerrar uma luta por uma cultura livre apenas no desfazimento da propriedade intelectual enquanto a propriedade ainda subsiste para manter os mesmos moldes dessa sociedade atual.

“Informação e cultura não chegam aos seus paisEsse é um problema que vem desde os nossos ancestraisE o sistema vem manipulando desde sua infânciaA melhor maneira de governar o povoÉ mantê-lo na ignorância”

(Mv Bill, Tipo Racionais)

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___. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipedia>. Acesso em: 20 jan. 2010.

FREE CULTURE: COLLABORATION AND SHARING

Abstract: The intellectual property no longer holds the social advances brought by the internet and the digital technology, which are responsible for the development of new social relations. As an alternative to the traditional copyright, there are movements that seek a greater socialization of knowledge. Thus, from the book Direito, tecnologia e cultura, by Ronaldo Lemos, this study aims to outline the movements, especially the so-called Creative Commons, supporting the benefi ts of a mitigation of intellectual property.

Keywords: Information. Copyright. Free Culture. Creative Commons.

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A Constitucionalização da FunçãoSocial da Propriedade: Alteração na Dogmática do Direito Civil

Emanuel de Abreu PessoaMestre em Direito pela UFC. Professor da UFC e da [email protected]

Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Conclusão. Referências.

Resumo: Historicamente, inclusive com o beneplácito das bulas papais, o direito de propriedade foi se absolutizando, tornando-se verdadeiro mantra dos civilistas da Idade Contemporânea em face da concepção liberal burguesa de propriedade consagrada pela revolução francesa, que manteve e aprofundou a visão romana do ius utendi (usar), fruendi (gozar) e abutendi (abusar/dispor). Esse viés absoluto foi consignado nas Constituições e nos Códigos que se seguiram. A Constituição mexicana de 1917 rompe com a sistemática liberal em prol do estabelecimento de direitos sociais nas Constituições, e a Carta de Weimar, em 1919, referendou, ainda que de forma tímida, a função social da propriedade, que serve como conformação ao direito de propriedade. A orientação do Direito Civil modifi cou-se, tornando-se mais atento ao princípio da socialização dos bens, sujeitando-se suas regras a inovadores princípios constitucionais de cunho social. A evolução das gerações de direitos fundamentais implica em evolução do conceito jurídico de propriedade. A rigor, é mais adequado se falar em dimensões e não em gerações de direitos fundamentais, porque a geração posterior não elimina as conquistas da anterior. Assim, com o avanço do Direito através da mudança de dimensões, o Direito Civil se torna menos absoluto, moldando-se pelas condições sociais e não apenas por uma ideologia liberal, sendo o grande exemplo dessa mudança em sua dogmática a evolução da propriedade, a qual é instituto civilista por excelência.

Palavras-chave: Propriedade. Função social. Constituição.

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INTRODUÇÃO

Para Rousseau, a propriedade seria o mais sagrado de todos os direitos dos cidadãos, sobressaindo-se inclusive em relação à liberdade, como chegou a se manifes-tar por ocasião de seus escritos na Encyclopédie (cf. COMPARATO, 1997), o que se revela coerente com sua tese sobre o surgimento da sociedade. Abolida a propriedade, estariam abolidos todos os direitos civis, pois eles se fundam sobre ela. A autoridade pública passaria a ser ilegítima, e seu reconhecimento se daria apenas pela força.

Consoante a teoria da natureza humana, a propriedade decorreria mesmo da na-tureza humana, constituindo, nos dizeres de Laurent, “expressão e garantia da individua-lidade humana, pressuposto e instrumento do nosso desenvolvimento intelectual e moral” (MONTEIRO, 1981, p. 82/83). Essa concepção foi defendida pelos partidários do direito natural, sendo válidas as observações dos que informam que a propriedade privada quase nunca deixou de existir (RODRIGUES, 1991, p. 81), e inclusive nas comunidades primitivas havia um certo senso nesse sentido, mas de propriedade coletiva, familiar ou tribal, e, com seu progresso, vai surgindo a propriedade privada, como que uma sua condição. Até mesmo nos países ditos comunistas não foi possível abolir por completo a propriedade privada.

Esta concepção, de um direito natural e inerente ao ser humano, o de propriedade, foi corroborada pela Igreja Católica. Com reiteradas encíclicas, ela contribuiu para a visão de um direito de propriedade que transcende razões legais, para ter uma fundamen-tação metafísica e divina. A propriedade privada foi defendida ostensivamente pela Santa Sé como forma de minar o avanço das teses socialistas e comunistas. Com o triunfo do Liberalismo, especialmente por conta das Revoluções Francesa e Americana, prevaleceu a teoria da natureza humana, de modo que a propriedade é encarada como algo inerente ao homem, servindo de oposição às concepções econômicas marxistas.

A propriedade, conforme as ideias burguesas, assumiu contornos de direito absoluto, garantindo assim o predomínio do poder econômico sobre a sociedade. Resgataram-se e se fortaleceram os seus atributos, já verifi cados na Roma antiga, a saber, o ius utendi, fruendi e abutendi, respectivamente a faculdade de usar, colher os frutos e dispor da propriedade, cujos contornos recebidos a absolutizaram.

Conforme a teoria constitucional então em voga, as Cartas Magnas cuidaram de positivar em seus textos o direito de propriedade, de forma que em um mundo repleto de desigualdades sociais e com forte concentração da riqueza em uma pequena camada da população, era verdadeiramente o Estado liberal instrumento de manutenção da dominação dos pobres pelos ricos.

Apenas com a erupção dos descontentamentos populares, quer através de protestos, greves, ou mesmo guerras e revoluções, foram sendo conquistados os direitos sociais, e entre eles uma releitura do direito de propriedade, reconhecendo-se sua função social. Diante de como o instituto se modifi cou ao longo do tempo, tem-se que admitir que, pelo menos parcialmente, a violência é mesmo a parteira da História.

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Como verdadeira conquista popular, a função social da propriedade também veio a ser positivada nos Códigos e nas Constituições, consoante a técnica legislativa adotada pelos países de civil law, alterando sobremaneira um dos dogmas liberais civilistas, a propriedade absoluta. Embora muito se fale sobre o que ela venha a ser, não são ainda numerosas as obras no meio científi co brasileiro que discorrem sobre o surgimento e constitucionalização da função social da propriedade e sua importância como direito fundamental.

Assim é que nos propomos a proceder a tal análise, demonstrando como o direito de propriedade e sua função social são lados da mesma moeda, condições sine qua non entre si.

DESENVOLVIMENTO

Com a vitória da Revolução Francesa, consagrou-se o ideário liberal da burguesia, que, atinentemente à propriedade, pregava a liberdade de aquisição e fruição da mesma, sem a interferência do poder estatal ou a imposição de privilégios da nobreza, consubstanciando o adágio “laissez faire, laissez passer, le monde va de lui-même”. À luz da primeira geração dos direitos fundamentais, consagradores do Liberalismo, era o direito de propriedade absoluto, o que se reprisou no art. 179, n.º 22 da Constituição do Império do Brasil (1824).

Ainda seguindo a tradição liberal, a Constituição Republicana de 1891 traz em seu bojo similar disposição, especifi camente no art. 72, § 17. O Código Civil de 1916 ainda sofreu tais infl uxos, perceptíveis no art. 524. Em 1917 irrompe a Revolução Mexicana, que quebra a sistemática liberal então dominante, em prol do estabelecimento de direitos sociais nas Constituições. Entretanto, foi a Constituição de Weimar que consagrou, ainda que de forma tímida, a função social da propriedade, em seus arts. 153 e 155.

Carl Schmitt teceu algumas considerações acerca do tratamento dado pela Carta de Weimar à propriedade privada, informando ser o texto contraditório e obscuro, apontando o desejo nela existente de relativizar a propriedade privada, que assim teria sua garantia com signifi cado distinto daquele conferido à da liberdade pessoal (SCHMITT, 2003. p. 176-177). Mas aí há que se distinguir, pois a propriedade é tanto um direito natural que antecede o Estado quanto uma instituição legal. Todavia, a propriedade estaria garantida pelos dispositivos constitucionais dessa Carta, que se pretende a Lei Superior de um Estado burguês de Direito, que não existe sem a propriedade privada.

Estava-se, com a Constituição de Weimar, passando da primeira para a segunda geração de direitos fundamentais, isto é, dos direitos de liberdade (Freiheitsrechte) para os direitos sociais. Para Willis Santiago Guerra Filho, em vez de se falar em gerações de direitos, melhor se falar em dimensões, pois com o advento de uma nova ‘geração’, os direitos surgidos nas anteriores adquiririam nova conotação. Ele também afi rma

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que “o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental” (GUERRA FILHO, 2005. p. 47).

Sofrendo forte infl uência da Constituição de Weimar, a Carta brasileira de 1934 traz previsão indireta acerca da função social da propriedade em seu art 113, 17, ao dis-correr sobre a vedação de sua utilização contra o interesse social ou coletivo, esboçando a migração de uma concepção meramente liberal acerca do direito de propriedade para uma concepção social. Na Carta de 1937, a previsão, ainda não explícita, tornou-se mais tímida, fazendo-se mera referência à lei para o estabelecimento do conteúdo e limites da propriedade, além de disposição referente à desapropriação por necessidade ou uti-lidade pública, no art. 122, 14.

Consoante a concepção fascista, que confunde o Estado e a Sociedade, a pro-priedade deveria então ser utilizada conforme o planejamento estatal, isto é, nos moldes previstos pela estrutura estatal, o que, em última análise, signifi caria que a propriedade estaria condicionada à visão corporativista do Dulce.

Claro está que até a Carta de 1937 (esta, inclusive) não se havia que falar em função social da propriedade nos termos atualmente conhecidos. O que havia, sendo a Constituição de 1934 a mais contundente a respeito, era a obrigatoriedade de a propriedade não ser posta contra o interesse social, e não sob este. Isto implica em omissão do proprietário diante do interesse social, e não em ação. Possível, pois, que se entenda não haver ainda sido introduzida no ordenamento jurídico brasileiro a função social da propriedade, e, sim, limites negativos à mesma, situação que se modifi cou com a Constituição de 1946, que em seu art. 147 condiciona a propriedade ao bem-estar social.

A expressão ‘função social da propriedade’, porém, foi utilizada pela primeira vez no Brasil pelo Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/64). O professor Raimundo Bezerra Falcão também faz referência, após citar o próprio Estatuto da Terra, a outros exem-plos de positivação da função social da propriedade na legislação infraconstitucional, como no caso da Lei das Sociedades Anônimas (FALCÃO, 1981, p. 254).

Forçoso que concordemos com Darcy Bessone, segundo o qual “toda riqueza tem uma função social a desempenhar, e ao seu legítimo detentor corre o dever de conduzi-la conformemente à sua destinação – tal é o princípio da socialização dos bens” (1990, p. 18).

Finalmente, com a Constituição de 1967, positivou-se em âmbito constitucional a expressão ‘função social da propriedade’, em seu art. 157, III, a qual foi deslocada para o art. 160, por ocasião da Emenda Constitucional n.º 1/69, a função social da propriedade deslocou-se para o art. 160, III.

É de se ver que o Brasil se encontrava, desde 1964, sob um regime ditatorial que primou por um regime econômico excludente. Tal estado de coisas, aliado ao forte êxodo rural do período, motivado pelas taxas vertiginosas de crescimento industrial,

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acentuaram as distorções quanto à propriedade rural, assim como quanto à proprie-dade urbana, eis que inegáveis os números assombrosos de sem-terra1 e sem-teto.

Com a redemocratização, veio a Constituição de 1988, cujo conteúdo decorre de uma reação da sociedade civil ao período de privação de direitos que se verifi cou na ditadura, repetindo situação similar à percebida na Inglaterra do pós-guerra (2ª Guerra Mundial), quando, após longos sacrifícios, fi rmou-se uma concepção extremamente liberal de cidadania. Em seu bojo constam dispositivos acerca da função social da propriedade, a qual é consagrada no art. 5º, XXIII, que determina que a propriedade atenderá à sua função social, determinação erigida ao status de cláusula pétrea, não podendo ser suprimida por emenda constitucional (art. 60, §4º).

Não obstante, o inciso XXII traz disposição garantidora do direito à proprie-dade, revelando certa dicotomia do legislador constitucional originário. Partindo da lição de Luís Roberto Barroso, lembra Grace Tanajura que “o texto Constitucional foi redigido do particular para o geral e cada uma das comissões temáticas formadas por subcomissões em que se dividiu a Assembleia Constituinte elaborou um anteprojeto parcial, versando determinado tema” (2000. p. 27), de forma a que se desse a situação referida. A propósito, Magalhães Filho comenta que “é interessante observar que ape-sar da nossa Constituição mencionar a função social da propriedade, ela ainda continua a colocar a propriedade como objeto de direito individual”. (2002. p. 220).

A função social da propriedade não é regra em sentido estrito, mas princípio, tendo duas funções, a saber, servir como instrumental e objetivo específi co a ser al-cançado, sendo princípio constitucional impositivo (GRAU, 2002. p. 269). Aliás, talvez a mais importante distinção ora existente em Direito seja a existente entre princípios e regras, ambas espécies do gênero norma, sendo esta uma expressão do tipo ‘deve ser’.

De bom alvitre que a primeira das distinções a que façamos referência seja o elevado grau de abstração dos princípios, conquanto o mesmo se verifi que de forma reduzida nas regras. A aplicação dos princípios requer aplicação de outros ou de regras, concretizando-os, por serem mandados de otimização, enquanto as regras, por prescreverem condutas, são de fácil aplicabilidade.

Os princípios possuem papel de destaque na hierarquia do ordenamento jurídico, situando-se acima mesmo das regras, fundamentando-as, ao que Canotilho alude ser sua função normogenética (1999, p. 1087). Aqueles se referem a uma ideia de justiça, podendo existir implicitamente no ordenamento jurídico, e estes se reportam a mandamentos de teor funcional.

3 Não obstante o termo, a referência se faz a todos aqueles que retiram sua subsistência do campo, sem, contudo, serem proprietários por razões alheias à sua vontade pura e simples, e não aos integrantes do MST ou seu congênere MLST.

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A moderna técnica constitucional prima pela positivação dos princípios, estando em voga o modelo misto do pós-positivismo, superando a mera codifi cação do Direito e reconhecendo a importância e normatividade dos princípios. O paradigma atual se inspira em teoria de Justiça, reabilitando-se a razão prática e a argumentação jurídica, desenvolvendo-se uma nova hermenêutica constitucional e uma teoria dos direitos fun-damentais com base na dignidade humana. (cf. BARROSO, 2005, p. 4-5)

Ainda que não se cuidasse a propriedade de direito fundamental, essa é a posição à qual a mesma é alçada nos diversos textos constitucionais ao longo dos tempos, inclusive situada no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais da CF/88. Tal disposição é necessária em face da tendência de dominação e superiori-dade inerentes ao próprio Estado, consubstanciando, assim, garantia dos cidadãos em face do poder constituído.

Não obstante tivessem os antigos e os medievos noção do que fosse uma Consti-tuição, pensavam os mesmos nas regras superiores como imanentes da ordem divina ou natural, o que se encontra substrato no paradigma fi losófi co se basear na ideia de essência, a qual existiria por si só.

Com a modernidade, o paradigma se desloca para o indivíduo, para a pessoa humana, verdadeira visão antropocentrista. As Constituições modernas (e contemporâneas) são documentos políticos que partem da limitação à atuação do poder estatal, no sentido de proteger as pessoas.

Esses limites consubstanciam os ditos direitos fundamentais. Paulo Ricardo Schier diz que “qualquer forma de regulação estatal não comprometida com a pro-teção de um núcleo de direitos fundamentais (e, logo, com o ser humano e o cidadão), não comprometida com a ética da modernidade e sua racionalidade, não é, propria-mente, uma Constituição” (SCHIER, 2006. p. 24).

Não pode o legislador restringir os direitos e garantias fundamentais, salvo nos casos previstos pelo Constituinte originário, inexistindo cláusula geral de restrição dos direitos fundamentais, de maneira que estes não podem ser afastados, ainda que sob a alegação de ‘supremacia do interesse público’. Nesse sentido, leciona Schier que “os direitos fundamentais “privados” deve integrar a própria noção do que seja o interesse público e este somente se legitima na medida em que nele estejam presentes aqueles. A regra, portanto, é de que não se excluem, pois compõem uma unidade normativa e axiológica” (SCHIER, 2006, p. 27-28).

Em se admitindo a propriedade como um direito fundamental, quer por o ser efetivamente, quer por o dizerem as Constituições, aplica-se a ela o brocardo latino ius et obligatio correlata sunt, sendo a obrigação correspondente o exercício da propriedade em conformidade com a sua função social.

É, portanto, a função social da propriedade cláusula constitucional de conformação do direito de propriedade. Válida a lição de Eros Grau (GRAU, 2002, p. 269), segundo

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o qual os princípios consubstanciam em seu bojo também diretrizes, no que adota a terminologia de Dworkin, ou normas-objetivo, que possuem caráter constitucional de conformador, justifi cando-se a reivindicação de se realizarem políticas públicas.

O caráter conformador da função social da propriedade não se confunde com uma restrição ao direito de propriedade. Cabível a lição de Canotilho sobre normas legais restritivas e normas legais conformadoras: aquelas restringem posições que, a princípio, seriam incluídas no campo de proteção dos direitos fundamentais, enquanto que estas se prestariam a complementar, precisar, concretizar ou defi nir conteúdo de um direito fundamental a ser protegido (CANOTILHO, 1999, p. 1185).

Francisco Fernandez Segado menciona que “a função social do direito não funciona como mero limite externo frente ao exercício do mesmo, senão como parte integrante do exercício do próprio direito, o que, por outro lado, não é senão a lógica resultante da consideração da função social da propriedade como elemento estrutural da defi nição da propriedade” (1992, p. 451). De fato, a função social da propriedade implica na incorporação do interesse geral junto ao individual do proprietário (1992, p. 450).

A propósito, a terminologia função social da propriedade foi inaugurada por Au-guste Comte, no século XIX, sustentando que o positivismo vê uma função social da propriedade, que enobreceria a posse sem retirar a liberdade dela, tornando-a mais respeitada (cf. CHAVES, 2005. p. 32).

A Constituição de 1988 não faz menção à função social da propriedade unica-mente em seu art. 5º, mas também o faz ao tratar da ordem econômica, no art. 170, III, sendo também consubstanciada no art. 5º., XXIV e XXV. Quanto ao que vem a ser a função social da propriedade, a Constituição Federal faz uma dicotomia entre a propriedade urbana e rural, sendo bastante explicativos os artigos correspondentes:

Art. 182. (omissis)§2º A propriedade urbana cumpre sua função social quanto atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simulta-neamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:I – aproveitamento racional e adequado;II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Não obstante a caracterização da função social da propriedade urbana esteja, por determinação constitucional, diretamente ligada ao Plano Diretor, parece-nos correto afi rmar que ela se encontra precipuamente conectada às quatro funções básicas urbanísticas, a saber, a habitação, o trabalho, a recreação e a circulação. Desta forma, caso esteja a propriedade urbana sem se vincular a uma destas funções, não estaria ela a cumprir sua função social.

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Por conseguinte, assenta-se de grande importância os estudos de Direito Urbanís-tico, a permitirem uma exploração amiúde de tais funções urbanas e, assim, da própria função social da propriedade. Um dos grandes desafi os da atualidade é a reforma urbana, de modo a assistir razão a Dimas Macedo, quando afi rma que se quer que a política de uso do solo, em especial o urbano e o urbano criado, seja a que mais desperte atenção dos responsáveis pela atividade normativa e fi scalizatória do Estado, especialmente por ser a reforma urbana o maior dos desafi os a serem enfrentados pelas aglomerações metropolitanas (2003. p. 34).

Sob o ponto de vista do princípio federal, interessante se perceber que o plano diretor é de elaboração dos Municípios, no que a função social da propriedade urbana estaria intimamente conectada a tal ente federado, corroborando o entendimento daqueles que afi rmam que andou bem a Constituição em elevar as municipalidades a essa categoria. A respeito do tema, José Nilo de Castro pontua que cabe ao Município a competência constitucional para direcionar a função social específi ca da propriedade urbana (s.d., p. 234).

Quanto à propriedade rural, a Constituição Federal foi mais detalhista ao tratar de sua função social, redimensionando-a como direito de terceira geração, posto haver incluído entre seus requisitos preocupações de natureza ambiental.

Urge observar que a sociedade civil brasileira ainda não encampou completamente a ideia de função social da propriedade, como se percebe pelos terrenos não aproveitados em função da especulação imobiliária, da manutenção de latifúndios improdutivos e do contínuo desrespeito à legislação pertinente. Assim é que se faz necessário reconhecer que a constitucionalização da função social da propriedade, de per si, não tem o condão de realizá-la, faltando-lhe a aceitação de seus destinatários. Deve-se ter em mente que é o consentimento que permite à realidade normativa converter-se em realidade política, daí porque a função social da propriedade não deve ser vista como mera norma, mas posta em prática e aceita pela sociedade. A prudência constitucional, portanto, deve atentar para a efetividade que as normas constitucionais vão obter (VERDU, 2004, p. 6).

O princípio da força normativa da Constituição, que surge em contraponto à teoria de Lassale de que ela sucumbe aos fatores reais de poder, diz que se deve extrair dela a máxima efi cácia possível em cada problema concreto, que se deve viver na Constituição, considerada vivida “em grande parte, porque é sentida pelo povo e aparece como símbolo político que tem razão de ser em virtude de sua função integradora” (VERDU, 2004, p. 7). Do mesmo modo, deve-se ‘viver’ a propriedade em sua função social, sob pena de a mesma fi car reduzida a mero enunciado legal, vazia de resultados práticos, perpetuando o status quo de exclusão social.

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CONCLUSÃO

A propriedade existe anteriormente ao Estado e ao Direito posto, tendo surgido pela simples apropriação individual das coisas existentes na natureza, condicionando toda a convivência humana a partir de então.

Ao longo dos séculos, a propriedade dos meios de produção, com destaque para a terra, foi causa dos principais confl itos e mesmo das revoluções que a humanidade conheceu, quer de forma direta, quer de forma indireta.

Com as revoluções liberais, a burguesia assumiu efetivamente o poder político, utilizando-o para consolidar seu poder econômico. Assim é que os contornos absolu-tos da propriedade se tornaram parte central do Direito Civil, sendo inclusive posta a propriedade como direto fundamental, titularizado pelos cidadãos em face do Estado, fi cando este obrigado a respeitá-la da maneira mais ampla possível.

Os abusos do capitalismo liberal conduziram a diversas manifestações de revolta das camadas trabalhadoras e o surgimento de diversas ideias de cunho social, tais como o Marxismo, impondo modifi cações ao arcabouço fático-jurídico que se seguira à Rev-olução Francesa.

Desse modo, passou-se a cogitar de direitos sociais, também conhecidos como direitos de segunda geração, isto é, dimensão. Esses direitos são prestações do Estado em benefício dos cidadãos, e o surgimento dos mesmos levou a um redimensionamento dos direitos de primeira dimensão.

No caso da propriedade, a mesma passou a ser conformada pela sua função social, isto é, ela passou a integrar a essência da propriedade, transmutando-a. Dessa maneira, o direito fundamental à propriedade só é reconhecido como tal enquanto a propriedade atender à sua função social, sob pena de retrocesso a um sistema jurídico meramente liberal, individualista, contrariando a evolução do Direito.

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THE CONSTITUTION AND THE SOCIAL FUNCTIONOF PROPERTY IN CIVIL LAW

Abstract: Historically, the property right became absolute, a true mantra of the Contemporaneous Age´s Civil Law scholars in face of the burgeois liberal conception of property sacred by the French Revolution, which kept and deepened the Roman view of ius utendi (to use), fruendi (to perceive fruits) and abutendi (to alienate). This absolute viewpoint was also consigned in the Constitutions and Codes that followed. The 1917 Mexican Constitution drifts away from the liberal systematic in benefi t of establishing social rights in the Constitutions, and the 1919 Weimar Charter, asserted the social function of property, even in a discreet manner. The Civil Law orientation changed, becoming more attentive to the principle of socialization of goods, getting its rules under newfangled constitutional principles of social temper. The evolution of fundamental rights implies in changes of the juridical concept of property. Thus, with the advancement of Law through over the centuries, Civil Law becomes less absolute, molded by social conditions and not only by a liberal ideology.

Keywords: Property. Social function. Constitution.

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A Prescrição e a Decadência no Código Civil

Eneas Romero de VasconcelosMestre em Direito e Estado pela UnB. Professor da FA7. Promotor de Justiça no Ceará[email protected]

Sumário: Introdução. 1. Prescrição. 2. Decadência. Conclusão. Referências.

Resumo: O Código Civil de 2002 alterou a sistemática da prescrição e da decadência, notadamente pela adoção da teoria da prescrição da pretensão (Anspruch) e da dec-adência do direito potestativo, permitindo que se explique satisfatoriamente a distinção entre estes institutos, que muitas vezes baseava-se em seus efeitos, o que é importante tanto para o direito privado quanto para outros ramos do direito.

Palavras-chave: Direito Civil. Código Civil. Teoria do Direito. Prescrição e decadência.

INTRODUÇÃO

A Parte Geral do Código Civil introduziu algumas importantes mudanças, como a nova teoria dos fatos jurídicos e da prescrição e da decadência.

A importância da prescrição e da decadência decorre da amplitude de sua apli-cação e das consequências destes institutos.

O fi o condutor deste artigo será a mudança da teoria sobre o objeto da prescrição e da decadência, pois, de acordo com o atual Código Civil: prescreve a pretensão e decai o direito.

1 PRESCRIÇÃO

A prescrição surgiu, segundo Leal, no direito romano e “procede do vocábulo latino praescriptio, derivado do verbo praescribere, formado de prae e scribere com a signifi cação de escrever antes ou no comêço” (1982, p. 3).

No período formulário do direito romano, surgiram as ações temporárias. Se o prazo de duração da ação estivesse extinto, estabelecia-se a absolvição na parte preliminar da

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fórmula. Daí adveio o termo praescriptio, que indicava apenas o seu caráter introdutório, sem nenhuma vinculação com o conteúdo da relação, mas que pelo uso acabou a ser identifi cada com a própria extinção da ação pelo decurso do prazo de sua duração, conforme leciona Leal (1982, p. 4-5).

A prescrição aquisitiva teve origem semelhante e foi designada igualmente como praescriptio. Devido a esta identidade terminológica parte da doutrina estabeleceu con-ceito unitário à usucapião e à prescrição, identifi cados como prescrição aquisitiva e extintiva, respectivamente.

A teoria dualista, porém, prevaleceu, tendo em vista a profunda diferença entre a prescrição liberatória e a aquisitiva, notadamente pela aplicação muito mais restrita da usucapião, limitada ao direito das coisas como modo de aquisição do direito real de pro-priedade, o que não justifi caria a identifi cação de ambas como espécies do mesmo gênero.

Hodiernamente, o termo prescrição, não adjetivado, refere-se apenas à prescrição extintiva ou liberatória, como demonstram as modernas legislações, inclusive o Código Civil brasileiro de 1916, que, seguindo a orientação alemã, disciplinava a prescrição na Parte Geral (Livro III, dos fatos jurídicos, Título III, da prescrição, arts. 161-179) e a usu-capião na Parte Especial (Livro II, direito das coisas, Título II, da propriedade, arts. 550-553 e 618-619) e o atual Código Civil que lhe conferiu idêntico tratamento.

Se hoje é clara a distinção entre prescrição e usucapião, não se pode dizer o mesmo da prescrição e da decadência. Neste campo, ainda não se chegou a um con-senso e não há posição uniforme em diversos países.

Na Alemanha, o BGB distingue: Verjährung (prescrição, prevista na parte geral e sempre designada com o mesmo termo) e Ausschlussfrist, Prächlusivfrist e Gesetzliche Befris-tung, mas na França a controvérsia, inclusive terminológica (déchéance, délai prefi x, forclu-sion), é muito grande, segundo Nazo (1959, p. 16-18).

Na Itália, o Codice Civile de 1865 não estabeleceu critério que resolvesse a grande discussão, como reportam Passarelli, Pugliesi e Giorgi. Na vigência do Código Civil italiano de 1942 as dúvidas permaneceram.

No Brasil, a ausência de menção à decadência no Código Civil de 1916 trouxe enorme difi culdade para diferenciá-la da prescrição. Este problema era tanto mais grave porque o desentendimento não se reduzia a uma questão meramente terminológica, mas referia-se à própria caracterização do instituto e as suas consequências.

Para a adequada solução do problema é necessário que se compreenda o fundamento, o objeto e a disciplina da prescrição e da decadência à luz da doutrina e da legislação.

1.1 FUNDAMENTO

A doutrina civilista encontra os mais variados fundamentos para a prescrição. Câmara Leal menciona sete diferentes fundamentos, a saber: 1) ação destruidora do

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tempo (COVIELLO); 2) castigo à negligência (SAVIGNY); 3) presunção de abandono ou renúncia (CARVALHO DE MENDONÇA); 4) presunção de extinção do direito (COLIN & CAPITANT e SAVIGNY); 5) proteção ao devedor (SAVIGNY, VAMPRÉ e CARVALHO SANTOS); 6) diminuição das demandas (SAVIGNY); 7) interesse social, pela estabilidade das relações jurídicas (BAUDRY & TISSIER, LAURENT, PLANIOL & RIPERT, COLIN & CAPITANT, BELTJENS, GUILLOARD, CHIRONI & ABELLO, COLMO, PUGLIESE, BARASSI, RUGGIERO etc.) (1982, p. 13-14).

Não se pode, porém, adotar um critério único. A prescrição justifi ca-se pela sua fi nalidade de restabelecer o equilíbrio e a harmonia social, rompidos pelo ato antijurídico1, embora detenha, também, inegável função de penalidade indireta à negligência2, como reconheceu Savigny. Há, por outro lado, inegável interesse público3, mesmo porque, em última análise, sempre há interesse jurídico-social na lei.

A prescrição fundamenta-se, destarte, na necessidade de estabilizar as relações jurídicas incertas, no castigo à negligência e no interesse público, como já previa o direito romano, segundo Leal (1982, p. 14).

1.2 OBJETO

A determinação do objeto da prescrição não é uma questão meramente teórica, mas de grande importância prática, pois pela identifi cação do objeto da prescrição é possível distingui-la da decadência, com as consequências decorrentes deste fato.

Não há adoção de critério uniforme pela doutrina, tanto no Brasil como em outros países, mas se pode identifi car basicamente três teorias para explicar o objeto da prescrição: 1) prescreve o direito de ação; 2) prescreve o próprio direito; 3) prescreve a pretensão do direito.

1.2.1 PRESCRIÇÃO DA AÇÃO

A doutrina clássica e majoritária na vigência do Código de 1916 é a que situa como objeto da prescrição a ação, não o direito, nem a pretensão. Leal defi ne-a com base nesta doutrina clássica, verbis: “prescrição é a extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso” (1982, p. 12).

1 Segundo Gaio “Quod ideo receptum videtur, ne rerum domina diutius in incerta essent”.2 De acordo com Justiniano “Ut perfectius omnibus consulamus... sed sit aliqua inter desides et vigilantes dif-

ferentia”.3 Para Gaio “Bono publico usucapio introducta est,ne scilicet quarundam rerum diu, et fere semper incerta domina essent”.

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Segundo esta teoria, a prescrição decorre do transcurso in albis pelo prazo deter-minado em lei do direito de ação sem o seu exercício. O prazo para a exigibilidade do direito começa a correr (termo a quo) no momento em que o direito é violado.

Com efeito, a violação do direito torna-o exigível judicialmente e acarreta o nascimento do direito de ação, que, se não for exercido no prazo determinado, prescreverá, ou seja, o direito remanescerá, mas sem ação para ampará-lo. Segundo Beviláqua, ocorreria a perda da ação: “Prescrição é a perda da acção attribuida a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dellas, durante um determinado espaço de tempo.” (1999, p. 380).

A negligência do titular do direito em exigi-lo judicialmente, sem qualquer demonstração de interesse em persegui-lo, fato demonstrado pela ausência de causas impeditivas, suspensivas e prescritivas, é ‘punida’ com a perda do direito de ação.

Destarte, o que prescreve é a ação e não o próprio direito, que permanece existindo, mas sem a possibilidade de seu exercício por intermédio do direito de ação.

Deste modo, estabilizam-se as relações jurídicas, sem obstáculo, porém, à satisfação voluntária do direito, que, lembre-se mais uma vez, continua existindo. Se houver previsão de outra ação, que não aquela prescrita, poderá ser proposta em seu lugar, como ocorreria no caso da ação cambiária, substituída pelas vias ordinária, e, no caso do Mandado de Segurança, restando o procedimento ordinário.

A prova maior de que a prescrição seria apenas da ação, não do direito, seria a existência da possibilidade de pagamento de dívida prescrita sem a possibilidade de restituição do valor pago. Se o direito estivesse extinto, o pagamento seria indevi-do e seria possível a restituição do indébito, mas, neste caso não se admite restitutio, pois existe uma obrigação natural.

O direito permanece existindo, ainda que sem a ação para protegê-lo. Hipótese semelhante que confi rmaria esta regra é a possibilidade de renúncia da prescrição, expressa ou tácita, ou de não invocação pelas partes a quem socorre. Em ambos os casos, a ação prescreveu, mas o direito permaneceu incólume, tanto que pode haver acolhimento da pretensão em juízo em razão da ausência de alegação desta preliminar de mérito.

Ocorre, porém, que o direito de ação é um direito processual, um direito subjetivo público e abstrato, que independe do seu conteúdo material.

Importante para esta objeção é a distinção feita por Rocco entre a prescrição do direito deduzido em juízo por meio da ação e a prescrição do direito de ação. O direito de ação é imprescritível, dura enquanto durar a norma processual que estabelece este direito subjetivo público. Portanto, o que prescreve é o direito deduzido em juízo.

Poderia objetar-se que direito de ação estaria prescrito porque a sentença o declararia, mas não se pode olvidar que a prescrição é renunciável. Logo, se não for alegada em juízo a sentença não a reconhecerá e será dado provimento à pretensão.

Com efeito, se a ação é um direito abstrato, a prescrição não a extingue, senão o próprio direito substancial.

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1.2.2 PRESCRIÇÃO DO DIREITO

A segunda teoria reconhece a prescrição do próprio direito material, não do direito de ação. Não se admite nesta hipótese a perda do direito como mera consequência da perda da ação, como defende Gomes (1998, p. 499).

É que o reconhecimento da prescrição do direito material como consequência da perda do direito de ação seria uma tese que se enquadraria na orientação tradicional da prescrição como perda da ação, visto que o seu objeto seria esta e não aquele. O que prescreve é o próprio direito, e a impossibilidade de uso da ação é que seria consequência, como observou Silva Pereira (1996, p. 435-436).

A perda do direito resulta, portanto, do decurso do tempo aliado à inércia, à negligência, do seu titular em utilizar os meios necessários para defendê-lo quando violado, conforme Silva Pereira (1996, p. 435).

Não é apenas ação que se extingue, é o próprio direito, que, por consequência, perde o meio efi ciente para defendê-lo (a ação), restando apenas a esperança na boa vontade do prescribente em não alegar a prescrição, renunciar a ela ou cumpri-la voluntariamente, como mera obrigação moral.

Esta tese não encontra justifi cativa para as mencionadas hipóteses de renúncia, não alegação e adimplemento voluntário. Se o direito estivesse de fato extinto não se admitiria, v.g., o direito de retenção do valor indevidamente pago, pois se trataria de mera obrigação moral, sem efeito vinculante.

Portanto, o direito permanece existindo, ainda que limitado. Tanto que não se pode falar no caso em enriquecimento sem causa, porque há uma norma jurídica amparando-o. Se estivesse o direito extinto, a obrigação natural seria uma norma moral sem as características daquelas normas.

Outro problema na qualifi cação da prescrição como extintiva do direito é a maior difi culdade em distingui-la da decadência, que também resultaria, pelo menos na doutrina tradicional, igualmente na extinção do direito.

O critério baseado nos efeitos (admissibilidade de causas suspensivas, impeditivas e interruptivas somente na prescrição), ou mesmo na existência de tempo prefi xado para defender o direito, conforme Silva Pereira (1996, p. 440-442), é insufi ciente, visto que não serve para qualifi car o instituto, mesmo porque a lei pode estabelecer prazos especiais em ambos os casos e pode haver prescrição em que o prazo para o exercício da ação é prefi xado, sem confundi-la, porém, com a decadência.

1.2.3 PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO

A doutrina mais moderna identifi ca a prescrição como perda da pretensão. Para a sua compreensão é necessário que se estude a relação jurídica e o direito subjetivo, cuja violação gera a pretensão.

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Autores como Savigny, Windscheid, Pugliese, Zanobini, Santi Romano, Espínola e Moreira Alves observaram a intrínseca ligação entre direito subjetivo e prescrição e a existência da pretensão, embora esta teoria encontre-se ainda em desenvolvimento, sendo adotada em poucos Códigos e por poucos doutrinadores.

É que o conceito de direito subjetivo é um dos mais tormentosos para o direito. Para Savigny, Gierke e Windscheid seria o poder de vontade reconhecido pela ordem jurídica. Ihering dizia que era o interesse juridicamente protegido. Jellinek reconhecia-o como um interesse tutelado por lei mediante reconhecimento da vontade individual.

O direito subjetivo, segundo Amaral, pode ser reconhecido como “o poder que a ordem jurídica confere a alguém de agir e de exigir de outrem determinado comportamento.” (2000, p. 183). Do lado passivo, o direito subjetivo gera um dever jurídico, representado pela necessidade de observância de determinado comportamento, positivo ou negativo, em relação ao titular do direito subjetivo.

A violação do direito subjetivo, o descumprimento do dever, faz nascer uma pretensão de direito material. Situa-se ela como intermediária entre o direito subjetivo e a ação, como observaram Espínola e Espínola Filho (1941, p. 605).

Windscheid foi o primeiro autor a utilizar o termo pretensão, Anspruch, e pela sua infl uência na elaboração do BGB conseguiu que fosse adotado, em seu artigo 194, entendida como “direito a exigir de outrem uma ação ou omissão.”

Segundo Moreira Alves (1986, p. 151), com esteio em Pugliese, este conceito já pode ser encontrado em Savigny, pois a pretensão para Windscheid é o mesmo que Savigny denominou ação em sentido substancial.

A pretensão é:

o próprio poder, que, em virtude do reconhecimento, pela ordem jurídica, do vínculo entre o bem e o sujeito, se atribui a êste, para fazer atuar o seu direito, exigindo a realiza-ção e a proteção asseguradas pelo direito objetivo (ESPÍNOLA e ESPÍNOLA FILHO, 1941, p. 602-603)

A pretensão decorre da violação do direito, pois ela se dirige diretamente contra a pessoa que ofendeu o direito subjetivo em particular, descumprindo o dever geral de respeito aos direitos, conforme Espínola e Espínola Filho (1941, p. 604)

Só se pode falar em violação, se houver um direito subjetivo do qual decorre um dever para o sujeito passivo, que possa ser desrespeitado. Direito subjetivo e violação são termos de mútua implicação, tanto que a própria expressão violação a direito subje-tivo é pleonástica, sendo mais correta violação a direito, pois violação só pode referir-se a direito subjetivo.

A prescrição decorre da falta de exigência da pretensão no prazo legal, acarretando a sua extinção. O direito subjetivo, porém, não se extingue e poderá continuar sendo exigido em determinados casos, como na renúncia à prescrição e no adimplemento voluntário da obrigação prescrita, que gera uma obrigação natural.

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Se o próprio direito subjetivo estivesse extinto, a restituição do valor inde-vidamente pago deveria ocorrer, pois é vedado o enriquecimento sem causa, mas como o direito permanece existindo, ainda que enfraquecido pela perda da pretensão, não se pode falar em restitutio.

Do mesmo modo que não se extingue o direito subjetivo, não se extingue o direito de ação, que, como se viu, poderá ser exercido, enquanto direito público subjetivo e abstrato, nem que seja para afi nal resultar na improcedência do pedido pelo acolhimento da preliminar de mérito de prescrição, que poderá também, ainda que existente, não ser reconhecida, bastando para tanto a sua renúncia, que pode decorrer até da sua não alegação em juízo, visto que o juiz não pode conhecê-la de ofício, pelo menos quando se tratar de direitos patrimoniais.

Com efeito, o que prescreve é a pretensão de direito material, como dispõe o atual Código Civil em seu artigo 189 e adiante analisaremos.

1.3 O CÓDIGO CIVIL DE 2002

A versão original do Projeto do novo Código Civil adotava a tese da prescrição da ação (MOREIRA ALVES, 1986, p. 82-83), mas a comissão mudou a sua orien-tação por infl uência do responsável pela redação da Parte Geral, e seguiu a teoria da prescrição da pretensão adotada pelo art. 198 do BGB, prescrevendo o Código que: “Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206” (grifei).

Portanto, está atualmente em vigor a tese da prescrição da pretensão. Defi nir o con-ceito de Anspruch passou a ser fundamental para este tema, pois: “O projeto considera como pretensão o que Savigny denominava ação em sentido substancial ou material, em contraposição à ação em sentido formal ou processual” (MOREIRA ALVES, 1986, p. 151).

Apesar da previsão legal de adoção da teoria da prescrição da pretensão pelo novo Código, a mudança não foi devidamente percebida por parte da doutrina, que continuou a adotar a teoria clássica da prescrição do direito da ação.

Diniz (2002, p. 336), Rodrigues (2002, p. 329), Venosa (2002, p. 591 e 612-616) e Wald (2002, p. 225-231) mantiveram-se, inicialmente, fi éis à tese tradicional, contrária à nova teoria.

Além de ter adotado expressamente a teoria da prescrição da pretensão, o Código assevera, em seu artigo 190, que a “exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”, vedando, portanto, a sua alegação, inclusive como meio de defesa após o prazo legal, conforme Diniz (2002, p. 336).

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2. DECADÊNCIA

A decadência também teve origem no direito romano, derivada do verbo latino cadere - cair. Segundo Leal: “É formado pelo prefi xo latino de (de cima de), pela forma verbal cado, de cadere, e pelo sufi xo ência, do latim entia, que denota ação ou estado” (1982, p. XI).

Apesar de sua origem remota, o instituto desenvolveu-se lentamente e há até pouco tempo não havia ainda ocorrido a sua sistematização, o que se refl etia no Código de 1916, que, pela ausência de critérios claros para distingui-la da prescrição, sequer a mencionou.

Leal, em 1939, observou a ausência de sistematização da decadência e procurou diferençar prescrição e decadência, o que implicava na construção de uma teoria sobre a decadência, ainda inexistente (1982, p. 99).

Na verdade, há muito tempo já se via a existência de um instituto diferente da prescrição, que não podia se enquadrar neste instituto, embora não fosse possível ainda estabelecer as suas diretrizes, o que foi percebido por Savigny, conforme Nazo (1959, p. 22).

A controvérsia sobre a decadência começa pela qualifi cação do instituto e pela própria terminologia empregada. Com efeito, além do termo decadência, tradicionalmente adotado, utilizava-se indistintamente a denominação prazos extintivos, prazos prelusivos, preclusão e caducidade, o que contribuía ainda mais para o aumento das dúvidas nesta matéria. No Brasil, o problema da defi nição da decadência era agravado pela ausência de previsão legal no Código Civil de 1916.

Para a compreensão do instituto e de suas consequências é necessária a sistematização doutrinária da decadência, estudando o seu objeto e a sua disciplina, notadamente no Código Civil, que dedicou-lhe o Capítulo II, do Título IV do Livro III da Parte Geral.

2.1 OBJETO

A doutrina majoritária dizia que o objeto da decadência seria o próprio direito material contraposto ao objeto da prescrição que seria o direito de ação. Como a prescrição não se refere ao direito de ação, como previu expressamente o Código Civil, a distinção tradicional entre prescrição e decadência deixa de existir, pois não é mais possível fazer a oposição: prescrição da ação e decadência do direito.

Com efeito, deve-se estudar as teorias sobre o objeto da decadência para que se possa diferençá-la da prescrição com novos fundamentos. Para isto, vamos analisar as principais correntes: 1) a da decadência do direito, defendida pela maioria da doutrina, Beviláqua, Carpenter, Câmara Leal, Espínola, Orlando Gomes, Pontes de Miranda, Monteiro, Lopes etc; e 2) a da decadência do direito potestativo, minoritária, mas adotada pelo Código Civil.

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2.1.1 DECADÊNCIA DO DIREITO

Para a doutrina majoritária o critério distintivo entre prescrição e decadência era claro: prescreve a ação e decai o direito. A decadência seria, então, decorrência da negligência do titular em exercer o direito no prazo, legal ou convencional, prefi xado, extinguindo-o. Neste sentido, é o conceito clássico de Leal (1982, p. 101):

decadência é a extinção do direito pela inércia de seu titular, quando sua efi cácia foi, de origem, subordinada à condição de seu exercício dentro de um prazo prefi xado, e este se esgotou sem que esse exercício se tivesse verifi cado.

O direito no momento de seu nascimento já traria consigo um fato que poderia determinar a sua própria destruição, consubstanciado em um prazo para exigi-lo. É que o direito e a sua exigibilidade surgem no mesmo instante: há um prazo preestabelecido, por lei ou convenção, para se exercê-lo, sob pena de perecimento.

Com efeito, o próprio direito é que decairia. Entretanto, a partir do momento em que se nega a prescrição como perecimento do direito de ação, o principal critério para distinguir estes institutos carece de fundamento, visto que decai o direito e prescreve também o direito problema enfrentado por Silva Pereira (1997, p. 440-441).

Neste sentido, a decadência pode ser entendida como um prazo preestabelecido pela lei, ou pela vontade, para o exercício do direito pelo seu titular. Já a prescrição refere-se ao prazo para exercício do direito de ação (decorrente da sua violação), não para o exercício do direito, embora em ambos os casos o que pereça seja o próprio direito.

Outra distinção seria o termo inicial do prazo: na prescrição é contado a partir da violação do direito, momento em que nasce o direito de ação, e na decadência inicia-se com o nascimento do próprio direito.

Há casos, porém, em que o direito deve ser exercido imediatamente por meio da ação, pois ambos originam-se do mesmo fato. O prazo para o exercício da ação é preestabelecido para o exercício do próprio direito, sob pena de perecimento. O exercício da ação e do próprio direito confundem-se, o que torna inútil o critério do prazo prefi xado para o exercício do direito para distinguir a decadência da prescrição.

Esta crítica demonstra a insufi ciência da teoria que identifi ca como objeto da decadência o direito subjetivo com prazo prefi xado para o seu exercício, até porque a distinção não pode ser buscada apenas na existência de um prazo preestabelecido para o exercício do direito, mas na própria confi guração do instituto, o que só pode ser feito pelo estudo da diferença entre direito subjetivo e direito potestativo, como bem observou Santi Romano:

En mi opinión, si la diferencia entre la prescrpción y la decadencia se la quiere formular en términos más precisos, es necessario remontarse a la distinción y contraposición entre la fi gura del derecho subjetivo y la fi gura del poder o de la potestad (1984, p. 124).

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2.1.2 DECADÊNCIA DO DIREITO POTESTATIVO

O objeto da prescrição adotada pelo artigo 189 do Código Civil é a pretensão, decorrente da violação do direito subjetivo; o da decadência é o direito potestativo.

A teoria que relaciona a decadência com o direito potestativo é recente, embora se possa encontrar diversas contribuições para o seu desenvolvimento em diversos autores como Giusiana, Zanobini, Santi Romano, Chiovenda, Zitelmann e Moreira Alves.

Foi um administrativista quem ofereceu importante contribuição para a distinção entre decadência e prescrição com base na ideia de direito potestativo e direito subjetivo, respectivamente, embora ainda recalcitrasse ao considerar possível a decadência tanto de poderes como de direitos subjetivos. Segundo Zanobini:

[....] enquanto a prescrição se aplica exclusivamente aos direitos subjetivos, a dec-adência encontra aplicação tanto relativamente ao direito, como com referência aos poderes (potestà) jurídicos (apud Nazo, 1959, p. 80).

Na Itália, na vigência do Código Civil de 1942, surgiram relevantes contribuições

para a teoria da decadência do direito potestativo, inicialmente confundida como dec-adência da situação jurídica, conforme Nazo (1959, p. 15).

Santi Romano afastou a decadência do direito subjetivo e da situação jurídica, defendida por Giusiana, e fez a distinção entre direito subjetivo e potestà: “A prescrição determina a extinção de um direito; a decadência, não a extinção de um poder mas a im-possibilidade de exercê-lo em um caso singular, embora o próprio poder permaneça com vida em todos os outros casos em que intervenha. A razão dessa diferença é evidente. A prescrição, como é geralmente admitido, não fere todos os direitos, mas apenas aquêles de que podemos dispor. Os poderes são indisponíveis, porque inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis e, portanto, imprescritíveis.” (apud NAZO, 1959, p. 87).

Apesar da importância destas contribuições, não foram elas sufi cientes para que se desenvolvesse uma orientação doutrinária pacífi ca sobre o tema, que per-maneceu com posições esparsas de determinados autores, notadamente no Brasil, sem a necessária sistematização do assunto.

No Brasil, Marques foi um dos primeiros a aderir a esta tese, em texto publicado no Jornal Estado de São Paulo e mencionado por Nazo, o processualista afi rmou:

o que se nota é o nexo entre decadência e poder, ou entre decadência e direito potes-tativo (que está fi liado aos poderes individuais), ou entre decadência e ação constitu-tiva. Enquanto isto, a prescrição continua ligada ao direito subjetivo em suas formas clássicas. Para os direitos pessoais (direitos subjetivos), aplica-se a prescrição, para os direitos potestativos, ou para o poder de criar, modifi car ou extinguir uma relação jurídica aplicável, de regra, é a decadência (1959, p. 99).

Gomes também referiu-se a esta teoria, inclusive à vinculação processual entre direito potestativo e ações constitutivas e prescrição e ações condenatórias (1996, p. 509) .

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A Prescrição e a Decadência no Código Civil 87

Mais importante do que estudar as contribuições de cada autor para o instituto é diferenciar o direito subjetivo do direito potestativo.

O direito subjetivo implica sempre em um dever para o sujeito passivo ao passo que o direito potestativo gera para ele uma situação de sujeição, em que não lhe resta outra opção senão se submeter. Segundo Amaral:

Consiste em um poder de produzir efeitos jurídicos mediante declaração unilateral de vontade do titular, ou decisão judicial, constituindo, modifi cando ou extinguido re-lações jurídicas. Opera na esfera jurídica de outrem, sem que este tenha algum dever a cumprir (2000, p. 197).

Os direitos potestativos são eminentemente invioláveis, pois não há neste caso

dever jurídico, nem pretensão. Por isso, são imprescritíveis, mas, em compensação, pode ser estabelecido um prazo, legal ou convencional, para o seu exercício, sob pena de sua extinção em decorrência da negligência do titular em exercê-lo. A decadência é um instituto que se refere, portanto, ao direito potestativo.

2.3 O CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil substituiu a teoria da decadência do direito pela teoria da decadência do direito potestativo. Embora não haja explícita a teoria da decadência do direito potestativo, esta é claramente a matriz teórica do novo Código, conforme orientação de Moreira Alves.

De fato, a moderna doutrina assenta a distinção entre prescrição e decadência na natureza do direito: a prescrição refere-se aos direitos subjetivos e a decadência aos direitos potestativos.

Por isto, a adoção da teoria da prescrição da pretensão implica na adoção da teoria da decadência de direito potestativo, como demonstrou a Comissão Revisora do Projeto:

ocorre a decadência quando um direito potestativo não é exercido, extrajudicialmente ou judicialmente (nos casos em que a lei – como sucede em matéria de anulação, desquite etc, - exige que o direito de anular, o direito de desquitar-se só possa ser exercido em juízo ao contrário, por exemplo, do direito de resgate, na retrovenda, que se exerce extrajudicialmente, dentro do prazo para exercê-lo, o que prova a decadência desse direito potestativo). Ora, os direitos potestativos são direitos sem pretensão, pois são insuscetíveis de violação, já que a eles não opõe um dever de quem quer que seja, mas uma sujeição de alguém (MOREIRA ALVES, 1986, p. 155).

O conceito de potestà já encontra alcance em diversos doutrinadores, como

Gomes que, com esteio em Chiovenda, defi ne-a como “o poder do titular de in-fl uir na situação jurídica de outrem, sem que este possa ou deva fazer algo, senão sujeitar-se, como, v.g., o poder de revogar a procuração, de ocupar res nullius, de pedir a divisão da coisa comum, de despedir o empregado. Por declaração

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unilateral de vontade, o titular cria, modifi ca ou extingue situação jurídica em que outros são diretamente interessados (Trabucchi)” (1996, p. 118).

Apesar da previsão legal, ainda que implícita, decorrente da sistemática ado-tada pelo Código, de adoção da teoria da decadência dos direitos potestativos, Venosa (2002, p. 591 e 612-616), Wald (2002, p. 225-231), Rodrigues (2002, p. 329) e Diniz (2002, p. 329) permaneceram inicialmente adotando a teoria clássica da decadência do direito, sem qualifi cativos, como se estivesse a referir-se a direitos subjetivos, que, como se viu, são suscetíveis apenas de prescrição.

CONCLUSÃO

O Código Civil de 2002 alterou a sistemática da prescrição e da decadência, no-tadamente pela adoção da teoria da prescrição da pretensão e da decadência do direito potestativo, permitindo que se explique satisfatoriamente a distinção entre prescrição e decadência, que muitas vezes baseava-se na existência de suspensão, interrupção e impedimento do prazo apenas na prescrição.

A possibilidade de paralisação do prazo é mera consequência do instituto. Os prazos decadenciais são mais exíguos e não se sujeitam normalmente à interrupção, ao impedimento e à suspensão, porque não seria justo que uma pessoa fi casse de modo perene em situação de sujeição, decorrente do direito potestativo.

Já a prescrição, que decorre da violação de direitos (subjetivos), implica no descumpri-mento de um dever pelo sujeito passivo e por isto possui prazos mais dilatados e dá margem à paralisação do prazo, ainda que possível somente uma vez no caso de interrupção (art. 202, caput do Código Civil).

A tese da decadência do direito potestativo e de prescrição do direito subjetivo não é útil apenas ao direito privado, pois o ramo do direito em que nasce a pretensão é o que lhe marca a prescrição, conforme Pontes de Miranda (2000, p. 136), e o ramo do direito em que se confere o poder de sujeição decorrente do direito potestativo é que lhe marca a decadência.

Destarte, a teoria adotada no Código Civil não se refere apenas ao direito privado, pois a tese da prescrição da pretensão e da decadência do direito potestativo advém de uma teoria geral do direito proveniente do direito privado, aplicando-se a todos os ramos do direito.

Pode-se concluir, portanto, que a Parte Geral do Código apresentou importante evolução nos institutos da prescrição e da decadência, sendo útil ao direito privado e à teoria do direito.

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WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito Civil. Introdução. Parte Geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

PRESCRIPTION AND DECAY IN THE BRAZILIAN CIVIL CODE

Abstract: The Brazilian Civil Code of 2002 changed the concepts of prescription and decay, mainly by adopting the theory of the prescription of the pretension (Anspruch) and the decay of the potestative right, allowing a satisfactory distinction between prescription and decay, which often relied on their effects. The new criteria is important for an adequate understanding of these important institutions for both the private law and for other branches of law.

Keywords: Civil Code. Civil law. Theory of law. Prescription and decay.

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A Infl uência Perene do ProcessoCivil Romano nas Instituições Processuais Contemporâneas

Fernando Antônio Negreiros LimaMestre em Direito (UFC). Professor de Processo Civil (FA7). Procurador da República no Ceará[email protected]

Sumário: Introdução. 1. A evolução do processo civil romano. 2. O processo das ações da lei (legis actiones). 3. O processo formular (per formulas). 4. O processo da cognitio extra ordinem. 5. O processo civil na Europa após a queda de Roma. 6. O processo no direito justinianeu. 7. O processo no direito dos povos germânicos e no direito feudal. 8. O processo canônico. 9. A recepção do direito romano. Conclusão. Referências.

Resumo: A infl uência do direito romano sobre toda a construção jurídica ocidental é bastante conhecida. Também no campo processual essa infl uência ainda hoje se manifesta de forma bastante palpável. O presente artigo procura analisar as diversas fases do processo romano e de sua evolução enquanto o império romano dominou o cenário mundial e mesmo ao longo dos séculos que se seguiram à sua queda. Busca-se, ademais, detectar as manifestações mais visíveis dessa infl uência, através dos institutos processuais que, sob roupagem moderna, ainda revelam os traços latinos. Examinam-se as relações do direito romano recepcionado com as novas culturas bárbaras e com o processo canônico. Em conclusão, demonstra-se a sobrevivência do direito romano e, portanto, da necessidade de seu estudo nos cursos jurídicos.

INTRODUÇÃO

Nunca é demais sublinhar a importância do direito romano na história da civilização ocidental. É sufi ciente lembrar que, mesmo muitos séculos depois da queda do grande império, suas leis e instituições continuaram a reger as nações da Europa medieval e até mesmo da era moderna. A doutrina mais autorizada o afi rma:

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Três vezes Roma ditou leis ao mundo, três vezes ela serviu de traço de união entre os povos: pela unidade do Estado, inicialmente, quando o povo romano ainda estava na plenitude sua potência; pela unidade da Igreja, em seguida, depois da queda do império romano, e a terceira vez, enfi m, pela unidade do direito, com a recepção do direito romano na idade média. A opressão e a força das armas levaram, na pri-meira vez, a tal resultado; foi a força intelectual que prevaleceu nas outras épocas. (Ihering, 2004, t. I, p. 1-2) (tradução nossa)

A força intelectual da grande obra jurídica romana ainda hoje subsiste, notan-do-se a renovação da consciência da necessidade de seu estudo nos cursos jurídicos de nossa época, como base imprescindível para a formação dos novos juristas.

No que diz respeito ao processo civil que se estuda e pratica nos dias atuais, a raiz romana da imensa maioria de seus institutos – que não se restringe ao emprego, quase sempre equivocado, ou descontextualizado, de palavras, expressões e brocardos latinos – é facilmente atestada por qualquer investigação mais detida, nada obstante escape, via de regra, à atenção ou ao conhecimento dos profi ssionais jurídicos.

Um breve repasse da evolução e da história do processo civil romano é, por-tanto, o objeto do presente estudo.

1 A EVOLUÇÃO DO PROCESSO CIVIL ROMANO

Os historiadores costumam dividir a história do processo civil romano em três fases: o período das ações da lei (legis actiones), o período do processo formular (per for-mulas) e o período da cognição extraordinária (cognitio extraordinaria) (Tucci e Azevedo, 2001a, p. 39-47). Essas fases se sucederam ao longo da existência do Estado romano. As duas primeiras abrangeram, basicamente, mas não de forma exclusiva, os períodos da realeza e da república, constituindo o que se designou ordem dos juízos privados, ou ordo iudiciorum privatorum; a última fase se refere, preponderantemente, à era dos Caesares e fi cou conhecida como ordo iudiciorum publicorum, vale dizer, ordem dos juízos públicos.

Deve-se acentuar que também em Roma o ponto inicial dessa evolução é a vin-gança privada. Ensina, a esse respeito, Ihering que “os primeiros movimentos do sen-timento do direito lesado consistem, inevitavelmente, em uma reação violenta contra a injustiça causada, na defesa privada e na vingança.” (2004, t. I, p. 119) (tradução nossa).

Nem poderia ser diferente. O Estado, em sua infância, não é capaz de enfrentar ainda a força do

individualismo – da autoridade patriarcal e religiosa, por exemplo – e se vê forçado, em consequência, a deixar aos próprios interessados a solução de suas controvérsias.

Nesse sentido, atente-se para a lição:

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Na origem, toda necessidade da vida encontra sua satisfação na vida mesma. Antes que um desenvolvimento mais acentuado venha a fazer surgir, pouco a pouco, órgãos especiais para os diversos interesses e as diversas necessidades da comunidade, estes não se achavam largados ao acaso. A defesa privada natural ou a virtude curativa da vida interferiam em seu favor. [....] Que não haja, de forma alguma, juiz ante o qual se possa convocar o culpado, para prestar contas de sua infração, nem por isso este deixará de ser atingido, talvez até de modo mais certo e mais rápido que na mais per-feita e organizada justiça criminal. É a justiça popular que faz respeitar a moral popular ofendida. [....] Quando a pretensão tinha natureza duvidosa, sua persecução pela via da justiça privada devia necessariamente levar a uma luta selvagem, e teve de ser substituída pela criação de instituições destinadas à decisão de tais con-trovérsias [destaque nosso]. (Ihering, 2004, t. I, p. 119-125)

Mas, a partir da constatação, em muitos casos, de que a pretensão manifestada por um dos contendores era francamente duvidosa, talvez injusta mesmo, somente prevalecendo em razão de circunstâncias específi cas (maior força física, maior número, debilidade de uma das partes, por exemplo), surge timidamente a atividade estatal, na busca de impor freios ao uso desmedido e aleatório da força (KASER, 1999, p. 429)1. Acentua Ihering:

Essa distinção entre o direito ou a injustiça contestável ou incontestável exerce, em toda parte, na origem do desenvolvimento do direito, uma infl uência reguladora sobre sua formação; à medida que o direito progride, esta distinção perde sua importância. Mas ela está tão profundamente impregnada no direito e no processo antigos de Roma, que é possível designá-la como a idéia fundamental que caracteriza toda a arquitetura do sistema antigo. Não há processo senão onde a pretensão é contestável por natureza. Quando ela é evidente, a execução ocorre imediatamente; é o interessado apenas que a promove, não tendo que intervir as autoridades. Neque enim qui potest in furem statuere necesse habet adversus furem litigare – essas palavras do jurisconsulto romano, que eu tomei como epígrafe do presente capítulo, exprimem a idéia fundamental da ordem jurídica da Roma antiga. Aquele que tem um direito evidente não precisa recorrer à autoridade, seja para fazê-lo reconhecer, seja para realizá-lo. Sua realização diz respeito apenas ao interessado.” (2004, t. I, p. 119-125)2

Funda-se, portanto, na distinção entre manifesta justiça e injustiça manifesta a passagem da pura e simples vingança privada, ilimitada e sem qualquer controle por parte do Estado, para uma forma conciliatória (que, sem deixar de ser justiça privada, na sua origem e forma de execução, é já, contudo, objeto de censura estatal, para coibir-lhe os excessos).

1 “Como em todos os povos, a história do processo para efectivar direitos privados começa em Roma com a força privada limitada e controlada pelo Estado.”

2 Tradução livre do texto latino transcrito: “Pois não tem necessidade de litigar contra o ladrão aquele que contra o ladrão pode agir.”

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2 O PROCESSO DAS AÇÕES DA LEI (LEGIS ACTIONES)

O primeiro período por que passou a evolução do processo civil romano foi o das legis actiones. Uma observação importante, a se ter em conta desde logo, diz respeito ao verdadeiro signifi cado da locução ações da lei.

Para o cidadão romano, ter ação era uma expressão de signifi cado aproximadamente idêntico ao que hoje possui a expressão ter direito a alguma coisa (WINDSCHED, 1999, p. 49)3. Em número de cinco, as ações da lei caracterizavam-se pelo formalismo acentuado.

O jurisconsulto Gaius assim explica:

As ações empregadas pelos antigos denominavam-se ações da lei, ou pelo fato de se originarem das leis (pois, na época, não existiam ainda os editos do pretor, que mais tarde introduziram várias ações) ou por se adaptarem às palavras das próprias leis, conservando-se, por isso, imutáveis, como os termos das leis. Daí ter-se respondido que perdia a ação quem, agindo por causa de videiras cortadas, empregava o termo videiras (vites); pois a Lei das XII Tábuas, na qual se fundamentava a ação por videiras cortadas, empregava a expressão árvores cortadas (arboribus succisis) em geral. As ações da lei eram cinco: sacramentum, iudicis postulatio, condictio, manus iniectio e pignoris capio. (2004, p. 182-183)

Duas eram as fases em que se desenvolvia o procedimento: inicialmente (fase in iure), ambas as partes tinham de comparecer, por livre e espontânea vontade, diante do praetor – magistrado público; em caso de o réu não estar presente, cabia ao autor realizar a citação (in ius vocatio), inexistindo serventuários públicos que se incumbissem de tal ato (MEIRA, s/d, p. 28); de comum acordo, as partes deviam indicar o iudex – cidadão, que atuaria como árbitro – ao qual submetiam a questão; não havendo prévia escolha do árbitro pelas próprias partes, o pretor poderia fazer a indicação daquele a quem competiria o julgamento propriamente dito (fase apud iudicem).

Todo esse procedimento ocorria diante de testemunhas (testes) e, por isso mesmo, o seu ato culminante, que obrigava as partes, impondo-lhes a aceitação do veredito, recebia o nome de litiscontestatio. O árbitro (iudex) decidia soberanamente, caso

3 “O que os romanos chamam actio, do ponto de vista da concepção jurídica hodierna, é uma pretensão reconhecida pelo direito.” Célebre é a polêmica travada entre esse eminente jurista alemão e seu conterrâneo e opositor, Theodor Mutter. Este, em contestação ao estudo antes referido, sob o extenso título Sulla dottrina dell’actio romana, dell’odierno diritto di azione, della litiscontestatio e della successione singolare nelle obbligazioni (Windsched, 1999, p. 239), opôs-se veementemente a tal entendimento, sustentando que a “ação do lesado é, então, a faculdade de induzir o estado a fazer valer seu direito contra o violador [....] é a pretensão do titular do direito à obtenção de uma fórmula [....]”. Em réplica (1999, p. 291) volta a insistir Windscheid: “Quando os romanos dizem que alguém tem uma actio, que alguém faz jus a uma actio, pretendem, com isso, dizer precisamente aquilo que nós pretendemos dizer quando atribuímos a alguém uma pretensão (Anspruch) jurídica.” (tradução nossa)

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tivesse, após o debate oral da causa e a produção da respectiva prova, chegado a uma conclusão. Se, porém, “não lograsse formar sua convicção a respeito de determinada causa, poderia simplesmente declarar sibi non liquere (não me parece claro), ensejando que as partes retornassem ao magistrado para a escolha de um novo julgador” (TUCCI e AZEVEDO, 2001a, p. 59).

Rigidez do processo, formalismo exagerado, necessidade de repetição solene de palavr as exatas e, até mesmo, de gestos determinados: tais eram as características fundamentais, que marcavam o processo civil de então, fazendo-o arcaico e obsoleto e terminando por torná-lo impraticável.

Arangio-Ruiz aponta pelo menos três graves defeitos, que comprometeram o processo das ações da lei: a) a difi culdade de aprender de cor as declarações solenes a serem feitas ante o magistrado, agravada ainda pelo fato de que, perdida uma ação pelo uso inadequado das palavras, não se podia propô-la novamente (bis de eadem re ne sit actio); b) o sistema depositava excessiva confi ança na prova testemunhal, na boa-fé e na memória dos depoentes; e c) a atribuição de propriedades mágicas, sagradas mesmo, às palavras (admissível, nos primórdios da sociedade romana, quando o elemento religioso se impunha facilmente, mas cada vez mais contestado, no decurso dos anos).

Ademais, tal processo era restrito ao cidadão romano, o que o fazia anacrônico, em um mundo em que Roma, cada vez mais expansionista, econômica e militarmente, alargava suas relações com outros povos.

Por fi m, ressalte-se que, mesmo entre os romanos, a maior complexidade e a crescente diversidade dos casos, trazidos ao pretor, pouco a pouco obrigou a que esse magistrado inovasse em relação às ações da lei, restritas apenas às cinco modalidades descritas por Gaius. Não podendo criar ações novas, visto que só a lei podia fazê-lo, o pretor passou, então, a conceder interditos (interdictum, pl. interdicta), isto é, comandos, ordens – a requerimento de um particular e em face de outro – para que se fi zesse ou deixasse de fazer alguma coisa (TUCCI e AZEVEDO, 2001a, p. 112-113). Assumiu, assim, um papel cada vez mais relevante, sendo esse um dos mais importantes marcos distintivos da nova fase do processo civil romano, denominada de processo formular.

3 O PROCESSO FORMULAR (PER FORMULAS)

Em um primeiro contato, a fórmula, do ponto de vista do jurista moderno, é de difícil compreensão, nada havendo de semelhante no processo atual. Sinteticamente, pode-se dizer que se tratava de um breve texto do pretor, dirigido ao iudex, contendo as circunstâncias da causa, as partes e as decisões possíveis, instruindo-o sobre como julgar. Em que pese seu interesse hoje apenas histórico, um exemplo vem a calhar:

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Em razão de Aulus Augerius ter vendido a Numerius Negidius um escravo, tu, juiz, condenarás Numerius Negidius a dar ou a fazer o que quer que este tenha de fazer ou dar, nestes limites, se isso resultar devido. Se não resultar, absolve-o. (Arangio-Ruiz, 1980, p. 32)4

A introdução desse novo sistema de processo guarda estreita relação com o incremento e desenvolvimento das relações comerciais entre romanos e estrangeiros. Como estes últimos não eram cidadãos romanos, era-lhes vedado o acesso ao processo das ações da lei: não podiam recorrer aos magistrados então existentes, nem invocar, em sua condição, as palavras solenes daquele procedimento.

Assim, foi-se impondo, por volta do século III, antes de Cristo, a necessidade da adoção de um novo tipo de processo – mais ágil e avesso aos excessos formais – que contemplasse essas novas relações. Explica-o Arangio-Ruiz, lembrando o fato de que os estrangeiros não gozavam, em Roma, de direitos civis:

Mas as relações comerciais, se desenvolvendo em larga medida após a conquista da Itália e de suas ilhas fi zeram necessário, no ano 243, antes de Cristo, a criação de um magistrado especial, que tinha jurisdição sobre as diferenças entre comerciantes de nacionalidade diversa, e que se chamou pretor peregrino, ou estrangeiro, em oposição ao pretor urbano, competente para os litígios entre cidadãos. Como seu colega, o pretor peregrino devia delimitar a controvérsia e encaminhá-la a um ou a vários árbitros (1980, p. 30).

O pretor peregrino, com o tempo, passou a redigir previamente modelos, esquemas abstratos das possíveis controvérsias que lhe caberia conhecer, publicando-os, através de um edictum. Foram esses modelos, espécies de programas da atividade do iudex, que vieram a se tornar as fórmulas.

4 O PROCESSO DA COGNITIO EXTRA ORDINEM

O fi m da república começa a partir da chegada ao poder de Otávio Augusto. Assumindo o título de Caesar e concentrando em si todo o poder antes repartido entre o senado, os cônsules, os tribunos e demais magistrados (inclusive a iuris dictio), Otávio inaugura a fase que fi cou conhecida como o principado, fase imperial do Estado Romano, cujos limites territoriais chegam a abranger quase toda a Europa, o norte da África e uma parte ocidental da Ásia. Nesse momento, as instituições políticas romanas são redefi nidas.

3 Livre tradução nossa do original transcrito pelo romanista citado: “Quod Aulus Augerius Numerio Negidio hominem vendidit, qua de re agitur, quidquid ob eam rem Numerium Negidium Aulo Augerio dare facere oportere ex fi de bona, eius iudex Numerium Negidium Aulo Augerio condemnato; si non paret, absolvito.”

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No que concerne à jurisdição, extingue-se dualidade de fases (in iure e apud iudicem), que, como visto, fazia com que o processo se desenrolasse primeiramente ante o pretor, para a fi xação dos termos da controvérsia na fórmula, e, posteriormente, diante do árbitro, para a sua solução. O processo assume, em defi nitivo, feições públicas. Abandonam-se os excessos formalistas. Os órgãos julgadores, por delegação imperial, multiplicam-se, especializam-se e são distribuídos em instâncias, difundindo-se de modo a atingir toda a vasta extensão do império (TUCCI e AZEVEDO, 2001a, p. 141)5. Passa-se a admitir a possibilidade de recurso contra a decisão dos magistrados, notadamente a appellatio (apelação) dirigida ao próprio imperador (TABOSA, 2006, p. 15)6.

5 O PROCESSO CIVIL NA EUROPA APÓS A QUEDA DE ROMA

No século quinto depois de Cristo, após uma longa trajetória de declínio moral, político, econômico e militar, Roma cai diante das hordas de povos bárbaros, que já há algum tempo repetidamente a assediavam. O mundo ocidental unifi cado desaparece e, em seu lugar, instaura-se uma desordem generalizada, com o surgimento e rápido desaparecimento de reinos bárbaros diversos, logo sucedidos por outros similares, des-tinados, igualmente, a uma existência atribulada e efêmera.

O contato entre essas duas civilizações – a vencedora, primitiva e bárbara, e a vencida, culta e civilizada – não foi fácil. No que diz respeito ao contato jurídico, eram ainda maiores, provavelmente, as discrepâncias, pois o direito romano atingira um alto grau de sofi sticação e desenvolvimento, a que não podiam aspirar, então, os ordenamentos jurídicos dos povos invasores, a maioria ainda em pronunciado estágio de primitivismo, associado a manifestações religiosas e de magia, assim como alheio a qualquer sistematização.

Ainda assim, aquilo que hoje se conhece como família jurídica romano-germânica é o legítimo fruto desse contato entre as duas díspares culturas: contato inicialmente difícil, mas enriquecedor, ao fi nal de contas (DAVID, 1998, p. 25).

5 Os autores, ainda, discriminam, entre outros, os seguintes magistrados judicantes: praetor urbanus, praetor tutelarius, praetor de liberalibus causa, praefectus urbi, praefectus praetorio, procuratores fi sci, cada um dos quais com atribuições para o julgamento de certas e específi cas causas, de suas decisões cabendo recurso a órgãos superiores.

6 O professor cearense se refere ao episódio descrito no texto bíblico, mais precisamente no livro dos Atos dos Apóstolos, 25, 11, em que o apóstolo São Paulo, acusado injustamente de crimes contra os judeus, nega tal prática e, invocando sua condição de cidadão romano, afi rma: “Mas se de fato cometi uma injustiça ou pratiquei algo que mereça a morte, não recuso morrer. Se, ao contrário, não há nada daquilo de que me acusam, ninguém pode entregar-me a eles. Apelo para César!”

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6 O PROCESSO NO DIREITO JUSTINIANEU

Em Constantinopla, após a queda de Roma, sobrevive o direito romano, regendo a parte oriental do império, que se manteve incólume às investidas bárbaras. Aí reinará Justiniano, celebre imperador, cujas muitas conquistas militares, entretanto, acham-se completamente obscurecidas, com razão, pela relevância de sua contribuição à cultura jurídica universal.

A grande compilação de normas, conhecida como Corpus Iuris Civilis, é realizada sob sua ordem e inspiração, sendo concluída em 529, depois de Cristo. Trata-se, como dito, de uma compilação (mas não de um código, no sentido moderno da palavra), em que estão reunidos textos de diferentes épocas do direito romano, em quatro diferentes partes: o código (codex vetus) é fundamentalmente uma coletânea de antigas leis, ainda vigentes à época da elaboração da compilação; o digesto ou pandectas (digestum, pandectae) é uma espécie de enciclopédia jurídica; as institutas (institutiones) são um manual para estudantes, e as novelas (novellae constitutiones) são um conjunto de determinações imperiais, com força de lei (Alves, 2000, vol. I, p. 46-47).

Nessa grande obra, a matéria processual, dispersa ao longo de suas diversas partes, refl ete basicamente o direito romano do fi m do império, não havendo qualquer inovação substancial, senão uma adaptação às circunstâncias e à época7.

Merece um destaque especial o fato de que a compilação se baseia, sobretudo, nos escritos de cinco dos mais famosos jurisconsultos romanos, a saber: Paulo, Papiniano, Ulpiano, Modestino e Gaio, cujos nomes fi caram celebrizados como componentes daquilo que, curiosamente, fi cou conhecido como o tribunal dos mortos (ALVES, 2000, p. 44)8.

7 O PROCESSO NO DIREITO DOS POVOS GERMÂNICOS E NO DIREITO FEUDAL

Sob o nome genérico de germanos, relaciona-se, em verdade, um grande grupo de tribos diversas, “falando múltiplos dialetos, obedecendo a um chefe e ligando-se entre si por antigas tradições e laços de parentesco ou, ainda, com base na consanguinidade ou na crença de um antepassado comum [....]” (SURGIK, 2004, p. 45). O direito vigente

7 Moreira Alves, todavia, lembra (2000, vol. I, p. 51-53) que o direito romano, no dominato, sofreu infl uência do cristianismo.

8 Os cinco juristas mencionados viveram na época clássica do direito romano, mas, apesar de há muito mortos, suas opiniões em temas jurídicos, por determinação dos imperadores Teodósio II e Valentiniano III (aproxi-madamente na metade do século V depois de Cristo), foram tornadas as únicas admissíveis nos tribunais. Havendo divergência, prevalecia a opinião majoritária e, em caso de empate, a opinião de Papiniano.

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entre tais povos, à época da queda de Roma, era ainda bastante primitivo, em geral baseando-se em tradições antigas e costumes há muito consolidados, transmitidos de geração em geração principalmente por via oral (CAENEGEN, 2000, p. 26).

Do contato entre as duas civilizações, resulta um direito híbrido, que mescla características de cada povo. Não chega a desaparecer o direito romano, mas sua incidência fi ca restrita às populações latinas, ao passo que os germanos continuavam submetidos à sua própria ordem jurídica. Posteriormente, o direito feudal – de natureza fundamentalmente consuetudinária – tomará corpo e, durante cerca de quatro séculos, se manterá vigente em solo europeu9.

O mundo medieval é um mundo em que inexiste a unidade do Estado, que deu lugar a incontáveis feudos, cada qual com sua jurisdição local. Já não há juízes profi ssionais, mas “ juízes ocasionais, sem qualquer formação específi ca” (CAENEGEN, 2000, p. 35-36).

O processo, nesse contexto, também se modifi ca profundamente, não mais guardando semelhança com o antigo processo romano, da cognição extraordinária. Os julgamentos ocorriam ao ar livre, em praça pública, de forma oral e com a presença do povo, cuja participação era ampla. Inexistiam registros escritos e a causa normalmente se resumia a uma disputa entre as partes, ou entre as testemunhas de ambas, chegando, às vezes, inclusive ao duelo ou a supostas manifestações divinas. Os juízes não exerciam qualquer valoração crítica da prova, mas limitavam-se a referendar o resultado da disputa (KEMMERICH, 2006, p. 51-67).

8 O PROCESSO CANÔNICO

Paralelamente, como único poder centralizado da era medieval, a Igreja Católica Romana elabora seu próprio ordenamento jurídico, que passa a ser conhecido como direito canônico10. A origem do processo canônico parece estar relacionada a uma interessante determinação de São Paulo, ainda nos primórdios do cristianismo.

9 A natureza basicamente consuetudinária do direito feudal, inegável que seja, não elide fato de que alguns esboços de legislação medieval merecem destaque: assim as capitulares, leis do reino franco ao tempo de Carlos Magno, bem como a legislação dos visigodos em Portugal, conhecida como lex romana visigothorum.

10 O adjetivo canônico deriva da palavra cânon, de origem grega, signifi cando regra, ou disciplina (SILVA, 2006, p. 248). Nas grandes codifi cações eclesiásticas, as normas jurídicas acham-se dispostas em cânones, numerados como os artigos das leis estatais. À guisa de ilustração, veja-se o teor do cânon – de natureza proc-essual – nº 1.419: “Cân. 1.419 - § 1º. Em cada diocese e para todas as causas não expressamente excetuadas pelo direito, o juiz de 1ª instância é o Bispo diocesano, que poderá exercer o poder judiciário pessoalmente ou por outros, segundo os cânones seguintes. § 2º. Tratando-se, porém, de direitos ou de bens temporais de uma pessoa jurídica representada pelo Bispo, julga em primeiro grau o tribunal de apelação.”

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De fato, sabe-se que os primeiros cristãos, vivendo em catacumbas, não apenas tinham suas controvérsias espirituais, como também, às vezes, viam-se às voltas com querelas relativas a bens materiais, que eram julgadas pelos tribunais romanos. Não convindo, contudo, à nascente religião cristã – perseguida pelos imperadores – que essas controvérsias internas fossem julgadas por pagãos, interveio o Apóstolo dos Gentios:

Determinou São Paulo que os confl itos entre cristãos deveriam ser dirimidos, a princípio, pelo chefe do grupo integrado pelos litigantes, ou por um bispo, ou até pelo Papa, mas sempre por um dirigente da Igreja. A estratégia de São Paulo objetivava evitar que os pagãos argumentassem que mesmo no seio dos próprios cristãos havia discórdia. Preconizava o Apóstolo: ‘Há entre vós quem, tendo um questão com outro, ouse sujeitar-se a julgamento perante os injustos (pagãos) e não perante os santos? Será que não existe entre os cristãos um único homem capaz de julgar litígio entre irmãos? ‘ (Paulo, Cor., 6.1.). Assim, pregando São Paulo estava criando um outro tipo de jurisdição paralelo à justiça romana, à justiça laica (TUCCI e AZEVEDO, 2001b, p. 17-18).

O processo canônico exerceu forte infl uência sobre os direitos locais, em toda a idade média, a ponto de vários institutos de origem eclesiástica virem a ser adotados, mais tarde, pela jurisdição estatal (como, por exemplo, o procedimento sumário, para causas mais simples) (TUCCI e AZEVEDO, 2001b, p. 57)11.

9 A RECEPÇÃO DO DIREITO ROMANO

O fenômeno conhecido como recepção do direito romano, durante a baixa Idade Média, tem natureza complexa. O estudo do Corpus Iuris Civilis, realizado de forma sistemática, aproximadamente a partir do ano 1100 da era cristã, renovou o interesse pelo direito romano, dando origem a um movimento cultural de retorno à pesquisa de suas fontes, recuperação de documentos e a uma investigação aprofundada.

Inicialmente na Itália, em Bolonha sobretudo, mas depois passando a toda a Europa continental, iniciam-se pesquisas, que terminam por fazer prevalecer um direito mais ou menos comum a todo o continente (direito que fi cou conhecido como ius commune), com grande vantagem sobre os incontáveis sistemas feudais porque se tratava de um direito escrito, comum em todos os lugares, mais completo, mais racional, com prevalência da lei sobre os múltiplos e confusos costumes locais (GILISSEN, 2001, p. 202-205).

11 Referem os autores que o procedimento sumário tem origem em um célebre decreto papal, datado de 1306, conhecido como Clementina Saepe.

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O desenvolvimento do estudo jurídico é notável, fl orescendo diversas escolas, entre as quais alinham-se os glosadores12, pós-glosadores e a escola culta, com nomes que fi caram conhecidos nos anais da história do direito, entre os quais avultam os de Acúrcio, Bártolo, Cujácio e Durand, autor de célebre obra processual, denominada Speculum Iudiciale (ORESTANO, 1999, p. 192)13.

Os estudos romanísticos continuaram ao longo dos séculos, sobretudo na Eu-ropa continental, de onde se espalhou a infl uência do processo romano para as colônias de além-mar que Espanha, Portugal, França, Holanda e Inglaterra estabeleceram a partir do fi m do século XV.

CONCLUSÃO: A SOBREVIVÊNCIA DO PROCESSO ROMANO NA ERA CONTEMPORÂNEA

O processo no mundo contemporâneo precisa estar apto a atender a outras exigências, em larga medida alheias ao espírito que norteou a formação e, ao longo dos milênios, o desenvolvimento do processo romano.

Acentuam-se a natureza e a função instrumentais do processo e, assim, cobra-se celeridade na resolução dos litígios, em cujo nome sumariza-se a cognição e antecipa-se a tutela; aventam-se formas novas e mais expeditas de execução sincrética, em que os procedimentos são simplifi cados e dotados de meios mais efi cazes (como a penhora de saldos bancários on-line); abandona-se o excesso de formalismo e busca-se a concen-tração dos atos processuais, favorecendo-se a oralidade, em detrimento das velhas fórmulas forenses; atendidos os parâmetros legais – plena capacidade dos interessados, dis-ponibilidade e patrimonialidade dos direitos envolvidos, entre outros – estimula-se a solução arbitral dos confl itos.

Tudo isso, se por um lado aparenta ter um forte sabor moderno, é certo que, de outra parte, não nasce do nada, assim simplesmente ex nihilo, como se a mente fértil dos processualistas e legisladores contemporâneos lograsse descobrir e inventar o que antes a ninguém ocorrera. Ao contrário, quando investigada com mais atenção, cada inovação processual termina por evidenciar, em alguma medida, sua raiz romana, atestando a sobrevivência e a perenidade do gênio jurídico do grande povo latino.

12 R A denominação glosadores decorre do método de estudo empregado por aqueles estudiosos: costuma-vam fazer pequenos comentários, ou glosas, entre as linhas ou à margem do texto do Corpus Iuris Civilis. Confi ra-se mais em Alves (2000, vol I, p. 58).

13 O autor (1999, p. 186) acentua – a respeito do imenso prestígio de que gozava a compilação de Justiniano – que chegou-se a considerá-la um presente de Deus (donnum Dei), ao mesmo tempo em que o conhecimento do direito nela contido veio a ser reputado como o verdadeiro conhecimento legal (sapientia legalis).

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REFERÊNCIAS

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TIMELESS INFLUENCE OF ROMAN CIVIL PROCEDURE ON CONTEMPORARY PROCEDURAL INSTITUTIONS

Abstract: The infl uence of Roman Law on all western juridical systems is widely known. Likewise, this infl uence on the procedural fi eld is easily recognized. This article aims to analyze the various phases of the Roman process and its evolution during the rise of the Roman empire and even after centuries that followed its decline. It also seeks to detect the most visible traits of this infl uence on the modern procedural institutes. The relationship between Roman Law and the new barbarian cultures as well as with the canonical legal procedure is examined here, to conclude, after all, for the survival of Roman Law and for the need of its study in Law schools.

Keywords: Roman Law. Civil Procedure.

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Sociedade Limitada: Evolução e Função Econômica

João Luis Nogueira MatiasDoutor em Direito Público pela UFPE. Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor-adjunto da UFC e da FA7. Juiz Federal no Ceará[email protected]

Sumário: 1. Do problema. 2. Condições históricas para o surgimento das sociedades limitadas. 3. Evolução da sociedade limitada. 4. Natureza jurídica e função econômica da sociedade limitada. Conclusão. Referências.

Resumo: Abordagem das condições históricas que ensejaram a criação das sociedades limitadas no Brasil e da evolução de sua regulação jurídica e vinculação do tema à função econômica exercida por este formato societário.

Palavras-chave: Sociedade Limitada. Função Econômica das Sociedades Limitadas. Criação e Evolução das Sociedades Limitadas.

1 DO PROBLEMA

Na seara do direito privado, a técnica é fruto da necessidade histórica, ou seja, as formas, as estruturas jurídicas, são criadas para permitir a resolução de demandas sociais que, por sua vez, situam-se historicamente, como bem alertava Ascarelli.

A aludida assertiva é inteiramente aplicável aos tipos societários. Cada um deles surgiu em função de um motivo específi co. Cada forma societária apresentou-se, no momento de sua criação, como um efi caz instrumento para permitir ou facilitar o exer-cício coletivo da atividade econômica.

As sociedades foram criadas com base em normas costumeiras, sendo, desta forma, decorrentes da prática reiterada do grupo social, somente ocorrendo a posteriori a regulação pelo Estado. Entretanto, como exceção à regra, a sociedade limitada e a sociedade em comandita por ações foram criação do legislador.

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No presente trabalho, apontam-se as condições históricas que ensejaram a cria-ção da sociedade limitada, tipo preferido para o exercício da atividade negocial, bem como se analisa a sua natureza jurídica e a evolução de sua regulação, como conse-quência da modifi cação de sua função econômica.

2 CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA O SURGIMENTO DAS SOCIEDADES LIMITADAS

As limitadas foram criação legislativa da segunda metade do século XIX, em razão de necessidades próprias que ensejaram a sua criação. Ao tempo da criação da limitadas, facultava-se aos particulares o exercício da atividade comercial coletivamente através das sociedades de pessoas ou das sociedades anônimas. A opção pelo exercício do comércio através de uma das sociedades de pessoas implicava, necessariamente, na atribuição de responsabilidade ilimitada a, pelo menos, um dos sócios. Por outro lado, a opção pelo exercício do comércio através das sociedades anônimas, o que permitiria a limitação da responsabilidade de todos os sócios, era extremamente difi cultada, em razão do dema-siado formalismo para a sua constituição e funcionamento, podendo-se afi rmar que a sua estrutura não é compatível com pequenos e médios empreendimentos.

Percebe-se, desta forma, que os operadores econômicos demandavam um tipo societário que permitisse a limitação da responsabilidade de todos os sócios sem, entretanto, exigir o formalismo peculiar às sociedades anônimas.

Ante a omissão legislativa, estavam postos os pressupostos fáticos para a criação da sociedade limitada. Ao contrário dos demais tipos societários, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada não decorreu da prática comercial medieval, antes teve a sua criação emanada por via legislativa.

3 EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE LIMITADA

A forma de regulação das sociedades limitadas no Brasil, através de legislação omissa em variados pontos, permitiu aos particulares moldar ao seu feitio suas socie-dades, através dos tempos.

A fl exibilidade assegurada pelo legislador permitiu a existência de sociedades limitadas com padrões de funcionamento e regras de organização variadas, o que facili-tou a evolução do formato societário, no sentido de maior adequação aos anseios dos operadores econômicos e adaptação aos novos valores prevalentes1.

1 Egberto de Lacerda Teixeira, entre outros autores, criticava a sociedade limitada na feição do Decreto 3708/19, pelo seu laconismo: “Nasceu imperfeita a lei das sociedades por quotas. Falta ao Decreto 3708/19 a penetração doutrinária indispensável à exata confi guração do novo instituto. Aparecendo

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A sociedade Limitada regida pelo Decreto 3708/19 ainda era impregnada dos ideais que influenciaram a elaboração do Code Civil, bem como do Código Civil de Beviláqua. O laconismo de sua regulação facilitou a sua evolução e adequação aos novos tempos.

A evolução da sociedade limitada muito pode ser creditada à liberdade concedida aos particulares para organizar os seus tipos societários, o que permitiu a complemen-tação de sua regulação pelos usos comerciais e pelas decisões jurisprudenciais. A fi m de sintonizá-la com os valores vigentes na atualidade, foi necessária uma regulação exaus-tiva, protegendo os sócios minoritários, tornando concreto o ideário de valorização da pessoa humana. É o que fez o Código Civil de 2002, como demonstraremos avante2.

4 NATUREZA JURÍDICA E FUNÇÃO ECONÔMICA DA SOCIEDADE LIMITADA

4.1 NATUREZA JURÍDICA

A natureza jurídica de um instituto indica os seus elementos essenciais, funda-mentais, sem os quais o mesmo não existe.

Apontar a natureza jurídica de uma sociedade empresarial implica defi nir as suas mais expressivas características, apartando-a das demais sociedades. Vários critérios são utilizados doutrinariamente para classifi car as sociedades empresariais. Passa-se, então, a estudá-los.

Em primeiro lugar, pode-se dividir as sociedades em personalizadas, as que se confi guram como pessoa jurídica, e despersonalizadas, as quais não se constituem como pessoa jurídica.

O novo Código Civil dispõe que são personalizadas as sociedades em nome coletivo, sociedades em comandita simples, sociedades limitadas, sociedades por ações e sociedades em comandita por ações. Por outro lado, são indicadas como sociedades sem personali-dade jurídica as sociedades em conta de participação e as sociedades em comum.

no cenário jurídico, como adendo aos dispositivos do Código Comercial de 1850, disciplinadores das sociedades mercantis já existentes, as sociedades por quotas viram-se privadas de estruturação própria, autônoma, como era de desejar-se. A insufi ciência do trato legal tem dado margem a impulsos interpre-tativos contraditórios. Ora prevalecem as interpretações demasiadamente rígidas dos que subordinam a vida e o desenvolvimento das sociedades por quotas ao padrão estreito das sociedades solidárias ou em nome coletivo. Ora, ao contrário, no intuito de libertá-la do jugo personalista das sociedades solidárias, juristas e tribunais, esquecidos do particularismo da nova instituição, acorrentam-na ao império das regras e soluções próprias ao regime do anonimato.” (1956, p. 10).

2 Abelmar Ribeiro da Cunha destaca que: “o direito como organismo dinâmico, evolui com o tempo, acompanha a sociedade nas suas marchas e contramarchas” (1950, p. 11).

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Outro critério é o que separa as sociedades em conformidade com a responsabi-lidade assumida pelos sócios.

São de responsabilidade ilimitada as sociedades em nome coletivo, caracterizadas pelo fato de que todos os seus sócios possuem responsabilidade ilimitada pelas obrigações sociais. São de responsabilidade limitada as sociedades limitadas e as sociedades por ações, em que todos os sócios limitam a sua responsabilidade. São consideradas sociedades de responsabilidade mista as sociedades em que existam sócios com responsabilidades ilimi-tada e sócios com responsabilidade limitada, como as sociedades em comandita simples, sociedades em comandita por ações e sociedades em conta de participação.

Destaque-se que a responsabilidade que serve de parâmetro para diferenciar as sociedades é a dos sócios, uma vez que a sociedade em si, como pessoa distinta dos sócios, deve responder integralmente pelas obrigações decorrentes da atividade negocial, seja qual for o seu formato.

No que tange à responsabilidade dos sócios, o novo Código Civil não apresenta modifi cações que impliquem em alteração da classifi cação antes exposta.

Por fi m, as sociedades podem ser de pessoas ou de capital, tendo como critério de classifi cação a infl uência e a importância das pessoas dos sócios na sociedade3.

G. Hureau destaca que:

as sociedades de pessoas são sociedades fechadas, as partes sociais não são livremente transmissíveis. É necessário, em princípio, o consentimento da unanimidade dos sócios para que um deles possa ceder a sua parte a uma pessoa não associada, pois estranhos não são desejados na sociedade (1957, p. 37)4.

As sociedades reguladas pelo Código Comercial de 1850, antes do advento do Código Civil de 2002, eram consideradas como tipos clássicos de pessoas. As socie-dades em nome coletivo, em comandita simples, em conta de participação e, a então existente, sociedade de capital e indústria, possuíam regime jurídico específi co.

Caracterizavam-se tais sociedades pela regra de que em todas elas pelo menos um dos sócios respondia com seu patrimônio pessoal pelas obrigações sociais e de que, nas matérias referentes a modifi cações do objeto social e alteração do quadro societário, necessária era a aprovação unânime dos sócios, conforme estabeleciam os artigos 331 e 3345.

3 Sobre a classifi cação entre sociedades de pessoas e de capital ver, entre outros: Cruz (1994), Estrela (1973), Fazio Júnior (2000), Ferreira (1957) e Paes (1999).

4 No original: “Les sociétès de personne sont des sociétés fermées, les parts sociales ne sont pas librement transmissibles. Il faut, en principe, le consentement de l’unanimité des associés pour que l’un d’eux puisse céder ses part à une personne non associée, car on ne veut pas voir entrer d’etrangers dans la société.”

5 Artigo 331 - A maioria dos sócios não tem a faculdade de entrar em operações diversas das convenciona-das no contrato sem o consentimento unânime de todos os sócios. Nos demais casos todos os negócios sociais serão decididos pelo voto da maioria, computado pela forma prescrita no artigo 486.

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A existência da affectio societatis, ou seja, a vontade de exercer a atividade comercial coletivamente, com determinado grupo de pessoas, é patente ante a importância dos sócios na criação e durante toda a existência da sociedade, tanto que existe grande difi culdade de alteração do quadro de sócios e de modifi cação do objeto a ser perseguido pela sociedade. Destaque-se que nas sociedades de pessoas a morte do sócio provoca a sua dissolução, salvo cláusula em contrário expressamente prevista no contrato social, conforme dispunha o Código Comercial no artigo 335, número 4.

Nestes aspectos, nenhuma modifi cação foi produzida pelo Código Civil de 2002. As sociedades de capital, que têm na sociedade anônima o seu modelo, são

caracterizadas pela pouca importância que assumem na sociedade as pessoas dos sócios, que podem ser substituídas livremente. O importante é o capital que os sócios investiram na sociedade e não a pessoa dos mesmos.

As sociedades de capital, sociedade anônima e sociedade em comandita por ações, não foram modifi cadas pelo Código Civil de 2002, que basicamente, defi ne a sociedade anônima, remetendo-a para lei própria e, no que se refere à sociedade em comandita por ações, repete as regras da lei 6404/76 que dizem respeito a este tipo societário6.

A sociedade limitada originalmente foi concebida como novo formato de socie-dade de pessoas, tendo se transformado na prática negocial, a ponto de admitir-se ser regulada de forma aproximada às sociedades de capital.

O artigo 2º, do Decreto 3708/19, previa que a sociedade limitada deveria ser constituída nos termos dos artigos 300 a 302 do Código Comercial, exatamente a forma de criação das sociedades de pessoas. Entretanto, procurou o legislador estabelecer tipo societário de pessoas não inteiramente vinculado ao formato clássico, prevendo a possi-bilidade de alteração do contrato social por sócios que representem a maioria do capital social e a aplicação subsidiária dos regramentos típicos das sociedades anônimas7.

A dubiedade expressa no Decreto 3708/19 causou perplexidade aos autores, existindo aqueles que entendiam ser a sociedade por quotas de responsabilidade limitada sociedade de pessoas e outros que entendiam que tratava-se de sociedade mista, na medida em que assimilava aspectos das sociedades de pessoas e das sociedades de capitais.

Fran Martins destacava que:

no Brasil o Decreto 3708, de 10 de janeiro de 1919, mandou que as sociedades por quotas de responsabilidade limitada fossem constituídas nos moldes das sociedades de pessoas, ou seja, de acordo com os artigos 300 a 302 do Código Comercial. Assim,

Artigo 334 - A nenhum sócio é lícito ceder a um terceiro, que não seja sócio, a parte que tiver na socie-dade, nem fazer-se substituir no exercício das funções que nele exercer sem expresso consentimento de todos os outros sócios; pena de nulidade do contrato; mas poderá associá-lo à sua parte, sem que por esse fato o associado fi que considerado membro da sociedade.

6 V. artigos 1.088 a 1.092 da Lei 10.406/2002.7 Respectivamente artigos 15 e 18 do Decreto 3708/19.

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para nós, enquanto não houver modifi cação da lei, essas são sociedades de pessoas ou contratuais, muito embora o artigo 18, do Decreto 3708\19 determine que, nos casos omissos no contrato social, sirvam de elementos subsidiários os dispositivos da lei de sociedades anônimas. A doutrina, porém, não aceitou ainda pacifi camente a inclusão das sociedades por quotas entre as sociedades de pessoas, ponto de vista defendido por Waldemar Ferreira, mas a que se opõe, entre outros, em tese de concurso, Júlio Santos Filho (1992, p. 205)8-9.

O segredo da grande utilização da sociedade por quotas de responsabilidade limitada no regime do Decreto 3708/19, certamente, foi o laconismo da regulação, que permitiu aos particulares moldarem a sua sociedade de acordo com os seus interesses.

Assim, possível foi que um determinado grupo de sócios pudesse defi nir uma sociedade por quotas com perfi l aproximado das sociedades de pessoas enquanto outro grupo pôde criar sociedade idêntica, mas com aspectos mais aproximados aos das sociedades de capital.

Contudo, entende-se que deve ser afastada a tese de que as sociedades limitadas são sociedades mistas, ou seja, de pessoas e de capital, ao mesmo tempo. Sempre há condição de defi nir o caráter prevalente da sociedade, como sociedade de pessoas ou então de capital. O ponto central na defi nição do caráter da sociedade limitada é a questão referente ao livre ingresso e saída de sócios da sociedade10.

Os diversos tipos societários são compostos de elementos cogentes, obrigatórios por lei e imutáveis por vontade dos sócios, e elementos dispositivos, os quais podem ser livremente alterados no ato constitutivo da sociedade.

8-9 Nelson Abrão entende que a distinção não deve ser a preocupação central na análise da limitada: “A nosso ver, razão assiste a CAÑIZARES e AZTIRIA quando asseveram que a clássica controvérsia a respeito de uma sociedade ser de pessoas ou de capital não tem hoje utilidade, nem atualidade. Não há sociedades sem pessoas nem sem capital. O que sucede é que a velha fi gura da sociedade coletiva, na qual se empenhavam ilimitadamente os sócios com suas pessoas e patrimônios, com a limitação de sua responsabilidade, tornou-se obsoleta. Na sociedade por quotas de responsabilidade limitada a participação pessoal do sócio pode ser maior ou menor; na anônima, o empenho pessoal dos sócios pode ser dispensado, uma vez que os diretores podem ser alheios ao corpo social”. (1997, p. 57)

10 Eunápio Borges, criticando a classifi cação entre sociedades de pessoas e de capitais com base no critério da importância da pessoa dos sócios, propõe novo critério para a classifi cação, baseado na garantia oferecida aos credores: “seriam de capital as sociedades em que apenas o patrimônio social constituísse a garantia dos credores enquanto que seriam sociedades de pessoas aquelas em que, além do patrimônio social, o patrimônio individual de um ou mais sócios também seria garantia dos credores.” (1959, p. 98)

11 Fábio Ulhôa Coelho destaca que, além da regra da livre cessão da participação societária, “são elementos que permitem identifi car sociedade de pessoas as implicações decorrentes da morte de sócio e a penhorabilidade de cotas” (2002, p. 24). Entendo que a regra sobre a cessão de participação no capital social é central, porque vincula a solução jurídica das outras duas situações.

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É elemento inalterável pela vontade dos membros da sociedade a responsabilidade dos sócios e administradores de sociedades comerciais, pois tais regras constituem garantia a terceiros que contratem com a sociedade e aos próprios sócios que, ao escolherem um tipo societário específi co, optam por padrão de responsabilidade a que estarão submetidos. Na limitada, como nas demais sociedades, nunca puderam ser modifi cadas as regras sobre responsabilidade, sendo permitida a modifi cação de regras de outra ordem.

No regime do Decreto 3708/19, cabível era a modifi cação do disposto no artigo 15, do Decreto 3708/19, que previa a possibilidade de modifi cação do contrato social por votos de pessoas que representassem a maioria do capital social. Desta forma, podiam os sócios defi nir que nos aspectos referentes à modifi cação do quadro societário, ou seja, entrada ou saída de sócios, devia ocorrer aprovação por unanimidade dos sócios ou, por outro lado, pudesse vigorar a livre cessão de quotas.

Caso fosse estabelecida no contrato social a regra da unanimidade, criada seria sociedade limitada moldada nos tipos clássicos de pessoas. Caso fosse prevista a livre cessão de quotas, teríamos sociedade limitada aproximada das sociedades de capital. Na omissão do contrato, vigorava o disposto no artigo 15, ou seja, a regra da aprovação por pessoas que representassem a maioria do capital social, em que teríamos sociedade de pessoas modifi cada em comparação com os tipos tradicionais.

Destaque-se que a evolução que levou à possibilidade de admissão da cláusula de livre cessão de cotas pelos sócios no contrato social decorreu da prática comercial. Logo após a criação das sociedades limitadas as Juntas Comerciais passaram a recusar a admissão de cláusula que permitisse a livre cessão de cotas, por ofensa à natureza do tipo societário. Entretanto, com a promulgação da lei 6404/76, que estabelecia, em seu artigo 298, a possibilidade de sociedades anônimas de pequeno porte serem transfor-madas em sociedades por quotas de responsabilidade limitada, sendo assegurada a livre transferência de cotas aos sócios entre si ou para terceiros, passou a Junta Comercial a admitir que os próprios sócios incluíssem a regra de livre cessão no contrato social11.

11 No original: “Art. 298 - Companhias existentes, com capital inferior a cinco milhões de cruzeiros, poderão, no prazo de que trata o artigo 296, deliberar, pelo voto de acionistas que representem dois terços do capital social, a sua transformação em sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, observadas as seguintes normas: I - na deliberação da assembleia a cada ação caberá um voto, independentemente de espécie ou classe: II - a sociedade por quotas resultante da transformação deverá ter o seu capital integralizado e o seu contrato social assegurará aos sócios a livre transferência das quotas entre si ou para terceiros; III - o acionista dissidente da deliberação da assembleia poderá pedir o reembolso das ações pelo de patrimônio líquido a preço de mercado, observado o disposto nos artigos 45 e 137; IV – o prazo para o pedido de reembolso será de 90 dias a partir da data da publicação da ata da assembleia, salvo para os titulares de ações nominativas, que será contado da data do recebimento de aviso por escrito da companhia.”

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O objetivo da norma transitória prevista na lei 6404/76 era garantir às pequenas sociedades anônimas, então existentes, a possibilidade de serem transformadas em sociedades por quotas caso não conseguissem adaptar-se ao novo perfi l das companhias, tipo adequado ao exercício de grandes empreendimentos, como nos recorda Modesto Carvalhosa:

Vale, a propósito, lembrar a norma transitória inserida na lei vigente (art. 298), que dispunha sobre a transformação das sociedades anônimas de capital inferior a cinco milhões de cruzeiros em sociedades por quotas, dentro de um ano da vigência da lei, com requisitos bem menos rigorosos que os do artigo 200. A fi nalidade do preceito transitório era o de facilitar às companhias que tivessem difi culdade em se adaptar à então nova lei societária de 1976 sua transformação em sociedade por quotas (2002, p. 174)

Compreendemos que a sociedade limitada era, no regime anterior do Código de Beviláqua, sociedade híbrida, já que podia ser de pessoas ou de capital, somente sendo possível apontar o seu caráter prevalente após a análise do contrato social.

No Código Civil de 2002, existe regra específi ca sobre a possibilidade de livre cessão de cotas, dispondo:

Art. 1057 - Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcial-mente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de 1/4 (um quarto) do capital social.

É facultado aos sócios defi nir o perfi l da sociedade que pretendem criar, já que o contrato social pode defi nir regra específi ca para regular a forma como se dá a cessão da participação no capital social.

Na omissão do contrato social, vigora a liberdade de cessão aos demais sócios, podendo ser transferida porção do capital social a estranhos, caso não haja discordância de pessoas que representem mais de um quarto do capital social12.

Resta claro que o Código Civil novo não modifi ca em relevo a caracterização da so-ciedade limitada como tipo societário de pessoas ou de capital, trata-se de sociedade híbrida, ou seja, pode ser de pessoas ou de capital, o que é apontado com a análise do contrato social, especialmente a regra sobre cessão de participação no capital social.

12 A doutrina tem criticado, com fi rmeza, a regulação da sociedade limitada no Código Civil de 2002, especialmente a estrutura orgânica, de alguma forma mais aproximada das sociedades anônimas, bem como a possibilidade de sujeição às normas das sociedades simples, na omissão do capítulo específi co das limitadas, crítica com a qual não concordamos. Sobre o tema, interessante é o comentário de Vera Helena de Mello Franco: “Negar o papel oscilante e maleável das limitadas, engessando-as sob o manto da lei acionária, não é o desejável. Mas também não é correto que, após dotar-lhe uma estrutura orgânica ao molde da sociedade anônima, pretenda-se abrandar a supressão da autonomia da vontade (própria das sociedades contratuais) levada a cabo mediante o recurso à sociedade simples” (2001, p. 85).

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Fábio Ulhôa Coelho, em posição distinta, defende que a principal inovação do Código Civil de 2002 foi a criação de dois subtipos societários da sociedade limitada, as sociedades limitadas com vínculo societário instável e sociedades limitadas com vínculo societário estável, de acordo com a aplicação das normas de regência das sociedades simples ou das sociedades anônimas. Observem-se as razões do autor:

O primeiro subtipo é o da sociedade limitada sujeita à regência supletiva das normas das sociedades simples. Trata-se das sociedades em que o contrato social não elege a LSA como norma de regência supletiva. Quer dizer, sendo o instrumento contratual omisso quanto à disciplina supletiva ou adotando expressamente as normas da sociedade simples por parâmetro, a sociedade limitadas será desse primeiro subtipo. Proponho chamar as sociedades desse subtipo de limitadas com vínculo societário instável. Isso porque, quando contatada por prazo indeterminado, qualquer sócio pode dela se desligar, imotivadamente, por simples notifi cação aos demais, a qualquer tempo. Aplica-se, com efeito, a essa sociedade limitada o disposto no artigo 1029 do Código Civil (do capítulo das sociedades simples), que assegura ao sócio o direito de se retirar da sociedade sem prazo, mediante simples notifi cação aos demais, com antecedência de sessenta dias. O sócio retirante tem direito ao reembolso de suas quotas, pelo valor patrimonial (2003, p. 23)

Discorda-se. É que se entende que nem todas as previsões das sociedades simples são aplicáveis às sociedades limitadas, na forma do artigo 1053: “A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste capítulo, pelas normas da sociedade simples”. A aplicação apenas deve ocorrer nas omissões do capítulo de regência das limitadas, desde que não haja incompatibilidade com normas ali estabelecidas. O artigo 1057 regula a alienação de quotas, estabelecendo que, na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua porção do capital social, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente da audiência dos demais sócios, ou a estranhos, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social, como já analisamos. Se o legislador dispôs, explicitamente, sobre a forma de modifi cação do quadro societário, parece não pretender tornar regra geral, para todas as sociedades limitadas de prazo indeterminado, a possibilidade de retirada da sociedade.

A admissão da tese de Fabio Ulhôa implica no afastamento das disposições que regulam o direito de recesso, previstas nos artigos 1077, por absoluta inutilidade. Afasta-se, desta forma, a ideia de que o Novo Código Civil estabeleceu dois subtipos de sociedades limitadas, um com vínculo estável entre os sócios e outro com vínculo instável, continuando atual a construção doutrinária e jurisprudencial da dissolução parcial da sociedade limitada por tempo indeterminado, instituto que concilia o direito do sócio de não mais permanecer associado, resguardado na Constituição Federal de 1988, com a continuidade da sociedade13-14.

13 V. Constituição Federal, artigo 5º, inciso XX.14 Sobre dissolução parcial, ver Fonseca (2002).

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Em sua natureza, a sociedade limitada é uma sociedade personalizada, híbrida e de responsabilidade limitada.

4.2 FUNÇÃO ECONÔMICA DA SOCIEDADE LIMITADA

As sociedades empresariais são o instrumento, por excelência, de realização de atividades econômicas na sociedade contemporânea, sendo a sua principal vantagem o não necessário comprometimento do patrimônio dos sócios participantes.

No cenário jurídico nacional, as duas sociedades de maior aceitação social têm sido a sociedade limitada e a sociedade anônima. Nos últimos quinze anos, no Brasil, as duas sociedades têm representado mais de 99,99% dos formatos societários eleitos para o exercício da atividade negocial (Departamento Nacional do Registro do Comércio, on-line).

A sociedade limitada é o tipo preferido dos indivíduos para a realização de pequenos e médios negócios. Recentemente, tem se tornado estrutura útil à realização de grandes empreendimentos. A justifi cativa para a grande aceitação social deste formato decorre das vantagens que a sua regulação sempre ofereceu, como a restrição da responsabilidade dos sócios, estrutura ágil, liberdade dos sócios etc., bem como em razão de que o ordenamento nacional não delimita o espaço econômico próprio para cada um dos formatos existentes, permitindo aos indivíduos que façam a sua opção quanto ao meio adequado de realizar atividades econômicas15.

Aos operadores econômicos de pequeno e médio porte, a opção pela sociedade limitada é natural em razão das difi culdades que encontrariam com a estrutura pesada, os custos e controle governamental típico das companhias, mesmo quando companhias fechadas. Eventual opção pela sociedade anônima seria viável juridicamente, mas

15 Francesco Galgano demonstra que, no direito italiano, o espaço econômico das sociedades limitadas e das sociedades anônimas é bem defi nido: “Il principale elelemento di differenziazione del tipo della società a responsabilità limitata rispetto alla società per azioni sta nella norma secondo la quale di participazione dei soci non possono essere rappresentate da azioni (art. 2472, comma 2ª). La norma delimita l’ambito delle iniziative economiche che possono essere esercitate in forma di società a responsabilità limitata: non potendo emettere azioni, la società a responsabilità limitata non puó fare rocorso al mercato del risparmio e deve, perció, trarre i propri mezzi fi nanziari dalle risorse di un ristretto gruppo di soci. Il che vale, per un verso, a parre evidenti limiti massimo alle dimensioni delle imprese che possono essere esercitate nelle forme di questo tipo di società. Vale, per altro verso, ad introdurre un elemento anche qualitativo di differenziazione rispetto alla grande o medio-grande impresa operante in forma di società per azioni: marca la contrapposizione, all’interno della società, fra capitale di comando e capitale di risparmio, fra classe impreditoriale e altre classi apportatice di riccherzza.” (2002, p. 410).

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poderia ser inviabilizada economicamente. O formato de companhia, por si só, por exemplo, a confi guração como microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma da Lei Complementar 123/200616.

Já em relação aos empreendimentos de grande porte, o formato societário da sociedade limitada torna-se atrativo para as sociedades que não demandem a captação de recursos no mercado de valores mobiliários, sobretudo em consequência do menor custo decorrente do menor formalismo exigido para este formato, quando em comparação com a sociedade anônima.

Desta forma, é a sociedade limitada, na prática, instrumento de realização de atividades econômicas de pequeno, médio e grande porte, merecendo regulação espe-cífi ca e exaustiva a fi m de permitir maior segurança aos agentes econômicos e proteção aos sócios minoritários, o que foi feito no Código Civil de 2002.

Deve ser destacado que não é possível afastar a vinculação obrigatória entre função e forma (estrutura) de institutos jurídicos e, como tal, das sociedades empresárias (Salomão Filho, 2002).

Ora, ante a modifi cação da função econômica da sociedade limitada, que passa a ser instrumento útil para a realização de grandes empreendimentos, assim como em razão da imposição da prevalência de sua função social pelo Código Civil de 2002, imperativo é que novo desenho oganizacional lhe seja imposto.

CONCLUSÃO

A sociedade limitada, criada através do Decreto 3.708\19, inicialmente atendia à função econômica de realização de pequenos e médios empreendimentos, tendo na prática negocial tornado-se formato útil ao exercício da grande empresa.

Os motivos para a adesão dos operadores de grande porte à sociedade limitada foram: a fl exibilidade das regras do Decreto 3.708\19; a incipiência do mercado de valores mobiliários brasileiro, sendo certo que no Brasil o fi nanciamento das atividades econômicas é, sobretudo, realizado por meio do mercado fi nanceiro e o formalismo e custo das sociedades anônimas, mesmo tratando-se de companhia fechada.

16 Lei 9841/99, artigo 2º – Para os efeitos desta lei, ressalvado o disposto no artigo 3º., considera-se: I – microempresa, a pessoa jurídica e a fi rma mercantil individual que tiver receita bruta anual igual ou inferior a R$ 244.000,00 (duzentos e quarenta e quatro mil reais; II – empresa de pequeno porte, a pessoa jurídica e a fi rma individual que, não enquadrada como microempresa, tiver receita bruta anual superior a R$ 244.000,00 (duzentos e quarenta e quatro mil reais) e igual ou inferior a R$ 1200.000,00 (hum milhão e duzentos mil reais).

Lei 9317/96, artigo 9º – Não poderá optar pelo SIMPLES a pessoa jurídica : [....] III – constituída sob a forma de sociedade por ações.

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Após o advento do Código Civil, a sociedade limitada passou a ser regulada com maior formalismo, como reconhecimento de sua nova função econômica, o que diminui a vantagem comparativa em relação às sociedades anônimas fechadas. Entretanto, fl agrante é que a sociedade limitada é útil ao pequeno, médio e grande negócio.

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LIMITED LIABILITY PARTNERSHIP: EVOLUTION AND ECONOMIC FUNCTION IN BRAZIL

Abstract: Analysis of the historic conditions that permit the regula-tion of the limited liability partnership in Brazil and its evolution and connections with the economic function of this kind of partnership.

Keywords: Limited Liability Partnership. Economic Function of the Limited Liability Partnership. Evolution of the Regulation of Limited Liability Partnership.

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Reinvestigando a Natureza Jurídica da Propriedade

José Vander Tomaz ChavesMestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Privado pela Universidade de Fortaleza. Professor da Faculdade 7 de Setembro. Diretor do Núcleo Judiciário da Justiça Federal no Ceará[email protected]

Sumário: 1. Propriedade e função social. 2. Natureza jurídica da função social da propriedade. 3. Refl exos do princípio da função social para a reinvestigação da natureza jurídica da propriedade. Considerações fi nais. Referências.

Resumo: A concepção do Estado Intervencionista, resultante de um processo dialético histórico verifi cado entre o Estado Liberal e o Socialista, permitiu a consagração de uma função social a ser desempenhada pelos titulares da propriedade. Com isso, passou a ser exigida dos proprietários uma conduta voltada à satisfação de seus interesses individuais, desde que compatibilizada ao interesse coletivo. Tal circunstância gerou uma ruptura no modo com o qual a propriedade se via consubstanciada na seara jurídica, uma vez que não mais consistia numa mera facultas agendi concedida ao proprietário, mas também numa fonte de deveres. Para alguns, a propriedade ter-se-ia convertido em função social. Contudo, é a noção de direito subjetivo que houve de ser revisitada ante o intervencionismo do Estado, passando a propriedade a ser compreendida como direito orientado por uma função social.

Palavras-chave: Função social da propriedade. Liberalismo. Socialismo. Direito subjetivo.

1 PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL

O regime capitalista inaugurado pelas revoluções liberais proclamava ampla liberdade no exercício do direito de propriedade, ocasionando, de certo modo, um retorno à sua concepção romana. O Estado deveria, segundo o pensamento liberal, limitar-se a respeitar e garantir os direitos dos indivíduos. Essa ampla liberdade acabou por gerar um enriquecimento desenfreado para alguns e um consequente empobrecimento para outros, uma vez que, naquele contexto, não havia como se conceberem ganhos sem que houvesse perdas correspondentes. Abriu-se ensejo, pois, à concentração de riqueza nas mãos de poucos, ladeados pela massa de desafortunados, empregados ou não, que apenas possuíam sua força de trabalho. Essa é a resenha daquilo que motivaria o declínio do capitalismo

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puro (liberal): crescente alta infl acionária e estagnação econômica gerada pelo excesso de produção e pela parca demanda. A expressão maior dessa realidade veio a ocorrer em 1929, com a quebra da Bolsa de Nova Iorque.

Esse foi o contexto em que sementes de novas ideias passaram a ser lançadas, despertando a efetivação do ideário socialista, numa fase de transição narrada por Dalmo de Abreu Dallari:

O industrialismo do século XIX, ao mesmo tempo em que procurara levar às últimas conseqüências os princípios individualistas do liberalismo, promovera a concentração dos indivíduos que nada mais possuíam do que a força de trabalho. Com isto, iria deixar muito evidente a existência de desníveis sociais brutalmente injustos e favorecer a organização do proletariado como força política. Além disso, patenteou aos intelectuais e aos líderes não condicionados por interesses econômicos a necessidade imperiosa de se implantar uma nova ordem social, em que os homens recebessem proteção e tivessem meios de acesso aos bens sociais. E a Revolução Russa, de outubro de 1917, abrindo o caminho para o Estado Socialista, iria despertar a consciência do mundo para a necessidade de assegurar aos trabalhadores um nível de vida compatível com a dignidade humana. Surge, então, a consciência de que os indivíduos que não têm direitos a conservar são os que mais precisam do Estado (1995, p. 177).

Era o que Karl Marx havia profetizado ainda no século XIX. Para o jurista e economista tedesco, o modo de produção capitalista continha em si a semente de sua destruição. O intuito da acumulação ilimitada de capital conduziria à cessação de sua fonte, o mercado, o qual quedaria paralisado pelo empobrecimento dos consumidores. Para ele, o proletariado não poderia aguardar a autodestruição do sistema então vigente (SANTOS, 2004, p. 38).

Marx concebeu também a implantação do comunismo, processo que se iniciaria pela fase do socialismo, no momento em que o proletariado tomasse ciência da exploração a que estava submetido1, consubstanciada na apropriação da mais-valia pelos detentores do capital. Estabelecer-se-ia, a partir daí, a ditadura do proletariado, na qual seriam realizadas expropriações em face dos particulares2. Esse período ditatorial seria, segundo Marx, necessário para que os homens se desapegassem da ideia de apropriação individual.

1 Para Marx, a mudança que o proletariado proporcionaria em desfavor dos interesses dos detentores do capital seria uma renovação histórica do que um dia estes fi zeram em desfavor da nobreza e da realeza, quando se aperceberam do poder que possuíam. O mesmo ocorreria agora com os proletários: “Com o desenvolvimento da indústria, não somente aumenta o número de proletários, mas estes são concen-trados em massas cada vez mais consideráveis; sua força cresce e eles adquirem maior consciência dela” (MARX, 1988, p. 84).

2 “A primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante [...]. Isto só poderá ser conquistado, a princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade de das relações de produção burguesas” (MARX, 1988, p. 95).

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Isso ocorrido, poder-se-ia estabelecer o comunismo, no qual se apresentaria desnecessário o controle estatal da não acumulação de bens, pois o homem já haveria retornado ao status anterior da propriedade comunal. Assim, vê-se que o socialismo seria uma fase preparatória do comunismo. Este representaria, por sua vez, “a eliminação positiva da propriedade privada como autoalienação humana pelo e para o homem [...], o retorno do homem a si mesmo como ser social” (MARX, 2001, p. 138)3.

A fase do socialismo viu-se corporifi cada a partir da Revolução Russa de 1917, através da qual aquele regime foi implantado na Rússia, apondo termo ao reinado dos czares. Abriram-se, através dela, ensanchas para a adoção do socialismo em diversos outros países, mormente na Ásia e no leste da Europa. A passagem ao comunismo, contudo, não se chegou a verifi car na empiria.

Com efeito, o que se verifi cou historicamente foi a circunstância de que a supressão do socialismo nos países que o adotaram conduziu, em verdade, ao modo de produção capitalista. Foi o que ocorreu nos países da Europa oriental, v.g. Isso se explica pela inclinação natural do homem à democracia e à liberdade, o que não se observava no regime preconizado por Marx. Não mais conduzido e limitado pelo socialismo, o homem buscou naturalmente a satisfação de seus interesses particulares, o que refl etiu no retorno à apropriação individual. Ora, se um dia o homem associou sua liberdade à satisfação de suas necessidades para inaugurar a apropriação particular, vê-se ser essa sua tendência essencial e, apenas sob rígido controle – limitação da liberdade – tal tendência não se manifestará.

Constata-se dessa análise que ambos os sistemas – capitalista e socialista – apresentaram vantagens e falhas, mas se pode perceber que são tais notas fi ncadas na ideia de exacerbação: o capitalismo conferiu extrema liberdade ao homem; o socialismo, liberdade extremamente restrita.

Solapado por duas Grandes Guerras e por intensa crise política e social, o capitalismo ocidental viu ameaçada a sua integridade, a qual apenas poderia ser obstada pela concessão aos apelos socialistas, num verdadeiro esforço dialético. Evidenciava-se que a complementação entre esses sistemas poderia conduzir a um Estado aprimorado, em que haveria uma maior adequação entre os interesses individuais e coletivos, associada a uma maior estabilidade econômica.

3 A ideia da autoalienação humana é explicada por Marx: “A propriedade privada tornou-nos tão estúpi-dos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc., ou melhor, quando é utilizado [...]. Todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido do ‘ter’ [...]. A supressão da propriedade privada constitui, desse modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas” (MARX, 2001, p. 142).

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É o que parece haver percebido John Maynard Keynes, pai do intervencionismo, teoria que pode ser vislumbrada como síntese da dialética entre capitalismo e socialismo. A doutrina intervencionista reuniu elementos de ambas as já mencionadas, embora que com nenhuma delas se confundisse. Não seria liberal, por negar o Estado eminentemente absenteísta, nem socialista, uma vez que o Estado intervencionista não é produtor, mas conciliador dos interesses de produtores e consumidores. Não se trata de Estado da burguesia ou do proletariado; de Estado de uma classe, mas de Estado de todas as classes.

O pensamento esposado por Galbraith ilustra com maestria e simplicidade as alterações impostas pela adoção da doutrina intervencionista:

The Keynesian system, though it implied a decidedly non-revolutionary change in the relation of the government to the economy, implied, nonetheless, an important one. For a doctrine that excluded government it substituted one that made government indispensable. Keynes [.…] went on to make government the indispensable partner of business (1952, p. 84).

O intervencionismo importou uma reformulação da secessão entre sociedade e Estado, preconizada pelo liberalismo4. O Estado abandonou o papel de mero árbitro e produtor do direito e passou a agir ativamente perante a economia. A “mão invisível” a que se referira Adam Smith fez-se palpável.

A doutrina do intervencionismo começou a ganhar força nos anos que precederam a II Guerra Mundial (1939-1945), havendo obtido, depois dela, maior efetivação, por conta da consciência que surgia nos países capitalistas acerca da fragilidade de seu regime e da consequente necessidade de sua retifi cação. Já se manifestavam traços daquela doutrina na política do New Deal, praticada pelo presidente americano Franklin Delano Roosevelt durante a Grande Depressão na década de 30. Finda a guerra, o intervencionismo manifestou-se ainda mais veemente, ante os clamores surgidos para a ação do Estado para o reerguimento das cidades e das atividades produtivas.

Não almejava Keynes a condução ao socialismo por parte dos países que adotavam o sistema capitalista, mas uma reformulação da visão clássica deste, numa superação do seu modelo liberal. Daí as esclarecedoras observações de Lawrence Klein, para quem:

Las reformas keynesianas no atacan ni inciden sobre los derechos privados de las personas a sus propios bienes de producción. La investigación keynesiana mira al Estado como un poder equilibrador que únicamente sirve para complementar la conducta y actuación de los capitalistas individuales, mientras que la doctrina socialista considera al Estado como empresario único que reemplaza por entero toda actividad privada capitalista. La política keynesiana, en realidad, es conservadora porque apunta a conservar el capitalismo de empresa libre. El socialismo no es conservador, es radical, y apunta a cambiar el sistema capitalista en otro sistema totalmente distinto (1952, p. 206).

4 Para José de Albuquerque Rocha, uma das características do Estado liberal é a “separação entre socie-dade e Estado ou, por outras palavras, entre economia e política” (ROCHA, 1995, p. 126).

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Nesse contexto, viu-se alterado o próprio papel do direito na vida econômica. No Estado Liberal, o direito visava precipuamente à garantia das liberdades individuais, enquanto, no nascente Estado Social, assumia um viés promocional. As Constituições dos Estados passavam a tratar da ordem econômica, o que “é expressiva de marcante transformação que afeta o Direito, operada no momento em que deixa de exclusivamente prestar-se à harmonização de confl itos e à legitimação do poder, passando a funcionar como instrumento de implementação de políticas públicas” (GRAU, 1990, p. 13). Até mesmo o Poder Judiciário, antes mero garantidor das instituições liberais, viu-se “realizador de políticas públicas visando à modifi cação da realidade social e econômica” (ROCHA, 1995, p. 133).

A concepção do Estado intervencionista efetivou com maior visibilidade o afã coletivo já principiado pelo welfare state (estado do bem-estar social), cujas raízes já se viam fi ncadas ao fi nal da I Guerra Mundial, abrindo-se espaço para que as incipientes modifi cações impostas ao direito de propriedade encontrassem um vasto campo para a sua ampliação. Evidência de tal conjuntura é o fato de a primeira Constituição brasileira do segundo pós-guerra, a de 1946, haver iniciado no direito pátrio o explícito reconhecimento de que o exercício do direito de propriedade é condicionado ao bem-estar social. Essa renovação da regulação jurídica da propriedade já se apresenta, em si, como um meio de intervenção, como pontifi ca Eros Roberto Grau, para quem “a mera produção do Direito, a simples defi nição das esferas do público e do privado [...] desde logo consubstanciam expressões de atuação interventiva estatal” (1990, p. 17).

Nesse diapasão, o pensamento de Adolpho Pinto Filho, compartilhado com Beviláqua, em que se ressaltou o nítido caráter dialético do regime econômico que então se passava a divisar:

No novo regime, que conciliará as vantagens do socialismo e do individualismo, dar-se-á um novo equilíbrio social. Não desaparece nem o capitalismo, ainda necessário, nem o excitante regime da concorrência, mas muito serão diminuídos os desperdícios e injustiças do regime atual (apud BEVILÁQUA, 1976, p. 132).

Com efeito, é inegável que o regime intervencionista não surgiu para eliminar o capitalismo, mas para obstar seu declínio5, corrigindo-lhe as notas de extrema liberdade conferida ao indivíduo e ampliando a ação positiva do Estado perante a economia. Daí ser viável considerar que a superação imposta pelo intervencionismo conduziu a um

5 “A virada do século assiste ao declínio do capitalismo concorrencial liberal. A economia de guerra e o advento da revolução bolchevista desferem-lhe golpes mortais. Sombrio o futuro do capitalismo, impunha-se a sua renovação [...]. Evidente a inviabilidade do capitalismo liberal, o Estado [...] assume o papel de agente regulador da economia” (GRAU, 1990, p. 18 e 44).

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capitalismo renovado, que se pode qualifi car de intervencionista, distinto do capitalismo puro (liberal) preconizado pelos revolucionários de 1789. Como afi rma Eros Grau, o novo papel que passou a ser desempenhado pelo Estado “não conduz à substituição do sistema capitalista por outro”. Para ele, “é justamente a fi m de impedir tal substituição [...] que o Estado é chamado a atuar sobre o domínio econômico. O sistema capitalista é assim preservado, renovado sob diverso regime” (1990, p. 61). “O Estado do bem-estar ainda é uma máquina essencialmente capitalista” (GRAU, 1995, p. 63)6. A função social da propriedade, por seu turno, transforma a propriedade capitalista, sem socializá-la (MIRANDA, 1989, p. 91).

A propriedade hodierna se apresenta, pois, como produto da dialética travada entre liberalismo e socialismo7, não sendo apressado concluir que a efetiva modifi cação do status jurídico da propriedade para os contornos que se lhe apresentam na atualidade apenas foi perpetrada quando se passou a verifi car na concretude o regime preconizado pelo intervencionismo. Contudo, não se pode olvidar que a modifi cação da óptica do direito de propriedade não nasceu nesse momento específi co ou em qualquer outro. Trata-se de construção paulatina, fruto dos esforços doutrinários, ideológicos, políticos e materiais de vários pensadores, grupos e movimentos e de seu aprimoramento recíproco.

Com efeito, o germe da função social da propriedade pode ser encontrado já em Aristóteles8 e nos jusfi lósofos do Medievo, entre os quais

6 “A Para Norbert Reich, a mensagem básica do welfare state seria a de “transformar o capitalismo sem aboli-lo. Cumpre a ela explorar a vantagem principal das economias de mercado [...] sem ser o objeto de suas ‘falhas’, tais como exteriorizações, estruturas de poder desigual e distribuição injusta da riqueza” (1990, p. 265).

7 Esse aspecto é ratifi cado por Telga de Araújo, para quem, “no presente momento histórico, a propriedade traça as fronteiras entre o individualismo econômico – traço marcante da sociedade capitalista – e o socialismo – representado pela coletivização dos meios de produção” (1977, p. 2). Sahid Maluf também ressalta o caráter dialético da propriedade hodierna, ao afi rmar que “o Estado social-democrático [...] procura harmonizar as verdades parciais e inegáveis que existem tanto no individualismo como no socialismo [...]. O Estado neutro e indiferente foi substituído pelo Estado atuante, intervencionista, cujo objetivo era o de restabelecer a harmonia tradicional entre capital e trabalho [...]. O Estado intervém [...] no direito de propriedade, impondo as restrições ditadas pelo interesse da coletividade” (MALUF, 1999, p. 133 e 306).

8 Destoando de Platão, que defendia a propriedade comum, Aristóteles preconizava uma propriedade particular que coadunasse, a um só tempo, o interesse do dono e o da coletividade: “Tendo cada cidadão a sua propriedade particular, põe-na em parte ao serviço dos amigos, e dela se serve em parte como de um bem comum [...]. É preferível, portanto, que os bens sejam pertencentes a particulares porém que se tornem propriedade comum pelo uso que se faz deles [...]. Os que possuem em comum têm com muito mais freqüência questões entre si que os proprietários de bens separados [... . Encontrar-se-iam aí] os benefícios dos dois sistemas, quer dizer, da propriedade possuída em comum e da posse individual, con-comitantemente” (ARISTÓTELES, 2002, p. 44-45).

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Santo Ambrósio, propugnando por uma sociedade mais justa com a propriedade comum, ou Santo Agostinho, condenando o abuso do homem em relação aos bens dados por Deus, e Santo Tomás de Aquino, que vê na propriedade um direito natural que deve ser exercido com vista ao bonum commune (ARAÚJO, 1977, p. 7).

Foi através daqueles padres-fi lósofos, inclusive, que passou a ser formado materialmente o posicionamento da Igreja acerca da matéria, corporifi cado em diversas encíclicas que representaram infl uência para a evolução da ideia de propriedade, entre as quais podem ser destacadas a Rerum Novarum9 (1891), Leão XIII; Quadragesimo Anno10 (1931), de Pio XI; e Mater et Magistra11 (1961), de João XXIII. Pode-se a elas avizinhar a encíclica Libertas Præstantissimum (1888), também elaborada por Leão XIII, na qual aquele pontífi ce questiona a liberdade preconizada pela doutrina liberal, uma vez que dissociada do bem comum12.

Foi na metade do século XIX, com o positivismo de Auguste Comte, que se viu inaugurada a terminologia função social da propriedade, nos termos que se transcrevem:

Les sentiments d’invidualisme comme les vues de détail ont dû prévaloir pendant la longue transition révolutionnaire qui nous sepaire du moyen age. Mais les uns conviennent encore moins que les autres à l’ordre fi nal de la société moderne. Dans tout état normal de l’humanité, chaque citoyen quelconque constitue réellement um fonctionnaire public, dont les attributions plus ou moins défi nies déterminent à la fois les obligations et les prétentions. Ce principe universel doit certainement s’étendre jusqu’á la proprieté, où le positivisme voit surtout une indispensable fonction sociale, destineé à former et à administrer les capitaux par lesquels chaque génération prepare les travaux de la suivante. Sagement conçue, cette appréciation normale ennobilit sa possession, sans restreidre sa juste liberté, te même en la faisant mieux respecter (1851, p. 156, com grifos nossos).

Comte afi rmava que a sua doutrina, em diversos aspectos, absorvia o que ele considerava a natureza social da propriedade e a necessidade de sua regulação, desenvolvendo tal ideário, por não o conceber incompatível com a propriedade privada:

Également poussé par sa réalité caractéristique et sa tendence constante à consacrer la raison au service du sentiment, le positivisme est doublement entrané a systématizer le principle spontané du communisme sur la nature sociale de la proprieté et sur la necessité de la régler. Les vrais philosophes n’hesitent point à

9 “Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não o pode, pois, abolir, o que ela pode é regular-lhe e conciliá-lo com o bem comum”.

10 “Efetivamente, que deva o homem atender não só ao próprio interesse, mas também ao bem comum, deduz-se da própria índole, a um tempo individual e social, do domínio a que nos referimos”.

11 “A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito que se exerce em proveito próprio e para o bem dos outros”.

12 “Em uma sociedade humana, a verdadeira liberdade não consiste em fazer o capricho pessoal de cada um”.

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sanctionner directement les réclamations instinctives des prolétaires envers la vicieuse défi nition adoptée par la plupart des juristes modernes, qui attribuent à la proprieté une individualité absolue, comme droit d’user et d’abuser. Cette théorie antisociale, historiquement due à une réaction exagérée contre des oppressiones exceptionelles, est autant dépourvue de justice que de réalité. Aucune proprieté ne pouvant être créée, nu même transmise, par son seul possesseur, sans une indispensable coopération publique, à la fois spéciale et gènèrale, son exercice ne doit jamais être purement individuel (COMTE, 1851, p. 154-155).

Nessa esteira, mostrou-se essencial para a delimitação e difusão da ideia de função social da propriedade a doutrina do solidarismo social de Léon Duguit, cujos efeitos puderam ser sentidos logo no início do século XX, mormente entre a I e a II Guerra Mundial. Os traços basilares daquela doutrina são resenhados no excerto:

Todo individuo tiene en la sociedad una cierta función que cumplir, una cierta tarea que ejecutar. Y este es precisamente el fundamento de la regla de derecho que se impone a todos, grandes y pequeños, gobernantes y gobernados [...]. Todo hombre tiene una función social que llenar, y por consecuencia tiene el deber social de desempeñarla; tiene el deber de desenvolver, tan completamente como le sea posible, su individualidad física, intelectual y moral para cumplir esa función de la mejor manera posible y nadie puede entorpecer ese libre desenvolvimiento (DUGUIT, 1920, p. 36-37).

Essa teoria, segundo Arnaldo Vasconcelos,

investe contra os dogmas do civilismo clássico, a saber: a liberdade individual, o direito absoluto de propriedade, a autonomia contratual e o princípio da responsabilidade por culpa [...]. O princípio básico do solidarismo formula-se em atenção às possibilidades positivas e negativas do homem: nada fazer que prejudique a solidariedade social e tudo fazer para realizá-la e promovê-la. Assim agindo, o homem cumpre sua função social (1996, p. 112).

Inspirado pelo positivismo comteano, Duguit destacava, entre as várias funções que o homem deveria desempenhar em prol da sociedade, a propriedade, a qual consubstanciaria uma função social. Segundo ele, o dono teria, pela sua própria condição, uma função social a desempenhar. Enquanto o fi zesse, seus atos estariam protegidos. Se não o fi zesse ou o fi zesse mal, deveria o Estado intervir para obrigá-lo a exercer sua função (DUGUIT, 1920, p. 14 et seq.).

Para aquele pensador, a propriedade somente se legitimaria através de sua utilidade social, a qual resultaria de verdadeira modifi cação em sua natureza. Segundo Duguit, a propriedade deixaria de ser encarada como direito subjetivo para passar a ser vislumbrada como função social (DUGUIT, 1923, p. 618).

Os próprios teóricos do capitalismo puro, através dos adeptos da corrente denominada marginalismo econômico, que pode ser considerada a última formulada sob a égide daquele regime, contribuíram no fi nal do século XIX e início do século XX para a reformulação da visão que pairava sobre a propriedade, por considerar, entre outras coisas, que “as necessidades do homem satisfazem-se gradualmente e, na medida

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em que aumenta a quantidade de bens, reduz-se a satisfação por eles propiciada” (FALCÃO, 1981, p. 132), ou seja, os bens aumentam em relevância na medida em que diminuem em quantidade. Aqueles que mais têm veem nas coisas valor inferior àquele considerado por quem menos tem. Daí porque defendiam os marginalistas econômicos que o capital inútil gerado pelo excesso de acumulação deveria ser tributado para proporcionar a sua redistribuição. Defendiam eles, ainda, denotando de forma lúcida a insustentabilidade prática do capitalismo liberal, que

o grau de efi ciência que os investimentos proporcionam à economia como um todo e, portanto, à sociedade, é de capital relevo na aferição do bem-estar social advindo do incremento de capital e dos seus efeitos, seja aumentando o produto nacional, seja corrigindo o fl uxo de investimentos para regiões ou setores de maior interesse para a economia e para a sociedade (FALCÃO, 1981, p. 133).

Essa última corrente do capitalismo liberal exerceu infl uência não apenas para a concepção do regime intervencionista que assumia forma e logo se instalaria, mas, antes, no texto da Constituição mexicana de 1917 e na Constituição alemã de 1919, quando se inaugurava o Estado do Bem-Estar Social. O art. 27 da primeira estabelece, no tocante às “terras e águas compreendidas dentro dos limites do território nacional”, a distinção entre a propriedade originária, que pertence à nação, e a propriedade derivada, que é gerada pela transmissão da primeira aos particulares, gerando a propriedade privada. Já se percebe ali a ideia de que o proprietário exerce uma espécie de múnus público, o que é reforçado por outros excertos daquele dispositivo, segundo o qual:

La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público, así como el de regular, en benefi cio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana.

Aboliu-se, destarte, em nível constitucional, o caráter absoluto da propriedade privada, submetendo-se o seu uso, incondicionalmente, ao interesse da coletividade. A Carta Mexicana de 05 de fevereiro de 1917, fruto da revolução instaurada naquele país em igual ano, apresenta-se como marco na história contemporânea, ante a notória ruptura que intentou perante o individualismo, consubstanciada, v.g., na remodelação jurídica da propriedade privada e na elevação dos direitos trabalhistas à condição de direitos fundamentais.

Já a Constituição de Weimar (1919), inspirada pela situação periclitante na qual se encontravam os trabalhadores na Alemanha do alvorecer do século passado e pelos elevados índices de desemprego então verifi cados naquele país, prescreve em seu art. 153:

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A Constituição garante a propriedade. O seu conteúdo e os seus limites resultam da lei. A expropriação tem de ser determinada pelo bem comum e dá-se em virtude de disposições legais e mediante justa indenização, exceto nos casos declarados na lei. [...] A propriedade obriga. Seu uso deve ao mesmo tempo representar um serviço ao interesse social (com grifos nossos).

O texto exprime que a propriedade não consiste apenas em garantia do proprietário, mas gera também obrigações que por ele devem ser desempenhadas em favor da sociedade, noção que se vê reforçada pela primeira parte da terceira alínea do seu art. 155: “O proprietário do solo é obrigado perante a comunidade a cultivá-lo e explorá-lo”.

A evolução da ideia de propriedade e a fundamentação teórica de sua função social, aqui sumariamente expostas, possuem não apenas o condão de propiciar um melhor entendimento acerca de seus delineamentos atuais, mas também de demonstrar o já mencionado dinamismo que paira sobre o seu regramento jurídico, o que corrobora a lição de Messineo, para quem “la propiedad es el instituto jurídico de mayor sensibilidad a las alteraciones económicas e sociales” (MESSINEO, 1954, p. 249). Explicita-se, assim, que a noção tida atualmente sobre a propriedade, a qual se fará adiante analisada, é uma das várias que se apresentaram e que preponderará até seja modifi cada pela força da história. Somente o tempo dirá como e quando.

2 NATUREZA JURÍDICA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Toda a evolução antes apontada converge para a explicitação do caráter social que passou a ser gradativamente verifi cado na propriedade. Sua funcionalização, antes de vivenciada pelos ordenamentos dos diversos países, assumiu, em consequência do movimento dos tempos e dos esforços empreendidos pelos indicados pensadores e por tantos outros, a condição de um valor. Essa é a natureza primeira da função social da propriedade, a qual, durante muito tempo, não passou do plano axiológico – o que não obsta que tenha ela orientado a conduta de muitos.

Tal valor, como se analisou alhures, passou a ser incorporado aos ordena-mentos, através de suas Constituições, numa tendência que timidamente se viu principiada. É inexata a noção de que a função social da propriedade existe somente no direito, pois este apenas a reconhece, juridicizando-a. Essa incorporação apenas insere no mundo jurídico aquele valor, o qual lhe é anterior. Do ensinamento de Cabral de Moncada extrai-se que

a Constituição não cria os valores: recebe-os e, do mesmo passo, positiva-os. [...] Ao positivá-los, dá-lhes seguramente um tratamento que é constitutivo do regime jurídico que para eles reconhece como sendo o mais adequado. [...] Os valores constitucionais [...] não são resultado de decisões normativas do poder constituinte ou constituído. Nenhum legislador os cria porque lhe são anteriores, apenas os reconhece e disciplina no seu articulado legal (2001, p. 393).

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Reconhecendo e disciplinando o valor correspondente à função social da propriedade, o legislador acaba por excluir da consagração da órbita jurídica valores com aquele inconciliáveis, como o são os decorrentes do liberalismo e do socialismo, em suas formas puras ou ideais.

Nos ordenamentos jurídicos em que a função social da propriedade se vê inserta, resulta ela caracterizada como princípio jurídico. Não se almeja, com isso, excluir o caráter axiológico daquela função, pois não há como negar que o direito assume as dimensões de fato, valor e norma, como explicitado magistralmente no tridimensionalismo realeano. Ocorre que a inserção daquele valor no direito, como princípio (norma), através do processo denominado dialética de implicação-polaridade, verifi cado na nomogênese, é o que lhe atribui juridicidade. Intenciona-se aqui ressaltar exatamente que aquele valor foi alçado ao nível jurídico, chegando a assumir o caráter de princípio. É o que se procurará demonstrar doravante.

Como ensina Miguel Reale, princípios jurídicos “são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a criação de novas normas” (REALE, 2000, p. 306). Aquele autor chega a exemplifi car como princípio a função social da propriedade, demonstrando, com tal indicação, coerência com o conceito por ele formulado, tendo em vista que:

a) diversas condutas podem ser enquadradas como adequadas ou infringentes à função social da propriedade, o que responde pelo caráter genérico desta; e

b) a efetivação da função social da propriedade manifesta-se precisamente nos sentidos preconizados pelo conceito de Reale – a aplicação ao caso concreto (isoladamente ou em comunhão com outros princípios ou regras), a colmatagem de eventuais lacunas no ordenamento jurídico e a elaboração de outras normas jurídicas (REALE, 2000, p. 307).

Igual conclusão também pode ser alcançada com fulcro no pensamento de Dworkin, o qual, ao proceder à distinção entre princípios e regras (1997, p. 72 et seq.), afi rma que aqueles são caracterizados por:

a) não serem invalidados pela existência de outras normas com eles incompatíveis no mesmo ordenamento jurídico, ou seja, não se pode dizer que, ocorrido determinado fato concreto, a aplicação de uma outra norma em detrimento do princípio afasta a sua validade. Isso não ocorreria com as regras, as quais, segundo Dworkin – numa linguagem adequada à common law –, “son aplicadas a la manera de disyuntivas. Si los hechos que estipula una norma están dados, entonces o bién la norma é válida, en cuyo caso la respuesta debe ser aceptada, o bién no los es, y entonces no aporta nada a la decisión” (DWORKIN, 1997, p. 75); e

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b) possuírem uma dimensão de peso – dimension of weight – ou importância, a qual determinará se sua aplicação será prevalente ou mitigada em caso de haver confl ito com outro princípio, de sorte que dois princípios podem ser considerados válidos, não obstante confl itantes: “los principios tienen una dimensión que falta a las normas: la dimensión del peso o importancia. Cuando los principios se interferen, quién debe resolver el confl icto tiene que tener en cuenta el peso relativo de cada uno” (DWORKIN, 1997, p. 77).

Os caracteres preconizados por Dworkin podem, a título de exemplifi cação, ser verifi cados no cotejo entre a função social da propriedade e a liberdade de iniciativa: ambas podem confl itar, mas subsistirão válidas. Além disso, também possuem uma dimensão de peso a ser aferida no caso concreto, a qual determinará a proporção de sua efi cácia.

Forçoso anotar a circunstância de que Dworkin, ao propor sua crítica à noção positivista de que o direito apenas seria composto de regras, recorre ao termo princípio para referir-se a qualquer norma integrante de um ordenamento. Para ele, os princípios poderiam apresentar-se sob dois formatos: o de princípio stricto sensu ou o de diretriz. Esta representaria o “tipo de estándar que propone un objetivo que ha de ser alcanzado; generalmente, una mejora en algún rasgo económico, político o social de la comunidad”, ao passo que aquele seria “un estándar que ha de ser observado, no porque favorezca o asegure una situación económica, política o social que considera deseable, sino porque es una exigencia de la justicia, la equidad o alguna otra dimensión de la moralidad” (DWORKIN, 1997, p. 72). Conclui-se que a função social da propriedade, na doutrina daquele pensador, apresenta-se como princípio (em sentido lato), mas consubstancia clara manifestação da espécie diretriz.

Outra propalada e pertinente distinção entre princípios e regras é a formulada por Alexy, para quem as regras seriam mandatos defi nitivos, enquanto os princípios seriam mandatos de otimização. Para aquele jurista alemão, os princípios seriam assim caracterizados porque “ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, de acordo con las posibilidades jurídicas e fácticas”. Não há nos princípios, pois, a orientação para que o valor neles inserto seja plenamente efetivado. Assim como Dworkin, Alexy aponta como precípuo critério distintivo entre as regras e os princípios reside na atividade de ponderação exigida quando da colisão destes (ALEXY, 1997, p. 86 e 89).

Como se vê, a distinção entre princípios e regras preconizada por Dworkin e Alexy é essencialmente a mesma, como reconhece Paulo Bonavides (2001, p. 248), e reforça a conclusão de que a função social da propriedade apresenta a natureza jurídica de princípio.

Acrescente-se que em nosso direito, assim como nas legislações da atualidade, o princípio da função social da propriedade ostenta cunho constitucional, detendo aplicabilidade imediata (art. 5o, §1º, da Constituição Federal) (SILVA, 2002, p. 281-282).

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3 REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL PARA A REINVESTIGAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA PROPRIEDADE

Já se pôde perceber nas linhas antes desenvolvidas que a noção de propriedade sofreu inúmeras alterações no curso da história. Essa mutabilidade parece ser inerente à sua natureza, por conta da inegável relação existente entre o delineamento da propriedade e as doutrinas econômicas, sociológicas e políticas vivenciadas pelo homem através dos tempos.

Como exemplo disso, sabe-se que o extremo individualismo que informava o regulamento da propriedade já fora apto para conduzir à concepção de que o proprietário e a coisa mantinham entre si uma relação jurídica, a qual a mais ninguém interessaria (GONÇALVES, 1952, p. 53).

Divisada na propriedade atualmente uma função social, forçoso se mostra reinvestigar a sua natureza jurídica.

Antes dessa modifi cação efetiva do tratamento jurídico da propriedade, todas as considerações tecidas pela doutrina nesse tocante pareciam convergir para encarar a propriedade sob dois aspectos primazes:

– seria a propriedade direito subjetivo e– seria a propriedade absoluta, no sentido de ser ampla a liberdade do proprietário

ao extrair as benesses que lhe são deferidas pela coisa, encontrando apenas as limitações impostas pela lei.

Oportuno ressaltar que símile posicionamento também se faz assumido em estudos que, não obstante posteriores à efetiva inserção do princípio da função social no regramento da propriedade, parecem insistir em olvidá-la ou deferir-lhe menor atenção, o que, restando demonstrada tal alteração do regulamento jurídico da propriedade, pode ser justifi cado como ranço da ultrapassada secessão entre o Direito Civil e o Direito Constitucional e da insistência no caráter individualista da propriedade. Demonstração disso é a circunstância de os compêndios de Direito Civil normalmente referirem-se à função social como limitação da propriedade (v., entre outros, VENOSA, 2003, p. 157, 163 e 164). Esse aspecto é hábil para reforçar a relevância do estudo a ser doravante desenvolvido.

Insta, primeiramente, arrolar alguns conceitos de propriedade, a fi m de verifi car a correção do antes asseverado, indicando-se, em início, os formulados por Orlando Gomes. O autor apresenta três conceitos que afi rma serem complementares entre si. Consoante o primeiro, de cunho sintético, seria a propriedade a “submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa”. Num conceito analítico, seria “o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua”. Por fi m, numa abordagem descritiva, seria a propriedade “o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fi ca submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei” (GOMES, 2004, p. 109).

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Símiles elementos podem ser identifi cados no conceito elaborado por Cunha Gonçalves. Para ele, a propriedade é o direito “que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa cousa certa e determinada, em regra, perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar”. A amplitude dos poderes do proprietário é ressaltada mediante a atribuição de um caráter “normalmente absoluto” à propriedade, em virtude do qual “o proprietário pode gozar da sua coisa pelo modo que lhe aprouver, transformá-la, abandoná-la, destruí-la”. Quanto ao caráter exclusivo da propriedade, aquele jurista afi rma signifi car que “o proprietário pode opor-se a que outra pessoa tire da sua cousa qualquer proveito, sem seu consentimento, salvas as restrições do mesmo direito fi xadas na lei” (GONÇALVES, 1952, p. 66).

Faz-se mister frisar que o caráter absoluto da propriedade, com o qual lhe qualifi cam os mencionados autores, não pode ser encarado no sentido de ausência de limitação aos poderes do proprietário. Ora, tal análise negaria o direito, mesmo que encarado sob uma acepção liberal. A prescrição de limites à conduta humana é essencial ao direito, não obstante a isso ele não se resuma. Direito e absolutismo – em sua acepção pura – são, pois, conceitos mutuamente excludentes.

O absolutismo da propriedade encerra, na verdade, sua oponibilidade erga omnes, ou seja, contra todos, característica comum a todos os direitos reais. Isso signifi ca que o exercício regular da propriedade deve ser respeitado pela universalidade dos indivíduos, que não devem interferir no âmbito do proprietário, consoante disciplinar a norma jurídica. Quando surgida alguma conduta tendente àquela interferência, pode o proprietário opor seu direito em face da pretensão alheia, a qual, destarte, não receberá a guarida do ordenamento jurídico. Não há mais como vislumbrar a propriedade como relação entre sujeito e coisa13, o que importaria, no mínimo, o inestimável equívoco de personifi car a coisa ou – o que é pior – coisifi car o sujeito, em visível atentado à dignidade da pessoa humana. Em sede de propriedade, a relação jurídica dá-se entre o proprietário e todo o restante da coletividade, o qual se costuma denominar sujeito passivo universal14.

13 Cunha Gonçalves afi rmava que, nos direitos reais, “fi gura uma só pessoa ativa, isto é, a relação existe diretamente, entre uma pessoa e uma cousa certa, e indiretamente, com a generalidade de pessoas in-determinadas, que só têm o dever genérico e passivo de não-lesar, não-perturbar ou impedir o exercí-cio de tais direitos” (1951, p. 64). Atualmente, não há como dar acatamento à afi rmação do eminente jurista quanto à existência de uma relação entre pessoa e coisa, a qual apenas pode ser delineada em sentido fi gurado e alheio à ciência jurídica.

14 Orlando Gomes alude a uma distinção entre o caráter absoluto dos direitos reais e sua oponibilidade erga omnes – aqui tratados indistintamente –, embora afi rme que “o direito real, sendo um direito absoluto, opõe-se a todos, que teriam um dever negativo” (com grifos nossos). Para o mestre baiano, a oponibilidade representaria o “poder que tem o titular de tornar efi caz e exercer o direito

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Encarado o absolutismo da propriedade como plenitude de poderes, ocasionar-se-iam efeitos que inviabilizariam a convivência social, pois, como pontifi ca José de Oliveira Ascensão, a propriedade “é o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à coisa se podem referir” (1993, p. 448). Com efeito, indubitável ser a propriedade o direito real mais amplo que há. Todos os demais direitos reais, ditos direitos reais sobre coisa alheia (jus in re aliena)15, seriam fruto de desmembramento dos poderes ínsitos à propriedade (jus in re propria). Destarte, é impensável que tal poder não encontre amarras e, de fato, a propriedade sempre encontrou limites de maior ou menor extensão.

Também assevera Pontes de Miranda que propriedade16 é “o mais amplo direito sobre a coisa” (1983, p. 9), mas reconhece aquele jurista que o proprietário sofre limitações, embora sejam elas alheias ao conteúdo do direito de propriedade, ou seja, a essência desse direito em nada exige tais limitações; elas não integram o direito em si, mas apenas lhe traçam os contornos. Essa ideia se coaduna com a noção de ser a propriedade um direito subjetivo, sobre cuja noção pondera o próprio Pontes de Miranda, ao afi rmar que “todo direito subjetivo é linha que se lança em certa direção. Até onde pode ir, ou até onde não pode ir, previsto pela lei, o seu conteúdo ou seu exercício, dizem-no as regras limitativas, que são regras que confi guram, que traçam a estrutura dos direitos e da sua exercitação” (MIRANDA, 1983, p. 18).

Nessa linha de pensamento, o autor enfatiza sua discordância em face das doutrinas que se inclinam à inserção de limitações na própria estrutura do direito de propriedade:

A tentativa de apontar os limites legais como algo que desce à própria fi nalidade da propriedade proveio da preocupação defensiva de teorias políticas de extrema direita, que, diante da transformação da economia e do direito, quiseram negar serem algo de extrínseco essas limitações de conteúdo. Com isso, pretendiam aproximar-se da antítese, que seria a publicização radical pregada pelo comunismo, apresentando-se como síntese (MIRANDA, 1983, p. 16).

Não há, contudo, como negar os refl exos que essas transformações econômicas e jurídicas representaram para o modo com que se encara a propriedade. Ora, ela hoje existe porque o direito lhe assegura existência e é esse mesmo direito que preceitua a

sobre a coisa em cotejo com qualquer pessoa que se encontre eventualmente em relação com a mesma coisa”, enquanto o caráter absoluto redundaria na suscitação de uma “obrigação passiva universal”, ou seja, num dever coletivo de não-ingerência (1981, p. 54).

15 No atual direito brasileiro, tais direitos vêm arrolados, ao lado do de propriedade, no art. 1225 do Código Civil, a eles devendo ser aduzida a enfi teuse, por força do art. 2038 daquela Lei.

16 Aqui o conceito é empregado no sentido estritíssimo, na terminologia adotada pelo jurista alagoano. Para ele, a propriedade seria, em sentido amplíssimo, sinônima a patrimônio. Em sentido amplo, o termo designaria qualquer direito real (MIRANDA, 1983, p. 9).

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sua estrutura, estabelecendo os contornos do âmbito de atuação do proprietário. Se o tratamento juridicamente deferido à propriedade nos tempos atuais é diverso do de outrora, forçoso perquirir se remanesce sua caracterização como direito subjetivo. Para tanto, deve-se analisar se a norma apenas limita a ação do proprietário ou se a este é remetida juridicamente alguma prestação de cunho positivo. Em sendo a propriedade direito subjetivo, seria possível afi rmar que o proprietário encontrará apenas os limites que a norma jurídica traça ou também serão a ele confi adas prestações positivas? Cumpre identifi car, pois, o que se deve entender por direito subjetivo, a fi m de verifi car a sua compatibilidade com a noção atual de propriedade.

Nos termos da lição de Goffredo Telles Júnior:

Os direitos subjetivos são permissões dadas por meio de normas jurídicas. [...] Quem tiver permissão jurídica para fazer ou não fazer alguma cousa, para ter ou não ter alguma cousa, possui o direito (o direito subjetivo) de fazê-la ou não fazê-la, de tê-la ou de não tê-la (TELLES JÚNIOR, 1977, p. 298).

Símile é noção de Miguel Reale, para quem “direito subjetivo é a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio” (REALE, 2000, p. 262).

Oportuno indagar se se enquadraria nesses conceitos a propriedade, considerado o tratamento jurídico a ela dispensada na atualidade. Seriam conferidas ao proprietário apenas permissões ou também deveres? Atribuir-se-ia ao dono apenas a possibilidade de exigir algo ou poderia ele ser exigido para algo?

Caio Mário da Silva Pereira ressalta de modo lapidar e sintético a conformação hoje verifi cada para a propriedade, o que se apresenta de inestimável relevância para alcançar as respostas a tais questionamentos:

[...] Crescem os processos expropriatórios, sujeitando a coisa à utilidade pública e aproximando-a do interesse social. Condiciona-se o uso da propriedade predial a uma conciliação entre as faculdades do dono e o interesse do maior número; reduz-se a liberdade de utilização e disposição de certos bens; sujeita-se a comercialidade de algumas utilidades a severa regulamentação; proíbe-se o comércio de determinadas substâncias no interesse da saúde pública; obriga-se o dono a destruir alguns bens em certas condições [...]. A ordem jurídica abandonou a passividade que guardava ante os confl itos de interesses e passou a intervir [...] no propósito de promover o bem comum [...]. Garante a ordem pública a cada um a utilização de seus bens, nos misteres normais a que se destinam [...] mas, em qualquer circunstância, sobrepõe o social ao individual (2004, p. 85-87).

Como se vê, não mais há como serem abrangidos pelos estreitos lindes da noção clássica de direito subjetivo as notas atribuídas à propriedade na atualidade. O comportamento do proprietário deixou de ser apenas limitado pela norma jurídica, passando a ser também por ela prescrito. A norma atribui ao proprietário não apenas

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poderes, como fazia outrora, mas poderes e deveres, em decorrência da consagração da função social da propriedade. Esta ostenta, assim, duas facetas que se integram e complementam: uma, negativa, ante a qual os clamores do interesse social impõem ao proprietário limites a seu poder, e outra, positiva, que remete ao proprietário deveres cujo descumprimento enseja as sanções cominadas pela norma.

Daí porque não se pode considerar a função social da propriedade como mera limitação aos poderes do proprietário, pois, como afi rma Orlando Gomes, “as limitações atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua substância [...]. Sua fi nalidade social determina a modifi cação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política das limitações específi cas ao seu uso” (2004, p. 128-129).

Resulta evidenciado que a propriedade não mais faz surgir apenas liberdades e limites para o proprietário e limitações para os não-proprietários. Atualmente, não se pode apenas afi rmar que o proprietário pode ir até onde lhe seja permitido. A ele são também atribuídas pela norma prestações positivas17, para que exerça a propriedade de modo a extrapolar o perímetro traçado em torno dela pelo interesse individual e, assim, aproximar-se do interesse coletivo. Não é diversa a opinião de Eros Grau, que leciona:

Analisados os conjuntos das disposições normativas em que se desenham os perfi s dos direitos de propriedade, nos quais o legislador ordinário contempla, sob a inspiração da função social, limitações da propriedade, verifi caremos que, algumas vezes, neles se inserem comandos voltados não apenas à limitação do exercício do direito – para que não venha a contrariar a utilidade social – mas também à promoção do exercício de tal direito de modo mais compatível àquela utilidade (GRAU, 1977, p. 20).

O princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário [...] o dever de exercê-la em benefício de outrem, e não apenas de não a exercer em prejuízo de outrem [...]. A função social da propriedade atua como fonte de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não meramente de não fazer – ao detentor do poder que defl ui da propriedade (1990, p. 250).

Aquele autor também afi rma ser incompleta a ideia de que a propriedade não deve ser empregada de modo a contrariar a sua utilidade social, aduzindo que, nas formas de propriedade que considera afetadas pelo princípio da função social, não há

17 Não se pode, destarte, ratifi car o pensamento de Vicente Rodrigues Alves, segundo quem “a função social da propriedade, conceito ligado à crescente relativização dos direitos, traduz-se numa não-con-trariedade a interesses sociais relevantes pelo titular do direito de propriedade, ou por outrem, na efeti-vação de seus interesses particulares. [...] Não se trata de reconhecer, com a idéia de que o exercício do direito de propriedade tem uma função social, deveres, mas de limitar direitos, de modo que o interesse individual, em sociedade, fi que com sua ação ou mesmo omissão limitada à justa liberdade da ação ou omissão alheia, diante do interesse coletivo nos seus justos limites” (ALVES, 1992, p. 185-186).

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apenas propriedade, mas propriedade-função social. Para ele, o princípio da função social da propriedade impõe profundas alterações estruturais no conceito jurídico-positivo da propriedade (GRAU, 1990, p. 251).

Reafi rma-se, com isso, ante as substanciais alterações impostas à propriedade pela ordem jurídica, não haver como insistir em considerá-la direito subjetivo, pelo menos se considerado nos moldes em que foi caracterizado supra. A propriedade, ante a função social que lhe impregna, não é por ela meramente limitada, mas também estruturada. O proprietário de hoje o é para atender aos seus interesses e aos interesses da sociedade, detendo um poder-dever, de sorte que propriedade e função social passam a ser conceitos indissociáveis. Daí porque alguns passaram a referir-se à propriedade como função social, como visto alhures. Nesses termos, vislumbrar-se-ia nas mãos do proprietário não um direito, mas uma função social a ser por ele desempenhada.

Desponta como expoente maior dessa tese o já comentado Léon Duguit, para quem “la proprieté n’est plus le droit subjectif du propriétaire, elle est la fonction sociale du détenteur de la richesse”, “la conception de la propriété droit subjectif disparaît pour faire place à la conception de la propriété fonction sociale” (1923, p. 618-620).

Malézieux corrobora tal entendimento, ao afi rmar:

Dans la conception classique, le droit de proprieté conferait essentiellement des prérogatives à son titulaire. D’importantes tranformations conduisent peu à peu à une notion assez différente envertu de laquelle le proprieté a non seulemente des droits mais également des devoirs. On a pu dire que le proprieté, envisagée à l’origine comme une liberté individuelle, s’est peu à peu transformée en fonction sociale (MALÉZIEUX, 1973, p. 24).

Entre nós, Antônio Jeová Santos apregoa que a teleologia do direito “foi se desenvolvendo no fl uir da história até abrir o rumo tendente a compreender a propriedade como uma função que tem que ser cumprida, uma função social, e que, enquanto o proprietário a cumpra, seus atos estarão protegidos” (2004, p. 123).

A resposta ao problema, contudo, parece não consistir em enquadrar-se a propriedade no conceito de direito subjetivo ou no de função social, mas em verifi car-se a adequação de tais conceitos à realidade atual.

Considerar atualmente o direito subjetivo como mera faculdade de agir (facultas agendi), conforme concebido pela pandectística, equivaleria a olvidar a evolução imposta pelas sucessivas doutrinas econômicas e políticas antes analisadas. Ser titular de um direito não mais signifi ca ter à disposição um abrigo contra intervenções de outrem, como se verifi cava outrora. Os direitos não mais podem ser encarados apenas sob uma perspectiva individual, mas também coletiva. Na precisa anotação de Orlando Gomes, não mais se mostra viável assimilar as notas clássicas do direito subjetivo,

admissíveis no quadro político do liberalismo marcado pela contraposição do indivíduo ao Estado, mas defasadas à medida que o Estado foi abandonando sua

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posição omissiva, a autonomia privada começou a murchar e a noção de dever se impôs no plano dos comportamentos individuais antes que de direitos (1981, p. 57).

Por outro lado, a orientação do extremo oposto, em que se divisaria a afi rmação de que a propriedade tornou-se função social, pode conduzir à errônea noção de que o proprietário deve aplicá-la em detrimento de seus interesses individuais. Como ensina Messineo, “función es una potestad que se ejercita, no por un interés propio (o al menos no por un interés exclusivamente propio), sino por un interés ajeno, o por un interés objetivo” (MESSINEO, 1954, p. 254), i.e., por um interesse que se situa fora do indivíduo que exercita o mencionado poder. Nesse sentido, esclarece Fábio Konder Comparato que o termo função, em direito, representaria um poder-dever através do qual o agente perseguiria sempre o interesse alheio e não os seus interesses próprios, sendo qualifi cada de social se desempenhada em benefício da coletividade, e não no de pessoas determinadas (COMPARATO, 1996, p. 41).

A caracterização da propriedade como uma função resultaria, pois, na conclusão de que o proprietário agiria prioritariamente para a satisfação do interesse social, de sorte que os benefícios que a propriedade lhe proporcionaria seriam apenas indiretos. Não é essa, em verdade, a tese que encontra ressonância nos ordenamentos hodiernos, a exemplo do que se verifi ca no direito doméstico (art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição Federal). Diga-se, ademais, que tal conclusão negaria o já exposto caráter dialético da propriedade ora vigorante, ao distanciá-la dos interesses individuais.

Percebe-se que é o conceito de direito subjetivo, em verdade, aquele que se apresenta merecedor de modifi cação, a fi m de adequar-se também aos ditames do social, ao lado do individual, o que já vem sendo observado pela doutrina. Insere-se agora na noção de direito subjetivo a prescrição de condutas ativas por parte de seu titular, o que já se identifi cava no art. 153 da Constituição de Weimar, antes transcrito (v. item 1, supra), especifi camente no que toca ao direito subjetivo do proprietário: a propriedade obriga.

Radbruch reconhece tal modifi cação conceitual no direito subjetivo, a qual vislumbra como uma “penetração que sofre a facultas agendi por uma idéia de dever ou função social com um determinado conteúdo”, apontando exatamente a propriedade como exemplo dessa evolução (RADBRUCH, 1997, p. 257).

Nesse sentido, pontifi ca Orlando Gomes que

o direito não mais pode ser concebido na época atual como um mero sistema de limites às esferas jurídicas individuais ou como um sistema de imperativos estatuídos pelo Estado em defesa de tais esferas, já tendo passado a ser considerado um fator institucional na vida econômica e social (1981, p. 58).

Constata-se, ante o exposto, que a propriedade conforma-se atualmente como direito subjetivo de natureza real, no qual se insere a orientação de uma função social.

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Garantem-se ao proprietário as vantagens proporcionadas pela coisa sob sua senhoria, mas lhe são impostos limites e deveres para que tal coisa também se veja a serviço da sociedade. Nessas linhas se desenvolveu o art. 832 do Código Civil italiano de 1942, o qual, em plena ilustração aos novos contornos assumidos pelo direito de propriedade, preceitua que “il proprietario ha diritto di godere e disporre delle cose in modo pieno ed esclusivo, entro i limiti e con l’osservanza degli obblighi stabiliti dall’ordinamento giuridico”18.

Era tal a tese que Cimbali, ainda nos albores do século XX, preconizava para a propriedade. Afi rmou aquele civilista italiano:

La proprietà, oltrechè diritto e più che semplice diritto individuale, è altissima funzione sociale [...]. L’esercizio del diritto trova il suo titolo e le sue condizioni nell’adempimento dei doveri, che ad esso si collegano. Ciò, come avviene per altri diritti, con maggiore ragione deve aver luogo nel diritto di proprietà, che è quello chiamato a provvedere dei mezzi di sussistenza e di sviluppo la convivenza sociale (CIMBALI, 1907, p. 187-188).

Eros Grau, corroborando tal entendimento, não vislumbra nenhuma incom-patibilidade entre a noção de direito subjetivo e a de função social da propriedade, inexistindo, segundo ele, qualquer contradição dogmática entre elas (1983, p. 70).

José Afonso da Silva reconhece as modifi cações impostas pela função social à natureza da propriedade, retirando-lhe o caráter privado para inseri-la no Direito Público. Cinge-se, contudo, a afi rmar a inserção da função social no direito de propriedade, quando assevera que “o direito de propriedade (dos meios de produção especialmente) não pode mais ser tido como um direito individual. A inserção do princípio da função social, sem impedir a existência da instituição, modifi ca sua natureza” (2002, p. 280-283).

A maior parte da doutrina aponta no sentido de ser a propriedade um direito subjetivo integrado por uma função social19, conclusão à qual se afi lia a análise ora delineada. É sob esse prisma, pois, que deve ser entendida a expressão “direito de propriedade” a que aludem os arts. 5º, XXII, da Constituição Federal, e 1228, §1º, do Código Civil de 2002.

18 Analisando tal dispositivo, Messineo também defende o ora asseverado, embora prefi ra afi rmar que “se atribuye a la propiedad una fi nalidad, pero no una función social”, apenas para o preciso fi m de esclarecer que não era o objetivo do legislador italiano de 1942 “concebir la propiedad como función”, o que se resume a uma divergência meramente terminológica. Daí porque aduz que “una cosa es ejercer también una función social, y otra es que la propiedad sea exclusivamente una función y que el propi-etario, al actuar, no pueda perseguir ningún interés suyo propio” (MESSINEO, 1954, p. 254-255).

19 Entre outros, GOMES, 1977, p. 171-172, e VAZ, 1993, p. 153. Esta afi rma que todas as formas de pro-priedade são “submetidas ao preceito de função social, que não acarreta [...] a supressão do princípio constitucional garantidor do direito à propriedade privada”, apenas modifi cando a natureza do direito subjetivo do proprietário (loc. cit.).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, pode-se concluir que:

a) o surgimento do Estado Intervencionista, o qual reuniu elementos oriundos do liberalismo e do socialismo, permitiu a concepção de uma propriedade dotada de função social, ante a qual o proprietário deveria conduzir-se de modo a compatibilizar os seus interesses individuais e os interesses coletivos;

b) tal função social da propriedade, da qual se originou uma atribuição de deveres de índole coletiva aos proprietários, consubstancia princípio que passou a ser reconhecido em diversos ordenamentos jurídicos; e

c) essa atribuição de deveres ao proprietário gerou, por consequência, a necessidade de readequação do conceito de direito subjetivo, o qual deixou a condição de mera faculdade de agir. A propriedade, destarte, passou a caracterizar-se como direito subjetivo integrado por uma função social.

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Temas de Direito Privado142

REEXAMINING PROPERTY LAW

Abstract: The conception of the Interventionist State, generated by a historical dialetical process verifi ed between the Liberal State and the Socialist one, allowed the consecration of a social function to be observed by the bearers of the ownership. After that, proprietors began to be demanded for a behavior directed to the satisfaction of its individual interests, since that made compatible to the collective interest. Such circumstance generated a rupture in the way with which property was fi t in the Law system. It was not anymore a mere facultas agendi granted to the proprietors, but also a source of duties. For some, property would have been become into a social function. However, the fact was a change occurred at the notion of subjective right generated by the interventionism of the State, when property began to be understood as a right guided by a social function.

Keywords: Social function of the property. Liberalism. Socialism. Subjective right.

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Direito Fundamental à Educaçãoe Home Schooling: a EducaçãoDoméstica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Juliana Cristine Diniz CamposMestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP)[email protected]

Sumário: Introdução. I. A educação como vir-a-ser: complexidade e socialização. II. A obrigatoriedade do ensino básico e o dever de matrícula. III. O paradigma jurisprudencial. Conclusões. Referências.

Resumo: O artigo analisa a educação doméstica no Brasil, sob a perspectiva jurídica. Busca investigar se é possível ao responsável legal optar por tal modalidade educativa, em que medida e em que condições, a partir da análise do direito positivo, em seu nível constitucional e infraconstitucional, e da pragmática jurisprudencial aplicável à questão.

Palavras-chave: Educação Doméstica. Direitos Fundamentais.

INTRODUÇÃO

O direito à educação – entendida como processo contínuo de aprendizagem e desenvolvimento voltado à conquista da autonomia do indivíduo – é qualifi cado como direito fundamental indisponível, notadamente no que tange ao ensino básico dirigido a crianças e adolescentes, dada a instituição do regime constitucional da proteção integral (MARQUES, 2004:46). Isso implica dizer que os responsáveis legais, tendo o dever de zelar pelo bem-estar do tutelado, devem, obrigatoriamente, promover a matrícula deste na rede pública ou privada de ensino, a fi m de que possa acompanhar o processo educativo formal, sob pena de intervenção do Ministério Público.

Em um país de graves desigualdades sociais, o nível de efetividade do direito à educação parece estar longe de alcançar um patamar ótimo, seja em virtude da falta

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de acesso à rede escolar, seja por conta da má qualidade do ensino de um modo geral. Diante da insufi ciência estrutural do estado para atender à demanda por um ensino de qualidade e por prestações educativas diferenciadas para alunos especiais, surge, muitas vezes, a pretensão de educar a criança e o adolescente no ambiente familiar, também chamada de educação doméstica (cujo equivalente em inglês, de ampla utilização na bibliografi a brasileira, é o home schooling). Questiona-se se a obrigatoriedade da matrícula da criança no ensino formal não constituiria ofensa ao princípio da liberdade de educar e ao direito dos pais de escolherem a educação adequada para seus fi lhos.

Neste trabalho, pretende-se investigar, sob o prisma analítico, em face do direito positivo aplicável à educação no Brasil, se é possível à família optar pela educação doméstica, considerando a indisponibilidade e as peculiaridades normativas do direito à educação. A partir de um prévio estudo da legislação, passaremos à análise de um caso concreto paradigmático, enfrentado pelo STJ no mandado de segurança 2001/0022843-7, cuja decisão considerou aplicável o parecer do Conselho Nacional de Educação nº 34/2000, pela impossibilidade de se privar a criança do ambiente escolar formal.

A pesquisa, entretanto, não se pretende limitar ao aspecto estritamente positivo da questão, na medida em que as normas relativas aos direitos fundamentais se confi guram por sua abertura semântica, que exigem do intérprete, para além de uma técnica de operação do sistema, uma disposição argumentativa a enfrentar questões que, muitas vezes, antes de jurídicas, são estritamente fi losófi cas: o que é educação? Quais são os seus fi ns? O que se considera liberdade? Qual o papel do estado nesse processo? Entre outras. Nesse sentido, é necessário abordar, neste trabalho, o sentido da educação em sua perspectiva processual (o educar como vir-a-ser), e da relevância da dicotomia indivíduo/sociedade (simbolizada no binômio aluno/escola) para o êxito do empreendimento educacional.

O direito fundamental de índole prestacional admite níveis de efetividade e modos de adimplemento plurais. Nesse sentido, é possível afi rmar que, conforme diferenciadas as circunstâncias fáticas que envolvem o titular e a prestação exigida, pode-se encontrar soluções diferentes, sem que a diversidade implique insegurança ou ofensa ao mínimo ético relativo ao direito.

1 A EDUCAÇÃO COMO VIR-A-SER: COMPLEXIDADE E SOCIALIZAÇÃO

O ato de educar é, antes de tudo, um meio de adaptação do indivíduo ao meio social em que está inserido: através da transmissão de um modo de existir típico, o eu pode comunicar-se e integrar-se ao ambiente social constituído de símbolos, práticas e linguagem próprios. Esse processo, caracterizado pela sua complexidade e difusão, inicia-se com o nascimento e é levado a cabo por inúmeros atores sociais, para além

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do núcleo familiar. Implica dizer que o homem torna-se “mais humano (histórico) à medida que desenvolve suas potencialidades, que à sua natureza vai acrescentando cultura, pela apropriação de conhecimentos, informações, valores, crenças, habilidades artísticas etc” (PARO, 2008:25). Brandão esclarece o caráter difuso do ato educativo:

A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, do direito e dos símbolos.

A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade (2007:10).

A partir dessa perspectiva, pode-se dizer que se educar é, antes de apreender

um certo conteúdo, socializar-se, interagindo e produzindo cultura pela transformação simbólica da natureza. Por essa razão, é preciso esclarecer a confusão habitual entre os vocábulos educação – relativa a esse processo mencionado – e ensino, enquanto práxis cientifi camente orientada ao desenvolvimento intelectual do indivíduo, operada, regra geral, no ambiente formal escolar.

O artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece uma distinção pertinente. Segundo o dispositivo, “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, ressaltando-se que esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (§1º).

Nesse contexto, é preciso reconhecer que, muito embora a família tenha uma participação importantíssima no processo educativo como um todo, a orientação racional do ensino assume, desde a escolarização, o papel de favorecer a igualdade entre os educandos, seu desenvolvimento como grupo. Cury esclarece o processo de distribuição social dos conhecimentos, que resulta em um processo educativo difuso e plural:

Ora, a grande pluralidade institucional no mundo social implica também a distribuição social dos conhecimentos dentro das sociedades modernas. Assim, há que se reconhecer o papel original da família na aquisição de padrões comuns e de um quadro social de referências relativo a um sistema social. Nesse processo as crianças vão aprendendo a cumprir papéis e assumir valores básicos de referência a esse sistema, dando-se tanto uma ação objetiva da sociedade para a pessoa quanto uma ação subjetiva de recepção por parte da mesma. Nesse sentido, a família é um agente original e imediato de socialização da criança. A socialização, na perspectiva interacionista de Mollo-Bouvier (2005) explicita que a integração do indivíduo na vida coletiva é também conhecimento de si e conhecimento do outro, construção de si e construção do outro (CURY, 2006:670).

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A partir dessa perspectiva, observa-se, de antemão, a necessidade de socialização para o êxito do empreendimento educacional. O eu que se forma a partir do contato com o outro, portanto. A educação é compreendida como um processo complexo de inclusão, a partir da interação dialética entre identifi cação/diferenciação do indivíduo, acentuado no período de escolarização do ensino.

A socialização é classifi cada por Berger em primária e secundária: no primeiro caso, refere-se à acepção geral e vulgar de educação, relativa à transmissão da forma de vida ao indivíduo pela família e demais atores sociais; no segundo, tem-se o aprofundamento dos níveis de interação do indivíduo pela complexidade crescente de aspectos como distinção dos grupos etários, participação política, inserção profi ssional etc (BERGER).

O ambiente escolar é constituído, portanto, como locus de socialização secundária típico, onde o indivíduo é confrontado com a diferença e a pluralidade, diversifi cando-se o aparato cultural já transmitido pela família.

A educação escolarizada é compreendida, portanto, como uma prática refl etida, orientada conscientemente a um fi m, que é a emancipação do indivíduo para a prática do trabalho e para a vida cidadã. Os fi ns da educação são expressos no artigo 205 da Constituição Federal, que limita o campo semântico de abrangência da norma, ao mesmo tempo em que orienta a aplicação do instituto. Nesse sentido, uma educação que não favoreça uma articulação entre trabalho e cidadania mostra-se contrária à constituição, dada sua inadequação em relação ao projeto político nacional (CURY).

A restrição da educação ao ambiente doméstico provoca, assim, relativamente ao aspecto teleológico da norma constitucional, uma tensão difícil de ser superada por uma interpretação adequada constitucionalmente, na medida em que a inclusão do indivíduo é contraposta à pretensão familiar de concentrar sua socialização ao aspecto primário.

2 A OBRIGATORIEDADE DO ENSINO BÁSICO E O DEVER DE MATRÍCULA

Em análise aos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis à questão, é possível afi rmar que, do ponto de vista positivo, a interpretação mais coerente é pelo dever dos responsáveis pela matrícula do aluno na rede regular de ensino, seja privada ou pública. Nesse sentido, não haveria uma prerrogativa dos pais em optar pela educação doméstica, revelando-se a omissão em matricular um ato de negligência passível de controle pelo Ministério Público.

Isso porque, conforme o artigo 208, I, da Constituição Federal, o ensino é obrigatório dos quatro aos dezessete anos, abrangendo a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. A alteração é recente, incluída pela emenda constitucional nº 59 de 2009, e representa um avanço em termos de garantia da educação. Antes da

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emenda referida, a obrigatoriedade do ensino se restringia ao ensino fundamental, havendo quem sustentasse a inexistência de direito subjetivo da criança à educação infantil em creches, por exemplo.

Com a expressa modifi cação, o termo obrigatoriedade passa a abranger todo o ensino básico, tal como indicado pelo artigo 21, I da LDB. A obrigação refere-se, portanto, ao ato de promover a inclusão do aluno, pela matrícula, na rede de ensino, a fi m de que possa ter suas possibilidades desenvolvidas. É dizer que o direito à educação da criança e do adolescente não é disponível aos pais, que têm o dever de zelar pelo acompanhamento pedagógico em rede ofi cial, sob pena de responsabilização. Esclarece Liberati:

A obrigatoriedade do ensino fundamental desdobra-se em dois momentos: do Poder Público, que deve oferecer (obrigatoriamente) o serviço essencial e básico da educação; e dos pais, que devem (obrigatoriamente) matricular seus fi lhos. Temos, portanto, dois atores responsáveis pela garantia do direito à educação, e termos a criança e o adolescente, que são protagonistas de seu direito ao acesso, à permanência e ao ensino de qualidade no ensino fundamental (LIBERATI, 2004:224)1.

Essa é a orientação do artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao indicar que os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus fi lhos ou pupilos na rede regular de ensino, sob pena de aplicação de uma das medidas previstas no artigo 129 da mesma lei.

A dúvida surge quanto a um possível conflito entre o direito à educação na rede oficial de ensino e a liberdade de educar e aprender prevista na própria Constituição, em seu artigo 206, II, tendo em vista a previsão do artigo 24, II, alínea “c” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Segundo o dispositivo, permite-se que “a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental seja feita independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina seu grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino.”

Desse modo, haveria, em tese, “a liberdade” de escolha do modo de educação da criança e do adolescente, inclusive quanto à possibilidade da educação doméstica, considerando a possibilidade de classifi cação posterior em série mediante avaliação da escola.

O entendimento, entretanto, não é acolhido pelo Conselho Nacional de Educação, que, incitado a se manifestar sobre a possibilidade de uma dada família educar os fi lhos no ambiente doméstico, através do parecer nº 34 de 2000, salientou:

1 A leitura do texto deve levar em consideração a mudança operada pela emenda constitucional nº 59 de 2009, que alterou a Constituição para o fi m de ampliar a educação obrigatória a todo o ensino básico, e não apenas ao ensino fundamental.

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Verifi ca-se, assim, que a Constituição Federal aponta nitidamente para a obrigatoriedade da presença do aluno na escola, em especial na faixa de escolarização obrigatória (7 a 14 anos), instituindo para o Poder Público a obrigação de recensear, fazer a chamada escolar e zelar para que os pais se responsabilizem pela “freqüência à escola”2.

O entendimento construído pelo órgão executivo foi discutido judicialmente pela via do mandado de segurança, considerando a inconformação dos pais ante a impossibilidade de prosseguir na educação doméstica.

3 O PARADIGMA JURISPRUDENCIAL

O mandado de segurança 2001/0022843-7, decidido pelo STJ em última instância, representa um paradigma jurisprudencial interessante sobre a matéria, salientando a perspectiva constitucional da interpretação do direito à educação, como direito subjetivo indisponível, de responsabilidade múltipla. O entendimento tende a ampliar o sentido de educação pela previsão de seus fi ns, salientando o caráter progressivo do processo educativo, enquanto devir.

No caso em referência, os pais de três crianças em idade escolar pleiteavam a desconsideração do parecer nº 34 de 2000, a fi m de que pudessem persistir no home schooling. A decisão reitera a importância da socialização no processo educativo, esclarecendo que:

os fi lhos não são dos pais, como pensam os autores. São pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no convívio social formador da cidadania. Aos pais cabem, sim, as obrigações de manter e educar os folhos consoante a Constituição e as leis do País, asseguradoras do direito do menor à escola (art. 5º e 53, I, da Lei nº 8.096/90) e impositivas de providências e sanções voltadas à educação dos jovens (excerto do voto do relator).

A decisão, ao entender sem aparo legal a pretensão dos pais, cuidou de estabelecer um paradigma contrário à adoção da educação doméstica no Brasil, em virtude da pluralidade do processo educativo e da responsabilidade social em seu desenvolvimento.

CONCLUSÕES

As questões enfrentadas neste trabalho demonstram a existência de um senso comum sobre educação que a identifi ca como mecanismo institucional de transmissão

1 O parecer mencionado encontra-se no anexo deste artigo, na íntegra.

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de conhecimentos. A partir dessa perspectiva, o êxito do empreendimento educacional é avaliado pela capacidade da criança em absorver dados, o que levou Freire a identifi car o modelo como espécie de educação bancária, cuja tarefa seria ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração (FREIRE, 2005:65).

No mandado de segurança mencionado, um dos argumentos utilizados para sustentar o direito de educar os fi lhos no ambiente doméstico foi o resultado das avaliações das crianças, superiores, em nota, aos de alunos na mesma faixa etária e nível de educação, dada a impertinência em se falar em “escolarização” no caso. Essa visão desconsidera que o processo educativo tem como fi m primordial transformar o indivíduo em ser humano, conquistar sua cidadania, seu comprometimento com o projeto político comum.

Por essa razão, inexistiria uma “prerrogativa constitucional” dos pais em optar pela exclusão de seus fi lhos da ambiência escolar, tendo em vista a insufi ciência do lar no quesito socialização secundária, ou seja, no processo de inclusão social do sujeito, a partir da percepção da diferença. Isso porque o sentido constitucional de educação é explicitado pelo teor do artigo 205, que salienta a responsabilidade do estado e da família na formação para cidadania e para o trabalho.

REFERÊNCIAS

BERGER, P. L. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 1973.

BRANDÃO, C.R. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação Escolar e Educação no Lar: Espaços de uma Polêmica. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 667-688, out. 2006. Disponível em: www.cedes.unicamp.br.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, 47ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

LIBERATI, W. D. Conteúdo Material do Direito à Educação Escolar. In:

LIBERATI, W. D. (org.). Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros, 2004.

MARQUES, M. T. S. Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude. In: LIBERATI, W. D. (org.). Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros, 2004.

PARO, V. H. Educação como Exercício do Poder: Crítica ao Senso Comum em Educação. São Paulo: Cortez, 2008.

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HOME SCHOOLING AND THE BRAZILIAN EDUCATION LAW

Abstract: This paper analyses the home schooling in Brazil. It proposes to investigate if it is possible for parents to home school their children and, if so, in which conditions and scopes, according to the Brazilian Constitution, ordinary laws and national jurisprudence.

Keywords: Home Schooling. Civil Rights.

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Monitoramento de Correio Eletrônico Corporativo no Ordenamento Jurídico Brasileiro: Estudos Jurisprudenciais

Lígia Maria Saraiva BarrosoAdvogada. Consultora em Segurança da Informação. Pós-graduanda em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN). Pós-graduanda em Direito Processual pela Faculdade 7 de Setembro (FA7). [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Fundamentos do monito-ramento de correio eletrônico corporativo no ordena-mento jurídico brasileiro. 2. Monitoramento de correio eletrônico corporativo no Direito Comparado: Estados Unidos e Portugal. 3. Jurisprudência brasileira. Considerações fi nais. Referências.

Resumo: O presente trabalho destina-se a explorar as vertentes doutrinárias e jurisprudenciais brasileiras acerca da possibilidade jurídica de monitoramento de correio eletrônico corporativo. Foram trabalhados inicialmente os fundamentos jurídicos mais importantes que justificam a juridicidade de tal prática, tais como fundamentos constitucionais, outros constantes na lei civil brasileira e seus dispositivos acerca da responsabilidade civil, fundamentos constantes na Consolidação das Leis do Trabalho, cujo poder diretivo do empregador é o mais imponente, dentre outros. Buscou-se mostrar, ainda que não sendo o foco principal do estudo, a existência de atos normativos que regulam a segurança da informação na esfera da administração pública, cujo monitoramento de correio eletrônico funcional está entre as práticas. Em um segundo momento, trabalhou-se a jurisprudência no Direito Comparado, com decisões proferidas nos Estados Unidos e a posição legal constante no Código de Trabalho português. Finalmente, o estudo segue analisando decisões emitidas pelas mais variadas cortes brasileiras,

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desde a primeira instância até as instâncias superiores, demonstrando a evolução de pensamento e a consolidação do entendimento atual na jurisprudência pátria.

Palavras-chave: Monitoramento Corporativo. Correio Eletrônico. E-mail. Internet. Segurança da Informação.

INTRODUÇÃOO presente trabalho destina-se a apurar a aceitabilidade jurídica do monitoramento

do correio eletrônico no ambiente corporativo, de acordo com a doutrina e jurisprudência brasileiras, abordando aspectos constitucionais e fundamentos jurídicos para justifi car as posições defendidas.

1 FUNDAMENTOS DO MONITORAMENTO DE CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Com o advento da internet, observa-se uma crescente virtualização dos meios e das pessoas. O chamado fenômeno da globalização. Através da internet, a praticidade e o dinamismo por ela trazidos vieram a contribuir sobremaneira nas relações comerciais. A facilidade de comunicação obtida através da sua utilização em recursos tais como e-mail, instant messengers, VoIP, dentre outros veio somente a acrescentar aos negócios existentes, agregando-lhes valores.

Hoje vivemos uma realidade em que a internet encontra-se cada vez mais difundida na sociedade, fala-se em direito à internet como um direito fundamental, como pode-se observar nos ensinamentos de Marmelstein (2008, p. 54) “a luta pelo reconhecimento de um direito fundamental à Internet, obrigando o Estado a desenvolver políticas públicas capazes de permitir a inclusão digital de setores economicamente desfavorecidos”. Nesse sentido, importante observar as contribuições que a grande rede tem trazido para o desenvolvimento econômico da sociedade. O estabelecimento comercial físico, por exemplo, tornou-se dispensável uma vez que o mesmo pode estar virtualizado, disponível na rede 24 horas por dia todos os dias.

Considerando o atual contexto de difusão e democratização da internet no Brasil e no mundo, e todo o dinamismo e rapidez que a rede proporciona, observa-se a migração de delitos clássicos para o mundo virtual, como a fraude, o estelionato, a calúnia, a difamação e a injúria, dentre outros, além de delitos novos que surgiram a partir da invenção da grande rede.

Com a utilização dos recursos de internet no ambiente corporativo, tendo a fi nalidade de dinamizar as relações de trabalho e proporcionar comunicação mais rápida e fácil, as empresas abriram espaço para a ocorrência de várias atividades

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que podem prejudicar os seus interesses negociais, desde a utilização dos recursos de internet para fi ns particulares até o cometimento de crimes através da rede, inclusive os crimes de ordem concorrencial.

Nesse sentido, a preocupação das empresas que vivem a era da informação é manter a sua estrutura tecnológica longe das ameaças geradas a partir do uso inadequado dos recursos computacionais e de internet pertencentes à empresa. Para atingir tal objetivo, somente através de controles que permitam à empresa fi scalizar a utilização de tais recursos, é nesse momento e nesse contexto que se observa a importância do monitoramento de correio eletrônico no ambiente de trabalho.

Através do correio eletrônico podem ser praticadas diversas atividades que podem variar da mera utilização do e-mail corporativo para fi ns particulares ao repasse de dados estratégicos e sigilosos da empresa para um concorrente, além de difusão de material pornográfi co ou de pedofi lia, dentre outros delitos.

Percebendo a necessidade de controlar os recursos de acesso à internet fornecido aos empregados, para fi ns laborais, os empregadores deparam-se com um grande desafi o, qual seja: justifi car tais controles dentro do contexto do Ordenamento Jurídico e do Estado Democrático de Direito.

Iniciando a pesquisa por fundamentos jurídicos que justifi quem a adoção de métodos de controle de correio eletrônico corporativo, observa-se que a Constituição Federal de 1988 defende, em seu art. 5°, o direito à propriedade:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifos nossos)

Ao proteger o direito à propriedade, a Constituição Federal garante ao empregador, proprietário da estrutura tecnológica da empresa e, portanto, dono dos computadores, do acesso à internet e das contas de e-mail corporativo proporcionadas aos empregados para a execução de suas atividades profi ssionais, o direito a fi scalizar a sua utilização.

O Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002) defi ne, em seu art. 186, o que vem a ser ato ilícito, estabelecendo, posteriormente, a responsabilidade civil pela reparação de danos causados por atos ilícitos no art. 927, dispondo que “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo”:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Ainda em relação à responsabilidade civil pela reparação de danos decorrentes de atos ilícitos, o Código Civil Brasileiro dispõe, no art. 932, III, acerca da

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responsabilidade do empregador pelos atos de seus empregados, serviçais e prepostos, quando no exercício do trabalho a que lhes compete ou em razão do mesmo. Tal responsabilidade, por força do art. 933 do citado diploma legal, é objetiva, ou seja, prescinde da apreciação da culpa do empregador para que o mesmo responda pelos atos de seus empregados:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no

exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

Silvio de Salvo Venosa esclarece acerca da responsabilidade objetiva do empregador pelos atos de seus empregados:

A responsabilidade do patrão é melhor justifi cada em sede da teoria do risco. [...] O patrão, ao se valer de um preposto ou de um empregado, está, na verdade, prolongando sua própria atividade. Ainda, o patrão ou preponente assume a posição de garante da indenização perante o terceiro ofendido, porque, na maioria das vezes, o empregado ou preposto não terá meios para reparar o dano. (2006, p.78).

Por sua vez, a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei n° 5452/43) em seu art. 2º, garante ao empregador o Poder Diretivo, através do qual “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.

O poder de direção consiste na faculdade do empregador de organizar a execução da atividade laboral dos empregados. É doutrinariamente dividido em três aspectos, quais sejam, o poder disciplinar, o poder regulamentar e o poder de fi scalização, o qual compreende o monitoramento de correio eletrônico. Segundo as considerações de Alice Monteiro de Barros:

A autoridade do empregador exterioriza-se pelo poder de direção e torna-se efetiva pelo poder disciplinar. Outros autores alinham a estes dois o poder regulamentar e o consideram como manifestação da autoridade empresarial, que se confi gura como um poder de legislar no âmbito da empresa. (2009, p. 583) (grifos nossos)

O fundamento jurídico mais eloquente acerca da possibilidade de monitoramento de correio eletrônico corporativo pelos respectivos empregadores consiste no poder de fi scalização e controle conferidos ao empregador em decorrência do poder de direção. Dessa forma, sendo o empregador o proprietário dos computadores, do acesso à internet e do serviço de correio eletrônico adotado pela empresa, e fornecendo toda essa estrutura tecnológica para atender atividades estritamente profi ssionais, o empregador,

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baseado no poder de controle, tem o direito de monitorar a utilização dos recursos em questão, com a fi nalidade de constatar a sua correta utilização.

Tais argumentos têm fundamento na teoria da propriedade privada, a mesma sendo utilizada para fundamentar a existência do poder diretivo e disciplinar, a qual afi rma, segundo Barros (2009, p. 584), que “esse poder conferido ao empregador reside no fato de ser a empresa objeto do seu direito de propriedade, logo, o empregador comanda porque é dono.”

Há também a edição da norma técnica NBR ISO IEC 27002, traduzida e publicada ofi cialmente no Brasil pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, a qual elenca um rol de boas práticas em Segurança da Informação e reserva um capítulo específi co para tratar de monitoramento de correio eletrônico, o que indica como conveniente, sob o seguinte teor:

MonitoramentoObjetivo: Detectar atividades não autorizadas de processamento de informação.Convém que os sistemas sejam monitorados e eventos de segurança da informação sejam registrados. Convém que registros (log) de operador e registros (log) de falhas sejam utilizados para assegurar que os problemas de sistemas de informação são identifi cados.Convém que as organizações estejam de acordo com todos os requisitos legais relevantes aplicáveis para suas atividades de registro e monitoramento.Convém que o monitoramento do sistema seja utilizado para checar a efi cácia dos controles adotados e para verifi car a conformidade com o modelo de política de acesso.

Além dos fundamentos jurídicos em questão, aplicáveis à iniciativa privada, ressalta-se que a Administração Pública também visualizou a necessidade de se disciplinar a utilização de recursos tecnológicos fornecidos aos servidores públicos para execução de suas atividades. Nesse sentido, além dos fundamentos jurídicos constitucionais levantados e das disposições do Código Civil sobre responsabilidade civil, cabe ressaltar a necessidade de observância a alguns quesitos que justifi cam a adoção de mecanismos de controle pela Administração Pública.

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 37, os princípios da administração pública: Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Efi ciência, os quais, quando levados ao contexto laboral, guardam estreita ligação com a correta utilização dos recursos públicos fornecidos aos servidores para a melhor prestação do serviço. Dessa forma, a adoção de métodos de monitoramento de correio eletrônico alcançaria o objetivo de fi scalização da correta utilização do recurso, além de servir como meio de detecção de atividades não autorizadas, fazendo, inclusive, prova hábil a instruir eventuais processos administrativos ou judiciais.

Há também a edição de decretos, em sede das respectivas administrações, federal e estaduais, com o objetivo de proteção dos acervos informacionais dos respectivos órgãos através da regulamentação do uso dos recursos tecnológicos. Alguns exemplos

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desses decretos são o Dec. n° 3505/2000, da Administração Pública Federal; o Dec. n° 29.277/2008 do Estado do Ceará e o Dec. n° 44.998/2008 do Estado de Minas Gerais.

2 MONITORAMENTO DE CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO NO DIREITO COMPARADO: ESTADOS UNIDOS E PORTUGAL

A discussão acerca da aceitabilidade jurídica do monitoramento de correio eletrônico corporativo pelo empregador, diferentemente do Brasil, já existe há alguns anos, em países como Estados Unidos, cujas decisões judiciais acerca do confl ito privacidade dos empregados e poder de controle dos empregadores já movimentavam os tribunais americanos no início da década de noventa.

No conhecido leading case Bourke v. Nissan Motor Corp., datado de 1993, pode-se observar os argumentos aceitos pela corte que apreciou a causa nos seguintes fragmentos:

Whether an individual’s constitutional right to privacy has been violated depends fi rst on a determination whether that individual had a personal and objectively reasonable expectation of privacy which was infringed. Nissan maintains that the evidence conclusively establishes that plaintiffs had no reasonable expectation of privacy in their E-mail messages. In support of this contention, they cite the following undisputed facts: (1) Plaintiffs each signed a Computer User Registration Form, which states that “[I]t is company policy that employees and contractors restrict their use of company-owned computer hardware and software to company business.”

Nissan contends that the foregoing uncontroverted facts regarding plaintiffs knowledge that E-mail messages could in fact be read without the author’s knowledge or consent establishes as a matter of law that plaintiffs had no objectively reasonable expectation of privacy in those messages. In contradiction of that conclusion, plaintiffs assert that they had such an expectation because they were given passwords to access the computer system and were told to safeguard their passwords.

In the absence of a reasonable expectation of privacy, there can be no violation of the right to privacy. Thus, plaintiffs’ causes of actions for common law invasion of privacy and violation of the constitutional right to privacy were properly dismissed on summary judgment. (grifos nossos) (2009, online)1.

1 Se o direito constitucional à privacidade de um indivíduo for violado, depende, em primeiro lugar, se o mesmo tinha uma expectativa pessoal e objetivamente razoável de privacidade que foi violada. Nissan afi rma que a evidência estabelece conclusivamente que os reclamantes não tinham nenhuma expectativa razoável de privacidade sobre seus e-mails. Em apoio a esta tese, ela cita os fatos incontroversos: (1) Cada reclamante assinou um Termo de Uso de Sistemas de Informação, que estabelece que “[I] É política da empresa que a utilização de hardware e softwares de computador de propriedade da empresa por parte de empregados e terceiros seja restrita aos interesses da empresa.”

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Baseando-se no argumento de que todos os funcionários teriam assinado um documento de registro de usuários de computadores da empresa e que o mesmo estabelecia que a utilização dos recursos computacionais da empresa eram restritos a assuntos profi ssionais, a reclamada, Nissan, argumenta que a reclamante não possuía nenhuma expectativa de privacidade quanto à utilização dos computadores da empresa. A reclamante, por sua vez, argumenta que o fato de as contas de e-mail corporativo, fornecidas pela empresa, possuírem senhas e serem os empregados orientados a guardar tais senhas sob sigilo, ensejava tal expectativa de privacidade.

A corte americana decidiu pela improcedência da reclamação, por não visualizar expectativa de privacidade razoável que ensejasse a reclamante a acreditar não ser possível que a empresa monitorasse sua conta de correio eletrônico corporativo.

No caso Smyth v. Pillsbury Company, a corte Americana proferiu decisão a favor da empresa reclamada, defendendo que a prática do monitoramento de correio eletrônico, com a função de prevenir utilização inadequada e não profi ssional ou até para atividades ilegais da ferramenta de e-mail corporativo, se sobrepõe à privacidade que o empregado tenha interesse em preservar. Tal entendimento demonstra a preocupação dos magistrados em aplicar a técnica da ponderação diante de argumentos que versem sobre o confl ito de direitos fundamentais, como o direito à propriedade e o direito à privacidade. Além disso, pode-se observar uma prevalência do interesse público em detrimento da proteção absoluta ao direito fundamental à privacidade pretendido pela parte reclamante.

In the second instance, even if we found that an employee had a reasonable expectation of privacy in the contents of his e-mail communications over the company e-mail system, we do not fi nd that a reasonable person would consider the defendant’s interception of these communications to be a substantial and highly offensive invasion of his privacy. Again, we note that by intercepting such communications, the company is not, as in the case of urinalysis or personal property searches, requiring the employee to disclose any personal information about himself or invading the employee’s person or personal effects. Moreover, the company’s interest in preventing inappropriate and unprofessional comments or even illegal activity over its e-mail system outweighs any privacy interest the employee may have in those comments.2 (grifos nossos) (2009, online).

Nissan alega que os fatos acima incontroversos sobre o conhecimento dos demandantes de que o e-mail poderia na verdade ser lido sem o conhecimento ou consentimento do autor estabelece como uma questão de direito que os reclamantes não tinham expectativa objetivamente razoável de privacidade nessas mensagens. Em contradição com essa conclusão, os reclamantes afi rmam que eles tinham essa expectativa, porque eles receberam senhas para acessar o sistema do computador e foram instruídos a proteger suas senhas.

Na ausência de uma expectativa razoável de privacidade, não haverá violação do direito à privacidade. Assim, as causas dos demandantes das ações de common law por invasão de privacidade e violação do direito constitucional à privacidade foram devidamente indeferidas em julgamento sumário (tradução nossa).

2 Em segunda instância, mesmo que entendêssemos que um funcionário tinha uma expectativa razoável de privacidade no conteúdo de suas comunicações através de sistema de correio eletrônico da empresa, nós não achamos que uma pessoa razoável consideraria a intercepção destas comunicações uma invasão

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Observa-se em ambas as decisões que o argumento principal para a aceitação do monitoramento do e-mail em detrimento da privacidade do empregado reside no fato de os empregadores, previamente, terem dado ciência a seus empregados quanto à utilização do correio eletrônico corporativo exclusivamente para fi ns profi ssionais e da possibilidade de controle sobre tais recursos. Nesse sentido, Lélia Guimarães Carvalho Ribeiro:

É sempre necessário que o empregador ou seus prepostos dêem ciência aos trabalhadores do conteúdo da norma interna da empresa, após fi xá-la em um lugar bem visível a todos, além de comunicar ao sindicato competente tais medidas. (2008, p. 126)

Semelhante à tendência permissiva americana quanto à aceitabilidade jurídica do monitoramento de correio eletrônico corporativo, notamos na legislação portuguesa posicionamento favorável ao monitoramento de correio eletrônico corporativo, em alguns casos, conforme pode-se observar no disposto no Código do Trabalho português:

Artigo 21.º Confi dencialidade de mensagens e de acesso a informação 1 – O trabalhador goza do direito de reserva e confi dencialidade relativamente ao

conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profi ssional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.

2 – O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico. (online)

Por todo o exposto, observa-se uma postura permissiva dos ordenamentos jurídicos exemplifi cados quanto à possibilidade de realização de monitoramento de correio eletrônico no ambiente de trabalho, quando o mesmo for utilizado para fi ns profi ssionais e for fornecido pelo empregador como ferramenta de trabalho. Vejamos a postura da doutrina e jurisprudência brasileira a respeito.

substancial e altamente ofensiva da sua privacidade. Novamente, notamos que ao interceptarmos tais comunicações, a empresa não está, como no caso do exame de urina ou no de revistas de bens pes-soais, requisitando do empregado que divulgue qualquer informação pessoal sobre si ou invadindo a pessoa do trabalhador ou sua esfera privada. Além disso, o interesse da empresa em prevenir que comentários inapropriados, não profi ssionais ou até atividades ilegais sejam praticados através da utização de seu sistema de e-mail sobrepõe-se a qualquer interesse privado que o empregado tenha sobre tais comentários (tradução nossa).

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3 JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Apesar de a matéria em questão já vir sendo amplamente discutida nas cortes americanas desde o início da década de 90, no Brasil, a mesma só veio tomar relevância nos tribunais quando noticiada decisão proferida pelo juiz da 13ª Vara do Trabalho de Brasília, em que defendia o correio eletrônico como correspondência e decidiu pela proteção da inviolabilidade do mesmo, conforme observa-se no trecho:

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 10ª REGIÃO13ª VARA DO TRABALHO DO DISTRITO FEDERALA inviolabilidade da correspondência tutelada constitucionalmente é absoluta, pois a única exceção feita pelo próprio dispositivo constitucional é atinente à comunicações telefônicas, quando, por ordem judicial, se destinarem à investigação criminal ou instrução processual penal. (TRT – DF Processo n: 13.000613/2000, Juiz José Leone Cordeiro Leite - 13º Vara do Trabalho)

Em razão do entendimento do magistrado fundamentado em tal decisão, tomaria a jurisprudência brasileira entendimento diverso de tantos outros países que já vinham tratando da questão há muito mais tempo? A decisão em comento logo foi reformada pelo respectivo Tribunal Regional do Trabalho de Brasília, em segunda instância, pelo que se observa do disposto na ementa:

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 10ª REGIÃOEmenta: Justa Causa. E-mail. Prova Produzida por Meio Ilícito. Não ocorrência. Quando empregado comete um ato de improbidade ou mesmo um delito utilizando-se do e-mail da empresa, esta, em regra, responde solidariamente pelo ato praticado por aquele. Sob este prisma, podemos então constatar quão grave e delicada é esta questão, que demanda a apreciação jurídica dos profi ssionais do Direito. Enquadrando tal situação à Consolidação das Leis do Trabalho, verifi ca-se que tal conduta é absolutamente imprópria, podendo confi gurar justa causa para a rescisão contratual, dependendo do caso e da gravidade do ato praticado. Considerando que os equipamentos de informática são disponibilizados pelas empresas aos seus funcionários com a fi nalidade única de atender às suas atividades laborativas, o controle do e-mail apresenta-se como a forma mais efi caz, não somente de proteção ao sigilo profi ssional, como de evitar o mau uso do sistema Internet que atenta contra a moral e os bons costumes, podendo causar à empresa prejuízos de larga monta. (RO 0504/2002 Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Relatora: Juíza Márcia Mazoni Cúrcio Ribeiro – Revisor: Juiz Douglas Alencar Rodrigues)

Após esse desfecho, observa-se que a mesma linha de raciocínio vem sendo usada na fundamentação de outras decisões judiciais sobre demandas que versam sobre a possibilidade de monitoramento de recursos de correio eletrônico corporativo. Nesse sentido, observa-se outra decisão a respeito da mesma matéria:

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TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 2ª REGIÃO ACÓRDÃO Nº 20060375633 ROEMENTA: Endereço eletrônico fornecido pelo empregador se equipara a ferramenta de trabalho e não pode ter seu uso desvirtuado pelo empregado. Pertencendo a ferramenta ao empregador, a esse cabe o acesso irrestrito, já que o empregado detém apenas a sua posse.

O Tribunal Superior do Trabalho também se manifestou a respeito nos autos do Recurso de Revista 9961/2004, proferindo decisão cujo fundamento foi o mesmo da decisão supracitada, equiparando o correio eletrônico profi ssional a uma ferramenta de trabalho. Sendo, portanto, garantido ao empregador pleno acesso a tal ferramenta, para verifi car se a mesma está sendo utilizada corretamente.

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO NÚMERO ÚNICO PROC: RR – 9961/2004-015-09-00PUBLICAÇÃO: DJ – 20/02/2009I) DANO MORAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO. ACESSO DO EMPREGADOR A CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO. LIMITE DA GARANTIA DO ART. 5º, XII, DA CF.4. Assim, se o e-mail é fornecido pela empresa, como instru-

mento de trabalho, não há impedimento a que a empresa a ele tenha acesso, para verifi car se está sendo utilizado adequadamente.

Além de verifi cação quanto à correta utilização de recursos de comunicação eletrônica fornecidos aos empregados pelos respectivos empregadores, a utilização dos meios eletrônicos envolve outros riscos legais que necessitam ser considerados pelos empregadores, por força da legislação civil que impõe responsabilidade civil objetiva aos mesmos pelos atos de seus empregados e prepostos, considerando que o e-mail pode ser utilizado como ferramenta para disseminação de calúnias e difamações, além do cometimento de crimes e outras práticas delituosas tais como racismo, discriminação, concorrência desleal, violação de sigilo funcional, dentre outras.

A jurisprudência em destaque traz decisão proferida no processo n° 012.0058.2008, cujo reclamante pleiteia indenização por danos morais de seu empregador, decorrentes do recebimento de e-mail de conteúdo racista, enviado pelo seu superior hierárquico, através da conta de correio eletrônico corporativo.

TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 10ª REGIÃOPROCESSO Nº 012.0058.2008[...]Conforme identifi cado nos autos, o supervisor da reclamada, superior hierárquico do autor, respondendo justifi cativa promovida pelo reclamante, enviou-lhe o e-mail de fl s. 50 assim disposto. Verbis.

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“OK Sr. XXXX, pelo tipo de pele entendo a sua colocação. Este é um fato típico da senzala!!! Nós que somos de cútis mais clara não compreendemos certas considerações até porque não possuímos correntes atadas aos pés ou sofremos qualquer tipo de chibatadas quando ocorremos em fatos errados, o que não é normal, para nós HUMANOS” [...] a classifi cação da ofensa moral é da maior gravidade ante tamanho descalabro de cunho racista, humilhante e vexatório, cuja dimensão mundial da empregadora somente agrava tal prática discriminatória, pois, a meu sentir, revela-se majorada a obrigação patronal da fi scalização laboral e do respeito profi ssional e humano entre seus subordinados ou perante terceiros pela projeção elastecida da empresa, gerando, por óbvio, maior repercussão profi ssional e no sentimento íntimo do autor e perante colegas de uma empresa de tamanha proporção que atua no território nacional. [...]Por conseguinte, condeno o reclamado ao pagamento da indenização no importe de R$ 268.348,00 a título de danos morais em favor do autor, sem prejuízo das atualizações de direito.

Diante de tal cenário, resta confi rmada a necessidade de avaliação das circunstâncias, da relativização de direitos fundamentais tais como a intimidade e a privacidade ante a propriedade e igualdade de tratamento e vedação do racismo e da discriminação através da técnica da ponderação.

Por óbvio que a situação específica trazida para análise no presente estudo vem demonstrar que tal análise de ponderação já se encontra de certa forma sedimentada na jurisprudência pátria, e que a solução encontrada através da ponderação dos argumentos defendidos para autorizar ou não o monitoramento de correio eletrônico por parte do empregador está condensada na decisão do ministro João Oreste Dalazen a seguir:

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO PROVA ILÍCITA – E-MAIL CORPORATIVO – JUSTA CAUSA –DIVULGAÇÃO DE MATERIAL PORNOGRÁFICO 1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estritamente pessoal, ainda que virtual (e-mail particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade. 2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado e-mail corporativo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. (TST RR 613/00.7 – 1ª T. – Rel. Min. João Oreste Dalazen – DJU 10.06.2005) (grifos nossos)

No entanto, para se fazer valer a possibilidade de monitoramento de correio eletrônico profi ssional, o empregador deverá certifi car-se de que os empregados estão cientes de tal prática. Este é o requisito essencial para se fazer valer o monitoramento em questão.

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Em contrapartida, em respeito ao direito à privacidade e à intimidade do trabalhador, o empregador deverá se abster de monitorar o conteúdo de mensagens enviadas ou recebidas através de contas de correio eletrônico particulares, pois estas sim, estão protegidas juridicamente contra as invasões arbitrárias. Para que sejam evitados problemas no âmbito corporativo em relação a tais contas de correio eletrônico particulares, é recomendável que o acesso a esse tipo de serviço seja bloqueado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo fi nalizado a investigação proposta, resta estabelecer as conclusões alcançadas: Quanto aos fundamentos jurídicos que possibilitam a adoção da prática do

monitoramento de correio eletrônico corporativo no ordenamento jurídico brasileiro, temos os seguintes argumentos:

a) O direito à propriedade consolidado no art. 5º da Constituição Federal de 1988;b) Os artigos do Código Civil Brasileiro que dispõem sobre atos ilícitos,

responsabilidade civil e responsabilidade civil objetiva do empregador pelos atos de seus empregados e prepostos quando da execução do serviço;

c) O poder diretivo do empregador, consolidado no art. 2º da Consolidação das Leis do trabalho;

d) O disposto na norma técnica NBR ISO IEC 27002 sobre boas práticas de segurança da informação;

e) Decreto federal n° 3505/2000 sobre segurança da informação e os respectivos decretos estaduais.

Todos esses argumentos servem para consolidar a possibilidade de os empregadores efetivamente estabelecerem práticas de segurança e controle quanto a seus sistemas de informação, utilização de internet e correio eletrônico corporativo fornecidos a seus empregados para realização de suas respectivas tarefas profi ssionais.

Quanto ao Direito comparado, observou-se que, nos Estados Unidos, a jurisprudência vem apreciando demandas trabalhistas envolvendo o monitoramento de correio eletrônico corporativo há mais de uma década, consolidando entendimento no sentido de que estando ciente o empregado da ausência de expectativa de privacidade na utilização dos recursos tecnológicos da empresa, inclusive o correio eletrônico, a empregadora poderá monitorar tais recursos.

Em Portugal, observou-se no Código do Trabalho português a preocupação em dispor legalmente sobre o tema, conferindo ao empregador a possibilidade de monitorar e controlar os recursos tecnológicos que disponibiliza a seus empregados, desde que de uso exclusivamente profi ssional. A legislação portuguesa protege a privacidade de mensagens de caráter pessoal, no entanto dá ao empregador a possibilidade de

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estabelecer as regras de utilização do correio eletrônico, podendo este proibir a utilização de cunho particular.

No Brasil, observou-se um posicionamento fi rmado pela jurisprudência trabalhista no sentido de proteger a privacidade de mensagens e contas de correio eletrônico particulares. Podendo o empregador tão somente monitorar as contas de e-mail corporativo, por ter este recurso natureza de ferramenta de trabalho.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro, Brasília, DF, Senado, 2002.

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (2 Região). Recurso Ordinário n° 01478-2004-067-02-00-6. Recorrente: Elaine Vicente Raia Recorrida: Nestlé Brasil LTDA. Relatora: Jane Granzoto Torres da Silva. São Paulo, 23 de junho de 2006. Disponível em: <http://www.trt02.gov.br:8035/020060375633.html>. Acesso em: 08 jan. 2010.

BUSCALEGIS. Comentários à jurisprudência: justa causa. E-mail. Prova produzida por meio ilícito. Não ocorrência. 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/5374/4943>. Acesso em: 08 jan. 2010.

JUSNAVIGANDI. Comentários à jurisprudência: justa causa. E-mail. Prova produzida por meio ilícito. Não ocorrência. 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho do Distrito Federal. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3337&p=2>. Acesso em: 08 jan. 2010.

LEONARDI, Marcel. Direito e Internet. Decisão TST – RR – 9961/2004-015-09-00. Disponível em: <http://www.leonardi.adv.br/blog/decisao-tst-rr-99612004-015-09-00/>. Acesso em: 08 jan. 2010.

LEONARDI, Marcel. Direito e Internet. Decisão TRT10 – 00708-2007-014-10-00-3. Disponível em: <http://www.leonardi.adv.br/blog/decisao-trt10-00708-2007-014-10-00-3/>. Acesso em: 08 jan. 2010.

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Temas de Direito Privado172

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MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

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RIBEIRO. Lélia Guimarães Carvalho. A monitoração audiovisual e eletrônica no ambiente de trabalho e seu valor probante: um estudo do poder de controle do empregador na atividade laboral e o respeito à dignidade e intimidade do trabalhador. São Paulo: LTr, 2008.

TOMWBELL. Bourke v. Nissan Motor Corp. in USA. Disponível em: <http://www.tomwbell.com/NetLaw/Ch05/Bourke.html>. Acesso em: 15 dez. 2009.

CORPORATE E-MAIL MONITORING IN BRAZIL:JURISPRUDENTIAL STUDIES

Abstract: This paper has the purpose of exploring the Brazilian legal doctrine and jurisprudence about the juridical possibility of corporate e-mail surveillance. Initially the most important juridical fundaments were focused to justify such practices, under constitutional and Labor Law fundaments, for example. Even though it is not the main subject of the study, it was sought to show the existence and effectiveness of such normative acts that regulate information security in the public administration, such as e-mail surveillance. Later, Comparative Law jurisprudence was brought in, with sentences from the United States system and the Labor Courts from Portugal. Finally, the study analyses several Brazilian court decisions, from different instances, presenting the evolution of the thought and the recent unifi cation of understanding in this country s courts.

Keywords: Corporative monitoring. E-mail. Internet. Infor-mation security.

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Responsabilidade Patrimonialdos Sócios na Execução Trabalhista

Lucas de Brandão e MattosAluno do curso de Direito da FA7.Artigo elaborado sob orientação do Prof. Dr. João Luís Nogueira Matias, da [email protected]

Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. A responsa-bilização dos sócios na atual doutrina e jurisprudência trabalhistas. 3. A pessoa jurídica e o instituto da desconsideração. 4. Novas perspectivas para a fun-damentação da responsabilidade dos sócios. 5. A responsabilização na execução de créditos traba-lhistas. Considerações fi nais. Referências.

Resumo: O estudo tem por fi nalidade discutir a responsabilidade dos sócios de sociedade empresarial pelos créditos trabalhistas buscados pelos obreiros da empresa perante a Justiça do Trabalho. Analisa-se a posição atual da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, com ênfase na teoria da desconsideração da pessoa jurídica, no intuito de buscar fundamentação que demonstre a real resposta do ordenamento brasileiro ao tema.Palavras-chave: Desconsideração da Pessoa Jurídica. Responsabilidade do Sócio. Penhora de Bens dos Sócios. Execução Trabalhista.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAISA execução é, inegavelmente, uma fase conturbada do processo, nela surgindo

os mais variados óbices à satisfação do crédito declarado pelo juiz em sentença. No processo do trabalho a situação parece ainda pior, diante do problema da escassez de dispositivos legais regulamentando tal fase e da eterna dúvida sobre a aplicação subsidiária de institutos do direito processual civil.

Um desses problemas é a repentina insolvência de empresas executadas – desnecessário dizer que em grande parte proveniente de fraudes. O que acontece é que, como a responsabilidade dos sócios é bastante limitada, ante a autonomia patrimonial da sociedade, o crédito do obreiro resta prejudicado.

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Temas de Direito Privado174

Os juízes trabalhistas adotam posição enérgica, utilizando-se da teoria da desconsideração da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios, tendo como pressuposto a mera inadimplência por parte da empresa executada.

O presente estudo se propõe a analisar essa solução da jurisprudência e doutrina trabalhistas de forma crítica. Confrontando-a, posteriormente, com o que se entende por desconsideração da pessoa jurídica no ordenamento pátrio. Por fi m, propomos a construção de uma nova via para atingir a mesma fi nalidade, porém com fundamentação diversa, que reputamos mais harmônica com o direito nacional.

A ação dos tribunais trabalhistas, utilizando-se da teoria da desconsideração, vem recebendo críticas, principalmente dos comercialistas, visto que destoa dos princípios e requisitos em que se funda a teoria.

Deste modo, o valor do presente estudo encontra-se em tornar o processo de execução trabalhista mais célere e seguro, visto que, com premissas bem fundamentadas para responsabilizar os sócios, evitam-se recursos e protelação processual. Interessa também a proteção de instituto tão relevante quanto o da desconsideração da pessoa jurídica, que deve ser empregado dentro de seus parâmetros, pois sua deturpação leva à perda de sua utilidade, visto que aquilo que repentinamente serve para tudo acaba não servindo para mais nada.

2 A RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS NA ATUAL DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA TRABALHISTAS

A doutrina trabalhista majoritária e a jurisprudência da justiça laboral aplicam a teoria da desconsideração da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios uma vez que o patrimônio da sociedade se mostre insufi ciente à satisfação do crédito do obreiro. Assim relata o professor Gérson Marques:

A teoria da desconsideração da pessoa jurídica (disregard doctrine) há mais de uma década vem sendo aplicado, com relativo sucesso no Processo do Trabalho, tanto que foi abraçada em 1990 pelo Código de Defesa e Proteção do Consumidor (lei 8.78/90, art. 28, §5º). Neste raciocínio, não possuindo a empresa bens dignos de penhora viável, pode o constrangimento recair sobre bens dos sócios, em especial quando estes ostentarem condição de reais gestores da empresa. (LIMA, 2001, p. 455)

Para melhor ilustrar, colamos a seguinte ementa:

Execução sobre os bens do sócio – Possibilidade. A execução pode ser processada contra os sócios, uma vez que respondem com os bens particulares, mesmo que não tenham participado do processo na fase cognitiva. Na Justiça do Trabalho, basta que a empresa não possua bens para a penhora para que incida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. O crédito trabalhista é

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privilegiado, tendo como base legal, de forma subsidiária, o art. 18 da Lei 8.884/94 e CTN, art. 135, caput e inciso III, c/c art. 889 da CLT (TRT 3ª R. – 2ª T. – AP n. 433/2004.098.0300-7 – Rel. João Bosco P. Lara – DJMG 9.9.04)

A base teórica dada pela doutrina funda-se no que chamam de teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica, como podemos ver na lição de Mauro Schiavi:

Atualmente, a moderna doutrina e a jurisprudência trabalhista encamparam a chamada teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica que disciplina a possibilidade de execução dos bens do sócio, independentemente de os atos destes terem violado ou não o contrato, ou de haver abuso de poder. Basta a pessoa jurídica não possuir bens para ter início a execução dos bens do sócio. (SCHIAVI, 2009, p. 793)

De fato, em uma análise principiológica do ordenamento jurídico brasileiro observa-se que o crédito trabalhista é diferenciado e privilegiado, em decorrência, principalmente, de seu caráter alimentar. Nada mais equânime, portanto, que dar ao trabalhador o devido por seu trabalho, que tanto gerou dividendos aos sócios. Sobre a questão é fi rme a posição do professor Gérson Marques:

Portanto, o patrimônio dos sócios deve responder pelas dívidas trabalhistas da sociedade, a fi m de assegurar o crédito dos empregados/exeqüentes. Não é justo que o obreiro contribua para o lucro da empresa, aumentando o patrimônio individual dos sócios e, ao fi nal, com a “quebra”, às vezes provocada, só o trabalhador e a empresa saiam prejudicados, juntamente com meia dúzia de credores. Não se pode privilegiar o patrimônio dos sócios em detrimento do crédito do trabalhador, porque isto seria inverter a ordem legal do privilégio e estimular a fraude da “industria da falência”. (LIMA, 2001, p. 457)

Portanto, temos fortes motivos para acreditar que o adimplemento do crédito do trabalhador tem precedência de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, conforme discorreremos adiante.

É pacífi co que o fi m – adimplemento do crédito trabalhista responsabilizando o sócio – é legítimo. Porém, nos parece que o meio utilizado – a desconsideração da pessoa jurídica da forma exposta – distancia-se da regulamentação dada ao instituto pela legislação, doutrina e jurisprudência.

Diante da constatação, cabe revisitar o tema de modo a fi xar parâmetros para alcançar o mesmo resultado (responsabilização dos sócios), porém através de meios que possam ser considerados legítimos pelo ordenamento jurídico.

No prosseguimento do estudo fi xaremos algumas premissas acerca do instituto da desconsideração da pessoa jurídica, de modo a fundamentar nosso posicionamento quanto a não ser caso de aplicação da mesma, e, em prosseguimento expor a teoria que consideramos mais adequada para buscar a responsabilização do sócio pelos débitos trabalhistas da empresa.

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3 A PESSOA JURÍDICA E O INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO

A pessoa jurídica é instituto proveniente do Direito Romano. Primeiramente foi reconhecida personalidade aos entes estatais, as chamas ciutates e municipia, no período clássico, para posteriormente surgirem as corporações privadas que adquiriam personalidade jurídica caso obedecessem certos requisitos, sobre os quais ensina Moreira Alves:

Os requisitos para constituição da corporação eram os seguintes:a) que, no momento de sua constituição, houvesse, pelo menos, três pessoas para

se associarem;b) estatuto – denominado, nas fonte, Lex collegi ou Lex municipii – onde se regulasse

sua organização e funcionamento; ec) que sua fi nalidade – assim, por exemplo, religiosa, política, comercial – fosse

lícita. (ALVES, 1997, p. 135)

Da Roma antiga aos dias atuais as corporações se tornaram bastante sofi sticadas e formam, atualmente, a base da economia capitalista, pautada na livre iniciativa, que vigora na maioria dos países do globo.

Sem dúvida, a utilização da pessoa jurídica decorre principalmente dos princípios da autonomia e da separação patrimonial, que tornam interessante ao empreendedor juntar-se a outros interessados e constituir uma sociedade. No Brasil, a sua importância cresceu nas primeiras décadas do século XX, quando a evolução dos tipos societários trouxe menor responsabilização dos sócios, incentivando o início da industrialização nacional.

No fi nal do século XIX surgiram os primeiros sinais de possibilidade de quebra do princípio da autonomia, que originaria mais tarde a disregard of legal entity doctrine, também denominada de lifting the corporate veil, em referência ao “véu” que separaria o patrimônio da sociedade do patrimônio do sócio. O leading case, que viria a originar a teoria, é o chamado Solomon vs. Solomon & Co., ocorrido nos Estados Unidos em 1895, no qual o juiz desconsiderou a autonomia patrimonial da sociedade. A decisão foi confi rmada pelo tribunal, mas, na última instância, foi revogada, evidenciando que ainda era frágil e revolucionária a ideia.

Somente na década de 1950 foi desenvolvido estudo profundo e sistematizado, de autoria de Rolf Serick, que serve de base à doutrina até os dias atuais. No Brasil, a teoria foi disseminada por Rubens Requião, em meados da década de 60, seguindo-se aplicação jurisprudencial incipiente, com fundamento único na mencionada doutrina.

A regulamentação legal tardou e veio primeiro apenas para campos especializados. A primeira norma regulamentadora foi o art. 28, §5º, do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078/90. Posteriormente vieram a Lei 8884/94, aplicável às infrações à ordem econômica, e a Lei 9605/98, lei de crimes ambientais. Todas essas

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leis traziam dispositivos que adotavam a disregard doctrine em seu respectivo âmbito. Porém, só com a promulgação do Código Civil de 2002 tivemos regulamentação do instituto para aplicação geral. Sobre o tema, ensina André Ramos:

O art. 50 do CC é, atualmente, a regra matriz acerca da disregard doctrine no direito brasileiro, sendo de aplicação obrigatória, portanto, a todos os casos de desconsideração da personalidade jurídica, com exceção dos referentes às relações de consumo, aos crimes ambientais e às infrações à ordem econômica, os quais, como visto, possuem disciplina própria prevista em leis especiais (RAMOS, 2009, p. 332).

Com base na legislação atual, no Brasil, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que há duas teorias da desconsideração da pessoa jurídica, uma chamada teoria maior, a do Código Civil, aplicável como regra geral, e outra chamada teoria menor, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, aplicável às relações de consumo. Sobre o tema é esclarecedora a jurisprudência do STJ:

RESPONSABILIDADE CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. SHOPPING CENTER DE OSASCO-SP. EXPLOSÃO. CONSU-MIDORES. DANOS MATERIAIS E MORAIS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PESSOA JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR. LIMITE DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. REQUISITOS. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5º. - Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum. - A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de fi nalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). - A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de fi nalidade ou de confusão patrimonial. - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identifi car conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos

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especiais não conhecidos.(REsp 279273/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/12/2003, DJ 29/03/2004 p. 230)

Há ainda quem fale em teoria subjetiva ou objetiva, porém trata-se apenas de concepções quanto aos requisitos para aplicação da teoria maior. A doutrina tradicional exigia a prova da intenção de fraude, subjetiva portanto, porém a concepção adotada atualmente, de cunho objetivo, propugna pela caracterização de dados empíricos como o desvio de fi nalidade ou a confusão patrimonial. A segunda doutrina é fruto, principalmente, dos estudos do professor Fábio Konder Comparato e é a teoria adotada pelo art. 50 do CC:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

O instituto da desconsideração da pessoa jurídica é um poder dado ao juiz para, no caso concreto, tornar sem efeito a personalização e a autonomia da sociedade, que são instituídas pela própria lei. Como todo poder dado ao juiz a lei prescreve situação hipotética dependendo do juízo de subsunção do fato concreto aos requisitos da norma legal para a aplicação. Enfi m, o juiz só está autorizado a desconsiderar a pessoa jurídica quando demonstrada a presença dos requisitos adotados pela legislação.

O exposto no parágrafo anterior pode parecer elementar, porém extremamente necessário para a conclusão de que as decisões dos juízes trabalhistas, que dizem aplicar a desconsideração da pessoa jurídica, devem respeito ao art. 50 do CC, não sendo aplicável diante da mera insolvência da sociedade.

Porém, a desconsideração da pessoa jurídica não é a única via para atingir o patrimônio dos sócios, visto que a legislação pátria admite a responsabilização direta do sócio em vários casos, como de obrigações tributárias, previsto no art. 135 do CTN, excesso de mandato ou violação do estatuto, arts. 1015 e art. 1016, ambos do CC/02. Sobre o tema, ensina a professora Thereza Nahas:

Somente é cabível falar em desconsideração da personalidade jurídica quando a responsabilidade pelo ato não puder ser imputada diretamente ao sócio, administrador ou qualquer outra pessoa jurídica. Ou seja, somente terá pertinência falarmos em desconsiderar a pessoa jurídica quando a personalidade que a lei lhe atribui é obstáculo à consecução dos fi ns a que se destina, ou essa personalização desviar-se dos fi ns sociais para o qual foi suportada e aceita pelo direito. Caso contrário, não há razão para se aplicar o instituto da desconsideração, pelo simples fato de que a própria lei permite a responsabilização direta do sócio ou administrador, sem qualquer necessidade de se comprovar desvio, fraude ou qualquer das situações previstas nas disposições legais [....] (NAHAS, 2004, p.153).

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Acreditamos que a responsabilidade patrimonial do sócio na execução trabalhista é um dos casos de responsabilização direta do sócio, o capítulo seguinte é dedicado a demonstrar os fundamentos que nos levam a sustentar esta posição.

4 NOVAS PERSPECTIVAS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS

Como exposto no capítulo anterior, a responsabilização direta, por previsão legal, é um modo de atingir o patrimônio dos sócios sem utilizar-se da teoria da desconsideração.

Em matéria tributária, no art. 135 do CTN, há previsão expressa da responsabilidade dos sócios pelos débitos tributários. O dispositivo tem a seguinte redação:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:I – as pessoas referidas no artigo anterior;II – os mandatários, prepostos e empregados;III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

O dispositivo inclui ainda os sócios comuns, de acordo com o art. 134, VII. A juris-prudência e doutrina são pacífi cas quanto à força do artigo em responsabilizar sócios, gerentes e quaisquer outros que estejam envolvidos com o débito por violação à lei. A CLT traz previsão de aplicação de normas de processo tributário no art. 889, que assim dispõe:

Art. 889 - Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente Título, os preceitos que regem o processo dos executivos fi scais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal.

Da leitura do artigo a melhor interpretação é de que todas aquelas normas reguladoras do processo tributário, utilizadas na cobrança dos créditos da Fazenda Pública, têm aplicação subsidiária ao Processo do Trabalho. Conclui-se, então, que o art. 135 do CTN só poderá responsabilizar o sócio por débitos, na justiça laboral, caso tenha natureza processual. Sobre o tema cabe lição de Wagner Giglio:

Restringe-se, porém, a aplicação subsidiária, nos termos do art. 889 da CLT, aos “preceitos que regem o processo dos executivos fi scais para a cobrança judicial...” (grifamos). Assim sendo, as normas de direito material, contidas em bom número na Lei n. 6.830/80, não se aplicam ao processo de execução trabalhista, em que incidem apenas as normas de natureza processual. (GIGLIO; CORRÊA, 2005, p. 526)

Em uma análise superfi cial, pode parecer ser de natureza material a norma em comento, tendo em vista que se encontra no CTN. Porém, o dispositivo tem natureza processual, segundo os argumentos que agora vamos dispor.

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A temática do dispositivo em comento é a responsabilidade patrimonial secundária, regulada hipoteticamente pelo art. 592, I, e pelo art. 596 do CPC. Trata-se, portanto, de relação jurídica que surge no curso da execução, sujeitando os bens do sócio à pretensão do exequente. Elucidativa é a lição do Ministro Teori Zavacski:

Na estrutura de uma norma jurídica individualizada de natureza creditícia pode-se identifi car: (a) no enunciado da endonorma, um sujeito (devedor) obrigado a entregar a outro (credor) uma determinada prestação; e (b) no enunciando da perinorma, o Estado-juiz com o poder-dever de fazer atuar coativamente sobre determinados bens a sanção prevista para o não atendimento do preceito endonormativo. Da relação que existe entre os fi gurantes da endonorma (credor e devedor) nasce o débito, ou seja, o dever de prestar; e, da relação que se estabelece entre o Estado e o sujeito sobre cujo patrimônio recai a sanção jurídica, nasce a responsabilidade, ou seja, a sujeição dos bens ao atendimento coativo da prestação. O débito está relacionado com o preceito que defi ne a conduta do devedor ao seu atendimento espontâneo; a responsabilidade, diferentemente, só ganha sentido e função com inadimplemento do preceito e com a execução forçada da prestação.Acertada, portanto, ao contrário do que afi rma certa corrente doutrinária, a preocupação do legislador em disciplinar, em capítulo do Código de Processo, o tema da responsabilidade patrimonial. Trata-se, com efeito, de instituto de natureza processual, cuja invocação e atuação é desencadeada em decorrência da crise que se estabelece pelo não cumprimento espontâneo da obrigação e pela conseqüente necessidade do recurso à tutela coativa do Estado. (ZAVACSKI, 2000, p. 260)

O posicionamento exposto é corroborado pela doutrina italiana clássica de Carnelluti e Liebman, como também pela autorizada doutrina nacional de Humberto Theodoro Júnior e Cândido Rangel Dinamarco.

Ante os preceitos fi ncados, reputamos clara a responsabilidade do sócio, com fundamento no art. 135, do CTN c/c art. 889, da CLT, sob a premissa de que o dispositivo tributário possui natureza processual.

Quanto à responsabilidade do sócio-gerente e do administrador, a legislação traz outros dispositivos que apontam para a mesma direção. A responsabilização do sócio-administrador estava presente na lei que regulava a constituição das sociedades limitadas – tipo societário da imensa maioria das empresas brasileiras – o Decreto 3.708/19. O art. 10 da norma em tela dispõe:

Art. 10 - Os sócios-gerentes ou que derem o nome à fi rma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.

Porém, o Novo Código Civil regula a responsabilidade do administrador, revogando tacitamente o mencionado Decreto 3.708/19. Assim dispõe o Codice:

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Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da

sociedade;II – provando-se que era conhecida do terceiro;III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.Art. 1.016. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados por culpa no desempenho de suas funções.

Da leitura do art. 1.015, podemos depreender que a responsabilidade por violação do contrato e por excesso de mandato continuam previstas; haveria omissão apenas quanto à responsabilidade por violação da lei para coincidir com a amplitude da norma do Decreto 3.708/19. Porém, o art. 1016 vai além, responsabilizando o administrador quando agir com culpa.

Diante desses dispositivos, percebemos que a norma buscou ampliar a responsabilidade do administrador em relação à disciplinada anteriormente no Decreto 3.708/19. A responsabilidade por violação à lei é a de menor amplitude e mais elementar, visto que decorre da própria lógica do Estado Constitucional. Portanto, se a norma prevê a responsabilização dos sócios por violações de menor vulto, como a do contrato social e qualquer outra que decorra de culpa do administrador, em uma interpretação sistemática e teleológica, reputamos haver responsabilidade também pelos atos de violação à lei.

Interpretação diversa, fi ncada em interpretação literal da norma, desrespeitaria o terceiro, que sofreu o dano em decorrência da violação à lei, o qual muitas vezes está em situação de hipossufi ciência, como é o caso do consumidor e do empregado. A referida interpretação esbarraria no chamado princípio da vedação ao retrocesso, formulado pelo professor Canotilho, que identifi ca na Constituição efeito que proíbe que as conquistas históricas em matéria de direitos sociais sejam tolhidas (art. 3º, art. 7º, art. 5º, § 2º, da CF/88) – efeito cliquet. A estrada dos direitos fundamentais só leva à frente; nunca deve haver retrocesso.

Portanto, havendo excesso de mandato, violação do contrato social, violação da lei ou culpa no exercício das funções, os administradores respondem solidariamente pelas dívidas da sociedade perante terceiros.

O crédito trabalhista tem contornos próprios, de forte proteção caracterizada em nossa legislação. Com esse preceito em mente, pretendemos provar, a seguir, que o inadimplemento do crédito trabalhista constitui violação da lei, ocasionando a responsabilidade subsidiária dos sócios com base nos dispositivos legais já mencionados.

O valor social do trabalho é um dos pilares de nosso sistema econômico, ao lado da livre iniciativa, ambos insculpidos como fundamentos da República Federativa

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do Brasil no primeiro artigo de nossa Carta Política. Portanto, a desvalorização do trabalho, decorrente do não pagamento de salários e verbas conferidas pela lei ao obreiro, leva à ruína o sistema almejado pela Constituição. A força de trabalho dispensada pelo empregado ao patrão não se restaura, de modo que, não havendo contraprestação, restará o enriquecimento ilícito, benefi ciando-se o patrão de sua própria torpeza.

A função social da empresa é princípio decorrente da função social da propriedade, presente no art. 5º, XXIII, da CF/88 e, embora presente apenas na legislação infraconstitucional, tem efi cácia de direito fundamental por integrar o bloco de constitucionalidade (cf. art. 5º, §2º, da Carta Magna). Desse mandamento decorre uma série de responsabilidades sociais que os detentores do empreendimento devem ter em mente, com vistas a cumprir seu papel dentro da sociedade, não sendo admissível que a empresa sirva para o enriquecimento de alguns em detrimento de outros. Sem dúvida, muito da responsabilidade é assumida em favor dos trabalhadores da empresa, que despendem a maior parte de sua vida construindo o empreendimento e o patrimônio pessoal dos sócios.

O princípio da proteção, insculpido no art. 7º da Constituição Federal, é o princípio basilar do Direito do Trabalho, que, reconhecendo a hipossufi ciência do trabalhador em relação ao empregador, põe o Direito ao lado do primeiro, equacionando a fórmula. Conclui-se, então, que a interpretação e aplicação do Direito deve sempre ter em vista a questão social e posicionar-se ao lado do mais fraco: o trabalhador.

O princípio da alteridade faz-se presente na Consolidação das Leis do Trabalho ao defi nir o empregador em seu art. 2º:

Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

Portanto, como somente o empregador assume o risco da atividade econômica, somente ele terá as dívidas e revezes do empreendimento, mas também fi cará sozinho com os lucros. Nessa esteira, o salário do empregado deverá ser sempre pago, não podendo haver qualquer vinculação entre o recebimento de salários e o sucesso do empreendimento de modo a prejudicar o empregado. O mesmo artigo, em seu segundo parágrafo, explicita uma tendência de ir além da sociedade empregadora, atingindo os grupos empresariais informais. Tal dispositivo legal levou Maria Helena Diniz a classifi cá-lo como primeiro dispositivo de infl uência da desconsideração da pessoa jurídica em nossa legislação. Assim dispõe a civilista:

No Brasil não havia que se falar em “desconsideração” no âmbito legal. Esse princípio só existia, entre nós, em alguns casos jurisprudenciais esparsos. Todavia, a Consolidação das Leis do Trabalho, no seu art. 2º, §2º, parece aplicar a teoria da desconsideração ao prescrever que “ sempre que uma ou mais empresas, tendo,

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embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. (DINIZ, 2005, p. 289)

Portanto, vemos que o princípio da alteridade impera sobre o formalismo do vínculo com a pessoa jurídica, sendo também responsável pela contraprestação do trabalho aquele que, presumidamente, aufere os lucros provenientes do mesmo.

O princípio da primazia da realidade, presente no art. 9º da CLT, propugna a superioridade absoluta da materialidade dos fatos independente da forma adotada, de modo a tornar nulos quaisquer atos que – mesmo com forma juridicamente legítima – tenham por escopo a fraude às leis trabalhistas. Com clarividência pode-se observar que, a partir desse princípio, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica jamais poderá ser obstáculo à persecução dos fi ns da legislação trabalhista, ou seja, o adimplemento do crédito do empregado.

Ante o exposto, parece claro que o inadimplemento do crédito trabalhista constitui violação à lei, por desrespeito aos dispositivos constitucionais do art. 1º, IV, art. 5º, XIII, art. 5º, §2º e art. 7º, caput, como também aos mandamentos dos arts. 2º e 9º da CLT. Portanto, presente a violação à lei, o magistrado está autorizado a buscar a responsabilização patrimonial do sócio, com fulcro no art. 135 do CTN c/c o art. 889 da CLT, ou somente do sócio-gerente ou do administrador, com base nos arts. 1.015 e 1.016 do CC/02.

5 A RESPONSABILIZAÇÃO NA EXECUÇÃO DE CRÉDITOS TRABALHISTAS

No sentido de guiar melhor a atuação prática da responsabilização dos sócios na execução de créditos trabalhistas, julgamos apropriado discorrer sobre algumas questões, em sua maioria de ordem procedimental, que geram dúvidas na doutrina e jurisprudência.

Primeiramente, cumpre esclarecer que consideramos desnecessário, para fi ns de responsabilização do sócio, que o mesmo tenha participado como reclamado no processo de conhecimento, pois sua responsabilidade é subsidiária e decorrente da lei, como já exposto, o devedor é a pessoa jurídica, presente no título executivo judicial, e somente diante da insolvência na execução se recorrerá aos bens dos sócios (art. 592, II e art. 596, ambos do CPC).

Deve o sócio então, na fase de execução, depois de constatada a insolvência da empresa, ser citado para pagar no prazo de 15 dias na forma do art. 475-J do CPC, de aplicação subsidiária ao processo trabalhista.

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Uma questão que gera muita controvérsia é o meio processual idôneo para defesa do sócio depois de citado na fase de execução. No caso, caberiam embargos do executado ou embargos de terceiro? Sobre o tema trazemos à colação julgado que parece dirimir a questão:

EMBARGOS DE TERCEIRO – SÓCIO – LEGITIMIDADE ‘AD CAUSAM’ – PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE – A responsabilização patrimonial do sócio não implica na sua inclusão automática no pólo passivo da execução de sentença, já que essa legitimidade pressupõe sua participação no processo de conhecimento. Se a parte, mesmo sendo sócia da reclamada, não participou da fase cognitiva, é lógico que ela não confi gura no título executivo como devedora, daí porque não é absoluto, do ponto de vista jurídico, afi rmar que a defesa da posse ou da propriedade de bens deva ser efetivada através de embargos à execução, sobretudo porque há equivalência dos dois institutos jurídicos, embargos à execução e embargos de terceiro, pois a parte que teve seus bens constritados pode pleitear a insubsistência da penhora em um como no outro. Esse fato, robustecido pela controvérsia que paira a nível jurisprudencial acerca da medida cabível, legitima o sócio da executada para a ação de embargos de terceiro. Quando nunca, caberia ao d. Julgador monocrático receber uma ação pela outra, pelo princípio da fungibilidade das medidas judiciais, mormente quando não se vislumbra a existência de erro grosseiro na hipótese vertente. Agravo de petição provido. (TRT/3ª região, AP 4429/1999, rel. Juiz Gilberto Goulart Pessoa, DJMG, 19 abr. 2000, p.7)

Portanto, depreende-se do julgado que, como o sócio não é realmente parte no processo, visto que não consta no título executivo, seria mais correto, formalmente, optar pelo embargo de terceiro. Porém com atenção à instrumentalidade das formas, visto não haver prejuízo, caso propostos embargos à execução, devem ser recebidos, em atenção ao princípio da fungibilidade.

Por último, cabe tratar da responsabilidade do sócio retirante. O sócio que já não mais faz parte do empreendimento pode ser chamado a responder pelos créditos trabalhistas inadimplidos pela empresa? A questão é delicada e vai depender muito da situação da empresa no momento da saída do sócio. Se, no momento da retirada do sócio, a sociedade estava funcionando em completa regularidade, adimplidos todos os salários e demais parcelas, não deve ser atribuída responsabilidade ao mesmo, visto que o crédito é consequência de momento posterior à sua saída quando não mais respondia pelos riscos do empreendimento. Portanto, caberá a responsabilização do sócio retirante quando no momento da sua saída haja dívidas da empresa para com seus obreiros ou haja ocorrido fraude na cessão ou transferência das quotas societárias. Porém, não responderá eternamente pelos débitos da empresa que deixou, mas apenas pelo período de dois anos, como dispõe o Código Civil:

Art. 1.032. A retirada do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer averbação.

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Responsabilidade Patrimonial dos Sócios na Execução Trabalhista 185

Portanto, em termos simples o sócio retirante responderá pelas execuções desde que a ação de conhecimento tenha sido ajuizada até dois anos após a averbação de sua retirada da sociedade no contrato social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ideal seria que Processo do Trabalho dispusesse de norma expressa, no texto da CLT ou de suas leis esparsas, nos moldes do art. 28 do CDC, prevendo desconsideração da pessoa jurídica ante a mera inadimplência. Pois, os motivos que levaram à adoção do preceito para a defesa do consumidor também estão presentes na seara trabalhista, ligados principalmente à hipossufi ciência na relação jurídica que ambos detêm com a empresa.

Não obstante a mora legislativa, com fulcro nas afi rmações do presente estudo reputamos como esclarecido que a responsabilização do sócio – por via teoria da desconsideração da pessoa jurídica – tem se dado de modo equivocado pelos magistrados trabalhistas, ante a distância dos requisitos legais.

Porém, não se faz necessária a distorção da disregard doctrine, visto que há fundamento para responsabilização direta do sócio por expressa previsão legal, por violação à lei, na forma dos dispositivos já citados exaustivamente. A violação à lei está fundada nos dispositivos comentados da Constituição Federal e da CLT.

Deste modo, reputamos que a presente teoria da responsabilidade subsidiária dos sócios pelos créditos trabalhistas encontra-se estruturada em pilares sólidos na legislação pátria e pronta para ser aplicada aos feitos em curso, tornando mais efetiva e célere a fase de execução e, por via colateral, o Direito do Trabalho.

REFERÊNCIAS

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NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da Pessoa Jurídica: refl exos civis e empresariais do direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2004.

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Temas de Direito Privado186

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ZAVACSKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil: do Processo de execução arts. 566 a 645. v. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais.

PARTNER´S RESPONSIBILITY BEFORE LABOR JUDICIAL DECISIONS

Abstract: This study focuses on the partner’s responsibility for the credits earned by the company employees in enforcement of labor judicial decisions. Through the analysis of the current jurisprudence and doctrine about the theme, it envisages the disregard of the legal entity doctrine in order to seek fundaments that show the real aspects of the Brazilian law on the current matter.

Keywords: Labor Sentence Enforcement. Disregard of Legal Entity Doctrine. Partner’s Responsibility.

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Responsabilidade Civil e Contratos de Locação Predial Urbana

Marcelo Sampaio SiqueiraMestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Professor da Faculdade 7 de Setembro (FA7)[email protected]

Sumário: Introdução. 1. O direito de propriedade e o direito de locação. 2. A responsabilidade patri-monial. 3. O contrato de locação predial urbana. 4. O dever de reparar nas relações locacionais. Conclusão. Referências.

Resumo: O artigo trata da responsabilidade patrimonial advinda do inadimplemento das prestações originárias da relação locacional de imóvel urbano. Constituiu tarefa do artigo classifi car o tipo de responsabilidade decorrente e analisar as prestações de natureza principal e acessória assumidas pelo locador e pelo locatário, cujo inadimplemento gera como consequência o dever de reparar.

Palavras-chave: Contrato. Responsabilidade patrimonial. Locação de imóvel urbano.

INTRODUÇÃO

Este artigo trata das relações existentes entre locadores e locatários derivado de contrato de locação regulado pela Lei 8.245/91, modifi cada pela Lei 12.112 de 09 de dezembro de 2009.

O contrato de locação, que tem natureza bilateral, como fonte de obrigações, estabelece prestações que devem ser observadas pelas partes, sob pena de restar caracterizada a falta de pagamento, constituindo um ato ilícito.

Não se confi gura pretensão mencionar todas as prestações cabíveis às partes envolvidas na relação, mas procurar caracterizar que o inadimplemento das prestações assumidas constituem uma responsabilidade contratual, que pode ser, em certos casos, até de natureza objetiva.

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O trabalho foi dividido nos seguintes tópicos: o direito de propriedade e o direito de locação; a responsabilidade patrimonial; o contrato de locação predial urbano e, por último, o dever de reparar na relação locacional.

1 O DIREITO DE PROPRIEDADE E O DIREITO DE LOCAÇÃO

A propriedade é uma convenção humana e pode ser defi nida como o poder que o indivíduo ostenta sobre uma coisa estando presentes faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar, não sendo essas exaustivas ou absolutas, podendo inclusive alguns dos poderes estarem momentaneamente dissociados. No dizer de Ascensão:

A propriedade concede a universalidade dos poderes que se podem referir à coisa. Por isso o proprietário tem vocação para o gozo. Este pode em concreto faltar, sem que em nada se toque a essência do direito. A propriedade fi ca então reduzida a um elemento qualitativo a que podemos também nos chamar casco ou raiz; mas como os poderes foram concedidos como universalidade, eles automaticamente se expandem quando a restrição desaparecer. Nisto consiste a elasticidade (2000, p.449).

De início, afi rma-se por questão didática que propriedade não é um direito,

sendo a sua proteção o direito (FIGUEIREDO, 2008, p. 50-51). Na verdade, o objeto de estudo deste item não é propriamente a propriedade em si, mas o direito de propriedade e as relações do seu detentor com a coisa imóvel.

A propriedade, além de não ser um direito também não pode ser caracterizada como um privilégio. Este termo sempre indica um direito exclusivo de poucos, já os poderes sobre a coisa, cuja proteção é um direito, é extensivo a qualquer cidadão, sendo protegida pelo Estado, desde que sejam respeitados certos condicionantes e limites.

O fato de poder usar, gozar, dispor e reivindicar exalta o poder do indivíduo sobre uma coisa, e o cerceamento pleno da propriedade leva de certa forma à extinção da própria liberdade, já que o direito à propriedade constitui um elemento clássico da autonomia privada do particular. Na lição de Richard Pipes, extrai-se que a ideia de liberdade e propriedade são interligadas (apud TORRES, 2008, p. 131). Mais adiante conclui: “Minha hipótese inicial dizia que há uma ligação íntima entre garantias públicas de propriedade e liberdade individual: que enquanto a propriedade de certa forma existe sem a liberdade, o contrário é inconcebível.”

Todo objeto passível de apropriação denota as faculdades citadas e o exercício destas constitui um indicativo de liberdade do dominador, embora, conforme será vistos nos itens que se sucedem, que o tipo de propriedade em estudo, fundiária, face a sua complexidade e a sua natureza de bem de produção, e não de consumo, sofra uma intensa intervenção estatal, objetivando, por mais paradoxal que seja, a concretização da liberdade atribuída ao proprietário sobre uma coisa.

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Ao se analisar a propriedade, deve-se delimitar que tipo de coisa é passível de apropriação e de gerar direito, um direito que é subjetivo absoluto no sentido de que não necessita de nenhuma relação com outra pessoa para que seja exercitado ou oponível.

Qualquer aspecto relativo ao direito de propriedade não pode ser dissociado da função social. Este princípio do direito constitui uma mudança de paradigma: do aspecto individual para o coletivo, trouxe para os dias de hoje uma crescente constitucionalização do direito privado (CANARIS, 2006, p. 20), devendo a legislação civil se adequar aos princípios consagrados.

O direito de locar o bem é uma das faculdades do direito de propriedade, já que o proprietário estaria utilizando-se da possibilidade de gozar o bem, ao destinar o imóvel a outra pessoa, que passaria a ter a posse direta, mediante pagamento de retribuição mensal, o que constituiria uma exploração econômica do proprietário, que extrairia frutos da coisa.

Preliminarmente expõe-se que o uso e o gozo, como não poderia deixar de ser, devem obedecer à função social, e o não cumprimento implica no desvirtuamento da propriedade e até na possibilidade de responsabilização do proprietário, que, via de regra, é o locador.

2 A RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL

Apesar de no primeiro tópico ter-se tratado de um assunto relativo ao direito real, ou seja, a propriedade e a posse, o tema do artigo é relativo ao direito pessoal, pois trata da prática de ilícitos originários de uma relação locacional, que concede a posse do bem ao locatário, mediante uma prestação.

Não resta dúvida de que a relação jurídica oriunda de um contrato de locação pode acarretar responsabilidade civil, sendo importante em um primeiro momento conhecer acerca da responsabilidade1.

A importância do estudo da responsabilidade patrimonial por atos danosos, intimamente relacionada com o instituto das obrigações, está no sentido da realização da ideia de justiça que ela enseja, constituindo um dos campos mais interessantes do Direito, cuja evolução jurídica acentuou-se nos dias atuais, com o advento do novo Código Civil.

Não há dúvida de que a responsabilidade patrimonial gera um direito pessoal, constituindo um tópico especial do direito das obrigações, pois nela encontram-se presentes os requisitos de uma relação obrigacional, como a existência de credor e

1 O termo responsabilidade patrimonial é mais adequado do que responsabilidade civil, pois a sanção pela prática do ato ilícito recairá sobre o patrimônio do infrator. Se o patrimônio deste for negativo, nada acarretará a este, a não ser que a reparação seja paga em prestação de serviço.

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Temas de Direito Privado190

devedor, sendo este último o responsável por uma prestação, que possui relevância econômica, num determinado espaço de tempo. A especifi cidade está na fonte dessa obrigação, que é derivada de um ato ou omissão ilícitos ou da própria norma jurídica, que determina o dever de reparar, independentemente do elemento culpa2.

Responsabilidade patrimonial é a obrigação que uma pessoa, seja física ou jurídica, tem para o fi m de restaurar o equilíbrio moral e patrimonial, de reparar o dano causado a outrem, por força de ação ou omissão ilícita ou por força da prescrição legal de ressarcir.

O fato ilícito ou o fato no qual a lei prescreve o dever de indenizar, de acordo com o conceito acima proposto, pode ser caracterizado como uma fonte de responsabilidades, as quais podem ser classificadas de duas formas: responsabilidade oriunda de ato culposo, artigo 186 do Código Civil, ou responsabilidade objetiva ou por resultado3.

A responsabilidade é uma medida de justiça, uma resposta a um determinado ato, sendo uma reação a um possível caso de enriquecimento ilícito, já que ela visa ao deslocamento do ônus do dano sofrido pelo lesado para a pessoa causadora do dano por ato positivo ou negativo. A indenização deve ser prestada de tal forma que a vítima tenha seus danos ressarcidos, voltando a sua situação patrimonial de antes, não podendo também ser superior aos danos sofridos sob pena de se confi gurar um enriquecimento indevido e sem causa.

O tipo de responsabilidade em análise, ou seja, do locador, pode ser classificado como contratual, de que se pode extrair os seguintes elementos, seja qual for a teoria adotada (subjetiva ou do risco): a) existência de uma ação comissiva ou omissiva; b) ocorrência de um dano, que pode ser moral ou patrimonial; c) nexo de causalidade entre a ação e o dano.

O primeiro requisito é o ato humano, que pode ser comissivo ou omissivo, exteriorizando-se como um ato ilícito, teoria da culpa (responsabilidade subjetiva ou aquiliana)4, ou teoria do risco (responsabilidade objetiva), assentado na previsão legal, que fundamenta a responsabilidade patrimonial.

2 Aqui encontramos a primeira inovação, já que o dever de reparar pelo ato ilícito não é tratado mais na parte geral, que apenas defi ne o que é ato ilícito, artigo 186 do Código Civil vigente, e sim no título que trata da Responsabilidade Civil. Salienta-se também que o citado artigo 927 também traz expres-samente em seu tipo a regra que determina a reparação em casos especifi cados em lei em conformidade com a natureza do risco e independentemente do elemento culpa.

3 Venosa, ao tratar da responsabilidade objetiva, conceitua que essa, como regra geral, leva-se em conta o dano, em detrimento do dolo ou da culpa (2003, p.18). Desse modo, para o dever de indenizar, bastam o dano e o nexo causal, prescindindo-se da prova da culpa.

4 A culpa, que pode ser representada pelo dolo ou pela culpa “stricto sensu”, concerne no aspecto sub-jetivo da pessoa que praticou o ato, ao passo que a ilicitude tem em vista o valor objetivo do fato, isto

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O segundo elemento é a ocorrência de um dano, que pode ser material ou moral, que deve ser comprovado pela vítima, não podendo ser hipotético ou conjectural. Na lição de Lopes, para que haja dano relevante à ordem jurídica, “é preciso que haja um prejuízo decorrente da lesão de um direito” (1995, p. 222).

O dano é a consequência do ato, que deve ser ilícito, causando um passivo no patrimônio da vítima ou um abalo no seu bem-estar psíquico, patrimônio moral, não apreciável economicamente. Quando se fala em lesão de direito, englobam-se não só os bens materiais corpóreos e incorpóreos, mas também os bens personalíssimos, não passíveis de análise econômica.

A responsabilidade patrimonial só existirá caso haja um dano a reparar, desde que não exista qualquer excludente de responsabilidade. Conforme visto, o dano poderá ser material ou moral, podendo o ato causar os dois, gerando a obrigação de o agente responder patrimonialmente por ambos.

O material é representado pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes. O primeiro configura-se na efetiva diminuição do patrimônio da vítima, e o segundo seria o que se deixou de ganhar. Este tipo de dano ocasiona diminuição efetiva no patrimônio físico do sucumbente.

Já o dano moral5 não tem como conseqüência a diminuição do patrimônio físico da pessoa. Ele é representado pelo dano causado ao íntimo da vítima, ao nome profi ssional e familiar, à honra, causando dor e acarretando uma lesão na estima que a pessoa possui de si própria.

A reparação do dano, seja qual for o tipo, pode ser representada por uma prestação pecuniária, responsabilidade patrimonial, que visa a restituir a situação ao status quo originário. O dano moral também é reparado da mesma forma, o que representa uma pena ao infrator e, embora a dor não tenha preço, a indenização pecuniária serve para compensar a violação ao seu direito, possibilitando atenuar o sofrimento, possibilitando diversões, objetivando a recuperação do equilíbrio psíquico abalado6.

é, o próprio ato que negou os valores tutelados pela norma jurídica, não se encontrando em análise se o ato foi em consequência de qual aspecto subjetivo. Em síntese, o ilícito é o ato, a culpa é o elemento volitivo ou negligencial causador do ato e que em certos casos previstos em lei poderá não está pre-sente (responsabilidade por resultado ou objetiva).

5 “O fundamento da responsabilidade pelo dano moral está em que, a par do patrimônio em sentido técnico, o indivíduo é titular de direitos integrantes de sua personalidade, não podendo conformar-se à ordem jurídica em que sejam impunemente atingidos.” (PEREIRA, 1996, p.54).

6 Vide súmula 37 do STJ: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.”

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Existem certas situações em que, embora os atos gerem danos, não se caracteriza a responsabilidade patrimonial, que pode ser afastada pela inexistência da relação de causalidade7 ou por causas excludentes de responsabilidade, isto é, se o ato causador for originário de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima8.

O terceiro elemento é o nexo de causalidade entre o ato e o dano. Se não existir este elo não cabe responsabilidade patrimonial, seja a contratual, seja a extracontratual, isto é, se o ato praticado pelo agente não foi o responsável pelo dano sofrido, não há como prosperar o pedido de reparação do dano.

No tema em questão, o objeto de análise é o contrato de locação predial urbana e as conseqüências advindas da prática de ato ilícito durante a relação locacional. O conhecimento dos elementos constitutivos da responsabilidade, desenvolvidos neste tópico, é essencial às conclusões a serem desenvolvidas quando da apresentação dos fatos jurídicos geradores ou não do dever de reparar.

3 O CONTRATO DE LOCAÇÃO PREDIAL URBANA

A relação jurídica advinda da locação é complexa, pois envolve a concessão da posse, que se constitui um direito real, embora que o contrato estabelece prestações às partes, que é de natureza pessoal9.

O direito de locação, que tem por base uma relação obrigacional, pode ser classifi cada como um direito pessoal de gozo e não um direito real de gozo, cujo exemplo seria o usufruto.

7 Relação de causalidade, segundo Carlos Alberto Gonçalves: É a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verifi cado. Vem expressa no verbo “causar”, utilizado no artigo 159. Sem ela, não existe a obrigação de indenizar. Se houve o dano mas sua causa não está relacionada com o comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e também a obrigação de indenizar. Se, verbi gratia, o motorista está dirigindo corretamente e a vítima, querendo suicidar-se, atira-se sob as rodas do veículo, não se pode afi rmar ter ele “causado” o acidente, pois na verdade foi um mero instru-mento da vontade da vítima, esta sim responsável exclusiva pelo evento. (2003, p. 33).

8 Há ainda as causas excludentes de culpabilidade que são: a menoridade, a perturbação mental, consentimento da vítima; exercício normal de um direito, legítima defesa, estado de necessidade e a prescrição. Salienta-se que a culpa da vítima, culpa de ambos, culpa de terceiro e a existência de força maior constituem excludentes do nexo causal.

9 Citando Mesquita, conclui-se que a obrigação vista pelo ativo é o direito que permite exigir uma prestação a determinada pessoa; o jus in re, por sua vez, é o direito que incide diretamente sobre uma coisa, sem a mediação de quem quer que seja (2000, p. 51). Mais adiante, o mesmo autor leciona que o direito real foi defi nido como o poder conferido ao respectivo titular de excluir todas as demais pessoas de qualquer ingerência na coisa que constitui o seu objeto, sempre que essa ingerência seja incompatível com o conteúdo do direito. Ao fi nal expõe: Direitos reais são estruturalmente relações entre pessoas, funcionalmente são direitos que colocam uma coisa à disposição do respectivo titular;

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A explicação para a classifi cação acima está no fato de que, segundo Ascensão, o direito real é um direito absoluto no sentido de que sua existência não depende de uma relação prévia entre as partes, já o direito relativo, como por exemplo o pessoal, é o que assenta numa relação (2000, p.45). Os titulares de direitos citados em primeiro lugar, que não se assentam em relação nenhuma, têm uma posição absoluta, porque são garantidos pela ordem jurídica, independentemente de qualquer relação particular10.

O contrato de locação estabelece inúmeras prestações para as partes envolvidas, sendo importante também apresentar especifi cação para as prestações devidas. O locador, como ocupante de um dos pólos da relação obrigacional, tem como deveres contratuais ou legais básicos: a) dar a posse direta do bem ao locatário; b) fazer com que a locação sirva para o fi m a quê se destina. Como se constitui uma relação bilateral atributiva, o locatário possui também deveres principais, que são: a) dar o valor referente ao aluguel mensal convencionado; b) restituir (prestação de dar) o imóvel ao término da locação, entre outras.

No entanto, duas questões de natureza regulamentar ganham relevância ao tratarmos do contrato de locação. Primeira, o Código Civil de 2002, em eu artigo 2.036, fi xa expressamente a efi cácia de lei especial, que no presente caso é a 8.245/91, para regular a locação de prédio urbano. Segunda, o alcance do CDC no concernente às relações locacionais.

Não há dúvida de que o Código Civil de 2002, ao tratar no capítulo da locação, só está a regular os contratos de locação fora do alcance da Lei especial, como por exemplo os contratos de locação de bens móveis; de bens imóveis pertencentes à entidade da administração direta ou indireta, desde que não exista legislação específi ca; vagas autônomas de garagem, entre outros exemplos expressos no artigo 1º. da Lei 8245/91.

Não se poderia deixar de afi rmar que os princípios gerais dos contratos determinados pelo Código novo são aplicáveis ao contrato de locação de prédio urbano regulado pela lei especial, já que a norma geral aplicar-se-ia subsidiariamente.

A questão atinente à aplicação do Código de defesa do consumidor é mais prolixa. Venosa conclui que “o ordenamento consumerista será aplicado naquilo que completar e se harmonizar com o espírito não só da lei inquilinária como de tantos outros diplomas legais.” (2007, p. 28).

O ponto nodal para equacionar o questionamento lançado é responder se a relação obrigacional criada pelo contrato de locação é de consumo.

Defendemos a posição de que a relação será de consumo se o locatário puder ser defi nido como consumidor e se o locador for um fornecedor. Mas o tópico central

10 exemplifi cando: num litígio envolvendo um direito de propriedade do imóvel o proprietário só tem que demonstrar sua propriedade, é o que basta para exigir a entrega da coisa, não tendo que tratar dos atos jurídicos.

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seria concluir se a locação é ou não uma prestação de serviço. Logo, discordamos do entendimento de que basta a conceituação de consumidor na relação jurídica para a aplicação da norma consumerista, a relação ex locato, sem a preocupação de tipifi car a fi gura do fornecedor.

Ao analisarmos a fi gura do locatário e as condições às quais tem direito, pode-se dizer que este seria um consumidor11. Mas será que o locador seria um fornecedor?

O artigo 3o. da Lei 8.078/90 diz que fornecedor é aquele que desenvolve atividades de produção e transformação em geral ou que presta serviço. Mas será que o locador desenvolve uma prestação de serviço?

A prestação de serviço segundo a ciência econômica é um conceito fl uido, não tão claro quanto o conceito de produção de um bem12. Pode-se dizer que se constitui a realização de uma atividade que objetiva a produção de um trabalho contratado por terceiros, a qual pode ser remunerado e ter natureza corpórea ou incorpórea.

Analisando-se esse conceito, afi rma-se que nem sempre o locador pode ser caracterizado como um prestador de serviço perante o locatário12. Vai depender da pessoa do locador.

Em nosso entendimento, quando o locador de bem imóvel urbano for pessoa natural ou jurídica, ou qualquer ente despersonalizado sujeito de direitos e deveres, como por exemplo: o espólio, que não tenha como atividade fi m a locação de imóvel, não se pode afi rmar se o locador é um fornecedor, pois não está a prestar serviço. Logo, nessa relação não se aplicariam as normas do Código de Defesa do Consumidor, mas somente a Lei das Locações e do Código Civil no tocante aos princípios gerais dos contratos13.

11 vide artigo 2º. da Lei 8245/91.12 Sobre a teoria da produção e serviço vide a obra de C.E. Ferguson (1991).13 Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. CONTRATO POR

PRAZO DETERMINADO. FIANÇA. CLÁUSULA QUE A PRORROGA ATÉ A ENTREGA DAS CHAVES. POSSIBILIDADE. ANUÊNCIA EXPRESSA DO FIADOR. SÚMULA 214/STJ. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CON-SUMIDOR ÀS RELAÇÕES LOCATÍCIAS DISCIPLINADAS PELA LEI 8.245/91.IMPOSSIBILI-DADE.1. A 3ª Seção deste Tribunal, no julgamento do REsp 566.633/CE,rel. Min. Paulo Medina, as-sentou a validade de cláusula de contrato de locação por prazo certo que prorrogue a fi ança até a entrega das chaves do imóvel, se expressamente aceita pelo fi ador que não se exonerou do encargo na forma do art. 835 do Diploma Civil atual, correspondente ao art. 1.500 do Código Civil de 1916; 2. A controvérsia em análise não contempla hipótese de aditamento ao contrato de locação, razão por que não se aplica ao caso a Súmula 214/STJ. 3. Esta Corte possui orientação pacífi ca no sentido de que as normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) não se aplicam às relações locatícias disciplinadas pela Lei 8.245/91. 4. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no REsp 922763 / RS, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta turma, Data da publicação 19.12.2007, pp.1253)

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Contudo, quando o locador for uma pessoa natural ou jurídica que desenvolva a atividade de corretagem (administração de imóveis), não resta dúvida de que se estaria diante de uma prestação de serviço, sujeitando-se o contrato de locação, fi rmado pela prestadora, às regras da Lei 8.078/9014.

4 O DEVER DE REPARAR NAS RELAÇÕES LOCACIONAIS

A relação locacional, conforme o visto, é derivada de um contrato do qual acarretam direitos e deveres às partes envolvidas, sendo que o não cumprimento desses gera consequências.

Preliminarmente, após o estudo da responsabilidade patrimonial e do contrato de locação, afi rma-se que o inadimplemento de uma prestação, cuja fonte seria o citado termo, caracteriza a responsabilidade contratual, pois existe uma relação anterior entre o credor e o devedor.

A caracterização apresentada é essencial para delimitar-se a matéria, pois o Código Civil de 2002, seguindo a doutrina tradicional dualista, trata em disciplinas diversas a responsabilidade contratual da extracontratual ou aquiliana.

A primeira estaria regulamentada na parte geral das obrigações, como uma consequência do não cumprimento da prestação15. Já a responsabilidade contratual seria tipifi cada pelos artigos 186 a 188, 927 e seguintes16.

É fato que há diferenças entre essas duas espécies de responsabilidade, mas é incontestável que as mesmas possuem os mesmos requisitos: ato ou omissão ilícito; nexo de causalidade e dano.

O inadimplemento de uma prestação oriunda de um contrato não deixa de ser um ato ilícito, sendo que na responsabilidade contratual, ao contrário da aquiliana, a vítima, que é a credora da reparação, só precisa provar a falta do pagamento17. A questão da culpa ou de sua inexistência constitui elemento probandi do infrator, que só escapa do dever de reparar se provar que não teve culpa, o que se caracteriza uma excludente de culpabilidade.

14 Ementa: PROCESSO CIVIL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LOCAÇÃO - CLÁUSULAS ABUSIVAS-ADMINISTRADORAS DE IMÓVEIS- LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM -INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.As administradoras de imóveis são legitimadas para fi gurarem no pólo passivo em ações civis coletivas propostas pelo Ministério Público com objetivo de declarar nulidade e modifi cação de cláusulas abusivas, contidas em contratos de locação elaboradas por aquelas.(Precedentes). Recurso Especial provido. (STJ. REsp 614981/Mg, Relator Ministro Felix Fischer, Quinta turma, Data da publicação 26.09.2005, pp.439)

15 Artigos 389 e 395, ambos do Código Civil de 2002.16 Sobre essa teoria ver Carlos Alberto Gonçalves (2003, p.26-27).17 Que nesse caso signifi ca cumprimento de prestação.

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O objetivo deste artigo se propõe a responder que atos ilícitos podem advir da relação locacional de imóvel urbano e quais as consequências destas práticas.

Não é pretensão do trabalho, em poucas linhas, esgotar as possibilidades acerca dos atos passíveis de gerar direito à reparação numa relação locacional, pois seria inviável face às inúmeras prestações imputáveis a cada parte. O intuito é destacar os fatos mais comuns e falar da reparação cabível e possível.

A reparação na responsabilidade contratual, segundo o artigo 389 do Código Civil, seria o pagamento das perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices ofi ciais regularmente estabelecidos e honorários de advogado. Pode-se ainda acrescentar a esse rol a multa contratual, seja ela compensatória ou moratória, estabelecida nos artigos 408 e seguintes do diploma civil vigente.

Nem sempre os contratos trazem a estipulação de cláusulas penais, que nada mais é que a pré-fi xação das perdas e danos pelas próprias partes18. Nesses casos a reparação fi caria adstrita às penas impostas pelo citado artigo 389 do Código Civil, sem esquecer-se a necessidade do inadimplemento acarretar dano19.

Traçadas essas considerações acerca das consequências pelo descumprimento da prestação, passa-se a análise dos fatos jurídicos que caracterizariam atos ilícitos na relação locacional, considerando-se serem as partes legítimas para a realização do contrato. Para facilitar a didática, passa-se a dividir os fatos em dois grupos: fatos imputáveis ao locador e fatos imputáveis ao locatário.

4.1 FATO IMPUTÁVEL AO LOCADOR

O artigo 22 da Lei 8245/91 estabelece inúmeros deveres ao locador, cujo descumprimento torna o ato inválido e passível de reparação independentemente de previsão contratual. Um dos mais importantes deveres seria a concessão da posse do bem em estado de servir ao uso que se destina. O inquilino ao alugar o bem imóvel tem um objetivo já prefi xado no contrato e o seu não atendimento pode gerar a responsabilização do locador. Imagina-se: a locação de uma casa residencial que não atenda as condições de habitabilidade ou a locação de um imóvel para fi ns não residenciais, cujo ordenamento do Município não permita a exploração de comércio para o local20.

18 Lembra-se, no entanto, que a cláusula penal tem duas funções: compulsória e indenizatória. A que estamos tratando nesse parágrafo é a indenizatória.

19 Observa-se que é devido o pagamento da multa contratual estabelecida em caso de inadimplência inde-pendentemente da existência de dano.

20 Sobre essa questão da imprestabilidade do imóvel ver decisões: TJCE – Ap 98.03331-0 e TJRJ 2008.001.01640.

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Outro exemplo que se pode destacar é a locação de imóvel que, embora tenha condições técnicas de habitação, não teve licença deferida para sua construção pela edilidade, caracterizando a existência de um imóvel irregular. Nesse caso, o bem locado não serve para o fi m almejado, o que acarreta a existência de ilícito e dever de reparar ao inquilino, que não poderá usar a coisa.

No tocante ao dever de garantir o uso pacífi co do bem, pode-se citar que ao locador é vedado alugar bem sob o qual exista ordem judicial defi nitiva que lhe retire a posse ou a titulariedade. Ocorrendo isso, o locatário poderá vir a ter problemas com a ordem de se retirar do imóvel, o que lhe proporcionaria o direito de requerer perdas e danos21.

É interessante ressaltar que fato superveniente à locação, como, por exemplo, um raio que afete a parte elétrica de uma loja comercial, acarretando a necessidade de troca de fi ação, faz com que o locador tenha o dever de consertar a parte elétrica, pois casa sem energia elétrica compromete o destino do imóvel. O não cumprimento implica no dever de reparar patrimonialmente.

A responsabilidade, no entanto, desaparece ou tem seus efeitos diminuídos caso o inquilino demore em notifi car ao locador da existência do dano no imóvel.

Vale salientar que a locação de imóvel com defeito já conhecido pelo locador implica não só o direito do inquilino requerer a rescisão contratual, mas até a cobrança de perdas e danos, face o defeito e o desrespeito ao princípio da boa-fé objetiva.

Os últimos quatro parágrafos trouxeram tipos descritos no artigo 22 da lei 8245/91, mas se podem destacar outros deveres imputáveis ao devedor, cujo inadimplemento acarretaria o direito ao locatário requerer perdas e danos. Nesse caso, em conformidade com o artigo 33 da Lei 8245/91, cita-se em primeiro lugar o fato de que a não concessão de preferência ao locatário para aquisição do bem locado, nas mesmas condições obtidas por terceiro adquirente, implica no pagamento das perdas e danos, sendo esse tipo de responsabilidade do tipo objetiva, pois é advinda da lei, não sendo necessário se perquirir sobre a culpa22. Ao locatário basta demonstrar que não lhe foi dada a preferência23.

21 Segundo Maria Helena Diniz: O locador deverá, ainda, na hipótese de evicção, se agiu de má-fé, pagar as perdas e danos, por ter levado o inquilino a realizar contrato que não faria se soubesse da real situação dominial do prédio locado. Não há qualquer responsabilidade do locador por desapropriação ou requisição do imóvel locado, que decorrem do factum principis, ou seja, de ato de autoridade pública (2008, p.108).

22 Sobre a questão da preferência ver o julgado JTACSP (Revista dos Tribunais 114:238), que defende a tese de que as perdas e danos pela não concessão do direito de preferência só é devida caso o preterido prove condições fi nanceiras para adquirir o bem.

23 Segundo o artigo 33 da Lei 8245/91, se o contrato de locação estiver averbado no Cartório de Registro competente pelo menos 30 dias antes da alienação junto a matrícula do imóvel, o inquilino possui o direito de depositando o preço e demais despesas do ato de transferência haver para si o imóvel alienado a terceiro.

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O artigo 52, parágrafo terceiro da Lei 8.245/91, estipula, em caso de perda do direito de renovação do contrato, direito do locatário à indenização para ressarcimento dos prejuízos e dos lucros cessantes que tiver que arcar com a mudança, perda do lugar e desvalorização do fundo de comércio, se a renovação não ocorrer em razão de proposta de terceiro, em melhores condições, ou se o locador, no prazo de três meses da entrega do imóvel, não der o destino alegado ou não iniciar as obras determinadas pelo Poder Público ou que declarou pretender realizar. Expõe-se que tal responsabilidade é objetiva24.

É importante mencionar que certos atos praticados pelo locador podem até acarretar responsabilidade penal, sendo, portanto, também um ilícito penal punível com prisão simples, prestação de serviço à comunidade ou multa de três a doze meses do valor do último aluguel atualizado, revertida em favor do locatário. Como exemplo disso, cita-se: a cobrança antecipada de aluguéis fora dos casos previstos em lei (locação por temporada); a cobrança de pagamento de quantia superior a devido a título de aluguéis e encargos; a exigência de mais de uma modalidade de garantia; não fornecimento de recibo discriminado do aluguel e encargos; não dar o destino indicado ao bem, no prazo fi xado pela lei, quando o recupera para uso próprio ou para parentes indicados na regra25.

Logo, a responsabilidade do locador, em determinados atos, pode ser patrimonial e penal. Conclui-se também que a responsabilidade penal não exclui a patrimonial.

Resta claro que a infração de qualquer dos deveres citados no artigo 22 da Lei 8245/91, como também dos outros preceitos ora citados, gera como consequência não só o direito de reparar previsto no artigo 389 do Código Civil, mas também no direito do inquilino requerer a nulidade do ato jurídico ou da cláusula indevidamente estipulada em face do artigo 45 da Lei 8245/91, que proíbe a existência de estipulações que visem a elidir os objetivos da lei do inquilinato. Em certos casos, que denote o descumprimento da obrigação principal do contrato de locação, pode o inquilino até denunciar a locação sem arcar com o pagamento de multa contratual, caso o contrato esteja por prazo determinado, constituindo esse fato também uma pena.

4.2 FATO IMPUTÁVEL AO LOCATÁRIO

A relação locacional também impõe deveres ao locatário e o inadimplemento desses gera ao locador o direito de requerer reparação.

24 Sobre ação renovatória e dever de reparar ver: Súmulas 181 e 444 do STF. Indica-se que nesses casos a norma do Dec.24.150/34 é semelhante a regra do artigo 52.

25 Ver artigo 43 e 44 da Lei 8245/91, sendo que os três primeiros exemplos são de contravenção penal.

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Nesse aspecto destaca-se duas prestações principais imputadas ao inquilino ou sublocatário que seriam de pagar pontualmente o aluguel e encargos da locação e de restituir o bem ao término da locação no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal, artigo 23, inciso I e III da Lei 8245/91.

O não pagamento dos aluguéis e encargos, por se tratar de prestação pecuniária, gera ao locador o direito de cobrar juros, sem prejuízo da cláusula penal porventura estipulada, atualização monetária e honorários de advogado, independentemente da comprovação de dano, face o preceito do artigo 404 do Código Civil.

Acerca do segundo tipo citado, restituição do imóvel, afi rma-se que o locatário responderá não só pela demora na devolução do bem, caso não cumpra com seu dever, podendo a liquidação do dano ser determinada pelo pagamento de aluguel a preço de mercado do imóvel, durante o período que deveria ter entregue o bem e não o fez. Mas observa-se que a obrigação não é só de restituir o imóvel, pois este deve ser entregue ao locador no estado em que o recebeu, desconsiderando-se, no entanto, os desgastes sofridos pelo tempo acarretados pelo uso normal.

O fato do inquilino ter recebido o imóvel pintado, sem dúvida alguma o obriga a entregar o imóvel também pintado, não podendo dizer que as falhas na pintura são decorrentes do uso normal. A correta exegese do preceito do inciso III da Lei 8.235/91 estaria na proteção do inquilino de responder pelo desgaste natural do bem, que ocorreria mesmo que o bem não estivesse sendo utilizado, como, por exemplo, a oxidação das torneiras, no entanto, seria impossível ao inquilino usar a coisa, mesmo que de forma normal, sem que estragasse a pintura, o que acarretaria a ele o dever de pintar o bem ao restituí-lo. Observa-se que essa responsabilidade só existirá se o locatário tiver recebido o imóvel com pintura nova, devendo devolver o bem no mesmo estado.

Pode-se citar também, como ilícito praticado pelo inquilino, a utilização do imóvel para fi m diverso do estabelecido no contrato (artigo 23, inciso II da Lei 8245/91). Locar casa para fi ns residenciais e explorá-la como bem comercial acarreta não só o direito ao locador requerer a rescisão contratual, artigo 9º. Inciso II da Lei 8245/91, mas a pedir perdas e danos pela infração.

Outro fato muito comum, infelizmente, é a mudança da forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento prévio e por escrito do locador. São inúmeras as lides cujo fato é oriundo da mudança indevida das cores da fachada do imóvel pelo inquilino, sem a autorização do proprietário. Essa infração permite não só a rescisão contratual, mas o desfazimento da pintura às custas do infrator, sem prejuízo das perdas e danos26, artigo 251 do Código Civil.

26 Neste caso a vítima vai observar a existência de danos emergentes, lucros cessantes ou danos morais.

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Uma das prestações exigíveis do locatário de um apartamento é que este respeite as normas do condomínio. A desobediência poderá levar o condomínio a multar pela infração cometida, sendo esta em última instância suportada pelo inquilino. No entanto, a cobrança direta da multa será efetuada ao locador (obrigação propter rem)27 que poderá ter o direito de regresso contra o inquilino e usar dos fatos para caracterizar infração contratual e requerer em ação apropriada a rescisão contratual28.

Por fi m, observa-se que há certos atos praticados pelo locatário que caracterizariam uma responsabilidade objetiva. Entre esses, destaca-se a denúncia do contrato pelo locatário sem a concessão de aviso prévio não inferior a trinta dias. Complementa-se que a própria Lei do inquilinato, artigo 6º, determina a reparação, fi xada no pagamento de um mês de aluguel e encargos, vigentes quando da resilição. Outro exemplo desse tipo ocorrerá quando o locatário devolver o imóvel antes do término do prazo contratual, artigo 4º da Lei 8.245/91, modifi cado pela Lei 12.112/2009, sujeitando-se ao pagamento da multa pactuada proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou na sua falta, que for judicialmente estipulada.

Questão interessante é analisar se o fi ador, caso exista contrato de fi ança garantindo a relação locacional, responde pelos atos ilícitos do afi ançado. A resposta é positiva, pois a função do fi ador é garantir ao credor a satisfação das obrigações assumidas pelo locatário caso esse não as cumpra. Alia-se a isso o fato de que o fi ador, dependendo das estipulações, pode transformar-se em devedor principal ou solidário.

As modifi cações trazidas pela Lei 12.112 de 09 de dezembro de 2009 trazem importantes tipifi cações no tocante a responsabilidade do fi ador no contrato de locação. Em primeiro lugar, pacifi ca o entendimento de que a responsabilidade do locador, salvo disposição contratual em contrário, se estende até a devolução do imóvel, mesmo que a locação esteja prorrogada por prazo indeterminado. Em segundo lugar, possibilita o fi ador, quando o contrato estiver por prazo indeterminado, solicitar sua exoneração. Nesse caso, o fi ador fi cará responsável pela garantia pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, a contar da notifi cação ao locador, e a locação poderá ser desfeita caso o locatário não apresente outra garantia29.

Ressalta-se que outras prestações podem ser assumidas por locadores e locatários por força de estipulação contratual, sendo seu inadimplemento capaz de gerar as mesmas consequências aqui descritas. Como ilustração cita-se a cláusula que impede o locatário de ceder ou sublocar o imóvel, artigo 13 da Lei 8.245/91.

Faz-se necessário, após tratar-se dos fatos que podem ensejar ato ilícito e consequentemente o dever de reparar, tratar da liquidação do dano.

27 Prestação derivada do domínio sobre a coisa. Exemplo: taxa de condomínio edilício; IPVA, entre outros.28 Ver 2º. TACSP, Ap. c/ Ver. 241.533.29 Vide artigos 39 e 40, inciso X, e seu parágrafo único da Lei 8245/91, modifi cado pela Lei 12.112/2009.

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4.3 LIQUIDAÇÃO DO DANO

O dano, que deve ser provado30, oriundo dos atos tratados nesse artigo será de natureza eminentemente patrimonial, sendo difícil que um dos atos tratados nesse artigo possam caracterizar dano moral. Lembra-se que a simples chateação não induz à ocorrência de dano moral31.

O título IX do Livro I, do Código Civil de 2002 trata da Responsabilidade Civil, e, segundo a sistemática do Código, se aplica a responsabilidade aquiliana. Entende-se, no entanto, que algumas regras do referido livro se aplicam também à responsabilidade contratual, servindo de subsídio para a liquidação das perdas e danos, como por exemplo a questão da gradação da culpa estabelecida no artigo 945 do referido diploma civil.

Caso as partes não promovam entendimento acerca do quantum a reparar, não resta outra alternativa que seja levar o caso ao judiciário para que esse fi xe o valor da reparação. No caso em tela, sempre serão observados os itens do artigo 389 do Código Civil, combinados com as regras dos artigos 944 e seguintes.

CONCLUSÃO

A análise das conclusões obtidas com a pesquisa, que trata do questionamento acerca dos tipos que induzem o dever de reparar derivado da relação locacional urbana e exposta neste artigo ao longo dos itens dissertados, pode ser apresentada nos seguintes pontos:

1) O direito de locação, que tem por base uma relação obrigacional, pode ser classifi cado como um direito pessoal de gozo e não um direito real de gozo, cujo exemplo seria o usufruto;

2) A relação locacional nem sempre pode ser caracterizada como uma relação de consumo. Logo, nesses casos não há que se falar em aplicação do Código de Defesa do Consumidor;

3) O artigo 389 do Código Civil traz o que será reparado quando se tratar de responsabilidade contratual;

4) A responsabilidade advinda de infração cometida na relação locacional urbana, tratada pela Lei 8245/91, não é apenas de natureza civil, podendo ser também de natureza penal;

30 Sobre a questão da necessidade de se provar o dano ver: REsp 617989 / PB.31 Em relação ao assunto dano moral e aborrecimento, ver Carlos Alberto Gonçalves (2003, p. 548).

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5) Os artigos 22 e 23 da Lei 8245/91 trazem os deveres dos locadores e dos locatários, sem prejuízo da estipulação de outras prestações pelo contrato. O não cumprimento desses implica no dever de reparar e na possibilidade de se requerer a rescisão contratual.

REFERÊNCIAS

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil reais. 5. ed. Coimbra: Coimbra, 2000.

CANARIS, Claus - Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Lisboa: Almedina, 2006.

DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis urbanos comentada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

FERGUSON, C.E. Microeconomia. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

MESQUITA, Manoel Henrique. Obrigações reais e ônus reais. Coimbra: Almedina, 2000.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense,1996.

TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. 4. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

___ . A lei do inquilinato. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

RENTAL CONTRACTS AND CIVIL LIABILITY

Abstract: The article deals with civil liability arising from the tenant s failure to comply with his/her obligations before the landlord in a urban property rental relationship. This article intends to classify the kind of liability that must be considered and to analyse theprimary and accessory obligations that must be observed by the tenant, whose default generates a right to compensation.

Keywords: Contract. Civil liability. Real estate. Rental of urban property.

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A Teoria Econômica da Propriedade no Neoliberalismo

Nathalie de Paula CarvalhoMestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Professora da Unifor. Espe-cialista em Direito e Processo Constitucional pela Unifor. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Vale do Acaraú (UVA). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa [email protected]

Sumário: Introdução. 1. O neoliberalismo e a globa-lização. 2. Breve histórico do direito de propriedade. 3. A Teoria Econômica da propriedade: o Teorema de Coase. Conclusão. Referências.

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma visão do direito de propriedade à luz das orientações do neoliberalismo e da globalização, dominantes do mundo e das economias de mercado. Buscar-se-á ir além dos tradicionais conceitos de propriedade funcionalizada, muitas vezes sem o adequado aparato teórico e prático para se sustentar. Apresentar-se-á, primeiramente, algumas considerações sobre o neoliberalismo e a globalização, um escorço histórico sobre o instituto para, em seguida, ser iniciado um processo de reconstrução do direito de propriedade baseado no Teorema de Coase, a ser encarado sob o ponto de vista econômico e, partindo-se destas premissas, localizá-lo no direito contemporâneo.

Palavras-chave: Propriedade. Neoliberalismo. Globalização. Teorema de Coase.

INTRODUÇÃO

O sistema de livre mercado, base principiológica do Neoliberalismo, mostra-se como domador das relações sociais, políticas e principalmente econômicas. O capitalismo se tornou mais sensível aos desejos possessórios dos indivíduos e os refl exos na normatização

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do direito de propriedade são imediatos1. Atualmente prevalece a orientação do “ter” e não mais do “ser”, na medida em que a sociedade de castas é assim escalonada de acordo com as rendas, quantidade de bens próprios, dominação de mercado consumidor, enfi m, a lógica econômica é uma realidade que permeia o cotidiano mundial.

O mercado, nesta oportunidade, deve ser entendido como uma instituição que facilita as trocas entre os agentes econômicos, reduzindo os custos de busca, informação, negociação, garantia do cumprimento dos contratos. As relações entre o Direito e a Economia são cada vez mais estreitas, de modo que a infl uência é dinâmica e recíproca. As forças mercadológicas são constantemente balizadoras das normas jurídicas buscando uma atuação mais funcional e orientada.

Este artigo tem por objetivo investigar o tratamento do direito de propriedade na Teoria Econômica, utilizando como método a Análise Econômica do Direito (AED). Far-se-á, de início, um breve apanhado sobre o neoliberalismo, suas relações com a globalização, em seguida um escorço histórico sobre a normatização do direito de propriedade e ao fi m uma abordagem da propriedade, pelos olhos das ligações entre a Economia e o Direito.

1 O NEOLIBERALISMO E A GLOBALIZAÇÃO

O neoliberalismo consiste em um conjunto de ideias políticas e econômicas capitalistas que defende a mínima participação estatal nos rumos da economia de um país: “para manter os lucros, o capital precisa estar constantemente explorando novos mercados”. (HELD, McGREW, 2001, p.16). Prega-se a minimização do Estado, tornando-o mais efi ciente pela abertura da economia para o capital internacional e a sua desburocratização. Contraria-se a tributação excessiva, a favor do aumento da produção, como objetivo básico de atingir o desenvolvimento econômico.

Os críticos mais atentos ao sistema afi rmam que a economia neoliberal só benefi cia as grandes potências econômicas e as empresas multinacionais. Os países pobres ou em processo de desenvolvimento sofrem com os resultados de uma política neoliberal, marcados por consequências devastadoras dessa ideologia: desemprego, baixos salários, aumento das diferenças sociais, monopólios, dependência do capital

1 Recomenda-se a leitura da obra de Robert Reich (2008), em que se encontra uma explanação sobre o Supercapitalismo. Embora seu contexto seja os Estados Unidos, interessante se faz a abordagem porque o berço das políticas neoliberais é no terreno americano. Trata-se, em breves palavras, de um modelo que apartou o denominado capitalismo democrático que triunfou nas décadas de 1950 e 1960, dando lugar a uma nova postura dos indivíduos, agora consumidores e investidores, na ação das empresas no jogo imposto pela economia de mercado e principalmente, na mudança para um sistema que convivia com a Democracia para a economia capitalista que comanda a Democracia, ou qualquer outro regime de governo.

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internacional, afastando-se de possíveis soluções para esses problemas, v.g. uma melhor distribuição de renda para diminuir a pobreza, melhorias na educação, a responsabilidade do capital e do trabalho, diretrizes para o bem-estar social etc.

Ao seguir a orientação neoliberal, a globalização pode ser concebida como um fenômeno que possui tanto um lado positivo (desenvolvimento geral das populações) como negativo (males sociais, políticos, econômicos, exclusão social). Enquanto as distâncias físicas e virtuais encolhem, aumenta-se a velocidade da interação social, de modo que os acontecimentos mundiais possuem uma reverberação quase imediata a nível global. (SILVA JÚNIOR, 2004, p. 25). Fabio Wanderley Reis destaca os malefícios, ao apontar que:

Essa estrutura [globalizada] revela mesmo traços que podem ser descritos como próprios de uma sociedade de castas, em que se superpõem mundos sociais radicalmente distintos, separados por profundo fosso quanto a condições de vida e unidos somente por formas de intercâmbio antes precárias e restritas a determinadas esferas de atividade. A dinâmica tecnológica e econômica que se afi rma como parte das tendências novas da globalização não autorizam qualquer otimismo no que se refere à sua eventual contribuição para melhorar esse quadro de desigualdade. Ao contrário, o que temos com ela, mesmo nos países economicamente mais avançados, são o aumento da desigualdade social, níveis inéditos de desemprego, a ‘nova pobreza’, o aumento da violência urbana. (REIS, 1997, p.49).

Roberto Campos (2000, on-line) ressalta que “a globalização é um processo que está acontecendo sem pedir licença a nenhum de nós” e, por conta disso, será mais dispendioso para alguns, mas, com o tempo, as vantagens surgirão para a maioria. Lembra também que se trata de um dado da realidade, de modo a exigir uma visão estratégica que preveja os custos e benefícios dos seus resultados.

Ultrapassadas as ideias iniciais, segue-se pela apresentação de variadas defi nições sobre a globalização, fenômeno que pode ser entendido, em primeiras linhas, como um processo de aprofundamento da integração econômica, social, cultural, política entre as nações, com a diminuição de custos relacionadas aos meios de transporte e comunicação. Para complementar essa concepção preliminar, David Held e Anthony McGrew asseveram que:

o conceito de globalização denota muito mais do que a ampliação de relações e atividades sociais atravessando regiões e fronteiras. É que ele sugere uma magnitude ou intensidade crescente de fl uidos globais, de tal monta que Estados e sociedades fi cam cada vez mais enredados em sistemas mundiais e redes de interação. Em conseqüência disso, ocorrências e fenômenos distantes podem passar a ter sérios impactos internos, enquanto acontecimentos locais podem gerar repercussões globais de peso. Em outras palavras, a globalização representa uma mudança signifi cativa no alcance espacial da ação e das organizações sociais, que passa para uma escala inter-regional ou intercontinental. (HELD, McGREW, 2001. p. 12).

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Temas de Direito Privado206

A necessidade da dinâmica do capitalismo de formar uma “aldeia global” (IANNI, 1996, p.50) que permita maiores mercados para os países centrais impulsiona a globalização, no que diz respeito à forma como ocorre uma maior interação e aproximação entre as nações, interligando o mundo e, para isso, levam-se em consideração os aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos. (HÖFFE, 2002, p.555). Trata-se de uma realidade em que é possível a realização de transações fi nanceiras, a expansão de negócios até então restritos a pequenos mercados de atuação para outros mais distantes e emergentes, sem necessariamente um investimento alto de capital fi nanceiro, proporcionado pela efi ciente comunicação do mundo globalizado.

George Ritzer (2007, p. 01-33) defi ne a globalização como a difusão das práticas capitalistas, expansão de relações através de continentes, organização da vida social em uma escala global e crescimento de uma consciência mundial compartilhada, a que chama “sociedade civil global”.

Em outras palavras, a globalização é um fenômeno que se apresenta como um processo de internacionalização das práticas capitalistas, uma interligação de mercados nacionais e internacionais com a diminuição das barreiras alfandegárias e liberdade expressiva para o fl uxo de capital no mundo. Para Augusto de Franco:

Globalização, por sua vez, seria uma denominação genérica para os processos pelos quais os Estados nacionais sofrem a interferência cruzada de atores transnacionais em todos os campos (soberania, identidade, redes de comunicação, chances de poder e orientações políticas). A globalização seria, assim, uma ‘sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial’, uma nova forma global de capitalismo, desorganizado, na qual ‘não há poder hegemônico ou regime internacional econômico ou político’. Por isso, a globalização desencadeia um movimento contrário de defesa do Estado (social ou nacional) contra a invasão do mercado mundial. (FRANCO, 2008, on--line).

Augusto de Franco (2003) prossegue em uma interessante relação entre o local e o global não sua obra “A Revolução do Local: Globalização, Glocalização, Localização”, oportunidade em que o autor afi rma que não se pode captar plenamente o sentido do processo globalizante se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local.

Ou seja, não há uma dissociação radical entre o “global” – representado pelas multinacionais, pelo terrorismo internacional, pela indústria do entretenimento, pela rede mundial de computadores – e o “local” – marcado pela noção de cidade, de etnicidade, de fontes tradicionais de identidade. Para corroborar seu raciocínio, enfatiza que a globalização pode ser apontada como uma das razões do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo. Ao relacionar a globalização com a democracia, afi rma que:

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para o processo de democratização, o problema não é o excesso e sim a falta de globalização. [...] A interdependência global veio para fi car e é mais benéfi ca para o mundo do que uma retomada da polarização dependência x independência que pretenda atrasar o relógio em várias décadas. (FRANCO, 2009, on-line).

A ideia de globalização que orienta esta pesquisa é aquela identifi cada com um processo de interdependência das economias nacionais, principalmente a partir da década de 1970 (HOBSBAWM, 1995, p.393-420), quando a desregularização generalizada acelerou as condições de concorrência mundial e o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, causando um deslocamento dos centros de produção. O motor desse fenômeno é a competição irrestrita e universal, envolvendo as nações de todo o planeta e devorando as questões sociais.

No léxico político e econômico, começou-se a tratar essa integração irrestrita sob o título de globalização. Note-se que não foi preciso qualifi car a economia moderna, globalizada, com o reiterado adjetivo que recebe: neoliberal. O próprio exaurimento do modelo iluminista-cientifi cista de explicação da realidade, denunciado, por exemplo, pela Teoria Crítica Social (Escola de Frankfurt)2, já pressentiu que todos os mecanismos criados para uma nova compreensão da realidade são apenas novos rótulos, ganhando nomes adequados.

Dessa forma, o liberalismo econômico, que dominou os séculos XVIII e XIX, com ideias de prosperidade econômica e acumulação de riquezas sem regulação estatal, fora substituído, gradualmente, nos séculos XX e XXI, por um neoliberalismo3. Desta vez, um movimento que tem como ideário não ter ideário defi nido e, assim, adaptar-se a todos os sistemas internos de cada região do planeta4.

O desafi o que se lançou, neste caso, foi às novas formas de organização econômica (e social), para encontrar falhas num capitalismo que se fl uidifi ca de acordo com as necessidades de cada momento e utiliza todos os instrumentos possíveis para continuar prevalecendo. O contexto da crise que assolou primeiro o setor imobiliário e creditício dos Estados Unidos, e continua, até então, implicando todos os setores da economia mundial, demonstra, a despeito de ser um momento complicado para o capitalismo, a difi culdade em se derrubar as práticas neoliberais.

2 Theodor Wiesengrund-Adorno, Herbert Marcuse, Jüngen Habermas, Karl-Otto Apel, Walter Benjamin, Axel Honneth, Max Horkheimer, dentre outros autores, são representantes da Escola de Frankfurt.

3 Leituras voltadas à compreensão do neoliberalismo apontam para Friedrich Hayek, Milton Friedman, Alan Greenspan e Joseph Schumpeter, como autores essenciais.

4 Com a adoção espontânea das práticas neoliberais ou com a imposição delas, por intermédio das econo-mias centrais do capitalismo, todas as estruturas econômicas do mundo se imbricaram de tal forma a não existir mais empresas de um país apenas, a não existir mais bolsas de valores de uma comunidade econômica apenas e, enfi m, a não existir mais cidadãos que não sofram o infl uxo da macroeconomia mundial em seu cotidiano.

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Quando os autores começam a teorizar sobre um suposto declínio do modelo, surge repentina recuperação, solidariedade entre as economias, ações coordenadas, táticas inovadoras, disposição e colaboração barganhada politicamente e, em poucos anos, começa-se a assistir ao novo recrudescimento econômico. Por conta dessas características, doutrinadores como o estadunidense Robert Reich delinearam os contornos do que se pode apelidar, agora, de Supercapitalismo, Neocapitalismo ou Capitalismo 3.0 (BARNES, 2006), isto é, um sistema que, em essência, continua capitalista, mas, em suas margens, conta com poderes ampliados, parecendo mesmo invencível.

2 BREVE HISTÓRICO SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE

Um dos principais pilares do neoliberalismo, modelo que não possui fronteiras nem bandeiras, sem um ideário defi nido, sendo, portanto, ultra-adaptável, é o direito de propriedade, que ganha novos contornos quando inserido na economia de mercado, constituindo-se em um dos seus requisitos fundamentais. Fala-se em uma propriedade funcionalizada na Constituição Federal, no Código Civil, no Estatuto da Terra, mas resta duvidoso qual seria este conteúdo.

As próximas linhas serão dedicadas a um breve, mas que se acredita produtivo, resgate histórico dos institutos relacionados ao direito de propriedade. Para um melhor entendimento, apontar-se-ão primeiramente as duas orientações que norteiam sua origem e seu fundamento, segundo a lição de Fernanda Salles Cavedon (2003, p. 07): seria o direito de propriedade um direito natural, independente do Estado ou uma consequência do Estado constitucionalmente construído? A História é cíclica e as ideias predominantes em cada período também possuem suas biografi as. Para Paolo Grossi:

A propriedade não consistirá jamais em uma regrinha técnica, mas em uma resposta ao eterno problema da relação entre homens e coisas, da fricção entre mundo dos sujeitos e mundo dos fenômenos, e aquele que se propõe a reconstruir sua história, longe de ceder a tentações isolacionistas, deverá, ao contrário, tentar colocá-la sempre no interior de uma mentalidade e de um sistema fundiário com função eminentemente interpretativa. Mentalidade de como interagem o sujeito e os fenômenos, mentalidade da força e do papel atribuídos a um e aos outros na visão do todo (GROSSI, 2006, p.16).

A vida social na Grécia Antiga e os demais institutos a ela inerentes giravam em torno de três conceitos: a religião, a família e o direito de propriedade. Em uma clara relação desses elementos, para os gregos, tudo o que se possuía pertencia à família, acompanhada da adoração do “deus-lar”, segundo aduz Lílian Regina Gabriel Moreira Pires (2007, p. 20).

Na era romana, a propriedade era considerada um direito absoluto, embora sofresse as limitações consistentes nos interesses público e dos vizinhos, era oponível de

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forma erga omnes, perpétuo, exclusivo e carregava um forte cunho religioso, na medida em que as sepulturas estabeleciam o vínculo das famílias com suas terras. São exemplos de espécies de propriedades que existiam àquela época: quiritária, pretoriana, “jus gentium”, peregrina, provincial. A transição da concepção nitidamente individualista para uma de caráter mais social foi marcante no período romano, devido às ingerências diretas dos novos contornos que o império ganhava, calcando-se no altruísmo.

Com o declínio do Império Romano e as invasões bárbaras, profundas modi-fi cações ensejaram o surgimento de governos locais, característicos do Feudalismo, e, nessa ótica, o direito de propriedade não era mais o mesmo. O cenário impôs uma valoração política, a sobreposição de direitos e a forma não exclusiva de propriedade: de um lado o senhor feudal, de outro o vassalo. Existiam várias formas de propriedade: a comunal, a alodial, a benefi ciária, a censual e servil.

Desse modo, o que se quer demonstrar é um retorno à orientação de propriedade mais voltada para o indivíduo titular, para usar, gozar e dispor da coisa que possui. Com a Revolução Francesa, os primeiros contornos liberais surgiram, nesta época, angariados pela ideologia burguesa, com supedâneo nos ideais que inspiraram o movimento: liberdade, igualdade e fraternidade.

A Revolução Industrial deu um cunho econômico ao conceito de propriedade, devido à urbanização das cidades, concentração de riquezas, relações de trabalho e patronato, enfi m, profundas alterações nos contextos sociais, políticos e econômicos que refl etiram no direito de propriedade.

O Direito brasileiro sofreu grandes infl uências do sistema das sesmarias, herança da colonização portuguesa, conforme relembra Laura Beck Varela (p.121-129). A propriedade privada no Brasil nasceu do direito público, pois todas as terras, no início, pertenciam a Portugal. Com as mudanças no contexto histórico, surgiram os direitos reguladores da transferência da propriedade do poder público para os particulares, que se deu por doação, compra e venda, permuta. Por meio das concessões de sesmarias, teria surgido a propriedade privada e, dentre as condições da sua ocupação, estavam o cultivo da terra e seu povoamento com a consequente perda do direito sobre a área concedida. Eram os deveres do proprietário um germe da função social da propriedade preconizada no Direito Francês por Leon Duguit.

A Constituição Imperial de 1824 – art. 179, XXII – tratou o direito de propriedade de modo absoluto, como um direito sagrado e inviolável, tomando por base as Constituições francesa e portuguesa. Não se vislumbrava nenhum interesse social no domínio. Em 1891, no art. 72, § 17 do texto constitucional, repetiu-se a orientação constitucional já mencionada, com alguns toques liberais oriundos da sistemática americana, valendo mencionar ainda a previsão da desapropriação por necessidade ou utilidade pública.

Em 1934, o Brasil sofreu infl uências decisivas das Constituições de Weimar (1919) e da Espanha (1931). No art. 113, 17, da Carta de 1934, via-se nitidamente o interesse

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social como condicionante do direito de propriedade. Já em 1937, o ordenamento constitucional mostrou-se tímido ao tratar dos conceitos de propriedade com um cunho social, tendo em vista que se vivenciava um período ditatorial. Em 1946, o caminho da democracia foi retomado e no art. 141, § 16, a função social era demonstrada de forma mais clara. A Constituição de 1967 albergou os interesses individual e social e ainda elevou o conceito de “função social” à categoria de princípio, sem olvidar a ordem econômica. Em pleno regime militar (1969), o direito de propriedade continuou comprometido com a justiça social e com o desenvolvimento nacional, com uma pequena mitigação do seu caráter individual.

A feição jurídica brasileira contemporânea, encampada pela CF/88 nos seus arts. 5º, XXIII e 170, III, encara o direito de propriedade como algo a ser limitado pelo que denomina de “função social da propriedade”, conceito que, para a Teoria Econômica, resta em grande vazio ou, no mínimo, em uma deturpação, uma intenção social abstrata e aberta que serve como uma norma programática de condutas. (SADDI, PINHEIRO, 2005, 98). Tomando-se emprestado um termo da Hermenêutica Jurídica, trata-se de um conceito jurídico indeterminado. Os conceitos de propriedade funcionalizada são os mais diversos. A título de exemplo, apresentam-se as palavras de Carlos Alberto Dabus Maluf:

Ligado essencialmente a um dever de boa administração, de boa gestão, em vista do bem pessoal e do bem comum, a propriedade apresenta-se, nos dias atuais, impregnada de um acentuado caráter social, afastando-se cada vez mais da concepção individualista do Código Civil, para assumir um a forma de verdadeiro encargo social, aplicada ao bem-estar da coletividade (MALUF, 1997, p. 04).

Esta orientação, no entanto, é alvo de muitas críticas e a grande maioria da doutrina não a adota. O Código Civil, em seu art. 1228, aliou os elementos econômico e social. Ao comentar o assunto, Marcos Alcino de Azevedo Torres (2008, p.115) afi rma que “o direito de propriedade mudou de roupa, incrustado que está o germe da transformação, em que pese muitos não perceberem ou agirem com indisfarçável indiferença”. Ressalta que o elemento econômico, de regra, é o que leva o indivíduo a acumular propriedade, mas o conteúdo social deste direito, respaldado por garantias constitucionais, também foi referenciado pela legislação em vigor.

3 A TEORIA ECONÔMICA DA PROPRIEDADE: O TEOREMA DE COASE

O enfoque desta pesquisa será orientado pela Teoria Econômica da Propriedade, onde reina o imperativo de que “a formalização da propriedade privada e a sua defesa pelo Estado permitem que, em vez de gastar parte do seu tempo defendendo o que possuem, as pessoas podem se concentrar inteiramente em produzir e gerar renda”

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(SADDI, PINHEIRO, 2005, p.95). Desta feita, o direito de propriedade representa os privilégios que determinado indivíduo detém sobre um ativo. Nesse contexto, inegável se apresenta o papel do Estado em intervir na ordem econômica, seja por absorção ou por participação, nos dizeres de Eros Roberto Grau (1997).

Pelos ares da Análise Econômica do Direito, questiona-se: para que serve a função social da propriedade? E a resposta é quase imediata, sendo sua missão dar sentido mais amplo ao conceito econômico de propriedade, encarando-a como uma riqueza que se destina à produção de bens que satisfaçam às necessidades sociais. Como base para esta premissa, apresenta-se o Teorema de Coase, na medida em que Ronald Coase (1961) considera que é errado assumir que se deve sempre refrear a ação de algum agente econômico que cause prejuízos a outro, porque se está lidando com o denominado “problema de natureza recíproca.”

A ideia principal é entender quais medidas devem ser adotadas para evitar que a existência de custos de transação prejudique a efi ciência econômica. Devem-se alocar os direitos de propriedade de uma forma que minimize os efeitos destes custos sobre as atividades e as decisões dos agentes econômicos. Segundo a ótica da Escola do Direito e Economia, a função social da propriedade se relaciona diretamente com a habilidade de um determinado ativo em gerar renda ou fl uxo de renda. Assim é conceituado o direito de propriedade por Rachel Sztajn e Decio Zilbersztajn:

A defi nição dominante de direitos de propriedade, tanto em Economia como em Direito, é de propriedade como sendo um conjunto de direitos sobre um recurso, em que o dono está livre para exercer e cujo exercício é protegido contra interferência por outros agentes. Nessa defi nição, a propriedade consiste em uma série de relações entre pessoas e só incidentalmente envolve uma ‘coisa’ ou um bem. Assim, o dono de um pedaço de terra não tem necessariamente o direito absoluto sobre todos os aspectos daquele lote, mas sim um conjunto ou uma lista de direitos. Esse conjunto pode, por exemplo, incluir o direito de vender a terra, deixá-la de herança, subdividi-la, cercá-la, impedir que outros a atravessem e o direito de construir uma casa. Ao mesmo tempo, o conjunto de direitos pode não incluir o direito de impedir que outros atirem por cima da terra, de se apropriar de minerais sobre a terra, de plantar maconha, de deixar a terra improdutiva e de construir edifi cações acima de três andares. Note que os direitos não são absolutos e dependem dos esforços que o proprietário coloca em defender cada direito das tentativas de captura por outros indivíduos e da proteção provida pelo governo (SZTAJN, ZILBERSZTAJN, 2005, p. 92).

No trato do direito de propriedade, a principal preocupação da Análise Econômica do Direito (AED) é com a sua defi nição, para, a partir disso, mensurar o nível de segurança jurídica e prever o comportamento dos agentes econômicos. A AED tem suas forças voltadas para o lado normativo, na medida em que seu objeto de estudo são as leis formais e se utiliza da Teoria Econômica para recomendar como as normas, ao serem criadas e aplicadas, induzem os agentes econômicos a agirem de forma efi ciente. O próprio Coase já alertava para a necessidade de os tribunais se preocuparem com

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a repercussão econômica de suas decisões. Existe, para esta orientação, o pressuposto de que a mens legis é a maximização do bem-estar. O pilar da AED encontra-se no Teorema do Coase, acima defi nido, que não se importa com a distribuição da renda, mas, sim, com a efi ciência econômica.

Para a AED, o Teorema de Coase deve ser interpretado a depender se os custos de transação envolvidos são altos ou baixos. No primeiro caso, a recomendação é de que a lei deve dar incentivos para que os agentes ajam de forma que resulte na mesma alocação de recursos que resultaria se os custos de transação fossem baixos. No segundo caso, a lei deveria ser estruturada de forma a remover os obstáculos impostos à negociação privada. Mas o que são custos de transação? Paulo Sandroni apresenta a seguinte defi nição:

Conceito relacionado com os custos necessários para a realização de contratos de compra e venda de fatores num mercado composto por agentes formalmente independentes. Esses custos são comparados com aqueles necessários à internalização dessas atividades no âmbito da própria empresa e constituem um critério importante na tomada de decisão nas empresas modernas. O conceito tem relevância também nas teorias desenvolvidas por Ronald Coase que, mediante suas formulações, denominadas Teorema de Coase, estabeleceu que as externalidades (economias externas) não determinam uma alocação imperfeita de recursos desde que os custos de transação sejam nulos (SANDRONI, 2008, p. 218).

Embora seja um conceito que comporta as mais variadas visões, pode-se afi rmar que os custos de transação são as atividades e custos necessários para a concretização de uma negociação, a saber: a busca pela informação por parte dos agentes econômicos das circunstâncias em que operam; a atividade de negociação, as quais determinarão as verdadeiras intenções dos compradores e vendedores; a realização e a formalização dos contratos de acordo com o Direito vigente, bem como o monitoramento do cumprimento e, por fi m, a correta aplicação desses contratos, de forma a garantir a cobrança de indenização por prejuízos às partes que não seguirem as obrigações pactuadas (PINHEIRO, SADDI, 2006, p. 62). Sobre o assunto, Rachel Sztajn considera que:

as relações são socioeconômicas, devendo-se reconhecer não só a presença da economia, como também o espaço por ela ocupado no desenvolvimento de novas relações, de estruturas sociais, de negócios predispostos para atender às novas exigências das pessoas (SZTAJN, 2004, p. 11).

A teoria dos custos de transação (TCT) trabalha com o conceito de racionalidade limitada ou imperfeita, segundo a qual as pessoas tentam maximizar as suas utilidades, pontuadas pelos limites impostos e pela capacidade de absorver e processar informações. Sobre essa aplicação, Jairo Saddi e Armando Castelar Pinheiro asseveram que:

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na TCT, o comportamento humano é marcado pelo oportunismo, defi nido como uma maneira mais forte de buscar o interesse próprio, que pode passar por práticas desonestas, incluindo mentir, trapacear e roubar. Em especial, o oportunismo pode levar as pessoas a esconder ou distorcer informações, para enganar os outros em benefi cio próprio. Um agente econômico oportunista só respeita as regras do jogo se isso lhe convier. (PINHEIRO, SADDI, 2006, p. 65).

Com o objetivo de ilustrar o Teorema de Coase, a doutrina elenca três clássicos exemplos. O primeiro se refere a uma fábrica cuja atividade está poluindo um rio onde existem peixes. O que seria mais importante, a manutenção da fábrica em atividade (geração de renda, empregos etc.) ou a questão ambiental? A solução para este problema dependerá do que se considera mais relevante. Pela orientação de Coase, se os direitos de propriedade envolvidos pertencem à mesma pessoa – o dono da fábrica – ou seja, a mesma empresa que poluísse o rio fosse prejudicada em sua atividade de pesca.

Outro exemplo que se aponta é o caso da fábrica que joga fuligem nas roupas lavadas de cinco vizinhos, sendo esta uma externalidade negativa. Os prejuízos experimentados pela vizinhança totalizam um valor de R$ 875,00, R$ 175,00 para cada um. Segundo análise do problema, apontam-se duas soluções possíveis: a instalação de um fi ltro na indústria no valor de R$ 500,00 ou máquinas secadoras, no valor de R$ 130,00 cada, podem ser distribuídas aos vizinhos. Claro está que a solução mais efi ciente do ponto de vista econômico seria a instalação do fi ltro. Os direitos de propriedade, neste caso, se materializam do seguinte modo: os vizinhos têm o direito de não terem suas roupas sujas pela fuligem e a fábrica tem o direito de poluir por conta do exercício regular de suas atividades. Coase conclui que, quando os custos de transação são iguais a zero e os direitos de propriedade estão bem defi nidos, a solução fi nal do processo de negociação é efi ciente, independentemente da parte a que assinalam os direitos de propriedade. É preciso entender quais medidas devem ser adotadas para evitar que a existência desses custos prejudique a efi ciência econômica.

O terceiro e verídico exemplo de aplicação do Teorema de Coase aos direitos de propriedade é o caso dos hotéis americanos Fontainbleau e o Hotel Eden Rock, na Flórida. A questão era a construção do anexo de 14 andares do Hotel Fontainbleau, que causaria uma sombra na piscina do Eden Rock, um estabelecimento de menor porte. Este ingressou em juízo requerendo indenização e o embargo da obra do outro hotel. A Corte americana decidiu, com base nos postulados do Teorema de Coase, que o Fontainbleau não seria obrigado a indenizar o Eden Rock, pois entendeu que o anexo geraria benefício econômico. Neste caso, em que existem custos de transação, o resultado efi ciente pode não ocorrer em algumas das possíveis alocações dos direitos de propriedade, oportunidade em que a regra legal dever ser utilizada para alocá-los de forma que minimize os efeitos dos custos de transação sobre as atividades e as decisões dos agentes econômicos.

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Assim, a principal meta da Teoria dos Custos de Transação é entender como as leis e o Poder Judiciário vão ser balizadores para uma melhor alocação dos recursos, pois a capacidade de economizar nos custos de transação dentro de uma determinada empresa é decisiva para aferir quais operações serão feitas dentro desta ou fora, via mercado.

CONCLUSÃO

A escola da Análise Econômica do Direito, também conhecida como Escola de Chicago, procura implementar os postulados econômicos na aplicação e interpretação de paradigmas jurídicos, em especial no direito de propriedade, com a meta de aumentar o grau de previsibilidade e efi ciência das relações econômicas, sociais e jurídicas. Os principais pontos desta escola são condensados na rejeição da posição que analisa o Direito apartado das realidades sociais e econômicas, estimulando a utilização das ideias e métodos de outras disciplinas no estudo conjunto com a economia e a política, enaltecendo a interdisciplinaridade.

Ocorre hodiernamente uma transferência de poder das pessoas como cidadãs para essas mesmas pessoas, agora consumidoras e investidoras. Na busca pelo mercado, as empresas se lançaram no jogo econômico com todas as suas forças. A economia atual capitaneia um processo que não se sabe como ou quando irá terminar.

Qualquer indivíduo se insere num processo econômico (quando compra, vende, troca, empresta, aluga, doa, recebe, enfi m, quando realiza qualquer negociação sobre algum objeto), além do que, a repercussão de um ato negocial, por mais simples que pareça, não se exaure num encadeamento de eventos simples. Um ator econômico de uma microcomunidade compromete a economia de todo o planeta.

Os direitos de propriedade, sob esta ótica, clamam por uma normatização mais próxima da realidade econômica, haja vista que dela não se pode mais afastar. Nestas laudas foram explanados os principais balizadores desta nova orientação, que nem sempre é bem aceita pelo meio acadêmico, mas as raias da vida real demonstram que este é o caminho a ser seguido. Vive-se em uma economia de mercado em que não existe lugar para perdedores e, sendo assim, aqueles que não conseguiram se adaptar aos novos ventos devem se conformar com o fato de que o Neoliberalismo – ao lado de suas consequências positivas e negativas – vai se infi ltrando em quaisquer espaços que possibilitem investimentos rendosos.

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THE ECONOMIC THEORY OF PROPERTY IN NEOLIBERALISM

Abstract: This article aims to present an overview of property rights under the guidelines of neoliberalism and globalization, the dominant world and market economies. Search will go beyond traditional concepts of property. Firstly, a word about neoliberalism and globalization, a historical sketch on the institution. Then, a process of reconstruction of property rights based on Coase’s Theorem, to be viewed from the economic point and, starting from these premises, to fi nd it in contemporary law.

Keywords: Property. Neoliberalism. Globalization. Coase’s Theorem.

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Estudo Dogmático do Contrato de Comodato no Código Civil Alemão

Otavio Luiz Rodrigues JuniorDoutor em Direito Civil (USP). Pós-doutorando em Direito Constitucional (Universidade de Lisboa). Pro-fessor adjunto da Universidade Federal Fluminense e professor (licenciado) da FA7. Advogado da União. Assessor de ministro do Supremo Tribunal [email protected]

Sumário: I. Colocação do problema. II. Conceito legal de comodato. III. Obrigações e responsabilidades do comodante IV. Origações e responsabilidades do comodatário. V. Dever de restituição e extinção do vínculo. VI. Prazos prescricionais.

Resumo: O objeto do artigo1 é o estudo dogmático do contrato de comodato no Código Civil alemão. A análise compreende o conceito legal de comodato; as obrigações e responsabilidades do comodante e do comodatário; o dever de restituição; a extinção do vínculo e os prazos prescricionais. Limitou-se a investigação ao Direito alemão e fez-se uso do Direito Romano, a fi m de comparar os institutos modernos com seus antecedentes. As conclusões do estudo apontam a existência de um conceito-chave no comodato, que é o uso da coisa em conformidade com o contrato (Vertragsmäßiger Gebrauch), a partir do qual se desenvolvem todas as relações de denúncia, indenização e extinção do vínculo.

Palavras-chave: Comodato. Contrato. Código Civil alemão. Dever de restituição. Uso de conformidade com o contrato.

1 O autor dispôs de tempo excessivamente exíguo para a elaboração desse estudo, o que decorreu de imprevista demora na recepção do convite, por fato alheio ao convidado e não desejado pelo organi-zador. O texto, portanto, refl ete essas circunstâncias e deve ser escusado por seu caráter extremamente sintético. O autor teve a honra de ser aluno do Professor Doutor Agerson Tabosa em uma de suas últi-mas turmas de Direito Romano na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e, como seu admirador, não poderia deixar de se consorciar a essa justa homenagem.

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Temas de Direito Privado218

I

O objeto deste artigo é o estudo dogmático do contrato de comodato no Código Civil alemão. Não se inclui de entre as fi nalidades do texto a comparação do comodato no BGB com o homólogo do Código Civil brasileiro de 2002, embora sejam feitas aproximações com os institutos do Direito Romano, que guardam fortes conexões com o tratamento normativo do comodato no BGB.

O artigo divide-se em quatro seções, que abrangem: a) o conceito legal de comodato; b) as obrigações e as responsabilidades do comodante e do comodatário; c) o dever de restituição; d) a extinção do vínculo e os prazos prescricionais.

II

O contrato de comodato (Leihe) é objeto dos §§598 a 606 do Código Civil alemão. Essas normas, diferentemente de grande parte dos Direito das Obrigações, não foram alteradas pela reforma do BGB ocorrida em novembro de 20022.

O BGB não fornece conceito legal de comodato, porém, em seu §598, afi rma que por esse contrato “o comodante de uma coisa obriga-se a dar ao comodatário o uso gratuito da coisa.”3 Trata-se de um contrato bilateral e imperfeito (ZIMMERMANN, 1996:200), no que guarda fi delidade às origens romanas do commodatum ( JÖRS et alii, 1984:300). Seu objeto prestacional é a cessão do uso, sendo que este último pode-se referir a coisas móveis ou imóveis, corpóreas ou incorpóreas, consumíveis ou não consumíveis, no último caso, desde que o uso não consista propriamente no ato da consumação (APATHY, RIEDLER, 2007:100). É o que já se admitia no Direito Romano sob a fórmula ad pompam vel ostentationem, quando o comodatário recebia a coisa consumível para ostentação perante terceiros (SANTOS JUSTO, 2008:45).

Ainda hoje persiste a polêmica sobre ser o comodato um contrato real ou consensual. Usa-se como argumento em favor da última qualifi cação jurídica a expressão “wird [....] verpfl ichtet” (é obrigado; obriga-se), do §598, que revelaria a precedência do caráter promissório da obrigação sobre o caráter real da entrega.4 Essa é uma perspectiva reducionista, porquanto na compra e venda (§433) também

2 Conhecida como Lei de Modernização do Direito das Obrigações (Gesetz zur Modernisierung des Schul-drechts), de 26.11.2001, ela foi publicada no Diário Ofi cial Federal de 29.11.2001, mas entrou em vigor somente em 1o.1.2002.

3 No original: “Durch den Leihvertrag wird der Verleiher einer Sache verpfl ichtet, dem Entleiher den Gebrauch der Sache unentgeltlich zu gestatten.”

4 Sobre essa polêmica confi ra-se: FIKENTSCHER; HEINEMANN, 2006:540-541. Pela natureza con-sensual do comodato: HAELLMIGK, 2009:65-66.

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se diz que o vendedor obriga-se a entregar a coisa ao comprador (“der Verkäufer einer Sache verpfl ichtet...”), e nem por isso se defende que esse contrato possua natureza consensual (RODRIGUES JUNIOR, 2008:22-23). No Direito Romano, o comodato é considerado espécie de contrato real, sendo essencial o ato de entrega da coisa (TABOSA, 1999:285).

O uso não compreende a fruição. Ressalva-se a existência de convenção em sentido contrário, circunstância na qual o comodato seguirá as regras sobre a posse dos frutos.

A gratuidade é a nota essencial do comodato5. Trata-se de contrato despossuído de interesse das partes em ganhos econômicos em face de suas homólogas e sob essa pauta deve ser interpretado. Suas aproximações com a doação operam-se nessa ordem, por se revelar como um contrato pelo qual o comodante (em tese, dono da coisa) sujeita-se a que seu uso seja gratuitamente experimentado por outrem, sem qualquer vantagem para si. Daí a afi rmação de Reinhard Zimmermann (1996:189) de que esse é um contrato que usualmente se dá entre amigos, parentes e vizinhos, sendo raros os litígios envolvendo disputas entre comodantes e comodatários. Essa complacência, no entanto, não chega aos extremos da perda da titularidade do objeto, como se dá com a doação.

III

As obrigações do comodante limitam-se a permitir o uso da coisa. Tradicionalmente, afi rma-se que suas obrigações não alcançam a garantia do uso; a cooperação para a recuperação da coisa ou para sua conservação (ENNECCERUS, 1966:406).

Sua responsabilidade adstringe-se a atos dolosos ou gravemente culposos (§599). No entanto, se o comodante oculta de forma maliciosa um vício jurídico ou um defeito da coisa, obriga-se ao ressarcimento ao comodatário pelos danos resultantes (§600). Ressalta Ludwig Enneccerus (1966:406), baseado em julgado do antigo Reichsgericht (RG 65, 276), que o comodante pode ser obrigado a cumprir suas obrigações não só por meio de ações judiciais, mas por exercício do direito de retenção pelo comodatário, o que já era admitido no Direito Romano (SANTOS JUSTO, 2008:46).

IV

O comodatário é autorizado a usar da coisa em conformidade ao contrato (Vertragsmäßiger Gebrauch). Esse é conceito-chave na delimitação da autonomia do

5 Essa é uma característica fundada nas origens romanas do contrato, considerado como uma espécie de cessão gratuita do uso de uma coisa (Ulpiano, D. 13, 6, 1, pr.1). cf. KASER, 1971:533. No mesmo sentido: SANTOS JUSTO, 2008:45.

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comodatário no uso da coisa. O BGB dedica especial atenção a esse conceito jurídico aberto quando, no §603, prescreve que “o comodatário não pode fazer nenhum outro uso da coisa dada em comodato que não seja conforme ao contrato6.” Em adição, tem-se que o comodatário, salvo autorização do comodante, não pode ceder o uso da coisa a um terceiro7.

A partir dessa concepção de uso conforme o contrato tem-se como sistematizar os casos de responsabilidade do comodatário por perda ou deterioração da coisa:

a) o comodatário responde pela perda ou deterioração da coisa por uso contrário ao contrato;

b) essa responsabilidade alcança a perda ou deterioração por caso fortuito, ressalvada a prova de que esses eventos ocorreriam, ainda que não se hou-vesse violado o dever de uso em conformidade ao contrato;

c) a cessão do uso da coisa, sem autorização do comodante, também atrai a responsabilidade do comodatário.

O §602 dispõe genericamente que a deterioração ou a mudança no estado da coisa não é imputável ao comodatário, desde que seu uso se tenha dado em conformidade ao contrato (Vertragsmäßiger Gebrauch).

O comodatário deve assumir a carga pelos custos ordinários de manutenção da coisa. A norma alemã faz sutil referência ao comodato de semoventes quando afi rma que, nessa hipótese, ele incorre nos “custos de sua alimentação” (§ 601, 1).

V

O dever de restituição da coisa (Rückgabepfl icht) obedece às seguintes regras (§604): a) se houver termo contratual, deverá o comodatário observá-lo na restituição

da coisa; b) se não há termo no contrato, a coisa deverá ser restituída quando o comodatário

haja concluído o uso da coisa, que resulte da fi nalidade do comodato;c) ainda na hipótese de comodato sem termo, o comodante pode exigir

a restituição antecipada da coisa quando houver transcorrido o tempo sufi ciente para que o comodatário tenha podido usá-la;

6 No original: “Der Entleiher darf von der geliehenen Sache keinen anderen als den vertragsmäßigen Gebrauch machen”.7 No original: “Er ist ohne die Erlaubnis des Verleihers nicht berechtigt, den Gebrauch der Sache einem Dritten

zu überlassen.”

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Estudo Dogmático do Contrato de Comodato no Código Civil Alemão 221

d) não existindo termo e não sendo possível a aplicação das regras “b” e “c”, o comodante pode exigir a restituição da coisa a qualquer tempo;

e) se o uso da coisa tiver sido objeto de cessão a terceiro, poderá o comodante exigir desse último a restituição da coisa ou a extinção do comodato.

O direito de denúncia (Kündigungsrecht) conferido ao comodante pode-se manifestar quando este necessita da coisa, por efeito de uma circunstância imprevista. Além dessa hipótese, tem-se essa prerrogativa quando morre o comodatário ou se este dá à coisa um uso contrário ao convencionado; se cede o uso do objeto a terceiro, sem autorização do comodante; ou se põe a coisa em perigo substancial, por violação dos deveres de diligência que lhe cabem contratualmente (§605).

A morte do comodatário não implica automática extinção do contrato. Os herdeiros obrigam-se, até a restituição da coisa, a honrar os gastos ordinários com a coisa. É-lhes facultado o uso, como natural contrapartida por essas responsabilidades, salvo se o uso fosse de natureza intuitu personae (ENNECCERUS, 1966:408).

VI

A prescrição da pretensão à restituição da coisa tem seu termo inicial com a extinção do comodato (§604, 5), cuja origem histórica é a actio commodati, conferida ao comodante para o caso de não restituição da res após o termo do comodato (KASER, 1971:534). As pretensões de ressarcimento por modifi cação ou deterioração da coisa, a serem exercidas pelo comodante, prescrevem em seis meses.

O comodatário também dispõe de ação para obter a compensação dos gastos com a coisa (v.g., alimentação do animal)8, cuja origem está no iudicum contrarium (KASER, 1971:534). O prazo prescricional da pretensão do comodatário ao ressarcimento de gastos é também de seis meses (§606).

REFERÊNCIAS

APATHY, Peter; RIEDLER, Andreas. Bürgerliches Recht III: Shuldrecht. Besonder Teil. 2. aktualisierte Aufl age. Wien, New York: Springer Verlag, 2007.

ENNECCERUS, Ludwig. Derecho de obligaciones. In. ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martin. Tratado de derecho civil. Traduccion española de Blas Perez Gonzalez y Jose Alguer. 3 ed. Barcelona: Bosch, 1966. t.2, v.1

8 Exemplo extraído de ZIMMERMANN, 1996:201, que também alude à alimentação dos escravos como gasto compensável pelo comodatário no Direito Romano.

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FIKENTSCHER, Wolfgang; HEINEMANN, Andreas. Schuldrecht. 10. Aufl age. Berlin: Gruyter Rechtswissenschatfen Verlasgs-GmnH, 2006.

JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang; WENGER, Leopold. Römisches Recht. 4 Aufl age. Sgringer-Verlag: Berlin, Heidelberg, 1987.

KASER, Max. Das römische Privatrecht. München: C. H. Beck, 1971.

TABOSA, Agerson. Direito romano. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1999.

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Código civil comentado (arts. 481 a 537): Compra e venda, troca, contrato estimatório. Coordenador: Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo : Atlas, 2008. v.6, t.1.

SANTOS JUSTO, António. Direito privado romano (Direito das obrigações). 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Clarendon, 1996.

HAELLMIGK, Philip. Die Leihe in der französischen, englischen und deutschen Rechtsordnung. Göttingen: Universitätsverlag Osnabrück, 2009.

LOAN FOR USE CONTRACT IN THE GERMAN CIVIL CODE

Abstract: This is a dogmatic study of the loan for use contract (commodate), according to the German Civil Code. It encompasses its legal defi nition; obligations and responsibilities of the parties involved; duty to return the thing, contract termination and deadlines. It also compares related current institutes of the German law with the Roman equivalent. The main conclusion of this study is that exists a key concept in the loan for use contract, which is the usage of the thing limited by the contract (Vertragsmäßiger Gebrauch), from which it derives the denunciation, compensation and contract dissolution.

Keywords: Commodate. Loan for use contract. German Civil Code. Usage according to the contract.

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A Cláusula Penal do Contrato de TrabalhoDesportivo no Brasil

Rafael Teixeira RamosMestre em Ciências Jurídico-Laborais e pós-graduado em Direito do Desporto, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor de Direito Desportivo e de Direito do Trabalho Desportivo do Curso Jorge Hélio. Professor convidado da Especialização em Direito do Trabalho e Processo Trabalhista da Faculdade Christus. Advogado Conselheiro da Associação dos Jovens Advogados do Ceará (AJA-CE)[email protected]

Sumário: Introdução. 1. Vínculo trabalhista e vínculo desportivo. 2. Especifi cidades da cláusula penal desportiva. 3. Divergência sobre a aplicação da cláusula penal desportiva. 4. Análise do excerto legal da cláusula penal desportiva. 5. Unilateralidade versus bilateralidade da cláusula penal desportiva. 6. Unilateralidade ou bilateralidade da cláusula penal desportiva? Conclusão. Referências.

Resumo: Este artigo tem o objetivo principal de apresentar as singularidades da cláusula penal desportiva e fi rmar entendimento acerca da sua unilateralidade ou bilateralidade nos contratos de trabalho dos atletas. Aborda-se introdutoriamente o aspecto especial do trabalho desportivo e dos contratos de trabalho desportivo. Explanam-se sumariamente as especifi cidades da cláusula penal desportiva e sua análise legal. Destaca-se a divergência entre a aplicação unilateral e bilateral da cláusula penal, no âmbito legal, jurisprudencial e doutrinário. Ao fi nal, emitem-se alguns posicionamentos na controvérsia instaurada sobre a aplicabilidade unilateral ou bilateral da cláusula penal desportiva.

Palavras-chave: Direito do trabalho desportivo. Cláusula penal desportiva. Unilateralidade ou bilateralidade.

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[....] a cláusula penal surge para proteger os clubes para que os atletas não rompessem o contrato no meio de campeonatos, aliciados por propostas de equipes mais poderosas. Seria, se assim fosse, o fi m dos clubes menores, e, até mesmo, de muitas equipes brasileiras, pois o poderio econômico de clubes europeus é infi nitamente superior ao dos clubes brasileiros.

Zainaghi (2009, p. 210)

INTRODUÇÃO

O trabalho desportivo é uma atividade profi ssional de caráter especial. Conse-quentemente, o direito do trabalho desportivo é uma subespécie do direito provida de uma natureza típica, especialíssima, sui generis, que se diferencia do ramo de direito do trabalho comum em várias substâncias constitutivas. Consoante Albino Mendes Baptista, “A desadequação do Direito do Trabalho (comum) à realidade do Desporto é tão fl agrante que a prática social se encarregou de criar para o trabalho desportivo um regime diferente.” Baptista (2006, p. 16).

Entre as atividades profi ssionais genuinamente desportivas destaca-se o trabalho do atleta profi ssional, exercício que já há algum tempo se profi ssionalizou para uma categoria mais elevada do alto rendimento esportivo1. Vale salientar, entretanto, que o genêro labor desportivo envolve, além do trabalho do jogador, o trabalho do técnico (treinador), da equipe de arbitragem, do agente desportivo (empresário esportivo) do massagista etc. Isso, para exprimir exemplifi cativamente um rol de profi ssões esportivas que não pode ser defi nitivo, haja vista que o agenciamento esportivo adquiriu o status de trabalho recentemente, existindo países, como o Brasil, que ainda não sedimentaram em Lei tal atividade trabalhista.

A relação laboral desportiva, enquanto enlace trabalhista de estirpe singular, até mesmo em relação a outras atividades especiais de trabalho, como a do artista, justifi ca-se através de um regime jurídico próprio que rege uma relação trabalhista própria, um contrato de trabalho específi co, e lapida a fusão entre a atividade laboralista e a prática desportiva do atleta. Sustenta-nos Domingos Sávio Zainaghi: “Tendo em vista a excepcionalidade da relação de emprego entre atleta e clube, é que a lei exige os demais elementos que devem constar do contrato,…” (1998, p. 60), e complementa João Leal Amado, “Trata-se, então, de articular a tradicional protecção do trabalhador/desportista com a adequada tutela do desporto/competição desportiva, visto que para o ordenamento jurídico estadual, estes são dois valores de extrema importância, cuja conciliação se mostra indispensável” (2002, p. 79-80).

1 Cf. Amado (2002, p. 77-78).

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Em decorrência do esposado, o contrato de trabalho do praticante desportivo se constitui de uma naturalidade peculiar e é regulamentado por um regime jurídico específi co. Na autoria de João Leal Amado, “O contrato de trabalho desportivo é um contrato especial de trabalho, ou melhor, é um contrato sujeito a um regime jurídico especial,…” (1995, p. 20). No Brasil o ordenamento jurídico laboral-desportivo se origina no ponto magno constitucional descrito nos arts. 1º, IV, 5º, XIII, 6º e 217, III, todos da Lei Suprema, supedâneos das Leis n.º 6.354/76 e n.º 9.615/98, compondo o labor desportivo em uma real atividade profi ssional diferenciada2. Segundo atesta Domingos Sávio Zainaghi, “O contrato de trabalho desportivo tem algumas particularidades.” (2004, p. 16). Nesta assertiva, se aplica ao contrato laboral do jogador profi ssional a legislação extravagante do trabalho desportivo, lex especialis derogat legi generali, restando que somente serão admissíveis e aplicáveis subsidiariamente as leis trabalhista e de seguridade social em geral naquilo que não forem incompatíveis3-4. Confi rma Alice Monteiro de Barros, “A legislação especial permite ao legislador concretizar o tratamento da relação jurídica derivada de sua particular natureza, como também reportar-se ao ordenamento legal geral (CLT), quando ausente a incompatibilidade.” (2008, p. 101).

Com efeito, uma das especifi cidades mais pujantes, emblemáticas no contrato de trabalho desportivo é a obrigatoriedade de pactuação da cláusula penal, também nominada cláusula penal desportiva pela sua feição única no ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do art. 28, caput da Lei Pelé (Lei n.º 9.615/98).

A cláusula penal desportiva é apenas um dos institutos específi cos do contrato de trabalho dos atletas profi ssionais, porém, nesse artículo, somente reservaremos notas ligadas a algumas propriedades da referida espécie de cláusula penal.

1 VÍNCULO TRABALHISTA E VÍNCULO DESPORTIVO

Primordialmente, é necessário explicar uma das principais propriedades da relação empregatícia desportiva, cujo atleta empregado poderá constituir dois (2) enlaces: o vínculo trabalhista contraído com o clube empregador por via da celebração do contrato de trabalho desportivo e o vínculo desportivo contraído com a mesma entidade empregadora através do registro contratual trabalhista na federação da

2 Comprova doutrinariamente Melo Filho (1995, p. 141). 3 Verifi car o art. 28 da Lei n.º 6.354/76 (conhecida como Lei do Passe) e coincidentemente o art. 28, § 1º da

Lei n.º 9.615/98 (nomeada Lei Pelé).4 Cf. Melo Filho (2000, p. 120).

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respectiva modalidade. Tal procedimento é exigido pelo sistema federativo para que o jogador esteja apto a participar em prol do seu clube nas competições e partidas ofi ciais organizadas. No Brasil, o ordenamento jurídico5 permite a obrigatoriedade de seguir um modelo padrão expedido por normas federativas (regulamentações da CBF) para que se possa pactuar um contrato de trabalho desportivo, resguardando o princípio da autonomia da vontade das partes em acrescentar cláusulas adicionais, além das determinadas nos moldes padronizados do formulário contratual da CBF.

O vínculo contratual trabalhista tem amparo expresso nos arts. 2º e 3º da Lei n.º 6.354/76 c/c art. 28, caput da Lei n.º 9.615/98, enquanto o vínculo desportivo decorre da previsão contida nos arts. 28, § 2 º, 33 e 34, I da Lei Pelé.

Em segundo plano, a cláusula penal desportiva, também com guarida no art. 28, caput da Lei Pelé, funciona como o mais signifi cante instrumento laboral de balanceamento dos contratos de trabalho desportivo, reforçando juridicamente o equilíbrio e a estabilidade das competições, a pureza dos resultados desportivos, bem como o ressarcimento de danos causados a uma das partes contratuais em caso de resilição do pacto laboral desportivo (equilíbrio econômico entre contendores esportivos).

1.1 DIFERENÇA ENTRE VÍNCULO DESPORTIVO, PASSE E A CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA

O vínculo desportivo não foi extinto com a promulgação da Lei Pelé, pois resta esclarecido nos arts. 28, § 2º, 33 e 34, I da referida Lei, que o elo desportivo é acessório da vinculação trabalhista, e, portanto, existente.

Em outro plano, não existe mais o instituto do passe desde 26 de março de 2001 (art. 93, caput da Lei Pelé), que era representado pelo vínculo desportivo. Atualmente o vínculo desportivo permanece, mas não se afi gura como constitutivo do passe e, sim, dependente (acessório) da relação empregatícia, uma vez que se exaure com o fi m do pacto laboral, sendo este o grande determinante da extinção do passe, ou seja, o aspecto acessório do enlace desportivo (art. 28, § 2º da Lei Pelé).

Nesse raciocínio, a cláusula penal desportiva é mecanismo totalmente diferente do esconjurado “passe”, ferramenta evidenciada nos arts. 11 e 13 da Lei n. 6.354/76, abolida pelo art. 28, § 2º c/c art. 93, caput da Lei Pelé, que estipulava um vínculo desportivo independente do pacto trabalhista. O “passe” perdurava mesmo depois de extinta a relação empregatícia desportiva, sucedendo que um clube interessado teria que indenizar o clube de origem, detentor do “passe” do atleta, para somente depois contratar os serviços trabalhistas do jogador6-7. O defunto “passe” reifi cava, coisifi cava o

5 Com o suporte do art. 1º, § 1º da Lei Pelé (9.615/98).6 Tudo sobre o “passe” em Zainaghi (1998, p. 110-127).7 Em outra visão completamente oposta à de Zainaghi, discorreu sobre o passe Martorelli (2009, p. 282-284).

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atleta, transformando-o mais em objeto de direito do que mantendo-o sujeito de direito8, indaga João Leal Amado “como se de uma mera res in patrimonio se tratasse?” Amado (2005, p. 29-39). Por isso, os retromencionados arts. 28 § 2º e 93, caput da Lei n.º 9.615/98 expungiu o “passe”. Já a cláusula penal desportiva é um instituto também acessório do vínculo trabalhista desportivo, reparador de danos do empregador desportivo e ao mesmo tempo atua como uma indenização apenas durante a vigência do contrato de trabalho desportivo para os casos de a relação contratual a prazo certo se rescindir antecipadamente, conforme já explicamos resumidamente anteriormente.

2 ESPECIFICIDADES DA CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA

Prevendo continuar em alguns comentários relacionados à cláusula penal desportiva, é indeclinável clarifi car que o instituto civil insculpido nos artigos 408 a 416 do CC se transfi gura para o art. 28 da Lei n.º 9.615/98 com uma natureza jurídica típica a ser utilizada no contrato trabalhista desportivo, observando-se que nesta modalidade contratual atlética a cláusula exerce uma função de incentivo à estabilidade contratual, ao proporcionar um maior equilíbrio nas relações profi ssionais desportivas entre as partes e em relação a terceiros, solidifi cando a pacta sunt servanda laboratoris sportive.

Na Lei Pelé (art. 28, §§ 3º e 5º) a cláusula penal absorve duas caracterizações distintas, advenientes respectivamente de ferramentas jurídicas diferenciadas. A primeira revela-se essencialmente em uma cláusula penal, em que a sanção pecuniária prevista tem o fi m de compensar o incumprimento ou descumprimento do objeto laboral pactuado, no caso a prática desportiva lato sensu, incluindo preparação, participação competitiva e recuperação; o segundo retrata-se numa cláusula de rescisão, em que as partes avençam antecipadamente uma multa em espécie para garantir reparos danosos ao empregador e proporcionar ao empregado desportivo a licitude de cessar o contrato a medio tempore sem justa causa, mediante a quitação dessa quantia previamente acordada no contrato9.

Tal mescla inserida no extrato legal citado é sustentável, na medida em que o sistema trabalhista brasileiro adota o despedimento livre, sendo o regime da multa rescisória do art. 479 da CLT adicionado ao art. 18, § 1º da Lei n.º 8.036/90 (FGTS) aplicáveis para reparar dispensa arbitrária ou sem justa causa, pelo menos enquanto não se edita a sonhada Lei Complementar predeterminada no art. 7º, I da CF/88.

8 Com uma fundamentação mais suave, cf. Barros (2008, p. 101).9 Para maiores aprofundamentos acerca da cláusula penal e cláusula de rescisão, cf. Amado (2007, p. 195-

233), Amado (2003, p. 83-93), Baptista (2003, p. 25 e ss), Monteiro (2005, p. 5-26), Correia (2007, p. 160-192), Correia (2008, p. 237 e ss).

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Nessa esteira, a cláusula penal desportiva ora é dotada de uma face interna, tendo em análise que para transferências nacionais se comporta como verdadeiro clausulado penal, confi gurando-se sanção pecuniária por violação contratual que não pode ultrapassar o teto da multa edifi cado na Lei, ora é dotada de outra faceta externa para transferências internacionais, a qual não se estabelece limite pecuniário à multa a ser aplicada pela cláusula penal, desde que acordado previamente no contrato, sendo aqui mais uma cláusula de rescisão do que clausulado penal.

Quanto à quantifi cação, há outro caráter que resplandece exclusividade à cláusula penal desportiva, que é a sua formulação valorativa mais elevada do que o valor do objeto da obrigação principal, se afastando da determinação legal do art. 412 do CC e se consumando em cem vezes o quântico da remuneração anual do praticante desportivo em ocasião de transferência nacional (art. 28, § 3º da Lei n. 9.615/98) ou ilimitação valorativa para a situação de transferências internacionais, em consentâneo ao art. 28, § 5º da mesma Lei.

Em outra abordagem, o § 4º do art. 28 da Lei n.º 9.615/98 descreve um redutor automático do valor previsto na cláusula penal em conformidade com o tempo de contrato cumprido, dentro do período contratual padrão de cinco (5) anos (art. 29, caput c/c art. 30, caput da Lei Pelé), na seguinte medida: “I – dez por cento (10%) após o primeiro ano de contrato; II – vinte por cento (20%) após o segundo ano de contrato; III – quarenta por cento (40%) após o terceiro ano de contrato; IV – oitenta por cento (80%) após o quarto ano de contrato.”

Merece frontal crítica desde logo o texto legal retrotranscrito. Em primeira posição a cláusula penal desportiva brasileira acumula a natureza de clausulado penal com reparação rescisória, segundo já manifestamos acima, e, nesse pensamento, impor legalmente amortização automática signifi ca considerar tão somente os efeitos temporais do contrato. Dessa maneira, interrogamos: o que ocorrerá em relação ao verídico (in)cumprimento contratual da prestação laboral desportiva durante o período avençado? Ao mesmo passo, como fi ca a extensão danosa possivelmente provocada por uma ruptura antecipada do contrato? Rejeita-se essas questões com a simples redução automática? É óbvio que jamais poderíamos anuir a tal previsibilidade engessada da Lei Geral Desportiva (art. 28, § 4º), sob pena de se postergar a própria funcionalidade da cláusula penal desportiva brasileira.

Em secundária posição, o referido dispositivo é vazio em relação aos contratos que não possuam o prazo paradigma, deixando a critério do julgador entender pela aplicação subsidiária ou não do art. 413 do CC para promover a proporcional amortização introduzida no § 4º do art. 28 (Lei Pelé) a outros contratos de prazos diversos10-11.

10 Decisão em que o TST admite aplicação do redutor automático em contrato de duração diferente da esta-belecida no art. 28, § 4º da Lei Pelé: vide TST - RR - 1490/2002-022-03-40 – 2ª T – Rel. Juiz Convocado Horácio Senna Pires - DJ - 22/03/2005.

11 Em causa mais recente, a situação era idêntica à do julgado acima referenciado e o TST decidiu completa-mente diferente. Vide TST - RR - 873/2006-009-06-00.0 – 2ª T – Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes - DJ - 04/12/2009.

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A Cláusula Penal do Contrato de Trabalho Desportivo no Brasil 229

Apenas partindo da legenda “desalinhada” em Lei, somos compelidos a concordar com aplicabilidade analógica do § 4º, art. 28 da Lei Pelé, por meio da disponibilidade conferida no art. 8º da CLT c/c art. 413 do CC12 ao julgador para os contratos não padronizados no termo de cinco anos. Porém, observamos que somente admitiríamos tal incidência redutora se fosse em favor do clube, já que defendemos a tese da unilateralidade da cláusula penal desportiva13, consoante verifi caremos mais adiante.

Na hipótese da cláusula penal para as transferências internacionais (§ 5º do art. 28 da Lei Pelé), inexiste um teto valorativo, contanto que as partes estipulem de maneira solene, prévia e transparente o valor da cláusula, não sendo razoável estipulações em branco com o intuito de fazer prevalecer a vontade unilateral de uma das partes, no caso o clube-empregador, atitude que além de afrontar a autonomia privada das partes e a isonomia contratual, poderia se transformar em uma arma aniquiladora da liberdade de trabalho nas mãos do empregador desportivo14. Por isso, entendemos ser inaceitável que não haja descritiva alguma de quantia da cláusula penal ou estipulações nebulosas do similar: “em transferências ao exterior nenhuma limitação sofrerá a cláusula penal”, em tais ocorrências confusas, pugnamos pela aplicação substitutiva dos parâmetros da cláusula penal adstrita às transações internas15-16.

Pelo mesmo motivo, realizada a expressa descrição do valor inerente à cláusula penal acordada entre as partes no contrato, para os casos de transferência internacional, não há de se cogitar amortização automática, tendo em interpretação que o próprio verbete legal exprime: “a cláusula penal não será objeto de qualquer limitação, desde que esteja expresso no respectivo contrato de trabalho desportivo”.

Em suma, as tipicidades relatadas acima demonstram a inclinação do legislador em estabelecer uma cláusula penal desportiva intensamente valorizada e peculiar ao trabalho desportivo, com superfi ciais semelhanças à cláusula penal comum prevista no Código Civil.

12 Utilização subsidiária possível em raríssimas situações, por meio da aplicação inicial do art. 28, § 1º da Lei Pelé.

13 Esse sempre foi o nosso entendimento, revelado primariamente em Ramos (2009, p. 471-479).14 Solidifi ca o nosso entendimento Machado (2000, p. 32).15 Entendimento assemelhado em Zainaghi (2008, p. 20).16 Filiamo-nos a Alice Monteiro de Barros ao também expor: “E mais, se as partes não estipularem a

referida cláusula, compete à Justiça do Trabalho fi xá-la, dado o caráter obrigatório da inserção, como se infere do art. 28 da Lei n. 9.615, de 1998” (2008, p. 112). (grifos da autora).

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Temas de Direito Privado230

3 DIVERGÊNCIA SOBRE A APLICAÇÃO DA CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA

O art. 28, caput da Lei n. 9.615/98 delineia que a cláusula penal é obrigatória nos contratos de trabalho do praticante desportivo e será aplicada nos casos de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.

O art. 31 da Lei Pelé subscreve uma hipótese específi ca de justa causa do empregador desportivo, a conceituada despedida indireta (rescisão indireta) por mora salarial de três (3) meses ou mais na relação de emprego desportivo.

Entre os dois dispositivos escritos acima, exsurge a divergência jurídica relativa à cláusula penal desportiva, quanto a sua incidência unilateral ou bilateral para as questões de ruptura, rompimento antecipado do contrato, em outros termos, quando o jogador rescinde antecipadamente o pacto contratual ou quando o clube dispensa imotivadamente o atleta, exatamente nessas situações de demissão e despedida, mas nunca para os casos de justa causa17 em que a terminação pactual tem outros fundamentos.

Nesse diapasão, a doutrina unilateral defende que para as despedidas desmo-tivadas pelo empregador esportivo aplica-se a multa prevista no art. 479 da CLT, igualitariamente às situações de rescisão indireta clareada no art. 31 da Lei Pelé. Por outra banda, se o atleta rescinde sem justa causa o contrato deverá quitar a multa acordada na cláusula penal.

Em contraposição, a ala bilateral apregoa que, para as despedidas sem justo motivo por parte da entidade empregadora desportiva, esta seria responsável pela multa rescisória prevista na cláusula penal, assim como o empregado desportivo fi caria sujeito à quitação rescisória da cláusula penal se procedesse o rompimento do contrato sem justa causa.

Antes de nos posicionar acerca da controvérsia jurídica, iremos realizar algumas análises que seguem adiante.

4 ANÁLISE DO EXCERTO LEGAL DA CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA

A matéria relativa à unilateralidade ou bilateralidade da cláusula penal desportiva perpassa pela radiografi a obnubilada e concomitantemente incompleta da redação do art. 28, caput da Lei n. 9.615/9818.

17 Para verifi cação sobre justa causa, recomendamos Barros (2007, p. 863-926) e Ramalho (2006, p. 804-861, 905-928).

18 Art. 28, caput, expressis verbis: “A atividade do atleta profi ssional, de todas as modalidades desportivas, é cara-cterizada por remuneração pactuada em contrato formal de trabalho fi rmado com entidade de prática desportiva, pessoa jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.” (grifos nossos).

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A Cláusula Penal do Contrato de Trabalho Desportivo no Brasil 231

Tal disposição legal é obscura ao enxertar mais dúvida do que clareza no atinente à aplicação da normalmente vultosa cláusula penal desportiva. O texto piora a melhor compreensão do intérprete desprovido da cognição trabalhista desportiva ou desportiva trabalhista ao, talvez, faltar-lhe o espírito inovador, o animus novandi legislativo quando simploriamente não minucia a quem seria devida a cláusula penal desportiva, fi nalizando abruptamente a escrita do caput, restando uma longa margem para entendimentos diferidos, tanto a favor da unilateralidade quanto da bilateralidade19.

Certamente, faltou ao nosso legislador a alcunha do trabalho desportivo, pois a realidade evolutiva particular da atividade laboral do atleta, desde a sua origem, se afasta completamente da gênese do trabalho comum. Nesse esboço, discordamos imediatamente de uma passagem do acórdão TST - RR - 400/2005-721-04-00 – 4ª T – Rel. Min. Barros Levenhagen - DJ - 30/04/2009 ao dizer que “mesmo se o legislador tivesse adotado expressamente a unilateralidade da cláusula penal desportiva, possibilitando a inserção de uma cláusula no mesmo sentido, seria considerada leonina, cuja a nulidade estaria contemplada no art. 424 do CC de 2002”. Afora a incompatibilidade subsidiária do art. 424 do CC, motivada na naturalidade especialíssima da cláusula penal desportiva, em que inexiste contrato de adesão, somos adeptos do pensamento de Albino Mendes Baptista em caso assemelhado na legislação lusa, quando verbera: “Em todo o caso, julgamos que o legislador desportivo não mostrou nesta matéria, qualquer sensibilidade para este tipo especial de relações de trabalho.” Baptista (2003, p. 26).

Portanto, vislumbro que o legislador foi lacunoso, impreciso e retraído ao não estabelecer expressiva unilateralidade da cláusula penal desportiva em favor dos clubes, tendo em causa os exorbitantes salários “da minoria dos atletas”, mas que já é plausivelmente um peso orçamentário esportivo, adicionado aos diversos investimentos de formação atlética e custas na promoção do espetáculo desportivo, sempre em companhia de insufi cientes fontes de renda para o empregador desportivo.

5 UNILATERALIDADE VERSUS BILATERALIDADE DA CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA

As Cortes laborais especializadas, em segundo grau e em última instância, estão longe de chegar a um ponto pacífi co em torno da temática unilateral ou bilateral da cláusula penal desportiva, sendo não unânimes os seus correspectivos julgados, na medida em que, em geral, acompanhamos uma jurisprudência turva, destinatária de caminho tortuoso, indefi nido, tanto dos TRTs20 quanto do TST21.

19 Sustentamos a nossa crítica em Melo Filho (2003, p. 93-133).20 Repontamos aos Ementários de jurisprudência dos TRTs e TST colacionados nas Revistas Brasileiras de

Direito Desportivo n.ºs 7 a 13.21 (TST-E-RR-1077/2004-054-02-00.0 – AC. SBDI-1 – Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi - DJ - 14/11/2008). (TST – RR 1112/2006-005-06-00 – 6ª T – Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga – DJ 11/10/2007).

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Temas de Direito Privado232

Os acórdãos que decidem pela aplicação bilateral da cláusula penal desportiva residem em alguns pontos: o sinalagma do contrato de trabalho, função social do contrato, boa-fé e probidade contratual, depois sustentam que o contrato laboral atlético é de adesão e por fi m destacam a questão social da prática profi ssional futebolística22.

Embora o percurso que se vem perfi lando na jurisprudência da Justiça do Trabalho seja em direção ainda bastante sinuosa, variante, a SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho pretendeu uniformizar entendimento rumo à unilateralidade da cláusula penal desportiva em julgado de 24/10/200823, conquanto, assentamos que o mesmo C.TST em escrutínios diferentes, oportunamente, permaneceu decidindo de maneira dissidente, ou seja, ora se pronunciando pela aplicação unilateral, ora pela aplicação bilateral da cláusula penal desportiva, segundo comprova os acórdãos abaixo colacionados24.

Na esfera doutrinária, semelhante ao ocorrido na seara jurisprudencial, não há pensamento unívoco acerca da unilateralidade ou bilateralidade da cláusula penal desportiva. Entretanto, a corrente pregadora da aplicação unilateral, liderada por Álvaro Melo Filho25 e Domingos Sávio Zainaghi26, é predominante e cristaliza melhor o espírito da particularidade do trabalho desportivo, ao sedimentar que a cláusula penal desportiva detém a teleologia e a histórica de compensar as perdas e danos do investimento clubístico no exercício contratual da atividade esportiva profi ssional, quando o contrato é rompido ante tempus, bem como evita que haja uma emigração total de talentosos jogadores brasileiros a troco de quantias irrisórias, a maior fonte de renda das entidades de prática desportiva profi ssional, sem esquecer que quem se transfere é o atleta e não o clube, reforçando a contribuição compulsória prevista no art. 57, II da Lei Pelé, nos casos de transferências nacionais e internacionais dos praticantes desportivos. Numa interpretação sistemática detecta-se no art. 33 da Lei n.º 9.615/98 a condição de jogo que é inerente ao jogador desde que comprove a quitação da cláusula penal devida no ato de sua rescisão unilateral antecipada. Recordam, ainda, que se a ruptura unilateral for por parte da entidade empregadora desportiva será aplicável a multa rescisória do art. 479 da CLT, a mesma esculpida no art. 31 da Lei Pelé para as situações de rescisão indireta (justa causa do empregador desportivo por mora remuneratória).

22 TST - RR - 400/2005-721-04-00 – 4ª T – Rel. Min. Barros Levenhagen - DJ - 30/04/2009.23 TST-E-ED-RR - 552/2002-029-01-00 – AC. SBDI-1 – Rel. Min. Vieira de Mello Filho - DJ - 24/10/2008.24 TST - RR - 1173/2007-013-08-00.2 – 5ª T – Rel. Min. Emmanoel Pereira - DJ - 13/11/2009.25 TST - RR - 1361/2004-022-03-00.6 – 2ª T – Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes - DJ -

30/04/2009.26 Lição em Melo Filho (2001, p. 128). Tese defendida em Zainaghi (2004, p. 55-58) e ratifi cada sucintamente em Zainaghi (2009, p. 207-211).

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São alguns dos seguidores dessa doutrina, argumentando fundamentalmente a mesma motivação jurídica, J. Amado27, Jayme Eduardo Machado28, bem como Ricardo Graiche ao concluir: “Portanto, diante de tudo o que foi aqui exposto, não podemos concordar com a decisão do TST, aceitando bilateralidade da cláusula penal, esta de cunho exclusivamente unilateral.” Graiche (2005, p. 19-28), e Renata Jamús Pinto ao emanar, “comentamos, ainda, sobre a questão da bilateralidade da cláusula penal e defendemos a posição dos mestres Zainaghi e Álvaro Melo Filho, para quem a cláusula é de titularidade dos clubes, e só eles podem recebê-la.” Pinto (2008, p. 76-93).

Por outra face, existe a vertente doutrinária minoritária, representada por Marcílio Krieger29 que contra-argumenta a tese supramencionada ao propalar que a cláusula penal é constituída de uma natureza especialmente indenizatória, e, por consequência, será devida por aquele que ensejou resilição contratual, sendo um pacto adstrito à vontade das partes. Como tal, o contratante que cause prejuízo ao outro deverá também quitar a indenização nos mesmos moldes valorativos. Na mesma direção, Alice Monteiro de Barros30 realiza outra hermenêutica no art. 33 da Lei Pelé ao posicionar que o aspecto teleológico deste expositivo legal é incumbir a qualquer das partes rompedora do contrato o pagamento da penalidade clausulada, além de reafi rmar que admitir a cláusula penal somente em favor do clube traduz tolhimento à igualdade dos contratantes, bem como à liberdade de contratar e distratar. Rinaldo José Martorelli31, numa terceira versão doutrinária, vai mais além ao combater rispidamente a unilateralidade da cláusula penal, protestando ser a aplicação unilateral um desequilíbrio inter partes, pois, se a um é devido um valor indenizatório pela rescisão antecipada, por que não será devida a mesma quantia para a outra parte quando esta proceda da mesma forma. Eis o questionamento do referido autor, que afi rma ainda ser tal aplicabilidade unilateral uma afronta a uma série de princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito32.

Em resumo, constata-se que a oposição de pensamentos supradescritos não são meros posicionamentos teóricos, o ponto é mesmo nevrálgico, a partir da nebulosidade e incompletude litteris do art. 28, caput da Lei n.º 9.615/98.

27 Exposições motivadoras em Amado (2005, p. 25,32).28 No mesmo sentido, Machado (2000, p. 54).29 Verifi ca-se em Krieger (2002, p. 38-44).30 Cf. Barros (2008, p. 112-113).31 Analisar em Martorelli (2007, p. 316-318).32 Pensamento reproduzido em Martorelli (2009, p. 273-293).

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6 UNILATERALIDADE OU BILATERALIDADE DA CLÁUSULA PENAL DESPORTIVA?

Superada a distinção inicial entre “passe” e cláusula penal desportiva em linhas anteriores, o ponto primário de discussão deve repousar sobre a realidade social da atividade desportiva profi ssional. Em nossa modesta opinião, vivemos em uma sociedade de problemas estruturais com um nível de desemprego elevado, intensifi cado massivamente por um mundo em recessão desenfreada. Nesse passo, obter uma estatística na atividade profi ssional esportiva em que uma parcela de atletas recebe até vinte salários mínimos e outra parte, ainda que mínima, perceba mais de vinte salários mínimos, sem contabilizar outros empregados desportivos que ganham até três salários, não é muito distante da realidade geral de outros empregos, tendo em vista que a problemática do desemprego não é originária da prática esportiva profi ssional, mas, sim, oriunda da nossa miserável sociedade. Nada obstante, a relação empregatícia esportiva é muito onerosa, talvez seja uma das únicas profi ssões onde o empregado pode receber um salário tão vertiginoso, repisamos: ainda que seja um número reduzido de praticantes profi ssionais. Vale ressalvar que as competições são sazonais, não são ininterruptas. Então, dependendo da época, os dados de desemprego apontados numa das arestas jurisprudenciais retrodelineadas poderão ser bastante variáveis. Ademais, a atividade trabalhista desportiva é muito específi ca, acontecendo casos em que variados jogadores nunca se tornaram profi ssionais, mas aspiram ser, podendo potencializar os números da estatística coletada na decisória do TST33.

Assegure-se, que a peculiar lógica empresarial do esporte moderno34 demanda a implantação de mecanismos limitadores da concorrência na atividade econômica esportiva, se refl etindo boa parte deles em instrumentais restrições à plena liberdade de trabalho dos atletas profi ssionais, materializados no termo estabilizador (contratação solene e a prazo determinado de jogadores), bem como na inserção de cláusulas indenizatórias, no Brasil cláusula penal desportiva, que, por sua vez, deve-se destinar mais aos “descumpridores” da pactuação laboral esportiva (jogador e clube assediador) do que à “equipe despedidora”, devendo esta quitar a multa transcrita no art. 479 da CLT identifi cada na indenizatória do art. 31 da Lei Pelé. Essa seria a melhor forma de conciliar os verdadeiros valores de uma competição (equilíbrio competitivo e incerteza de resultado) com a liberdade de trabalho dos empregados desportivos.

Em sequencial explanação, o contrato de trabalho desportivo, dentre os vários contratos laborais, é um dos únicos que não pode ser caracterizado como contrato de adesão, pois sabemos que há um estrato relevante de jogadores que são mais hipersufi cientes economicamente do que a grande maioria das equipes empregadoras,

33 TST - RR - 400/2005-721-04-00 – 4ª T – Rel. Min. Barros Levenhagen - DJ - 30/04/2009.34 Pormenores relativos à peculiar lógica empresarial desportiva profi ssional em Amado (2005, p. 155-173).

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revelando-se estas as hipossufi cientes da relação laboral desportiva. E essa hipersufi ciência de alguns atletas é acentuada com a intervenção do “terceiro homem” Amado (2002, p. 487-498), agente desportivo que atua na negociação de melhores remunerações e condições de trabalho em favor do seu cliente (jogador), impondo muitas vezes variantes contratuais que deixam os clubes em um nível de hipossufi ciência. Porquanto o próprio modelo de contrato expedido pela CBF expõe o campo três (3), que libera as partes a acordarem várias cláusulas extras, não se afi gurando o contrato de trabalho do atleta um contrato do tipo “adesão total”, idêntico à relação empregatícia comum, segundo o exposto no Acórdão do TST acima ilustrado quer nos justifi car35-36.

Frise-se, outrossim, que inversamente à luta histórica do trabalhador comum ao reivindicar pela segurança do liame empregatício, traduzida no princípio da continuidade da relação de emprego, na atividade esportiva profi ssional, a “batalha” continua a ser pela derrocada total do player mobility restraints37, em outros termos, pela prevalência da plena liberdade de trabalho, a que o direito anglo-saxão nomeia free agency38, em detrimento da restrição à livre mobilidade atlética. Conquanto para tal tutelação apropriada do emprego esportivo seria necessária a adoção de novos instrumentários que salvaguardassem um ponto de equilíbrio entre o termo estabilizador da vinculação contratual sem, por outra face, cercear por completo a liberdade de trabalho, esta é uma das sugestões de Lúcio Correia39, que questiona até uma alteração no direito da União Europeia com a fi nalidade de se reconhecer as especifi cidades da atividade econômica desportiva.

Em outra planície, jamais poderíamos corroborar a fundamentação da maioria dos pretores da Colenda Corte Laboral em relação à aplicação bilateral da cláusula penal desportiva, sob a interpretação de que uma possível aplicação unilateral dessa cláusula violaria o sinalagma do contrato de trabalho, princípio distribuidor de direitos e obrigações recíprocas, resguardando a igualdade entre os contraentes nas relações laborais desportivas.

35 Sustentáculos em Baptista (2005, p. 35-36).36 Destacamos que a atividade econômica esportiva não é tão rentável para quem a pratica, no caso os investidores

e clubes, uma vez que todos os meios de arrecadação são direcionados a sustentar os poucos, mas exorbitantes salários dos atletas mais famosos, os salários de médio e pequeno porte dos demais jogadores, além de se custear todas as despesas diárias de uma equipe profi ssional, que são dispêndios equivalentes ao de uma grande empresa. Basta verifi car as difi culdades dos clubes brasileiros de série A para saldar as contas, depois passar a observar o “caos econômico” que se espraia pelas séries B, C e D do campeonato brasileiro.

37 Maiores considerações em Amado (2002, p. 361 e ss).38 Para pesquisa mais densa, cf. Amado (2002, p. 469 e ss).39 Visualiza-se em Correia (2009, p. 260-263).

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Sucede que, na relação empregatícia desportiva, o preceito sinalagmático é diferenciado do existente no emprego comum, pois, além da hipersufi ciência do empregado atleta acima mencionada, existe uma acentuada transmutação do sinalagma laboral desportivo, movida pela infl uência da teoria do “terceiro cúmplice” ou “doutrina efetiva das obrigações externas”40. Neste amálgama, essas teorias anglo-saxônicas traduzem que na atividade laboral desportiva, semelhantemente ao ocorrido na atividade artística, as partes contratantes possuem uma obrigação contratual interna e externa para o cumprimento contratual. Em outras palavras, existem obrigações vinculadoras das partes pelo contrato de trabalho, porém, também há obrigações externas ao contrato em face de terceiros (deveres extracontratuais), em que se deve respeitar o regular cumprimento contratual dos terceiros, outras partes contratuais. Desse modo, quando o incumprimento do contrato se consuma, o terceiro indutor juntamente com a parte rompedora do contrato (jogador) devem indenizar a outra parte lesada com o descumprimento do contrato41.

Essa é a singular situação da relação trabalhista-desportiva, transfi guradora do sinalagma trabalhista comum, em que a cumplicidade do terceiro infringente de sua obrigação contratual externa se une com o contratado jogador para movimentar a ruptura contratual, tornando o empregador desportivo atual a parte mais vulnerável42.

No Brasil, como tais doutrinas não podem ser integradas em absoluto ao ordenamento por falta de compatibilidade com o princípio constitucional da liberdade de trabalho, demissão livre, ad nutum ou ad libitum (art. 5º, XIII c/c art. 7º, I da CF/88), é que o espírito legislativo, assim como a melhor ratio legis do art. 28, caput da Lei Pelé, deveria ser diametralmente oposta à empregada pela maioria dos Ministros no acórdão “TST - RR - 400/2005-721-04-00 – 4ª T – Rel. Min. Barros Levenhagen - DJ - 30/04/2009”, sendo a aplicação unilateral a mais condizente com a realidade trabalhista desportiva e não a aplicação bilateral da cláusula penal desportiva, restituindo a entidade de prática desportiva que sofreu danos pelo incumprimento contratual do atleta empregado induzido por terceiro.

Quanto ao princípio da isonomia na relação empregatícia desportiva, a teor do art. 5º, caput e inc. XIII c/c art. 217, III da CF/88, recordamos a sábia lição de Pontes de Miranda parafraseada por Renato Saraiva: “O princípio da igualdade, pois, consiste em tratar de maneira igual os que se encontram em situação equivalente e de

40 Tudo sobre as teorias do “terceiro cúmplice” ou “doutrina efetiva das obrigações externas” em Amado (2002, p. 347-357).

41 Admitindo uma necessária reformulação da legislação laboral lusitana no concernente à cláusula rescisória, porém numa visão diferente da nossa, verifi car Amado (2007, p. 501-517).

42 Reponta-se a Baptista (2003, p. 57).

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maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades.” (2005, p. 49). In casu afi rmamos que isonomia protecionista do trabalho desportivo é bem mais reduzida do que a do trabalho comum.

Adite-se que no emprego atlético-desportivo o princípio da alteridade também é dotado de uma relevante variável, pois nesta relação empregatícia específi ca os riscos da atividade econômica esportiva podem ser partilhados mais ou menos entre empregador e empregado desportivos, desde que nunca seja apenas responsabilidade do jogador-empregado, e, via de regra, continue sendo em grande parte da entidade empregadora desportiva43.

Por conseguinte, urge que a legislação trabalhista desportiva brasileira evolua para uma expressa previsão da aplicabiliadade unilateral de uma cláusula indenizatória desportiva em favor do clube lesado, aspirando restabelecer um equilíbrio econômico entre entidade empregadora desportiva e atleta empregado, assediado e aliciado por outro clube empregador que o pretende contratar, assédio bem mais intenso do que o existente no enlace laboral comum, exceto em casos bem específi cos do trabalho das atividades artísticas, que também se confi guram trabalhos especiais, porém sem a mesma dimensão singularizada do emprego atlético-desportivo44.

Cumpre asseverar que essa medida promove a melhor tutela do trabalho desportivo, ao balancear a proteção do empregado desportivo com o fascínio do espetáculo desportivo, exprimido no equilíbrio competitivo, pois restringir a liberdade de labor, por via de cláusula indenizatória, signifi ca também resguardar o balanceamento das competições esportivas, impedindo as mobilizações constantes dos jogadores e uma nefasta instabilidade competitiva.

Nesse escopo, não é por mero acaso que a PL 5.186/05 introduz em seu art. 28, § 2º, a responsabilidade solidária no pagamento da cláusula indenizatória desportiva ao clube precedente, por parte do atleta e do novo clube que utilizará os seus serviços laborais45.

Em referência à probidade, boa-fé e função social do contrato laboral desportivo, revelamos que no terreno das negociações juslaborais desportivas, em muitos casos o agente desportivo, conhecido no Brasil pelo epíteto de “empresário esportivo”, combina com o seu cliente/jogador em celebrar46 com a entidade empregadora desportiva um contrato de cessão de direito econômico em que parte do valor adstringido à cláusula

43 Fundamentações doutrinárias em Baptista (2005, p. 223). 44 Cf. Melo Filho (2006, p. 100).45 O art. 17/2 do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA prevê responsabilidade

solidária do jogador com o terceiro assediador/aliciante pela ruptura contratual antecipada desde 2001, ao dispor: “o direito a compensação não pode ser cedido a terceiros. Se for exigido o pagamento de com-pensação a um profi ssional, o profi ssional e o novo clube respondem solidariamente por este pagamento. O montante pode ser estipulado no contrato ou acordado entre as partes.”

46 Cf. Melo Filho (2006, p. 129).

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penal é distribuído para o intermediário (empresário) e partilhado com o seu cliente/atleta. Nessa linha de raciocínio, há casos em que apenas uma porcentagem mínima da cláusula penal desportiva é verdadeiramente percebida pelo empregador desportivo (clube). Em contrapartida, os empregados desportivos e os seus empresários recolhem o maior montante do valor clausulado.

Por essas concisas fundamentações, somos completamente ressonantes da doutrina lusitana de Albino Mendes Baptista ao propalar que as diversifi cadas razões, as singularidades do labor desportivo que vulneram as entidades empregadoras desportivas em muitos casos, posicionam os clubes em uma hipossufi ciência, sendo mesmo necessário se materializar o princípio in favor clubis em resistência ao in favor laboratoris (princípio da proteção), contrabalanceando a relação empregatícia desportiva e evitando o esmaecimento total das entidades de prática desportiva47.

Rememoramos um avanço do projeto de Lei que altera a Lei Pelé na anotação oportuna de Luiz Felipe Santoro, ao alinhar: “Com vistas a corrigir equívoco interpretativo, foi apresentado o Projeto de Lei nº 5.186/2005 diferenciando claramente a cláusula penal (a ser paga pelo atleta ao clube) da multa rescisória (a ser paga pelo clube ao atleta).” Santoro (2007, p. 213-221). Entretanto, observamos uma equivocada exposição na referida PL 5.186/05 que não poderá permanecer, a aplicabilidade de uma cláusula compensatória desportiva em possíveis valores muito onerosos para as equipes desportivas, clubes já extremamente endividados.

Assinale-se que visualizamos com muito entusiasmo na PL 5.186/05 as descrições dos termos: cláusula indenizatória desportiva e cláusula compensatória desportiva, como nomenclaturas que materializarão, conceituarão e positivarão institutos purifi cados no direito do trabalho desportivo ou direito desportivo trabalhista, repelindo a terminologia cláusula penal, relacionada ao direito civil (arts. 408 a 416 do CC)48.

Por derradeiro, nos fi liamos à majoritária doutrina laboral desportiva, que considera a cláusula penal desportiva de aplicabilidade unicamente unilateral, consubstanciada nas teses de Álvaro Melo Filho e Domingos Sávio Zainaghi49, e, consectariamente, não podemos comungar das decisórias dimanadas pelo Egrégio Tribunal Superior do Trabalho adotantes da bilateralidade que, em nosso humilde crivo, está eivada de postulados exclusivamente justrabalhistas50.

47 Cf. Baptista (2006, p. 40). 48 Seguimos os ensinamentos de Melo Filho (2006, p. 130).49 Este professor ainda questiona sabiamente em seu magistério: “se a cláusula penal desportiva não for aplicável

exclusivamente de maneira unilateral, a lei pode ensejar uma fraude, é que o art. 31, § 3º permite o jogador a romper o contrato de trabalho por justa causa do empregador desportivo em face da mora salarial de três meses em diante, sendo assim, aquele clube que deseja despedir o jogador sem quitar o valor da cláusula penal poderá forjar uma mora salarial para pagar apenas a multa rescisória prevista no art. 479 da CLT, daí que entendemos ser mais um dos motivos de aplicação apenas unilateral da cláusula penal.”

50 Entendimento defendido em Ramos (2009, p. 99-116).

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A Cláusula Penal do Contrato de Trabalho Desportivo no Brasil 239

CONCLUSÃO

Ante todo o delineado, é necessário que todos os segmentos desportivos impul-sionadores do legislador esportivo, bem como o intérprete/aplicador do direito laboral desportivo, entendam as vigas minudentes da atividade e trabalho desportivos, sob pena de permanecermos distorcendo a realidade do nosso sistema jurídico-desportivo laboral, em que de uma banda temos a legislação trabalhista desportiva precária, e de outra parte um operador desprovido da facit juslaboral desportiva.

No entanto, a crítica maior deve recair sobre o dispositivo 28, caput da Lei n.º 9.615/98, que por ser confuso permite uma gama de interpretações contraditórias e nem sempre contextualizadas a nossa realidade social no trabalho esportivo.

Reconstituímos que a PL 5.186/05, modifi cadora da Lei Pelé, executa algumas reparações essenciais para a lapidação da referida lei geral de desportos, todavia pugnamos pela necessidade de uma lei específi ca para a prática desportiva profi ssional, à semelhança do que existia atinente ao jogador de futebol na Lei n.º 6.354/76 e do que ocorreu de maneira mais geral em outros países51. Todavia, todos os esforços legislativos serão vilipendiados se a maioria dos julgadores continuar desintegrada do espírito laboral desportivo, corroborando as palavras de Albino Mendes Baptista: “Tudo isto implica que o intérprete deva procurar as soluções jurídicas adequadas à realidade laboral desportiva, despindo necessariamente a camisola do direito laboral comum pensado para outro tipo de trabalhadores e de realidade.” Baptista (2006, p. 39).

Em síntese, nas decisórias em favor da aplicação bilateral, a maioria dos julgadores não trajavam o uniforme do direito do trabalho desportivo e, imbuídos da ratio estritamente laboral, aplicaram a bilateralidade da cláusula penal desportiva em desarmonia com a doutrina prevalecente, a qual seguimos e entendemos a mais sintonizada à realidade laboral desportiva.

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51 Lei de 1978 da Bélgica: relativa ao contrato de trabalho do desportista profi ssional. Lei n. 91/81 da Itália: o trabalho desportivo. Real Decreto 1006/85 da Espanha: regulação da relação laboral especial dos desportistas profi ssionais. Lei n. 28/98 de Portugal: Regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva.

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THE PENALTY CLAUSE OF SPORTS LABORCONTRACT IN BRASIL

Abstract: The present paper focuses the penalty clause of sports labor contract in Brazil, outlining the specialities of this institute, describing some disagreements about its application when the labor contract is broken by the clubs or players, expressing our position about the confl ict between unilateral or bilateral penalty clause application.

Keywords: Sports labor law. Sports penalty clause. Unilateral or bilateral application.

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Usufruto: do Direito Romano aos Direitos Português e Brasileiro

Raimundo Chaves NetoEspecialista em Direitos Humanos e em História do Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal). Mestrando em Direito pela Universidade de [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Definição de usufruto. 2. Constituição. 3. Regime Jurídico. 4. Extinção. 5. Tutela Jurídica. 6. Usufruto nos direitos por-tuguês e brasileiro. Conclusões. Referências.

Resumo: O presente artigo, produzido em torno da romanística, apresentará e analisará brevemente os aspectos históricos e jurídicos referentes ao instituto do usufruto. Será realizada sucinta abordagem desde a sua origem e desenvolvimento no direito romano até uma também breve referência aos direitos português e brasileiro.

Palavras-chave: Usufruto. Direito Romano. Direito Português. Direito Brasileiro.

INTRODUÇÃO

O estudo do direito romano representa um admirável instrumento de educação jurídica. Vê-se no Código Civil de 1916 que, dos seus 1.807 artigos, 1.445 originaram-se na cultura romana, conforme analisaremos. No atual código de 2002, a tradição romana também é mantida.

O usufruto tem como característica constituir-se um direito real de gozo, não exclusivo, limitado, temporário, e deve incidir sobre uma res alheia.

A natureza jurídica do direito de usufruto constitui-se em vexata questio para a romanística. O presente artigo será dividido em seis partes. Inicialmente, o texto versará sobre

a identifi cação do usufruto dentre os direitos reais, tornando-se necessário realizar a sua defi nição, dissertar a respeito da origem romana e da natureza jurídica e da sua aplicação durante os diversos períodos de Roma.

A segunda parte será desenvolvida em torno dos modos de constituição do

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usufruto: contrato, testamento, usucapião, além de outros. O regime jurídico será abordado na fase seguinte. Já a quarta parte analisará as diversas formas de extinção do usufruto. A seguir, serão exploradas as formas de tutela jurídica.

Na derradeira parte realizaremos comentários e críticas relativos à aplicação do usufruto nos direitos português e brasileiro.

1 DEFINIÇÃO DE USUFRUTO

1.1 NOÇÃO

A defi nição do jurisconsulto Paulus (CRUZ, 1984, p. 399) nos informa que o usufruto (usus fructus) representa um “direito de usar e desfrutar uma coisa alheia, respeitando a sua substância”. O presente conceito poderá não ter sido construído durante o período clássico, entretanto a opinião dominante é de que esta conceituação realmente date desse período.

O usus fructus está inserido dentre os direitos reais e apresenta-se como inalienável e condicionado ao limite temporal, diferentemente de outros institutos semelhantes, como enfi teuse, condomínio, arrendamento e fi deicomisso.

1.2 ORIGEM HISTÓRICA

O presente instituto surgiu posteriormente às servitutes, embora seja considerado servitutes personarum (SANTOS JUSTO, 1997, p. 175). O surgimento do usus fructus data, provavelmente (IGLESIAS, 1953, p. 250), do século II a.C. e fora criado pela iurisprudentia com o objectivo de proteger a mulher que atingisse a viuvez. Nesta fase da história de Roma, os matrimônios passaram a ser celebrados sob uma nova concepção sine manu em substituição à cum manu (SANTOS JUSTO, 2008, p. 32-33). Ou seja, a mulher não mais ingressava na família do marido, portanto não poderia constituir-se como herdeira deste. Então, o que na prática acontecia era que enquanto o marido estivesse vivo, a uxor gozava dos bens que o marido lhe disponibilizasse. Entretanto, com o falecimento deste, aquela ingressava numa vida de penúria econômica (o que provocava inúmeras vezes o ingresso da viúva a uma vida de prostituição e mendicância). No intuito de evitar tal situação, antes de falecer, o marido nomeava a esposa como usufructuarius dos bens que ele julgasse necessários para a subsistência da viúva. Portanto, a princípio, o usus fructus tinha caráter alimentício (MOREIRA ALVES, 2007, p. 346). Vale ressaltar que a lista dos benefi ciários, com o tempo, passou a contemplar também os familiares do paterfamilias que não pudessem constar no rol dos herdeiros (SANTOS JUSTO, 1997, p. 350).1.3 CARACTERÍSTICAS

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Apresenta o referido instituto algumas características que o distinguem de outros direitos reais (SANTOS JUSTO, 1997, p. 351-353). A primeira delas é representar um direito real de gozo, com o qual o usufrutuário frui das utilidades e frutos de um bem, de propriedade de outrem, no entanto é intransmissível. Em seguida temos o princípio da não exclusividade da propriedade objeto do usufruto, pois a res estará subdividida em usufruto e propriedade. Apresenta-se como um direito limitado, pois o usufrutuário não poderá alterar a substância e a destinação econômica da propriedade. A característica da temporariedade, determina que o titular é, individualmente, considerado intuitu personae, por isso o direito se extingue, no mais tardar, com a morte do usufrutuário (no caso de usufruto vitalício). Poderá também ser constituído por certo prazo (usufruto temporário), mas a morte do titular extingue-o mesmo antes do vencimento do prazo estabelecido. Caso o titular fosse pessoa jurídica, o usufruto extinguia-se depois de decorridos 100 anos, pois este era considerado como o limite máximo de duração da vida humana. O presente direito real deverá recair sobre ius in re aliena.

Os sujeitos de direito do usufruto denominados fructuarius ou usufructuarius poderiam ser pessoas físicas e jurídicas. O proprietário da res tida sob usufruto era denominado senhor da dominus proprietatis ou senhor da propriedade e nudus dominus ou nu-proprietário (MOREIRA ALVES, 2007, p. 346). Conforme as características supracitadas inerentes ao usufruto, temos que o usufruto consiste em usar e desfrutar uma ius in re aliena sem provocar na referida coisa alterações substanciais. Ora, há, pois, nesta característica um pressuposto de restringir o instituto apenas a coisas inconsumíveis, pois estendido a coisas consumíveis, como preservar a sua substância?

1.4 NATUREZA JURÍDICA

Diversos aspectos do direito romano apresentam questões controversas que dividem a romanística, dentre elas também encontra-se determinar a natureza jurídica do usus fructus durante o período arcaico (CRUZ, 1984, p. 43)1 até o clássico (CRUZ, 1984, 46)2. Kaser (IGLESIAS, 1953, p. 265), por exemplo, afi rma que este representava um autêntico direito de propriedade, porém limitado aos frutos. Já Riccobono (IGLESIAS, 1953, p. 266) defende que o usufruto representava “uma parcela do direito de propriedade”, ou seja o fructuarius era o proprietário do direito ao gozo da coisa, porém não era dotado de poderes para dispor dela. Perozzi (IGLESIAS, 1953, p. 266) leciona que o referido direito real seria um direito de propriedade revestido

1 Período do Direito Romano compreendido entre a provável fundação de Roma (753 a. C.) ao ano 130 a. C.2 Período do Direito Romano compreendido entre o ano 130 a. C. e 230 d. C.

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de temporariedade sobre coisa que teria sua propriedade perpétua pertencente a outra pessoa. Entendemos que no período clássico o ususfructus já se distinguia do direito de propriedade e apresentava-se como um direito sobre coisa alheia. Apenas no direito justinianeu, o usufruto e os demais direitos reais semelhantes foram classificados como servidões pessoais.

2 CONSTITUIÇÃO

O usufruto pode ser constituído em favor de uma pessoa ou de várias. Durante o período clássico, assim como as servidões prediais, o supracitado

instituto era constituído iure civile conforme: legado per vindicationem, adiudicatio nas ações divisórias; in iure cessio; e deductio em mancipatio.

Quanto aos fundi (imóveis provinciais), o usufruto era constituído através de pactiones et stipulationes.

Importante mudança ocorreu no direito justinianeu, pois com o fi m da in iure cessio, as pactiones et stipulationes passaram a fazer as vezes daquela na celebração do usufruto. Modifi cou-se, também, a deductio, que passou a ser realizada por meio da traditio.

O usus fructus passa a poder ser constituído pela longi temporis praescriptio (fundamentada na inação do proprietário). Além de todas estas mudanças, são criados, por determinação legal, novas formas ex lege (SANTOS JUSTO, 1997, p. 196-197) de constituição de usufruto.

3 REGIME JURÍDICO

O usufructuarius, apesar de ser titular de um verdadeiro direito real, constitui-se mero detentor de uma ius in re aliena, podendo apenas usar e fruir a coisa, cuidando da mesma como se sua fosse, sem alterar, entretanto, sua substância ou destinação econômica. Deverá agir, portanto, como um bonus paterfamilias.

Ainda no período clássico, o usufrutuário era totalmente impedido de realizar alterações, inclusive melhoramentos na res. Entretanto, no período pós-clássico (CRUZ, 1997, p. 48)3, foram introduzidas modificações jurídicas que ampliavam os poderes do usufrutuário.

Movidas pelas crises econômicas da época, as alterações legais previam, inclusive, que “o usufrutuário poderia cultivar a terra, abrir novas minas e, de uma maneira geral, possuía a faculdade de melhorar a coisa” (IGLESIAS, 1953, p. 269).

3 Período do Direito Romano compreendido entre o ano 230 d. C. e 530 d. C.

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Aspecto interessante era que a res com a qual era celebrado o usufruto não conferia ao usufrutuário o direito sobre uma ilha formada no rio que atravesasse o terreno recebido, pois a fruição alcançava apenas o bem originário.

Quanto aos fi lhos das escravas (no caso de servus fructuarius), estes não seriam considerados frutos (nem naturais, tampouco civis), pois os jurisconsultos romanos determinavam como frutos daquela natureza apenas as crias dos animais4.

O direito de usufruto apresenta-se para o usufrutuário como intransmissível a terceiros, porém o exercício deste poderá ser cedido, mas cessará com a morte daquele, mesmo que estes ainda estejam vivos.

O usufructuarius não terá direito ao tesouro como proprietário, mas apenas como achador em res aliena.

Dentre as obrigações do usufrutuário (que possui a liberalidade de uso e fruição do bem), em primeiro lugar estava conservar a res em bom estado, pois todo cuidado, característico do bom paterfamilias deveria ser dispensado para manter a res a salvo de qualquer perigo que pudesse ser previsto e sanado.

Fazia parte das obrigações também pagar impostos e encargos; prestar cautio usufructuaria como garantia ao constituir o usufruto da res de que a usará como um bom paterfamilias e a devolverá no estado de conservação em que recebeu.

4 EXTINÇÃO

Ocorre extinção através de: renúncia do usufrutuário; consolidatio (também con-ceituada como confusão ou reunião na mesma pessoa, dos atributos de nu-proprietário e usufructuarius); destruição ou alteração da substância ou da fi nalidade econômica da coisa, embora com o passar do tempo a alteração da substância da coisa tenha passado também a signifi car a destinação econômica desta.

Poderia, ainda, ocorrer extinção através de: non usus da coisa; ocorrência do termo, ou seja, fi m do prazo estabelecido para ocorrência do usufruto; morte do usufrutuário; ou se o usufrutuário sofresse capitis deminutio, que a princípio poderia ser por qualquer uma das três (mínima, média e máxima), mas no período justinianeu passou a ser apenas pela ocorrência das duas últimas.

4 Temos a opinião de que os jurisconsultos, sob a justifi cativa de não querer animalizar as escravas, acaba-vam por benefi ciar exclusivamente os proprietários, pois os fi lhos destas (dadas em usufruto) seriam sempre do nu-proprietário.

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5 TUTELA JURÍDICA

Os direitos do usufrutuário são tutelados na esfera judicial por uma actio in rem (ação real), designada vindicatio ususfructus, também nomeada pelas fontes como petitio usufructus. Inicialmente, a presente actio só poderia ser intentada pelo usufructuarius contra o proprietário, porém no fi nal do período clássico a iurisprudentia determinou que a mesma pudesse ser utilizada contra qualquer pessoa que turbasse o exercício do usus fructus. Já no direito justinianeu, a ação tutelatória passou a ser denominada confessoria ususfructus.

Além dos instrumentos tutelatórios supracitados, podia ainda o usufrutuário opor contra o proprietário uma exceptio usufructus; exigir do vizinho a prestação de uma cautio damni infecti; realizar denunciação de obra nova; reivindicar servidão; fazer a demarcação e demandar com a actio aquae pluviae arcendae. Vale ressaltar que, no período clássico, o usufruto também era tutelado pelo pretor, mediante interditos possessórios (uti possidetis e unde vi) .

Para prevenir-se contra perturbações futuras podia solicitar a cautio de non amplius turbando.

O proprietário goza do direito de tudo que não for caracterizado fruto, ou seja: à metade do tesouro, aos animais mortos e às árvores arrancadas pela natureza. Além do mais, pode também exigir uma prestação-caução de dano infecto. Pode ainda opor ações de tutela da sua propriedade (como danos causados, furto, reparação de ofensa a escravos e capturar estes em caso de cometerem algum crime). Dentre outros direitos, o dominus podia, ainda, transformar o imóvel, objecto do usufruto, em local sagrado, bastando que o usufrutuário concordasse.

6 USUFRUTO NOS DIREITOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO

O atual Código Civil Português consagra no Título III do seu Livro III (Direito das Coisas) os capítulos I a V (especifi camente os artigos 1439º a 1483º) o usufruto e constitui-se como instrumento jurídico que apresenta importantes marcas romanas, das quais citaremos algumas.

Inicialmente, temos no artigo 1439º a defi nição de usufruto como “o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância. A presente noção traduz o texto de Paulus encontrado no Digesto. Os modos de constituição (artigo 1440º) e extinção (artigo 1476º) também acompanham a doutrina romana. Também a previsão de simultaneidade e de sucessividade da constituição de pessoas como usufrutuárias do artigo 1441º mantiveram a tradição romana. Inclusive, o direito de acrescer (artigo 1442º) fundamenta-se na legislação romana.

No artigo 1443º, apesar de prever o prazo de trinta anos para a duração máxima do usufruto para pessoas colectivas (enquanto no direito romano determinava cem

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anos), permanece no restante do texto fi el às ideias romanas. Assim como o artigo (1444º) que regula o trespasse a terceiro.

Os direitos do usufrutuário relacionados no artigo 1445º e as obrigações dos artigos 1468º a 1475º permanecem sob a égide romana. O artigo 1470º, entretanto, apresenta-se como exceção à fórmula romana, pois não extingue, automaticamente, o direito de usufruto pela recusa de prestar caução.

Portanto, na parte fundamental do usufruto português, concluímos que nele são inegáveis as infl uências do direito romano.

O Código Civil Brasileiro (CCB) de 2002 consagra no Título VI do seu Livro III (Direito das Coisas) os capítulos I a IV (especifi camente os artigos 1390 a 1411) o usufruto e constitui-se como instrumento jurídico que apresenta importantes marcas, não só romanas, mas também portuguesas.

Assim como no direito romano, determina o artigo 1393 que o direito de usufruto não poderá ser vendido, mas prevê que o exercício do usufruto poderá ser cedido de forma gratuita ou onerosa. O benefício do usufruto somente poderá alcançar o seu titular, não se transmitindo aos seus herdeiros por mortis causa.

Relativamente aos bens móveis, inclusive os semoventes, estes podem ser objeto do usufruto. Portanto, conforme o artigo 1397 do CCB e do sistema jurídico romano, é concedido ao usufrutuário o direito de fruir de tudo que é gerado pelo rebanho: leite, lã, trabalho motor do animal, os fi lhotes etc.

A obrigatoriedade da prestação de caução no direito brasileiro, assim como no romano também é dispensada ao doador que se reservar o usufruto da res doada.

Porém, há uma divergência surgida no Código Brasileiro de 2002 perante o direito romano que não havia no Código de 1916. Trata-se do quase usufruto ou usufruto impróprio (aquele que recai sobre coisas consumíveis e fungíveis). No Brasil, em regra, o usufruto recai somente sobre bens inconsumíveis, ou seja, os bens que não perdem a substância pelo uso. O Código de 1916, no seu artigo 726, previa o usufruto sobre bens consumíveis. Porém o CCB de 2002 não acolheu o referido artigo, mas admitiu que o usufruto alcance as coisas acessórias e os acrescidos consumíveis do bem que é objeto de usufruto (artigo 1392, §1º).

Apesar de uma pequena divergência (quase desprezível), vê-se, claramente a infl uência romana e até mesmo a portuguesa no direito brasileiro (caso do prazo de 30 anos do artigo 1443º do Código Português e do artigo 1.410, inciso II do Código Brasileiro).

CONCLUSÕES

O presente estudo resultou da pesquisa pelas fontes romanas, portuguesas e brasileiras a respeito do usufruto. Entretanto, encaramos o mesmo como inacabado, pois ainda há muito que ser visto e escrito.

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Desde o princípio, percebemos a importância do estudo do Direito Romano na formação do jurista, tanto brasileiro quanto português, assim como de todos os juristas latinos. O usufruto é um tema atual, debatido tanto em países europeus como em países latino-americanos, principalmente no Brasil.

O sistema jurídico romano constitui-se como base do Direito de inúmeros países. Historicamente, podemos citar um período de “quase-esquecimento” do direito romano (pós Roma Imperial). Entretanto, a partir do seu ressurgimento, com uma força monumental, através da Escola dos Glosadores e a dos Comentadores, o que vemos atualmente é um direito que ainda oferece e baseia respostas para os grandes problemas jurídicos das sociedades hodiernas.

Finalizamos citando o mestre Iglesias (CRUZ, 1984, p. XXIX):

No estamos tan lejos de Roma como parece. Nuestra civilización se alimenta do que olvida, de lo que ignora y de lo que niega. Y se esto es así, toca a los romanistas , por emcima de todo, poner en claro la razón y medida en que el derecho romano puede servir para aliviar las congojas actuales5.

REFERÊNCIAS

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COHEN, Boaz. Ususfructus in Jewish and Roman Law em RIDA 1. Bruxelas: OIL, 1954.

5 Vale ressaltar que o texto do romanista espanhol foi produzido em 1968, ou seja, faz 42 anos que fora escrito, mas a crítica continua atualíssima.

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Usufruto: do Direito Romano aos Direitos Português e Brasileiro 251

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USUFRUCT IN ROMAN AND LUSO-BRAZILIAN LAWS

Abstract: This article, produced around the Romanists, will present and analyze briefl y the historical and legal aspects relating to the legal institute called usufruct, from its inception and development in Roman law, up to today´s Portuguese and Brazilian laws.

Keywords: Usufruct. Roman Law. Portuguese law. Brazilian law.

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Relação de Trabalho x Relaçãode Consumo: Uma Análise Sobre a Limitação da Competência da Justiça do Trabalho

Saulo Nunes de Carvalho AlmeidaBacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Pós-graduando em Direito do Trabalho, Tributário e Previdenciário pela Faculdade [email protected]

Antonia Morgana Coelho FerreiraBacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pelo Curso Prof. Jorge Hélio. [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Novas competências da Justiça do Trabalho. 2. Relações de consumo x relações de trabalho. 3. O atual entendimento do TST. Conclusão. Referências.

Resumo: O presente estudo mostra qual a justiça competente para se analisar relações de consumo e relações de trabalho, introduzindo formas para que seja realizada uma diferenciação entre ambas. Para alcançar tal objetivo, esclarece-se o que são tais relações, analisando-se cuidadosamente a competência da Justiça do Trabalho que, desde a Emenda Constitucional nº 45, ainda provoca controvérsias entre os estudiosos do assunto. Analisa-se, outrossim, a questão de confl ito de competências entre a justiça responsável por analisar relações de prestação de serviços, entendidas como eminentemente civis, trazendo à discussão o entendimento atual dos tribunais sobre essas questões e as correntes doutrinárias defendendo diferentes posições e o entendimento dominante na doutrina.

Palavras-chave: Competência. Relações de trabalho e consumo. Emenda cons-titucional nº 45.

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Temas de Direito Privado254

INTRODUÇÃO

Sabe-se que, a partir da publicação da Emenda Constitucional 45, tem-se oportunamente questionado até que ponto a Justiça do Trabalho teve suas competências alargadas pelo novo teor do artigo 114, da Lei Maior.

Inicialmente, para que se possa almejar a necessária compreensão quanto à matéria aqui defendida, é de vital importância a inexistência de dúvida quanto à limitação da matéria a ser estudada. Ao se falar de competência, fala-se sobre um gênero que, em regra, forma-se por quatro ramos fundamentais, que são: competência material (ex ratione materiae), competência pessoal (ex ratione personae), competência territorial (ex ratione loci) e competência funcional (atribuições).

Pois bem, o presente estudo analisará a nova competência material da Justiça do Trabalho. Porém, é importante destacar que não se tem aqui a pretensão de esgotar as questões temáticas, referentes à relação de trabalho e relação de consumo, aqui abordadas. Pelo contrário, o verdadeiro intuito é o de colaborar com aqueles que têm se debruçado sobre este instigante tema.

Portanto, será defendido neste estudo que, apesar de uma análise à primeira vista da expressão “relação de trabalho”1 e o que por ela pode ser englobado, bem como a tentação da generalização de que seja abrangido toda forma de prestação de serviço, não se deve cometer o equívoco de confundir relação de consumo com relação de trabalho, onde os primeiros aparentam escapar do gênero relação de trabalho e, por consequência, devem ser excluídos da competência2 dada à Justiça do Trabalho pela Reforma do Judiciário.

1 NOVAS COMPETÊNCIAS DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Ao se analisar a competência da Justiça do Trabalho por um prisma histórico, deve-se remeter ao artigo 122 da Constituição Federal de 1934, que, apesar de não utilizar expressamente a palavra “competência”, afi rmava que fi cava instituída a Justiça do Trabalho para dirimir questões envolvendo empregados e empregadores, criando assim, tacitamente, a competência da Justiça Laboral.

A signifi cativa ampliação dessa justiça especializada ocorre no ano de 2004, após doze anos de tramitação do Projeto de Emenda Constitucional nº. 45/2004, que no dia 31/12/2004 ensejou na publicação da Emenda Constitucional nº. 45. Essa emenda trouxe nova redação ao art. 114 da atual Constituição Federal,

1 Relação de trabalho é gênero do qual relação de emprego é espécie. 2 Palavra que vem do latim competentia, que signifi ca estar no gozo ou ser capaz.

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ampliando a competência material da Justiça do Trabalho, para analisar não apenas as relações entre “trabalhadores e empregadores”, e, sim, para todas as lides oriundas da “relação de trabalho.”

Porém, muitas são as dúvidas que têm surgido entre os doutrinadores quanto a essa nova competência material da Justiça Laboral, ramo do direito que mais foi modifi cado pelas inovações introduzidas pela EC nº 45, de 31.12.2004. Entre os distintos entendimentos que são defendidos pelos estudiosos atualmente, três são as correntes que mais se sobressaem.

Inicia-se pela corrente que, até o presente momento, aparenta estar se desenhando como a majoritária perante a doutrina nacional, que tem sido chamada de corrente ampliativa. Essa corrente defende o entendimento quanto à competência da Justiça do Trabalho em qualquer relação em que exista uma prestação de atividade humana, incluindo-se aqui qualquer forma de relação de trabalho, bem como a controversa relação de consumo.

Ao defender essa corrente, que entende que a partir da Emenda Constitucional nº 45 a Justiça do Trabalho passou a ter competência para julgar as ações oriundas da relação de consumo, Rodolfo Pamplona Filho (2006, p. 42) traz uma interpretação histórica do polêmico artigo Constitucional:

Em outras palavras, mantendo a coerência histórica na interpretação da evolução constitucional da competência trabalhista, envolvendo a lide sujeitos que estejam na qualifi cação jurídica de trabalhadores e tomadores desse serviço, a competência será da Justiça do Trabalho.[...]Agora, todas as ações oriundas da relação de trabalho (para muitos, relação de emprego), no que não temos como desprezar os contratos civis, consumeristas ou outros contratos de atividade (quando se referirem à discussão sobre a valorização do trabalho humano), deverão ser ajuizadas, a partir da Reforma do Judiciário, na Justiça do Trabalho.

Entendimento similar também é seguido por Mauro Schiavi (2009, p. 175), que afi rma:

Para nós a razão está com a vertente interpretativa no sentido de que tanto as ações propostas pelo prestador de serviços no mercado de consumo, quanto as ações em face deles propostas pelos consumidores tomadores, são da competência da Justiça do Trabalho.

A segunda corrente, minoritária entre os entendimentos dos doutrinadores e dos Tribunais especializados, adota uma postura restritiva quanto à interpretação do novo texto do art. 114 da CF, não aceitando a expressão “relação de trabalho” trazida no texto da lei, desconsiderando a amplitude dada à Justiça do Trabalho e defendendo a sua competência apenas para os confl itos decorrentes da relação de emprego. Ou seja,

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entendem que onde a lei traz “relação de trabalho” deve-se entender como “relação de emprego”, não tendo a competência material da Justiça do Trabalho sido ampliada pela EC nº 45.

A terceira e última corrente, que até o momento aparenta ser a mais correta, tem sido denominada de corrente intermediária. Essa corrente, defendida por doutrinadores como Carlos Henrique Bezerra Leite, faz uma interpretação literal do mencionado artigo da Carta Magna, defendendo a ampliação quanto à competência material da Justiça do Trabalho para processar qualquer atividade de trabalho humano, conforme a inteligência do art. 114 da CF.

Inegável o fato de que a ideia do novo texto do mencionado artigo constitucional é a de que qualquer matéria envolvendo relação de trabalho passe a ser processada na Justiça do Trabalho, e não apenas as que se originam de uma relação de emprego.

Porém, torna-se claro que, devido ao conceito de Justiça do Trabalho como uma justiça especializada (bem como a Justiça Militar ou Eleitoral) para resolver as lides trabalhistas, não se pode realizar uma interpretação ampliativa do supracitado dispositivo, incluindo as relações de consumo.

No entanto, maiores considerações quanto à defesa dessa corrente ocorrerão em momento oportuno3, que distinguirá relação de consumo de relação de trabalho, porém, adianta-se desde já o empecilho da relação de consumo ser regida por lei distinta da relação de trabalho, seja pelo Código Civil ou pelo Código de Defesa do Consumidor, bem como lhe serem aplicados princípios distintos daqueles de uma relação de trabalho.

Dessa forma, deve-se entender que a relação de consumo não foi englobada pela nova competência da Justiça do Trabalho, pois entendimento contrário poderá levar a um desvirtuamento do sentido de atuação dessa Justiça especializada. Ao dissertar sobre a questão, Sergio Pinto Martins (2006, p. 106) afi rma:

Lide entre consumidor e prestador de serviços, em que irá ser aplicado o Código do Consumidor, não é de competência da Justiça do Trabalho, por se tratar de relação de consumo, que têm natureza econômica. Exemplos são a relação do paciente com o médico em decorrência da operação malfeita, do cliente contra outra pessoa física que faz conserto incorreto de um aparelho eletrônico. São hipóteses que envolvem relação de consumo e não exatamente de trabalho.

Importante destacar nesse ponto que, independentemente de se adotar a corrente ampliativa ou a literal, a competência material, que aqui se discute, referente à relação de consumo, limita-se às relações as quais o prestador de serviços é pessoa física, afi nal,

3 Ver capítulo Relação de Consumo x Relação de Emprego..

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se o mesmo fosse uma pessoa jurídica, como por exemplo um escritório de advocacia, jamais existiria a possibilidade de uma relação de trabalho, pela óbvia impossibilidade de se estabelecer o intuitu personae.

O real intuito da reforma constitucional trazida pela EC nº 45 aparenta ser o de proteção ao trabalhador, retirando do campo da “informalidade” diversas atividades laborais, como os trabalhadores autônomos, eventuais, cooperados, temporários, entre outros, atuando de forma a combater a constante presença de fraudes ligadas a essas formas de contrato. Não parece ser correta a assertiva de que o intuito da reforma era o de também alcançar a relação de consumo, retirando-lhe da competência da Justiça Comum e inserindo na Justiça do Trabalho. Afi nal, relação de trabalho é um gênero, do qual relação de consumo nele não se insere como possível espécie.

2 RELAÇÕES DE CONSUMO X RELAÇÕES DE TRABALHO

Sabe-se que, historicamente, a legislação trabalhista surge da crescente necessidade de se estabelecerem certos limites à exploração da força de trabalho por parte do empregador, que por possuir os mecanismos de produção tinha o controle dessa relação, utilizando de forma abusiva a mão de obra prestada pela parte hipossufi ciente, em uma constante busca por maiores lucros.

Porém, essa supramencionada realidade não é, e jamais foi, a realidade encontrada em uma relação de consumo. Muito pelo contrário, via de regra, nesse caso, o prestador de serviços possui mais força que o polo receptor (consumidor).

Assim, não parece razoável o sentido histórico alcançado com a criação desta justiça especializada quando da defesa de uma inserção das relações de consumo na competência da Justiça do Trabalho.

Porém, por maior que seja a tentação quanto à defesa da incompetência da Justiça do Trabalho para tratar de lides oriundas da relação de consumo, a verdade é que inexiste a possibilidade de uma classifi cação absoluta e imutável quanto à defesa da relação de consumo ser englobada pela Justiça Comum, pois existe a possibilidade de uma mesma situação, de fato, dependendo das circunstâncias que lhe cercam, ser competência de Justiça distintas.

Para ilustrar a afi rmação, imagine-se a seguinte relação: uma pessoa comparece a uma clínica particular para realizar uma cirurgia de estética por um médico autônomo que presta serviços na mencionada clínica. Em tal caso concreto existirão duas distintas relações com duas distintas competências. Caso o cliente que compareceu à clínica não tenha fi cado satisfeito com o procedimento cirúrgico realizado e almeje uma possível reparação, confi gura-se uma relação de consumo, que foge à competência da Justiça do Trabalho, devendo seu pleito ser apresentado perante a Justiça Comum Estadual, tratando-se de clara situação regida por lei especial. Porém, já no caso do médico

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não ter recebido os honorários que lhe eram devidos pela mencionada clínica, deverá ajuizar reclamação perante a Justiça do Trabalho, competente para julgar a presente demanda, por tratar-se de relação de trabalho.

Portanto, para uma mesma relação podem-se ter distintas competências, a depender de cada caso concreto. Concordando com a situação acima esposada, destaca-se o entendimento de Wagner D. Giglio e Claudia Giglio Veltri Corrêa (2005, p. 44) que trazem didático entendimento sobre o assunto:

A transferência de um bem móvel, de uma para outra pessoa, pode ser qualifi cada, juridicamente, de contrato de compra e venda, de leasing, de empréstimo, de consignação ou de furto, dependendo das circunstâncias e da intenção do agente.

Assim, o que se deve procurar na verdade não é o “rótulo” ao qual se encontra atrelada a relação concreta, e, sim, uma aplicação efetiva da primazia da realidade. Afi nal, são relativos os elementos que deverão ser examinados em cada caso concreto.

Porém, confi gurando-se uma verdadeira relação de consumo no caso concreto, a competência material para processar e julgar a lide será da justiça comum, aplicando-se a lei especial (CDC) ou o próprio Código Civil. Afi nal, tratando-se de uma prestação de serviço originada pela celebração de contrato de natureza eminentemente civil, não se pode argumentar quanto à competência da Justiça do Trabalho. Assim, é o teor do art. 593, do CC: “A prestação de serviço que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.”

Em palestra proferida, a ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Maria Cristina Irigoyen Peduzzi4, ao analisar o intuito do legislador em alargar a competência material da Justiça do Trabalho, afi rma:

Fica clara a preocupação do legislador com o acesso efetivo à Justiça. Já vimos que à garantia de acesso apenas formal à Justiça, desde o início do século XX, foi acrescida a preocupação com o acesso efetivo. De nada adianta poder ir ao juízo e ter uma resposta, se ela não vem em tempo hábil e nem é capaz de realizar os objetivos da jurisdição. Há obstáculos que devem ser rompidos, e um deles é o da demora na prestação jurisdicional.

A verdade é que o acesso do necessitado ao Poder Judiciário Trabalhista é, e sempre foi, signifi cativamente mais célere do que nos demais órgãos do Poder Judiciário. Assim, torna-se preocupante um equivocado entendimento que acarrete em uma ampliação além da vontade do legislador, podendo vir a refl etir diretamente na efetividade de seu

4 Publicado na Revista Trabalho e Ambiente, 2006, n. 6.

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funcionamento, sofrendo um signifi cativo aumento no número de demandas a serem analisadas, tendo como consequência natural uma maior morosidade, levando, certamente, à diminuição do acesso à Jurisdição por parte da população.

É inegável, apesar do que afi rma a mencionada corrente restritiva, que a Emenda Constitucional nº 45 ampliou signifi cativamente a competência da Justiça do Trabalho. Porém, resta claro também que essa Justiça especializada é incompetente para avaliar lides que se originam da relação de consumo, pelo óbvio motivo de não se tratar de uma relação de trabalho.

3 O ATUAL ENTENDIMENTO DO TST

O Tribunal Superior do Trabalho tem tido um entendimento cauteloso ao tratar dessa delicada questão de inserção das relações de consumo na competência material da Justiça do Trabalho. Seguindo o seu conservadorismo costumeiro, tem-se preferido a não absorção de tais relações como matéria a ser dirimida por essa justiça especializada, apesar das inegáveis características existentes entre relação de trabalho e relação de consumo, que, de fato, guardam diversas semelhanças.

Daí advém a importância, já ressaltada previamente, de uma minuciosa análise do caso concreto, seguindo o espírito da primazia da realidade, ao avaliar se o contrato que, à primeira vista aparenta tratar de uma relação de consumo, não é, na verdade, uma fraude escondendo uma real relação de trabalho.

Portanto, a defesa que aqui se faz de uma ausência de competência da Justiça do Trabalho para tratar de questões de consumo jamais poderá conduzir o entendimento do intérprete ao absurdo de considerar essa regra sem exceção, devendo-se sempre buscar uma interpretação sistemática do caso concreto que se apresenta, na procura de descobrir se pode ou não ser ele incluído na “relação de trabalho” de que trata o art. 114 da CF/88.

O ministro Lélio Bente Corrêa, atuando como relator de um recurso de revista que defendia a competência da Justiça do Trabalho para dirimir questões referentes a contratos de prestação de serviços, adotou a corrente literal, ou intermediária, ao defender a visão de que por ser o objeto decorrente de um contrato de resultado, onde o trabalho não mais aparenta ser o cerne do contrato, mas sim um bem de consumo, que é o resultado esperado por parte de quem contrata, faz com que a natureza dessa relação encontre-se fora da competência material da Justiça do Trabalho.

Pelo seu teor didático, e por trazer um rol exemplifi cativo de funções, relevantes nesse momento, transcreve-se a ementa5:

5 Tem sido farta a jurisprudência do TST seguindo o mesmo entendimento.

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INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. COBRANÇA DE HONORÁRIOS PROFISSIONAIS. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Não se insere na competência da Justiça do Trabalho a tarefa de dirimir controvérsia relativa à prestação dos serviços levada a cabo por profi ssional autônomo que, senhor dos meios e das condições da prestação contratada, coloca-se em patamar de igualdade (senão de vantagem) em relação àquele que o contrata. Tal é o caso típico dos profi ssionais da engenharia, advocacia, arquitetura e medicina que exercem seus misteres de forma autônoma, mediante utilização de meios próprios e em seu próprio favor. Recurso de revista não provido (TST-RR-1.110/2007-075-02-00, Ac. 1ª Turma, Rel. Min. Lélio Bentes Corrêa, DJ 5/6/2009.)

Portanto, veja que o entendimento atual do TST vai de encontro a já mencionada doutrina majoritária, ao defender a tese de que por haver uma relação de igualdade entre as partes, senão de superioridade por parte daquele que presta o serviço, não será inserida na competência da Justiça do Trabalho, responsável por dirimir as divergências entre empregador e trabalhador, onde o segundo é hierarquicamente inferior ao primeiro, hipossufi ciente portanto. Diferente é o caso do prestador de serviços, esse ocupa posto de igualdade (ou até superioridade) em relação àquele que recebe seus serviços.

No entanto, cumpre ressaltar que a visão aqui destacada, apesar de majoritária, ainda não se encontra pacifi cada no Tribunal Superior do Trabalho, onde alguns ministros consideram como correta a interpretação ampliativa do art. 114, I, da Constituição Federal. Essa é a opinião, por exemplo, da ministra Maria de Assis Calsing, que, em relatório proferido, adota tese diametralmente oposta, no sentido de ser a Justiça do Trabalho órgão competente para julgar as lides oriundas da relação de consumo:

Embora muitas correntes tenham surgido acerca da extensão da expressão “relação de trabalho” prevista no artigo 114, I, da Constituição Federal, fi lio-me à qual entende pelo sentido mais amplo da expressão “relação de trabalho”, nela incluindo não só a relação de emprego, por óbvio, mas também toda relação que envolva prestação pessoal de trabalho ou serviço, seja tal relação prevista na legislação civil, seja na legislação consumerista, seja em legislação esparsa envolvendo contratos de atividade. [...]

Portanto, desde que a relação havida entre as parte, seja de que caráter for, envolver o trabalho humano pessoal que mereça tutela, a competência será da Justiça do Trabalho. (Proc. Nº TST-RR-488/2008-068-03-00.9).

O TST já foi, também, chamado a se manifestar algumas vezes quanto à questão dos honorários de advogado6 e a competência da Justiça do Trabalho para julgar essa forma de demanda de caráter consumerista, tendo seguido o entendimento de que, por se

6 Honorário tem o signifi cado de prêmio, advém da palavra latina honoratius, pois na época de Roma o cliente ao sair vencedor de uma causa prestava honrarias a seu advogado.

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Relação de Trabalho x Relação de Consumo: Uma Análise Sobre a Limitação da Competência da Justiça do Trabalho

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tratar de uma relação de caráter estritamente civil, esse contrato de prestação de serviços será da competência da Justiça Estadual e não da Justiça do Trabalho. Destaca-se, assim, um dos diversos precedentes encontrados na Jurisprudência dessa Corte:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Não merece reforma o r. despacho agravado, uma vez que, analisando de forma pormenorizada todas as questões articuladas no Recurso de Revista denegado, acabou por refl etir as diretrizes jurisprudenciais que têm prevalecido no âmbito desta Corte em relação ao tema ali abordado, precisamente quanto à incompetência dessa Justiça Especializada para julgar ação de cobrança de honorários advocatícios. Agravo de Instrumento não provido. (TST-AIRR-67/2007-381-04-40, Ac. 2ª Turma, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, DJ 31/07/2009).

Em tais casos, o entendimento que tem sido aplicado é o de Gustavo Amarante Merçon7, de que os serviços prestados pela pessoa física do advogado em favor de pessoa jurídica ou profi ssional liberal, que atue no âmbito de sua atividade produtiva, bem como de qualquer ente que produza bens ou serviços para o mercado, a relação será trabalhista, nos demais casos será relação de consumo.

Portanto, torna-se notória a intenção do TST em tentar sanar a atual divergência originada pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho, delimitando essa nova competência através da adoção da corrente intermediária como forma de interpretação, defendendo o entendimento de que, ao contrário de uma relação de trabalho, em uma relação de serviços o prestador é quem explora uma necessidade do consumidor, havendo uma clara inversão quanto ao polo hipossufi ciente da lide.

CONCLUSÃO

É evidente que, quando uma relação de consumo sai da sua esfera corriqueira de admissão de bens, e adentra esfera atípica de prestação de serviços, haverá divergências pelos intérpretes, podendo ser confundida com alguma das espécies do gênero relação de trabalho. Porém, apesar do devido respeito que merece opinião contrária, com ela não se confunde, sendo, inclusive, ideologicamente incompatível com o processo trabalhista que visa à proteção do trabalhador (parte hipossufi ciente) diferentemente de toda a inteligência que traz o texto do Código de Defesa do Consumidor, favorecedor do receptor dos serviços prestados.

7 LTr, vol. 05, maio/2006.

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Seguindo esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (órgão constitucio-nalmente competente para julgar confl itos de competência) já se manifestou, através da Súmula nº 363, quanto à competência da Justiça Estadual para julgar ações de cobrança oriundas da relação entre profi ssional liberal e cliente: “Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profi ssional liberal contra cliente.”

Quanto à mencionada “área cinzenta” de casos que transitam entre a relação de consumo e relação de trabalho, como é o caso dos profi ssionais liberais já exaustivamente mencionados, a solução para uma correta identifi cação quanto à espécie aparenta estar no fato de que, em uma relação de consumo a prestação de serviços extingue-se em si mesma, ou seja, não se vislumbra a presença da histórica associação entre capital e trabalho. Já em uma relação de trabalho a citada prestação é utilizada como instrumento para prestar/alcançar um outro serviço, ocorrendo uma inserção no processo produtivo do empregador, agregando-lhe algum valor a sua atividade econômica.

A dilatação dos limites materiais da competência da Justiça do trabalho encontra sua barreira intransponível na relação de consumo, sob pena de, se desobedecida, resultar em um confl ito de competências perante a Justiça Ordinária.

Portanto, defende-se aqui o incontestável fato de que a Justiça do Trabalho teve sua competência ampliada pela Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45), abrangendo agora toda forma de relação de trabalho e suas ações conexas. Porém, as relações de consumo ainda fogem, felizmente, dessa nova competência material.

Não se deve negar a assertiva de que a evolução do direito ocorre com a sua aplicação no mundo concreto, com a sua vivência e utilização por aqueles que dele necessitam, de tal sorte que a visão defendida nesse estudo não deve ser confundida com uma verdade imutável defendida pelos autores, e, sim, como mais uma contribuição à doutrina que continua à procura dessa polêmica questão, trazendo um dos possíveis pontos de vista para a questão de serem ou não de competência da Justiça do Trabalho a análise sobre as relações de consumo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.

_______. CDC (1990). Código de Defesa do Consumidor. Lei nº. 8.078, Brasília, DF, Senado, 1988.

_______. CC (2002). Código Civil. Brasília, DF, Senado, 2002.

_______. Emenda Constitucional nº. 45, de 31 de dezembro de 2004. Brasília, DF, Senado, 2004.

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Relação de Trabalho x Relação de Consumo: Uma Análise Sobre a Limitação da Competência da Justiça do Trabalho

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_______. TST (2009). INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. COBRANÇA DE HONORÁRIOS PROFISSIONAIS. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Tribunal Superir do Trabalho. RR-1.110/2007-075-02-00, Ac. 1ª Turma, Rel. Min. Lélio Bentes Corrêa, DJ 5/6/2009.

_______. TST (2009). AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Tribunal Superior do Trabalho.AIRR-67/2007-381-04-40, Ac. 2ª Turma, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, DJ 31/07/2009.

_______. STJ. Súmula nº. 363: “Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profi ssional liberal contra cliente. Superior Tribunal de Justiça. Publicada em: 15.10.2008, DJ: 03.11.2008.

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CONSUMER AND LABOR RELATIONS ACCORDING TO BRAZILIAN LABOR COURTS

Abstract: The present paper shows which justice holds the competence to analyze labor and consumption relations, bringing ways to realize the difference between them. To achieve this, we bring the concept of such relations, analyzing the labor justice competence after the constitutional amendment nº 45, which still brings controversial issues. It analyzes the confl ict of competence among the justice responsible to approach the civil relations involving services, introducing the current understanding of the Superior Court about this question and the different points of views among scholars.

Keywords: Competence. Labor and consumption relations. Consti-tutional amendment nº 45.

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Obstáculos Epistemológicos: O Ceticismo Pirrônico

Sérgio Borges NeryAdvogado. Mestrando em Direito Constitucional. Professor de Ciência Política na Universidade de [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Considerações preliminares. 2. A gênese zetética do ceticismo. 3. O telos do ceticismo pirrônico e as aparências. 4. O ceticismo, a verdade e as refutações. Conclusão. Referências.

Resumo: Neste artigo, procura-se examinar o papel do ceticismo proveniente de Pirro de Elis, como marco fundamental da corrente fi losófi ca que persiste até esse tempo. Inicialmente, faz-se uma passagem por conceitos genéricos da teoria do conhecimento. Em seguida, busca-se traçar os argumentos e a direção do ceticismo. Logo após, discorre-se sobre a verdade no conceito cético e delineiam-se algumas refutações. Na conclusão, faz-se uma síntese dos fundamentos do ceticismo pirrônico com a Ciência do Direito.

Palavras-chave: Ceticismo. Pirro de Élis. Entendimento humano. Direito.

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a examinar as linhas gerais do ceticismo de herança do fi lósofo grego Pirro de Élis. O seu pensamento não legou, diretamente, uma obra escrita para análise. Todavia, Sexto Empírico, um destacado seguidor do século II a III, resgatou a obra ao escrever a Hipotiposis Pirrônicas ou, derivado da língua grega: os fundamentos de Pirro1. Os fundamentos do ceticismo pirrônico foram mantidos, em sua linha geral, não sendo viável, entretanto, a completa disposição dos argumentos que o ceticismo dirige às escolas que combate, nem tampouco os arrazoados empreendidos

1 Hypotypoticos. Cf. nota 2, livro I.

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contra o pensamento de autores clássicos de orientação diversa. O presente artigo toma, pois, por base, o texto de Sexto Empírico, pelo qual busca elencar e discorrer brevemente sobre os principais vetores de atuação do ceticismo.

A crença de que o ceticismo permanece obscuro aos juristas é o móvel deste texto. Assim, após um panorama geral no primeiro capítulo, e o ingresso nos argumentos céticos primitivos – legados por Pirro – nos capítulos posteriores, a conclusão traça possíveis relações úteis ao Direito e ao motor da ciência: a dúvida.

1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Antes de seguir pela trilha do ceticismo, é preciso ultrapassar algumas questões de fundo que se nos apresentam. Destas, pela relevância que importam à teoria do conhecimento, não se escapa da resposta a: i) se o conhecimento é possível; ii) qual é a sua origem; iii) qual é a sua essência; iv) qual é a sua fi nalidade; e v) se há um critério sólido para o conceito da verdade.

Pelo modelo de apreciação baseado na utilidade do desenvolvimento, parece certo que o objeto das inquirições sugeridas obedeça a uma sucessão paulatina, pois, não se concebe que seja, à guisa de sentença, útil ao domínio das coisas investir no exame, e.g. da essência do conhecimento, sem que antes se possa transpor a possibilidade de conhecer. O rigor da lógica formal recomenda não haver coerência em saber-se da essência de um objeto sem que, previamente, seja evidente e viva uma resposta afi rmativa quanto à possibilidade. Tanto por isso, sem o prejuízo de um hermetismo inóspito, será de melhor resultado deter-se na possibilidade do conhecimento.

A Filosofi a, tida como autorrefl exão do espírito sobre seu comportamento valorativo teórico e prático e, igualmente, aspiração a uma inteligência das conexões últimas das coisas, a uma visão racional de mundo (HESSEN, 2003, p. 9), veicula uma relevante quantidade de informações. À matéria em discussão, o conhecimento é dependente de uma refl exão da relação fi losófi ca sujeito-objeto que somente terá ignição com a convicção fi rme de que ao sujeito é viável apreender um determinado objeto. Não um sujeito qualquer – o eu – tampouco um objeto geral – um particular, sob pena de ingressar no estudo da metafísica. Aos que professam que a essência de cada indivíduo seja idêntica pela igualdade de gênero, opõe-se que não há identidade de essências, pois que esta só pode ser entendida como singular, ainda que certa quantidade coincidente de qualidades os aproxime. A essência traduz uma característica natural que empreende a qualifi cação dos objetos encerrados em propriedades individuadoras, cuja projeção será a aparência.

Nesse diapasão, a Idade Média assistiu a um célebre acontecimento que fi cou conhecido como querela dos universais. Versou o debate sobre a universalidade da essência, opondo Guilherme de Champeaux a seu pupilo Pedro Abelardo. Este reproduzia, em

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concisão que se pode ler no Historia Calamitatum e no Ingredientibus, a afi rmação do mestre pela qual:

[....] a comunidade dos universais estabelecia que uma mesma coisa é essencial, íntegra e simultaneamente em cada um dos indivíduos, e que a diversidade destes não está em sua essência, mas unicamente na variedade de seus acidentes. Por exemplo, em todos e cada um dos homens que diferem entre si numericamente existe uma única substância do homem, que aqui, pelos seus acidentes, resulta Platão e ali, por aqueles outros, Sócrates (SARANYANA, 2006, p. 184).

Em resposta, Abelardo lançou o argumento que perpetuou-se como a doutrina do conceitualismo, ao dizer que, no mundo de um gênero, são múltiplas as espécies, que distinguir-se-ão pelas suas especifi cidades. Todavia, há diferenças específi cas que contrariam umas as outras, disso resultando que num mesmo gênero ter-se-ia duas espécies em contradição, e.g. no gênero animal, o homem e o cavalo. O primeiro é dotado de racionalidade e o segundo irracional, logo, pelo gênero animal, aceitar-se-á que uma coisa possa ser o seu contrário (SARANYANA, 2006, p. 185). A colisão com a maior evidência da lógica – o princípio da identidade – é franca [P é P] e [P não pode ser não-P], portanto, não resistindo ao teste da lógica, deve-se orientar a direção do intelecto para a singularidade da essência.

A possibilidade de conhecer, de sua vez, propaga um dilema basilar: todo o conhecimento é possível aos homens ou, alternativamente; o homem não pode conhecer nada (MOSER, MULDER, TROUT, 2004, p. 7). A meia medida entre as duas propostas assemelhar-se-ia a dizer: posso conhecer, em certa conta, um dado número de coisas mas, uma parcela destas não se me alcança. Submetidas as três proposições à análise, verifi ca-se, primeiramente, que a última contradiz a si mesma, porquanto deduz implicitamente uma hierarquia de essências – umas, mais primitivas e cognoscíveis e; outras, demasiadamente complexas e incognoscíveis. Muito embora a certeza não acompanhe a forma hierarquizada das essências, é improvável que de fato ocorra, posta a sua singularidade e, decorrente dela, a impertinência de promover agrupamentos. Igualmente, não se supõe que o conhecimento humano seja capaz de apreender uma classe de objetos e exclua outra. Com efeito, os fi lósofos costumam acatar a posição intermediária (MOSER, MULDER, TROUT, 2004, p. 8). Quanto ao primeiro e segundo enunciados, respectivamente, os estudiosos assentem que o conhecimento tenha limite na fi nitude humana e; que admitir a integral impossibilidade de conhecer é, pois, uma forma de conhecimento.

A apropriação do saber é, para todos os efeitos, um dado estrutural, no meio do qual o conhecimento se edifi ca continuamente e as verdades são postas a prova, bem como são as conclusões submetidas a refutações. Surge daí a certeza da insufi ciência material cotidiana, que corrobora não somente a tese da fi nitude como reafi rma a aquisição de certo lugar na escala do saber.

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O desassossego natural, causado pelo abalo às fundações das certezas humanas mais comezinhas, exemplifi ca a magnitude do rigor a que o conhecimento se submete. Não se trata, apenas, de um rigor do conteúdo essencial dos objetos, mas, antes disso, de um rigor metodológico. Em verdade, parece ao homem que a abstração desordenada dos pensamentos conduz unicamente ao caos – lugar no qual será inviável erigir as primeiras defi nições de crença que pautarão todo o desenvolvimento ulterior do pensamento. De fato, o saber engendra seus desígnios por meio da certeza inabalável de um séquito reduzido de premissas. A advertência evite o fogo, é o vaticínio de um pensamento que se segue à certeza de que o fogo arde. Nesse caso, pode-se observar a existência simultânea de duas premissas. A primeira ensina que o fogo emite calor intenso, a segunda, implícita, dá a conhecer que o homem é frágil o sufi ciente para fazer chamuscar-se, e disso decorre uma ameaça à sua integridade. Ainda se pode opor a convicção [certeza] de que, naquele lugar, queima o fogo. Temos, pois, uma disposição ordenada de premissas mais acanhadas que, presentes no espírito e ligadas por um nexo, forcejam a determinação de uma conclusão que se crê verdadeira.

Toda plêiade de informações de que o homem dispõe precisa orientar-se por meio de uma organização que permita a correção das conclusões. Na ausência de uma defi nição sólida da essência das coisas, impõe-se um mecanismo de solução que possa contornar essa difi culdade. Aristóteles fez aderir aos objetos alguns predicados que buscam desimpedir o espírito na trilha do conhecimento. A tal mecanismo chamou de categorias, como modelo de enquadramento dos objetos em si e entre si, a facilitar a sua apreensão. Desta forma, para o Estagirita, são dez as categorias do pensamento: 1. a substância; 2. a quantidade; 3. a qualidade; 4. a relação; 5. o lugar; 6. o tempo; 7. a posição; 8. a condição; 9. a ação; e 10. a passividade (ARISTÓTELES, 1964, p. 235). Evidentemente, esta disposição das categorias não sobreviveu ao tempo, encontrando em Kant um aperfeiçoamento considerável. Para o fi lósofo de Königsberg, as categorias aristotélicas deveriam substituir-se pelos juízos, relacionados a esta maneira: i) segundo a quantidade: universais, particulares e singulares; ii) segundo a qualidade: afi rmativos, negativos e infi nitos; iii) segundo a relação: categóricos, hipotéticos e disjuntivos; e iv) segundo a modalidade: problemáticos, assertóricos e apodíticos (KANT, 2003, p. 76).

O rigor metodológico a que se fez alusão é o modus da apreensão do objeto. Divide-se, classicamente, em conhecimento empírico, racional ou crítico. O empirismo é o mecanismo de conhecimento que recorre à experiência sensível; o racionalismo, por sua vez, se socorre da razão para conhecer; e o criticismo, fundado em técnica e nomenclatura exclusivas ao seu criador – Kant – é uma fusão dos dois conceitos antecedentes. Desse modo, a metodologia do conhecimento não se presta a desvendar a essência do fogo, mas cuida do método que será empregado para tal fi m.

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No que toca às crenças, sem confundir-lhe com as crendices, afi rma-se que subsistem a qualquer sistema que, ao insulto da complexidade dos objetos, possa-se empreender. Estas crenças não se confundem, igualmente, com os dogmatismos, pois que aquelas são razões primeiras extraídas da realidade prática que se consubstanciam em certezas medíocres, mas necessárias, e estes, afi rmações cuja relação sujeito-objeto não se questiona.

2 A GÊNESE ZETÉTICA DO CETICISMO

O ceticismo, de há muito, suscita os mais acirrados debates na Filosofi a. Há mesmo quem diga que se trata de tema superado pelo uso do frugal senso comum, como Moore (MOSER, MULDER, TROUT, 2004, p. 8). Não por isso, acredita-se fundamental investigar as origens do ceticismo para um primeiro contato com suas raízes.

Os estudiosos que dedicam o seu tempo à ciência acabam, de alguma maneira pelo próprio esforço, extraindo de suas investigações acerca do objeto quatro conclusões: ou bem chegando a uma descoberta; talvez resolvendo pela negação; porventura reconhecendo ser o objeto incognoscível ou; eventualmente, tirando por consequência a necessidade de prosseguir na investigação (EMPÍRICO, 1996, p. 83).

Aos que mantêm a convicção de ter chegado a uma conclusão, denomina-se dogmáticos. Para aqueles que crêem na impossibilidade de o espírito humano conhecer um objeto, instalou-se a designação de acadêmicos. Finalmente, aos que confi am os seus juízos à continuidade do exame, chamaram de céticos (EMPÍRICO, 1996, p. 83-84).

Os céticos, por sua vez, enxergam os seus propósitos como uma atividade inquisitiva, ao tempo que acreditam ser a razão de seus estudos suspensiva. No que toca ao ânimo das suas perquirições, o ceticismo revela um estado de aporia – pelo qual de tudo se duvida e se indaga, mantendo a incerteza sobre a afi rmação e a negação.

Dessa maneira, chega-se a uma defi nição exordial do ceticismo, cuja tradução pode assim ser descrita:

[....] faculdade de opor, de qualquer modo possível, aparências e juízos, de forma que, através da equivalência entre as coisas e dos argumentos opostos, alcancemos primeiro a suspensão do juízo e, após, a imperturbabilidade (EMPÍRICO, 1996, p. 85). [traduziu-se].

Por essa defi nição, deduz-se que o fi lósofo cético será aquele que dispuser da faculdade em menção, guardando como vetor fonte o princípio da esperança em encontrar a imperturbabilidade. Mas não um estado de ânimo assemelhado à imperturbabilidade, produto da conveniência em assentir numa conclusão útil ao espírito e manancial de uma tranquilidade que não supera o confronto de argumentos contraditórios, no afã de discernir o que é verdadeiro do que é falso; mas, numa posição pela qual a cada razão que se presta opõe-se uma outra equivalente - assim entendida uma igualdade de probabilidade e improbabilidade.

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A separação é proveitosa para expor uma nota essencial ao ceticismo. Este se coloca em posição de contendor em relação ao dogmatismo que, a seu turno, não reservava a si o conceito que a atualidade lhe confere. Os acadêmicos clássicos eram fi lósofos que, na busca pelas verdades, concluíam por enunciados e, por essa conta, eram apontados como dogmáticos. De outro lado, os céticos não se deixavam dominar pela sedução do assentimento desarrazoado, sentiam-se, ao revés, impulsionados a não dogmatizar [na acepção de concluir]. A repulsa pelo dogma não se reputa ao entendimento lato da expressão, senão denota o desacordo em relação ao conceito pelo qual o dogma é o mais singelo assentimento a qualquer conclusão – a adesão ao entendimento não evidente. Mesmo por isso, o cético dá crédito às impressões mais simples da percepção, tais como o frio e o calor (EMPÍRICO, 1996, p. 87). A dúvida generalizada, por essa ressalva, não encontra eco nas crenças a que, previamente, aludiu-se. Em verdade, os argumentos em atenção e os desfavoráveis, juntos, anulam-se como vetores em sentido não correspondente.

Ao rechaçar o dogmatismo, os céticos pirrônicos tampouco poderiam prender-se às doutrinas de lá emanadas, por motivo bastante plausível: a doutrina, como conjunto de dogmas relacionados entre si (EMPÍRICO, 1996, p. 88), resume um modelo de atuação concorde com o assentado. Desta maneira, a doutrina colide frontalmente com as aspirações céticas, senão aquelas que, pela vivacidade da própria aparência [como as crenças], indiquem pautar-se pelos costumes e tradições, pelas leis e pelas próprias afeições.

Não por acaso, os gregos nutriam grande apego à lei, que julgavam sempre reta e justa, como legou o fi lósofo de Estagira (ARISTÓTELES, 1964, p. 1227) ao pronunciar que: o injusto obra contra as leis, e posto que aquele que se conforma a estas é justo, é evidente que todos os atos conformes às leis são, de alguma maneira, justos [traduziu-se]. A vocação da lei, pelas palavras de Aristóteles, é o bem comum. Sócrates, o fi lósofo-rei, levou às últimas consequências o respeito às leis quando, acusado injustamente por rival – Meleto - cujo intelecto fosse mediano e o interesse na própria projeção certo, acatou o veredicto de condenação à morte pelos crimes de corrupção à juventude, descrédito aos deuses e menosprezo às leis, não sem antes dizer: Eis, portanto, que a hora de irmos é chegada, eu para a morte a qualquer tempo, vós para continuar a vida! Quem, entre eu e vós, verá o melhor destino? É por todos coisa incerta, senão à Divindade! (PLATÃO, 1959, p. 183) [traduziu-se].

3 O TELOS DO CETICISMO PIRRÔNICO E AS APARÊNCIAS

Os pirrônicos, como já dito, não negavam de todo a possibilidade do conhecimento, especifi camente nos assuntos pertinentes ou acordes à sensação passiva – aparências. Se perguntados se o objeto guarda na sua essência as características que demonstra na aparência, os céticos acolhem o que se mostra e investem na pesquisa do que se extrai

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dela. De fato, ao investir com o raciocínio na direção da aparência, o cético tem em mira iluminar a precipitação das conclusões dos dogmáticos, jamais emudecer a aparência (EMPÍRICO, 1996, p. 90). Deste modo, fi ca entendido que o critério cético de orientação é o das aparências, resultado das percepções sensíveis vitais não dogmatizadas, ya que no podemos quedar completamente inactivos. As sensações passivas [aparências], no idioma grego, podem substituir-se pela grafi a latina Katá phantasían pathetiken, de onde, com certa facilidade, é possível compreender que a aparência, para os gregos, está ligada à fantasia2 com todas as implicações que a semântica vernacular exibe.

O fi m do ceticismo requer, antes de tudo, que se esboce não o conceito que há chegado até esses dias, mas a adoção, visando a uma compreensão mais exata, da defi nição cética de fi m, como segue: “Fin es aquello en vista de lo cual todo se hace o se piensa, ya sea por ningún otro, ya sea por el último de los objetivos apetecidos” (EMPÍRICO, 1996, p. 91). Desse modo, a fi nalidade do ceticismo se dirige a tudo que se faz ou pensa, excluída qualquer outra fi nalidade, senão meio, endereçada ao último dos objetivos desejados. Diz-se, na convergência dos princípios céticos, que o fi lósofo, dessa corrente aderente, visa à imperturbabilidade no opinável e a moderação no necessário. O processo mediante o qual o pirrônico fi losofa acerca das percepções, no encalço de determinar-lhes a veracidade ou a falsidade para só então gozar da imperturbabilidade que almeja, deságua na equivalência dos argumentos enfi leirados, cuja conclusão se acha maculada pela equânime incerteza e, não se considerando capaz de uma solução satisfatória, opta pela suspensão do juízo.

Esta imperturbabilidade, a que Pirro (EMPÍRICO, 1996, p. 92) tanto faz menção, trata da repulsa a que os céticos enxergam na emissão de juízos, posto que a carga axiológica destes direciona sempre o ânimo do investigador a formular um conceito mais genérico, de índole maniqueísta, avaliando a conclusão, em último suspiro, como boa ou má:

Pues quien estima que algo es por naturaleza bueno o malo se inquieta por todo: cuando no posee aquello que juzga bueno, se cree atormentado por lo naturalmente malo y persigue lo que supone naturalmente bueno; mas, cuando lo obtiene, se agita aún en mayor medida [...] en su temor de una mutación de la fortuna, se desvive por completo a fi n de evitar la perdida de lo que cree bueno.

Assim, as perturbações do espírito causadas pela incerteza do acerto ou do erro de juízo quanto ao objeto e, consequentemente, a apreciação deste objeto como sendo

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bom ou mau, não alcançam aos que se abstêm de formular juízos3, deixam de estimar como bom ou mau, ou não perseguem apaixonadamente coisa alguma. Com efeito, o insucesso em desvendar as contradições e relações entre as aparências e os juízos conduz ao estado de suspensão.

Muitos são os exemplos, na história da fi losofi a grega, que apontam para um determinado estado de ânimo das suas conclusões ou desideratos. Assim com Pitágoras, Zenão, Pirro e, mesmo, Aristóteles a respeito da amizade. A insipiência dos avanços científi cos, o ambiente favorável à inscrição de novas doutrinas, o método de condução das aulas aos acadêmicos em formação e sua relação com os mestres propiciava um exacerbamento na relação deontológica dos homens com suas conclusões e favorecia o aparecimento de fi losofi as místicas secundárias. Daí que a evolução de teorias transbordaram, naturalmente, para ideologias e fi losofi as de visão do mundo com a respectiva experiência prática.

A tradição dos céticos orienta pela transmissão de dez argumentos de suspensão do juízo: primeiro, o que se refere à variedade dos animais; segundo, o das diferenças entre os seres humanos; terceiro, o das diversas conformações dos sentidos; quarto, o das circunstâncias; quinto, o das posições, distâncias e lugares; sexto, o das misturas; sétimo, o das quantidades e constituições da substância; oitavo, o da relação; nono, o da freqüência ou raridade do sucesso e; décimo, o das condutas, costumes, leis, crenças místicas e convicções dogmáticas (EMPÍRICO, 1996, p. 94-95). Por sobre estes dez argumentos, antepunham-se outros três: o de quem julga; o objeto do julgamento e; a fusão de ambos; restando estes últimos como decomposição do argumento da relação, por mais genérico, já passado em revista. É fl agrante a semelhança da divisão dos argumentos com a distribuição das categorias de Aristóteles.

A propósito dos trópoi, Sexto Empírico informa que aos dez por Pirro erigidos somar-se-iam outros cinco, em sua substituição e da lavra de discípulos seus, de modo que fi caria assim a nova disposição: primeiro, o da discrepância; segundo, o do regresso ao infi nito; terceiro, o da relação; quarto, o do hipotético e; quinto, o do raciocínio circular. A esta abreviação dos argumentos, coincide uma construção do pensador alemão Jakob Friedrich Fries, no seu trilema, pelo qual a tentativa do conhecimento esbarra em três conclusões pouco nobres: a do dogmatismo; a regressão ao infi nito ou o psicologismo. O dogmatismo refere-se a crer num enunciado cuja validade não foi alvo de testes na medida adequada à sua validade, já o psicologismo tem como linha de frente a inclinação do investigador a universalizar o conhecimento

3 Segundo a nota nº 22, Timon e Enesidemo. Os dois fi lósofos propunham a suspensão do juízo às inda-gações. Cf. EMPÍRICO (1996, p. 93).

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subjetivo adquirido, no mais das vezes, pela experiência e, fi nalmente, a regressão ao infi nito afi rma que a prova de uma assertiva sobre um objeto carece de nova prova que, igualmente, demanda ser provada e assim ao infi nito (POPPER, 2007, p. 100-113). Para Fries, todas as possibilidades de conhecimento estarão sujeitas a uma das opções por ele enumeradas, insatisfatórias evidentemente.

Antes de Fries, porém, outro fi lósofo recorreu à nova trópoi dos seguidores da Escola Cética, posteriores a Enesidemo: Michel de Montaigne (MOSER, MULDER, TROUT, 2004, p. 166-167). O pensador quinhentista erigiu o que fi cou conhecido na epistemologia como O problema do critério, que deste modo revelou-se: “Para julgar [entre o falso e o verdadeiro] nas aparências das coisas, precisamos de um método de distinção; para validar esse método, precisamos de um argumento que o justifi que; mas, para validar esse argumento, precisamos do próprio método em questão. E aí estamos, andando em círculos.”

4. O CETICISMO, A VERDADE E AS REFUTAÇÕES

Para os pirrônicos, antes de pôr em marcha os esforços intelectuais com o intuito de defi nir um conceito sólido para a verdade, é preciso deter-se num critério de verdade. Assim, o cético terá uma atuação sucessiva pela qual, primeiramente, há de superar-se a questão do que é verdadeiro, para somente então almejar a defi nição de verdade. Com efeito, a verdade difere do verdadeiro em três coisas: em essência, em composição e em potência.

A distinção essencial se dá quanto ao grau de materialidade da substância de cada um dos conceitos. O verdadeiro é incorpóreo, pois incide apenas como predicativo de uma coisa - dentro do trópoi da relação - revelando uma natureza enunciativa-descritiva e de expressão discursiva; ao tempo que a verdade é corpórea, recolhendo-se em sua unidade de objeto, pois é conhecimento afi rmativo de todo o verdadeiro (EMPÍRICO, 1996, p. 181).

A composição defi ne outra distinção entre a verdade e o verdadeiro, posto que este último tem composição simples, insuscetível de adjetivações por juízos de valor, tal como dizer: eu converso. Enquanto isso, a verdade é constituída de um complexo de conhecimentos verdadeiros.

A verdade, quanto à potência, é dependente de um conhecimento virtuoso, o que não ocorre com o verdadeiro, que é autônomo. Assim, a verdade existirá apenas no homem de virtudes, capaz de um conhecimento sublimemente bom; ao passo que o verdadeiro poderá se fazer presente no homem mau, já que contempla-se a possibilidade deste expressar algo de verdadeiro (EMPÍRICO, 1996, p. 181).

A verdade será, então, defi nida como um sistema de conhecimento das coisas verdadeiras. Nesse passo, a verdade, como refl exo de algo incognoscível, não se transforma no objeto de refutação e, mesmo, de investigação do cético; mas o verdadeiro, pela carga discursiva que representa sem a devida repercussão material de

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evidência que deveria trazer. O canhoneio dos pirrônicos, a essa altura, volta-se aos sofi stas, ao pretenderem derrubar as premissas maiores de seus argumentos e, a partir daí, arruinar todo o edifício de conhecimento dogmático destes, pois:

[....] quem diga que algo existe não será, dada a discrepância, acreditado sem demonstração; e se pretende oferecer demonstração, não se lhe abonará se admite que é falsa, mas se a afi rma verdadeira, incorrerá no raciocínio circular e se lhe exigirá apresentar demonstração da existência de uma verdadeira demonstração, e outra daquela, e assim ao infi nito. Mas é impossível fazer infi nitas demonstrações: logo impossível também saber que existe algo verdadeiro. (EMPÍRICO, 1996, p. 182). [traduziu-se].

Aparece, ainda na esteira da verdade, um argumento clássico da auto-contrariedade da afi rmação universal da falsidade: tudo é falso, signifi ca que o interlocutor pretende afi rmar como verdadeiro que tudo é falso, formando assim uma contradição insuperável em si mesma. Nada é falso, implica em dizer que o nada é alguma coisa [falso], dando uma existência ao nada que, com isso, deixa de ser alguma coisa [nada]. O nada não pode ser algo. À afi rmação: tudo é verdadeiro, segue-se que nada é falso, incorrendo na contradição precedente, bem como suspendendo o juízo sobre a natureza de correspondência das coisas – o que reforça os princípios céticos. Ao cabo, se a afi rmação: tudo é verdadeiro e falso for correspondente ao mundo dos objetos, ter-se-á que as coisas serão verdadeiras e falsas, particularmente, a um só tempo, donde se extrai que nada há de verdadeiro, pois contém em si a falsidade.

Não sendo possível, então, à verdade ser verdadeira, necessário se faz uma reformulação do conceito de verdade, ou a suspensão do juízo a esse respeito. A par da aceitação dos pirrônicos de um conhecimento sensível primitivo, a colocação da epistéme não salva aos homens; apenas a dóxa, ou a matéria opinável.

Todavia, não foram poucas as tentativas de superar os conceitos céticos, tidos como obstáculo formal ao desenvolvimento do conhecimento, antes critério depurador de coerência metodológica.

Ainda na antiguidade, Górgias (VASCONCELOS, 2000), mesmo sem travar contato com o ceticismo pirrônico, antecipava crítica mordaz ao fundamento do cético: como poderíamos saber que encontramos o que procurávamos, se, com antecedência, já não soubéssemos o que estávamos procurando.

George Berkeley, em 1713, dá a publicar os Três Diálogos entre Hilas e Filounous em oposição aos céticos e ateus, no qual, em seu Primeiro Diálogo, Filounous interpela Hilas com o pedido de que este lhe diga o que entende por cético, por ter sido assim apontado ao negar que a matéria tenha existência, no que responde e prossegue:

H.: O que toda gente: entendo alguém que duvida de tudo.F.: O que não duvida, por conseguinte, acerca de um ponto particular,

pelo que tange a esse ponto não pode ser dito um cético.

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H.: Com isso eu vou.F.: Consiste o duvidar, porventura, em tomar a solução afi rmativa ou

a solução negativa de uma questão?H.: Não; em nenhuma das coisas; para quem quer que perceba o falar

inglês, duvidar signifi ca uma suspensão entre as duas.F.: Logo, do indivíduo que nega um ponto qualquer não se pode

dizer que duvida dele – nem mais nem menos do que de quem o afi rma com o mesmo grau de segurança.

H.: Assim é, de fato.F.: Por conseguinte, ao primeiro, lá porque nega, não o teremos por

mais cético do que ao segundo.H.: Reconheço que sim.F.: Como então, ó Hilas, vos ocorre pronunciar que sou eu um cético,

só porque nego o que é por vós afi rmado, ou seja, a existência da matéria? Já que, como quer que digais, sou tão peremptório na negação como vós o sois no afi rmar. (BERKELEY, 1980, p. 50).

Filounous desvenda a Hilas o erro de apontar o cético como agente de toda a negação, enquanto Berkeley tem em vista provar o conhecimento empírico, em oposição ao ceticismo radical para o qual a experiência não forneceria dados de apreensão mediata, apenas imediata.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (apud HESSEN, 2003, p. 44), formulou a seguinte objeção, nos termos que seguem:

A investigação do conhecimento não pode ocorrer senão conhecendo; investigar esse assim chamado instrumento não signifi ca outra coisa senão conhecê-lo. Mas querer conhecer antes de conhecer é tão incongruente quanto a sábia resolução daquele escolástico – aprender a nadar antes de aventurar-se na água.

A objeção de Hegel, com efeito, não repercute no sistema pirrônico, haja vista que o ceticismo antigo admite certa quantidade de conhecimento, como já demonstrado.

Donald Davidson opõe o Princípio de Caridade ao ceticismo. Por este princípio, que veicula uma das modalidades contemporâneas de crença – as que se ligam ao conhecimento mais comezinho, de utilidade prática – deve-se aceitar inicialmente como verdadeiras as afi rmações dos interlocutores porquanto as diferenças culturais, que distanciam estas pessoas do ouvinte, são tendentes a criar um conhecimento estranho às faculdades intelectuais originárias, donde a prevalência será governada pela boa-fé, interesse em conhecer e na boa vontade de compreender o outro. Desse modo, o interlocutor estará colocado numa posição de equivalência ao ouvinte, de modo que seus argumentos não sejam, prima facie, invalidados (MOSER, MULDER, TROUT, 2004, p. 52-53).

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CONCLUSÃO

O ceticismo, desde as suas mais longínquas raízes, mantém-se vivaz pelo fato de lidar com um desafi o que, a um só tempo, atormenta e anima a alma da humanidade – a possibilidade do conhecimento. A dúvida, que ensejou uma das diretrizes cartesianas, permanece à sombra de tudo o quanto se possa produzir no saber. E bem que assim seja, pois o espírito alerta não habita o erro primário, senão traz à ciência um ciclo de conjecturas, e novas conjecturas a substituir as antecedentes, e por esta via segue.

O Direito encontra no ceticismo grave barreira a ser vencida, de vez que aquele atua, eminentemente, segundo as diretrizes da dialética – lugar da oposição da tese e da antítese, com vistas a extrair do processo a síntese. O ceticismo defi ne a contrariedade de argumentos conducente a uma recíproca anulação, nos moldes da sobreposição vetorial dos geômetras, e a indefi nição marcada pela incerteza leva o juízo pautado pelo ceticismo não a concluir ou sintetizar, mas, a suspender o juízo. Talvez pelo temor aos céticos, o pragmatismo que marcou os romanos antigos tenha legado o adágio proibitivo, célebre, que caracteriza a jurisdição: Non liquet.

Também a imperturbabilidade cética incide no Direito quando a este se imputa o caminho para a justiça. A prolação de uma sentença judicial, em litígio, há sempre que posicionar uma perda e um benefício aos jurisdicionados, ainda que originariamente pertencentes a vantagem e o desfavor aos mesmos, não chegará a fi rmar a convicção da justiça feita. O idêntico argumento é utilizado pelos apóstolos da mediação extrajudicial.

As relações do Direito com a ontologia, muito embora de pouco costume, são fundamentais para traçar as regras deontológicas que se pretenda. Não é a intenção, neste momento, de emitir juízo de valor quanto ao conteúdo da positivação, mas, mesmo adotada a orientação da validade do direito natural, os conceitos por este talhados hão de servir-se da essência dos objetos ali compreendidos. Tanto por isso, o ceticismo interessa ao Direito por sobressaltar o espírito do jurista e pôr em dúvida as suas defi nições mais primordiais. Igualmente, as verdades sobre as quais o Direito erige todo o seu sistema, se abaladas, tendem a fazer ruir a estrutura de um edifício que se constrói a mais de dois mil anos, quiçá para redefi ni-lo como dogmático, porquanto, ao desencontro das outras ciências, o Direito goze de uma vasta estabilidade conceitual. Resta a advertência dos pirrônicos: a razão das aparências é precária e a essência das coisas, insondável.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Etica Nicomaquea. Madrid: Aguilar, 1964.

________. Lógica. Madrid: Aguilar, 1964.

________. Política. Madrid: Aguilar, 1964.

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Obstáculos Epistemológicos: o Ceticismo Pirrônico 277

BERKELEY, George. Três Diálogos entre Hilas e Filounous em oposição aos céticos e ateus. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

EMPÍRICO, Sexto. Hipotiposis Pirrónicas. Madrid: Akal, 1996.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Lisboa: Edições 70, 2003.

MOSER, Paul K.; MULDER, Dwayne H.; TROUT, J. D. A Teoria do Conhecimento: uma introdução temática. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PLATON. Apologie de Socrate. v.1. Paris: Gallimard, 1959.

POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científi ca. 1. ed, 13. reimp. São Paulo: Cultrix, 2007.

SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofi a Medieval: Das origens patrísticas à escolástica barroca. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofi a e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2006.

VASCONCELOS, Arnaldo. “Que é uma teoria jurídico-científi ca?”. Revista da OAB/CE. Fortaleza: ano 27, nº 4, julho-dezembro/2000.

EPISTEMOLOGICAL EMBARRASSMENT: PYRRHONIAN SKEPTICISM

Abstract: Analysis of the role of skepticism originated in Pyrrus of Élis, as a landmark in this philosophical arena, keeped alive until our days. At the beginning, general concepts of the human understanding theory are focused, then to the skepticism arguments and direction. Thereafter, the truth in skepticism boundaries is discussed, as well as the outline of some refutation. At the very end, a synthesis is made based on Pyrrus skepticism and Law Sciences.

Keywords: Skepticism. Pyrrus of Élis. Human understanding. Law.

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Consequências da Ruptura Ilícita do Contrato de Trabalho Desportivona Lei Portuguesa – Uma Má Solução

Albino Mendes BaptistaMestre em Direito. Doutorando em Direito (Contrato de Trabalho Desportivo). Assistente com Regência de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. Advogado. [email protected]

Sumário: Introdução. 1. Consequências da ruptura ilícita do contrato de trabalho desportivo. 2. Contrato de trabalho do praticante desportivo: contrato especial de trabalho. 3. Estabilidade e boa-fé contratual. 4. Defi ciências legais. 5. Dignidade da pessoa humana e relação contratual. Conclusão. Referências.

Resumo: Procura-se apurar as consequências da ruptura ilícita do contrato de trabalho desportivo na lei portuguesa, concluindo-se que a limitação do dano a ressarcir às retribuições devidas até fi nal do contrato constitui uma má solução legal. Julga-se mesmo que tal solução, além de insensata, desrazoável, desequilibrada e inconstitucional, pode constituir um acicate ao rompimento contratual, afecta gravemente o princípio da estabilidade contratual e não atende à especifi cidade do desporto.

Palavras-chave: Ruptura do contrato de trabalho desportivo. Reparação integral do dano. Estabilidade contratual.

INTRODUÇÃO1

Nos termos do n.º 1 do art.º 27.º da Lei Portuguesa do Contrato de Trabalho Desportivo2, nos casos de despedimento com justa causa promovido pela entidade

1 O presente artigo corresponde, com alterações, ao nosso estudo em Baptista, n.º 4, 2009.2 Lei n.º 28/98, de 26 de Junho. Doravante LCTD.

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empregadora desportiva e de rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo, a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo.

1 CONSEQUÊNCIAS DA RUPTURA ILÍCITA DO CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO

As consequências para a ruptura ilícita do contrato de trabalho desportivo fi xadas na lei portuguesa constituem, a meu ver, uma má solução legal.

Mas, como desde há muito venho defendendo, trata-se de uma solução insensata, desrazoável, desequilibrada e inconstitucional.

Sugerem-se os seguintes exercícios.Pense-se na situação de um clube que disputa o título nacional, ou a presença

em competições internacionais, ou mesmo a manutenção na respectiva divisão. Faz sentido que num momento crucial da competição desportiva (por

exemplo, a um ou dois meses do seu fim) um praticante abandone o clube a troco do pagamento das retribuições devidas até ao final do contrato que ocorre justamente nessa época desportiva?

Obviamente que não.Suponhamos agora que um clube “ostraciza” um praticante desportivo uma

época desportiva inteira, denigre a sua imagem e afecta a sua dignidade como pessoa. (Baptista, 2006, pp. 139 e ss.).

Os danos, desde logo não patrimoniais, provocados pela conduta do clube não podem gerar um direito a indemnização a favor do praticante desportivo?

Claro que podem.Imagine-se ainda que um clube paga pela transferência de um praticante

desportivo, por exemplo, € 20 milhões, e o contrato tem a duração de 3 anos. Se um jogador o romper ao fi m de um ano da respectiva vigência, limitar-se-á a indemnizar o clube pelo valor das retribuições devidas até fi nal do contrato?

É evidente que isso não faz sentido. Naturalmente que os custos de contratação têm de ter retorno para o clube.

Como escrevi no meu texto “Para uma leitura atenta e serena do ‘Caso Webster’” (Baptista, 2009):

Cada vez me surpreende mais a singularidade das nossas soluções jurídico-laborais desportivas que em certos casos me levam a pensar se foram feitas a pensar na sua aplicação a outra galáxia.

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Um dos exemplos mais expressivos de desadequação é o direito do praticante desportivo à reintegração no clube em caso de despedimento ilícito (art.º 27.º, n.º 2, da LCTD). Só quem não sabe minimamente o que é a realidade desportiva é que pode pensar que esta solução tem alguma razoabilidade.

A meu ver, o caminho correcto é o de estender a indemnização à totalidade dos prejuízos causados, reparando integralmente o dano.

2 CONTRATO DE TRABALHO DO PRATICANTE DESPORTIVO: CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO

Confi gurando-se o contrato de trabalho do praticante desportivo como um contrato de trabalho com regime especial, é inevitável que refl icta a especifi cidade da realidade desportiva (Baptista, 2008, pp. 191 e ss.).

E a consideração de que certo contrato tem regime especial impõe que se determine correctamente a respectiva especifi cidade, que se coloquem certas barreiras à aplicação das regras gerais que se mostrem desajustadas e que se atribua força expansiva a essa especifi cidade em sede de interpretação das respectivas normas.

Ora, o art.º 27.º, n.º 1, da LCTD, como aliás quase todo o diploma, parece não atribuir qualquer importância às “circunstâncias de ordem desportiva”, referidas expressamente, por exemplo, no ordenamento jurídico-laboral desportivo espanhol, como se as mesmas não tivessem relevância.

Julgo que era fundamental que a nossa lei permitisse a ponderação de factores como os que, a título naturalmente exemplifi cativo, se passam a enunciar:

– momento da competição desportiva escolhido para a ruptura contratual– competição ou competições em que o clube está envolvido– importância do praticante desportivo na equipa– implicações no desempenho do colectivo– consequências da desvinculação no grupo de trabalho– lugar ocupado na equipa– idade do praticante desportivo– alternativas existentes no grupo do trabalho– projecção do futuro do praticante desportivo– custos de contratação– afectação da imagem do clube– frustração de contratos publicitários– quebra de receitas desportivas.

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Um outro ponto que não pode ser desprezado nestas ponderações é a presença dos empresários desportivos na outorga dos contratos de trabalho, reforçando, e muito, o poder negocial dos praticantes, e afastando este tipo contratual do modelo clássico do contrato de trabalho comum.

Depois, não deve ser esquecida a sua intervenção em muitos processos de ruptura contratual dos praticantes. O empresário é, amiúde, o mais forte adversário do pacta sunt servanda, princípio de que gostam muito pouco, porque nada lhes adianta, enquanto que rupturas ante tempus, com a consequente outorga de novos contratos com clubes terceiros, geram circulação de dinheiro e, portanto, lucro para a sua actividade.

3 ESTABILIDADE E BOA-FÉ CONTRATUAL

Tais considerações obrigam, segundo se julga, a atentar na necessidade de dotar o ordenamento jurídico-desportivo de mecanismos que assegurem a estabilidade contratual e que protejam os clubes, sobretudo os pequenos, de autênticas tentativas de saque, tantas vezes consumadas.

Na verdade, a protecção das ligas menos ricas e dos pequenos clubes tem de passar a ser uma preocupação central dos legisladores e das organizações desportivas.

Importa também não olvidar que o praticante desportivo de alto nível domina a relação contratual.

Impõe-se ainda respeitar o investimento de confi ança e observar o princípio da boa-fé.Finalmente, é preciso reforçar o valor da palavra dada. Este é um problema que

claramente extravasa o âmbito desportivo e que se prende com a construção de uma sociedade assente em princípios e valores.

É forçoso respeitar e cumprir pontualmente os contratos, princípio que os romanos expressaram na máxima de todos os tempos e de todas as latitudes pacta sunt servanda.

Atente-se no exemplo recente de Arséne Wenger, que recusou a tentadora oferta do Real Madrid, e que não invocou, nem deixou que invocassem por ele, qualquer qualidade de “escravo” e permaneceu fi el aos compromissos que livremente assumiu (Baptista, 2008, em www.apdd.pt.).

4 DEFICIÊNCIAS LEGAIS

As deficiências da lei e a inércia do legislador, que impõem a revisão urgente da LCTD, acabam de ser parcialmente “supridas” por duas decisões judiciais que sumariaremos.

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Em 1.º lugar, merece destaque o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 20083, por constituir a primeira decisão de um tribunal superior que vem concluir pela inconstitucionalidade do art.º 27.º, n.º 1, da LCTD, por violação do princípio da igualdade, plasmado no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa4, ao estabelecer um limite “indemnizatório” máximo, em sede de ruptura ilícita do contrato de trabalho desportivo, quando, segundo aí se diz, todas as normas do Código do Trabalho relativas à cessação do contrato não limitam o dano a ressarcir (Baptista, n.º 116, 2008, pp. 29 e ss.).

Esta decisão judicial foi confi rmada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de Abril de 2009 (Proc. n.º 910/08)5.

O Tribunal Constitucional aceita que “os prejuízos efectivos da entidade empregadora podem atingir, no caso dos praticantes de maior destaque (cuja contratação implica, amiúde, um avultado investimento, como contrapartida da transferência do clube a que anteriormente estavam ligados) montantes signifi cativamente mais elevados do que o limite legalmente fi xado” e afi rma-se que “o princípio da reparação integral dos danos é de direito comum – de que o contrato de trabalho desportivo está seguramente mais próximo do que o contrato laboral regido pelo Código do Trabalho”6.

E o Tribunal Constitucional conclui:

o art.º 27.º, n.º 1, da LCTD, por confronto com o que se estabelece no Código do Trabalho, viola o princípio da igualdade, na medida em que prevê um limite máximo para a indemnização a arbitrar ao praticante desportivo que cesse o contrato antes do termo, com justa causa, limite esse que, no regime geral, corresponde ao mínimo indemnizatório a atribuir ao trabalhador do regime comum que cesse o contrato nas mesmas circunstâncias.

5 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E RELAÇÃO CONTRATUAL

Pois bem, se é certo que o Tribunal Constitucional não apreciou a conformidade da referida norma no caso de ruptura ilícita do contrato por parte do praticante desportivo, a meu ver, é incontornável a afi rmação da sua inconstitucionalidade também nesta situação, por violação, nomeadamente, do princípio da justa indemnização (Baptista, 2008, cit., pp. 29 e ss.).

3 Publicado em www.dgsi.pt.4 Doravante CRP.5 Publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Junho (de 2009).6 Sublinhado nosso.

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A República Portuguesa é um “Estado de direito democrático” (art.º 2.º da CRP) e baseia-se na “dignidade da pessoa humana” (art.º 1.º da CRP), disposições em que deve ser fi liado o princípio da justa indemnização.

Em especial, refi ra-se que a reparação dos danos não patrimoniais constitui uma imposição do princípio do Estado de direito democrático.

Reparação de que naturalmente não podem ser excluídas as pessoas colectivas. Como bem se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de

Março de 20077, as pessoas colectivas gozam também de direitos de personalidade relativos ao bom-nome, ao crédito e à consideração social.

CONCLUSÃO

Impressiona como é que, numa época em que se faz apelo crescente à defesa da pessoa e da sua dignidade, se persiste numa solução legal que não atribui sequer relevância, em sede de ruptura ilícita, aos danos não patrimoniais.

Pelas razões sumariamente expostas, o art.º 27.º, n.º 1, da LCTD, assenta em pressupostos que estão em vias de extinção.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Albino Mendes. “The compensation for the illicit breach of Sports Labor Contract in the Portuguese Law – an unwise, unreasoning, unbalanced and unconstitutional solution”, publicado em Sports Law Bulletin, EPFL (European Professional Football Leagues), nº 4, 2009.

______. Estudos sobre o Contrato de Trabalho Desportivo. Coimbra: Coimbra Ed., 2006.

______. “Para uma leitura atenta e serena do “Caso Webster”: Publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Janeiro-Junho – 2009, Livraria Almedina, Coimbra, 2010.

______. Temas de Direito do Trabalho e de Direito Processual do Trabalho. Lisboa: Livraria Petrony, 2008.

_________. “A “escravatura no futebol” ou a falta crescente de princípios e de respeito pelos adeptos?”, disponível em : www.apdd.pt, acesso em: 18 jul. 2008._________. “Indemnização pela ruptura ilícita do contrato de trabalho, artigo 27.º da Lei do Contrato de Trabalho Desportivo e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2008”, Revista do Ministério Público, nº 116, 2008, pp. 29 e ss.

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Referências jurisprudenciais

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2008, www.dgsi.pt.

Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de Abril de 2009 (Proc. n.º 910/08), Diário da República, 2.ª série, de 1 de Junho (de 2009).

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 2007, www.dgsi.pt.

CONSEQUENCES OF THE ILLICIT BREACH OF SPORTS LABOR CONTRACT IN THE PORTUGUESE LAW – A BAD SOLUTION

Abstract: Being the sporting labor contract one with a special regime, it is inevitable that it refl ects the specifi city of the sport. And, considering that the contract has a special regime, it is vital to determine accurately its respective specifi city, to create some barriers to the general rules that are not adequate, and give more strength to that specifi city when interpreting the respective provisions. It is astonishing how, in an era when the defense of the person and its dignity is so relevant, we keep insisting in a legal solution that does not give any importance to the general damages (including the psychological loss), in case of illicit breach. For all the reasons mentioned, it is concluded that the article 27, n. 1, of the LCTD, is based on assumptions that are becoming endangered.

Keywords: Sports Law. Portugal. Contract.

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El Derecho Romano como Elemento de Armonización del Nuevo Derecho Común Europeo

Alfonso Murillo VillarProfessor catedrático de Direito Romano naUniversidade de Burgos (Espanha)[email protected]

Resumen: En el ámbito de la Unión Europea el derecho está conformado por una constelación de ordenamientos autónomos que necesitan de una aproximación. Como todos los ordenamientos jurídicos son de base romanística, especialmente los de la Europa continental, el derecho romano debe de tener un papel transcendental en su futura armonización, sin que por ello se suprima la diversidad jurídica propia de cada pueblo de los que conforma la Unión Europea.

Palabras clave: Unión Europea. Armonización jurídica. Derecho Romano. Derecho común europeo.

El 1 de enero de 2007 nacía una nueva Unión Europea, integrada por 27 miembros con la incorporación de Bulgaria y Rumania y 485 millones de ciudadanos. Ante este hecho quizás fuera oportuno refl exionar sobre los orígenes de la “vieja” Europa. Refl exionar sobre dichos orígenes conviene hacerlo desde cualquier perspectiva, y ello porque la formación de Europa es un problema histórico, complejo, con muchos perfi les y matices, dándonos cuenta enseguida que la aportación romana fue decisiva en este largo y discutido proceso de formación de Europa.

Con ello quiero decir que una refl exión histórica es hoy más necesaria que nunca, porque difícilmente podemos saber hacia dónde vamos si no tenemos algunas certezas acerca de dónde venimos. Ser europeo es un predicado atribuible hoy en día, por antonomasia, a unos, aproximadamente, 485 millones de personas. Con él se designa la condición de los nacionales de los Estados miembros que constituyen la Unión Europea. Este apelativo de europeo signifi ca no sólo la pertenencia a un espacio geográfi co, sino también la forma de existencia propia de quienes se caracterizan por gozar de tres elementos esenciales: 1.- de un común patrimonio de respeto a los

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derechos y libertades fundamentales de la persona; 2.- de unas estructuras políticas democráticas y 3.- de unas economías sociales de mercado1.

En opinión de Paricio Aucejo, este acervo que distingue a la Europa Comunitaria no tiene sus raíces en los grandes cambios vividos en las últimas décadas, sino en una idea elaborada a lo largo de los siglos, en ocasiones sostenida incluso de forma utópica. Como decía Paul Hazard: Europa es un pensamiento que no se contenta nunca2. Ello explica que innumerables literatos, fi lósofos, políticos, juristas y pensadores en general, hayan experimentado a lo largo del tiempo el secular pálpito de la llamada de Europa. Se ha pasado de un mundo de meros ideales a una realidad que, aún inacabada, ha conseguido notorios logros concretos y se encuentra, cualitativa y cuantitativamente, en continua expansión.

El proyecto comunitario, surgido hace más de cincuenta años, es uno de los grandes inventos políticos del pasado siglo XX si bien en origen tuvo una clara fi nalidad económico-comercial. Por primera vez en la historia de nuestro continente, este proyecto no es el resultado de la hegemonía militar o política de una potencia dominante, sino el fruto de un progresivo proceso de puesta en común de los distintos intereses nacionales. Se observa que la Europa comunitaria vive un largo periodo de paz y prosperidad, y tal vez se deba a que los gobiernos de sus Estados miembros no obran de manera independiente los unos de los otros sino que se interrelacionan e interactúan por medio de la Comunidad.

La Unión Europea, como consecuencia de las sucesivas ampliaciones, se ha convertido en una entidad multicultural, vigorosa en su diversidad y pluralidad histórica. En la actualidad cuenta con veintisiete estados miembros, y dicha cifra es muy probable que se amplíe a lo largo de los próximos años con la paulatina incorporación de nuevos países que ya han presentado su candidatura a la adhesión, como por ejemplo Turquía. Por consiguiente, es posible que estemos en presencia del comienzo de un mundo nuevo, distinto del organizado por las actuales formaciones estatales. Europa es un proyecto ambicioso, de difícil concreción y con un camino todavía muy largo por recorrer.

Hoy en día no basta, pues, con ser europeo sino que lo decisivo es saber ser europeo. Ello se concreta mediante tres actitudes básicas: 1.- tener un conocimiento esencial del pasado y de la organización actual de la colectividad europea; 2.- reconocer

1 Vid. PARICIO AUCEJO, P., Unión europea y sociedad civil, Valencia 2002, 17 ss.2 PAUL HAZARD (Noordpeene Village, 1878 - París, 1944), historiador y ensayista francés. Fue

catedrático en la Universidad de Lyon y profesor en La Sorbona; en 1925 alcanzó la cátedra de literatura moderna y comparada. Su obra principal La Crisis de la conciencia europea de 1680 a 1715, ha alcanzado gran repercusión en la historiografía moderna.

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el valor de los principios en que se funda; y 3.- tomar la decisión de contribuir a su consolidación y mejora. En todo ello, como resulta obvio, tiene mucho que decir Roma, su historia y su ordenamiento jurídico, del cual desciende la inmensa mayoría de los ordenamientos jurídicos europeos vigentes.

Por desgracia, pocos son los europeos que se sienten ciudadanos de la Unión con la misma normalidad, al menos, con que lo experimentan de su ciudadanía nacional. Esta desafección ciudadana supone un riesgo evidente para la construcción europea, pues pone en peligro tanto su porvenir como su propia supervivencia como proyecto político. En estos momentos, la Unión Europea carece, en propiedad y exclusividad, de ciertos elementos imprescindibles para ser un Estado3: soberanía, diplomacia, defensa, capacidad de decisión, y muy especialmente, quiero resaltarlo con énfasis, de un ordenamiento jurídico unitario que evite la diversidad legislativa, punto clave en el proceso de formación de cualquier estado.

Ahora bien, existen aspectos culturales en los que la diversidad es un punto fuerte a favor de Europa, pero creo que en el jurídico no es lo más apropiado. La pluralidad de ordenamientos puede representar un obstáculo a la libre circulación de personas, mercancías, capitales y servicios, ya que genera incertidumbre acerca del derecho aplicable y, en los contratantes, difi cultades para sopesar las consecuencias de sus propios actos. La Unión Europea tiene entre sus deberes la aproximación de las legislaciones allí donde la variedad plantee obstáculos al mercado. Sin embargo, la armonización aún no ha tenido lugar, y especialmente en el ámbito del derecho privado el “derecho europeo” continúa siendo una constelación de ordenamientos autónomos, coordinados según el sistema del derecho internacional privado y la cooperación judicial. Esta circunstancia se debe a que al jurista aún se le forma en su derecho nacional, pues “no existe todavía el jurista europeo”, por ello, que el derecho romano siga siendo un importante “vínculo vivo en la formación de todos los juristas”4.

Por tanto, es insoslayable partir de la premisa de que la Unión Europea es un proyecto en la historia. Como tal, no ha sido una idea que haya surgido espontáneamente en el siglo XX ni siquiera fue exclusiva de él. Ha sido una utopía constante en el pensamiento europeo que encuentra su fundamento último en la historia de nuestro viejo continente. Hacia el año 900 a.C., el poeta Hesiodo, en la Teogonía o El nacimiento de los Dioses, utilizaba por primera vez el nombre de Europa, tal y como después lo hará Hipócrates, quien la describe en comparación

3 PARICIO AUCEJO, Unión europea y sociedad civil, cit., 47 ss.4 ZIMMERMANN, R., Europa y el Derecho romano (estudio introductorio y traducción de I.

Cremades), Madrid, 2009, 12 ss. y 49.

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a Asia, y Herodoto. Así, pues, fueron los griegos los que identifi caron a Europa como un espacio geográfi co diverso, con un mosaico de paisajes y climas y una pluralidad de razas, de las que surgirían posteriormente una gran diversidad de lenguas y culturas.

La Antigüedad clásica difundió el nombre de Europa, ligado al mundo de la mitología (en un relato, según el cual, una joven y bella fenicia, hija de Agenor – que era rey de Tiro y Fenicia- fue raptada por Zeus, metamorfoseado en un gran toro blanco, y conducida a Creta, donde se convertiría en reina y madre de los reyes de la dinastía de Minos). Por otra parte, también la Biblia, capítulos 9 y 10 del Génesis, creó el mito de Jafet, según el cual los tres hijos de Noé se repartieron el mundo: para Sem, Asia; para Cam, Africa; y todos los descendientes de la línea de Jafet poseyeron Europa. Esta mítica tripartición del mundo fue la que dominó la cosmovisión antigua y medieval.

Herederos de la grandeza de los griegos, los romanos conservaron una cierta idea geográfi ca de Europa. Desde Polibio a Ptolomeo, desde Estrabón a Plinio el Viejo, geógrafos e historiadores fi jaron el límite de Europa en el océano Atlántico, (contemplando a Gran Bretaña como una isla europea, señalando la frontera en el Don, y desconociendo si Europa era insular). Europa comprendía para ellos una diversidad de territorios y de pueblos: Iberia, Céltica, la Bretaña, el Danubio, los Germanos, los Sármatas, la Tracia, la Iliria, Grecia, etc., los desconocidos países escandinavos, y la vasta planicie que se extiende desde el Báltico al Don.

Pero verdaderamente sólo se comenzó a tomar conciencia de una cierta identidad de Europa en el siglo VIII, cuando, con motivo de la invasión musulmana, se produjo el choque entre esta civilización y la cristiana5. Así se refl eja en una crónica mozárabe del año 754 en la que se denomina “europeos” (europenses) a los ciudadanos que se enfrentaron a los Árabes en Poitiers, designando de este modo a la comunidad continental que se defendía contra el enemigo exterior. Se defi ne así una conciencia de Europa frente al Islam.

Otro dato curioso se produce cuando el rey franco Carlomagno, establecido en Aquisgrán, convertido en el árbitro de Occidente, al recibir el día de Navidad del año 800, del Papa León III, la corona Imperial, fue saludado con las palabras “Rex. Pater Europae”, y en los Anales de Fulda se refl ejó la identidad de “Europa vel Regnum Carolum”: Europa o el Reino de Carlos. Pero fue en época medieval cuando en las Universidades se elaboró el llamado Ius commune o Derecho Común a partir del derecho romano y derecho canónico, que se extendió por toda Europa, comenzando un verdadero proceso de recepción del derecho romano y su implantación e infl uencia en los grandes ordenamientos jurídicos de la Europa continental.

5 Vid. TORRENT, A., Fundamentos del derecho europeo. Ciencia del derecho: derecho romano-ius commune-derecho europeo, Madrid, 2007, 184 ss.

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Europa es algo más que símbolos, mitos y ritos, y sobre todo si la diversidad es uno de sus elementos más característicos, que si bien es grandemente formativo y digno de conservar, a nadie escapa las difi cultades que ello plantea a la hora de conseguir una Unión Europea sólida y con unas bases comunes, a lo cual sin duda puede por la vía jurídica y superando la dispersión normativa colaborar el derecho romano de cara a la armonización de todos los cuerpos legales europeos.

En los últimos tiempos se ha intentado aprobar una Constitución Europea, sustituida fi nalmente Tratado de Lisboa (2009), cuyo ideólogo fue Valerie Giscard D’Estaing (ex-presidente de la República Francesa), y en la que siempre se impidió que constara cualquier alusión al pasado romano y a las raíces cristianas, sin embargo, existe un hecho anecdótico que hace directa alusión a dicho pasado.

La bandera europea es azul, con doce estrellas dispuestas en círculo. Esta decisión fue adoptada en mayo de 1986 y acogió el diseño que desde 1955 pergeñó el Consejo de Europa para convertirlo en bandera de todos los europeos. Un artista alsaciano llamado Arsenio Heitz se presentó al concurso de ideas convocado por el Consejo de Europa para diseñar la divisa, la bandera. Y diseñó una bandera azul con 12 estrellas, como es ahora. Lo más curioso es que en verano del 2004 el tal Heitz, reveló que fue una inspiración divina en la que sobre un fondo azul colocó las 12 estrellas de la corona de la Inmaculada Concepción: “Corona stellarum duodecim”. Por tanto, resulta curioso que mientras la Unión Europea se esfuerza por parecer una institución laica, uno de sus símbolos tiene reminiscencias católicas (cristianas).

La bandera europea no representa con sus estrellas a cada uno de sus estados miembros como sí ocurre con la bandera americana (EEUU), y además tampoco parece que interese destacar toda esta simbología de cariz cristiano pues Turquía, país no cristiano, puede que algún día forme parte de la Unión Europea. Por si hubiera dudas sobre la inspiración cristiana de la bandera, en la catedral de Estrasburgo se colocó un vitral (vidriera) tres días después de aprobarse la bandera azul por el Consejo de Europa, el 11 de diciembre de 1955, con la Virgen coronada por la corona stellarum duodecim. Además, la divisa, la bandera europea se aprobó por primera vez el 8 de diciembre de 1955, fi esta de la Inmaculada Concepción por más señas. ¿Casualidad? No lo creo.

Volviendo a la cuestión que nos ocupa conviene precisar que la fecha de la Coronación de Carlomagno (Navidad 800 d.C.), se revela incorrecta como punto de partida de una historia de la jurisprudencia o ciencia jurídica europea. Es preciso regresar unos siglos antes, a la jurisprudencia romana. Este retraso aparece como indispensable cuando se tiene conciencia de que el material romano fue tomado en consideración en la Edad Media no sólo por su contenido normativo, sino y, sobre todo, por los instrumentos conceptuales de los que está entretejido y, más aún, por su valor metodológico6.

6 CANNATA, C.A., Historia de la ciencia jurídica europea (trad. de L. Gutiérrez-Masson), Madrid, 1996, 17.

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De este modo puede afi rmarse que la historia de la ciencia jurídica europea comenzó antes que la historia de Europa. Esta afi rmación en absoluto es absurda ya que Europa es una realidad de orden cultural: representa un conjunto de elementos culturales que se han concretado en un espacio geográfi co dado. Ciertamente, el derecho romano no podía revestir, en época romana, un carácter europeo. Dicho carácter lo adquirió después de la formación de Europa, pero esto sucedió sin que por ello perdiera su identidad, pues siguió siendo individualizado siempre como derecho romano7.

Europa se encuentra actualmente en una encrucijada jurídica al querer construir una realidad supraestatal entre todos los pueblos del viejo continente8. Lo que no se debe olvidar, por ser esencial, es que uno de los instrumentos de unión entre sus pueblos es el de compartir un mismo orden normativo. El derecho, que siempre ha sido un producto histórico, es quien ha de facilitar en estos momentos el que Europa confi gure de la forma más acertada posible su propia realidad. Es imposible construir la Unión Europea desvinculándola de su pasado. Para redescubrir su propia identidad, Europa debe volver a sus raíces, de tal forma que aprendiendo de sus propias experiencias históricas, ya sean legales, ya sean lingüísticas, ya sean sociales, confi gurar con bases sólidas su realidad de presente y de futuro.

Hace ya algunas décadas que asistimos a un proceso de unifi cación política que ha originado la realidad supraestatal que todos conocemos; de este proceso de unifi cación política y como una consecuencia ineludible de él, los constructores europeos han pretendido conformar de forma progresiva un orden normativo comunitario, que se confi gurase como la estructura jurídica que precisaba el nuevo ente público. Si la fase de unifi cación política está inconclusa, la de unifi cación jurídica está todavía en un estadio más temprano. El desarrollo de un derecho comunitario aplicable en toda la comunidad es todavía incipiente, pues es más lo que queda por legislar que lo que ya ha sido regulado.

La presencia del derecho romano en el devenir de la ciencia jurídica europea, amén de relevante, ha sido una constante histórica. Nadie discute el que uno de los rasgos propios defi nidores de la cultura común europea es el modo de concebir el derecho, así como el que una gran parte de su contenido se debe a la elaboración jurisprudencial del derecho romano, que tras la pérdida de vigencia histórica fue estudiado, analizado y transmitido, a través de la enseñanza autónoma, en todos los centros del saber europeos desde los maestros glosadores de Bolonia de fi nes del siglo XI9.

En el momento presente, en el que se trata de lograr un orden jurídico común en el seno de la Unión Europea, el derecho romano tiene todavía una función insustituible

7 Vid. STEIN, P.G., El Derecho romano en la historia de Europa. Historia de una cultura jurídica, (trad. español C. Hornero y A. Romanos), Madrid, 2001.

8 Vid. FERNÁNDEZ DE BUJÁN, F., Sistema contractual romano, 3ª ed., Madrid, 2007, 481 ss.9 Vid. FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Sistema contractual romano, cit., 491 ss.

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que cumplir: tanto en lo relativo a las construcciones jurídicas, patrimonio común de los juristas europeos, como en su espíritu, que ha sido y es el inspirador de los nuevos textos de derecho positivo.

El derecho privado romano invade la mayor parte de los actos ordinarios y extraordinarios de la vida de una persona. Si decimos propiedad o posesión; usufructo, hipoteca, servidumbre, derecho real; si entendemos el contrato o el delito; si pronunciamos compraventa, arrendamiento, mandato, sociedad; si nos referimos a acción o a proceso; si conocemos el sentido de la herencia, el testamento, el legado; si hacemos nuestros todos estos conceptos así como otras muchas instituciones jurídicas no mencionadas; si estamos familiarizados con ellos y sabemos lo que queremos decir; si conocemos básicamente su signifi cado; si esto le sucede a cualquier habitante de cualquier territorio de Europa; y si esta cultura jurídica nos resulta cotidiana y normal; es porque en otro tiempo, desde los comienzos de siglo I, hace veintiún siglos, todo el viejo continente y sus habitantes, prácticamente ininterrumpidamente hasta hoy, han vivido en contacto diario con estas fi guras e instituciones jurídicas, que a pesar de ser hoy patrimonio de la humanidad, especialmente de los ordenamientos jurídicos europeos, fueron concebidas, desarrolladas y reformadas por los juristas romanos hasta alcanzar una confi guración imperecedera y universal.

El mismo reconocimiento que de las categorías jurídicas privadas, puede hacerse de innumerables conceptos de derecho público. La organización provincial que se estableció en el mundo romano los primeros siglos de nuestra era delimitó en gran manera el mapa político de la Europa que hoy conocemos. La forma de hacerse presente el poder político en el ámbito provincial y las facultades conferidas a los representantes de la metrópoli en los territorios sometidos al poder de Roma, se mantienen vigentes en numerosas instituciones regionales y provinciales con competencias territoriales.

Por poner algún ejemplo, muchas cuestiones, teóricas y prácticas, del derecho administrativo actual, como por ejemplo, en materia de obras públicas, concesiones y autorizaciones, orden público, policía central, local, funeraria, asistencia sanitaria, etc., leyes municipales, son realidades del derecho público romano que todavía tienen mucho que enseñar y tomarse como punto de referencia en el proceso de construcción supranacional de la Unión Europea. La verdad es que en ningún derecho que no sea el romano, se encuentra Europa a sí misma en la ordenación jurídica, política y administrativa de la sociedad.

Pudiera parecer que el derecho romano poco puede aportar hoy en día a la construcción de un nuevo derecho común europeo, pero no es así, pues sigue siendo posible defender su utilidad sobre todo porque en Europa no se va a inventar ningún ordenamiento nuevo strictu sensu sino que se va a partir de aquellas regulaciones comunes y tradicionales a todos sus pueblos, y esa regulación común mal que pese a muchos: por su conceptualización, su terminología, sus categorías jurídicas, su espíritu, no es otro que el ordenamiento romano recibido a través de muchos siglos de

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aplicación y estudio en el vieja Europa, desde donde ha sido exportado a tantos y tantos ordenamientos jurídicos como existen en Iberoamérica y que no son más que derecho romano tamizado por el derecho castellano o el francés o el portugués, todos ellos, sin duda, ordenamientos que se denominan de origen romanístico.

El derecho romano ha jugado y sigue jugando un papel básico en la confi guración de Europa. No podemos olvidar que el ius commune fue derecho supletorio en toda Europa durante más de siete siglos; y no se puede pensar que ese modelo histórico, el ius commune sea un modelo superado del que no cabe extraer ninguna aportación. Pero no nos engañemos, ese derecho común sobrevive solamente hasta las distintas codifi caciones civiles del siglo XIX, ahora bien, su pervivencia desde entonces se constata en el propio contenido de esos cuerpos legales por los cuales aún nos regimos; y esa regulación de las instituciones que se recogen en sus articulados es deudora de los conceptos y las instituciones del derecho romano fundido en el ius commune medieval.

Para una confi guración plena y equilibrada desde un punto de vista especialmente jurídico, el derecho común europeo no debe ser inventado, porque además de ser materialmente imposible prescindir de las categorías jurídicas ya existentes, esenciales para armonizar y regular nuestras relaciones, se estaría creando un derecho artifi cial, superfi cial y por lo tanto con toda seguridad efímero. Además, sería un error crear un derecho resultado de lo que ha dado en llamarse ingeniería jurídica sobre la base de criterios inspirados en políticos tecnócratas.

Sin llegar a una exaltación enfermiza del pasado, y acogiéndose a la llamada moral del naufrago, que consiste en salvar aquello estrictamente necesario, se puede construir un derecho común europeo con unos sólidos cimientos basados en el derecho romano y en el ius commune medieval y moderno. Eso sí, es preciso adaptarlos a las nuevas necesidades del momento actual. La gran ventaja es que el tiempo ha sido un buen banco de pruebas que facilita unos materiales jurídicos contrastados y consolidados de los cuales sería una barbaridad prescindir a la hora de confi gurar Europa.

En defi nitiva, el derecho romano es la casa común del jurista europeo. En el derecho romano encuentra el jurista de derecho positivo principios y contenidos que le permiten criticar y analizar con profundidad y sobre todo con continuidad histórica las soluciones que a lo largo del tiempo se han dado a las distintas realidades jurídicas. No olvidemos que las necesidades humanas en orden a las relaciones jurídico-privadas siguen siendo hoy las mismas que en Roma, que supo plasmar en el plano jurídico, y de un modo insuperable, esas mismas relaciones.

Un ordenamiento jurídico europeo que tenga presente sus antecedentes histó-ricos, que básicamente se centre en el derecho romano, nunca parecerá extraño a ninguno de sus pueblos en los que se pretende aplicar, pues cada uno de ellos podrá reconocer en ese ordenamiento jurídico unitario, parte de una historia pretérita común y parte de su propio derecho presente, enriquecido con lo mejor de la realidad actual de cada una de las otras tradiciones jurídicas nacionales.

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El derecho romano es el de mayor presencia histórica en la realidad política de nuestro tiempo. Hubo otros derechos en la antigüedad (griego, hebreo, egipcio, etc.), pero el que más ha infl uido en la formación jurídica de Europa ha sido el romano. Desde la fundación de Roma en el año 754 a.C. hasta la culminación recopilatoria del derecho clásico por Justiniano, que falleció en el año 565 d.C., son más de catorce siglos en los que el ordenamiento jurídico romano tuvo presencia en Europa, aún sin ésta existir técnicamente hablando.

Si a esta vigencia histórica se le añade la continuidad del Imperio Romano en Oriente hasta el siglo XV con su producción de derecho bizantino y si además sumamos la supervivencia legal del derecho romano en Occidente a partir del siglo XII, en su condición de ius commune por medio de la aplicación judicial y de las glosas hechas a los textos justinianeos por los glosadores y los comentaristas, hasta llegar a la cristalización de los principios y las instituciones del derecho romano en los distintos procesos codifi cadores de las diferentes naciones del continente, se puede afi rmar que la historia jurídica europea es, en una gran parte, la historia del surgimiento, vigencia y supervivencia del ordenamiento jurídico romano.

En defi nitiva, el derecho romano contribuyó a la elaboración de las codifi caciones civiles europeas, no solo a través de su creación jurisprudencial, sino también a través del proceso de estudio, exégesis y sistematización que constituyó su recepción en la ciencia jurídica europea. Con base en todo lo anterior, podemos apuntar que en nuestras relaciones con los países de la Europa continental, sobre todo, el derecho romano puede ser un buen punto de conexión entre todos sus sistemas jurídicos, pues al ser la inmensa mayorías de ellos de base romanística, resulta más fácil su conocimiento y comprensión, a la vez que facilita el estudio del derecho comparado, pues construir la historia jurídica europea es reconstruir, en gran medida, la historia del derecho romano en Europa.

En el ámbito de la Unión Europea las iniciativas de leyes uniformes se encuentran con el obstáculo de la diversidad del lenguaje jurídico. Pues bien, la lengua será probablemente el inglés pero el derecho romano ha de servir sobre todo como base de las nociones jurídicas comunes que permitan facilitar el dialogo y construir la regla “igual” para todos. Todo ello queda gráfi camente expresado con una frase que aparece en la exposición de motivos del Código de Napoleón, atribuida a uno de sus autores, Portalís, : “Hemos levantado en parte nuestro edifi cio legislativo con los materiales que nos han transmitido los jurisconsultos de Roma. Roma ha subyugado a Europa con sus armas y lo ha civilizado con sus leyes”.

Es decir, “el derecho escrito, que se compone de leyes romanas, ha civilizado Europa”10 . A ello se debe añadir que el derecho romano ha infl uido tanto en el orden jurídico europeo que se ha convertido en un utilísimo auxiliar interpretativo del derecho positivo, por cuanto los códigos no representan sino el punto histórico fi nal en la evolución de un principio

10 PORTALIS, J.E.M., Discurso preliminar al Código civil francés (trad. I. Cremades y L. Gutiérrez-Masson), Madrid, 1997, 50.

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jurídico, el cual será bien comprendido cuando se analice la raíz remota de donde proceda. Además, todo cuanto tenemos no deteriorado del derecho civil y sin necesitar continuos retoques lo hemos recibido del derecho romano tal como nos lo dejaron los autores del ius commune. Después no hemos hecho sino compilar, codifi car, conceptualizar, clasifi car, sistematizar y fabricar dogmas jurídicos11.

Tal ha sido la importancia del derecho romano en la actual confi guración europea, al menos desde el punto de vista jurídico, que a medida que se avanza en la consolidación efectiva de la Unión Europea se observa la urgente necesidad de superar la dispersión legal de los distintos sistemas normativos de los estados que la conforman. Un ejemplo muy representativo es el Anteproyecto de Código Europeo de Contratos12 que se enmarca en la tendencia de unifi cación legal perseguida a lo largo de todo el siglo veinte y que esperemos se consolide en el veintiuno. Dicho Anteproyecto, muy avanzado en su elaboración, tiene como fi n primordial superar las diferencias y contrastes de los distintos ordenamientos europeos al objeto de conseguir una efi cacia real.

A lo largo de todo el proceso de elaboración del Código Europeo de Contratos se ha puesto de manifi esto la necesidad de huir de la artifi ciosidad y buscar, por el contrario, unas bases comunes que permitan aunar a los distintos sistemas. Por inverosímil que parezca, amén de mantener como estandarte el principio de la autonomía de la voluntad, propio de todos los ordenamientos europeos, destaca el origen e infl uencia del derecho romano y de su proyección histórica en la inmensa mayoría de los sistemas de derecho privado que ahora se pretenden armonizar (unifi car). La infl uencia se va a producir irremediablemente porque el mencionado Código Europeo de Contratos se ha elaborado por una Comisión de juristas, sobre los que pesa, lo quieran o no, una importante formación romanística, e incluso alguno ha sido romanista de reconocido prestigio como F. Wieacker13.

Por otro lado, se ha tomado como punto de referencia y auxilio de las discusiones el Código Civil italiano, concretamente su libro 4º, a propuesta del Prof. G. Gandolfi , para proceder a plasmar, modifi car, corregir o ampliar todo lo que sea necesario. Pues bien, lo que resulta innegable es que el Código civil italiano es de base romanística, por ello el lenguaje, los términos y los conceptos van a ser comunes a la inmensa mayoría de los ordenamientos jurídicos europeos, pues el repertorio de conceptos básicos del derecho privado europeo tradicionalmente proceden del derecho romano.

Asimismo, la jurisprudencia romana nos enseñó que el jurista debe apegarse a la resolución del problema concreto, liberándose en la medida de lo posible de los excesos

11 VALLET DE GOYTISOLO, J., Metodología jurídica, Madrid, 1988, 125.12 Vid. VATTIER FUENZALIDA, C., El Derecho europeo de contratos y el anteproyecto de Pavía, en A.D.C.,

tomo LXI, fasc. IV, 2008, 1841 ss. 13 Vid. JURISTAS UNIVERSALES, Juristas del s. XX, (R. DOMINGO, ed.) vol. IV, Madrid, 2004, s.v. Franz

Wieacker, 538 ss.

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teóricos, por ello es apreciable que el Código Europeo de Contratos busque soluciones prácticas prescindiendo de los grandes enunciados dogmáticos.

Evidentemente, los codifi cadores no solamente se apoyan en los códigos de la Europa continental, principalmente en el italiano, sino que además tienen en cuenta la codifi cación del derecho de contratos vigente británico representado en el Contract Code del Profesor McGregor, pues el objetivo, no se olvide, es superar la dualidad del civil law y el common law para obtener la unifi cación efectiva que supere el pluralismo legal en materia de obligaciones y contratos, y a la vez no presente especiales difi cultades su aplicación en ninguno de los países miembros de la Unión.

En consecuencia, con la elaboración del Código Europeo de Contratos14 se está consolidando la vieja tendencia de no romper con la infl uencia de la historia en el proceso de formación del derecho europeo. Nos encontramos, pues, ante una manifestación tardía de todo el proceso codifi cador que comenzó allá en el siglo diecinueve, continuó en el veinte, y ahora, en el veintiuno, con carácter supranacional. Este proceso viene a confi rmar aquel otro que comenzó con la compilación del derecho privado romano en el Corpus Iuris Civilis, su posterior estudio por los glosadores, comentaristas, humanistas, racionalistas, etc. hasta llegar a la Pandectística y a la Escuela Histórica alemana y posteriores codifi caciones civiles europeas.

A los romanistas nos gustaría, aunque somos conscientes de que no se va a producir, que en el futuro Código Europeo de Contratos se hiciera alusión directa y sin complejos a todas las infl uencias recibidas del derecho romano. Obviamente, nuestro derecho vigente tiene su antecedente en el derecho romano y ejemplos de ello pueden ponerse, pero un detalle muy gráfi co se deduce de la legislación más reciente si acudimos ad exemplum al derecho catalán, pues en sus últimas leyes pueden leerse referencias explícitas al derecho romano.

Así, en el Código de sucesiones por causa de muerte en el derecho civil de Cataluña, en su Preámbulo, se dice expresamente que “No se modifi can, por lo tanto, los grandes principios propios del Derecho romano, tan arraigados en el Derecho sucesorio catalán”15. En la Ley que regula los derechos reales16 , también en el Preámbulo, se recuerda que aún existen instituciones de origen romano, por ello se “mantiene, actualizadas profundamente, instituciones tradicionales en el derecho catalán, algunas de ascendencia romana, como son el usufructo y sus diminutivos o las servidumbres”; e igualmente en la Ley por la que se crea el Código civil de Cataluña17 hace en varias ocasiones referencia al derecho romano para reconocer el origen remoto y, a veces superado, de algunas de sus instituciones jurídicas.

En fi n, lo que se pretende es recordar que el ordenamiento jurídico romano es el inspirador de muchos de los principios del derecho europeo; no obstante, su

14 Vid. texto en Código Europeo de Contratos. Academia de Iusprivatistas Europeos (Pavía), 2 tomos, (dirts. C. Vattier et alii), Madrid, 2003.

15 Ley 40/1991, de 30 diciembre: Código de sucesiones por causa de muerte en el Derecho Civil de Cataluña.16 Ley 5/2006, de 10 de mayo, del Libro Quinto del Código Civil de Cataluña, relativo a los derechos reales.17 Ley 29/2002, de 30 de diciembre, primera Ley del Código civil de Cataluña.

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recepción viene matizada por el devenir histórico, de tal modo que una cosa es que los grandes principios ondeen sobre la legislación y otra bien distinta que la regulación del particularizado casuismo sea idéntica. El derecho romano debido a su implantación en prácticamente todos los planes de estudios jurídicos del mundo, eso sí, con intensidad y objetivos distintos, se ha convertido en una ciencia supranacional cuya importancia crece en proporción directa a las divergencias que existan entre los sistemas jurídicos, en este caso, europeos. Se trata del elemento histórico necesario para la interpretación de los ordenamientos europeos continentales.

No olvidamos, obviamente, que el derecho romano ha infl uido más en unas zonas que en otras del derecho privado, así, esa infl uencia es más acusada en materia de obligaciones y contratos y sucesiones que en materia de familia por ejemplo, de ahí su importancia en relación con el Código Europeo de Contratos18. En consecuencia, y aunque parezca que hacemos apología de la ciencia jurídica romana, conviene recordar que el saber humano no es más que la historia de la actividad del espíritu, y su transmisión solamente se obtiene a través de un exacto inventario de conceptos esenciales19. Las categorías jurídicas son como las categorías lógicas que sólo cambiarán cuando cambie la naturaleza del hombre20.

O DIREITO ROMANO COMO ELEMENTO DE HARMONIZAÇÃO DO NOVO DIREITO COMUM EUROPEU

Resumo: No âmbito da União Europeia, o Direito compõe-se de uma gama de ordenamentos jurídicos autônomos que demandam uma aproximação entre si. Como todos estes ordenamentos são de base romanística, especialmente os da Europa ocidental, o Direito Romano deve ter um papel transcendental na sua futura harmonização, sem que por seu intermédio seja suprimida a diversidade jurídica própria de cada povo que integra a referida união.

Palavras-chave: União Europeia. Harmonização jurídica. Direito Romano. Direito comum europeu.

18 Si el prestigioso historiador italiano P. GROSSI, La propiedad y las propiedades. Un análisis histórico, (traducción y “Prólogo para civilistas” de A. M. López y López), Madrid, 1992, 123 ss., veía de forma imaginaria al Code civil napoleónico como un palimpsesto jurídico, lo mismo podríamos decir del Código Europeo de Contratos por cuanto si por palimpsesto entendemos el “manuscrito antiguo que conserva huellas de una escritura anterior borrada artifi cialmente” (defi nición diccionario RAE), podría decirse que en este Proyecto, en algunos de sus apartados, si analizamos las disposiciones jurídicas que subyacen y que artifi cialmente se han querido borrar, encontramos el derecho romano en su máximo esplendor.

19 Vid. CASAVOLA, F.P., L’educazione del giurista tra memoria e ragione, INDEX, 19, 1991, 325. 20 Sull’Europa, sull’insegnamento e l’applicazione del diritto romano (1922-1974): citazioni scelte di Giorgio La

Pira, a cura di P. CATALANO, INDEX, 23, 1995, 32.

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Clasicidad del Derecho Fiscal Romano

Para el Profesor Agerson Tabosa, querido amigo y prestigioso romanista, con todo afecto.

Antonio Fernández de Buján y FernándezProfessor catedrático de Direito Romano na Universidade Autônoma de Madri (Espanha)[email protected]

Sumario: I. Observaciones preliminares. II. Clasi-cidad del léxico fi scal y tributario. III. Instrumentos de política fi nanciera. IV. Fundamento de la im-posición fi scal.

Resumen: La denominación y conformación de numerosos conceptos e instituciones del moderno derecho fi nanciero, así como el contenido de un amplio número de disposiciones específi cas en la materia, tienen su precedente histórico en la terminología y regulación de los pilares básicos que, en las distintas etapas caracterizan el orde-namiento jurídico romano, en materia tributaria

Palabras clave: Ius fi scale. Fiscus. Thesaurus. Tributum. Instrumentos de política fi nanciera.

I. Observaciones preliminares: En materia de régimen jurídico fi scal, de iure fi sci, asombra el rigor y la modernidad de las instituciones sobre las que se cimienta la Hacienda Pública Romana, así como el novedoso tratamiento atribuido por la jurisprudencia y la legislación romana a sus principios informadores e inspiradores, y a las cuestiones básicas de su sistema impositivo1.

1 El Título XIV del Libro 49 del Digesto lleva por rúbrica <De iure fi sci>, Del derecho del Fisco, y su contenido se distribuye a lo largo de 50 capítulos dedicados al régimen fi scal. Se rubrica asimismo con idéntica expresión, <De iure fi sci>, el Título primero del Libro décimo del Código Justinianeo, con un contenido estructurado en once capítulos. Por otra parte, la gran mayoría de los 56 Títulos que com-ponen el Libro décimo del Código de Justiniano, se refi eren a materias relacionadas con el Fisco, Fiscus y el Tesoro Público, Thesaurus. Tres juristas romanos, Paulo, Calistrato y un tercer autor, de nombre desconocido, rubrican asimismo sus obras con la expresión: <De iure fi sci>.

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La denominación y conformación de numerosos conceptos e instituciones del moderno derecho fi nanciero, así como el contenido de un amplio número de disposiciones específi cas en la materia, tienen su precedente histórico en la terminología y regulación de los pilares básicos que, en las distintas etapas caracterizan el ordenamiento jurídico romano, en materia tributaria: el erario, aerarium, el fi sco, fi scus y el tesoro público, thesaurus.

La concepción conforme a la cual el Derecho Administrativo moderno surge en el siglo XIX se debe, en buena medida, a mi juicio, a la ausencia de una reconstrucción dogmática del Derecho administrativo romano, incluyendo, por supuesto, en este ámbito, toda la materia relativa al Derecho Fiscal. La problemática correspondiente a la Administración ciudadana romana espera todavía, a mi juicio, ser estudiada en profundidad, y no sólo por un mero interés histórico, sino también para conocer mejor el Ordenamiento jurídico contemporáneo, que en buena medida es tributario de instituciones y disposiciones, de naturaleza público- administrativa, previstas en el ámbito estatal, provincial y municipal de la comunidad política romana.

Todos los ordenamientos jurídicos, incluso los más simples tienen una estructura u organización, integrada por normativa, hechos y actividad de orden administrativo, que en el caso de Roma se manifi estan en un nivel de desarrollo semejante a la importancia histórica y al grado de expansión de su comunidad política.

En la sociedad romana, en constante expansión y desarrollo, se encuentran, en suma, planteadas y satisfactoriamente resueltas, como ha sido puesto de relieve por los autores que se han ocupado de estos temas, muchas de las grandes cuestiones teóricas y prácticas de la Administración actual, así: en materia de interdictos públicos, aguas, vías y minas públicas, limitaciones públicas al derecho de propiedad, libertad de expresión, competencia territorial, ciudadanía y domicilio, enseñanza pública, saneamiento fi nanciero, régimen fi scal aduanero, empleados públicos, responsabilidad administrativa, privilegios de la administración, garantías de los ciudadanos, bienes patrimoniales y públicos, cosas comunes, obras públicas, concesiones y autorizaciones públicas, servicios públicos prestados por sociedades privadas, orden público, policía central, local, funeraria y edilicia, asistencia pública sanitaria o relaciones entre la Administración central y las administraciones periféricas2.

2 En los últimos años, se han leído, bajo mi dirección, diez Tesis Doctorales, en temática de Derecho Administrativo y Fiscal Romano, así como se han publicado, diversos estudios específi cos sobre esta materia, que se han materializado en una Colección de Monografías que, bajo ese mismo título, han ido viendo la luz en la Editorial Dykinson, y cuyo objetivo último va dirigido a colmar, en un futuro próximo, la laguna -denunciada ya en siglos pasados por Ihering y Schulz, entre otros relevantes romanistas-, y el reto científi co, que supone la inexistencia de un Tratado de Derecho Administrativo y Fiscal Romano. Al respecto cabe señalar: CASTÁN PÉREZ, Régimen jurídico de las concesiones administrativas en Derecho Romano (1996); ALBURQUERQUE, La protección o defensa del uso colectivo de las cosas de dominio público (2002); PENDÓN MELÉNDEZ, Régimen jurídico de la prestación de servicios

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No se trata pues, en defi nitiva, tan sólo de constatar la existencia de prece-dentes, en el curso de la historia, de los principios e instituciones actuales de derecho administrativo y de derecho fi scal, sino de estudiar el derecho como un producto histórico, en su desarrollo orgánico, desde su origen hasta el derecho actual, que vaya más allá de una mera perspectiva historicista o economicista, y posibilite la reconstrucción dogmática, sin menoscabo de la necesaria exégesis textual, de estas dos ramas del conocimiento del ius publicum romano, con lo que ello supone de contribución a la deseable conexión entre la investigación histórica y la dogmática moderna, tan necesaria para el progreso de la ciencia del derecho3.

II. Clasicidad del léxico fi scal y tributario: El actual derecho fi nanciero y tributario, que recibe su nombre del ius fi scale romano y de la voz tributum, al igual que los demás sectores del Ordenamiento Jurídico, no puede ser rectamente entendido, sino a través del hilo conductor que supone su proceso histórico. En este sentido, al igual que sucede con otras materias de derecho público, como el derecho administrativo o el derecho penal, que no han sido estudiadas por la romanística con la profundidad que se deriva de su relevancia histórica, se hace necesaria una visión dogmática del ius fi scale romano, que al propio tiempo que resulte respetuosa con la realidad histórica, sin por ello renunciar a la utilización de esquemas conceptuales modernos, destaque los aspectos e instituciones de la antigüedad clásica en este ámbito del conocimiento jurídico, con especial consideración de aquéllos que resulten de mayor interés para el jurista actual.

públicos en derecho romano (2002); GIMÉNEZ BARRIOCANAL, La actividad económica en Derecho Romano. Análisis contable (2004); RODRIGUEZ ENNES, Gallaecia: romanización y ordenación del territorio (2004); PONTE ARREBOLA, Régimen jurídico de las vías públicas en Derecho Romano (2007); VARELA GIL, El estatuto jurídico del empleado público en Derecho Romano (2007); AGUDO RUIZ, El advocatus fi sci en Derecho Romano (2007); MALAVÉ OSUNA, Régimen jurídico fi nanciero de las obras públicas en Derecho Romano: los modelos privado y público de fi nanciación (2007); LÓPEZ HUGUET, Régimen jurídico del domicilio en Derecho Romano (2008); GERÉZ KRAEMER, El dere-cho de aguas en Roma (2008); BRAVO BOSCH, El largo camino de los hispani hacia la ciudadanía (2009); ZAMORA MANZANO, Algunos aspectos sobre el régimen fi scal aduanero en el Derecho Ro-mano: Reglamentación jurídica del portorium, control de mercancías y comiso por fraude fi scal (2009).

3 A la necesidad asimismo de abordar la fi scalidad romana, desde un punto de vista dogmático, lo que no supone, en modo alguno, <hacer de buceador de la historia, zambulléndose en las profundidades insondables del pasado, para emerger con un precedente en la mano en materia fi scal>, se refi ere BLANCH, Juan M., en Principios básicos de justicia tributaria en la fi scalidad romana, en Revista de Derecho Financiero y Hacienda Pública XLVIII 247 (Madrid 1998) 55 ss., y en Ordenación sistemáti-ca del derecho fi nanciero y tribu¬tario actual y Derecho fi scal romano, en Xornadas e Seminarios: Derecho Administrativo Histórico 1 (2005) 77 ss.

El vacío existente en el ámbito de los estudios dedicados a la materia fi nanciera en Derecho Romano, en sus dos vertientes de gastos e ingresos, ha sido asimismo subrayado, desde la orilla de los fi scalistas de Derecho positivo, en un reciente estudio, por APARICIO, Aportaciones del Derecho Romano a la fi scalidad moderna, en RGDR. (www.iustel.com) 12 ( junio 2009).

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En el marco de la propia experiencia jurídica romana, se produce, por otra parte, una progresiva evolución en la confi guración de los conceptos e instituciones fi scales, con la fi nalidad de adaptarse a las profundas transformaciones que experimenta la sociedad y la economía romana con el devenir de los tiempos4, si bien, ni las contingencias históricas, ni la dispersión de las fuentes de información, impiden reconocer el rico material jurídico que ha sido utilizado por los juristas de siglos posteriores para la construcción del moderno Derecho fi nanciero5.

Constituye una primera manifestación de esta pervivencia del ius fi sci romano, el lenguaje propio de esta rama del conocimiento científi co, dado que numerosos tér¬minos profusamente utilizados en los textos romanos perduran aún hoy en el moderno léxico de las fi nanzas, así: ius fi sci y de iure fi sci, derecho del fi sco ,ius fi scale, derecho fi scal; aerarium, erario, fi scus, fi sco, thesaurus, tesoro público, fraus fi sci, fraude fi scal, tributum, tributo, stipendium, estipendio, census, censo, , advocatus fi sci, abogado del fi sco, causa fi scalis, causa fi scal, debitor fi sci, deudor del fi sco, debitor fi scalis, deudor fi scal, procurator fi sci, procurador fi scal; praefecti aerarii, prefectos del erario; onus tributi, carga tributaria, forma iuris fi scalis, regulación fi scal, comissum, decomiso o confi scación aduanera de objetos no declarados; delator fi scalis, delator fi scal; delationes fi scales, delaciones fi scales; causae ex quibus nuntiatio ad fi scum fi eri solet, causas por las que suele hacerse la denuncia al fi sco; conductor ex fundo fi scali, arrendatario de un fundo fi scal; de iure hastae fi scalis, subasta a favor del fi sco, etc6.

4 Vid., al respecto, en FERNÁNDEZ DE BUJÁN, A., Perspectivas de estudio en temática de Derecho Administrativo romano surgidas a tenor del pensamiento y de la obra de Giambattista Impallomeni, en Index 26 (1998) 463 ss; Derecho administrativo histórico. Dir., Xornadas e Seminarios, Ed. Escola Galega de Administración Pública (2005); Instituciones, hechos y actividad de orden administrativo en la experiencia jurídica romana, en Xornadas e Seminarios: Derecho Administrativo Histó¬rico 1 (2005) 119-158.

Con carácter general, especial relieve supuso respecto a la investigación del derecho administrativo romano, la aparición de la obra de SERRIGNY, Droit public et administratif romain 2 ( París 1862).

5 A propósito de la posición dogmática del ius fi scale en el marco del Ordenamiento Jurídico Romano, vid. en CERAMI, “Contrahere cum fi sco” en Annali Palermo 34 (1973) 277 ss.; Richerche romanis-tiche e prospettive storico-comparatische, en Annali Palermo 43 (1996) 386 ss.; Aspetti e problema di diritto fi nanciero romano (Torino 1997); BOULVERT, L autonomie du droit fi scal: le cas des ventes, en Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt II.14 (1982) 816 ss.

En fecha reciente, cabe destacar asimismo al respecto la opinión de BLANCH en Ordenación cit., 90 ss. y en Principios cit., 53 ss., relativa a la progresiva confi guración del ius fi sci como un cuerpo de derecho objeto de atención monográfi ca por parte de la jurisprudencia clásica y de la legislación impe-rial, así como a su naturaleza híbrida y paulatina confi guración como una nueva realidad susceptible de satisfacer las crecientes necesidades públicas, vid. en BLANCH, Ordenación cit., 109 ss.

6 Acerca de los diversos términos utilizados en materia de derecho fi scal, cabe destacar las distintas voces escritas por: LUZZATO así, voz Imposta, en NNDI. VIII; voz Portorium, en NNDI. XIII; voz Munera, en NNDI. XVIII; voz Stipendium, en NNDI. XVIII; voz Tributum, en NNDI. XIX; voz Vicessima hereditatium, en NNDI. XX.; BURDESE, voz Decima, en NNDI. V; SPAGNUOLO VIGORITA y MERCOGLIANO, voz Tributi, en Enciclopedia del Dir. XLV.

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Los términos romanos para designar el impuesto son: tributum-stipendium, por un lado, y vectigal, por otro, sin que exista una neta distinción entre estos distintos vocablos a lo largo de los siglos7.

El tributum, al igual que el stipendium, el primero, desde la perspectiva del que paga, con el signifi cado de contribución, y el segundo, desde la del que recibe, con el signifi cado de sueldo militar o soldada fue, en sus orígenes, un impuesto establecido para atender los gastos derivados de las continuas guerras.

Etimológicamente, tributum deriva de contribuere, con el signifi cado de contribuir y de ahí contribución, y stipendium, de stips, moneda y de pendere, pagar. En una primera época, el tributum tenía un carácter básicamente territorial, tributum soli. Con posterioridad, se procedía, para el pago del tributum, a una valoración de todo el patrimonio del ciudadano, conforme a los datos que constaban en el censo y sobre el resultado de la estimación, se determinaba la cuota consistente, por regla general, en un 1, 2 o 3 por mil8.

Del tributum civile, es decir, sobre los ciudadanos romanos, debe distinguirse el tributum provinciale, que es aquél que recae sobre los residentes en las provincias. El primero, como ya ha sido señalado, surge como consecuencia de la necesidad de la comunidad de recabar la cooperación de sus miembros en empresas bélicas. Es un impuesto que grava el patrimonio, y no un mero impuesto sobre bienes raíces, y resulta más aceptable, en la mentalidad romana, que el impuesto sobre la propia persona, tributum capitis, expresión que signifi ca, de modo literal, tributo sobre la cabeza, es decir, contribución personalizada, en el sentido de atinente a la persona a título singular, cuya legitimidad de resultaba de más difícil asunción, en su concepción, por parte de la ciudadanía romana. Con el tributum capitis, se grava, en una primera época, a quienes carecen de patrimonio inmobiliario, para confi gurarse, con posterioridad, asimismo como una contribución por el patrimonio personal.

El stipendium, en los primeros siglos, era una contribución recaudada entre los pueblos itálicos vencidos o sometidos a la comunidad política romana, y se destinaba al pago del sueldo de los soldados del ejército romano. A partir del siglo II, el estipendio

7 Vid en: DI RENZO, Il sistema tributario romano (Napoli 1949); CICCOTTI, Lineamenti dell’evoluzione tributaria nel mondo antico, en I tributi e l´amministrazione fi nanziaria nel mondo antico (Padova 1960); GRELLE, Stipendium vel tributum. L´imposizione fondiaria nella docttrine giuridiche del II e III secolo (Nápoles 1963); CORBIER, L´impot dans l´Empire romain, résistences et refus, I-III siécle (Leiden 1985); D´AMATI, Natura giuridica dell´imposta fondiaria (Milano 1956); MUÑIZ COELLO, Las fi -nanzas públicas del estado romano en el alto imperio (Madrid 1990); CAMACHO DE LOS RÍOS, Vectigalia. Contribución al estudio de los impuestos en Roma (Granada 1995).

8 Vid. en: THIBAULT, Les impôts directs sous le Bas-Empire romain, en Revue Generale du Droit XIII (1899); NICOLET, Tributum. Recherches sur la fi scalité directe sous la Republique romaine (Bonn 1976); CICCOTTI, Lineamenti cit.

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se confi gura ya como una tributación regular y anual, exigible a los pueblos sometidos o aliados -y de ahí la denominación de estipendiarias a las ciudades obligadas al pago de este impuesto-, lo que supone la desvinculación del stipendium de la idea de la contienda bélica y su consideración como una fuente regular de ingresos para el erario, con los que se sigue procediendo al abono de la soldada a los legionarios, pero ya entendida como una obligación más de la administración del estado.

Cabría decir, en suma, que los distintos tipos de tributos mencionados conforman la categoría que, con terminología moderna, se correspondería con la actual de los impuestos directos, que son aquellos que gravan la mera existencia de la persona, su capacidad económica o su patrimonio y que, conforme a la concepción romana, o bien tienen carácter básicamente territorial, como el tributum soli, que han de satisfacer los habitantes de las ciudades por la posesión del suelo, o bien carácter personal, como el tributum capitis.

Los términos vectigal, y vectigalia, en plural, se utilizan con signifi cados diferentes, si bien todos ellos están conexionados por la idea de la renta o tributo obtenido por una institución pública. Etimológicamente, vectigal derivaría de vehere, en el sentido de llevar, transportar, acarrear o conducir, por lo que su denominación quizás obedeciese a la idea de gravar de las labores propias de la actividad agrícola y ganadera desarrolladas en el ager publicus. Es probable, asimismo, que en su utilización primigenia, con el vocablo vectigal, se hiciese referencia al tributo o gravamen que, con la fi nalidad de contribuir a las cargas de la Administración Pública, estaban obligados abonar los concesionarios de bienes públicos9.

El término vectigal -que se acabó utilizando en un sentido amplio, que abarcaba, en la práctica, todo tipo de imposición, lo que supuso la absorción en su seno de los vocablos tributum y stipendium, de notable raigambre histórica- adopta, de forma preferente, la signifi cación de «impuesto indirecto», entendido en el sentido, aún a sabiendas de todas las difi cultades que plantea en la doctrina moderna este concepto, que le dan los estudiosos clásicos del Derecho fi nanciero en Roma, a saber: como aquel impuesto que se exige en virtud de la realización eventual o accidental de un hecho, que en alguna medida se relaciona con la capacidad económica de la persona,

9 Así en D. 50.1.16.17.1: <Debemos entender por <tributos públicos> aquellos que recibe el fi sco como una contribución o vectigal, así en el caso de los puertos, las mercancías que son objeto de venta, las salinas, las minas y los establecimientos de pescadería: <Publica vectigalia> intelligere debemus, ex qui-bus vectigal fi scus capit, quale est vectigal portus, vel venalium rerum, ítem salinarum, et metallorum, et piscariarum>, y en Gai. 4.28: <También se dio la toma de prenda, en virtud de la ley censoria, a favor de los publicanos o cobradores de impuestos del Estado, contra los que deben algún impuesto legítimo, vec-tigalia lege: item lege censoria data est pignoris capio publicanis vectigalium publicorum populi Romani adversus eos, qui aliqua lege vectigalia deberent>.

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como es, en la experiencia jurídica romana: la adquisición de un bien, el canon por el arrendamiento de una cosa pública o los derechos aduaneros con los que se grava, tanto el tránsito a través de un puerto o frontera por parte de una persona, como el transporte de una mercancía por vía marítima o terrestre.

Las voces de referencia para designar los tributos, tributum, stipendium y vectigal, son utilizadas, por otra parte, en las fuentes, con frecuencia, de forma indiferenciada, si bien, con carácter general, el tributum se paga en dinero o en especie, en una cantidad proporcional a la capacidad económica del contribuyente, mientras que el stipendium suele ser fi jo, y el vectigal variable y pagadero en especie al consistir, en una parte, por ejemplo, de lo que un agricultor produce, como la célebre decuma, o diezmo, propia de Sicilia.

Con el paso de los siglos, se produce una recuperación de algunos de estos términos clásicos, en el lenguaje fi nanciero, en especial la voz tributum, al propio tiempo que se produce la relegación de otros vocablos, como así sucede con el término vectigal10.

III. Instrumentos de política fi nanciera: En el campo del derecho fi scal romano, ius fi sci, se observa la utilización de distintos instrumentos de derecho fi nanciero que son objeto de regulación en las fuentes romanas y permanecen en vigor con el paso de los siglos, como expedientes de política fi scal, si bien adolecen, muchos de ellos, de la ausencia de un estudio en profundidad por parte de la doctrina11.

Cabría citar, al respecto:– Los índices de infl ación12 – Los fl ujos monetarios13 – La devaluación de la moneda14

10 Vid en: MARQUARDT, De l´organisation fi nanciére chez les romains (París 1888); GAUDEMET, Recherches sur la legislaction du Bas Empire, en Studi Scherillo 2 (Milano 1972); GRELLE, Stipendium cit.; MUÑIZ COELLO, El sistema fi scal en la España Romana. República y Alto Imperio (Huelva 1980); Las fi nanzas cit.; HERRERA BRAVO, “Ius fi sci”, en Sodalitas 2 (Granada 1981) 151-174.

11 Vid., con carácter general, en GUARINI, La fi nanza del popolo romano. Trattato storico-legale (Napoli 1841); DI RENZO, Il sistema cit.; CASAL BRAVO, El erario y el fi scus en la Roma de Augusto, en RDF y HP 13 (1954); La fi nanza antica (Milano 1955); FESTO, Lineamenti dell´evoluzione tributaria nel mondo antico, edt. Lindsay (1956); DUNCAN-JONES, The economy of the Roman Empire. Quan-titative Studies (Cambridge 1974); CHASTAGNOL, Problémes fi scaux du Bas-Empire, en Points de vue sur la fi scalité Antique (París 1979) 127 ss.; MASI, L´amministrazione fi nanziaria, en Lineamenti di storia del diritto romano, bajo la dirección de Talamancam (Milano 1989); CERAMI, Aspetti cit.; GARCÍA GARRIDO, El comercio, los negocios y las fi nanzas en el mundo antiguo (Madrid 2001).

12 Vid. en BLAZQUEZ, Infl ación, subida galopante de los precios y devaluaciones de la moneda en el fi nal del mundo antiguo, en Jano 141 (1974) 113 ss.

13 Vid. en MINAUD, La comptabilité á Rome (Lausanne 2005). 14 DE LAET, Une devaluation dans l´Antiquité: la réforme monétaire de l´année 64 ap. J.Chr, en Revue

de la Banque VII (París 1943).

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Temas de Direito Privado306

– La creación de una moneda única y un mercado común, sin fronteras15 – Los modelos privado y público de fi nanciación de las obras públicas16 – La reducción o el aumento de los gastos generales en atención a la coyun-

tura económica17 – El análisis contable, por parte de los empleados públicos responsables, de los

gastos e ingresos públicos, con la fi nalidad de adaptar las correspondientes partidas contables a las profundas transformaciones que se producen en la sociedad y en la economía de su tiempo18

– La contención y el control del gasto público19 – La prestación de servicios públicos por parte de sociedades privadas20 – El ensayo de medidas de presión fi scal o de minoración en la imposición,

frente a la crisis económica21

– La inversión de capitales con el objetivo de evitar la excesiva tesorización de las arcas públicas, o de fomento del empleo22

– La prohibición de exportar determinadas armas, oro o productos básicos que fortalezcan a los pueblos adversarios del romano23

– Las franquicias o exenciones aduaneras en relación con los productos de uso propio, res ad usum propium o con mercancías destinadas a tareas agrícolas24

15 Vid. en DE SANCTIS, Storia del romani II (Florencia 1967).16 Vid. en MALAVÉ OSUNA, Régimen jurídico fi nanciero cit.17 Vid. en MILAZZO, La realizzazione delle opere pubbliche in Roma arcaica e republicana. Munera

e ultro tributa (Napoli 1993); ROBLES VELASCO, Notas sobre las crisis económicas en el Imperio Romano: entre la libre iniciativa y el intervencionismo, en RGDR. (www.iustel.com) 12 (2009) 1-13.

18 Vid. al respecto en: HUMBERT, Saggio sulle fi nanze e sulla contabilità pubblica presso i romani (Bolo-gna 1977); GIMÉNEZ BARRIOCANAL, La actividad cit.; MINAUD, La comptabilité cit.

19 Vid en CERAMI, Il controllo fi nanziario in Diritto romano. Rifl essione metodologique e profi lo storico, en Studi Scherillo (Milano 1972) 767-802; Aspetti cit..

20 Vid. en PENDÓN MELÉNDEZ, Régimen jurídico cit.; CASTÁN PÉREZ, Régimen jurídico cit.. En relación con las garantías reales y personales que debían prestarse por las personas físicas o jurídicas que contrataban con la Administración pública romana los distintos tipos de concesiones, obras públicas, edifi cios públicos, derivaciones de agua, salinas o minas públicas etc., vid. en MENTXAKA, Algunas consideraciones en torno a las concesiones administrativas y sus garantías: capítulos 63-65 de la Lex Malacitana, en Leyes municipales en Hispania (Málaga 2001) 71 ss.

21 Vid en CHASTAGNOL, Problémes fi scaux cit., 127 ss.22 Vid. en BODEI, Lavori pubblici e occupazionali nell´antichità classica (Bologna 1973), donde la autora

relaciona el denominado evergetismo con condicionamientos económicos que hacen necesaria la inver-sión de capitales con la doble fi nalidad de evitar el exceso de stocks dinerarios y de propiciar mecanismos sociales de fomento del empleo.

23 Vid. al respecto en C. 4. 41.1, C. 4.42.2 y C. 4.63.2.24 Vid. en ZAMORA, Algunos aspectos cit.

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– Los mecanismos de control del contrabando aduanero y el comiso fi scal25 – La opción pública por la restauración de edifi cios antiguos, frente a su demolición26 – La construcción de nuevas edifi caciones, en atención a razones de contención

del gasto público y de estética urbana27 – Las singulares disposiciones arbitradas para remediar la carencia de recursos para

construir y mantener en perfecto estado de conservación los edifi cios públicos28.

Con los expedientes de política fi scal mencionados, se trataba de abordar y dar soluciones a problemas propios de la época, que se han continuado planteando, desde entonces, de forma recurrente, a lo largo de la historia, así, entre otros: la crisis económica, la infl ación producida por la devaluación de la moneda, la crisis demográfi ca y el subsiguiente retroceso en la industria y el comercio, o la focalización del gasto público hacia necesidades militares.

Cabría afi rmar, en defi nitiva, que el valor permanente y la actualidad de las grandes cuestiones que se han planteado en el marco del ius fi scale en la comunidad política romana, constituyen una prueba del fundamento romanístico sobre el que se asienta el actual derecho fi scal europeo, lo que no es, por otra parte, sino una manifestación de la historicidad del derecho también en este sector del Ordenamiento Jurídico, y de su conformación como un agregado lógico e histórico de experiencias colectivas. Y no se trata, con todo ello, de reconstruir el derecho fi scal romano como un apriorismo científi co por su interés histórico para el actual derecho fi scal, es que la conexión entre el derecho romano y el derecho vigente existe, en numerosos aspectos, en esta rama del conocimiento jurídico, lo que se manifi esta en una continuidad histórica en el planteamiento de problemas y en el arbitrio de soluciones, en materia fi scal y de hacienda pública, que todavía hoy sorprenden por su modernidad y constituyen una útil herramienta de explicación, en determinados aspectos, de la realidad del fenómeno impositivo en el momento actual29.

25 Vid. en: KLIGENBERG, Commissum, der Verfall nichtdeklarierter Sachen in römischen Zollrecht (Graz 1977); PINO ABAD, La pena de confi scación de bienes en el derecho histórico español (Córdoba 1999). Sobre el comiso por defraudación en la Lex Portus Asiae, vid. en: CARRELLI, Alcune osservazioni sul portorium Asiae, en Studi Ellenistiche 8 (1996) y en SPAGNUOLO VIGORITA, Lex Portus Asiae, un nuovo documento sull´appalto delle imposte con la pubblica amministrazione nel´experienza storico-giuridica (Napoli 1997).

26 Vid en KUNDEREWICZ, La protection des monuments d´architecture antique dans le Code Theodosienne, en Studi in onore di Volterra 4 (1971).

27 Vid. en TRISCIUOGLIO, Sarta tecta, Ultr otributa, opus publicum faciendum locare . Sugli appalti relativi alle opere pubbliche nell´etá republicana e augustea (Napoli 1998); MALAVÉ OSUNA, Régi-men jurídico fi nanciero cit.

28 Vid. en BODEI, Lavori pubblici cit.; MALAVÉ OSUNA, Régimen jurídico fi nanciero cit.29 Vid. en este sentido en FERNÁNDEZ DE BUJÁN, A., Derecho Público Romano, 12ª ed. (Madrid

2009) 232 ss.; y en ALBURQUERQUE, Protección de bienes de dominio público: Experiencia administrativa romana, en Derecho Administrativo Histórico (Santiago de Compostela 2005) 17-77.

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Temas de Direito Privado308

IV. Fundamento de la imposición fi scal: En los primeros tiempos de la comunidad política romana, las rentas o los ingresos de la Administración Pública, necesarios para atender los gastos públicos, procedían, en buena medida, de la explotación de los bienes públicos, ager publicus, lo que se realizaba o bien por el propio ente público o bien mediante su arrendamiento a particulares.

Si nos situamos en los orígenes de la comunidad política romana, conforme a las noticias que nos han llegado sobre la época, la propiedad de la tierra sería en buena medida colectiva. Se atribuye por Varrón, en De re rustica, 1.10, al primer rey romano una disposición en virtud de la cual se habría procedido a la asignación de una porción de terreno, no superior a la media hectárea, denominada heredium, a cada ciudadano, lo cual sería, a su vez, objeto de transmisión a los herederos del civis, heredem sequerentur, al fallecimiento de su titular, y de ahí su denominación.

Cabría conjeturar, a propósito de esta desafectación de terreno público y su consiguiente asignación a los particulares, para su disfrute y ocupación que, si bien parece, por una parte, presuponer, el carácter prevalente, en la época, de la propiedad colectiva, lo que podría haber constituido, a su vez, el desencadenamiento de la disposición real favorecedora de la propiedad privada, por otra parte, la previsión legal de que la tierra asignada debe transmitirse a los herederos, parece implicar, que quien ha recibido la asignación del bien fundiario, no podía disponer de él en vida, sino que había de preservarlo en el seno de su familia, que lo recibiría a título hereditario.

Con el paso de los siglos, la necesidad de hacer útil y productivo el terreno de la comunidad política, ager publicus, está en el origen del nacimiento de las autorizaciones a particulares para cultivar o construir sobre suelo público, a cambio de un canon o tributo, en dinero o especie, que solía ser muy inferior a la utilidad que obtenía el concesionario de la tierra o del edifi cio destinado a local de negocio o a alojamiento. Se entendía por ager publicus, en buena medida, a estos efectos, aquél suelo integrado por los territorios de los pueblos vencidos y anexionados a la comunidad romana. Este terreno público, en parte, era asignado en propiedad, de forma gratuita, a los ciudadanos, en parte, era objeto de venta y, en otra parte, era cedido a la libre ocupación de los particulares y, en particular, a los soldados que se licenciaban al término de las campañas militares.

Junto a esta situación fáctica, de disfrute y aprovechamiento del ager publicus, en ocasiones, la comunidad política, procedía al arrendamiento del suelo público que no había sido objeto ni de asignación, ni de venta, ni de cesión a los particulares. Los arriendos se efectuaban por el colegio de censores quienes, en su progresiva confi guración como magistratura republicana, asumieron la función de custodia y administración del Erario Público, aerarium populi romani, es decir, del patrimonio del pueblo romano. En este sentido, y con la fi nalidad de proporcionar un benefi cio económico a las arcas del Erario, los censores fi jaban las condiciones en las cuales se arrendaba, a cambio de una renta anual, los terrenos cuya titularidad pertenecía al pueblo romano.

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La única contraprestación que se exigía por parte de los censores a estos singulares arrendatarios del ager publicus era una cantidad, en dinero o en especie, denominada vectigal, que la doctrina considera que, más que una verdadera renta o merced, podría equipararse a una especie de tributo o impuesto con el que el titular del derecho contribuía a los ingresos del Erario, a cambio de la cesión del uso y aprovechamiento del terreno público30.

Esta conformación del suelo agrario, se generalizó en los siglos II y III a. C., de tal forma que se comenzó a hablar en las fuentes de un cierto ius perpetuum, que se ostentaba respecto de tierras de cultivo cuya propiedad pertenecía a la comunidad política o a entes públicos, como el municipio.

Muy pronto, en plena etapa republicana, las concesiones para cultivar, construir o disfrutar de un edifi cio ya construido, sobre suelo ajeno, se realizaron asimismo, además de por la Administración del Estado, por los municipios, las colonias y los propios particulares propietarios de tierras con la fi nalidad de hacerlas más rentables o de evitar su deterioro por el no cultivo31.

En el Principado, el canon o vectigal consistía en una cantidad de dinero o en una cuota, con frecuencia de una quinta parte, de los frutos producidos32. Afi rma Ulpiano, en D. 50.17. 1: <Debemos entender por vectigales públicos aquellas cosas por las que el fi sco cobra un vectigal o contribución, como es el de los puertos, el de las mercancías objeto de venta, así como el de las salinas, las minas y las fábricas de pez>. Finalmente, en la etapa postclásica, en la parte oriental del Imperio, se practican distintos modos de concesión de tierras, incultas o cultivadas, respecto de las cuales se formalizan arrendamientos a perpetuidad o a largo plazo, con la obligación por parte de los arrendatarios de pagar un canon.

30 Con la expresión agri vectigales, se designaba a los terrenos públicos arrendados a los particulares a cambio del pago de una renta o carga, vectigal. Si el pago de los vectigalia se realiza a favor de la administración pública estatal, se utiliza la expresión vectigalia publica populi romani, y si la administración benefi ciaria es una colonia, un municipio o una provincia, la expresión al uso suele ser la de vectigalia publica. Vid. al respecto en BOVE, Richerche sugli agri vectigalis (Napoli 1960); BRANCA, voz “Ager vectigalis”, en NNDI. (1974) 414 ss. Sobre el signifi cado de vectigal, vid. en HEUMANN-SECKEL, Handlexikon (Graz 1971); PEKARY, voz “Vectigal”, en Der kleine Pauly. Lexicon der Antike in fünf Bänden 5 (Munich 1979) 1150 ; BERGER, Enciclopedic dictionary of roman law (1980) 759.

31 A propósito del arrendamiento de terrenos (agri), bosques (silvae) y edifi cios (aedifi cia) públicos, a cambio de impuestos, vectigalia, en las leyes municipales, vid. en D´Ors, X., Las relaciones contractuales con la administración pública a la la luz de las leyes municipales en Derecho Romano, en I rapporti contrattuali con la publica amministrazione nell´esperienza storico-giuridica (Napoli 1997) 91 ss.

32 Vid. en este sentido, entre otros autores, en RODRIGUEZ NEILA, El epígrafe CIL 2,2242 – Corduba y las locationes de propiedades públicas municipales, en GÓNZALEZ, (ed.), La Sociedad de la Bética. Contribuciones para su estudio (Granada 1994) 438 ss.; TRISCIUOGLIO, Sarta tecta cit., 159 ss.

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La fi nanciación directa de la Administración Pública, por medio de la fórmula mencionada, se complementa, en los primeros siglos, de forma ocasional, con la fi nanciación indirecta, a través de la vía de la exigencia de tributos que, concebidos como un deber cívico de cooperación33, se establecen, con carácter extraordinario, en la mayoría de los casos, ante la inminencia de una contienda bélica34.

La conformación del sistema fi nanciero basado, de forma preferente, en la tributación, se consolida, en buena medida, con la creación de las provincias, al quedar sus habitantes gravados con impuestos y cargas de diversa índole, exigibles en metálico y en especie, de los que quedaron exentos, en numerosas ocasiones, los residentes en Roma y en la península itálica Al frente de la administración fi nanciera, y de la gestión de los bienes públicos propios de cada provincia, se encuentra un quaestor provincialis. A partir del Principado de Augusto, la fi gura del quaestor se mantiene en las provincias senatoriales y es sustituido, en las provincias imperiales, por un procurator Augusti.

Entre los impuestos indirectos de mayor relevancia35, previstos en la legislación -además del vectigal que, en su sentido originario, era la contribución que pagaban los concesionarios de tierras públicas, por su uso y disfrute, y acabó por ser un término global utilizado para designar los diferentes tipos de impuestos indirectos, como ya ha sido subrayado en páginas anteriores-, cabe citar, los siguientes:

– El portorium: El impuesto de aduanas y peajes, conocido con la denominación de portorium, constituyó una de las principales fuentes de ingresos de la administración romana. Consiste en el pago de un canon o peaje por del derecho de paso por puentes o caminos públicos, o por el derecho de transporte y acceso de mercancías de una ciudad a otra, o en la frontera del Estado36.

33 A propósito de la concepción del tributo como una obligación civil, derivada del vínculo entre la comu-nidad y el civis, frente a la consideración del tributo como una relación de poder, vid. en BLANCH, Principios cit., 53 ss.

34 El ciudadano romano, escribe APARICIO, Aportaciones cit., 13, fue siempre reacio al establecimiento de los impuestos directos, por lo que sólo cuando las necesidades urgentes y extraordinarias los hacían exigibles, accedía a su pago. Este carácter extraordinario, necesario e imprescindible, conllevaba que cuando el impuesto directo establecido resultaba ya innecesario, pues la necesidad que había llevado a su fi jación desaparecía, se suspendía su exigencia, e incluso, cuando se había recaudado más de lo necesario se procedía a su devolución. La imposición directa estuvo pues ligada desde un principio a las operaciones militares y a sus guerras de expansión y/o defensa y, por ello, en más de una ocasión, la aprobación por las asambleas populares de la declaración de guerra, suponía indirectamente la apro-bación de los medios impositivos para hacerla frente.

35 Vid al respecto en BONELLI, Le imposte indiretti di Roma antica, Storia e Documenti Storici e Diritto, (1900) 40ss.; NAQUET, Des impots indirects chez les Romains sous la Republique et sous l Empire (París 1920).

36 A propósito del hecho imponible del portorium, conformado por el tránsito fronterizo de importación o exportación de mercancías en la frontera de la comunidad política romana, por los arbitrios de entrada y salida de ciudades, y por el pago por uso de infraestructuras como vías o puentes, vid.

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– La vicessima hereditatium: es el denominado impuesto de sucesiones romano y consiste en un gravamen del cinco por ciento del caudal hereditario, tanto en relación con la sucesión testamentaria, como con la herencia abintestato. Su encaje como impuesto indirecto ha sido objeto de polémica doctrinal.

– La centesima rerum venalium: introducido por Augusto, podría considerarse una especie de IVA romano, y consistía en un gravamen del 1 por 100 sobre el precio de determinadas mercancías objeto de venta, como la sal, que se vendía en régimen de monopolio, o las cosas enajenadas en pública subasta.

– La quadragessima litium: es el impuesto establecido como gravamen sobre los litigios. Conforme a su regulación, los litigantes debían pagar el dos y medio por ciento del valor del asunto sobre el que se hubiere incoado un proceso.

– La scriptura: es el gravamen que debe abonarse por el ganado trashumante que atraviesa y pasta en prados públicos. Su denominación, scriptura, obedece al registro escrito, que llevaban los recaudadores de impuestos, del número de cabezas introducidas. Es una de las más antiguas contribuciones existentes en Roma.

La valoración del patrimonio de los cives se efectúa sobre la base del censo, institución básica de la sociedad romana, cuya creación se atribuye al rey Servio Tulio. Una vez obtenida la valoración total del patrimonio de la población, compete al Senado la fi jación de una tasa de un tanto por mil, 1, 2 ó 3 por mil, tributum simplex, duplex o triplex, que es la cantidad que debe ser pagada, fundamentalmente en dinero, a diferencia del vectigal, que normalmente se abona en especie37.

En cada provincia se constituyó un censo de contribuyentes y de sus bienes. El censo provincial, que no debe ser identifi cado con el antiguo censo ciudadano de la etapa republicana, es impulsado, de forma especial, en la época del Principado,

DE LATE, Portorium: étude sur l organisation douanière chez les Romains, surtout l`époque du Haut- Empire (Brugge 1949, reimpr. 1975) y en ZAMORA, Algunos aspectos cit.. Vid asimismo en la obra de Zamora el análisis de cuestiones como: las necesarias declaraciones para la estimación del tributo aduanero, la verifi cación por parte de los inspectores aduaneros de los escritos de declaración, el derecho de adquisición preferente del deudor tributario en relación a su mercancía decomisada, mediante una transacción previa a la pública subasta, así en D. 39.4.16.pr.1; los problemas derivados de las persecución de los bienes cuando existía defraudación y concurría el heredero del defraudador fi scal, así en D. 39.4.8pr, D. 39.4.14 y D. 39.4.16.13; la regulación concerniente a la problemática relativa al fraude de los cobradores de los impuestos aduanero, y la conexión entre el derecho fi scal romano y el vigente, en materia aduanera.

37 Sobre el censo como fundamento de todos los impuestos directos: CLAMERAN, Histoire de l´impot en France, con traducción al italiano bajo el título: L´imposta dei tempi romani, barbari e feudali in Francia (Padova 1961) 70 ss.; PIERI, L´histoire du cens jusqu´a la fi n de la Republique Romaine (París 1968).

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como instrumento clave para la reordenación y racionalización de los impuestos y su gestión. Precisamente, la política imperial en materia impositiva se dirige a dotar de uniformidad al sistema impositivo en todo el orbe, dado que, en tiempos de Diocleciano, Italia se convierte en una provincia más, al desaparecer la inmunidad fi scal de los residentes en la península itálica .

La hacienda local, constituida por los municipios y las colonias de ciudadanos romanos, goza de mayor autonomía, que la hacienda provincial, que se integra en la administración estatal . Las antiguas ciudades indígenas, que se estructuran conforme al modelo romano de administración ciudadana, tienen su propia caja de fi nanciación, que se nutre con los impuestos locales, y gravan a sus residentes con prestaciones patrimoniales, así el impuesto por la posesión del suelo, y personales .

Sobre el territorio de las provincias se establecen tributos, de naturaleza diferente al tributo de los ciudadanos romanos, y muy diversos entre sí, que se confi guran según el propio grado de civilización y organización del pueblo vencido, así como según las condiciones de su sometimiento, y tienen como fi nalidad cubrir los costes de la administración de las provincias .

Aunque Gayo, en Instituciones 2.7, afi rma que sobre el suelo provincial la propiedad corresponde al pueblo romano o al César, no cabe pensar en un derecho de propiedad del pueblo romano, que se extienda no sólo sobre el ager publicus, sino sobre el entero suelo provincial, y sí, en cambio, en un infl ujo en la jurisprudencia romana de la idea oriental-helenística del derecho privado del monarca sobre tierras y súbditos. No obstante, ni aun en la época del imperio absoluto, a partir del gobierno de Diocleciano, se concibe el poder del emperador en términos de dominio privado sobre personas y cosas.

Cabría afi rmar, en defi nitiva, que la fundamentación de la imposición fi scal, evolucionó al socaire de las circunstancias políticas, económicas y sociales que caracterizaron las distintas etapas de la comunidad política romana y así cabe contraponer entre:

a) La concepción conforme a la cual ha de procederse a la devolución a los cives de la recaudación fi scal no utilizada en la fi nalidad prevista, lo que tiene lugar, en coyunturas diversas, en la etapa republicana.

b) Las disposiciones específi cas, con las que se intenta mitigar el autoritarismo propio de la época imperial, así en C. 4.62.1 se prohíbe establecer nuevos impuestos, al tiempo que se dispone la restitución de los indebidamente cobrados, en C. 4.62.1 se afi rma que <no cabe establecer nuevos impuestos sin fundamento, sino por causa de utilidad común>, y en D. 39.4.10, <se prohíbe crear, aumentar o disminuir los impuestos sin autorización imperial>, y,

c) La realidad que supone la imposición fi scal absorvente propia del bajo imperio.

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ASPECTOS DO DIREITO FISCAL ROMANO

Resumo: A denominação e adaptação de numerosos conceitos e instituições do direito fi nanciero moderno, assim como o conteúdo um grande número de disposições específi cas da matéria, têm seu precedente histórico na terminologia e regulamentação dos pilares básicos que, em etapas distintas, caracterizaram o ordenamento jurídico romano, em matéria tributária.

Palavras-chave: Ius fi scale. Fiscus. Thesaurus. Tributum. Instrumentos de política fi nanceira.

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A Administração da Justiça no Direito Romano

A. Santos JustoProfessor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)[email protected]

Sumário: 1. Preliminares. 2. O processo das fórmulas. 3. O processo da cognição extraordinária. 4. Respon-sabilidade. 5. Honorários. Conclusões.

Resumo: A administração da justiça constituiu, ao longo da história, um problema que preocupou a humanidade. Não se estranhará, portanto, que a mãe do direito (Roma) lhe tenha dedicado a sua ciência (iurisprudentia). Mantendo a estrutura do antigo sistema das acções da lei (legis actiones), o processo das fórmulas (agere per formulas), utilizado na época clássica, colocou o magistrado romano (sobretudo o pretor) no centro da actividade processual, presidindo à fase (in iure) onde se declarava o direito (ius dicere), reservando ao juiz, que preside à segunda fase (apud iudicem), as tarefas probatória e decisória (a condenação ou a absolvição). Mais tarde, com a introdução do novo sistema processual (cognitio extra ordinem), aquelas fases foram concentradas, sendo agora desempenhadas por um magistrado, com a possibilidade de recurso das suas sentenças. Assinalam-se várias preocupações: v.g., com a competência dos tribunais, a celeridade processual, a isenção do juiz, o afastamento das partes que agissem temerariamente, a citação do demandado e os seus efeitos, a presença dos Santos Evangelhos nas salas de audiência, a disciplina e o valor dos diversos meios probatórios, os requisitos formais das sentenças e a faculdade de serem impugnadas etc. Destaca-se, também, a responsabilidade do juiz, que constituiu um quase-delito. Finalmente, impõe-se uma referência à associação dos advogados e à sua remuneração, que não se considera um preço (salarium merces), mas um honorarium, espécie de compensação ligada à honra das funções exercidas.

Palavras-chave: Direito Romano. Administração. Justiça.

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Temas de Direito Privado316

1 PRELIMINARES

Impõe-se uma nota prévia: este trabalho dirige-se fundamentalmente a quem não é cultor do saber jurídico romanista1. Por isso, justifi ca-se que o limitemos aos dois últimos processos, denominados, respectivamente, agere per formulas e cognitio extra ordinem.

A função que o juiz desempenhou no direito romano exige que o situemos nos processos que sucessivamente disciplinaram o julgamento dos litígios nas diferentes épocas: o processo das acções da lei (época arcaica), o processo das fórmulas (época clássica) e o processo da cognição extraordinária (épocas pós-clássica e justinianeia)2. Mas exige também uma referência, embora breve, à actividade das partes.

Procuraremos, também, evitar os problemas que são apanágio da romanística e daremos a visão de um direito que, tendo vários séculos, constitui o laboratório onde se formou e continuará a formar o jurista autêntico: o que procura no passado a melhor compreensão do presente.

2 O PROCESSO DAS FÓRMULAS

Introduzido em Roma por efeito do costume e mais tarde legalizado pela lex Aebutia de formulis, do ano 130 a.C3, este processo tem por elemento fundamental um documento escrito pelo pretor e dirigido ao juiz, através do qual este era autorizado a proferir uma sentença de condenação ou de absolvição, consoante provasse ou não os factos aí referidos.

Esse documento, denominado formula processual4, mostra-nos que, como já no sistema anterior, o novo processo decorria em dois momentos ou fases: a primeira, denominada in iure, era presidida pelo pretor (nas causas cíveis) que, depois de ouvir o demandante e o demandado e, na hipótese de não denegar a pretensão daquele, defi nia os termos do litígio e declarava solenemente o direito. Depois, na segunda fase, denominada apud iudicem, o juiz fazia a prova dos factos e proferia a sentença de condenação ou de absolvição. Actuando assim, o juiz limitava-se a cumprir a ordem que o pretor lhe dirigia na fórmula.

1 Com o presente estudo participamos na homenagem prestada ao doutor Agerson Tabosa Pinto, o colega ilustre, a quem devemos a amizade autêntica.

2 Vide A. SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos3 em Studia Iuridica 50 (Coimbra Editora / Coimbra, 2006) 288-289, 307-312 e 388-392. Sobre estas épocas, vide Sebastião CRUZ, Direito romano (Ius Romanum) I. Introdução. Fontes4 (Ed. do Autor / Coimbra, 1984) 43-51; e SANTOS JUSTO, A evolução do direito romano no Boletim da Faculdade de Direito. Volume comemorativo do 75º. tomo (2003) 47-68.

3 Vide A. SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral, cit. 307-311.4 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 311-312.

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A Administração da Justiça no Direito Romano 317

Elaborado este brevíssimo quadro, perguntar-se-á: que garantias eram dadas às partes? Que faculdades eram concedidas ao juiz?

Em relação às garantias, importa referir que o juiz era um cidadão romano de reconhecida idoneidade moral e cívica5. O seu nome fi gurava numa lista que o pretor oferecia às partes para, aí, escolherem o juiz que merecesse a sua confi ança6. Ou seja, o juiz era, necessariamente, um homem da confi ança do pretor e das partes. Portanto, as garantias começavam na escolha do juiz7.

Se os litigantes não o escolhessem, o pretor nomearia o juiz que, no entanto, podia recusar se entendesse que não gozava da sua confi ança8. Depois, na eventualidade normal de as partes o terem escolhido, o pretor controlava a sua actividade, podendo fi xar um termo judiciário, prolongar ou suspender o processo e afastar e substituir o juiz9.

Importa sublinhar que o pretor tinha particular interesse na boa administração da justiça, quer porque dela dependia a sua progressão no cursus honorum10, quer porque as suas decisões podiam ser susceptíveis de recurso para os comitia (provocatio ad populum), quer porque podia incorrer, ainda, em responsabilidade se actuasse contra a lei11. Por isso, o pretor socorria-se necessariamente do apoio da jurisprudência que Ulpiano defi niu lapidarmente como a “ciência do justo e do injusto, tendo como pressuposto o conhecimento de certas coisas divinas e humanas”.

Ainda em relação ao juiz, era obrigado, antes do julgamento, a prestar juramento de que agiria segundo a verdade. E, no fi m, podia abster-se de julgar, jurando que o litígio não tinha fi cado claro13.

Depois, há uma última garantia: se o juiz fosse negligente, incorria em respon-sabilidade por danos causados, considerando-se que praticou um quase-delito14. Não havia recurso da sentença porque as partes tinham escolhido o juiz, acordaram em respeitar a sua sentença e porque o pretor tinha vigiado a actividade do homem idóneo e da sua confi ança.

5 Vide Edward SZYMOSZEK, Les garanties de l’impartialité du juge dans le procés romain em Sodalitas. Scritti in onore di António Guarino 6 (Editore Jovene / Nápoles 1984) 2679-2680.

6 Vide SZYMOSZEK, ibidem 26807 Sobre os impediementos do juiz, vide Carlo LANZA, Impedimenti del giudige. Alcuni modelli di “diritto

clássico” no Bulletino dell’Istituto di Diritto Romano XC (1987) 467-541.8 Vide SZYMOSZEK, ibidem 2678.9 Vide SZYMOSZEK, ibidem 2681-2682.10 Vide CRUZ, o.c. 65-66; e SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral, cit. 62-63.11 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 65.12 D. 1,1,10,2: “Iurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum noticia (,) iusti atque iniusti scien-

tia”. Sobre a iurisprudentia, vide CRUZ, o.c. 280-295; e SANTOS JUSTO, ibidem 86-91.13 Vide SZYMOSZEK, ibidem 2682.14 Cf. D. 44,7,5,4; -50,13,6.

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Temas de Direito Privado318

3 O PROCESSO DA COGNIÇÃO EXTRAORDINÁRIA

3.1 ORIGEM

A origem do processo da cognitio extra ordinem relaciona-se com a transformação do sistema político que se impôs, em Roma, a partir de Augusto: o Principado que, no ano 27 a.C., substituiu a República. Mais precisamente, foi no dia 13 de Janeiro desse ano que, numa memorável sessão do Senado, Octávio declarou o seu propósito de regressar à vida privada, depois de ter concluído a sua obra de cônsul: o assassínio de César está vingado e a ordem, restabelecida. O Senado pediu-lhe que continuasse e atribuiu-lhe o título de Augustus, a que se seguiu a concessão do imperium proconsolare maius15.

Octávio passou a ocupar o primeiro lugar. Tornou-se o princeps romanorum e, embora formalmente mantidas, as velhas magistraturas foram perdendo a sua importância, acabando por se tornar simples títulos honorífi cos. A administração burocratizou-se com novos funcionários que dependem directamente do Imperador: uns governam as províncias e comandam as legiões (legati); outros representam-no em matérias determinadas (praefectus urbi, praefectus annonae, praefectus vigilum, praefectus praetorio); outros substituem os antigos questores e edis (curatores); e outros administram a fazenda pública (procuratores). A função jurisdicional foi atribuída a estes funcionários16, no âmbito das suas competências: policiar a civitas; abastecê-la de géneros alimentícios; exercer a vigilância nocturna; e chefi ar o quartel-general e a guarda especial do Imperador.

Porém, o princeps não dispensa a assessoria de jurisconsultos eminentes e de titulares de cargos elevados que constituem o seu consilium e cujas funções se relacionam, sobretudo, com a sua actividade legislativa e jurisdicional.

Na época anterior da República, tinha-se imposto o processo das fórmulas que, já referimos, decorria em dois momentos: primeiro, na presença do pretor que declarava o direito (ius dicere); depois, perante um juiz escolhido, em regra, pelas partes, que proferia a sentença depois da actividade probatória. Agora, surge um novo processo em que a administração da justiça é confi ada ao Imperador ou os seus funcionários em quem delega, que apreciam e resolvem determinados litígios: é a cognitio que, de extraordinaria, se expandiu até substituir o velho processo das fórmulas17.

O Estado chamou a si a tarefa de proteger o direito e defender a paz e, em consequência, o novo processo assumiu uma dimensão pública que contrasta com o carácter privado do velho processo das fórmulas: de privada, a justiça tornou-se pública18.

15 Sobre o Principado, vide CRUZ, o.c. 72-76; e SANTOS JUSTO, ibidem 67-69.16 Vide Francesco DE MARTINO, “Litem suam facere” em BIDR XCI (1988) 22-23.17 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 388-392.18 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 391.

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Afastada a escolha do juiz pelas partes, impunha-se a criação de uma nova garantia: a possibilidade de o recusarem sem dilatarem excessivamente a duração do processo.

Assim, no ano 331, o Imperador Constantino proibiu que, depois da contestação, se questionasse a competência do tribunal e recorresse, antes do tempo, para o prefeito do pretório, o conde do Oriente ou outro respeitável juiz. Mas concedeu-lhes a faculdade de recorrerem ao sacro tribunal (sacrum auditorium)19.

Depois, já no tempo de Justino ou de Justiniano20, foi reafi rmada a necessidade de os magistrados e “divinos juízes” decidirem os litígios em breve prazo; por isso, se o juiz competente se atrasasse sem justa causa, o interessado podia dirigir-se ao Imperador. E se alguém recusasse o juiz por justa causa, antes e só antes da contestação da demanda, dar-se-lhe-ia outro juiz21.

No ano 530, Justiniano reconheceu este direito de os litigantes recusarem os juízes antes do início do processo. O pedido, que devia ser suportado em motivos sérios sob pena de rejeição22, era dirigido ao Imperador que designava outro juiz. Depois de este iniciar a sua actividade, não podia ser recusado para que os litígios não se prolongassem indefi nidamente23. A preocupação do Imperador era afastar dúvidas sobre a isenção do juiz e, ao mesmo tempo, evitar que os processos se arrastassem por tempo considerado excessivo.

Finalmente, no ano 537, foi dilatada para vinte dias após a entrega do libelo (que dava início ao processo) a possibilidade de o juiz ser recusado. Depois, a parte interessada só podia apelar ao Imperador para que anulasse o julgamento do juiz parcial24. Se a recusa fosse deferida, o novo juiz não podia ser recusado25.

Quanto aos litigantes, eram obrigados a prestar juramento de que não agiam temerariamente e quem perdesse o litígio respondia pelas despesas processuais; institu-cionalizou-se a appelatio da sentença para um funcionário superior, dito magistrado26; o consilium principis adquiriu especial importância na função de assessoria jurídica27 e, embora se mantivesse o princípio da oralidade, o documento escrito foi-se impondo paulatinamente por infl uência oriental28.

19 Cf. C. 3,13,4.20 Vide SZYMOSZEK, ibidem 268538.21 Cf. C. 1,3,12.22 Vide SZYMOSZEK, ibidem 2685.23 Cf. C. 3,1,16.24 Cf. N. 53,3,1.25 Cf. N. 53,3,4.26 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 409-411.27 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 405.28 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 401.

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Nos primeiros tempos, o magistrado-juiz gozou de ampla liberdade e, por isso, a cognitio extra ordinem constitui um instrumento poderoso da criação de um ius novum ao lado das constitutiones imperiais29.

3.2 TRAMITAÇÃO

3.2.1 CITAÇÃO

Inicialmente, o processo (a que nos referimos) começava com a citação do demandado que continha a ordem do magistrado para comparecer perante ele. Podia ser feita verbalmente, se o demandado estivesse presente; por escrito, se se encontrasse ausente; e por éditos se o seu domicílio fosse ignorado. Nesta hipótese, um pregoeiro lia-os em locais públicos e, mais tarde, eram fi xados em locais determinados. A citação verbal e por escrito podia ser repetida quatro vezes com intervalos de dez dias e a última continha a cominação de que, se o demandado não se apresentasse, o processo tramitaria e seria decidido sem a sua presença. Neste caso, não podia apelar da sentença30.

Na época de Justiniano (século VI) impôs-se uma nova modalidade de citação, denominada “procedimento por libelo”. O demandante apresentava ao magistrado um documento assinado, no qual expunha a sua pretensão, os fundamentos em que a apoiava, indicava o nome da acção (actio) que se propunha intentar e pedia-lhe protecção jurídica. Dirigia-lhe igualmente uma postulatio para que ordenasse a entrega, ao demandado, duma cópia do libelo e a sua citação para comparecer no tribunal; e prometia que continuava o processo até o fi m e pagaria os gastos se a sentença fosse desfavorável. O magistrado examinava brevemente aquele documento (libellus) e, se não recusasse o pedido, emitia um decreto ordenando a um funcionário (executor) que o libelo fosse entregue ao demandado e este citado para comparecer, num dia determinando, perante ele. Feita a citação, o demandado entregava ao executor um documento (libellus contradictionis) contendo a data da entrega do libelo e a sua posição perante a pretensão do demandante. Ao mesmo tempo prestava uma garantia (cautio iudicio sisti) de que estaria na presença do magistrado no dia fi xado e de que não abandonaria o processo até a sentença. Se não prestasse a caução, fi cava sujeito à vigilância do executor durante a tramitação do processo e podia ser preso num cárcere do Estado31.

29 Sobre as constituições imperiais e o ius novum ou extraordinarium, vide SANTOS JUSTO, ibidem 44-45 e 84-86.

30 Cf. C. 7,65,1. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 392-393.31 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 393-394.

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Entretanto, o executor entregava o libellus contradictionis ao demandante e, entre a data da citação e o dia fi xado para o demandado comparecer perante o magistrado, deviam decorrer, pelo menos, dez dias, prazo que Justiniano dilatou para vinte32.

3.2.1. 2 EFEITOS DA CITAÇÃO

A citação do demandado produzia vários efeitos33, de que destacamos:1. fi xava a relação litigiosa e justifi cava a situação de litis pendentia: enquanto a

lis pender, o demandante não podia intentar nova acção34; 2. o demandado era obrigado a contestar o libelo, sob pena de incorrer em contumácia35; 3. fi xava defi nitivamente o forum36; 4. a relação litigiosa não era afectada por actos posteriores: v.g., se a prestação se

tornasse impossível sem culpa do devedor demandado ou se a res perecesse, este continuava obrigado;

5. dava início ao prazo de dois meses para o demandante comparecer junto do magistrado para continuar o processo;

6. interrompia a prescrição37; 7. fazia cessar a boa fé do possuidor da herança, tratando-se de hereditatis petitio38.

3.2.2 ACTUAÇÃO PERANTE O MAGISTRADO

3.2.2.1 JULGAMENTO

Importa desde já referir que uma lei de Leão, do ano 469, determinou que, nas sessões do tribunal, deviam ser expostos os Santos Evangelhos39. E Justiniano aplicou esta disposição que, no procedimento contumaz procurava também suprir a ausência do litigante pela presença de Deus40. Os Santos Evangelhos deviam permanecer expostos até a pronúncia da sentença, porque “atentos às Sagradas Escrituras e consagrados pela presença de Deus, os juízes decidirão os litígios com maior apoio, não julgam os outros diferentemente do que são julgados porque o juízo é mais terrível para eles do que para as partes”41.

32 Cf. N. 53,3,1. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 394.33 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 397-398.34 Cf. D. 5,1,30; -5,1,34; C. 2,2,4pr.; -2,2,4,2; -7,17,1,3. 35 Cf. C. 1,16,6,4. 36 Cf. C. 2,2,4,1. 37 Cf. C. 7,40,3,3.38 Cf. D. 5,3,20,11; -5,3,25,7.39 Cf. C. 11,32,3,2.40 Cf. C. 3,1,13,4.41 Cf. C. 3,1,14,2.

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Na presença do magistrado, o demandado podia reconhecer a verdade dos factos alegados pelo demandante, embora esta confessio constituísse simples meio de prova. Se reconhecesse o direito invocado pelo demandante, produzia um efeito semelhante ao da sentença condenatória e, portanto, tinha valor executivo: confessio in iure pro iudicato est42.

Se o demandado não confessasse, o demandante devia jurar, sobre os Evangelhos, de que actuava de boa-fé, convencido de que a sua pretensão é perfeitamente fundada. Seguia-se igual juramento do demandado. Ambos prometiam, ainda, que não realiza-riam nenhum acto processual doloso43; e juravam igualmente que não fi zeram nenhuma doação ao juiz para que a sentença lhes fosse favorável44. Se um dos litigantes tivesse feito esta doação, perdia o processo mesmo que a sua pretensão fosse justifi cada45. Jura-mento semelhante era prestado pelos advogados e o próprio juiz jurava que decidiria o litígio de acordo com a verdade e as leis46.

Seguiam-se o debate contraditório, cujo início constituía o ponto de partida para a contagem do prazo de três anos fi xado para a duração máxima do processo47; e o período probatório, no qual as partes deviam provar a verdade das suas alegações. No entanto, a prova obedecia às seguintes normas48:

1. refl ectindo a evolução política e jurídica, a liberdade do antigo juiz privado (do processo das fórmulas) na valoração da prova foi-se atenuando progressivamente, impondo-se o sistema da prova legal;

2. a prova documental prefere sobre a prova testemunhal, afi rmando-se que “contra um testemunho escrito não se apresenta um não escrito”49;

3. o magistrado pode recorrer a outros meios de prova (v.g., peritos) se os considerar necessários à formação da sua convicção50;

4. o onus probandi incumbe a quem pretende retirar consequências favoráveis: ao demandante, para fundamentar a sua pretensão; ao demandado, para sustentar uma reconvenção ou exceptio. No entanto, mantém-se o antigo princípio de que, para ser absolvido numa acção de reivindicação, ao possuidor demandado basta que o demandante não prove o direito que alega. Estamos perante a probatio diabolica de que falam os juristas medievais51;

42 Cf. D. 42,2,1; PS II,1,5.43 Cf. C. 2,58(59),2pr.; -3,1,14,4; N. 49,3.44 Cf. N. 124.45 Cf. D. 12,5,2,2; C. 7,49,1.46 Cf. C. 3,1,14.47 Se este prazo decorresse sem o processo ter terminado, o iudicium caducava e os actos processuais reali-

zados eram anulados: C. 3,1,13,1.48 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 400-402.49 Cf. C. 4,20,1.50 Cf. D. 11,1,21; C. 3,1,9; C. Th. II,18,1.51 Vide SANTOS JUSTO, Direitos reais (Coimbra Editora / Coimbra, 2007) 279.

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5. a prova deve versar sobre factos, considerando-se que o magistrado-juiz deve conhecer o direito aplicável. As partes não deixavam, no entanto, de apresentar as opiniões de jurisconsultos, lidas por um funcionário. É provável que, a partir de Trajano, se tenha formado a convicção de que as opiniões de jurisconsultos distinguidos com o ius publice respondendi ex auctoritate principis52 têm força vinculativa. Segundo GAIUS, Adriano confi rmou este ponto de vista, gozando o juiz de liberdade para proferir a sentença como entender somente se essas opiniões não coincidirem53. Mais tarde, a Lei das Citações, promulgada por Valentiniano III no ano 426, limitou os juristas a Gaius, Papinianus, Paulus, Ulpianus e Modestinus e a quem estes citassem. Havendo discordância, o juiz deve seguir a maioria; no caso de empate, impor-se-á a opinião de PAPINIANUS; e se esta não for conhecida, o juiz é livre54.

Quanto aos meios de prova, referimos55: 1. a confessio das partes quando versasse sobre factos;2. o juramento necessário (iusiurandum necessarium): podia ser deferido pelo

demandante ao demandado, em situações determinadas (v.g., negócios de direito estrito, reivindicação de coisa certa, nos pactos que fi xavam o dia do pagamento da dívida, na acção de injúrias etc.), podendo o demandado tomar uma de quatro posições:

a) pagava a dívida;b) fazia o juramento e o litígio fi cava resolvido a seu favor56; c) recusava o juramento e, nesta hipótese, era obrigado pelo pretor a cumprir a

obrigação por que era demandado: condenava-se a si próprio57. Nas palavras de PAULUS, “é prova de torpeza manifesta e de confi ssão não querer jurar nem contradeferir o juramento”58.

d) provocava o demandante a prestar juramento. Nesta hipótese, o demandante podia:

52 Vide SANTOS JUSTO, A fi ctio iuris no direito romano (actio fi ctícia). Época clássica I no suplemento do vol. XXXII do BFD (1988) 161-185.

53 Cf. GAIUS 1,7.54 Cf. C. Th. 1,4,3.55 Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral, cit. 402-404.56 Dir-se-á, neste caso, que o juramento equivale à sentença: tem função decisória; ou que, por vontade do

demandante, o demandado converte-se em juiz do litígio. Cf. D. 44,5,1pr.57 Cf. D. 12,2,34,6.58 Cf. D. 12,2,38

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1. prestar o juramento de que era credor. O litígio era decidido a seu favor59; 2. recusar o juramento. O litígio era resolvido a favor do demandado.

O recurso a este juramento, dito necessário, apoiava-se na sua santidade, como refere o jurisconsulto Gaius60. Por isso, se quem jurasse viesse a ser condenado por perjúrio, incorria na nota de infamia61: era considerado indigno e, em consequência, não podia nomear nem ser nomeado procurador judicial, desempenhar cargos públicos, testemunhar, intentar uma acção popular etc62.

3. as declarações de testemunhas. No entanto, o seu valor foi desvalorizado por desconfi ança e por infl uência oriental que destacou o valor da prova escrita. Impuseram-se as seguintes normas63:

a) a declaração de uma só testemunha carece de valor probatório, qualquer que seja a sua posição social e a credibilidade que mereça64;

b) tem mais valor a declaração da testemunha de elevada posição social;c) nos litígios contra cristãos, não se deve outorgar fé às declarações de hereges

e judeus65.

4. a prova documental adquiriu uma importância primária. Distinguiam-se os documentos66:

a) redigidos por ofi ciais públicos, faziam prova plena e perpétua dos factos e declarações registadas, embora o seu conteúdo pudesse ser impugnado por falsidade. Denominavam-se acta ou gesta;

b) instrumentos públicos redigidos no forum por tabeliões que, embora não fossem considerados funcionários públicos, desenvolviam uma actividade sujeita à vigilância dos magistrados e às determinações legais. Estes docu-mentos faziam fé se o tabelião os confi rmasse por juramento na presença do magistrado e denominavam-se instrumenta publica;

59 V Cf. D. 42,1,56.60 Cf. D. 12,2,1.61 Cf. D. 12,2,9,2.62 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 145-147.63 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 40364 Cf. C. 4,20,4; N. 4,20,9.65 Cf. C. 1,5,21pr.66 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 403-404.

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c) documentos privados, redigidos por particulares. Se interviessem pelo menos três testemunhas, eram considerados documentos quase públicos e tinham o mesmo valor probatório dos documentos redigidos por tabeliões67. Denominavam-se chirographa;

5. prova pericial: o magistrado-juiz podia recorrer a calígrafos, agrimensores, médicos e parteiras etc.

Durante o julgamento, as partes procuravam, em regra, a assistência e o auxílio de jurisconsultos que as aconselhassem na condução do processo; e de oradores que por elas falassem nos debates. Aqueles davam as suas opiniões sobre as questões jurídicas; os oradores eram escolhidos pelas suas qualidades oratórias ou pela sua elevada posição social68.

Participavam, ainda, peritos em questões jurídicas ou pessoas de grande prestígio que acompanhavam as partes, confortando-as com a sua presença e conselhos. Denominavam-se advocati e acabaram por substituir os oradores, incapazes de trabalho efi caz por não terem conhecimentos jurídicos.

3.2.2.2 SENTENÇA

3.2.2.2.1 CARACTERIZAÇÃO

Feita a prova, o juiz consultava os seus adsessores e, depois de considerar as opiniões dos jurisconsultos que as partes tivessem apresentado em documento escrito selado por testemunhas (testatio)69, proferia a sentença.

No entanto, podia remeter a resolução ao Imperador se considerasse o caso duvidoso e entendesse oportuno não decidir70.

A sentença obedecia a requisitos formais de que destacamos a redacção de um libelo que o próprio juiz lia às partes, não podendo o texto ser posteriormente modifi cado71. As partes deviam ser citadas, mas a sua ausência não invalidava a sentença72, que devia ser clara e precisa, sob pena de não ter força jurídica73.

67 Cf. C. 8,17(18),11; N. 73,2.68 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 285-288.69 Cf. D. 1,2,2,49. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 405.70 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 406.71 Cf. D. 7,44,2pr.72 Cf. C. 7,43,2.73 Cf. C. 7,46,3-4.

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O juiz podia condenar numa certa res, se fosse objecto da actio ou numa quantia pecuniária74. Neste caso, dever-se-ia ter em conta o interesse do demandante75. E devia indicar a parte condenada nas custas processuais, sob pena de as ter de pagar76.

3.2.2.2.2 IMPUGNAÇÃO

Da passagem da administração da justiça a função estatal resulta que a sentença proferida num processo da extraordinaria cognitio tornou-se susceptível de recurso para um magistrado de categoria superior.

Diferentemente do que ocorria no velho processo das fórmulas, no qual as partes não podiam recorrer da sentença do juiz porque tinham acordado sujeitar-se-lhe, era agora possível:

1. apelar duma sentença defi nitiva, salvo no procedimento contumaz77. O apelo (appellatio) era dirigido ao magistrado imediatamente superior e, se fosse necessário, seguir-se-ia a ordem hierárquica até o Imperador78.

Num prazo breve79,o recorrente devia apresentar o seu apelo ao juiz que proferiu a sentença. Tinha efeito suspensivo, impedindo, portanto, a sua execução. Aquele juiz devia abster-se de coagir as partes para que não apelassem e, se recusasse a apelação, o recorrente podia dirigir-se ao magistrado superior que podia impor uma pena pecuniária ao juiz recorrido e ao recorrente, se considerasse, respectivamente, adequada ou não a apelação80.

Se a apelação fosse admitida, o juiz redigia uma exposição sobre a questão litigiosa. O processo era encaminhado para o magistrado superior e tudo se passava como se tratasse de um novo processo: repetiam-se os debates, podiam apresentar-se novas provas, aduzir novos factos e fundamentar diferentemente a questão litigiosa. No entanto, devia aplicar-se o direito vigente durante a litis pendentia da primeira instância81.

O processo de apelação devia ser decidido num prazo que oscilou entre um e dois anos, decorridos os quais a instância caducava e a sentença do juiz inferior se considerava fi rme.

74 Cf. I. 4,6,32.75 Cf. D. 6,1,68; -42,1,13,1; -42,2,3,; I. 4,6,32.76 Cf. C. 7,51,5. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 407.77 Cf. C. 7,65,1.78 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 409.79 Dois ou três dias úteis no Código (C. 7,62,6,5) e no Digesto (D. 49,1,5,4); e dez dias contínuos nas

Novelas (N. 23,1).80 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 410.81 Cf. C. 7,62,6pr.; N. 115,1. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 410.

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Se o apelante perdesse, devia pagar ao apelado o quádruplo das custas processuais que tivesse pago82. O apelante temerário incorria em uma sanção pecuniária que o magistrado devia fixar, tendo em conta as circunstâncias do caso e a maior ou menor temeridade83.

2. suplicar ao Imperador que, no entanto, costumava encarregar o prefeito do pretório de reexaminar o litígio. Tratava-se, portanto, de uma verdadeira revisão da sentença pela mesma autoridade que a proferiu. A supplicatio tinha efeito suspensivo, se fosse interposta no prazo de dez dias84. No entanto, a outra parte podia solicitar a execução da sentença se apresentasse fi adores para o caso de a revisão a modifi car85.

3.2.2.2.3 EFEITOS

Se não houvesse impugnação ou, havendo-a a sentença fosse confi rmada, esta produzia os mesmos efeitos que outrora se verifi cavam no antigo processo das fórmulas.

Esses efeitos denominam-se86: 1. negativo ou de exclusão: o demandante não podia voltar a intentar a mesma

actio, sendo indiferente que a sentença lhe fosse favorável ou desfavorável. Se fosse instaurada nova actio, o magistrado recusá-la-ia ofi ciosamente através duma denegatio actionis;

2. positivo: traduzia-se na autoridade do caso julgado e tinha carácter material: o que foi dito na sentença impunha-se como verdade entre as partes; por isso, a sentença podia ser invocada e devia ser respeitada.

Da conjugação dos dois efeitos resultava o princípio bis de eadem re ne sit actio, segundo o qual era impossível não só instaurar duas vezes a mesma actio, mas também uma actio distinta sobre o mesmo assunto (eadem res, eadem quaestio).

E retiravam-se duas modalidades de caso julgado: 1. formal: não era possível voltar a discutir a sententia nem atacá-la de novo

num processo ordinário;

82 C Cf. PS V,37.83 Cf. C. 3,1,13,6; -7,62,6,4.84 Cf. N. 23,1.85 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 411.86 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 412.

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2. material: a sentença proferida resolvia defi nitivamente a questão litigiosa entre as partes; por isso, qualquer delas podia invocá-la se, no futuro, voltasse a pôr-se entre elas a mesma questão litigiosa.

Outro efeito era a possibilidade de a sentença ser executada, através duma acção executiva denominada actio iudicati, que se intentava junto do magistrado que proferiu a sentença ou delegou noutro juiz. Diferentemente do que ocorria no processo antigo das fórmulas, a condenação pecuniária não constituía, agora, um requisito indispensável: também podia incidir sobre a própria coisa (in natura) ou na realização de um acto (facere)87.

E, via de regra, tinha carácter patrimonial. Embora subsista, a execução pessoal foi atenuada a partir do século IV. Assim, além de passar a fazer-se em cárceres públicos88, foi concedida ao executado a possibilidade de a substituir pela cedência de bens (bonorum cessio)89.

Ademais, os credores podiam acordar na redução do montante dos seus créditos para facilitar o pagamento ao devedor90 e conceder-lhe uma moratória de cinco anos para pagar as dívidas91, moratória que o devedor também podia pedir ao Imperador92.

Finalmente, não havia lugar para a execução pessoal se o devedor jurasse que não possuía bens93.

4. RESPONSABILIDADE

Durante o antigo processo das fórmulas, o pretor, que declarava o direito na primeira fase (in iure), era um magistrado romano que detinha os poderes de potestas, imperium e iurisdictio: com o primeiro, representava o povo romano; com o segundo, tinha o poder de soberania; e com o último, administrava a justiça de forma normal e corrente94.

87 C Vide SANTOS JUSTO, ibidem 413-416; e A execução: pessoal e patrimonial (direito romano) em O Direito ano 125º. III-IV (1993) 298.

88 Cf. C. 9,5,1. Vide SANTOS JUSTO, A execução: pessoal e patrimonial, cit. 282.89 Cf. D. 42,3,9; e C. Th. IV, 20,1 que, todavia, limita a bonorum cessio a devedores cuja insolvência tenha

sido produzida por incêndio, naufrágio ou qualquer infortúnio. Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I: Parte geral, cit. 414.

90 Bastava que participasse a maioria dos credores para que todos fi casse, vinculados. Vide SANTOS JUSTO, A execução: pessoal e patrimonial, cit. 299.

91 Cf. C. 7,71,8. Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral, cit. 416-317; e A execução: pessoal e patrimonial, cit. 299.

92 Cf. C. 7,71,8. Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I. Parte geral, cit.417.93 Cf. N. 135,1.94 Vide Sebastião CRUZ, o.c. 66-67; e SANTOS JUSTO, ibidem 269-273.

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Enquanto magistrado, era eleito nas assembleias comiciais e, integrando o cursus honorum, o acesso à posição superior de cônsul dependia da forma como tivesse exercido as suas funções no ano para que fora eleito pretor. Já por aqui se vê o cuidado que este magistrado devia desempenhar nas suas funções ligadas à administração da justiça.

Acrescem, ainda, diversas limitações que se conjugavam na exigência de um bom desempenho: a duração do cargo não excedia, em regra, um ano; o magistrado hierarquicamente superior podia vetar as suas decisões (ius intercessionis); qualquer cidadão podia apelar aos comitia sobre uma pena ou castigo disciplinar que lhe fosse imposto (provocatio ad populum); e, no fi m do exercício do cargo, podia responder pelos actos praticados contra a lex95.

Havia, portanto, instrumentos que asseguravam a boa administração da justiça: uns, políticos; outros, jurídicos.

Quanto ao juiz, era um cidadão romano que as partes escolhiam numa lista que o pretor lhes oferecia ou, recusando, impunha. Por isso, era naturalmente um homem justo e respeitado na sociedade romana96 e devia obedecer à ordem que, num documento escrito (fórmula), o pretor lhe dirigia para absolver ou condenar o demandado consoante provasse ou não os factos invocados pelo demandante. É provável que esta garantia de um juiz justo tenha sido anteriormente reforçada pela Lei das XII Tábuas que, segundo parece, sancionou, com a pena de morte, o juiz que se deixasse corromper, aceitando dinheiro para proferir uma sentença. E foi posteriormente fortalecida pelo pretor que impôs a obrigação de ressarcir as partes dos prejuízos causados, situação que levou a iurisprudentia a criar a fi gura do quase-delito do iudex qui litem suam fecit97.

Persistem dúvidas sobre esta fi gura, sendo comum a opinião de que incorria neste quase-delito o juiz que ditasse uma sentença injusta98. Há, no entanto, quem entenda que sancionava o juiz que: não obedecesse à ordem transmitida pelo pretor na fórmula processual a que se tinha vinculado99; ou não proferisse a sentença no tempo em que devia100, prejudicando o demandante com a caducidade da actio101. Há também quem considere que a responsabilidade do juiz era objectiva102 e quem entenda que tinha carácter subjectivo103.

95 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 65.96 Vide SZYMOSZEK, o.c. 2679-2680, que fala de representantes das classes mais elevadas da sociedade,

onde inclui senadores e homens experimentados.97 Cf. D. 5,1,15,1. Vide Francesca LAMBERTI, Rifl essioni in tema di “litem suam facere” em Labeo 36

(1990) 225 e 237; e SANTOS JUSTO, ibidem 419.98 Vide Álvaro D’ORS, ”Litem suam facere” em SDHI XLVIII (1982) 368.99 Vide Javier PARICIO, Notas sobre la sentencia del arbiter ex compromisso. Sanción contra el árbitro

que no dió sentencia em RIDA XXXI (1984) 288.100 Nos iudicia legitima, era de 18 meses. Vide DE MARTINO, o.c. 14 e 19; PARICIO, o.c. 303; e LAM-

BERTI, o.c. 259-260.101 Vide D’ORS, o.c. 370 e 372; PARICIO, o.c. 289 e 303; e LAMBERTI, o.c. 234.102 Vide D’ORS, o.c. 390-393.103 Vide LAMBERTI, o.c. 244.

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Este quase-delito manteve-se no novo processo104. Não são estranhas a corrupção que se tinha instalado105, a burocratização da justiça, a crise dos costumes, a debilitação do poder central e outras causas que criaram um panorama desolador106. Por isso, os Imperadores proclamaram que os juízes deviam julgar segundo a justiça107 e convidaram as vítimas a deslocarem-se à capital para se queixarem directamente ao Imperador.

Incorria nesse quase-delito o iudex qui litem suam facit, ou seja, proferisse uma sentença injusta109 para alguma das partes: não a profere, não respeita o prazo, toma partido por uma das partes etc. Em consequência, era obrigado a reparar o dano causado110, sem prejuízo de o lesado apelar para o magistrado superior, pedindo a correcção da sentença111. E bastava que o juiz fosse imprudente112, conceito em que Justiniano incluiu a ignorância do direito, por considerar muito grave o baixo nível dos estudos jurídicos113.

Além do quase-delito assinalado, o juiz que se deixasse corromper incorria na obrigação de ressarcir a parte lesada das custas processuais114 e, se julgasse contra a lei, na pena de desterro para uma ilha115.

Também os assessores incorriam em responsabilidade se aconselhassem dolo-samente ou por negligência116.

E os advogados cometiam o delito de falsidade se entregassem à parte contrária documentos que lhes foram confi ados pelos seus clientes117; e subornassem testemunhas para prestarem testemunho falso118.

104 V Cf. I. 4,5pr.105Vide DE MARTINO, o.c. 24.106Cf. C. Th. I,16,7. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 419.107Cf. C. 7,62,6,1.108F. C. 12,61,1.109Vide D’ORS, o.c. 378-379.110Vide LAMBERTI, o.c. 225 e 237; e SANTOS JUSTO, Direito privado romano – II (Direito das

obrigações)2 em Studia Iuridica 76 (Coimbra Editora / Coimbra, 2006) 138.111Vide DE MARTINO, o.c. 24.112Vide DE MARTINO, o.c. 10 e 36; LAMBERTI, o.c. 264-266; e SANTOS JUSTO, ibidem 138.113Vide DE MARTINO, o.c. 25.114Cf. C. 3,1,13,6; -3,1,15.115Cf. D. 48,10,1,3; PS V,25,4.116Cf. D. 2,2,2.117Cf. D. 48,10,1,6; PS V,25,8.118Cf. D. 48,10,1,2; PS V,25,2.

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5. HONORÁRIOS

Nos primeiros tempos, a ajuda prestada por oratores e advocati foi gratuita, por pertencerem a profi ssões liberais119 . As suas funções, que se consideravam muito dignas, estavam ligadas à amicitia e, por isso, não podiam constituir objecto duma locatio operarum120.

Porém, na prática o benefi ciado passou a abonar espontaneamente aqueles serviços, sem, todavia, se falar de salarium ou merces, mas de honorarium, remuneração que não afastava o seu carácter gratuito121. E este signifi cado especial dum serviço prestado com base na amicitia estava tão fi rme na sociedade romana que, segundo parece, Augusto terá confi rmado a proibição do salarium com a pena do quadruplum ao advocatus transgressor122.

Porém, foi-se impondo a necessidade de remunerar os serviços prestados pelos advogados. Nem todos tinham suporte económico que permitisse a sua sobrevivência e, ademais, sentiu-se que o custo da sua formação devia ser compensado. Por isso, Cláudio considerou legítimo o pagamento de honorários e estabeleceu um limite máximo123. E Nero confi gurou este pagamento como verdadeira obrigação124, permitindo que se pudessem demandar os benefi ciados com uma actio. No entanto, o juiz devia estimar em dinheiro os honorários, atendendo ao valor do litígio, à eloquência desenvolvida e ao costume do foro125. Foram proibidos os pactos que substituíssem os honorários por uma retribuição dependente da sorte do litígio126.

Nos fi nais do século III é manifesta a transformação da ajuda amistosa numa profi ssão especial de carácter público, sujeita à disciplina do magistrado jurisdicente e organizada em associações (collegia): o juiz pode aplicar multas, suspender e decretar o abandono do cargo127.

119 Cf. D. 50,13,1. Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – II (Direito das obrigações) 2 em Studia Iuridica 76 (Coimbra Editora / Coimbra, 2006) 70.

120 Vide SANTOS JUSTO, Direito privado romano – I, cit. 286.121 Vide SANTOS JUSTO, ibidem, 286-287.122 Cf. DIO CASSIUS 54,18.123 Cf. TÁCITO, Annales 11,7.124 Cf. SUETÓNIO, Nero 17.125 Cf. D. 50,13,1,10.126 Os principais pactos eram: o pactum de quota litis, que permitia ao advogado receber uma percentagem

do valor do litígio; o palmarium, através do qual o advogado só recebia os honorários se a sentença fosse favorável; e a redemptio litis, em que o advogado substituía o cliente no resultado do litígio e, por isso, se a sentença fosse desfavorável, respondia por ela. Note-se que a assunção do risco fazia subir excessivamente os honorários. Cf. D. 50,13,1,12; -17,1,6,7. Vide SANTOS JUSTO, ibidem 2871517

127 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 287.

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Quanto aos jurisconsultos cultores da iuris scientia, não se lhes permite que recebam honorários porque, refere Ulpianus, “a sapiência civil é uma coisa santíssima e não pode ser estimada em dinheiro nem desonrada”. Todavia, considerou honesto recebê-los, ainda que fosse desonroso exigi-los128.

Mais tarde, a escassez de jurisconsultos determinou que, na prática, se eliminasse a antiga diferença entre jurisconsulto e advogado129.

CONCLUSÕES

É, agora, possível, extrair algumas conclusões acerca da administração da justiça no âmbito do processo da extraordinaria cognitio que, tendo surgido para resolver situações muito específi cas, não tardou a impor-se como processo normal do direito romano:

1ª. A substituição do antigo processo das fórmulas traduz o abandono da administração da justiça por um (ou mais) juiz privado, embora actuasse sob a vigilância do Estado, através do pretor. Doravante, a administração da justiça é considerada função pública.

2ª. Esta transformação teve diversas consequências:a) as despesas com a justiça passaram a ser pagas pelas partes e, muito

particularmente, pela parte vencida;b) abriu-se a possibilidade de uma cadeia de recursos sucessivos para os

magistrados hierarquicamente superiores até ao Imperador. Tais recursos constituíam garantias de independência e imparcialidade, a que se juntavam a possibilidade de o magistrado-juiz incorrer na prática de um quase-delito e de graves sanções penais como a morte e o desterro.

3ª. Em relação aos advogados, os seus serviços não eram remunerados por se entender que, na sua base, havia uma relação de amizade que, considerada res inaestimabilis, não tinha preço. No entanto, necessidades várias impuseram a sua remuneração, não como preço (salarium ou merces), mas como honorarium, espécie de compensação ligada à honra de tais funções. E a elevação do processo a função pública produziu algumas consequências:

128 V Cf. D. 50,13,1,5.129 Vide SANTOS JUSTO, ibidem 288.

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a) os advogados passaram a ser controlados pelos magistrados-juízes que estimavam o valor dos honorários e aplicavam a lei que proibia os pactos que os substituíssem;

b) surgiram as associações de advogados com membros fi xos e supranumerários: aqueles podiam actuar em qualquer tribunal; estes, só em tribunais inferiores. Só podia inscrever-se quem fosse formado em Direito. E os seus membros tinham o dever de residência e perdiam os seus lugares por ausência superior a cinco e três anos, respectivamente, com e sem autorização do juiz.

4ª. As execuções de âmbito patrimonial e pessoal mantiveram-se. Porém, a execução patrimonial podia, agora, incidir sobre a própria coisa (in natura) e sobre a pecunia correspondente à prestação do demandado. E a execução pessoal só funcionava se, tendo bens, o devedor não os cedesse aos credores ou não pedisse uma moratória para pagar as dívidas durante cinco anos.

Estas marcas da extraordinária cognitio da época justinianeia do direito romano,

a que não é alheia a infl uência do Cristianismo, mostram um processo moderno, profundamente humanizado. Por isso, não pode surpreender que as suas raízes tenham invadido os nossos direitos.

5ª. Destas breves notas retira-se uma última conclusão: a administração da justiça é, no direito romano, uma coisa tão séria, que os Romanos chamaram sacrum auditorium aos tribunais e elevarem a justiça à dimensão divina. Por isso, chamaram divinos aos juízes e à iurisprudentia, a ciência do justo e do injusto, tendo por pressuposto o conhecimento de certas coisas divinas e humanas. Permitiram que os litigantes resolvessem os litígios mediante juramento. E obrigaram juízes, demandantes, demandados e advogados a prestar juramento perante os Santos Evangelhos de que actuariam no respeito pela justiça.

Hoje, a sociedade laicizou-se e a divindade foi substituída pela honra, valor que interessa defender e preservar. E, porque é uma coisa valiosíssima, invoca-se como garantia de conduta processual.

Porém, o princípio só mudou de nome: a honra faz parte do santuário dos homens e, portanto, constitui elemento nuclear da sua dignidade. Por isso, se invoca como suporte da justiça.

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La Tabula Heracleensis:Organización Municipal

Carmen López-Rendo RodriguezProfessora titular de Direito Romano na Universidade de Oviedo (Espanha)

Sumário: 1. Introduccion. 2. Contenido. 3. Organizacion administrativa.

Resumen: El trabajo analiza la Tabula Heracleensis recogiéndose los problemas doctrinales nacidos sobre el ámbito de aplicación, época de la misma, así como su identifi cación o no con la llamada Lex Iulia Municipalis. En el segundo apartado del trabajo se esquematiza el contenido de la misma, fi nalizando el trabajo con el análisis de las disposiciones normativas que afectan a la organización municipal: a) Magistraturas: clases de magistrados: IVviri y IIviri, Ediles, Cuestores y requisitos para acceder a las magistraturas. b) Senado. c) Censo, analizando el magistrado encargado de su elaboración, plazo, contenido, el procedimiento para enviar los datos a Roma.

Palabras clave: Tabula Heracleensis. Magistrados. IVviri y IIviri. Ediles. Cuestores. Senado. Censo.

1 INTRODUCCIÓNLa Tabula Heracleensis1 descubierta en 1732 cerca de Heraclea3 en Lucani, ha

venido planteando en la doctrina problemas referentes a su ámbito de aplicación: nos encontramos ante una ley de ámbito general o ante una ley particular?, época de la misma, así como su identifi cación o no con la llamada Lex Iulia Municipalis.

1 V Sobre la Tabula Heracleensis, vid., MAREZOLL, Fragmentum legis romanae in aversa tabulae Hera-cleensis parte, Göttingen, 1816, SAVIGNY, K. F.,«Der römische Volkschluß der Tafel von Herakleia», en Vermischte Schriften, 3, Berlin, 1850 [rptd. Aalen, 1968]. Así como bibliografía citada por LEGRAS, H: La Table Latine d´Heraclée (la prétendue lex Iulia municipalis), Paris, 1907, pp. 383 y ss, sobre las cir-cunstancias de su descubrimiento, pp. 1 y ss. KÜBLER, B.: Recensión a Henri Legras, La Table Latine d´Heraclée (la prétendue lex Iulia municipalis), Paris, Rousseau, 1907. ZSS 28 (1907) pp. 409-415 VON PREMERSTEIN,A en “Die Tafel von Heraclea und die Acta Caesaris”. ZSS, 43 (1922), pp 47. Así como la citada por LAMBERTI, F.: Tabulae Irnitanae. Municipalita e Ius Romanorum, Napoli, 1993, p. 203, n.

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1. El primer punto que se discute es si realmente nos encontramos ante una ley general para la organización municipal. La doctrina al respecto ha sostenido opiniones diversas que podemos agrupar en las siguientes corrientes:

a. Defensores del ámbito general. La tesis del ámbito general de la Lex ha sido sostenida por SAVIGNY4, que a propósito de la concesión de la ciudadania a la Galia Cisalpina en el año 49, hasta ahora privada de órganos jurisdiccionales autónomos hizo necesaria una ley general que podría ser esta Lex iulia municipalis, a fi n de extender a este territorio la organización municipal, permitiendo a los comisarios romanos promulgar leyes útiles para alcanzar la unifi cación del estatuto municipal.

DE MARTINO5 considera que el examen objetivo de la inscripción no consiente la hipotesis de concebirla como una lex data para el municipio de Heraclea. Se decanta por el carácter general de la ley, si bien considera que pudiera discutirse si estamos ante una lex Julia de Cesar que regulase toda la materia municipal o por el contrario es una parte de otra ley.

6. JOHNSON, COLEMAN-NORTON & BOURNE, Ancient Roman Statutes, Austin, 1961, pp. 93-97, n. 113 . NICOLET, L’Urbs. Espace urbain et histoire, Rome, 1987, pp. 1-25

2 GIRARD, F.-SENN, F: Les lois des Romains. 7ª ed. par un groupe de romanistes des “Textes de droit Romain”. Tome II. Napoli, 1977, p.148: “Ley latina grabada sobre una de las caras de dos tablas de bronce descubiertas en 1732 y 1734, en dos fragmentos, cerca de Heraclea en Lucani, reunidas en el Museo de Nápoles sobre 1760. La otra cara contiene un texto griego del siglo V concerniente a las propiedades fundiarias de T. De Dyonisios y de T. D´Athena Polias (Dareste- Haussoulier, Inscr. Jur. Grecques I, p. 194.”. ARANGIO RUIZ, V: Historia del Derecho Romano. Madrid, 1994. Trad. Pelsmaecker y otro, p. 255 indica: “Ocupa el reverso de una de las dos grandes tablas de bronce encontradas en el lecho del torrente Salandra (o Cavón) cerca de Pistici en 1732 y proviene, como el anverso (griego) de ambas tablas, de la ciudad de Heraclea, colonia tarentina sita sobre el golfo de igual nombre y después municipio romano. Se conserva en el Museo Nacional de Napoles. Aún cuando se halla entera, la tabla solo contiene una parte (la central) del texto originario”. ABASCAL, J.M.- ASPINOSA, U.: La ciudad hispano-romana. Privilegio y poder. Logroño,1989, p. 110, n. 25: “Descubierta en 1732 a ocho millas del emplazamiento de la antigua Heraclea, en Italia: contiene una ley identifi cada en ocasiones con la lex Iulia municipalis citada en una inscripción de Padua (CIL V 2864= ILS 5406: M. Iunius Sabinus III vir aediliciae potestat. e lege Iulia municipali)”.

3 Sobre Heraclea, vid. DE RUGGIERO, E: Dizionario Epigrafi co di antichità Romane. II. Roma, 1962, p. 676. “Ciudad de Lucania. Fue Colonia fundada por los Tarentinos en el año 321 a.c (Dio.12,35. Liv. 8.24,4), mas tarde en el 472 o 476 se convierte en aliada de los romanos (Cic. Pro Balbo 22,50; por Archia 4,6) y posteriormente a la guerra social se convierte en municipio (Cic. Pro Archia 4 ,8)”.

4 SAVIGNY, F.C.: “Der römische Volkschluß der Tafel von Herakleia”, Vermischte Schriften, III. Berlín, 1850, pp. 279 y ss. PARETI, L.: Storia di Roma e del mondo romano, IV. Torino, 1955, pp. 330-331.

5 DE MARTINO, F.: “Nota sulla lex Julia municipalis”. Diritto e società n´ell antica Roma, Roma, 1979, pp. 342 y 344.

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b. Inexistencia de lex municipalis de ámbito general6.

MOMMSEN7 basándose sobre CIL V 28648 que se refi ere a una lex data9 para el estatuto del municipio de Padova, pensó que la lex Iulia fuese precisamente esta lex dictada para el municipio patavino.

VON PREMERSTEIN10 sostiene que la Tabula Heracleensis contenía una suma de las Acta Caesaris. Se trataban de una serie de proyectos de ley redactados por Cesar en el 45, y publicados despues de su muerte por Marco Antonio.11

2. El segundo de los problemas que se plantea la doctrina es el de la época de la ley. En la actualidad no existe una opinión unánime sobre esta materia. La mayoría

6 Vid. D´ORS. A.: Epigrafía jurídica, ob. Cit, p. 159. GALSTERER, H.: “La loi municipale des Romains: chimère ou réalite?”. Revue historique de droit francais et étranger 65 nº 2, avr-juin, 1987, pp. 182 y ss. LURASCHI, “Sulle “leges de civitate (Iulia, Calpurnia, Papiria)”. SDHI 44 (1978), pp. 325 y ss. MENTXACA, R.: El senado municipal en la Bética. Vitoria-Gasteiz, 1993, pp. 53 y ss.

7 MOMMSEM, TH.: “Lex municipii Tarentini”, Gesammelte Schriften, I, p. 154. En contra TORRENT, A.: La iurisdictio de los magistrados municipales. Salamanca, 1970, p. 164: “Las objeciones a la tesis de Mommsem son muy graves; todo lo mas que podría decirse es que hubo una lex Iulia que disciplinó la fundación de nuevas comunidades, y a esta ley se podría referir la inscripción patavina, pero no hay noticias de una específi ca lex Iulia para el estatuto municipal de Padova. En el estado actual de fuentes es difícil la identifi cación de la Tab. Her., pero considero que no es la pretendida ley municipal de reforma general atribuida a Cesar.” HARDY, EG: Roman Laws, ob., cit., p. 165 y ss en donde analiza y rebate los argumentos de Mommsen.

8 CIL V 2864= ILS 5406 “M. Iunius Sabinus/ IIIIvir aedili/ciae potestatis/e lege Iulia/ municipali/ patronus/ collegi/ cent/onariorum..”

9 ROTONDI, G.: Leges publicae populi romani: elenco cronológico con una introduzione sull’ attività legislativa dei comizi romani, 1966, p. 493 la considera lex data. En la página 4 y ss trata de la lex y sus clases: lex data- lex rogata. En la página 15 indica que las disposiciones por las que se reglamenta la organización de los municipios y colonias revisten la forma de leges datae. D´ORS, A.: Epigrafía jurídica de la España Romana. Madrid, 1953. p. 157. En contra de considerarla como lex data se posiciona DE MARTINO, F.: “Nota sulla lex Julia municipalis”. Ob., cit., pp. 342-343. ARANGIO-RUIZ,V. recensión a LEGRAS, DR. HENRI: La table latine d´Heraclée, en BIDR 21(1909), p. 83: “Se trata de una lex Rogata propuesta al pueblo por Cesar dirigida a regular con normas generales el derecho municipal, de ahí el nombre lex Iulia municipalis bajo el que ha sido publicada, citada, comentada por los escritores”. La misma opinión se refl eja en Historia del Derecho Romano, Ob., cit., pp. 250 y ss. En el mismo sentido de considerarla lex rogata, vid, GIRARD-SENN: Les lois des Romains. Napoli, 1977, p. 74. Sobre lex data- lex rogata. Vid. ROTONDI, G: Leges publicae populi romani: elenco cronologico con una introduzione sull’ attività legislativa dei comizi romani, 1966, pp. 4 y ss.

10 VON PREMERSTEIN, A: “Die Tafel von Heraclea und die Acta Caesaris”. ZSS, 43 (1922), pp. 45.11 VON PREMERSTEIN, A, ZSS, 43 (1922), ob. cit. pp. 48 y ss, 146, tesis admitida con ciertas reserva

por RUDOLPH, H: Stadt und Staat Im römischen Italien. Leipzig, 1935, p. 120.

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Temas de Direito Privado338

de la doctrina12, entre los que fi guran SAVIGNY, HARDY, PARETI, defi enden la postura de datar la misma en la época de Cesar, si bien existen opiniones en contra puestas de relieve por LEGRAS, LONGO, D´ORS13.

3. El tercero de los problemas radica en dilucidar si la Tab. Her. se identifi ca con la lex Iulia municipalis. Esta es la opinión de SAVIGNY, BONFANTE, ARANGIO RUIZ, HARDY14. Durante muchos años a la Tabula Heracleensis se la viene llamando lex Iulia municipalis, si bien no existe unanimidad entre la doctrina15.

SCHÖNBAUER16 piensa que la Tabula Heracleensis no contiene una parte de una lex Iulia municipalis de Cesar del año 45; el texto legislativo es considerado mas antiguo por indicios fi lológicos y sustanciales. Tampoco la considera como una parte de otra ley municipal general o relativa a muchos municipios. La inscripción no contiene ni siquiera una

12 SAVIGNY, FC: Vermischte Schriften T. III. Ob., cit., p. 337. PARETI, L.: Storia di Roma e del mondo romano, IV. Ob., Cit., pp. 330-332. DE MARTINO, F.: “Nota sulla Lex Iulia municipalis”. Ob., cit. pp. 346 y ss. DAREMBERG-SAGLIO: Dictionaire des antiquités grecques et romaines. Graz, 1969. Voz Lex Iulia municipalis, p. 1148: “(A-709=45). Loi proposée par le dictateur César et réglementant l ´administration de la ville de Rome et des municipies”. HARDY, EG: Roman Law and charters. Ob., cit., p.137 y ss. GALSTERER, H.: «La loi municipale des Romains: chimère ou realité»?, RHD, 65.2, 1987, 181-203, esp. p. 203

13 LEGRAS, H.: Le table latine. Ob. Cit. niega que se trate de una ley propuesta por Cesar. LONGO. NNDI. P. 823 indica que es difícil admitir que se trate de una lex satura. No se trata de una ley predispuesta por Cesar. D´ORS, A: “Nuevos datos de la Ley Irnitana sobre Jurisdicción municipal”. SDHI 49 (1983), p. 20. ABASCAL, J.M.- ASPINOSA, U.: La ciudad hispano-romana. Privilegio y poder. Logroño,1989, p. 110, n. 25: “Por los datos contenidos en el texto y por su comparación con una pasaje de Cicerón (Ad. Fam. 6,18,1), ha sido identifi cada tradicionalmente como cesariana supuestamente fechable en el año 45 a.c, aunque hoy la identifi cación y la cronología carecen de fundamento”.

14 SAVIGNY, F.C. Vermischte Schriften III, ob. cit, pp.279 y ss. BONFANTE, P: Storia, II, 3ª ed. p. 215. ARANGIO-RUIZ, V: Historia del Derecho Romano. Ob. cit. Pp. 255-256. HARDY, EG: Roman Law and charters. Aalen, 1977, p. 136. PARETI, L: Storia di Roma e del mondo romano, Ob., Cit., p. 331

15 Cfr. RICCOBONO, S. FIRA. pp. 140-142. Sobre lex Iulia municipalis vid. tambien NAP en Pauly Realencyclopädie der classischen altertumswissenschaft. (En adelante PW) Col. 2368-2389 y la bibliografía mencionada al fi nal en la col. 2389. DE MARTINO, F.: “Nota sulla lex Iulia municipalis”. Ob., cit., p. 344: “Tuttavia questa lex Julia non si può confondere con quella contenuta nella tavola di Heraclea, la queales presuppone già tutto l´ordinamento municipale nei suoi organi de è perciò posteriore alla riforma delle magistrature”. D´ORS, A.: Epigrafía jurídica, ob., cit., p. 159:” Parece sí evidente que no tenemos una tal lex Iulia municipalis en la Tabla Heraclense”. GALSTERER, H: “La loi municipale des Romains: chimère ou réalite?”. Revue historique de droit francais et étranger 65 nº 2, avr-juin, 1987. ABASCAL, J.M- ASPINOSA,U.: La ciudad hispano-romana, ob., cit., p. 106 “El documento se atribuyó durante mucho tiempo a Cesar y fue denominado lex Iulia municipalis, aunque hoy sabemos que ninguna de estas dos referencias parece correcta.” TORRENT, A: La Iurisdictio. Ob. Cit., pp. 163-167. D´Ors, A: “Nuevos datos de la Ley Irnitana sobre Jurisdicción municipal”. SDHI 49 (1983), p. 20

16 SCHÖNBAUER, E.: Die Tafel von Heraclea in neuer Beleuchtung, Anz. Akad. Wien, 1952. pp.109 y ss. En el mismo sentido LONGO, G: NNDI.Torino. p. 823. En contra DE MARTINO, F: “Nota sulla lex Julia municipalis”. Diritto e società n´ell antica Roma, Roma, 1979, pp. 342-343.

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lex satura, sino que contenía parte de cinco leyes diversas, probablemente rogatae. Que pueden corresponder al periodo que va entre el 75 y 65, esto es, entre el consulado de C. Aurelio Cotta y las leyes Gabinia y Manilia, y el periodo posterior a la muerte de Sila que se caracteriza por su inspiración política conservadora. Esta cinco leyes según Schönbauer habrían sido puestas juntas formando parte de una lex municipalis Heracleensis, lex data por el comisario romano que venía así a disolver el viejo foedus desde la guerra con Pirro.

NAP17 que considera la Tab. Her. Anterior al Frag. Atrest., cree que sería una colección de leyes presentadas por el tribuno de la plebe C. Papius en el 64 a.c.

TORRENT18 indica que la heterogeneidad de las normas depone contra la tesis de una unica lex, considerando difi cil la identifi cación de la Tab. Her. Y que sea la pretendida ley municipal de reforma general atribuida a Cesar

D´ORS19 sostiene que “Augusto dio una ley municipal, y nada impide pensar que se trata de la lex Iulia municipalis, que suele atribuirse a Cesar. La verdad es que esta atribución se había establecido en base a un identifi cación de esa ley con la Tabula Heracleensis, pero una vez que esta identifi cación parece hoy equivocada, parece que no hay inconveniente en atribuir esa ley municipal a Augusto y no ya a Cesar”. Así para D´ORS20 tenemos que rectifi car la afi rmación muy generalizada de que la lex Iulia municipalis fue una ley de Cesar, pues vemos ahora que fue de Augusto y no de Cesar. Según la opinión de este romanista, tendríamos una ley básica poco posterior al 17 a.C- la lex Iulia municipalis- y un texto reformado de la misma, de quizá el año 90 d.C- lex Flavia municipalis.

Planteado el status quaestionis doctrinal y ante la incertidumbre de sus problemas de orígenes, en el presente estudio me limitaré a destacar el contenido de la Tabula Heracleensis en lo referente a la vida municipal tal como nos ha sido transmitido en las fuentes que tenemos a nuestra disposición hasta este momento, a fi n de proporcionar las bases para posteriores investigaciones que puedan realizarse en materia.

2 CONTENIDO

La Tabula Heracleensis21 comprende un conjunto de normas heterogéneas cuyo contenido puede estructurarse a efectos expositivos y siguiendo a DE MARTINO22 de la siguiente forma:

17 S NAP, PW, XII,2 (1925) c. 2368-2369.18 TORRENT, A.: La iurisdictio, ob. cit. pp.164-167.19 D´ORS, A: “Nuevos datos de la Ley Irnitana sobre Jurisdicción municipal”. SDHI 49 (1983), p. 20. En

contra GALSTERER, H.: “La loi municipale”, ob., cit., p. 203. MENTXACA, R.: El senado munici-pal en la Bética. Vitoria-Gasteiz, 1993, pp. 53 y ss.

20 D´ORS, A.: “La nueva copia irnitana de la “Lex fl avia municipalis”. AHDE Tomo LII, Madrid, 1983, pp. 8-10.21 El texto de la Tabula Heracleensis que he utilizado para la elaboración del presente trabajo ha sido el

que nos proporciona RICCOBONO, S.: Fontes Ivris Romani antejvstiniani. Pars prima. Leges. Floren-tiae, 1968, pp. 140-152.

22 DE MARTINO, F.: “Nota sulla “lex Julia municipalis””. Diritto e società nell´antica Roma. Roma, 1979, p. 341.

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1. Primera parte -líneas 1-19-, se ocupa de la regulación referente a la distribución gratuita de trigo.

2. La segunda parte que engloba las líneas 20 a la 82 expone las normas que han de regir en materia de conservación, limpieza, libre uso de las vías. Según DE MARTINO23 se refi eren a la ciudad de Roma, pero son aplicadas a Heraclea mediante la clausula siremps.

3. La tercera y cuarta sección, a la que se refi eren las líneas 83 a 158 contienen normas sobre coloniae e praefecturae y regulan las altas magistraturas, del senado y del censo.

4. La última parte de la Tab. Her. que comprende las líneas 159-163 recoge una serie de disposiciones transitorias sobre la virtualidad y cambios de las leyes municipales en los municipia fundana24 posteriores al primer año de aplicación de la ley. En ella se permite al encargado de deducir efectivamente la colonia introducir modifi caciones en la ley aprobada por los comicios a fi n de que el estatuto resultante se adaptara mejor a las necesidades de la comunidad destinataria del mismo.

En el presente trabajo me referiré unicamente a las Disposiciones referidas a la vida municipal.

La Tabula Heracleensis a partir de las líneas 83 en adelante contiene normas que tiene un cierto carácter legislativo y que afectan a la vida municipal. Las mismas se refi eren a las Magistraturas, al Senado, al censo, a las fuentes constitutivas del municipio.

El ámbito de aplicación de las disposiciones normativas contenidas en la ley abarca varias categorías de comunidades de ciudadanos romanos, así de forma expresa indica que son válidas para los municipios, colonias, prefectura25, foro y conciliabula26 - Queiquomque in municipieis coloneis praefectureis foreis conciliabuleis ciuium Romanorum27.

23 DE MARTINO, F.: “Nota sulla “lex Julia municipalis””. Ob., cit., p. 341, n. 17 indica: “Siempse lex esto: Plaut,. Amph. Prol. 73; Fest., p. 344. V. Siremps. Formazione fi lologica incerta e discussa: Walde-Hoffmann II, 547. Otra Cita en Riccobono, FIRA I,133.n.1.”

24 DE MARTINO, F.: “Nota sulla “lex Iulia municipalis”, ob. cit., pp. 341-342. “Muncipia fundana erano quelle piccole città italiche, che avevano ottenuto la cittadinanza con la lex Julia e la lex Plautia de avevano decretato costituzionalmente il loro inserimento nella cittadinanza romana”.

25 HARDY, EG: Roman Law and charters. Aalen, 1977. Reprint of the edition Oxford 1911-1912, p. 146 afi rma que en el periodo ciceroniano existían esas tres categorías de comunidades, basándose en Cic. Pro Sest. 14.82; Piss. 22.51.BECHARD,F: Droit municipal dans l´antiquite.Paris, 1860.pp 259 y ss.

26 TORRENT, A: La Iurisdictio. Ob. Cit., p. 65, las concibe como distritos menores, que a su vez

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HARDY28 explica de la siguiente forma las diferencias entre ellas: “La extensión de la ciudad de Roma fuera de la ciudad tuvo lugar mediante dos caminos:

A. Algunas veces una número de ciudadanos romanos era enviados a otras ciudades ya existentes o de nueva creación, manteniendo en ambos casos sus derechos como ciudadanos romanos, pero formando distintas comunidades, coloniae. Con el paso del tiempo un gran numero de estas propugnacula imperii, situadas en estratégicos sitios, nacían y muchas de ellas se agrupaban dentro de las mismas categorías por causas sociales.

B. En segundo lugar, Roma frecuentemente conquistaba comunidades que incorpora a su ciudad, pero en este caso los habitantes de estas ciudades eran libres, y quizás nunca plenos ciudadanos romanos. Eran medio ciudadanos, o pasivos ciudadanos, o ciudadanos sine sufragio. Mientras poseían los derechos de comercio, el ius conubium con Roma, pero carecían del jus sufragii o del jus honorum. Ellos eran municipes, es decir, ellos carecían de los privilegios de la civitas. Sus ciudades eran municipia.

Ambas colonias y municipios dependían de la civitas romana, no eran por si mismas civitates y estaban sometidas a la jurisdicción del pretor urbano. Como él no podía ejercer la jurisdicción en persona, cada año nombraba un praefecti iure dicundo, para actuar en representación en estas comunidades.

fi guran como núcleos de una división administrativa menor, o como puntos de reunión de los nuevos ciudadanos, terminología que dice venir confi rmada en la lex Rubria. Igualmente admite que los fora y conciliabula pueden concebirse como distritos jurisdiccionales a los que iban los praefecti de vez en cuando para administrar in situ justicia. Este romanista reseña que la doctrina tradicional a partir de Mommsen ha considerado que estas comunidades adtributae serían comunidades en las cuales no se había organizado establemente un ordenamiento de tipo cívico, y venían agregadas bajo el perfi l administrativo y jurisdiccional a la comunidad principal de la zona, o sea, una colonia o a un municipio, situación que se desarrollaría a partir de la Guerra Social.(...) Quizá bajo este esquema de la adtributio es como deba encuadrase la heterogeneidad de los diversos títulos con los que las leyes municipales mencionan las diversas comunidades sometidas a la nueva reglamentación municipal, que estaría bajo la jurisdicción de los quattuorviri o duoviri de la ciudad dominante.”

27 Idéntico elenco de comunidades se encuentra en los fragmentos de la Lex Julia Agraria (Lex mamilia Roscia Peducaea Alliena Fabia). BRUNS. p. 45; GIRARD-SENN P. 70. RICCOBONO. FIRA, Leges., ob., cit., pp.138 y ss.

28 HARDY, EG: Roman Law and charters. Aalen, 1977. Reprint of the edition Oxford 1911-1912, pp. 144 y ss.

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Desde este punto de vista, ambos, colonias y municipios tenían la consideración de praefecturae, si bien después de la guerra social todos estos términos eran independientes29.

c. Fora y Conciliabula se añadieron a la lista. Estos nombres retornan a la primitiva y pre-urbana organización cantonal, cuando un número de pagi tuvieron algún punto de encuentro central donde las asambleas tribales o el juez tribal tenía su tribunal. Ocasionalmente se refi eren a ellos Livio. Considera que se trataban de ciudades rurales dentro del ager romanus, que tenían sus propios negocios locales, pero no reconocidas por la res publicae. Sin duda sobrevivieron por toda Italia y después del 90. B.c. Todas ellas tuvieron la ciudadanía romana. Originalmente dependían de ciudades vecinas si bien fueron intentando conseguir su independencia. Ellos tenían sus propios senadores, tal como se observa en las líneas 83 y 119 de la Tab. Her. Parece ser que carecían de duoviri o quattuorviri y de la posibilidad de elaborar su propio censo, al estar ausentes en las líneas 89 y 108 de la Tab. Her.

Sus magistrados posiblemente fueron solo magistrados, incluidos bajo el aliove quo nomine de la línea 83 de la Tab. Her. Y ciertamente sin jurisdicción. Desde este punto de vista estaban bajo la praefecturae de alguna ciudad vecina”.

3 ORGANIZACIÓN ADMINISTRATIVA

La Tabula Heracleensis da una idea aproximada de la organización político-administrativa que prevé para todas estas comunidades, en los que los poderes se comparten entre Magistrados, Senado y Asambleas a semejanza de la organización político- republicana.

De la lectura de la misma se observan lo siguientes principios informadores de la reorganización administrativa:

29 Sobre las distinciones entre colonia y praefectura y sobre municipia y praefectura vid. HARDY, EG: Roman Law, ob., cit, pp. 144-146.

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3.1 LAS MAGISTRATURAS.

3.1.1 CLASES DE MAGISTRADOS.

Al frente de estas comunidades parece ser que se encontraban unas magistraturas típicas que se conocían con el nombre de quattuorvirato o duovirato según las ciudades, los ediles30, el cuestor31, cuya elección se realizaba libremente en las asambleas populares directamente o por medio de representantes.

La Tabula Heracleensis no indica de forma expresa el magistrado al que se le encomienda la dirección de los comicios, a diferencia de la lex Malacitana en cuyo capítulo LII32 encomienda la misma a duumviri maior natu, ni tampoco regula de forma detallada el procedimiento comicial33, que por el contrario si observamos en la Lex Malacitana.

3.1.1.1 EL QUATTUORVIRATO34: DUMVIRATO35.

La ley de forma expresa nada indica respecto a su ámbito de actuación, si bien parece ser por el silencio que a este respecto prestan que esta magistratura no existía en fora y conciliabula.

30 Durante la época de la república los trabajos de conservación de la ciudad en la materia de mantenimiento son competencia de los ediles y sus subordinados: IV viri in urbe purgandis. Sobre los ediles vid. MOMMSEM,T, Compendio del Derecho Público romano. Traducción del alemán por P. Dorado, Madrid, p. 300 y ss. PATTERSON, The magistrates of the Roman republic, Nueva York, 1951; BROUGHTON, The magistrates of the Roman republic, 2 vols, Nueva Cork, 1951-52 y Supplement, Nueva York-Oxford 1960. TORRENT, A, Derecho público romano y sistema de fuentes, Zaragoza, 2002, p. 179 y ss.

31 ABASCAL,JM Y ESPINOSA,U. ob., cit., p. 129: “Duunvirado, edilidad y cuestura constituye, pues el cursus honorum básico en municipios y colonias. No son simples cargos poseedores de funciones delegadas, sino que, a imagen de Roma, son encarnación misma del poder soberano de una ciudad- estado, expresión viva de su potestas. Las magistraturas ciudadanas poseen igual categorización jurídica que las de Roma; por eso, su poder tenía que emanar por vía directa de la comunidad ciudadana toda. Estaban sometidas, como las de la Urbe, a los requisitos de temporalidad y colegialidad; esto es debían ser elegidos anualmente por el populus y cada una tenía que ser ejercida de modo pluripersonal (dos o mas personas), formar un colegio magistratual con paridad de status y derecho mutuo de veto entre los componentes (lex Irnit. 27 y lex Salp.27). A las tres magistraturas citadas deben aludir algunas inscripciones cuando indican genéricamente de un personaje “que ha ocupado todos los honores en su res publica”. Sobre los magistrados locales , el desarrollo de la organización municipal , su funciones, vid. TORRENT, A.: La iurisdicitio de los magistrados municipales, ob., cit., pp.55 y ss.

32 Cfr. RICCOBONO, S. FIRA.Leges, ob., cit., p. 210.33 Vid. TANFANI, L: Contributo alla storia del municipio romano. Roma, 1970, pp.186 y ss.;

MENTXACA, R. : El Senado municipal, ob. , cit., pp. 73 y ss.34 Sobre el origen de esta magistratura, vid DE MARTINO, F.: Storia della costituzione romana. Vol

III. Napoli, 1966. p. 298. Manifi esta que esta magistratura fue introducida por Roma. En contra, Vid. ROSENBERG: Der Staat der alten Italiker, München-Berlin, 1914, pp. 45 y ss, sitúa el antecedente

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La imprecisión de los datos que se observan de esta norma ha dado lugar a unas grandes discusiones dentro de la doctrina referente al ámbito de actuación de esta magistratura.

La doctrina de mayor antigüedad36 sostiene que en los municipios actuaban los quattuoriviri, mientras que los duoviri su jurisdicción se ceñía a las colonias.

ABASCAL Y ESPINOSA37 consideran que “esta diferencia debe tener mas que ver con la época de promoción o con las costumbres locales que con motivos jurídicos, pues ambas magistraturas poseen iguales atribuciones y cumplen idénticas funciones. En algunos casos aparecen las dos en la misma ciudad, fenómeno todavía no explicado satisfactoriamente, aunque tal vez podía deberse a modifi caciones del estatuto jurídico”.

En cuanto a sus funciones, comparto la opinión de HARDY38 de considerar que este supremo órgano judicial combinaba funciones judiciales civiles y penales de un pretor romano con las administrativas de los ediles, así como las palabras de TORRENT39 referentes a la autonomía de su jurisdicción a partir de la Guerra Social.

3.1.1.2 LOS EDILES

La Tabula Heracleensis alude a los ediles40 y a sus subordinados IIIIViri y IIviri aedilicia potestate. Con mayor precisión se deducen las competencias de los ediles en

en el octovirato sabino. BERNARDI en la recensión a Dalla monarchia de MAZZARINO en Athen.XXIV (1946), p. 103 considera como precedente los IVviri praefecti Capuam Cumas. Sobre el quattuorvirato y dumvirato, TORRENT, A.: La iurisdictio, ob., cit., pp. 71 y ss.

35 Sobre los Duoviros en las leyes municipales de la Bética, vid. MENTXACA,R: El Senado Municipal en la Bética Hispana a la luz de la Lex Irnitana. Vitoria, 1993, Pp. 70-71

36 Sobre la relación entre ambos vid. igualmente: GASCOU, J.: “Duumvirat, quattuorvirat et statut dans le cités de Gaule Narbonnaise”. Epigrafía. Actes du Colleque international d epigraphie latine en mémoire de Attilio Degrassi. Roma, 1991. pp. 547 y ss.

37 Sobre las diferentes teorías a favor y en contra, vid. TORRENT, A: La Iurisdictio, ob., cit., pp. 72-80 en donde recoge las tesis de Luzzatto, Beloch, Paserini, Degrassi, Rudolph y su propia opinión.

38 ABASCAL JM Y ESPINOSA,U. ob. cit. p. 129.39 HARDY, EG: ROMAN LAW, ob., cit., pp. 147-148: “No doubt most of the duties of these municipal

magistrates were of an aedilician character. But their judicial functions were important. These were both civil and criminal. In both spheres, it was in the last resort subordinate to the supreme jurisdiction of the consuls and praetors, and it was these magistrates who had the right, of course under specifi ed conditions, vocare ex Italia cum quibus lege agi posset. (Tac. Ann. XIII.28).” Sobre la iurisdictio de estos magistrados, vid TORRENT, A: La iurisdictio. Ob. Cit. Pp. 75 y ss.

40 TORRENT, A.: La iurisdictio, ob., cit., pp.75-76: “En términos generales puede concordarse que a partir de la Guerra Social fue ciertamente quattuorvirato o el duovirato según las ciudades el supremo órgano jurisdiccional, jurisdicción que ya no era ejercida como delegada del pretor, como ocurría en los tiempos de los praefecti iure dicundo, sino que era una jurisdicción autónoma.”

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materia de distribuciones del trigo, de conservación, limpieza de vías públicas, vigilancia de los usos de los lugares públicos, careciendo de facultades en los que afecta al aspecto económico de cobro y pago, que corresponde a los cuestores.

Durante la época de la república los trabajos de conservación de la ciudad en la materia de mantenimiento son competencia de los ediles41 y sus subordinados: IV viri in urbe purgandis, mientras que las decisiones sobre nuevas obras corresponden al censor42. Desaparecida la censura tradicional, este servicio se vinculó a la edilidad hasta el principado de Severo Alejandro y desapareció poco después de su muerte en el año 240 d.C.

En la Tabula Heracleensis a los ediles tanto curules como plebeyos, en materia de vialidad, se les encomienda la función de conservación y limpieza de las vías públicas, de ahí la utilización de los verbos: reparar las calles refi cere y pavimentar-sternere -vias publicas in urbem Romam, propiusue urbem Romam passus M, refi ciundas sternendas:43 limpiar-purgare.44

En lo que se refi ere a las obligaciones y funciones que impone a la autoridad pública establece que el edil deberá cuidar fundamentalmente:

a. que todos los propietarios que den a una calle que la presente ley les obligue a conservar, lo hagan en cumplimiento de sus instrucciones.

b. que no se estanque el agua en ella, difi cultando al pueblo el tránsito por aquella calle.

Para evitar problemas de competencias entre los diferentes ediles dentro de una ciudad, de forma expresa se indica que los ediles tanto curules como plebeyos, en funciones en el momento de dictarse la ley y todos aquellos que después de votada la ley sean designado o creados o tomen posesión del cargo, dentro de los cinco meses siguientes a la

41 Sobre los ediles, vid. MOMMSEM,T, Compendio del Derecho Público romano. Traducción del ale-mán por P. Dorado, Madrid, p. 300 y ss. PATTERSON, The magistrates of the Roman republic, Nueva York, 1951; BROUGHTON, The magistrates of the Roman republic, 2 vols, Nueva Cork, 1951-52 y Supplement, Nueva York-Oxford 1960. TORRENT, A, Derecho público romano y sistema de fuentes, Zaragoza, 2002, p. 179 y ss.

42 Sobre los censores, vid. CANCELLI, Studi sui “censores” e sull “arbitratus” della “lex contractus”, Milán 1957. MOMMSEM,T, Compendio del Derecho Público romano. Traducción del alemán por P. Dorado, Madrid, p.291 y ss. SUOLAHTI, The Roman Censors. A study on Social Structure, Helsinki, 1963. TORRENT, A, Derecho público romano y sistema de fuentes, Zaragoza, 2002, p. 170y ss.

43 Tab. Her. 27 (refi ciundas sternendas); 28 (refi ciendarum)44 Tab. Her. 50 (purgandeis), 51 (purgandeis) (purgandas), 70 (purgandeis)

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elección a dicha magistratura o a su toma de posesión, deben elegir de común acuerdo o a sorteo la parte de la ciudad en la que a cada uno le va a corresponder cuidar de que se reparen y pavimenten las calles dentro de la ciudad y a menos de mil pasos de ella.

A este efecto estarán investidos de poderes que pueden ejercer en todos los lugares que se encuentren dentro de su distrito para ordenar que se realice la reparación y conservación de calles a la que obliga esa ley. Tab. Her.24-2945.

Si el propietario obligado a conservar la vía incumplía su obligación, el edil que tuviera a su cargo la zona podía ejecutar la misma a costa del propietario renuente mediante arriendo del citado servicio a un tercero, en la forma establecida en Tab.Her. 32-50 donde se regula un procedimiento de ejecución forzosa.

Los ediles, los IVviri y IIviri eran los encargados de ordenar la recogida de basuras y despojos diversos-stercus- procedentes de casas y mercados que lo mismo que en la actualidad eran depositados en calles, plazas y edifi cios públicos, estando a esos efectos investidos de las mismas atribuciones que tenían anteriormente de acuerdo con aquello a que les obligan las leyes, los plebiscitos o senadoconsultos, sin que esta ley derogue nada de lo que ya estaba establecido, tal como se establece en Tab.Her.50-53.46

Los ediles y IVviri eran la autoridad pública competente en la ciudad, atribuyéndose la función de la limpieza extramuros de la ciudad de Roma y a menos de mil pasos a los IIviri.

A los ediles y a los magistrados a quienes se encuentra encomendada la limpieza de los lugares públicos de la ciudad de Roma y a menos de mil pasos de la misma, les encomienda la función de vigilancia de los lugares públicos o pórticos públicos47 que existen en el momento de dictarse la lex y aquellos que puedan existir en un futuro.

Dentro de estas funciones de vigilancia de forma expresa les impone:

45 Tab. Her.24-29: Aed(iles) cur(ules) aed(iles) pl(ebei), quei nunc sunt, queiquomque post h. l. r(ogatam) factei createi erunt eumue mag(istratum) inierint, iei in diebus V proxumeis, | quibus eo mag(istratu) designatei erunt eumue mag(istratum) inierint, inter se paranto aut sortiunto, qua in partei urbis quisque | eorum uias publicas in urbem Romam, propiusue u(rbem) R(omam) passus M, refi ciundas sternendas curet, eiusque rei procurationem | habeat. Quae pars quoique aed(ilei) ita h. l. obuenerit, eius aed(ilis) in eis loceis, quae in ea partei erunt, uiarum refi cien|darum tuemdarum procuratio esto, utei h. l. oportebit”.

46 Tab.Her. 50-53: “Quo minus aed(iles) et IIIIuir(ei) uieis in urbem purgandeis IIuir(ei) uieis extra pro-piusue urbem Rom(am) passus [M] | purgandeis, queiquomque erunt, uias publicas purgandas curent eiusque rei potestatem habeant, | ita utei legibus pl(ebei)ue sc(itis) s(enatus)[ue] c(onsultis) oportet oportebit, eius h. l. n(ihilum) r(ogatur)”.

47 D. 43.8.2.3 Ulpianus libro LXVIII ad edictum indica que Labeón defi ne de que manera se entiende la denominación de lugar publico, de modo que se refi era a los solares, a las casas, a los campos, a las vías publicas y a los caminos públicos.

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A. Impedir la elevación de edifi cios o construcciones en tales lugares o pórticos.B. Impedir que se apodere alguien de estos lugares o de algunos de estos pórticos

indebidamente.C. Impedir la instalación de vallas o cierres que hagan difícil al pueblo el acceso

a estos pórticos o se lo cierren.

Si bien esta es la regla general, contempla las siguientes excepciones en las que de forma expresa indica que la ley no deroga nada de ello:

a. Casos en los que las leyes, plebiscitos o senadoconsultos otorguen una con-cesión o permiso a determinadas personas.

b. Lugares que fueron establecidos para el uso y disfrute temporal de arrendamiento de contribuciones o de los mercados de provisiones, como consecuencias de las cláusulas de un contrato establecido ahora en un futuro por el censor u otro magistrado.

c. Celebración de juegos en Roma o a menos de mil pasos de la ciudad de Roma. En este caso se reconoce que existe derecho, como existía anteriormente a erigir estrado, tarima o cuanto sea necesario para tales juegos. Lo mismo que reconoce la existencia de derecho a usar el lugar publico durante su celebración.

d. Los aparitores de los magistrado como sucedía en el pasado podían hacer uso de los lugares públicos en donde les orden establecerse el magistrado al que sirvan.

e. Los lugares cuyo uso y habitación hayan sido concedidos a los esclavos por los censores seguirán destinados para el mismo fi n.

3.1.1.3 LOS CUESTORES.

A esta magistratura se refi ere el texto de la norma en relación con el aspecto económico derivado del sistema de ejecución forzosa establecido por la ley en materia de conservación de las vías públicas, atribuyendo al mismo la competencia para la celebración del contrato de arriendo, para la inscripción en el registro de créditos del estado y para las fases que han de seguirse para el cobro del crédito48.

48 vid. Tab. Her. 32-50. En Hispania, estos magistrados no aparecen entre los magistrados de Urso instituyéndose esta magistratura en las leyes fl avias de la Betica.

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3.1.1.4 REQUISITOS PARA ACCEDER A LAS MAGISTRATURAS

El texto de la tabla que hace referencia a estos requisitos es el siguiente:

“Quei minor annos XXX natus est erit, nei quis eorum post k. ianuar. secundas in municipio colonia praefe|ctura IIuir(atum) IIIIuir(atum) neue quem alium mag(istratum) petito neue capito neue gerito, nisei quei eorum stipendia | equo in legione III, aut pedestria in legione VI fecerit, quae stipendia in castreis inue prouincia maiorem | partem sui quoiusque anni fecerit, aut bina semestria, quae ei pro singuleis annueis procedere oporteat, aut ei uocatio rei militaris legibus pl(ebei)ue scitis exue foidere erit, quocirca eum inueitum merere non oporteat. Neue quis, quei praeconium dissignationem libitinamue faciet, dum eorum quid faciet, in municipio colonia praefectura IIuir(atum) IIIIuir(atum) aliumue quem mag(istratum) petito neue capito neue gerito neue habeto, | neue ibei senator neue decurio neue conscriptus esto, neue sententiam dicito. Quei eorum ex eis, quei s(upra) s(criptei) s(unt), | aduersus ea fecerit, is HS ICCC p(opulo) d(are) d(amnas) e(sto), eiusque pecuniae quei uolet petitio esto”.

La Tabula Heracleensis de forma expresa se refi ere en este apartado a los IIviri y IIIIviri o a cualquier otra magistratura de los municipios, colonias o prefectura. En este apartado se observa la omisión de fora o conciliabula, lo que ha llevado a algún sector de la doctrina ha considerar que estas pequeñas ciudades carecían de duoviri o quattuorviri49.

Para acceder a las magistraturas se requiere:

1. Una edad mínima que se sitúa en 30 años, reducida en relación con los diferentes periodos de servicios prestados en la legión que varían según si los servicios fueron prestados en caballería o en infantería. Si los servicios en el ejercito fueron prestados en caballería se exige que hubiera participado en tres campañas, mientras que si su participación fue en infantería se le exige seis campañas- nisei quei eorum stipendia equo in legione III, aut pedestria in legione VI fecerit.

2. No ejercer profesión incompatible. Considera como profesiones incompatibles con la magistratura y la pertenencia al senado la de pregonero-praeconium; la de acomodador -dissignatio y la de enterrador-libitina.

Estas circunstancias son causas de incompatibilidad, de tal forma que cuando renuncian a estas profesiones cesan las mismas. En este sentido comparto la opinión de DE MARTINO50, quien considera que el ejercicio de la actividad de praeconium y de libitina deben ser actuales -faciet, dum eorum quid faciet. Para ello se fundamenta en:

49 HARDY, EG :Roman Law, Ob., cit., p. 155. n.750 DE MARTINO,F. Ob. Cit., pp. 344-345.

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a. El testimonio de Cicerón en una carta escribiendo a Lepta en en Febrero del año 45 d.C (ad. Fam. 6.18.1)51. El orador había recibido una consulta de Seleuco, uno de los familiares de Lepta, a fi n de que le informara sobre el tenor de la ley, para determinar si la inelegibilidad derivada de praeconium se refería también al ejercicio pasado de esta actividad. Conforme a las disposiciones de la Tab. Hera. Cicerón respondió que la norma no se refería al pasado, lo que quiere decir que el candidato podía desistir de su actividad de praeconium en cuyo caso el obstáculo desaparecía.

b. El tenor literal del texto- líneas 94 y ss-, en el que los verbos indican la actividad presente frente a otras partes de la ley, donde se usan expresiones características fecit, fecerit; est, erit; fuit, fuerit para indicar la actividad pasada, presente o futura.

3.2 EL SENADO

Los principios mas destacables de la reorganización del senado local que se observan de la ley pueden sintetizarse en los siguientes:

a. Para designar al senado local se emplea reiteradamente el término senatus52 y no el de ordo decurionum, sin embargo en la misma ley, para referirse a los componentes de dicha cámara municipal se emplea la locución senator, decurio53, conscriptus54 en diversas variables55.

b. Generalización en todas las comunidades del sistema de la lectio magistratual, que ya estaba en vigor en las ciudades de fundación romana. La elección de decuriones o conscriptos la debían realizar los magistrados supremos.

51 H Cfr. Cic. Ad fam. 6. 18. 1.52 Tab. Her. 86; 105-106; 109; 124-125; 128. 133-134; 136.53 MENTXACA, R: El senado municipal, ob., cit., pp. 78-79 analiza el problema interpretativo que

se plantea con la locución decurinum conscriptorumve a propósito de la lex irnitana, pero cuyos argumentos sirven para la Lex Julia municipalis. Sobre la signifi cación histórica de la palabra decurión, vid. TANFANI, L.: Contributo alla storia del municipio romano, ob., cit., pp. 207-208. Entre otros, Vid. Tab. Her. 84- 87: quo nomine mag(istratum) potestatemue su<f>ragio eorum, quei quoiusque municipi{a} coloniae praefecturae/ for<i> conciliabuli erunt, habebunt, nei quis eorum que in eo municipio colonia{e} praefectura{t} <f>oro concilia-/bulo <in> senatum decuriones conscriptosue legito neue sublegito neue co{a}ptato neue recitandos curato/ nisi in demortuei damnateiue locum eiusue quei confessus erit, se senatorem decurionem conscreiptumue/”. Tab.Her 96: neue ibei senator neue decurio neue conscriptus esto neue sententiam dicito. Tab. Her. 104-107: neue eum, quei praeconium dissignationem libitina<m>ue/ faciet, dum eorum quid faciet, IIuir(um) IIIIuir(um), queiue ibei mag(istratus) sit, renuntiato, neue in senatum neue in de-/curionum conscriptorum numero legito sublegito coptato neue sententiam rogato neue dicere neue/ ferre iubeto

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Temas de Direito Privado350

La Tabula Heracleensis utiliza igualmente la terminología legere, sublegere, cooptare, recitandos curare56. La utilización de estos términos ha provocado una discusión en la doctrina.

MOMMSEN57 sostiene que sublegere hace referencia a la elección de una persona para sustituir a otra, para ocupar su puesto.

DE RUGGIERO58 destaca que solo legere y sublegere se refi eren a la admisión de los decuriones mientras que cooptare hace referencia a la nominación por el senado.

D´ORS59 resalta: “Es de suponer que la lectio se hiciera de conformidad con la ley Julia municipal, por los quinquennales, cada cinco años, aunque se conserva el nombre cooptatio, junto a lectio, sublectio, adlectio, lo que parece corresponder a una antigua cooptación por los mismos decuriones.”

MENTXACA60 en relación con las referencias que encuentra en la lex irnitana indica que “los decuriones eran nombrados formalmente (lecti) como tal cuando el

sc(iens) d(olo) m(alo). Tab. Her. 110 y ss: nei quis in eorum quo municipio/ colonia praefectura <foro> conciliabulo <in> senatu decurionibus conscreipteisque esto, neue quo<i> ibi in eo ordine/ sen{ten}temtiam deicere ferre liceto, quei furtei quod i<ps>e fecit fecerit condemnatus pactusue est erit.Tab.Her. 124-127: aduersus ea in municipio colonia praefectura{ue} foro conciliabulo <in senatu> decurionibus conscripteisue <f>uerit/ sentemtiamue dixerit, is (sestertium) (quinquaginta milia) p(opulo) d(are) d(amnas) esto, eiusque pecuniae quei uolet petitio esto. vacat/ quoi h(ac) l(ege) in municipio colonia praefectura foro conciliabulo senatorem decurionem conscriptum esse/ inque eo ordine sentemtiam dicere ferre non licebit, nei quis, quei in eo municipio colonia praefectura. Tab.Her 128-131: foro conciliabulo senatum decuriones conscriptos habebit, eum in senatum decuriones conscriptos/ ire iubeto sc(iens) d(olo) m(alo) neue eum ibei sentemtiam rogato neiue dicere neiue ferre iubeto sc(iens) d(olo) m(alo); neue quis, que<i>/ in eo municipio colonia praefectura foro conciliabulo sufragio eorum <---> maxumam potestatem habebit,/ eorum quem ibei in senatum decuriones conscriptos ire, neue in eo numero esse n<e>ue sentemtiam ibei dicere/.

54 Tab. Her. 87-88; 96, 127. Vid. MOMMSEN,TH.: Römisches Staatsrecht, Leipzig, 1887. p. 840, n. 1. defi ende que estos términos tanto en la Tabula Heracleensis, como en las leyes salpensana y malacitana son utilizados como sinónimos. TANFANI, L.: Contributo alla storia del municipio romano, ob., cit., pp. 208-210 le parece que cada uno de ellos indica un mismo concepto bajo formas distintas. Con el nombre de senadores se quiere designar los miembros de la curia de la ciudad latina, los cuales al menos aparentemente mantienen una sombra de la antigua soberanía; decuriones son pro el contrario los miembros del consejo administrativo de los municipios y de las colonias, civium romanorum, fundadas por Roma en Italia, y en las provincias, formadas por las que comprendían la administración de la ciudad itálica, que después de la guerras sociales recibían la ciudadanía romana y de la ciudad provincial, que poco a poco venían adquiriendo este derecho. La denominación de conscripti se había probablemente conservado en los municipios con aquel mismo signifi cado que tenía en roma cuando se oponía a patres. Con tal nombre se trataba de distinguir lo consejeros(decuriones) llamados para ocupar los puestos dejados vacantes en el consejo, por causa de muerte, o por expulsión de aquellos que pertenecían a la curia por derecho, nobleza de sangre o por censo.”

MENTXACA, R: El senado municipal. Ob. Cit página 82 sugiere la siguiente hipótesis interpretativa. “El término senatores se refi ere a los miembros del antiguo órgano de gobierno de la comunidad peregrina y el de decuriones conscriptive a los antiguos magistrados que habrían surgido en esta fase transitoria entre el otorgamiento de la latinidad por Vespasiano y la organización defi nitiva

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La Tabula Heracleensis: Organización Municipal 351

magistrado llevaba a cabo la confección del álbum municipal, en este caso concreto, cuando se ofi cializaba y regularizaba el senado anterior, es decir, con la entrada en vigor de la ley, que supondría lógicamente confeccionar por primera vez en el municipio dicho album. Sin embargo, el término sublecti se emplearía para designar a aquellos que habían sido nombrados miembros del senado pero de manera individual, es decir, sin esperar a la elección quinquenal, al producirse vacantes puntuales y ser necesario cubrir las mismas para, entre otras cosas, hacer posible la convocatoria de sesiones y la toma de decisiones por existir el número mínimo requerido de senadores para ello”.

La Tabula Heracleensis omite explícitamente la periodicidad de esta lectio magistratual.La doctrina, entre otros LAFFI61 y TANFANI62, viene admitiendo comúnmente

que son quinquenales, lo que se encuentra ampliamente documentado por la epigrafía y completado con las operaciones del censo que la misma Tab. Her. 142-158 indica tiene lugar cada 5 años en concomitancia con las operaciones del censo que se desarrollan en Roma.

c. El reclutamiento de decuriones se realizaba entre ex-magistrados de tal forma que los requisitos que se requerían para la admisión al ordo valían también para los magistrados, en tanto en cuanto, como se afi rma explícitamente en la Tab. Her. 137 a través del ejercicio de una magistratura se accedía al ordo. La recepción de esta norma se observa en la Lex Pompeia63.

d. En caso de insufi ciencia de ex-magistrados para completar el senado, el magistrado encargado de la lectio reclutaba a otras personas que no habían sido magistrados, y que recibían el nombre de pedanei o pedarii.

del municipio mediante la Ley Flavia, y que a medida que ponían punto y fi nal a su actividad como magistrados iban engrosando el número de componentes del Senado local ya existente.” Sobre senadores e conscripti, vid. TANFANI, L.: Contributo alla storia del municipio romano, ob., cit., pp. 208-210. GALEANO DOMÍNGUEZ,A: El Termino conscripti en la epigrafía hispana e italiana: un nuevo acercamiento a su signifi cado. HABIS 30, 1999, pp. 315 ss.

55 MENTXACA, R: El senado municipal. Ob. Cit. Pp. 80 y ss.56 Tab. Her. 86-106. Sobre los signifi cados de legere, sublegere, vid HEUMANN, SECKEL:

Handlexikon zu den Quellen des römischen Rechts. 10 ed. Graz, 1958. p. 309 y 561..57 MOMMSEN, Th: Römisches Staatsrecht.3.2 Ob. Cit., p. 855 nº 2. Se fundamenta en fuentes

literarias y en D. 50.2.2. pr.58 DE RUGGIERO: La patria nel diritto pubblico romano. Roma, 1921, p. 126 y ss.59 D´ORS, A.: Epigrafi a jurídica de la España romana. Madrid, 1953. p. 147.60 MENTXACA, R: El senado Municipal. Ob. Cit. P.84-85.61 LAFFI, U: “I senati locali nell´Italia Repubblicana”. Les Burgeoisies municipales italiennes aux Iie.

Et Ier. Siècles Av. J.C.,Paris-Neaples, 1983, p. 72. considera que la Tab. Heracleensis generalizó en las comunidades de ciudadanos romanos el sistema de la lectio censoria que tenía lugar cada cinco años, en lugar de llevar a cabo la lectio el censor, la efectuaban los magistrados municipales cada cinco años (lectio quinquennalis).

62 TANFANI, L.: Contributo alla storia del municipio romano, ob., cit., pp. 214 y ss.63 Plinio, Epist. X, 79.1.

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Temas de Direito Privado352

e. Para formar parte del senado, los magistrados que habían cumplido su año en el cargo y ya habían adquirido su derecho a entrar en el senado, debían esperar para su nombramiento a la lectio quinquenal. En el intermedio se les admitía a participar en las reuniones del senado únicamente para poder expresar u opinión - ius sententiae dicendae64.

f. En cuanto al número de decuriones que formaba parte del senado, la Tabula Heracleensis guarda silencio, sin que se indique un número absoluto válido para todas las comunidades. Cada Estatuto fi jaba el número que consideraba para la respectiva comunidad, unas veces eran 100, en otros casos, como Castrimoenium era 3065.

g. La duración en el cargo de senador parece ser que tenía el carácter de vitalicio. La Tabula Heracleensis66 prohibe el nombramiento de nuevos senadores, salvo para los supuestos de fallecimiento o dimisión de los que existían por causas de incompatibilidad -Queiquomque in municipieis coloneis praefectureis foreis conciliabuleis c(ivium) R(omanorum) IIvir(ei) IIIIvir(ei) erunt aliove quo nomine mag(istratum) potestatemve sufragio eorum, quei quoiusque municipi coloniae praefecturae fori conciliabuli erunt, habebunt: nei quis eorum quem in eo municipio colonia praefectura foro conciliabulo [in] senatum decuriones conscriptosve legito neve sublegito neve coptato neve recitandos curato, nisi in demortuei damnateive locum eiusve, quei confessus erit, se senatorem decurionem conscreiptumve ibei h. l. esse non licere.

h. Se regulan de forma detallada los requisitos que debían poseer los aspirantes al decurionato en la siguiente forma:

I. Como regla general se exige la edad mínima de 30 años, al igual que para las magistraturas. No obstante se admiten excepciones a no tener cumplidos los 30 años, tomando en cuenta los diferentes periodos de servicios prestados en el ejercito como caballero- tres campañas- o en infantería- seis campañas.

II. Se omite la ingenuitas, así como un requisito especial de cualifi cación cen-sitaria, sin que esté claro si se exigían o no dichas condiciones.

III. Se disponen unas causas de incompatibilidad: que pueden sistematizarse en:

54 Tab. Her. 96; 106; 110; 125; 127; 129; 131.65 ILS 3475. Sobre el álbum de los decuriones vid. TANZANI, L.: Contributo alla storia del municipio

romano, ob., cit., pp. 242 y ss.66 Tab. Her. 83-88: “Queiquomque in municipieis coloneis praefectureis foreis conciliabuleis civium Ro-

manorum IIvirei IIIIvirei erunt aliove quo nomine magistratum potestatemve sufragio eorum, quei quoiusque municipi coloniae praefecturae fori conciliabuli erunt, habebunt: nei quis eorum quem in eo municipio colonia praefectura foro conciliabulo in senatum decuriones conscriptosve legito neve sublegito neve coptato neve recitandos curato, nisi in demortuei damnateive locum eiusve, quei con-fessus erit, se senatorem decurionem conscreiptumve ibei h. l. esse non licere”.

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La Tabula Heracleensis: Organización Municipal 353

III.1 Profesiones Incompatibles: La de Pregonero - Praeconium; Acomodador - Dissignatio; Enterrador - Libitina

III.2 Profesiones consideradas indignas como es el caso del delator, el que se dedicaba al lenocidio, el lanista o comediante, el gladiador

Estas profesiones se consideraban indignas o infames haciendo perder al in-dividuo todo derecho a participar en la curia, aunque el que se presentara a candidato, hubiese abandonado su profesión hace algún tiempo.

IV. No haber sido condenado ni civilmente, mediante la declaración de insolvencia ni penalmente

TANFANI67 indica que el fundamento de la insolvencia como impedimento para desempeñar el cargo de decurión se encontraba en que el gobierno central quería asegurar que el decurión no viniera a menos en su ámbito privado, ya que la misma conducta podría observarla frente a sus obligaciones públicas- munera patrimonii.

Entre los supuestos enumerados en la Tabula Heracleensis como supuestos de condena penal, se destacan los siguientes:

1. La condena en ciertos juicios privados seguidos como consecuencia de acciones infamantes, como es el caso de la actio fi duciae, pro socio, tutelae, actio mandati, actio iniuriarum.

2. La condena por hurto.3. Por haber infringido la ley pletoria que sancionaba como reos a los que

habían abusado de la inexperiencia de los menores de 25 años.4. Por juicio público en Roma y en los municipios.5. Por calumnia o prevaricación.6. Por penas sufridas durante el servicio militar: degradación etc.

i. Se hace referencia a honores y privilegios que corresponden a los decuriones68. De forma explícita se refi ere el texto normativo en las líneas 133-134 y 137-139 al derecho a sentarse en puestos reservados en espectáculos públicos y el derecho a participar en públicos banquetes69.

67 TANZANI, L.: Contributo alla storia dell municipio, ob., cit., p. 223.68 DUNCAN JONES: The Economy of the Roman Empire.Cambridge, 1982, p. 141 resalta como

privilegio el derecho a recibir cuotas mayores en la distribución de donativos- sportulae.69 Tab. Hera. 133-139: “ non licebit, n<e> quis eorum in municipio colonia praefectura foro

conciliabulo IIuir(atum) IIIIuir(atum) aliamue/ quam potestatem, ex quo honore in eum ordinem perueniat, petito neue capito; neue quis eorum ludeis,/ cumue gladiatores ibei pugnabunt, in loco senatorio decurionum conscriptorum sed<e>to neue s<p>ectato/ neue conuiuium publicum is inito; neiue quis, quei aduersus ea creatu<s> renuntiatu<s> erit, ibei IIuir IIIIuir”.

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Temas de Direito Privado354

3.3 CENSO

La tradición romana atribuye a Servio Tulio la elaboración del censo70. Los censos se realizaron también en las colonias y los municipios. En algunas provincias estos censos locales se remontan incluso a una época republicana.

El texto normativo71, que sienta determinados principios en esta materia es del siguiente tenor:

Quae municipia coloniae praefecturae c(iuium) R(omanorum) in Italia sunt erunt, quei in eis municipieis coloneis praefectureis maximum mag(istratum) maximamue potestatem ibei habebit tum, cum censor aliusue quis mag(istratus) Romae populi censum aget, is diebus LX proxumeis, quibus sciet Romae censum populi agi, omnium municipium colonorum suorum queique eius praefecturae erunt, q(uei) c(iues) R(omanei) erunt, censum agito, eorumque nomina praenomina, patres aut patronos, tribus, cognomina, et quot annos quisque eorum habet, et rationem pecuniae ex formula census, quae Romae ab eo, qui tum censum populi acturus erit, proposita erit, ab ieis iurateis accipito; eaque omnia in tabulas publicas sui municipi referunda curato; eosque libros per legatos, quos maior pars decurionum conscriptorum ad eam rem legarei mittei censuerint tum, cum ea res consuleretur, ad eos, quei Romae censum agent, mittito; curatoque, utei, quom amplius dies LX reliquei erunt, ante quam diem ei, queiquomque Romae censum aget, fi nem populi censendi faciant, eos adeant librosque eius municipi coloniae praefecturae edant; isque censor, seiue quis alius mag(istratus) censum populi aget, diebus V proximeis, quibus legatei eius municipi coloniae praefecturae adierint, eos libros census, quei ab ieis legateis dabuntur, accipito s(ine) d(olo) m(alo), exque ieis libreis, quae ibei scripta erunt, in tabulas publicas referunda curato, easque tabulas eodem loco, ubei ceterae tabulae publicae erunt, in quibus census populi perscriptus erit, condendas curato. Qui pluribus in municipieis coloneis praefectureis domicilium habebit, et is Romae census erit, quo magis in municipio colonia praefectura h. l. censeatur, e(ius) h. l. n(ihilum) r(ogatur).

Estas disposiciones normativas demuestran que en los municipios, colonias, prefecturas72 la función del censo debía ser ejercitada por el magistrado mayor, esto es la máxima magistratura o quien tuviese la mayor potestad, en el momento en que en Roma se haga el censo. A este magistrado se le encomienda la elaboración del mismo en los 60 días siguientes a aquellos en que tuviera noticia que en Roma se había iniciado la elaboración del censo.

70 TITO LIVIO, I,42,4-44. La creación de la censura en el 443 (Tito Livio, IV, 8, 2: ídem hic annus censurae initium fuit, rei a parva origine ortae) se considera como una reacción patricia (STAVELEY, «The Signifi cance of the consular Tribunate». J.R.S., 43, 1953, pág. 30.

71 Tab. Her. 142-158.72 Tab. Her. 142 y ss. omite entre la lista de comunidades a fora y conciliabula. En este sentido HARDY,

EG: Roman Law, Ob., cit., p.160. n. 22, indica que los habitantes de estas pequeñas ciudades eran incluidos en el censo de comunidades vecinas más amplias. Un estudio en profundidad sobre el censo de la Tabula Heracleensis lo realiza LO CASCIO,E: Le profesiones della Tabula Heracleensis e le procedure del censu in età cesariana, Athenaeum 78, 1990, pp.287-317.

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La Tabula Heracleensis: Organización Municipal 355

Se detallan las normas para la formación del elenco de personas de la colonia, municipio o prefectura que debían incluirse en el censo, debiendo constar de cada individuo, según la formula del censo que exponga en Roma quien haga en ese momento el censo del pueblo, los siguientes datos:

– el nombre- nomen.– el praenomen, – sus padres o patronos,– la tribu a la que pertenece, – el cognomen, – su edad, – su patrimonio-rationem pecuniae.

La declaración debía hacerse por cada ciudadano bajo juramento.Todos estos datos se incluían en un registro público de su respectiva comunidad-

tabulas pública. Las tahulae publicae locales eran, desde luego, necesarias para llevar un registro exacto de las nuevas incorporaciones a la ciudadanía romana.

Igualmente se disciplinaba el procedimiento para enviar estos datos a Roma, lo que se efectuaba por medio de delegados, seleccionados para este propósito por la mayoría de los decuriones o conscripti presentes en la reunión convocada para su selección.

Una vez elegidos, debían hacer llegar los datos a Roma, en donde eran entregados al censor o a otro magistrado que efectuase el censo- seiue quis alius mag(istratus) censum populi aget73 - antes de los 60 días de que fi nalizaran las operaciones del censo que se efectuaban en la capital, para facilitar a los censores inscribir en la lista general también a los ciudadanos de las comunidades itálicas.

Las medidas que la Tabula Heracleensis trataba de imponer tenían por fi nalidad una coordinada recepción de todos los datos locales en los archivos de la Urbs, incluyendo una fecha límite, a fi n de que el Estado pudiese tener una información completa y actualizada de sus recursos humanos y económicos.

De esta forma se conseguía componer el registro general del pueblo romano, en donde cada ciudadano quedaba censado con los datos anteriores más el municipio de residencia, que suponía una novedad que no existía en los censos antiguos.

Como una apreciación más que los censores municipales debían tener en cuenta, la Tabla de Heraclea (líneas 157 ss.) señalaba que cualquier persona que tuviese su

73 Tab. Her. 152-156: censum age<nt>, fi nem populi ce<n>sendi faciant, eos adea<nt> librosque eius municipi coloniae praefecturae/ edant; isque censor, seiue quis alius mag(istratus) censum populi aget, diebus (quinque) proxumeis, quibus legatei eius/ municipi coloniae praefecturae adierint, eos libros census, quei ab ieis legateis dabuntur, accipito/ s(ine) d(olo) m(alo); exque ieis libreis quae ibei scripta erunt in tabulas publicas referunda curato, easque tabulas

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Temas de Direito Privado356

domicilium en varios municipios, colonias o prefecturas, y que se hubiese registrado como ciudadano romano en el census de Roma, no tenía obligación de inscribirse en el censo de tales comunidades.

De la regulación que en esta materia efectúa la Tabula Heracleensis se observan las siguientes cuestiones:

a) La descentralización del censo, de tal forma que para inscribirse en el censo no es preciso viajar a Roma, pudiendo efectuarse la inscripción en los municipios y colonias, mediante una formula que luego era enviada por delegados a Roma.

b) Los censores no son los únicos magistrados encargados en la elaboración del censo, de tal forma que además de los censores habla de la existencia de otros magistrados que participan en el censo en la misma Roma.

c) la existencia de una fórmula censoria- ex formula census- que se indica se exponga en Roma, quien en ese momento haga el censo del pueblo, cuyo contenido menciona en el mismo texto, en el que indica los datos que deben registrarse en el censo.

d) la referencia al dolo malo en las operaciones del censo.

A TABULA HERACLEENSIS: ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL

Resumo: Este trabalho analisa a Tabula Heracleensis, destacando os problemas enfrentados pela doutrina no âmbito de sua aplicação e na sua identifi cação com a chamada Lex Iulia Municipalis. A segunda parte deste trabalho apresenta o conteúdo da Tabula, por meio de esquema. Finaliza-se com a análise das disposições normativas que afetam a organização municipal: a) Magistraturas: classes de magistrados: IVviri y IIviri, Ediles, Cuestores e requisitos para ascender às magistraturas; b) Senado; c) Censo, analisando o magistrado encarregado de sua elaboração, prazo, conteúdo e procedimento para enviar os dados a Roma.

Palavras-chave: Tabula Heracleensis. Magistrados. Edis. Senado. Censo.

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Será que o Direito é um FenômenoNatural? Uma Crítica da Posição de Pontes de Miranda

Günther MaluschkeDoutor em Filosofi a pela Universidade de Bonn. Livre-docente pela Universidade de Tübingen (Alemanha)[email protected]

Sumário: Introdução. 1. O cientifi cismo de Pontes Miranda e seus problemas. 2. Problemas do método indutivo. Conclusão.

Resumo: A temática deste artigo é um exame crítico da tese da “Naturalidade do Fenômeno Jurídico” de Pontes de Miranda assim como uma refutação do método indutivo defendido por este autor, mas não aceito por Einstein como método adequado das ciências. Em contraste ao cientifi cismo de Pontes de Miranda pretende-se mostrar a superioridade de uma “sociologia compreensiva” no sentido de Max Weber.

Palavras-chave: Natureza. Naturalidade. Cientifi cismo. Método indutivo. Sociologia compreensiva.

INTRODUÇÃO

Na abertura do V Encontro de Iniciação à Pesquisa, no dia 27 de maio de 2009, proferi, na Faculdade 7 de Setembro, em Fortaleza, uma conferência com o título Bioética e Biodireito: Aspectos e Controvérsias (Maluschke, 2009). Nesta conferência, defendi, entre outras coisas, a tese de que tanto normas morais quan-to jurídicas são invenções humanas, invenções necessárias para a sobrevivência da humanidade e para o nosso bem-estar. Somos nós que impomos nossos padrões à natureza, introduzindo assim a moral e o direito no mundo natural, que, em si nem é moral nem imoral, nem justo nem injusto.

Ciências descrevem e explicam os fenômenos e regularidades do mundo. Normas morais e jurídicas não são fenômenos e regularidades do mundo natural; são criações culturais; são fenômenos e regularidades particulares (não universais) do

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mundo cultural. O homem é por natureza um ser cultural; o resultado de suas atividades culturais é a natureza transformada em paisagem cultural. A cultura é, de certo modo, a segunda natureza do homem, sua maneira de se instalar no mundo.

No entanto, não existe – conforme a natureza propriamente dita – uma única “segunda natureza”. Entende-se por cultura o modo de viver de um povo ou de uma nação, incluindo atitudes, crenças, valores e normas, artes, ciências, modos de pensamentos e de ação. Há várias culturas e, em conformidade com isto, uma pluralidade de éticas praticadas e de sistemas jurídicos. Não podemos negar o simples fato de que aquilo que é considerado verdadeiro, legítimo, valorizado, justo ou apreciado em um sistema social nem sempre o é em outro. Além disso, pode-se constatar que no mundo globalizado hoje em dia dentro da mesma cultura há opiniões morais heterogêneas, infl uenciadas por diferentes religiões, ideologias e concepções do mundo. Esta heterogeneidade de opiniões normativas é um indício de que o estudo de questões de interesse vital como a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, não pode ter uma pretensão à objetividade comparável com o conhecimento das ciências da Física, Química, Biologia, Matemática etc.

Baseando-me nestas ideias analisei, naquela conferência de 27 de maio de 2009, uma série de incertezas morais que são a principal razão pela qual se ocasionou a for-mação das duas disciplinas relativamente novas: a Bioética e o Biodireito.

Depois da conferência, o professor Agerson Tabosa me avisou que a posição por mim defendida contrastava absolutamente com a ideia da “Naturalidade do Fenô-meno Jurídico” de Pontes de Miranda. Esta informação motivou a minha curiosidade por Pontes de Miranda, pois quis saber se as ideias e argumentos dele podiam me convencer e me obrigar a abandonar meus erros. No fi nal, porém, a leitura levou-me a desenvolver uma crítica à posição de Pontes de Miranda, que apresento neste artigo.

1 O CIENTIFICISMO DE PONTES DE MIRANDA E SEUS PROBLEMAS

Pontes de Miranda era, com certeza, um sábio universal, perito de Matemática, Lógica, Física, Química, Biologia; e sua imponente erudição manifesta-se, sobretudo, nas suas numerosas e grandes obras de Direito. No verso da capa do livro do professor Agerson Tabosa, Sociologia Geral e Jurídica (2005), encontra-se o seguinte citado de Pontes de Miranda (1983, p. 16):

No Direito, se queremos estudá-lo cientifi camente como ramo positivo do conheci-mento, quase todas as ciências são convocadas pelos cientistas. A extrema complexi-dade dos fenômenos implica a diversidade do saber. As matemáticas, a geometria, a física e a química, a biologia, a geologia, a zoologia e a botânica, a climatologia, a antropologia e a etnografi a, a economia política e tantas outras constituem manan-

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ciais em que o sábio da ciência jurídica bebe o que lhe é mister. Nas portas das escolas de direito devia estar escrito: aqui não entrará quem não for sociólogo. E o sociólogo supõe o matemático, o físico, o biólogo. É fl or de cultura.

Esta declaração soa como o anúncio de um projeto extremamente ambicioso, e afi rmativas com este teor são bem típicas na obra de Pontes de Miranda. De fato, a objeção de que este programa é exigente demais e ultrapassa as capacidades científi -cas e profi ssionais da grande maioria dos “sábios da ciência jurídica” é, com certeza, pertinente, mas não atinge o conteúdo da ideia do autor. É possível que o Direito seja uma disciplina de extrema complexidade, e talvez muitos juristas não tenham a com-petência de cumprir adequadamente as tarefas de sua profi ssão. Pontes de Miranda critica severamente juristas que simplesmente identifi cam o Direito com as leis escritas nos códigos jurídicos.

Os verdadeiros problemas são os seguintes: como é possível utilizar adequada-mente a multiplicidade dos conhecimentos específi cos para explicar e compreender a extrema complexidade dos fenômenos na área do Direito? Como se orientar no vasto campo do saber com suas grandiosas descobertas e suas controvérsias sem fi m; como se desviar do perigo de se perder em becos sem saída; como escolher os conhecimentos relevantes para a solução dos problemas em questão e não se obstinar em conhecimen-tos esotéricos e inúteis? Como se pode transformar a diversidade do saber em saber lógica e sistematicamente organizado? E como se pode justifi car – e eis aí a nossa questão principal – que o fenômeno jurídico é um fenômeno natural?

Os especialistas em Pontes de Miranda podem oferecer uma primeira resposta: ele parte do princípio da unidade das ciências; defende a interdisciplinaridade, com o intuito de que pela colaboração das várias disciplinas na análise das relações sociais podem-se descobrir o Direito e sua efi cácia. Por isso também se compreende a posição de destaque da Sociologia, pois é nas relações sociais, e não nos códigos jurídicos, que se revela o Direito. O método utilizado por Pontes de Miranda é o método indutivo-experimental, segundo ele o método único, exclusivo, na pesquisa científi ca, com grande sucesso utilizado nas ciências naturais.

Esta resposta não é satisfatória. Considerar o método indutivo como método por excelência da pesquisa científi ca é problemático. Nem mesmo o próprio Pontes de Miranda é consequente na aplicação desse método. Mostraremos que uma série de seus argumentos epistemologicamente relevantes não se fundamentam no método indutivo. E a identidade do método utilizado nas ciências naturais e no Direito – mesmo se for aceita essa tese duvidosa – não justifi ca a naturalidade do fenômeno jurídico. No entanto, antes de elaborar esta crítica central mais detalhadamente, deve-se analisar a argumentação de Pontes de Miranda.

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A essência de seu argumento manifesta-se em duas proposições: “Há em toda a comunidade, em todos os corpos sociais, certa virtude de organização intrínseca para a qual somente existe uma explicação e um processo: o Direito.” (Pontes de Miranda, 2000, t. I, p.114). Esta ideia se completa por outra afi rmação: “Onde há espaço social há Direito, como onde há espaço atmosférico há corpos sólidos, líquidos ou fl uidos que o ocupem.” (Pontes de Miranda, 2000, t. I, p. 116).

É a universalidade e ubiquidade do Direito nas “comunidades”, nos “corpos sociais”, nas “relações sociais” que, segundo Pontes de Miranda, caracterizam sua naturalidade. Entretanto, pela comparação entre o “espaço social”, para cuja constituição o Direito é imprescindível, e o “espaço atmosférico”, que inclui corpos sólidos, líquidos e fl uidos, não se pode justifi car a naturalidade do Direito. Em caso de guerra civil, por exemplo, o espaço atmosférico se mantém inalterado: a vida pública, ao contrário, transforma-se em estado sem direito, em relação social no qual o Direito se esvazia (transforma-se, neste caso, de acordo com Kant, em status justitia vacuus), pois as instituições – criações humanas, não naturais – que, nos tempos de paz, mantêm a ordem pública, não funcionam mais; o Direito, a “virtude de organização intrínseca” da comunidade, perde sua força. Se, porém, pode haver tal estado de exceção, uma sociedade sem direito, situação provocada por atividades bélicas, ações antissociais, então o Direito não pode ser um elemento “natural” das relações sociais.

O caso hipotético de uma guerra civil funciona aqui como teste no qual a suposição da naturalidade do fenômeno jurídico devia se corroborar. Todavia, o resultado desse teste é negativo. Pela guerra civil pode-se fazer desaparecer o Direito, elemento constitutivo da ordem social. As regularidades naturais, contudo, são inalteráveis. Ninguém pode suspender as leis naturais; essas regularidades não incluem circunstâncias excepcionais. Pontes de Miranda nivela a diferença entre regularidades sociais, regularidades particulares, apesar de serem predominantes na maioria das sociedades, por um lado, e regularidades naturais, por outro lado, que, de fato, são universais. A ideia incorreta da naturalidade do fenômeno jurídico é consequência desse nivelamento errôneo.

Não se pode negar que, no capítulo indicado, Pontes de Miranda apresenta ideias e argumentos plausíveis, por exemplo, a tese da primazia do Direito em relação ao Estado. Segundo Pontes de Miranda “à vida humana não é essencial o Estado; o que é imprescindível às organizações humanas, às sociedades, é o ritmo, a ordem.” (2000, tomo I, p. 114). Para se estabelecer e se manter a ordem o Direito é imprescindível. Todavia, o Direito como fator de ordem na sociedade não é produto da natureza; ao contrário, é campo de efi ciência da intencionalidade, do querer e da ação do homem como ser social e político.

Não se pode dizer que este aspecto esteja totalmente ausente no pensamento de Pontes de Miranda, mas, apresentando-se na forma de um naturalismo cientifi cista, a

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relevância das atividades políticas e sociais permanece fora da consideração. Atividades humanas são interpretadas como “processos”. Afi rma Pontes de Miranda: “O que há de imutável no Direito é o fenômeno, o processo social de adaptação...” (2000, t. I, p. 117). Ele compreende esse processo como “constante da harmonia social” e compara com “a constância mecânica, a constância física, a constância química..” (2000, tomo I, p. 117). Por conseguinte, o Direito tem uma função prático-política, é “fator constante de harmonia social”. Pergunta Pontes de Miranda: “Que é o Direito?” Resposta: “É o que estabelece a solução nos confl itos da vida social.” (2000, t. I, p. 125).

O Direito tem uma função prático-política; é o fator essencial da ordem social. Como se pode enfatizar a importância dessa função prática e política do Direito e ao mesmo tempo afi rmar que o Direito é um “fenômeno natural”, como se os processos de adaptação social e as soluções de confl itos na vida social se realizassem sem a par-ticipação da ação humana?

Não parece fácil descobrir “empiricamente” o Direito na sociedade. Não é pela leitura de códigos e diários ofi ciais, mas Pontes de Miranda propõe outro “método” de descobrir o direito objetivamente real:

Sim: é ali que o haveis de encontrar, na vida social, um de cujos elementos é ele, e, se quereis vê-lo, provocai-o, feri-o, que não tardará o vejais no que ele tem de mais perceptível, que é a coerção, ou no que há de mais geral e revelador da solidariedade inerente aos corpos sociais: a garantia. (2000, t. I, p. 125)

Apresenta-se, de novo, uma comparação duvidosa, desta vez entre a força coerciti-va do Direito e fenômenos verdadeiramente naturais, a eletricidade e o magnetismo. “Sob a forma de força o tendes [o Direito], e nisso assenta a segurança de sua objetividade. Não é mais objetiva do que ele a eletricidade, nem é ele menos suscetível de experimentação que os fenômenos magnéticos.” (Pontes de Miranda, 2000, tomo I, p. 125).

Aqui Pontes de Miranda está errado. Sabe-se que em todos os sistemas sociais al-guns delinquentes escapam da sanção jurídica; eletricidade e magnetismo, porém, são, de fato, fenômenos naturais, e suas energias manifestam-se como processos necessários e sem exceção. Isto é a diferença fundamental entre os fenômenos jurídicos e práticas sociais (que têm um caráter convencional, prescritivo, normativo) e os fenômenos verdadeiramente naturais, determinados por mecanismos universais e necessários. Não faz sentido atribuir aos fenômenos naturais e aos fenômenos culturais a mesma “objetividade”.

Objeto de nossa crítica é o nivelamento da diferença entre fenômenos naturais e culturais, junto com a ideia de que se possa explicar e compreender, de modo exaus-tivo, os fenômenos culturais pelos métodos das ciências naturais. Tais métodos levam a abstrações – abstraindo, por exemplo, das atividades humanas –, de modo que não se esclarecem todos os pontos. Uma “sociologia compreensiva” no sentido de Max Weber poderia oferecer uma retifi cação. Até que ponto Pontes de Miranda estava familiari-zado com a obra desse autor? Eis aí a concepção weberiana:

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[....] no caso das “formações sociais” (em oposição aos “organismos”), estamos em condições de realizar uma coisa que ultrapassa a simples constatação de conexões e regras (“leis”) funcionais e que está eternamente negada a todas as “ciências naturais” (no sentido do estabelecimento de regras causais para processos e formação da “explicação” dos processos particulares a partir das regras): precisamente a “compreensão” das ações dos indivíduos nelas envolvidos, enquanto que, ao contrário, não podemos “compreender” o comportamento, por exemplo, das células, mas apenas registrá-lo funcionalmente e determiná-lo segundo as regras às quais está submetido. Esta vantagem da explicação interpretativa em face da explicação observadora tem, entretanto, seu preço: o caráter muito mais hipotético e fragmentário dos resultados obtidos pela interpretação. Mas, mesmo assim, esta constitui precisamente o ponto específi co do conhecimento sociológico. (Weber, 1991, p. 10)

O contraste não poderia ser maior. É o contraste entre duas concepções antagônicas de Sociologia. Para um weberiano, a “Sociologia” de Pontes de Miranda seria pseudossociologia, pois nada contribui para elaborar conhecimentos especifi camente sociológicos; um defensor de Pontes de Miranda consideraria a Sociologia de Max Weber como não científi ca. Conciliar ou sintetizar as duas concepções é impossível. Será que Pontes de Miranda optava pela “explicação observadora”, porque não estava disposto a pagar o preço de se contentar com conhecimentos mais hipotéticos e fragmentários? No que concerne à concepção de “corpos sociais” em Miranda, prevalece, de fato, a impressão de que o comportamento dos indivíduos se reduz ao funcionamento de células do “organismo” social.

Pontes de Miranda utiliza também a linguagem organicista. Afi rma, por exemplo: “Fenômeno natural, o direito é essencial à vida das sociedades, como, para o homem, o coração e os pulmões.” (2000, tomo I, p. 127). Também esta comparação é defeituosa. Sem o coração e os pulmões, o homem não sobrevive. Numa sociedade anárquica, em que o Direito como fator de ordem pública perdeu sua força, os indivíduos encontram-se constantemente em perigo de vida, mas a sobrevivência é possível: muitos vêm a ser vítimas de homicídio, outros se salvam e sobrevivem.

Não obstante, um argumento de Pontes de Miranda está correto. O Direito não é somente um sistema de ideias, um mero produto do espírito humano; é também – expressão de Hegel – “espírito objetivo”, espírito que se realiza no mundo: a objetividade do Direito manifesta-se na sua efi ciência como fator de ordem na vida social, e não na forma de códigos e decretos jurídicos. Contudo, deve-se distinguir esse tipo de “objetividade”, que se refere aos fenômenos culturais, da objetividade dos fenômenos naturais, caracterizados pela universalidade. Não se pode simplesmente identifi car “objetividade” e “universalidade”, pois nem todos os fenômenos objetivamente reais têm a origem de sua existência ou ocorrência em forças (“leis”) universais da natureza.

Obviamente, na concepção de Pontes de Miranda, a objetividade específi ca do Direito caracteriza-se pela sua força e efi cácia como fator de estabilidade das relações sociais e da adaptação do homem à vida social. Surpreendente e pouco compreensível é

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o recurso às “leis biológicas” de adaptação, junto com a tese de que a função adaptadora do Direito deve ser analisado como “fato biológico” (2000, t. III, 134)1. Pontes de Miranda pensa poder constatar este tipo de efi cácia do Direito como constante em todas as sociedades humanas. Difi cilmente essa constância pode ser aceita como mais um critério da naturalidade do Direito. Pelo fato dessa constância não se pode refutar a tese de que os sistemas jurídicos são criações humanas. Quem compreende os sistemas jurídicos como invenções humanas pode explicar tais constâncias da seguinte maneira: os homens em todos os tempos e em todas as culturas enfrentam os mesmos problemas: são vulneráveis, mas frequentemente ameaçados pelas tendências antisociais de seus semelhantes; eles têm necessidade de proteção. Quando os problemas sempre e em toda a parte são os mesmos, então não é milagre algum que seres dotados dos mesmos talentos intelectuais criam soluções quase idênticas.

O que todas as ideias têm com o método intuitivo? Como se pode descobrir por meio da indução – por mera observação de fatos particulares e determinadas regularidades – a tese de que a adaptação social é um fenômeno natural, determinado por leis biológicas? Na verdade, neste raciocínio, a teoria biológica já está pressuposta: os fenômenos biológicos e sociais são interpretados à luz das “leis biológicas” de adaptação, cuja validade não se descobre pela análise dos fatos, mas explica sua causalidade.

Pontes de Miranda atribui demasiada importância ao método indutivo; além disso, muitos de seus conhecimentos, ideias e descobertas não se fundamentam no método indutivo. Reconhece, por exemplo, a superioridade da teoria de Einstein em comparação com a teoria newtoniana. (2000, t. I, p. 86 e ss.) Será que na comparação das duas teorias a utilização do método indutivo levou Pontes de Miranda a dar preferência à teoria de Einstein? E, se, de fato, o método indutivo for o método único, exclusivo da pesquisa científi ca, será que Einstein simplesmente era mais hábil do que Newton na aplicação desse método?

De fato, a teoria de Einstein não é fruto do método indutivo; ao contrário, Einstein defendeu o método dedutivo e se distanciou do método indutivo.

2 PROBLEMAS DO MÉTODO INDUTIVO

Pontes de Miranda estava muito bem familiarizado com a Teoria da Relatividade, sobre a qual até escreveu um artigo. Essa teoria não podia ser o resultado de uma pesquisa indutivo-experimental. Estranho que ele não percebeu isto. Conheceu

1 Cf. a mesma obra, tomo III, p. 60: “se estudarmos, através de todos os tempos e com o auxílio da biolo-gia, o fenômeno jurídico, veremos que ele apenas continua o processo de harmonização.”

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Einstein pessoalmente e, com certeza, soube de sua viagem à América do Sul em 1925, e provavelmente também do comentário que no Rio de Janeiro fez ao jornalista Assis Chateaubriand: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil”, referindo-se a uma observação do eclipse solar de 29 de maio de 1919 registrado na cidade cearense de Sobral (Will, 1996, p. 76). Uma equipe de astrônomos tirou fotografi as do Sol obscurecido e do campo estrelar circundante. O mesmo campo estrelar foi fotografado antes, durante e depois do eclipse. Pela comparação das fotografi as puderam confi rmar a defl exão da luz prevista por Einstein. A Teoria da Relatividade, até agora mera especulação, foi corroborada por esta observação. Por conseguinte, não foi uma observação empírica pela qual a teoria se originou; ao contrário, a teoria não era nada mais do que uma hipótese ousada cuja veracidade estava incerta.

Num ensaio de 1919 intitulado “Induktion und Deduktion in der Physik“, Einstein compara os dois métodos e, concernente ao método indutivo, afi rma: “[....]os grandes avanços do conhecimento científi co originaram-se dessa forma apenas em pequena escala.” Depois descreve sua preferência pelo método dedutivo:

Os avanços verdadeiramente grandes em nossa compreensão do mundo se originaram de um modo quase diametralmente oposto à indução. O domínio intuitivo do essencial de um enorme complexo de fatos leva o cientista a postular uma ou mais leis hipotéticas básicas. Dessas leis ele tira suas conclusões. (1919 apud Isaacson, 2007, p.135)

No mesmo sentido pronunciou-se no seu livro Como Vejo o Mundo:

A suprema tarefa do físico consiste, então, em procurar as leis elementares mais ge-rais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo. Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente uma intuição a se desenvolver paralelamente à experiência. (1981, p. 140)

As grandes descobertas de Einstein, que revolucionaram a Física, não se inici-aram em descobertas empíricas, mas na análise crítica de discrepâncias causadas por teorias confl itantes e na percepção de problemas ainda não resolvidos pela teoria física de sua época.

Neste artigo, não é possível examinar os problemas do método indutivo na sua totalidade; nem se podem pormenorizar os vários tipos de indução. Estão em jogo exclusivamente os problemas do método indutivo baconiano tal como este foi repristinado e utilizado por Pontes de Miranda no seu Sistema da Ciência Positiva do Direito. Trata-se de uma indução ampliativa, isto é, o raciocínio usado consiste em passar de fatos particulares a uma lei geral, ou, de modo mais sofi sticado, em selecionar e agrupar observações particulares de maneira que as leis que conectam os fenômenos observados se evidenciem. Na argumentação indutiva deste gênero, sempre algo que está além do conteúdo das premissas é apoiado nelas; por isso, não é uma inferência válida. Da premissa “alguns a são b” não se pode concluir que “todos os a são b”. Na

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“conclusão” desse gênero aquele “algo” que ultrapassa o conteúdo das premissas – a generalização ou a “lei geral” – verifi ca-se só como provável em maior ou menor grau, pois o grau de probabilidade depende das evidências inicialmente selecionadas a seu favor. Se, por exemplo, passo da observação de que “alguns homens têm pés chatos” (= evidência inicial) à conclusão “todos os homens têm pés chatos”, desta forma apresenta-se uma inferência cujo grau de probabilidade é menor do que no caso de se apoiar o enunciado “todos os homens têm dois braços” na premissa de alguns (ou muitos) terem dois braços. Conclusões indutivas passam de estados de coisas mais específi cos aos mais gerais ou da espécie ao gênero. Não tudo que está certo nos casos específi cos também está nos casos mais gerais. Do ponto de vista puramente lógico, a inferência indutiva é insustentável. Do ponto de vista empírico, é duvidosa.

Mesmo se se pretende utilizar tais inferências como raciocínios meramente prováveis, – o que poderia ser a concepção de um empirismo bastante modesto – ainda há um problema que pelo princípio de indução não se soluciona, isto é, a questão de saber como é possível descobrir as adequadas evidências particulares para que a conclusão daí extraída corresponda à realidade. Não se pode realizar tal descoberta empregando o método indutivo. Também na perspectiva heurística, utilizando o método indutivo como instrumento para fazer descobertas, isto é, elaborar novos conhecimentos, a indução implica um fundamento extralógico e – obviamente – extra-indutivo: a crença na ordem universal e na lei da uniformidade da natureza assim como no princípio de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Para explicar a natureza, o pesquisador que se apoia na indução utiliza (sem se dar conta?) hipóteses que indutivamente não se justifi cam, e isto mostra que para a pesquisa científi ca o método indutivo não pode ser o único método.

Do princípio da uniformidade da natureza Pontes de Miranda faz uso exagerado, combinando esse princípio com a ideia da objetividade do Direito. O Direito, como fenômeno objetivo, como fato mundano, é, como afi rma Pontes de Miranda, mudança no mundo.

O mundo compõe-se de fatos, em que novos fatos se dão. O mundo jurídico com-põe-se de fatos jurídicos. Os fatos, que se passam no mundo jurídico, passam-se no mundo, portanto: são. O mundo não é mais do que o total dos fatos e, se excluísse-mos os fatos jurídicos, que tecem, de si mesmos, o mundo jurídico, o mundo não seria a totalidade dos fatos. (2000, tomo II, p. 286)

A realidade mundana do Direito está fora de questão. Um jurista que defende a

objetividade do Direito enquanto fator de estabilidade social na sociedade evidentemente está autorizado a incluir o Direito na totalidade dos fatos. No entanto, deve-se levar em consideração a diferença das perspectivas: por um lado, a perspectiva do físico, por outro, a visão do jurista. Quando o físico ou o astrônomo fala do universo (no sentido

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de conjunto das coisas), esse conceito não é tão universal como parece, porque nesta perspectiva as instituições culturais simplesmente não são examinadas. Por isso, não se deve esquecer as diferenças fundamentais entre o mundo natural – tema das ciências naturais – e o mundo cultural, do qual o direito enquanto instituição político-social e a disciplina acadêmica do Direito fazem parte. Os novos fatos que o Direito cria no mundo têm estruturas específi cas que não se encontram no mundo natural e não se compreendem na sua especifi cidade pelos métodos dos naturalistas. Quando os “fatos jurídicos” – impregnados por várias culturas e diversos nas diferentes culturas – se passam no mundo (entram no mundo), deste modo entram estruturas pluralistas no “total dos fatos”. Quando o jurista, a saber, Pontes de Miranda, elabora um conceito mais abrangente de “total dos fatos” do que os físicos, incluindo neste universo o mundo jurídico, não se podem negligenciar as diferenças estruturais entre os dois mundos, o mundo natural e o mundo do Direito. Penso que, para uma concepção diferenciada, Max Weber (não Pontes de Miranda) indicou o caminho certo.

CONCLUSÃO

No futuro, não abandonarei o estudo da Teoria do Direito de Pontes de Miranda, pois a obra dele é rica de ideias interessantes e estimulantes. No entanto, minha leitura até agora realizada – infelizmente de curto prazo – não me motivou a corrigir a minha posição. Como dantes, penso que o mundo cultural, do qual o Direito faz parte, na sua especifi cidade não pode ser exaustivamente compreendido pelos métodos das ciências naturais. Em contraposição com Pontes de Miranda concordo com a posição de Einstein: as grandes descobertas da Física se originaram não no método indutivo, mas pela elaboração de hipóteses ousadas. Para a ciência, teorias e métodos não são objetos sagrados, mas simplesmente instrumentos na procura da verdade e de soluções de problemas. Por Max Weber sinto-me confi rmado na convicção de que, nas disciplinas da Ética e do Direito, as discordâncias normativas e os litígios não podem ser resolvidos com a mesma pretensão de objetividade como se solucionam, a longo prazo, as discrepâncias teóricas na Física, Astronomia, Química e Biologia.

REFERÊNCIAS

EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

ISAACSON, Walter. Einstein. Sua vida, seu universo. 2. reimpr. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2007.

MALUSCHKE, Günther. A bioética e o biodireito: aspectos e controvérsias. Revista

Jurídica da Fa7, v. VI, n 1, p. 53-64, abr. 09.

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PINTO, Agerson Tabosa. Sociologia Geral e Jurídica. Fortaleza: Qualygraf, 2005.

PONTES DE MIRANDA. Sistema de Ciência Positiva do Direito. V. I — IV. Campinas: Bookseller, 2000.

_____. Introdução à Política Científi ca. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

WEBER, Max. Economia e Sociedade, Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: UnB, 1991.

WILL, Clifford M. Einstein Estava Certo? Colocando a Relatividade Geral à pro-va. Brasília: UnB, 1996.

IS LAW A NATURAL PHENOMENON? A CRITIQUE OF THE VIEWPOINT OF PONTES DE MIRANDA

Abstract: This article is a critical review of the thesis of the “Natu-ralness of the Juridical Phenomenon” by Pontes de Miranda and a refutation of the inductive method defended by this author, but not accepted by Einstein as the adequate method of science. Against the scientism of Pontes de Miranda we intend to defend the superiority of a “comprehensive sociology” in the sense of Max Weber.

Keywords: Nature. Naturalness. Scientism. Inductive method. Com-prehensive sociology.

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Posiciones Romanísticas en Tornoa la Solidaridad Natural y Jurídicade la Prestación de Alimentos entre Hermanos

Juan Miguel AlburquerqueProfessor catedrático de Direito Romano na Faculdade de Direito da Universidade de Córdoba (Espanha)[email protected]

Sumario: Introduccion. fuentes. exégesis particular y doctrinal. 1. Deber explícito: prestar los alimentos necesarios a la hermana (o hermano). 2. La relación de alimentos podría considerarse como una auténtica relación jurídica. 3. Refl exiones y observaciones.

Resumen: En este apartado destacamos el carácter de obligación que tiene la prestación de alimentos entre hermanos, probablemente ya desde la época clásica más avanzada. Apoyan nuestra idea un conjunto lineal de estimaciones jurisprudenciales afi rmativas y el análisis profundo de las fuentes jurídicas principales.

Palabras clave: Alimenta. Victus. Filius.

INTRODUCCIÓN. FUENTES. EXÉGESIS PARTICULAR Y DOCTRINAL

Presuponer la existencia de una obligación recíproca de alimentos entre hermanos, ya incluso en la etapa clásica imperial, puede ser, en nuestra opinión, al menos atendible1. Hablamos de una estimación no resuelta convincentemente por otros estudiosos que han confi ado decididamente en otras tentativas exegéticas, pero que tampoco han supuesto la anulación de las dudas existentes.

1 Cfr., ALBURQUERQUE, J.M., Patria potestas in pietate debet, non atrocitate consistere. Iuris Tantum nº 16. Universidad Anáhuac. México junio 2005; Id. De la justicia y la reciprocidad en situaciones de necesidad y dependencia: El reconocimiento y la inclusión jurídico-social de la madre en el cumplimiento de la obligación

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A favor de nuestra idea podríamos interpretar los siguientes textos con las opiniones de Juliano, Ulpiano, Gayo y Paulo.

En efecto, en D. 27,2, 4, Juliano parece que admite la obligación del hermano de proporcionar alimentos a su hermana. Entre las motivaciones insufi cientes que se dan para justifi car la interpolación del mismo, podríamos recordar ahora la de BESELER2 -que ha sido subrayada por BIONDI3 para destacar su simplicidad y, quizá, su escasa solidez-, “Wohl christlige Neurung Justinians”:

de alimentos respecto a los hijos, RGDR 11 www.iustel.com, Madrid 2009; Id. Prestación de alimentos entre parientes en Derecho romano. Atención a las necesidades más primarias y su aparente evolución. Iuris Tantum nº 17 Universidad Anáhuac. México diciembre 2006; Id. Realidad social o jurídica de la prestación de alimentos entre cónyuges, en RGDR 10 junio 2008, pp. 1 y ss.; Id. La prestación de alimentos entre pariente. Introducción y antecedentes como deber moral, en Personalidad y capacidad jurídicas, vol. I, Córdoba 2005, pp.89 y ss.; Id. Deber legal u obligación moral originaria: Generalidades introductorias sobre la prestación de alimentos en derecho romano, RGDR 3 diciembre 2004, pp. 1 y ss.; Id. Alimentos entre parientes (II): alimenta et victus. Puntualizaciones breves sobre la transacción y la prestación en el marco de los posibles procedimientos (expedientes) de jurisdicción voluntaria, RGDR 4 junio 2005; Id. Aproximación a la perspectiva jurisprudencial sobre el contenido de la prestación de alimentos derivada de una relación de parentesco, en Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña 9, A Coruña 2005, pp. 13 y ss.; Id. Notas, conjeturas e indicios previos a la regulación de Antonino Pio y Marco Aurelio, RGDR 6 junio 2006; Id. Aspectos de la prestación de alimentos en derecho romano: Especial referencia a la reciprocidad entre padre e hijo, ascendientes y descendientes, en Revista Jurídica de la Universidad Autónoma de Madrid RJUAM nº 15, 2007. Cfr., sobre alimentos y parentesco, entre otros, Cfr. FERNÁNDEZ DE BUJÁN, A., El fi liusfamilias independiente en Roma y en el derecho español, Madrid 1984, pp. 21 y ss.; Id. Derecho Público Romano. Recepción, Jurisdicción y Arbitraje, 12ª ed., 2009, pp. 99 y ss; Id. Refl exiones a propósito de la realidad social, la tradición jurídica y la moral cristiana en el matrimonio romano (I), en RGDR nº 6, junio 2006; Id. Derecho Privado Romano, 2ª ed. Iustel, 2009 pp. 117 y ss.; FERNÁNDEZ DE BUJÁN, FEDERICO., La vida, principio rector del derecho, 1999, pp. 101 y ss., y 151 y ss.; GARCÍA GARRIDO, M.J., Ius uxorium. El régimen patrimonial de la mujer casada en derecho romano, Roma-Madrid 1958, pp. 93 y ss; SACHERS, E., Das Recht auf Unterhalt in der römischen Familie der klass. Zeit, Festschrift Fritz Schulz, Weimar, 1951, vol. I, pp. 310 y ss.; Id. Potestas patria, RE., 22, pp. 1114 y ss.; ALBERTARIO, E., Studi di diritto romano, vol I, Persone e famiglia, Milano 1933, especialmente el capítulo XIII, Sul diritto agli alimenti, pp. 251. (Proviene del artículo incluido en Pubblicazioni dell’Universtà Cattolica del S. Cuore de 1925); LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, Annali Univ. Macerata, 1948, vol. XVII, pp. 215 y ss.; (= Ricerche Romanistiche, Milano 1966 pp. 339 y ss); SOLAZZI, S., La prestazione degli alimenti. En Scritti di diritto romano III, (1925-1937), Napoli 1960, pp. 127 y ss.; LAVAGGI, G., Alimenti (diritto romano), cit.,pp. 18 y ss.; LENEL, O., Das Edictum Perpetuum. Ein Versuch zu seiner Wiederherstellung, 3ª edición, Leipzig 1927, p. 488 (reimpresión Aalen 1985).; Id. Palingenesia Iuris Civilis, reimp. de 1960, 2, 953 (Scientia Verlag Aalen 2000); BESELER, G., Beiträgt zur Kritik der römischen Rechtsquellen I-IV; ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, BIDR 73. Milano 1970, pp. 324 y ss. Id. Sulla capacità a ricevere fedecommessi alimentari, SDHI 40, 1974, Roma 1974, pp. 303 y ss.

2 BESELER, G., Beiträgt zur Kritik der römischen Rechtsquellen, cit., 2, p. 42. ALBERTARIO, E., Sul diritto agli alimenti, cit., pp. 270 y ss., niega la base sustancial clásica de una obligación recíproca entre hermanos; Otros, ni siquiera la admiten en derecho justinianeo (GLÜCK, Commentario alle pandette, 25 1290 a, 266 y ss.)

3 BIONDI, B., Alimenti, cit., p. 293.

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D. 27,2,4 (Iulianus, libro XXI digestorum): Qui fi lium heredem instituerat, fi liae dotis nomine, cum in familia nupsisset, ducenta legaverat nec quicquam praeterea, et tutorem eis Sempronium dedit: is a cognatis et a propinquis pupillae perductus ad magistratum iussus est alimenta pupillae et mercedes, ut liberalibus artibus institueretur, pupillae nomine praeceptoribus dare: pubes factus pupillus puberi iam factae sorori suae ducenta legati causa solvit. Quaesitum est, an tutelae iudicio consequi possit, quod in alimenta pupillae et mercedes a tutore ex tutela praestitum sit, repondi: existimo, etsi citra magistratuum decretum tutor sororem pupilli sui aluerit et liberelibus artibus (iudicio pupillo aut substitutis pupilli praestare debere.

A nuestro juicio, Juliano deja sufi cientemente claro en el texto citado que los gastos realizados por el tutor en concepto de alimentos a la hermana, aunque no se hubiesen decretado expresamente por los magistrados, no se le pueden reclamar. La atención de alimentos a la hermana necesitada, como subraya Juliano, no podía dejarse de hacer: existimo, etsi citra magistratuum decretum tutor sororem pupilli sui aluerit et liberelibus artibus (iudicio pupillo aut substitutis pupilli praestare debere. El desarrollo del fragmento en su conjunto puede desviar la atención, como veremos más adelante. De todas formas, cabría pensar fácilmente que al no necesitar la apreciación expresa del magistrado concreto, se desprende implícitamente como una estimación habitual el probable cumplimiento de la atención de alimentos. De hecho, no podrá reclamarse por ninguna vía los gastos efectuados con esta fi nalidad. El texto parece desvelar otros condicionamientos que podrían llevar a confusión: aparece como punto de partida el hijo, instituido heredero, un legado como dote a su hija, si contraía nupcias dentro de la familia, y la designación de Sempronio como tutor de los mismos. Los cognados de la pupila reclamaron al tutor, ante el magistrado, y éste dispuso: que el tutor diera alimentos a la pupila y los gastos de educación en artes liberales.

La segunda fase del contenido textual comienza cuando se hace púber el pupilo y cumple la obligación impuesta en el legado a favor de la hermana –que también había alcanzado la pubertad-. La cuestión que se le plantea al jurista pretende aclarar la posibilidad que tiene el pupilo de reclamar –por causa de tutela- los alimentos de la pupila y los salarios de los educadores. La respuesta de Juliano parece contundente: Esto no podría suceder de otro modo, no puede dejar de hacerse. Es decir, nada debe pagar el tutor por esta causa de alimentos prestados a la hermana. Las complicaciones exegéticas se multiplican. Veamos algunos ejemplos.

De las alteraciones formales del texto, que no siempre deben suponer una contradicción, haremos referencia a ALBERTARIO4, SOLAZZI5 y BESELER6, entre otros. En este sentido quedaría:

4 ALBERTARIO, E., diritto agli alimenti, cit., pp. 270 y ss.5 SOLAZZI, S., Studi sulla tutela, cit., pp.127 y ss6 BESELER, G., Beiträgt zur Kritik der römischen Rechtsquellen, cit., 2, p. 42.

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D. 27,2,4 (Iulianus, libro XXI digestorum): Qui fi lium heredem instituerat, fi liae dotis nomine, cum in familia nupsisset, ducenta legaverat nec quicquam praeterea, et tutorem eis Sempronium dedit: is a cognatis et a propinquis pupillae perductus (ad magistratum)- consulem (cfr.SOLAZZI) iussus est alimenta pupillae et mercedes, ut liberalibus artibus institueretur, pupillae nomine praeceptoribus dare: pubes factus pupillus puberi iam factae sorori suae ducenta legati causa solvit. Quaesitum est, an tutelae iudicio consequi possit, quod in alimenta pupillae et mercedes a tutore (ex tutela) praestitum sit, repondi: existimo, (etsi citra magistratuum- consulum, cfr., SOLAZZI- decretum –si ex consulum decreto-) tutor sororem pupilli sui aluerit et liberelibus artibus instituerit, (cum haec aliter ei contingere non possent), nihil eo nomine tutelae iudicio pupillo (aut substitutis pupilli) praestare- praestari, cfr., BESELER- debere.

ALBERTARIO7, considerando en parte las apreciaciones de SOLAZZI8, y sin grandes diferencias con BESELER9, realiza una reconstrucción del texto que parece impedir la posibilidad de confi rmar la existencia de una obligación de alimentos entre hermanos. Agudamente, nuestro autor destaca lo improbable que debería ser una obligación legal entre el pupilo y la pupila, acogiéndose al tenor literal propuesto por él, es decir, basándose en una interpretación implícita del testamento, en la cual se observaría que el legado previsto estaría subordinado y condicionado a un determinado evento: contraer nupcias dentro de la familia. Si bien, el hecho que señala nuestro autor, como primordial, para llegar a esta conclusión gravita en torno a la interpretación del testamento, y no refl exiona a favor de una supuesta obligación legal precedente; asimismo nuestro estudioso, añade que la ausencia de responsabilidad del tutor es advertida por Justiniano ante el cumplimiento de tales deberes.

A nuestro modo de ver, en ambos casos se trata de una idea latente en las previsiones clásicas como hemos tenido oportunidad de comprobar en un amplio elenco de fragmentos. Por un lado, la exención de responsabilidades respecto al tutor por atender ciertas cargas necesarias, entre las que se encuentran los casos de suministro de alimentos a la madre necesitada o a la hermana, representa, sin duda, un indicio bastante consistente en las propuestas clásicas. Por otra parte, nos parece que el texto reproduce el pensamiento del jurista en sentido lineal, y probablemente, con los agudos recortes señalados por algún sector doctrinal al que ya nos hemos referido, lo único que se acentúa especialmente es la aquiescencia justinianea, pero no se resquebraja a nuestro juicio la esencia clásica del fragmento.

En otro sentido, pero con ciertas analogías al que acabamos de señalar, se muestran las opiniones de otros autores como por ejemplo LAVAGGI10, que ni

7 ALBERTARIO, E., Sul diritto agli alimenti, cit., pp. 270 y ss. 8 SOLAZZI, S., Studi sulla tutela, cit., pp.127 y ss.9 BESELER, G., Beiträgt zur Kritik der römischen Rechtsquellen, cit., 2, p. 42. 10 LAVAGGI, G., Alimenti (diritto romano), cit., pp. 20 y ss.

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siquiera se plantea la necesidad de profundizar en la exégesis textual, al observar que este fragmento se encuentra dentro de los diferentes parágrafos que hablan a favor de la existencia de reciprocidad de una obligación en tema de alimentos entre hermanos (p.e., cita -además del precedente D. 27,2,4-, las siguientes: D. 27,3,1,2 y D. 26,7,13,2). En las confrontaciones doctrinales que avalan nuestra sugerencia encontramos otra de ZOZ11 que, a mi juicio, merece una particular atención. Precisamente se trata de posiciones que toman como punto de partida un adecuado análisis de diferentes textos (D. 27,2,4; D. 27,3,1,2; D. 26,7,13,2; D. 23,3,73,1; D. 24,3,20), algunos ya citados por nosotros, para llegar a una refl exión que puede identifi carse con nuestra tendencia. Recuérdese que en D. 27,2,4, se hablaba de un tutor que se encontraba en la necesidad de alimentar a la hermana de su pupilo e instruirla en las artes liberales. Incluso sin que así lo hubieran decretado los magistrados, no tendría que responder de estos gastos en un supuesto juicio de tutela frente al pupilo o los sustitutos del pupilo. En esos términos se expresaba Juliano. En la gestión del patrimonio pupilar, estas actuaciones del tutor gozan de una complacencia jurídica sobradamente reconocida: estas atenciones no podían dejarse de hacer o cumplir. Más bien, se puede ejercitar contra el tutor la acción de tutela, si se hubiera desatendido este deber: D. 27,3,1,2: ...posse cum tutore agi tutelae, si tale affi cium praetermiserit.

Una asumible matización de LONGO12 afi rma que se habla claramente de una obligación de alimentos en este último fragmento mencionado (en relación a la hermana y la madre):

D. 27,3,1,2 (Ulpianus Libro XXXVI ad edictum) Sed et si non mortis causa donaverit tutore auctore, idem Iulianus scripsit pleros que quidem putare non valere donationem, et plerumque ita est: sed nonnullos casus posse existere, quibus sine reprehensione tutor auctor fi t pupillo ad deminuendum, decreto scilicet interveniente: veluti si matri aut sorori, quae aliter se tueri non possunt, tutor alimenta praestiterit: nam cum bonae fi dei iudicium sit, nemo feret, inquit, aut pupillum aut substitutum eius querentes, quod tam coniunctae personae alitae sint: quin immo per contrarium putat posse cum tutore agi tutelae, si tale offi cium praetermiserit.

1 DEBER EXPLÍCITO: PRESTAR LOS ALIMENTOS NECESARIOS A LA HERMANA (O HERMANO)

Es un deber, ayudar a la hermana y a la madre del pupilo con la correspondiente prestación de los alimentos necesarios, y como se desprende de las afi rmaciones de Juliano, nadie podrá quejarse, reclamar, o tolerar que se incumpla este tipo de atención a personas tan allegadas. Evidentemente, como expresa Juliano, se pueden dar algunos

11 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., p. 342.12 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, cit., p.343.

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casos en los que el tutor tenga que dar su autoridad sin que se le pueda reprochar su actuación. En este supuesto nos encontramos cuando se refi ere al tutor que proporciona alimentos a la hermana y a la madre. Es más, el descuido en el cumplimiento de este deber del tutor –alimentar a la madre y a la hermana del pupilo- le puede suponer una demanda por la acción de tutela. Hemos prescindido del análisis de las donaciones inválidas, aludidas en el fragmento, para centrarnos en los casos en los que se ve obligado el tutor a prestar su autoridad: dar alimentos a la hermana y la madre.

El texto, al menos en la sustancia, afi rma acertadamente LONGO13 parece clásico. Una revisión exegética de las fuentes no debilita su opinión acerca de la raíz clásica de la obligación de alimentos entre hermanos. Incluyendo los fragmentos que podrían emanar indicios de confusión debido a los enunciados justinianeos:

D. 26,7,13,2 (Gaius libro XXII ad edictum) In solvendis legagtis et fi deicommissis attendere debet tutor, ne cui non debitum solvat, nec nuptiale munus matri pupilli vel sorori mittere. Aliud est, si matri forte aut sorori pupilli tutor ea quae ad victum necessaria sunt praestiterit, cum semet ipsa sustinere non possit: nam ratum id habendum est: nec enim eadem causa est eius , quod in eam rem ipenditur et quod muneris legatorummve nomine erogatur.

D. 26,7,12,3 (Paulus libro XXXVIII ad edectum) Cum tutor non rebus dumtaxat, sed etiam moribus pupilli praeponatur, imprimis mercedes praeceptoribus, non quas minimas poterit, sed pro facultate patrimonii, pro dignitate natalium constituet, alimenta servis libertisque, nonnumquam etiam exteris, si hoc pupillo expediet, praestabit, sollemnia munera parentibus comgnatisque mittet sed non dabit dotem sorori alio patre natae, etiamsi aliter ea nubere non potuit nam etai honeste, ex liberalitate tamen fi t, quae servanda arbitrio pupilli est.

Por su parte LAVAGGI14, sin entrar en fundamento, manifi esta la misma proclividad a creer en la prestación de alimentos entre hermanos con factura clásica, constituyendo lo expresado en el ya citado D. 27,3,1,215, otro de los textos que ha utilizado nuestro autor para confi rmar su refl exión.

Entre los autores que en mi opinión interesa destacar también, por demostrar, o al menos afi rmar con solidez lo infructuoso que puede ser sospechar de los referidos textos, D. 27,2,416 y D. 27,3,1,2, continuaremos con las opiniones de ZOZ17. Se trata de dos textos, “insospettabili”, afi rma nuestra autora. No existen, por tanto, consideraciones válidas que puedan demostrar que tanto las previsiones de Juliano como el pensamiento de Ulpiano sean erróneos, más bien, todo lo contrario; es decir se reproduce aquí para nuestra romanista el pensamiento exacto e inequívoco del jurista. 2 LA RELACIÓN DE ALIMENTOS PODRÍA CONSIDERARSE

13 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, loc. cit.14 LAVAGGI, G., Alimenti (diritto romano), cit., pp. 20.15 D. 27,3,1,2 (Ulpianus Libro XXXVI ad edictum).16 D. 27,2,4 (Iulianus , libro XXI digestorum).17 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., p. 342.

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COMO UNA AUTÉNTICA RELACIÓN JURÍDICA

Una síntesis de los datos más signifi cativos y elocuentes de los referidos textos ya la hemos realizado, si bien, nos gustaría añadir con nuestra estudiosa, algunas de las enseñanzas complementarias que pueden extraerse. Partiendo de lo concerniente al decreto de condena de alimentos, observa ZOZ18 acertadamente: la importancia de la sanción por el derecho extraordinario de la obligación de alimentos entre hermanos -ya desde Juliano, uno de los más eminentes impulsores de la ciencia jurídica-. Asimismo, que la relación de alimentos se considera como una verdadera y propia relación jurídica. El eventual incumplimiento del pupilo, aunque sea por medio del tutor, lo hace responsable en las confrontaciones del pupilo mismo. Se da por admitido que respecto a la madre, subsiste la obligación de alimentos (asumiendo, como hemos visto, la equiparación de la obligación que en el texto de Ulpiano se presenta, es decir, madre o hermana. Y, fi nalmente respecto a la hermana, en consonancia con lo que hemos visto precedentemente. Todas las puntualizaciones que hemos acumulado encuentran fi el acogida y confi rmación también en D. 26,7,13,219 (LAVAGGI20, LONGO21, ZOZ22, entre otros).

La sugerencia de LONGO23 nos parece muy signifi cativa, sobre todo teniendo en cuenta que al principio de su comentario a este respecto, incluía el siguiente texto que analizaremos entre los de dudosa interpretación, y quizá, con enunciados propiamente justinianeos. Consecuencias que, con matices, no impiden a nuestro autor reafi rmar el carácter de obligación de la prestación de alimentos entre hermanos dentro de la perspectiva clásica.

Así pues, escribe nuestro autor24, la obligación de alimentos entre hermanos y hermanas aparece afi rmada, si hoc pupillo expediat25. Restricción que sobre todo podría constituir una prueba contra la existencia de un principio jurídico, propio del nuevo derecho, que afi rmara la pretendida obligación de alimentos entre hermanos. Asimismo, conviene recordar con nuestro autor que en este tipo de actuaciones, tanto en las concepciones clásicas como en los enunciados justinianeos, principalmente se habla de daciones, suministros, repartos voluntarios o socialmente convenientes, más que de una obligación podría confi rmar la existencia de dos perspectivas: la primera que siempre estará presente a la hora de las aportaciones de sustento es el

18 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., p. 342.19 D. 26,7,13,2 (Gaius libro XXII ad edictum).20 LAVAGGI, G., Alimenti (diritto romano), , cit., pp. 20.21 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, cit., p.343.22 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., p. 343.23 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, loc. cit.24 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, loc. cit.25 Cfr. D. 26,7,12,3

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nivel de facultades patrimoniales para su cumplimiento, pro facultate patrimonii; la segunda, que recalcar el carácter de la voluntariedad, como indicio de la inexistencia de obligación clásica, no parece representar un argumento válido, sobre todo teniendo en cuenta la analogía de los enunciados justinianeos a este respecto. Cabría recordar ahora, la claridad con la que se expresa LONGO26 cuando habla de la obligación de alimentos, en relación a la hermana, en su comentario y defensa de la sustancia clásica del fragmento recogido en D. 27.3.1.2.

De este modo, queremos resaltar con SACHERS27, del conjunto de textos analizados por él (en el que se conjugan matices clásicos y enunciados justinianeos), las expresiones extraídas de los mismos, como imposibilidad de mantenerse por uno mismo, pobreza o necesidad, incapacidad, como consecuencia de impedimentos físicos o de otra naturaleza, como condición para la posible pretensión -en suma, previa comprobación de los presupuestos necesarios para hacer valer este derecho-. Estas alusiones no dejan de confi rmar, a nuestro entender, la conservación del espíritu legislativo impulsor de las atenciones clásicas respecto a la prestación, y, especialmente en este epígrafe podríamos dirigirlas al carácter de la obligación recíproca entre hermanos.

En consecuencia y sin tener que recurrir ahora a una lectura global de los textos en los que se puede dispersar en ocasiones el discurso de nuestros juristas, seguiremos analizando una de las disposiciones ya referidas, en la que desde nuestro punto de vista también se vislumbran adecuadamente los datos más sobresalientes que nos permitirán completar y confi gurar mejor el pensamiento de Gayo (D. 26,7,13,2)28. Con ciertos matices que podremos compartir con ZOZ29, retomamos nuestro análisis del fragmento de Gayo: si el tutor hubiera suministrado a la madre o a la hermana del pupilo, lo que es imprescindible y necesario para el sustento y alimentación, -es decir, quae ad victum necessaria sunt-, en los supuestos en los que no pudieran mantenerse por sí mismas –praestiterit quum semet ipsa sustinere non possit-, quedará liberado de responsabilidades añadidas por haber ejecutado estas atenciones (obligaciones) dentro del marco de la validez jurídica. La diligencia del tutor -en el cumplimiento que por imperativo legal se establece en el fragmento respecto a los legados y fi deicomisos-, debe estar presente con la fi nalidad de evitar que los pagos se hagan a personas que no tengan tal derecho, o bien, puedan encuadrarse en el campo de los regalos nupciales a la madre o la hermana del pupilo; lo que sí implicaría por consiguiente la invalidez de las actuaciones del tutor y las probables responsabilidades del mismo. El cuidado y la

26 LONGO, G., Sul diritto agli alimenti, loc. cit.27 SACHERS, E., Das Recht auf Unterhalt in der römischen Familie der klass. Zeit, p. 330 n. 4.28 D. 26,7,13,2 (Gaius libro XXII ed.)29 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., pp. 343 y ss.

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atención especial del tutor viene provocada por la gran diferencia que se advierte por el jurista en cuanto a las disposiciones patrimoniales y los gastos que representan –no está en el mismo caso lo que se gasta así (en concepto de alimentos necesarios), y lo que se gasta en concepto de regalos y fi deicomisos-. Este matiz, supone una explicación bastante esclarecedora y perfectamente puede contribuir implícitamente, a nuestro juicio, a evitar el confusionismo de los gastos, teniendo en cuenta que pueden tener una misma fi nalidad (piénsese en el legado de alimentos al que ya nos referimos en epígrafes anteriores). En otras palabras, aquí puede observarse, con carácter independiente, que se trata de dar validez a los gastos ocasionados específi camente para el sustento de la hermana (y la madre), asumidas como una conveniencia con carácter de obligación que no supondrá responsabilidades añadidas para el tutor, sino más bien todo lo contrario. Como es sabido, la conveniencia de este tipo de actuaciones en concepto de alimentos encuentra cobertura legal en numerosas explicaciones particulares aportadas por diferentes vías jurídicas. No exigir responsabilidad jurídica al promotor de las actuaciones (tutor), no sólo implicaría conveniencia, sino más bien exigencia jurídica. En estos términos nos hemos pronunciado en líneas anteriores cuando destacábamos, en atención a lo dispuesto en D. 27,3,1,2, que se podría demandar al tutor por el incumplimiento de este deber: dar alimentos a la hermana o a la madre del pupilo que no puedan valerse por sí mismos.

D. 26,7,13,2 (Gaius, libro XXII ad edictum) In solvendis legatis et fi deicommissis attendere debet tutor, ne cui non debitum solvat, nec nuptiale munus matri pupilli vel sorori mittere. Aliud est, si matri forte aut sorori pupilli tutor ea quae ad victum necessaria sunt praestiterit, cum semet ipsa sustinere non possit: nam ratum id habendum est: nec enim eadem causa est eius, quod in eam rem ipenditur et quod muneris legatorummve nomine erogatur.

D. 27,3,1,2 (Ulpianus Libro XXXVI ad edictum) Sed et si non mortis causa donaverit tutore auctore, idem Iulianus scripsit pleros que quidem putare non valere donationem, et plerumque ita est: sed nonnullos casus posse existere, quibus sine reprehensione tutor auctor fi t pupillo ad deminuendum, decreto scilicet interveniente: veluti si matri aut sorori, quae aliter se tueri non possunt, tutor alimenta praestiterit: nam cum bonae fi dei iudicium sit, nemo feret, inquit, aut pupillum aut substitutum eius querentes, quod tam coniunctae personae alitae sint: quin immo per contrarium putat posse cum tutore agi tutelae, si tale offi cium praetermiserit.

En defi nitiva, advertimos aquí unos modelos de afi rmación clara que se amoldan a nuestras apreciaciones, y que, como subraya ZOZ30, acerca del primero de los textos (D. 26,7,13,2), “rientra invece nei poteri gestori l’adempimento alla prestazione alimentari, quando madre e sorella siano in stato di bisogno”; además, prosigue nuestra autora, “anzituto l’accento sulle condizioni disagiate fa pensar al vero e proprio obbligo alimentare fundato sul rapporto familiare, que trova appunto causa esclusivamente da tali condizioni”.

30 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, loc. cit.

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La mujer, para atender las necesidades de alimentos de los hermanos31 que se encontraban en estado de necesidad, puesto que se trata de una causa justa y honesta, como nos dice Paulo en D. 24,3,20, podía cobrar la dote constante matrimonio:

D. 24,3,20 (Paulus, libro VII ad Sabinum): Quamvis mulier non in hoc accipiat constante matrimonio dotem, ut aes alienum solvat, aut praedia idonea emat, sed ut liberis ex alio viro egentibus, aut fratribus, aut parentibus consuleret, vel ut eos ex hostibus redimeret, quia iusta et honesta causa est, non videtur male accipere; et ideo recte ei solvitur, idque et in f ilia familias observatur.

3 REFLEXIONES Y OBSERVACIONES

Este aspecto podría implicar una previsión jurídica seria, reservada a la mujer que se encontraba en esta situación, para cumplir su parte de obligación en tema de alimentos también respecto a los hermanos. Las divergencias exegéticas han saturado indiscutiblemente los resultados doctrinales, sobre todo cuando se ha mirado el texto citado desde la perspectiva del paralelismo pauliano afi rmado en otro de sus fragmentos (D. 23,3,73,1), al que también se le atribuyen algunas enmiendas justinianeas. Agudamente nos recuerda ZOZ32, en relación a los dos textos mencionados del mismo autor -que además se sostienen recíprocamente aunque hayan sido tratados en obras no coincidentes-, resulta inverosímil pensar en una intervención sustancial por parte de los compiladores. Se trata de fragmentos que no son tratados en la misma masa (Papinianea, D. 23,3,73,1; Sabinianea, D. 24,3,20); se encuentran en títulos y libros distintos; en una sede que no es la propia de los alimentos-. En consecuencia, parecería inverosímil, que con la fi nalidad de introducir una nueva regla en tema de alimentos, las dos subcomisiones diferentes, y en sede distinta a la propia de alimentos, se hayan dedicado a interpolar, y justamente en el mismo sentido, dos textos completamente diversos que provienen del mismo autor. Una explicación suya muy asumible puede simplifi car la cuestión: Los textos refi eren los mismos principios porque son los conceptos del mismo autor.

31 L O de los hijos de otro marido, o de los ascendientes.32 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., pp. 344.

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Posiciones Romanísticas en Torno a la Solidaridad Natural y Jurídica de la Prestación de Alimentos Entre Hermanos

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D. 23,3,73,133 (Paulus, libro II sententiarum): Mutus surdus caecus dotis nomine obligantur, quia et nuptias contrahere possunt. Manente matrimonio non perditurae uxori ob has causas dos reddi potest: ut sese suosque alat, ut fundum idoneum emat, ut in exilium vel in insulam relegato parenti praestet alimonia, aut ut egentem (virum34) fratrem sororemve sustineat.

A las ya mencionadas observaciones podrían añadirse otras muchas que contribuirían a disipar las inseguridades y ambigüedades latentes; si bien, a nuestro propósito, a pesar de la desconexión de los textos referidos de su propio contexto específi co, lo que podría provocar una especie de desviación del sentido de los mismos, podríamos afi rmar el aspecto de la reciprocidad entre hermanos – si bien, en determinados casos, al menos implícita-; el carácter de obligación de la prestación precedida de un conjunto armónico de estimaciones jurídicas afi rmativas; que los receptáculos de duda que puedan desprenderse de los dos últimos textos transcritos (de diferentes libros del Digesto, pero del mismo autor), independientemente de la forma expositiva, reproducen adecuadamente, y sin carácter de excepción o aplicación limitada, la estructura lineal del pensamiento del discípulo de Quinto Cervidio Escévola, Paulo. Un jurista perfectamente adherido a la realidad de la práctica cotidiana, adaptado y proclive por cauce natural al continuo esfuerzo imperial por dotar de una fi sonomía más completa al instituto de la prestación de alimentos.

ENFOQUE ROMANÍSTICO SOBRE A SOLIDARIEDADENATURAL E JURÍDICA DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS ENTRE IRMÃOS

Resumo: Neste artigo destacamos o caráter obrigacional da prestação de alimentos entre irmãos, provavelmente já existente desde a época clássica mais avançada. Nossa proposta encontra apoio num conjunto de entendimentos jurisprudenciais e na análise profunda das principais fontes jurídicas.

Palavras-c have: Alimenta. Victus. Filius.

33 Cabría recordar que SACHERS, E., Das Recht auf Unterhalt in der römischen. Familie der klass. Zeit, cit., pp. 341 n. 2 y 3, admitía la clasicidad del texto.

34 ZOZ, M.G., In tema di obbligazioni alimentari, cit., pp. 344, nos recuerda además la propuesta por MOMMSEN, T., ad. l., <<fi lium ex alio viro (?)>> fratrem sororemve sustineat, adecuadamente rebatida por ella.

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El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, fechado en 1639

Justo García SánchezProfessor catedrático de Direito Romano na Universidade de Oviedo (Espanha)[email protected]

Resumen: La celebración de un segundo matrimonio, en vida de la primera esposa, durante el siglo XVII en España era impedimento que hacía nulo el segundo vínculo conyugal, pero venía valorado primariamente como una herejía, por la que se había incurrido automáticamente en excomunión. Para no soportar graves penas era preciso acogerse al edicto de gracia o arrepentirse espontáneamente, suplicando la absolución del Tribunal inquisitorial, después de haber abjurado con validez jurídica.

Palabras clave: Breve. Inquisición. Matrimonio. Impedimento de ligamen. Santo Ofi cio

Asturias es una Comunidad Autónoma española que se encuentra muy delimitada por los importantes accidentes geográfi cos que la circundan, y ello contribuyó durante siglos al aislamiento de su población. Una de las secuelas de esta difícil topografía, que permitió a la Compañía de Jesús y otros eclesiásticos del siglo XVI califi carla como “las Indias en España”, fue la reiteración de uniones conyugales entre próximos parientes, que debían acudir a Roma para obtener de la Santa Sede la dispensa de los impedimentos, tanto de consanguinidad, en grado admitido por el Derecho, como de afi nidad, y de lo que son un testimonio fehaciente la multitud de volúmenes de súplicas que se pueden consultar en el Archivo Secreto Vaticano, especialmente a partir de la décimo sexta centuria.

1 Sirva como modesto homenaje al profesor Agerson Tabosa, jurista brasileño muy estimado por los colegas hispanos, quien se incorporó a la Asociación Iberoamericana de Derecho Romano desde su iniciación, y participó activamente en las jornadas anuales, contribuyendo con estudios monográfi cos que defendió públicamente, siempre a tenor de la materia congresual, y patrocinó una de las convocatorias celebrada en la Unifor de Fortaleza (Ceará. Brasil), con notorio éxito, académico y científi co, tal como recogen las actas que se imprimieron en papel y se distribuyeron igualmente en CD, bajo el título Autonomia da vontade e as condições gerais do contrato. De Roma ao direito atual. Anais do V Congreso Internacional y VIII Iberoa-mericano de Derecho Romano, 21-24 de agosto de 2002, Ceará 2003, 776 pp.

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Temas de Direito Privado382

Un supuesto peculiar e inédito relacionado con el matrimonio2 nos lleva a analizar la Recepción de la normativa jurídica procedente de Roma, en el que confl uyen los diferentes elementos que conformaron el Derecho común3.

Se trata de una situación en la que se vio implicado un ovetense, nacido en 1603, cuyo lugar de origen pertenecía al Reino de Castilla, en la Península Ibérica, nominado Domingo, hijo de Domingo de Lavandera. Este asturiano contrajo matrimonio a los catorce años de edad, y por consiguiente adquirida la pubertad4, con María de Clara, mujer de su mismo lugar de nacimiento, pero de la que se ignora la edad5.

Domingo de Lavandera trasladó su residencia a Madrid, dejando en el Principado de Asturias a la esposa. Durante su larga estancia en la Villa y Corte, celebró en 1636 un nuevo vínculo matrimonial, conforme al rito previsto por el Concilio de Trento6, con Francisca Álvarez, a pesar de que su mujer legítima todavía estaba viva7. La

2 Las dos defi niciones romanas del matrimonio mantienen vivo un esquema de unión conyugal que tan sólo ha sido alterado recientemente en algunos ordenamientos jurídico positivos, como el español. Modestino, en D. 23, 2, 1: Nuptiae sunt coniunctio maris et foeminae, et consortium omnis vitae, divini et humani iuris communicatio. Instituciones de Justiniano 1, 9, 1: nuptiae autem sive matrimonium est viri et mulieris coniunctio, individuam con-suetudinem vitae continens. No hay que olvidar que en Inst. Iust. 1, 2 pr. se insiste en la unión heterosexual, que da origen al matrimonio. Cf. ORTEGA CARRILLO DE ALBORNOZ, A., Terminología, defi niciones y ritos de las nupcias romanas. Trascendencia de su simbología en el matrimonio moderno, Madrid 2006; FERNÁNDEZ DE BUJÁN, A., Derecho privado romano, 2ª ed., Madrid 2009, pp. 138-140.

3 Una síntesis de los caracteres del matrimonio histórico, comparado con los del Derecho actual, vid. en PAN-ERO GUTIÉRREZ, R., Derecho romano, 4ª ed., Valencia 2008, pp. 2945-296.

4 La pubertad implicaba que los cónyuges gozaban de la potentia coeundi, y la mujer quae viro pati potens, por lo cual no podían contraer matrimonio los castrados, al estar privados de los órganos reproductores, a diferencia de los spadones que eran las personas afectadas de esterilidad. La determinación de la pubertad respecto del varón fue objeto de una disputa entre las dos escuelas de proculeyanos y sabinianos, porque mientras éstos defendían que la determinación se hiciera caso por caso, a través de la inspección corporal individual, los primeros, cuyo criterio prevaleció en Derecho clásico, entendían que se debía presumir con la llegada de los 14 años, y es la norma que asumió Justiniano en el C. I. 5, 60, 3., reiterando el criterio seguido respecto de la mujer y que venía desde antiguo, en los doce años: Indecoram observationem in examinanda marum pubertate resecantes iubemus: quemadmodum feminae post impletos duodecim annos omnimodo pubescere iudicantur, ita et mares post excessum quattuordecim annorum puberes existimentur, indaga-tione corporis inhonesta cessasnte. D. VIII id. Aprilis Constantinopoli, Decio vc. Cons. Año 529.

5 Recuerda Volterra que de diversos fragmentos del Digesto (D. 23,2,4; 23, 1, 9; 1, 32, 27) se deduce cómo la unión de un hombre y de una mujer que no haya cumplido todavía doce años no puede constituir matrimo-nio. No obstante, si la mujer ha formado una unión conyugal con un hombre mayor de 14 años, en el mo-mento que ella llega a los 12, se constituye ipso iure el matrimonio, suponiendo que ambos perseveraban en la affectio maritalis. Vid. VOLTERRA, E., Istituzioni di Diritto privato romano, Roma 1972, pp. 652-653.

6 Concilio de Trento, sesión XXIV, de matrimonio, de reformatione caput I. Cf. Conciliorum Oecumenico-rum decreta, cur. J. Alberigo et alt., Bologna 1973, pp. 755-757.

7 Señala Torrent (Manual de Derecho privado romano, Zaragoza 2002, p. 532) que la monogamia excluía del matrimonio a las personas que ya estaban unidas en otra relación conyugal precedente, puesto que el matrimonio romano clásico era esencialmente monogámico, tal como indica Gayo en 1, 63: neque eadem duobus nupta esse potest neque idem duas uxores habere, que en la traducción de Álvaro d’Ors resulta muy precisa: “porque no puede ella estar casada con dos, ni puedo yo tener dos mujeres”. D’Ors. PÉREZ-PEIX, A., Gayo Instituciones. Texto latino con una traducción de…, Madrid 1943, pp. 14-15.

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El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, Fechado en 1639 383

consecuencia de este doble matrimonio era que el susodicho Domingo de Lavandera incurrió en la condición de bígamo y estaba expuesto a las consecuencias que de orden civil8 y penal se aplicaban a esa conducta ilícita ya en Derecho romano: Neminem, qui sub dicione sit romani nominis, binas uxores habere posse patet cum et in edicto praetoris huiusmodi viri infamia notati sint. Quam rem competens iudex inultam esse non patietur9.

8 Cuando se producía esa doble unión conyugal, o bien se entendía disuelto automáticamente el primer matrimonio por medio del divorcio, tal como defi ende Volterra, al considerar que no cabe la doble relación de hecho matrimonial simultánea basada en la affectio maritalis, o era un doble vínculo, que integraría para la segunda esposa una mera relación de concubinato, de modo que la constitución de los emperadores Honorio, Teodosio y Constancio del año 421, recogida en C. I. 9, 9, 34, es el primer testimonio sólido donde consta con claridad que no se divuelve el primer matrimonio por la mera cel-ebración del segundo, y por consiguiente, la invalidez del segundo cuando no ha precido el divorcio del primero con acto contrario. Robleda, por su parte, entiende que muchas de sus interpretaciones presentan dudas y admiten objeciones fundadas, ya que el hecho de que la bigamia no se castigara en el derecho republicano y clásico y sí en el posclásico, es un argumento relativo a los requisitos de validez de la segunda relación conyugal. Vid. ROBLEDA, O., El matrimonio en Derecho romano. Esencia, requisitos de validez, efectos, disolubilidad, Roma 1970, pp. 117-144.

9 C. I. 5, 5, 2. El edicto del pretor consideraba al afectado con la nota de infamia, tal cual aparece en D. 3, 2, 1: Iulianus, libro primo ad edictum. Praetoris verba dicunt: Infamia notatur… quem quamve in potestate haberet bina sponsalia binasve nuptias in eodem tempore constitutas habuerit, y además se le sometía a penas públicas. Esta crimen de bigamia fue una fi gura autónoma en época posclásica, a con-secuencia del nuevo concepto de matrimonio en el cual consensus y affectio indican exclusivamente la voluntad inicial de los cónyuges”, desapareciendo el alcance de la voluntad continuada como requisito indispensable para el mantenimiento de esa unión, tal como se había caracterizado en el período prec-edente y vemos en la confi guración del crimen de bigamia a partir del siglo IV, que era desconocido en época clásica. Ello explica que en Derecho posclásico se castigue con penas severísimas al que, sin previo divorcio jurídicamente válido y mientras está unido todavía en matrimonio, constituye un segundo vín-culo conyugal con otra persona. Indudablemente que esta fi gura de delito presupone que el matrimonio se fundamente en el consentimiento inicial de los esposos y persiste independientemente de la perviven-cia de la voluntad recíproca de los cónyuges. Recuerda Mommsen (El Derecho penal romano. Traduc-ción del alemán por P. Dorado, t. II, Madrid 1905, p. 171) que fue Diocleciano el primero que consideró la bigamia como delito independiente, a fi n de abolir la poligamia en que vivían muchos súbditos del Imperio, autorizada por el Derecho municipal de sus respectivas localidades, si bien esta disposición dejó al arbitrio de los juzgadores la pena que habían de imponer, si tomamos en consideración el texto de Papiniano, referido en D. 48, 5, 11, 12 y se tramitaba extra ordinem. Falchi (Diritto penale romano. I singoli reati, Padova 1932, pp. 126-127) matiza que inicialmente la bigamia fue castigada como crimen de adulterio o de estupro, ya que en sentido amplio el adulterio o el estupro comprenden “il semplice matrimonio illecito di donna già coniugata con altro uomo, o di uomo già coniugato con donna libera!”, tal como ocurre en nuestro supuesto, a tenor de la Novela 117,11; C. I. 9, 9, 18, 1 y C. I. 5, 5, 2, en cuya constitución los emperadores Diocleciano y Maximiano introdujeron por vez primera el año 285 la fi gura del crimen de bigamia . Como requisito indispensable para incurrir en esta fi gura criminosa es preciso el conocimiento del precedente ligamen matrimonial, tal como indican C. I. 9, 9, 18 y D. 48, 5, 12, 12 o D. 18, 5, 44, de manera que si falta tal consciencia no hay crimen. El segundo matrimonio

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Temas de Direito Privado384

El P. Robleda10, al tratar de los impedimentos, en sentido posclásico, comienza por el ligamen, al afi rmar que “impedía el matrimonio, al menos en tiempo posclásico, la preexistencia de otro ya contraído por parte de alguno de los que pretendiesen realizarlo”, aduciendo diversos fragmentos del Corpus Iuris Civilis11, y entendiendo que se trata de una circunstancia que impedía el matrimonio igualmente en época clásica, ya que ambos períodos era preciso el divorcio del primer matrimonio para contraer el segundo, dado el principio monogámico que rigió invariablemente en el mundo romano, como mostraría la concordancia del texto de Gayo I, 63 y de Justiniano en sus Instituciones12.

Desde el punto de vista de la Iglesia Católica, es indudable que en el Nuevo Testamento, tanto en los Evangelios como en las Epístolas, se contienen claros preceptos en los cuales se proclama el matrimonio monogámico, y se prohíbe un doble vínculo. A consecuencia de este principio natural y divino, la normativa canónica tradujo desde Nicea esta exigencia ineludible para todo cristiano. Se recogió en el Derecho canónico medieval13, y fue proclamada a nivel dogmático en

es inválido, a tenor de la constitución del año 258, recogida en C. I. 9, 9, 18 pr.: Impp. Valerianus et Gallienus AA. Et C. Theod. Eum qui duas simul habuit uxores sine dubitatione comitatur infamia. In ea namque re non iuris effectus, quo cives nostri matrimonia contrahere plura prohibentur, sed animi destinatio cogitatur. Según la Paráfrasis de Teófi lo a las Instituciones, la pena del bígamo acabó siendo la pena capital. Cf. HUMBERT, G., en Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines, Daremberg-Saglio, t. I-1ª parte, A-B., Graz 1969, pp. 710-711, s. v. bigamia.

10 ROBLEDA, O., S. I., El matrimonio en Derecho romano… cit., pp. 179-181.11 Inst. Iust. 1, 10, 6 y 7; C. I. 5, 5, 2; C. I. 1, 9, 7. Impp. Valent. Theod. et Arcad., del año 393.12 Entiende Robleda que la diferencia entre ambos períodos se encuentra que el divorcio era enteramente

libre en Derecho clásico y no requería forma alguna o causas, mientras que sí lo exigía el derecho posterior, argumentando el jesuita español que la razón del impedimento no es su relación con el di-vorcio, sino en la necesidad de disolver el primer matrimonio antes de poder contraer el segundo, que no podría ser válido si preexistía el primero. Vid. PIOLA, G., en Il Digesto italiano, vol. XV. Parte prima, Torino 1903-1907, pp. 1070 y ss.; id., en Nuovo Digesto Italiano, a cura di M. d’Amelio, vol. XVII, Torino 1939, pp. 236-244, s. v. matrimonio (Diritto romano e intermedio).

13 ESMEIN, A., Le mariage en Droit Canonique, t. I, New Cork 1968, reimpr. de París 1891, pp. 267-269, por cuanto el impedimento dirimente, bajo el nombre de ligatio o ligamen, nace del principio de la incapacidad, en tanto el matrimonio existente no haya sido disuelto, de contraer unas segundas nupcias, porque este último será radicalmente nulo. El matrimonio consumado no admite más causa de disolu-ción que la muerte natural de uno de los cónyuges, siendo insufi ciente para su celebración una larga ausencia, o la cautividad a manos de infi eles, ya que ambos no se consideraban prueba sufi ciente de la extinción, hasta el extremo que si un juez admitía la nueva unión, ésta desaparecía si el primer cónyuge reaparecía. Para la normativa canónica hasta el Código de 1983, vid. DORAN, Th., L’impedimentum ligaminis (can. 1085 CIC 1917), en Gli impedimenti al matrimonio canonico. Scritti in memoria di Er-manno Graziani, Città del Vaticano 1989, pp. 159-176; MANS PUIGARNAU, J. M., Derecho matri-monial canónico, vol. I, Barcelona 1959, pp. 181-195; BERNÁRDEZ CANTÓN, A., Curso de Derecho matrimonial canónico, Madrid 1966, pp. 119-121; GANGI, C., Derecho matrimonial. Trad. de M. Moreno Hernández, Madrid 1960, pp. 56 y ss.; KNECHT, A., Derecho Matrimonial católico. Traduc-ción de T. Gómez Piñán, Madrid 1932, pp. 276-285; MONTERO GUTIÉRREZ, E., Matrimonio y las causas matrimoniales, 7ª ed., totalmente revisada, Madrid 1965, pp. 128-136.

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El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, Fechado en 1639 385

el Decreto de Trento: “2. Si quis dixerit, licere christianis plures simul habere uxores, et hoc nulla lege divina esse prohibitum: anathema sit.14”

La vigencia de este precepto aparece en España a consecuencia de la real pragmática de Felipe II, en la que acoge los decretos tridentinos como norma jurídica vigente en sus reinos15, al asumir el ruego contenido en la bula del Papa Pío IV, intitulada Benedictus Deus, de 26 de enero de 156416.

La normativa civil hispana mantuvo invariablemente en las fuentes jurídicas el principio de la monogamia y la prohibición de las segundas nupcias, mientras estuviere viva la relación conyugal que se hubiera celebrado17, y por ello aparece la bigamia en la Recopilación de las leyes destos reynos, más conocida como Nueva Recopilación, debida a la aprobación del citado monarca hispano, promulgada por la pragmática de 14 de marzo de 1567 y publicada en 1569, al disponer en el libro V, título 1, ley 5:

De los que casan otra vez siendo sus mugeres vivas, de la pena que merecen.

Muchas veces acaece, que algunos que son casados, o desposados por palabras de presente, siendo sus mugeres o esposas vivas, no temiendo a Dios ni a nuestras justicias, se casan o desposan otra vez; y porque es cosa de gran pecado y mal exemplo, Ordenamos y mandamos, que qualquier que fuese casado o desposado por labra de presente, y se casare o desposare otra vez, que demas de las penas en el derecho contenidas, que sea herrado en la frente con fi erro caliente, que sea hecho a señal de q18.

Por su parte, la ley 6 del mismo libro y título establece:

Que incurra en pena de aleve el que se desposa con dos mugeres, siendo vivas.Otrosi, todo aquel que es desposados dos vezes con dos mugeres, no se partiendo de la una por sentencia de la Iglesia antes que se despose con la otra, es caso de aleve, y ha de ser condenado en la pena de aleve, y perdimiento de la mitad de sus bienes.

14 Conc. Trid., sessio XXIV, cn. 2. Cf. Conciliorum Oecumenicorum decreta, cur. J. Alberigo y otros… cit., p. 754. Vid. PASTORA Y NIETO, Diccionario de Derecho Canónico, trad. del que ha escrito en francés el abate Andrés… arreglado a la jurisprudencia eclesiástica española antigua y moderna…, t. III, Madrid 1848, pp. 91-92.

15 Vid. LLORCA, B., S. I., Aceptación en España de los decretos del Concilio de Trento, en Estudios eclesiásticos 39 (1964) 459-482.

16 &4. Ipsum vero charissimul fi lium nostrum Impertorem electum, ceterosque reges Respublicas ac Prin-cipies christianorum monemus…ad eiusdem Concilii exequenda, et observanda decreta praelatis, cum opus fuerit, auxilio et favore suo adsint, neque adversantes sanae ac salutari Concilii doctrinae, opiniones a populis ditionis suae recipi permittant, sed eas penitus interdicant. Cf. Bullarum privilegiorum ac diplo-matum Romanorum Pontifi cum amplissima collectio…, t. II, pars secunda, Romae 1745, pp. 169-170.

17 Cf. Partida 4, título 2, ley 9. Cf. MORATÓ, D. R., El Derecho civil español con las concordancias del romano, tomadas de los códigos de Justiniano y de las doctrinas de sus intérpretes, en especial de las Instituciones y del Digesto romano hispano de D. Juan Sala, t. I, Valladolid 1877, pp. 78-97.

18 Conforme a Part. 7, título 17, ley 16, el que casaba segunda vez, viviendo la primera consorte, incurría en el Medievo en las penas de destierro por cinco años en alguna isla, y pérdida de lo que tuviere en el lugar del segundo casamiento, con destino a sus hijos o nietos, y en defecto de ellos iba la mitad al fi sco y la otra mitad al engañado. Si los dos contrayentes eran sabedores del primer enlace, ambos eran dester-

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Temas de Direito Privado386

Por último, la ley 7 del citado libro y título dispone:

Que los que se casan dos vezes ansi mismo incurran en pena de galeras.Porque muchos malos hombres se atreven a casar dos vezes, y siendo el delicto tan grave se frecuenta mucho, por no ser la pena condigna: Por ende, mandamos que las nuestras justicias tengan especial cuydado de la punicion y castigo de los que parecieren culpados, y les impongan y ejecuten en ellos las penas establecidas por derecho, y leyes destos Reynos: y declaramos, que la pena de destierro de cinco años a alguna isla, de que habla la ley de la Partida, sea y se entienda para las nuestras galeras: y que por esto no se entienda diminuyrse la mas pena que según derecho y leyes destos nuestros Reynos se les deviere dar, atenta la calidad del delicto.

ASSO y MANUEL19 refi eren cómo “se falta mucho a la lealtad quando alguno de los casados casa otra vez, viviendo el otro de los consortes, cuyo delito se castiga por las leyes civiles con penas”, a los que se refi ere la Recopilación en su libro 8, título 20, ley 8, identifi cadas con doscientos azotes y diez años de galeras.

Domingo de Lavandera llevó a cabo vida marital con la segunda esposa a lo largo de algunos meses, después de los cuales cesó en esa relación matrimonial, aunque no se especifi ca si fue denunciado a la Inquisición hispana o, simplemente, separaron sus vidas.

Ya en época posclásica del Imperio romano encontramos el nacimiento de una jurisprudencia propia del obispo, que es conocida como Episcopalis Audientia, la cual está consolidada en la Compilación justinianea20. Con este precedente, desde la Edad Media encontramos tribunales eclesiásticos que gozaron de jurisdicción propia, en unos casos por razón de la materia, y en otros por razón de las personas. Recuerda Escudero21 que en el primer caso intervenían en asuntos estrictamente religiosos, porque afectaban a materias de fe y sacramentos, así como a los asuntos conexos, como era todo lo relacionado con el matrimonio y la usura, absorbiendo los aspectos civiles de estas materias, mientras que por las personas se constituyó el “privilegium fori”, extendiendo la competencia no sólo a los clérigos sino también a sus familiares. Dado

rados a islas separadas, y los bienes del que no tenía hijos o nietos se aplicaban al fi sco. Antonio Gómez, en su comentario a la ley 80 de Toro, número 27, afi rma que algunos creían alterada la ley por descuido del escribiente, poniendo Q en lugar de B, que es la inicial de bígamo; otros creen que la señal debía ser una cruz, para indicar que el delincuente era sospechoso en la fé, y otros un número dos, II, para denotar que había contraído dos matrimonios. La marca fi nalmente quedó abolida y se reemplazó por la pena de vergüenza pública; y el destierro de cinco años se conmutó despues en diez años de galeras, que en la Nov. Recop. 13, 28, 9 se tradujo en trabajos forzados en algún presidio. Cf. ESCRICHE, J., Diccionario razonado de Legislación y jurisprudencia, nueva ed. reform. y cons. aumen. por los doctores J. Vicente y Caravantes- L. Galindo y de Vera, t. II, Madrid 1874, p. 110, s. v. bígamo.

19 ASSO Y DEL RÍO, I. J. de,- MANUEL Y RODRÍGUEZ, M. de, Instituciones del Derecho Civil de Castilla, 5ª ed., Madrid 1792, pp. 48-49, 236 y 249.

20 Baste recordar el título IV del Código, libro primero: “De episcopali audientia…”.21 ESCUDERO, J. A., Curso de Historia del Derecho, 2ª ed., Madrid 1995, pp. 591-592.

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El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, Fechado en 1639 387

el carácter de pecado de muchos delitos se produjo una notoria extensión del ámbito competencial con notables confl ictos con el poder civil, especialmente en lo que se denominaron materias mixti fori.

Junto a la jurisdicción diocesana u ordinaria, se estableció en toda Europa la Inquisición medieval, por motivos de herejía, y fue una institución controlada por el papado, al entender que el hereje era un perturbador de la ortodoxia, al mismo tiempo que un delincuente, con lo cual se reclamaba el auxilio del brazo secular para su castigo, si bien la investigación quedaba en manos eclesiásticas22, aunque esta institución inquisitorial no se expandió a Castilla durante toda la Edad Media.

Su origen puede retrotraerse a los tiempos de Diocleciano con la la primera constitución contra los maniqueos, a la que siguieron otras diversas constituciones imperiales posteriores23, a cuyos jefes imponía la pena de muerte por el fuego, mientras que a sus cómplices se les castigaba con la decapitación y confi scación patrimonial, y a cuyos primeros momentos se refi ere el emperador Federico II en la constitución Inconsutilem tunicam, dictada contra los herejes el año 1231, hablando de las leyes antiguas: “prout veteris legibus est indictum”24.

Dándose cuenta del error, el ovetense Lavandera acudió con 36 años a la Ciudad Eterna, presentándose de forma espontánea y personalmente ante el Santo Ofi cio de Roma, el 10 de marzo de 1639, al mismo tiempo que elevó una petición para que se le absolviera de herejía en que había incurrido, dado el doble vínculo matrimonial, viviendo la primera esposa.

Desconocemos si en las actas del proceso romano ante el Tribunal del Santo Ofi cio se acogería el interesado a un edicto de gracia, en virtud del cual, al declararse culpable de herejía pudo presentarse voluntariamente y confesar su culpa, retractándose y logrando la absolución de la excomunión en la que había incurrido, y conforme indica la sentencia pronunciada se le impusieron una penitencias saludables, como pudieron ser una peregrinación larga al tratarse de un hereje público, junto a otras más livianas, tales como prácticas piadosas, recitación de oraciones, uso de la disciplina o fl agelación, ayunos e incluso multa en benefi cio de obras religiosas, pero no se habla de poenae confusibiles, es decir, de penas humillantes y degradantes, como la prisión, sino de salutares.

Los canonistas distinguen tres clases de bigamia, a saber, la propia, la interpretativa y la ejemplar o similitudinaria, aunque la que nos interesa para el supuesto es la

22 Se confi ó la persecución a Órdenes religiosas, al margen del ordinario de la diócesis, y como inquirían o investigaban por sí mismos la herejía, recibieron el nombre de inquisidores, asumiendo una doble función: acusadores e investigadores, pero al mismo tiempo jueces de esas materias.

23 Vid. C. I. 1, 5, 11 (poena capitali); 12 (ultimo supplicio); 15 y 16 (extremo supplicio).24 Cf. MINGUIJÓN Y ADRIÁN, S., Historia del Derecho español, 3ª ed., Barcelona 1943, p. 404.

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Temas de Direito Privado388

primera25 que consiste en la que contrae una persona por dos matrimonios sucesivos, aun cuando se hubiera verifi cado el primero antes de recibir el bautismo26. Diego de Covarrubias, al tratar de la irregularidad nacida de la bigamia, defi nía al bígamo como aquel “qui secundas contraxit nuptias… atque idem erit sive quis duas uxores legitimas diversis temporibus habuerit”, añadiendo: “est tamen necessarium ad contrahendum hoc bigamiae vitium in universum, quod carnalis commistio intercedat”27.

El P. Capello dictaminaba que las causas de bigamia pertenecían al fuero eclesiástico

quia res seu existentia criminis necne tota pendet a validitate primi matrimonii, de qua una Ecclesia iudicium ferre valet, ubi de coniugio inter baptizatos agitur”, mientras que el castigo del delito de bigamia “est mixti fori”, recordando que “secundum matrimonium, vivente adhuc priore cónyuge, certissime irritum est ex iure divino. Nam sententia iudicialis nec authentica declaratio offi cit veritati obiectivae. Quare si post contractum bona vel mala fi de matrimonium, detegatur priorem coniugem adhuc vivere, pseudo-coniuges separandi sunt, et, nisi adsit iusta causa separationis, instaurari debet prius coniugale consortium. Idque valet etiam in casu quo primum matrimonium fuerit ratum tantum, et alterum consummatum, quia hoc nullius prorsus est valoris”, añadiendo que “quamdiu coniuges versantur in bona fi de, qua cum secundas nuptias inierunt, in ea relinquendi sunt, donec certo constiterit de vita prioris coniugis28.

El tribunal romano accedió a la súplica, a través de un decreto, por razón del cual Domingo de Lavandera abjuró el 18 del mismo mes y año de la herejía que suponía haber celebrado un doble matrimonio29, con una fórmula válida en Derecho,

25 Vid. FERRARIS, L., Prompta bibliotheca canonica, juridica, moralis, theologica nec non ascetica, polemica, rubricistica, historica…, 4ª ed., t. I, Bononiae 1763, pp. 271-279, s. v. bigamia, bigamus; TORRE DEL GRECO, Th. A, en Dictionarium morale et canonicum, cura P. Palazzini, t. I, Romae 1962, p. 464, s. v. bigamia.

26 PASTORA Y NIETO, I., Diccionario de Derecho canónico, trad. del que ha escrito en francés el abate Andrés… arreglado a la jurisprudencia eclesiástica española antigua y moderna…, t. I, Madrid 1847, p. 171, s. v. bígamo, bigamia.

27 COVARRUBIAS Y LEYVA, D., Opera omnia, t. I, Lugduni 1574, pp. 597-599. Ferraris señala que “ligamen est vinculum conjugum ortum ex matrimonio rato vel consummato, utroque conjuge viv-ente. Dirimit matrimonium nedum jure ecclesiastico, sed etiam jure divino. Neutri conjugum licet, vel permitti potest quavis auctoritate transire ad secundas nuptias, nisi habita notitia moraliter certa de morte alterius. Si post matrimonium etiam bona fi de ab utroque conjuge contractum constiterit conjugem putatum mortuum adhuc vivere, statim sunt separandi et qui contraxerat alterum matri-monium debet ad priorem conjugem omnino redire”. FERRARIS, L., Prompta bibliotheca canonica, juridica, moralis, theologica, nec non ascetica, polemica, rubricistica, historica..., 4ª ed., t. IV, Bono-niae 1763, pp. 71-74, s. v. Impedimenta matrimonii. Cf. PALAZZINI, P., en Dictionarium morale et canonicum, t. III, Romae 1966, s. v. Ligamen (impedimentum ligaminis).

28 Este jesuita realiza un excursus histórico del impedimento, contenido en el cn. 1069 del antiguo CIC. Vid. CAPPELLO, F. M., S. I., Tractatus canonico-moralis de Sacramentis, vol. V-De matrimonio, Romae-Taurini 1950, pp. 389-398.

29 Cf. VERGIER-BOIMOND, J., en DDC, dir. por R. Naz, t. II, París 1937, cols. 853-888, s. v. bigamie (l’irregularité de), y especialmente Naz, R., ibid., cols. 888-889, s. v. bigamie (le délit de).

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El Derecho Romano en un Supuesto de Bigamia, Fechado en 1639 389

así como se arrepintió de cualquier otro error en que estuviera incurso, por lo cual el comisario general de la Inquisición, fray Vicente Maculano, dominico, con data del 21 inmediato posterior absolvió al suplicante de la excomunión en que había incurrido por la herejía y le reintegró al seno de los fi eles cristianos católicos, al mismo tiempo que le impuso unas penitencias saludables en benefi cio de su persona, y con la salvedad de la competencia que correspondiera a otros tribunales eclesiásticos.

Como afi rma Palazzini30, herejía en sentido amplio es “peccatum infi delitatis post baptismum commissum”, por lo cual “in Dei foro, haereticus dici potest, qui, post susceptum baptismum, veritatem revelatam et quodammodo suffi cienter propositam repudiat vel in dubium revocat”, aunque en sentido estricto es el que reniega de la verdad de la fe divina y católica que debe creer o duda de la misma31. El hereje incurre ipso facto en la excomunión, de la que únicamente puede ser absuelto si abjura previamente en forma jurídica, tal como hizo el asturiano de la súplica y breve32.

Dada la presencia del peticionario y el sincero arrepentimiento de su heterodoxa conducta, Domingo de Lavandera suplicó el respaldo pontifi cio de su absolución, y ello da origen al breve del Papa Urbano VIII33, con data del 14 de abril del citado año, en el que se deja constancia expresa de cómo este asturiano, juzgado por sospechoso de herejía y condenado por la Inquisición, había mostrado fehacientemente la voluntad de arrepentimiento y apartamiento del error en el que había incurrido, lo que permitía la intervención papal. El texto del decreto de la Congregación, hoy de Defensa de la Fe, y del breve papal son muy ilustrativos34.

El ordenamiento jurídico hispano vigente, con fundamento en la Constitución de 1978, prevé un régimen legal tanto por lo que afecta al matrimonio, en sus impedimentos y sus efectos, en el CC artículos 46 y 7335, como para el tipo y penas previstas en el delito de bigamia del CP de 1995, artículo 217, que ya venía contemplado en los códigos penales hispanos del siglo XIX36.

30 PALAZZINI, P., en Dictionarium morale et canonicum, t. II, Romae 1965, pp. 519-521, s. v. haeresis, y bibliografía.

31 Conforme a la etimología, hereje es el que “a corpore Ecclesiae, cuius regulam in credendis non acceptat, separatas est, sive per adhesionem sectae ab Ecclesia divisae, sive per individuam repudiationem cuiusdam articuli fi de divina catholicaque credendi”. Distinguen los autores entre herejía material y formal, entendiendo por ésta la que niega pertinazmente, mientras la primera carece de esa pertinacia.

32 Vid. CIC de 1917, cn. 2314, &1 y .33 El fl orentino Maffeo Barberini, subió al solio pontifi cio el 6 de agosto de 1623, viniendo consagrado el

29 de septiembre del mismo año, por lo que al fi rmar el breve de absolución que nos ocupa se indica que el décimo sexto año de su pontifi cado. Falleció el 29 de julio de 1642.

34 Vid. APÉNDICE DOCUMENTAL.35 Vid. GUTIÉRREZ FERNÁNDEZ, B., Códigos o estudios fundamentales sobre el Derecho civil

español, t. I, Madrid 1862, pp. 301-302; GARCÍA CANTERO, G., Comentarios al Código civil y compilaciones forales, dir. por M. Albaladejo, t. II, artículos 42 a 107 del Código Civil, 2ª ed. de

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APÉNDICE DOCUMENTAL

DECRETO DEL SANTO OFICIO Y EJECUCIÓN“Cunctis pateat evidenter, et sit notum, qualiter die decima mensis Martij, anni millesimi

sexcentesimi trigesimi noni, Dominicus fi lius q. Dominici de Vandera de Civitate Oviedi in Regno Castellae aetatis suae annorum sex et triginta comparuit personaliter sponte in Offi cio Sanctae Romanae et Universalis Inquisitionis et iuridice exposuit, quod de anno aetatis suae decimo quarto circiter uxorem nomine Mariam de Clara in eius patria duxit, qua relicta in Villam Madriti se contulit, ibique, sciens supradictam Mariam adhuc vivere, matrimonium cum Francisca Alvarez solitis Ecclesiae ceremonijs servatis, tribus ab hinc annis contraxit, cum qua per aliquot menses in fi gura matrimonij vixit: Verum agnito errore Romam venit, seque in hoc Sancto Offi cio praesentavit, ut erroris sui veniam reportaret atque absolutionem.

Quocirca, die decima octava eiusdem mensis in executionem Decreti Eminen-tissimorum et Reverendissimorum D. D. (dominorum) Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalium generalium Inquisitorum supradictus Dominicus adiuravit iuridice haeresim, de qua vehementer suspectus iudicatus fuit, una cum omnibus et quibuscumque alijs erroribus, et haeresibus quomodolibet contrarijs Sanctae Catholicae et Apostolicae Romanae Ecclesiae. Et successive fuit ab adversum R.(reverendissimo) P.(patre) fratre Vincentio Maculano ordinis Praedicatorum, Sacrae Theologiae Magistro, Commisario generali dictae Sanctae Inquisitionis, absolutus in forma Ecclesiae consueta a sententia excommunicationis propterea per eum incursa, et Sanctae matri Ecclesiae reconciliatus, iniunctis ei poenitentijs salutaribus, dummodo non fuerit praeventus inditijs in Sancto Offi cio Hispaniarum, vel alio ecclesiastico tribunali, et alias prout in actis. In quorum fi dem etc. Datum Romae ex Palatio Sancti Offi cij hac die 21 Martij 1639. Joannes Antonius Thomasius Sanctae Romanae et Universalis Inquisitionis notarius”37.

BREVE“Urbanus. Ad futuram rei memoriam. Exponi nobis nuper fecit dilectus fi lius Dominicus natus

quon Dominici de Vandera Ovetensi in Regno Castellae, quod per ipsum in trigesimo sexto ut asserit suae aetatis anno constitutum, nuper sub die X martii proximi praeteriti comparito personaliter sponte

acuerdo con la Ley de 7 de julio de 1981, Madrid 1982, pp. 76-78 y 214-220, que defi ende la nulidad absoluta del segundo matrimonio; CASTÁN TOBEÑAS, J., Derecho civil español, común y foral. T. V. Derecho de familia. Vol. 1. Relaciones conyugales, 12ª ed., rev. y puesta al día por G. García Cantero y J. M. Castán Vázquez, Madrid 1994, pp. 228-229; LÓPEZ ALARCÓN, M.-NAVARRO VALS, R., en Comentarios al Código civil, II.1º. Libro primero (títulos I a IV), Barcelona 2000, pp. 699-700; GARCÍA VARELA, R., en Comentario del Código civil, coord. por I. Sierra Gil de la Cuesta, t. I, arts. 1 al 89, Barcelona 2000, pp. 646 y 770-771; ALBÁCAR LÓPEZ, J. L.-MARTÍN GRANIZO FERNÁNDEZ, M., Código civil. Doctrina y jurisprudencia, t. I, artículos 1 a 332, Madrid 1991, pp. 511-512 y 578.

36 Vid. RODRÍGUEZ DEVESA, J. M., Derecho penal español. Parte especial, reed. De la 12ª ed. rev. y puesta al día por A. Serrano Gómez, Madrid 1989, pp. 270-273; BLANCO LOZANO, C., Tratado de Derecho penal español. T. II. El sistema de la parte especial. Vol. 1. Delitos contra bienes jurídicos individuales, Barcelona 2005, pp. 369-371; SERRANO GÓMEZ, A.-SERRANO MAÍLLO, A., Derecho penal. Parte especial, 11ª ed., Madrid 2006, pp. 313-314; QUERALT JIMÉNEZ, J. J., Derecho penal español. Parte especial, 5ª ed. rev. y act., Barcelona 2008, pp. 327-330.

37 ASV. Sectio Brevium, vol. 871, fol. 411r.

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in offi cio Sanctae Romanae et Universalis Inquisitionis et iuridice exposito quod alias hunc in decimo quarto circiter suae aetatis anno constitutus dilectam in Christo fi liam Mariam de Clara in uxorem in sua patria duxit, qua relicta in oppidum Madriti se contulit ibique sciens supradictam Mariam superstitem existere matrimonium cum dilecta in Christo etiam fi lia Francisca Alvarez solitis Ecclesiae ceremonijs servatis tribus adhinc annis contraxit, cum qua per aliquot menses in fi gura matrimonij vixit; verum agnito errore, Romam venit, seque in praedicto Sancto Offi cio hujusmodi praesentavit, ut erroris sui veniam atque absolutionem reportaret. Quocirca, die decima octava eiusdem mensis in executionem decreti venerabilium fratrum nostrorum S. R. E. Cardinalium adversus haereticam pravitatem generalium Inquisitorum a Sede Apostolica deputatorum desuper emanati, praefatus Dominicus ut iuridice haeresim de qua vehementer suspectus iudicatus fuit, una cum omnibus et quibuscumque aliis erroribus et haeresibus quomodolibet Sanctae Catholicae et Apostolicae Romanae Ecclesiae contrariis abiuravit, et successive a dilecto pariter fi lio Vincentio Maculano Ordinis Praedicatorum Professore Sacrae Theologiae magistro dictae Sanctae Inquisitionis Commisario generali absolutus fuit in forma Ecclesiae consueta a sententia excommunicationis propterea per eum incursa et Sanctae matri Ecclesiae reconciliatus, iniunctis ei poenitentijs salutaribus, dummodo non fuerit praeventus inditiis in Sancto Offi cio Hispaniarum vel alio Ecclesiastico Tribunali38 et alias prout in actis continetur. Cum autem sicut eadem expositio subiungebat idem Dominicus praemissa omnia pro illorum fi rmiori subsistentia apostolicae nostrae confi rmationis patrocinio communiri summopere desideret, nos eundem

38 Señala Escudero (ESCUDERO, J. A., Curso de Historia del Derecho, 2ª ed., Madrid 1995, pp. 642-644) que extinguida en la Península la Inquisición medieval, el problema generado por los conversos a los Reyes Católicos fue la causa de solicitar del Papa el establecimiento de la nueva institución conocida como Inquisición española, que no sería abolida hasta el 15 de julio de 1834, y que arranca con la bula de Sixto IV, fechada el 1 de noviembre de 1478. Entre los dos juicios emitidos sobre el Tribunal de la Inquisición o Tribunal del Santo Ofi cio, que eran una serie de tribunales dependientes de un organismo central, conocido como la Suprema o Consejo de la Inquisición, a quienes competía la vigilancia de la ortodoxia y la persecución de la herejía, unos confi guradotes de la leyenda negra y otros como garante de la unidad religiosa y política, hoy se adopta un criterio mesurado y poliédrico, ya que se dirigió ex-clusivamente contra los cristianos que no guardaban el dogma, lo cual era una cuestión religiosa en su formulación, si bien se estatalizó y se convirtió en un instrumento político, entrando en temas como la fornicación, la bigamia, la blasfemia, etc. que se apartaban de las discrepancias dogmáticas. Se perseguía al blasfemo porque creía en lo que formulaba. Los tribunales inquisitoriales promulgaron inicialmente un edicto de gracia, y más tarde acudieron al edicto de fe amenazando con la excomunión a quien no denunciara a cualquier hereje o herejía que conociese. Ante la sólida convicción cristiana de los his-panos de esas centurias, ello implicó que cualquier ciudadano se convirtiera en un potencial agente de la Inquisición, formulándose multitud de denuncias que provocaron enfrentamientos con miembros de la misma familia y a veces sirvieron para ventilar rencillas personales. Efectuada la denuncia anónima, el interrogatorio podía conllevar el descubrimiento de cualquier irregularidad ignota, y culminaba el proceso con la condena o absolución del reo. En el primer caso se le imponían penas muy diversas, como el destierro, la confi scación de bienes, el uso del sambenito o traje penitencial, la cárcel, las galeras e incluso la muerte en la hoguera, que era ejecutada por la autoridad secular, si bien muchos autos de fe fueron incruentos. Una síntesis de esta institución y su actividad, vid., en MIGUIJÓN Y ADRIÁN, S., Historia del Derecho español, 3ª ed., Barcelona 1943, pp. 402-412.

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Dominicum specialibus favoribus et gratijs prosequi volentibus et a quibusvis etc. supplicationibus illius etc. inclinati: absolutionem et reconciliationem praedictas eidem Dominico ut praedicitur concessas apostolica auctoritate tenore praesentium confi rmamus et approbamus illiusque inviolabilis apostolicae fi rmitatis robur adijcimus ac omnes et singulos tam iuris quam facti defectus si qui desuper quomodolibet intervenerint supplemus. Decernentes praesentes litteras validas fi rmas et efi caces existere suosque plenarios et integros effectus sortiri et obtinere dictoque Dominico in omnibus et per omnia suffragari sicque per quoscumque judices etc. auditores iudicari et deffi niri debere etc. attentari. Non obstantibus constitutionibus et ordinationibus apostolicis caeterisque contrariis quibuscumque. Datum Romae apud Sanctum Petrum sub dia 14 Aprilis 1639 anno 16.

In marg. Pro Dominico quon Dominici de Vandera OvetensiQui superstite prima uxore aliam duxit tribus abhinc annis, cum qua per aliquod menses in

fi gura matrimonii vixit, nuper autem sponte comparens in Offi cio Sanctae Romanae et Universalis Inquisitionis, in vim decreti Cardinalium Sancti offi cii abiurata iuridice haeresi de qua vehementer suspectus iudicatus fuit, et aliis etc. fuit a Commisario generali absolutus etc. iniunctis ei poenitentijs salutaribus dummodo non fuerit praeventus inditijs in Sancto Offi cio Hispaniarum vel alio Ecclesiastico Tribunali, Sanctitas Vestra absolutionem hujusmodi confi rmat. M. (Maffeo). M. A. Maraldus”39.

O DIREITO ROMANO NUM CASO DE BIGAMIA EM 1639

Resumo: A celebração de um segundo casamento, enquanto viva a primeira esposa, no século XVII na Espanha gerava impedimento que anulava o segundo vínculo conjugal, pois era considerado inicialmente uma heresia, que resultava em excomunhão. Para não sofrer penas tão graves, era necessário que se recorresse ao edito de graça ou que se arrependesse espontaneamente, suplicando a absolvição ao tribunal inquisitorial.

Palavras-chave: Inquisição. Matrimônio. Santo Ofício. Espanha.

39 ASV. Sectio Brevium, vol. 871, fol. 410rv y fol. 413r.

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* Conferência proferida em 24 out. 2008 no Instituto Dr. Lapieza Elli, em Buenos Aires. Como tratou-se de exposição oral, não se indicam aqui as fontes bibliográfi cas nem se faz resumo.

Derecho Romano y Etica Convergente*

Luis Aníbal MaggioProfessor titular de Direito Romano na Faculdade de Direito, Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Morón (Argentina)[email protected]

1

Sea por la Caja de Pandora, sea por la serpiente tentadora, desde que el mundo es mundo los males andan dispersos por la tierra y en consecuencia la Etica despliega su ofi cio porque su problema primordial es el del bien y del mal, al que Dios diera forma de árbol en la entrada misma del Paraíso. En torno a este núcleo primario y sus incontables derivados aparecen muy diversas clasifi caciones pero quizá la más abarcativa y adecuada sea la división entre éticas “teleológicas” y éticas “deontológicas”. Las primeras se caracterizan por la aceptación de ciertos fi nes, considerados bienes supremos (placer, excelencia virtuosa, utilidad, solidaridad, etc) como fundamentos de la moralidad a partir de los cuales se construyen arquitectónicamente ciertos sistemas éticos. Dichos bienes conforman “contenidos materiales” que originan por ello las llamadas “éticas materiales” (teleológicas). Las segundas no reconocen ningún contenido previamente determinado sino que privilegian la confi guración de ciertas “formas” cuya observancia fundamentaría la validez de los resultados cediendo paso a las llamadas “eticas formales” (deontológicas). El concepto “estrella”, al decir de Esperanza Guisán, de las éticas teleológicas es “lo bueno” (good), mientras en las éticas formales brilla el de “lo correcto” (right).

Desde la antigüedad y hasta Kant imperó en la ética una visión teleológica; sin haber caducado esta concepción, de Kant en adelante se desarrollan profusamente importantes éticas deontológicas o formales. El “imperativo categórico”, fuente originaria de éstas últimas, no presupone ningún contenido, ninguna conducta sustancialmente buena, pero cualquier conducta cuya máxima pueda ser elevada a ley

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universal sin caer en contradicción, será moralmente válida. Sólo la buena voluntad (el deber por el deber) es absolutamente buena y no es buena por lo que efectúe o realice sino que es buena por si misma. El fundamento moral no radica pues en ningún contenido material sino en la forma.

La doctrina kantiana expresa en todo su esplendor el ideal de la modernidad que ha sido bien sintetizado por Benedicto XVI en su última Encíclica “Spe salvi”: progreso, ciencia, razón y libertad. Si el ser humano se atreve a saber (sapere aude), la ciencia disciplinará las fuerzas de la naturaleza, la racionalidad lo dotará de un auténtico señorío moral constituyéndolo en un ser instruído, autodeterminado, libre y solidario. Habrá un progreso material y moral indefi nido hasta alcanzar el reino de los fi nes en los que todos se determinarán autónomamente por leyes universales y reinará la paz perpetua bajo los ideales de libertad, igualdad y fraternidad proclamados por la Revolución Francesa.

Tan alto paradigma es asediado y atacado por diversos y sucesivos fl ancos. La teoría de la evolución, el psicoanálisis, el existencialismo, el estructuralismo, el multiculturalismo van minando los cimientos culturales de la modernidad diseminando toda clase de relativismos, escepticismos y nihilismos desesperanzados. La “crítica de la modernidad” muy en boga produce una “intrépida y decidida negación de la razón”, al decir de Habermas. Al mismo tiempo enfrentamientos, guerras, genocidios y calamidades varias ofrecen un panorama de horrores que disuelven la confi anza en las bondades de la naturaleza humana. Se hace sentir entonces un reclamo perentorio a la Etica para “volver a la razón”, pero volver a la razón es “volver a Kant”. Bajo esta consigna aparecen las Escuelas de Baden, Hamburgo y Frankfurt.

Estaba haciendo falta una teoría fi losófi ca de lo bueno y lo correcto, una teoría ética que se extienda a los campos de la política y del derecho para encausar normativamente el desarrollo de la sociedad. Pero una teoría sólida, capaz de restaurar y sostener una ordenación racional de la vida en sociedad, requiere de cimientos fi rmes, de una “fundamentación última” a la que puedan reconducirse incuestionablemente todas sus diversas manifestaciones. Tal basamento no pueden ofrecerlo ya ni la religión al no existir una doctrina universalmente válida, ni la tradición por la labilidad multicultural de las costumbres modernas. Tampoco fi losofías políticas paternalistas o autoritarias, incompatibles con la dignidad de la ética. El hombre moderno queda entonces como expuesto en una soledad metafísica. El problema que tiene en vilo a los autores es el de la “fundamentación última” de la ética que, si no se quiere caer en relativismos u otras posturas escepticas, requiere para estar “bien fundada” normas de “validez universal”. Pero, al no ser susceptibles de “universalización” los contenidos (controvertidas éticas materiales) de las normas, se apunta a la dimensión “formal”, sea en una postura monológica (vgr. Hare), sea mayoritariamente “dialógica” (Etica discursiva). Solo la “forma” es “universalizable”, los contenidos son siempre contingentes y objeto de muy diversos juicios de valor.

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Derecho Romano y Etica Convergente 395

Paralelamente, ocurre el desplazamiento del “paradigma de la conciencia” (“factum” de la conciencia moral normativa) por el “giro lingüístico” (“factum” del lenguaje) como punto de partida de la refl exión fi losófi ca. Por encima de todas las determinaciones particulares, el ser humano se caracteriza y distingue específi camente por el lenguaje, somos seres hablantes. El lenguaje exhibe una triple dimensión: sintáctica (coordinación interna y construcciones verbales), semántica (correspondencia entre signifi cantes y signifi cados) y pragmática (usos). En esta última dimensión, el habla tiene por objeto comunicarnos y la comunicación tiende necesariamente al entendimiento. La racionalidad humana no se expresa ya en el sujeto kantiano (particular y universal a la vez) capaz de querer lo que todos quisieran sino en la intersubjetividad comunicativa del lenguaje. El rechazo a toda fundamentación metafísica lleva a defi nir a la persona humana por su competencia dialógica para la formación de “consensos” legitimadores, así como a la búsqueda de la universalización en los procesos productores de las normas por mor de las condiciones normativas de todo diálogo posible. De este modo la racionalidad humana, en palabras de Robert Alexy, “no es nada distinto a la preservación de las reglas del discurso”. La dimensión axiológica (lo bueno) es subsumida bajo la dentológica (lo correcto).

La perspectiva deontológica de la ética postkantiana ha dado cauce a las llamadas “TEORIAS PROCESALISTAS DE LA JUSTICIA”, de entre las cuales abordaremos algunas de las más relevantes, bien que a paso de turismo meramente descriptivo.

2

Hay general asentimiento en que la “Teoría de la Justicia” ( Justicia como equidad o imparcialidad) de John Rawls es una de las contribuciones quizá más importante del siglo XX.

El autor propone una “interpretación procesal” de la doctrina de la autonomía de la voluntad y el imperativo categórico kantianos, adscribiendo su teoría en el ámbito de la“justicia puramente procesal”. Hay, dice, una “ justicia procesal” tripartita: a) Justicia procesal perfecta cuando existe un criterio anterior de lo justo y un procedimiento para alcanzarlo (caso del pastel dividido en partes iguales). b) Justicia procesal imperfecta cuando siguiendo el procedimiento se llega a un resultado injusto (caso del inocente condenado o del culpable absuelto). c) Justicia puramente procesal en la que no interesa el resultado sino el procedimiento “ya que no existe un criterio independiente por referencia al cual se pueda saber que un determinado resultado es justo”. Esta es precisamente el ámbito en que queda adscripta la “ justicia como imparcialidad”.

Mediante recursos metodológicos descriptos como “ciertas restricciones de procedimiento” (sic), elabora su teoría desde una constelación conjetural o hipótesis

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descripta como la “posicion inicial” o “posición original”, que se confi guraría acotando la misma con una serie de “restricciones” o especifi caciones ( básicamente el “Velo de la ignorancia” y las “Circunstancias de la Justicia”, que veremos seguidamente, y algunas otras restricciones formales de principios) inexistentes en el universo kantiano y el célebre contrato social russoniano.

La “posición original” no es un symposium ni una asamblea realmente acontecida; se trata de una situación conjetural producto de un “razonamiento contrafáctico” que postula : Si se reconstruye mentalmente, si nos representamos una situación inicial en la que los seres: a) fueren racionales noumenales, ( aplicarían la racionalidad deliberativa), autointeresados (no envidiosos), libres (de condicionamientos empíricos para elegir) e iguales ( tendrían los mismo derechos en el procedimiento para escoger principios; b) estuvieren bajo el “velo de la ignorancia” de modo tal que para asegurar la imparcialidad fueren desconocedores de su propia condición, pero conocieren las leyes básicas de la sociedad y la economía; c) actuaren en circunstancias (“circunstancias de la justicia”) tales que reinara una moderada escasez y equilibrio de fuerzas, fueren iguales en poderes físicos y mentales, pero vulnerables a las agresiones de los otros ; d) no omitieren cierta previsión de futuro ( para si y al menos tres generaciones) y e) se supone la existencia de ciertos bienes (bienes primarios) presuntamente deseados por todo ser racional, ( derechos, libertades, oportunidades, ingreso y riqueza, autorespeto) y un cierto nivel de desarrollo ( justicia especial), en este marco ideal restringido, acordarían por unanimidad dos principios básicos, a saber:

1: Principio de la libertad: Cada persona ha de tener un derecho igual al esquema más extenso de libertades básicas iguales que sea compatible con un esquema semejante de libertades para los demás.

2: Principio de la diferencia: Las desigualdades económicas y sociales habrán de ser conformadas de modo tal que a la vez: a) se espere razonablemente sean ventajosas para todos; b) se vinculen a empleos y cargos asequibles para todos, bajo condiciones de justa igualdad de oportunidades.

El primer principio ( de la libertad) se aplica a las libertades básicas; el segundo (de la diferencia) a: 1) distribución de ingreso y riqueza (ventajoso para todos). 2) puestos de autoridad y responsabilidad (asequibles para todos) y tiene que ser consistente con las libertades básicas e igualdad oportunidades.

Coordinando la igualdad de oportunidades con el principio de la diferencia, el segundo principio especifi ca que “las espectativas más elevadas de quienes están mejor situados son justas si y sólo si funcionan como parte de un esquema que mejora las espectativas de los menos favorecidos de la sociedad”.

Los dos principios como caso de una concepción general de la justicia pueden enunciarse: “Todos los valores sociales -libertad y oportunidad, ingreso y riqueza, así como las bases sociales y el respeto a si mismo- habrán de ser distribuídos igualitariamente a menos que una distribución desigual de algunos o de todos estos valores redunde en una ventaja para todos”.

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Los “principios de justicia” ( justicia sustantiva) que se acuerden en la posición original informarán y serán refl ejados en el contrato constitutivo de la sociedad y los elementos principales del sistema económico y social y serán efectivizados en sucesivas etapas (constitucional, legislativa, judicial, administrativa).

“El concepto de que algo es justo, equitativo o benefi cioso puede ser reemplazado por el de estar de acuerdo con los principios que en la situación original serían reconocidos como aplicables a asuntos de su clase”, en otras palabras, lo “correcto” reemplaza a lo “ justo”.

Los hechos morales están determinados por los principios que hayan sido acordados en la posición original sustitutiva del pacto, de modo tal que algo será bueno sólo si se ajusta a las formas de vida compatibles con los principios de derecho ya existentes. Solamente una vez establecidos los principio de justicia resulta posible el orden moral. El bien de una persona está determinado por lo que para ella es el plan más racional, dadas circunstancias razonablemente favorables, de modo que algo es bueno, si se ajusta a formas de vida compatibles con los principios de derecho ya existentes, ya que “los planes racionales de vida que determinan qué cosas son buenas para los seres humanos, los valores de la vida humana, se hallan sometidos ,a su vez, a los principios de justicia”. Es decir, la moral consiste en realizar planes personales racionales de vida bajo la bóveda celeste de los principios de justicia previamente establecidos en la “posición original”. En consecuencia y aquí tenemos un giro en redondo de de la concepción tradicional sobre la primacía de la moral sobre el derecho, para Rawls, el concepto de derecho tiene prioridad sobre el de bien. Este ángulo de visión implica una separación entre “lo justo”, que queda así transferido a la dimensión pública (principios de justicia) y “lo bueno” que se privatiza en planes personales de vida.

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Otra concepción de gran prestigio es la “Etica de la Comunicación”, “Etica Consensual” o “Etica Discursiva”, como prefi eren llamarla sus propulsores Kart Otto Apel y Jurgen Habermas.

El “giro lingüístico” al que se ha hecho mención nos señala que formamos entonces una “comunidad de hablantes”, una “comunidad dialógica”. Si nos situamos en una “comunidad ideal de comunicación”, es posible desde este promontorio otear las condiciones últimas de todo dialogo posible que conduzca al entendimiento sobre la verdad de las proposiciones en el terreno científi co y/ corrección de las normas en el de la ética y el derecho. En el proceso comunicativo de esta comunidad ideal ocurren ciertos “presupuestos trascendentales”, i.e no empíricos, según Apel y “universales”, según Habermas, que son irrebasables, i.e, conforman un “non plus ultra”, no pueden existir otros que lo superen y desde la “pragmática del lenguaje” están necesariamente supuestos, no pueden negarse sin

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caer en “autocontradicción preformativa” o “petición de principios”. Son criticables pero no falibles, su verdad es axiomática, no puede arguirse ni demostrarse su falsedad. En linea observante de estos presupuestos, se obtendrían necesariamente a ciertos acuerdos básicos “correctos” o, en últimas, desacuerdos fundamentados, límites máximos a los que puede acceder la racionalidad humana.

Rige en esta comunidad ideal, soberana y trascendentalmente supuesta, una “Norma Básica” bajo cuyo imperio se articula todo el sistema discursivo: “Todo confl icto de intereses debe procurar resolverse no por medio de la violencia sino por medio de argumentos (discursos prácticos) y del consenso que éstos permitan alcanzar”.

Opera asimismo un “Principio ético de universalización”:Sólo puede pretender validez las normas que se encuentren (o podrían encontrar) aceptación por parte de todos los afectados como participantes en un discurso práctico”. “Cada norma habrá de satisfacer la condición de que las consecuencias y efectos secundarios que se seguirían de su acatamiento universal para la satisfacción de los intereses de cada uno (previsiblemente) puedan resultar aceptados por todos los afectados (y preferidos a las consecuencias de las posibles alternativas conocidas.

Los seres racionales de Kant o noumenales de Rawls son sucedidos por los posibles afectados que adquieren la condición de interlocutores válidos:

Cualquier sujeto capaz de lenguaje y acción puede participar en los discursos prácticos, cualquiera puede problematizar cualquier afi rmación, cualquiera puede introducir en el discurso cualquier afi rmación, cualquiera puede expresar sus posiciones, deseos y necesidades y no puede impedirse a ningún hablante hacer valer sus derechos, establecidos en reglas anteriores, mediante coacción interna y externa al discurso.

La aceptación recíproca de los hablantes como “interlocutores válidos” conforma la dimensión ética del discurso ideal.

En el diálogo que celebra la comunidad ideal cada interlocutor válido desempeña ciertas “Pretensiones”, a saber:

a: inteligibilidad de lo dicho: identidad de signifi cantes y signifi cados para todos los interlocutores, lo que otorga al discurso su dimensión hermenéutica.

b: verdad de los enunciados y corrección de las normas.c: veracidad, sincera convicción de lo afi rmado.

Si pues bajo la bóveda celeste de la Norma Básica todos los alcanzados reales o posibles por los efectos de los acuerdos desempeñaren como interlocutores válidos el trípode de pretensiones, la observancia de tales principios procedimentales importará la “corrección” de las normas resultantes.

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Ahora bien, el mismo Rawls señala que la doctrina de Kant “se halla poblada de gran número de dualismos y especialmente por los existentes entre lo necesario y contingente, la forma y el fondo, el deseo y la razón y entre el noumeno y el fenómeno” y cree superarlos proponiendo, como ya se dijo, una “interpretación procesal” de la doctrina de la autonomía de la voluntad y el imperativo categórico que lo lleve a sobrepasar la pura formalidad, superar los “dualismos” y establecer principios sustantivos de justicia, valiéndose de nociones que “ya no son puramente trascendentales y faltas de conexión con la conducta humana”.

Que lo haya logrado es del todo opinable; al menos en el campo del derecho, donde el “vacuum” entre fondo (materia - contenido) y forma se manifi esta a cada paso y la necesidad de conciliarlos interpela al jurista, los dos principios que considera sustantivos aparecen harto insufi cientes para el abordaje y resolución de los confl ictos concretos de la vida social cotidiana. Tampoco la ética discursiva que para Habermas ha de mantenerse estrictamente en el plano fundamentador y para Apel sólo en cuanto sea posible descendería esforzadamente del plano trascendental al de la mundaneidad mediante el “principio de complementación”, pareciera tender puentes idóneos. Materia y forma se mantienen como a la distancia en sus respectivas órbitas.

La ética, al decir de Maliandi, no tiene confl ictos sino que es un “conglomerado de confl ictos”, aserto que bien puede extenderse al derecho. Cada situación confl ictiva concreta aporta un “thema decidendum” como fondo, materia o contenido a resolver desde ciertas formas jurídicas.

Es precisamente en torno a esta dicotomía básica irresuelta entre materia y forma que argumenta enérgicamente Artur Kaufmann, ex profesor de la Universidad de Munich. Si se lograra crear materia desde la forma, dice, muchos misterios del universo serían resueltos, pero jamás de las formas se pudieron extraer contenidos, la forma como tal jamás produce materia. Las teorías procesalistas son meramente formales y por ende vacías e inocuas, no resuelve ningún problema, ni nada dicen sobre el cómo y el qué debemos hacer en situaciones concretas como, por ejemplo, la de un médico frente a dos heridos graves teniendo un solo aparato para conectarlos.

La fi losofía y la fi losofía del derecho actuales operan frente a esto, es decir, frente a los problemas reales, de contenido, extraordinariamente difíciles en la teoría del discurso, de la cual, aunque algunos se matan hablando hasta el cansancio (parece serles necesario basar su cientifi cidad en tales vacuidades como fundamentación fi nal, pragmática trascendental y otras parecidas), no hay nada que esperar. Pero, para no ser malentendido, naturalmente se necesita de la ciencia y más aún de la fi losofía, del discurso, pero este debe ser un discurso que tenga contenidos y estos contenidos no provienen de la pura forma, sino predominantemente de la “experiencia, ya que los resultados de tales “discursos reales” no son desde luego “fi nalmente fundados” sino que plantean arriesgados juicios problemáticos.

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El discurso ético, dice, aunque pudiere funcionar en el ámbito macroético, no es operante en el microético porque hay decisiones que no pueden universalizarse. “Las normas no pueden ser formuladas fuera de un contexto, en la pura racionalidad porque se basan en la prudencia; el poder del juicio moral no alcanza para fi jar un catálogo de reglas universales”.

La fundamentación fi nal si se refi ere al discurso argumentativo mismo, es aceptable; pero no es científi camente sustentable si se refi ere al contenido (consenso idealmente logrado). Ese contenido no es susceptible de comprobación empírica y su accesibilidad por vía formal-ideal es harto problemática porque no hay la tal comunidad ideal de comunicación (Apel), ni la situación dialogal ideal (Habermas), ni el auditorio universal (Perelman), formas de pensar fi cticias, a punto tal que el mismo Apel estima poco viable su ética pura del discurso para el “tiempo intermedio” y apela al “principio de complementación”, aludido precedentemente.

Rechaza asimismo la preeminencia de lo correcto sobre lo bueno que caracteriza a la ética procesal. Todo intento de aferrarse a una teoría de lo correcto sin respaldo en una teoría del bien está condenado al fracaso. ¿Por qué se debe ordenar obligatoriamente que determinado procedimiento, desempeñando una posición especial, logre consecuencias?

El punto de vista procesal es válido en cuanto a los principios de argumentación y consenso. La verdad, que requiere la correspondencia (adequatio rei et intellectu”) no puede darse sino en la intersubjetividad, pero haciendo uso uso “pro domo sua” del racionalismo crítico de popperiano, introduce el principio de falibidadad (falsación); en consecuencia, ningún consenso es defi ntivo, ya que cada afi rmación, cada conclusión, cada argumento es esencialmente corregible, salvo el principio mismo del consenso.

Ahora bien, las reglas del discurso intersubjetivo son vacías y nada dicen sobre qué o cómo debemos proceder en la circunstancia, el consenso por el consenso mismo es como el barón de Mathausen y el método de la falsación, si sólo está meramente interesado en descubrir errores, no puede asegurar que algo sea justo o qué son las buenas costumbres sino tan sólo lo que es sin duda injusto y decididamente inmoral. Lo mismo podría decirse, agregaríamos nosotros, de los razonamientos contrafácticos. Pero de lo que se trata es de fundamentar y, si bien el concepto de que ninguna fundamentación es defi nitiva es aceptable en la refl exión fi losófi ca, no lo es en el discurso porque impediría toda posibilidad de entendimiento. “Nosotros, dice, debemos decidir y actuar”. Se hace necesario entonces la inducción hasta llegar a una saturación de argumentos. Por esa vía, muchos sujetos independientes entre si pueden alcanzar con relación al mismo asunto “conocimientos convergentes” (“convergencia de la verdad), objetivos, un consenso fundamental sobre valores básicos. El medio más importante para la confi rmación de lo objetivo es el consenso, pero el fundamento no es el consenso obtenido en forma ideal, sino la convergencia, que no es “acumulación de opiniones subjetivas, una especie de opinión dominante, sino la ordenación de diversos

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conocimientos, procedentes de distintos sujetos e independientes entre si, del mismo ente”. Se da así una “falibilidad pragmática” que exige en el punto de convergencia de las opiniones falibles un “conocimiento objetivo” (no “sustancial”), la “adequatio rei et intellectu” requerida tradicionalmente como elemento constitutivo de la verdad. “Consenso como fuente del derecho justo, derecho justo como límite del consenso”, escribe reproduciendo la cita de W. Naucke.

En este sentido y como enseñara Aristóteles ciertos principios no dependen de las convenciones humanas, son evidentes por si mismo y exhiben una inteligibilidad tal no admiten posibilidad contraria. Sería absurdo argumentar que la viabilidad , o si se quiere, el derecho de la autodefensa en caso de una agresión dependiera de un acuerdo o consenso, con o sin consenso yo me voy a defender, lo que sí puede ser objeto de consenso son la forma y/o circunstancias en que puedo defenderme (legítima defensa). Ciertos “primeros principios” o principios sobre valores fundamentales en los que necesariamente vamos a “converger” se aprehenden por actos cognoscitivos. Pero, como enseña Kalinowski, también son actos cognoscitivos aquellas regulaciones propias de la discrecionalidad política legislativa o admistrativa o sobre lo que en principio sería indiferente que fuera de uno y otro modo. Y es precisamente aquí donde aparece la necesidad de la “interdisciplinariedad” para lograr acuerdos fundados. No se pueden hoy en día regular sobre temas tan cruciales como la vida humana, el medio ambiente, las comunicaciones, las cuestiones demográfi cas y económicas globalizadas, etc. sin la concurrencia de los aportes y estado actual de los conocimientos de las ciencias tanto naturales como sociales.

En esa “convergencia” del discurso en un consenso sobre valores básicos ni la primera ni la última afi rmación son defi nitivas. Toda afi rmación es refutable por otra mejor argumentada, pero ésta, por más irrebatible que parezca, por más que se imponga con una objetividad inteligible que “con-venza” a los participantes, los libere de dudas y les permita decidir y actuar con sólido fundamento, siempre quedara como a la espera de una posible posición superadora. El derecho humano no se agota en el instante, es tradición y cultura; entendida hermenéuticamente al modo de Gadamer como suceso que llega por trasmisión y empalma en la tradición o se benefi cia del enlace que de ella proviene, la confl uencia del pasado , permite conjugar las formas vacías con la experiencia y el experimento. Los argumentos del debate ético deben ser con contenidos, pero los contenidos no son comprobables apriorísticamente, sino diferenciadamente en las distintas épocas y los distintos hombres.

Como todo proceso, el discurso normativo debe tener un objeto, un tema, que no se da por terminado como “objeto procesal” antes del proceso, sino que en el proceso adquiere su contorno defi nitivo, aunque precede al proceso como “relación jurídica”. Si se radica el objeto del derecho fuera del proceso, se cae en ontologismo; si en el proceso de producción jurídica, en funcionalismo. Se hace necesario hallar

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un “fenómeno” tal que sea simultáneamente ontológico y procesal. ¿Cuál será ese fenómeno que represente el tema del derecho a convertir en objeto procesal?. No puede ser otro que el hombre, el ser humano, pero no como ente empírico o noumenal, sino como persona tanto dentro como fuera del proceso, es decir, como la estructura de relaciones en que se encuentra con los otros hombres y las cosas, porque como dijera Santo Tomas el hombre como persona no es sustancia sino relación ( “ordo non est substantia, sed relatio”), la que no es estática e intemporal sino dinámico-histórica, ni tampoco discrecionalmente disponible. La centralidad del hombre en el discurso ético-jurídico requiere no sólo formas de “pensar fi cticio” sino de comunidades reales de argumentación, lo que le otorga la dimensión histórica que es decisiva y constitutiva del derecho. Refi riéndose a los derechos humanos expresa que cuanto más pobres de contenido hayan sido pensados, sus posibilidades de universalización como “fórmulas vacías” son infi nitas, pero así carecen de sentido porque con tales fórmulas no se puede argumentar, con éticas formales o matemáticas no se vencerán los gigantescos problemas actuales. La sola pregunta ¿ posee el embrión humano dignidad humana? las pone contra las cuerdas y prueba que hay muchas más respuestas diversas que universalizables. Kaufman interroga retóricamente si la ética de Apel ofrece algún consejo, llamamiento o ejemplo ante los problemas éticos actuales como energía nuclear, bioética o genética, entendiendo que la ética de la responsabilidad de Hans Jonas y de la reciprocidad de Jean Piaget y Paul Ricoeur son mucho más aptas que los metadiscursos para enfrentarlos.

En este punto podríamos por nuestra cuenta referenciar a Adela Cortina cuando en “Etica Mínima” enfatiza que por encima de todas las diferencias, la base de la cultura de nuestro tiempo se va extendiendo en forma imparable hasta el punto de poder considerarse como sustento universal para legitimar y deslegitimar instituciones nacionales e internacionales “el reconocimiento de la dignidad del hombre”. Tenemos aquí una notable convergencia de la Etica con el Derecho en la primacía de la persona humana como fuente y destinataria de toda normatividad posible.

Con relación a la fi losofía del derecho, enfatiza que no puede limitarse exclusivamente a lo formal y descuidar los contenidos o dejárselos a la política y le requiere que deberá recordar de nuevo su tarea original de dar respuesta a los interrogantes que los hombres le han planteado: la diferencia entre derecho y entuerto, las condiciones de una sociedad bien ordenada, la paz duradera, los bienes, sus posibilidades y cargas, la medida de justicia que es posible alcanzar; pero ello, enfatiza, no es juguete para una élite de lógicos aventajados y le augura que en el futuro no estará caracterizada por “rasgos postmodernos irracionales o místicos ni tampoco por un creciente ascenso de la razón formal, técnica, funcionalista”.

La verdad como correspondencia, la posibilidad de gnoseológica de un realismo crítico en la convergencia de conocimientos objetivos, la consideración de lo justo como

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una forma de lo bueno y la operatividad de la prudencia en el juicio moral, permitiría ubicar a Kaufmann entre los autores neoaristotélicos que desde la década del 80 han cuestionado severamente las doctrinas racionalistas formales.

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Hemos visto al comentar sobre J. Rawls la tripartición de la “ justicia procesal” en procesal perfecta, procesal imperfecta y puramente procesal.

En nuestra materia corremos el riesgo de pensar que porque usamos a veces las mismas palabras que los romanos, estamos pensando las mismas cosas y nos asedia la tentación de ver reeditadas como meras reproducciones o copias instituciones antiguas en las instituciones modernas. Pereciera no caer en cuenta que el derecho es un producto histórico y cada institución alcanza su plenitud de signifi cación en circunstancias tempoespaciales y culturales específi cas, cuya atenta consideración es postulada por una hermenéutica idónea. No obstante, resulta interesante observar cómo muchas de las instituciones hodiernas no surgen de la nada o del tiempo presente sino que es posible rastrear en antiguas instituciones lineamientos germinales que se desarrollan y esplenden en instituciones modernas y cómo, a la vez, la luz de lo contemporáneo permite descubrir nuevos o no advertidos matices en aquellas y así rescatar su valor y pervivencia en el devenir de la cultura jurídica.

El Proceso Civil Romano desde sus orígenes hasta el advenimiento de la “cognitio extra ordinem” se caracterizó por su doble faz “in iure” e “in indicio”. Examinando tal estructura del proceso romano podremos arribar a interesantes evidencias sobre cómo en la incesante pugna por la “verdad jurídica” la tensión entre forma y fondo se fue manifestando y desarrollando y cómo quizá aquel proceso discursivo puede servirnos de modelo orientador hacia la tan necesaria “convergencia” que en defi nitiva ha de ser sobre el “derecho justo”.

Al decir de Foucault, el afán de conocimiento del ser humano se canalizó mediante la lucha y la interrogación y ésta comenzó por la búsqueda de la “verdad procesal o jurídica”, especialmente en el derecho penal.

En tal búsqueda de la verdad así entendida, el derecho romano puede arrimar el precedente del sistema de las “acciones de la ley” (“legis actiones”), tema que ya he tratado en la ponencia presentada en el XVI Encuentro Nacional de Profesores de Derecho Romano celebrado en la ciudad de Córdoba (año 2003).

El formalismo es una de las características esenciales del antiguo derecho del pueblo romano, que profesara como ningún otro pueblo el culto de la forma. Y es en este sentido, es decir de gestos y ritos procesales, cómo deben entenderse las “legis actiones”.

Al tratar la Teoría de las Acciones, Scialoja, explica que “actio” originariamente quiso signifi car “actus”, acto jurídico solemne, entre los que tuvieron una importancia

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capital los que debían cumplirse para obtener la ejecución de un juicio o la decisión de un punto controvertido y, al estar establecidos por la ley, se denominaron “legis actiones”. Poco a poco el sentido formal dado por el “carácter exterior” del acto, se va trasladando al contenido sustancial del acto mismo.

La expresión derecho “procesal” no es romana, pero al hablar del derecho romano como un “derecho de acciones”, el sentido de “actio” se liga semánticamente a la actividad jurisdiccional en el sentido de posibilidad de amparo judicial de una situación o posición jurídica y las “legis actiones ” a las formas o vías procedimentales mediante cuya observancia se conforma el “ius persequendi” que defi niera Celso.

Sabemos que la expresión “derecho subjetivo” tampoco es de cuño romano; no se trata de las facultades que el ordenamiento jurídico objetivo otorga al ciudadano como lo entendemos modernamente. El “ius persequendi” era en esencia la posibilidad de obtener un “iudicium” (iudicium dabo), la resolución de un confl icto por un ciudadano designado juez y, si bien en el proceso formulario el pretor con mayor o menor margen de discrecionalidad es quien da o deniega la acción, en el procedimiento de las acciones de la ley la posibilidad o poder de obrar jurisdiccionalmente depende y se materializa por la estricta observancia de las formas procedimentales solemnes. El actuar de acuerdo con las formas sacramentales, especialmente las palabras (“legum verbis accomodatae”) crea un derecho, el derecho al proceso; caso contrario, nos dice el ejemplo paradigmático de Gaius, se hubiere perdido la “rem”.

Cuál era la “res” que habría perdido el litigante mal hablado? El “ juicio” (“iudicium”) en sentido estricto sin duda no porque todavía no había accedido a la segunda etapa; lo que perdía era precisamente esa posibilidad, la de la “actio” en el sentido de poder perseguir “in iudicio” lo que le era debido, mediante la designación de un juez, o si se quiere, la “res litigiosa”, el proceso, el pleito como traduce Di Pietro.

En esta primera etapa, cumplida la forma, hay “actio”; la forma es “ad solemnitatem”, constitutiva del “ius actionis”; no cumplida , no la habrá, el derecho al proceso se ha perdido. Vemos que aquí el “ius” sustancial (“good”), lo que nos es debido, no interesa, lo que importa es la forma, la “corrección” del procedimiento (“right”). En otras palabras, lo que en esta etapa importa no es si el litigante tiene o no tiene derecho, si es justa o no su pretensión, sino el cumplimiento de ciertas formalidades como condición visceral para que se abra la posibilidad de considerar y resolver, en la otra etapa, esa cuestión. Lo que preocupa al Estado es controlar la “regularidad de la acción”, es decir, su encausamiento a través de los cánones formales, el derecho de cada cual que se decidirá en la segunda etapa es, si se quiere, un asunto privado. Hoy diríamos el “debido proceso”, la actuación judicial de acuerdo a reglas preestablecidas como garantía de juzgamiento “correcto” y, como vimos supra, “lo debido”, “lo correcto” es propio de la visión “dentológica”.

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En este sentido, podriamos arriesgar que el elemento raigal de las teorías procesalistas de la Justicia, es decir, la prevalencia de “lo correcto” (right) dada por la observancia de las formas se encuentra ya en el procedimiento de las “legis actiones” conformando un paradigma de “ justicia puramente procesal”.

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En las teorías procesalistas de la justicia, la justicia puramente procesal se atiene a la observancia de las reglas procesales. Al no existir ningún criterio previo sobre lo justo o lo injusto, lo que interesa es la regularidad del proceso que, por haberse desarrollado de acuerdo con reglas prestablecidas, desembocará en un acuerdo deontológicamente válido en cuanto formalmente “correcto”. Desde este punto de vista, el contenido de la labor jurisdiccional, sea cual fuere, sería indiferente o neutro en términos de justicia, pero sería sí un pronunciamiento válido, “correcto” si se ha resguardado la regularidad del proceso.

A esta conclusión tentativa nos aproxima, como hemos visto, el examen de las acciones de la ley como primera etapa del proceso ( “in iure”), desde el prisma de los principios de las teorías procesalistas de la justicia, pero no sería válida y extensible a la totalidad del proceso civil romano. He tratado también este tema en la ponencia “La etapa “in indicio” y las teorías procesalistas de la Justicia” presentada en el Congreso Iberoamericano de Derecho Romano celebrado en la Universidad del rey Juan Carlos, Madrid, año 200.

En la segunda etapa del proceso civil romano (“in iudicio”) de lo que se trataba era de develar el “ius positum in causa” el “ius cuique tribuendi”, el derecho “de fondo”, mediante una convergencia en principios sustanciales. Mientras en la primera etapa se procura celosamente asegurar la regularidad, la corrección del proceso merced a la estricta observancia de las formas solemnes, ello era como preparación introductoria para la segunda en la que habrá de hallarse no ya lo correcto, sino lo justo, lo que es debido a cada uno. El “ius persequendi” (procesal) tiene por objeto fi nal que le da sentido el “ius quod sibi debetur”, que corresponde “cuique tribuere” (sustancial).

En la primera etapa, “in ure” (en el tribunal) se exponen los hechos y pretensiones siguiendo ciertos cánones gestuales y verbales ante el Pontífi ce, luego más informalmente ante el magistrado (pretor), se daba o denegaba la acción; si la había, se establecía la “litis contestatio” (legis actiones) o se redactaba la fórmula (procedimiento formulario) con la designación del juez y sus distintas parte, prescripciones y excepciones según el caso y la alternativa de soluciones aplicables en función de los supuestos de hecho o derecho. En la segunda, “apud iudicem”, se examinan y comprueban los hechos aludidos en la fórmula y los que se le relacionan y se hace aplicación de los principios de derecho puestos en juego.

Es opinión corriente que el proceso civil romano tenía un carácter privado, interesándole primordialmente al Estado resguardar, como dijimos, la regularidad

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de la acción. Las reglas de organización del proceso “in iure” dan cuenta de tal preocupación tutelar prioritaria. El resultado del litigio, dilucidado ante el juez, sería un asunto particular del que el estado prácticamente se desinteresaba.

Quizá esta visión del proceso sea una de las razones por la que en los manuales se trata ampliamente la primera etapa con las principales acciones (Gaius con sus “Instituta” y epígonos puede ser un ejemplo), relegándose la segunda a una sumaria relación de los medios de prueba e insistiéndose en el carácter ampliamente discrecional de la “sententia” en la apreciación de los mismos, de modo que el hacer lugar a las opciones de la fórmula prácticamente dependería de un cierto e impreciso arbitrio del “iudex”.

Desde este punto de vista, el proceso civil romano podría exhibirse como uno de los antecedentes históricos de “ justicia puramente procesal”: lo determinante sería la observancia de las reglas del proceso, no el resultado. El resultado será válido en tanto que “correcto”, es decir, obtenido mediante el seguimiento de las normas rituales, siendo indiferente para el estado que fuere uno u otro, justo o injusto.

Sin embargo, lo esencial en el proceso civil romano no era la cobertura “deontológica” en la resolución de los confl ictos sino la “axiológica”, de modo tal que su fi nalidad no era un resultado correcto, sino una solución justa. Y en este sentido, tendría un interesante parentezco con la “teoría de la convergencia” o, mejor dicho, cabría ilustrar dicha teoría con el ejemplo histórico del proceso civil romano.

Podemos entender el término “derecho” como lo “correcto”. Sin embargo, los romanos mencionaban regularmente el “ius”, que era “lo justo”. Santo Tomás dirá que los romanos llamaron “ius”, a lo que los griegos llamaba “ison”.

La función pretoriana ( do-dico-addico ) de “dicere” el ius”, no era un mero “decir”, sino una señalamiento, una mostración del derecho aplicable como solución justa. Si bien tenía una faz “cognoscitiva”, en cuanto indagación interpretadora de la solución justa ( en la que sin duda coayudaba la tarea intelectual de los prudentes), tenía una estructura hipotética disyuntiva ( si x, a; si no x, no a) y, en cuanto disposición emanada del “imperium”, tenía carácter “volitivo”. Por otra parte, aunque la oportunidad de decir el derecho estuviera dada por una circunstancia o caso concreto, al dar la acción y señalar las alternativas de solución, el pretor tiene en mira e induce a partir del caso la norma general en la que pueda subsumirse y servir para todos los casos similares o análogos (siempre que x, a, siempre que no x, no a), precisamente porque la ley (o el edicto) que fundamenta la “actio” se establecen “ut plurimum accidunt, non quae ex inopinato”.

Ahora bien, el pretor ha iniciado y ordenado una solución alternativa en forma hipotética mediante la expresión la condicional “si paret”, que generalmente es traducida como “si aparece” o “si resulta” y merece ser acotada para mejor entender.

“Pareo-es-ui-itum-ere”, signifi ca: parecer, aparecer, mostrarse, Darse a conocer, dejarse ver. Cui pecudum fi brae parent (Vir): que lee en las entrañas de las víctimas.- Abunde arbitror parere: estar sufi cientemente demostrado (Suetonio).- Si paret (Cic): si consta, si se prueba, si se justifi ca.

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El pretor ha interpretado y establecido cuál es la regla aplicable o, si se quiere, si el asunto traído a su estrado es expresión casuística de una norma y, por ende, debe aplicárse, eventualmente con qué aditamentos o restricciones (“praescriptiones”, “exceptiones” ) o no lo es y, por ende, debe desestimarse. Pero quien efectivamente debe verifi car si se dan de hecho las circunstancias empíricas que conforman realmente el caso conceptualizado por la fórmula, si concurren las llamadas “circunstancias del caso”, es el “iudex”.

El pretor ha dicho , “señalado”, el “ius” aplicable; el juez al sentenciar, al decir cuál es la “res iusta”, “hace” el ius”. De allí que pudiera sostenerse, como lo hiciera M.Villey apoyado precisamente en el derecho romano, que las proposiciones jurídicas son “descriptivas”, no “prescriptivas”: describen cuál “es” el “ius” en el caso concreto.

Si el “ius” es la “res iusta”, es obvio que todo el proceso está ordenado a la determinación de la misma. Y, si la “res iusta” no es fruto de un mero acto volitivo, sino que es algo objetivo, real, intersubjetivamente inteligible, resulta que la faz “discursiva” (confrontación de argumentos) y la faz “procesalista” (observancia de las reglas) no conducen a cualquier resultado que pueda considerarse justo por la sola observancia de las reglas (correcto), sino que han de “converger” en la objetividad conformante de aquella “res” que así debe serlo.

Las labor de los prudentes era la “interpretatio” de la ley y del “ius non scriptum”, que, en tanto “iurisprudentia”, consistió precisamente sólo en la interpretación que ellos realizaban. La “interpretatio” práctica de los prudentes tiene por objeto el hallazgo de la solución justa del caso concreto; se interpretan las normas ante un estado de controversia que requiere solución y no cualquier solución. El caso es la “res litigiosa”, de la que ha de extraerse, hacer emerger (pro-ducere) la solución justa, la “res iusta”, la “ipsa res iusta” en que consiste el “ius”. Esta “res iusta” es el develamiento de una razón de justicia que está ínsita en la estructura de la causa. “in causa ius esse positum”, como dijera Alfeno, como desocultamiento de lo latente, es una verdad patente alcanzada en su máxima evidencia, un arribo a una realidad inteligible pero siempre susceptible de nuevas miradas y desocultamientos.

Ahora bien, el prudente examina, descompone, analiza, se introduce intuiti-vamente en la “res” que, por ser “res litigiosa” conlleva un confl icto, una confrontación disyuntiva que habrá de superarse y armonizarse en términos no de cualquier solución sino de una solución justa. Y esta “res litigiosa” se compone de un repertorio, de una corona de datos empíricos en función de los cuales la justicia de la solución puede variar de dirección y alcances.

En el célebre pasaje de Alfeno que acabamos de citar, el prudente llega a distintas evidencias conclusivas según las distintas situaciones fácticas condicionantes que pudieran concurrir en el accidente de la cuesta Capitolina, de modo que, dado determinado hecho, corresponde determinada solución.

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Pero los hechos, aunque no se trate de un ejercicio académico sino de un caso real traído a consulta, en el discurrir del prudente siempre operan a título de hipótesis a comprobar. La “res litigiosa” ha sido captada, “intuída”, al decir de Di Pietro, en toda su complejidad y la solución justa ha sido como traída a presencia; sin embargo, el “ius” ha sido pre-visto, pero no ha sido hecho, conformado. Hay un suceso histórico-concreto que el prudente convierte en tema o posible “objeto procesal” para hablar en términos modernos, esbozado con minuciosa precisión, pero los componentes fácticos del suceso permanecen como realidades supuestas o hipotéticamente conceptualizados.

La solución justa tiene que ser “producida”, es decir, puesta en evidencia, develada, objetivada. Y para que esa presencia descienda del plano mental y se inserte en la realidad, para que todo lo que las “leges” y los “iura” han previsto como susceptible de general y frecuente ocurrencia, todo lo que los prudentes han sopesado como elementos fácticos del confl icto, toda la estructura de la “res litigiosa” intuída y expresada en la fórmula, se concrete en el un acto de justicia ( “ius suum cuique tribuere”) es necesario “re-producir” el suceso que reclama la solución justa. Hay que “volver a producir”, “re-construir” la cosa litigiosa.

Y no se trata de “re-construir” o “re-producir” la mera materialidad del suceso sino las circunstancias del suceso en tanto que litigioso, de modo tal que permitan situar a la “res” reconstruída en el marco de las condiciones previstas por la fórmula para una alternativa de soluciones.

Y es aquí donde aparece la dimensión de la fi gura del “iudex” como verdadera llave maestra del proceso de la “res litigiosa” a la “res iusta”, a la propia, misma (“ipsa”) cosa justa, generalmente aminorada en los manuales por la preferencia de la etapa “in iure”. Se dice que “apud iudicem” se producía la prueba cuyos distintos medios se comentan con mayor o menor detenimiento, que el “iudex” tenía amplia libertad de apreciación de la prueba, pero estaba condicionado por el marco del confl icto y las alternativas de solución indicadas en la fórmula, que su “sentencia” era una opinión basada en un leal saber y entender, pero el asunto da para más.

En el tránsito de la “res litigiosa”, “intuída” y estructurada por el pretor y el “prudens” (aunque pudiere ser real) al de la “res reconstructa” y de ésta a la “ipsa res iusta”, entre la etapa “in iure” y la etapa “in iudicio”, entre la solución prevista y la solución concreta, opera como una bisagra “artística”, en el sentido que podría darle Celso (h), la condicional de la formula “si paret”.

“Paret” (videtur) que no se ha reparado sufi cientemente en la funcionalidad de esta pequeña e impersonal locución en el ejercicio del servicio de justicia. Todo aquel proceso que se abriera ante el magistrado, siguiera diversas reglas, viviseccionara la “res litigiosa” como si leyera las entrañas de las víctimas, al decir de Virgilio, hasta intuirla en su integral complejidad y hallar por fi n la solución justa, se hará efectivamente “ius”, se transformará en real y verdaderamente en la “ipsa res iusta”, “si paret” al “iudex”.

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Ahora bien, lo que “paret” al juez no es ciertamente, como veremos luego, “lo que le parece”, su visión subjetiva, sino lo que “debe aparecer” merced a la requisa de los hechos a probar. De allí que, aunque la etapa “in iudicio” sea la etapa probatoria por excelencia, quepa la pregunta sobre si solamente son los hechos lo que debe probarse, si la función del juez se circunscribe a la apreciación de los hechos y emisión de su sentencia.

En latín existe el verbo “probo” que, entre muchas acepciones ( juzgar, estimar, aprobar) tiene la de “probar”. Cuando el lenguaje forense se refi ere a algún medio de prueba, usa el vocablo “probatio”; “probatio probatissima” decimos de la confesión. Sin embargo, la fórmula no decía “si probatur”, sino “si paret”.

Esta terminología no parece ser accidental y bien podría estar originada en la circunstancia de que las actuaciones ante el juez no tenían por objeto solamente la prueba de los hechos o, si se quiere, que no era función del juez sólo recibir la prueba de los hechos y dictar sentencias.

Un breve recorrido por las fórmulas puede aclarar la cuestión.

Gaius nos refi ere tres tipos de fórmulas:a: “In factum”, aquellas en que, después de expresado el hecho ocurrido,

se agregan las palabras que facultan al juez para condenar o absolver: “Recuperatores sunto. Si paret illum patronum ab illo illius patroni liberto contra edictum praetoris in ius vocatum esse, recuperatores illum libertum illi patrono sestertium X milia condemnate; si non paret absolvito”: Que haya recuperatores. Si aparece que este patrono hubiera sido citado a juicio por este liberto del patrono en contra del pretor, condenad a este liberto a pagar 10.000 sestercios a este patrono; si no aparece así, absolvedlo. Aquí el tema es claro: probado el hecho, la condena; no probado, la absolución.

b: Están las fórmulas “in ius conceptae”, es decir, las que tratan cuestiones de derecho. Veamos por ejemplo la de la acción reivindicatoria: “Si paret fundum Cornelianum, de quo agitur, ex iure Quiritium Auli Agerii esse, neque is fundus Aulo Agerio restituetur, quanti is fundus erit, tantam pecuniam iudex Numerium Negidium Aulo Agerio condemnato, si non paret absolvito: Si aparece que el fundo Corneliano del que se trata, es de Aulio Agerio según el derecho civil, y el fundo no le es restituído a Aulio Agerio, condena a Numerio Negidio a pagar a Aulio Agerio tanto dinero como vale el fundo; si no aparece, absuélvelo. Aquí los hechos a probar son la no restitución y el valor del fundo, pero todo depende de una cuestión de derecho: el dominio del fundo que no es un hecho sino una situación jurídica y una situación jurídica no se prueba como un hecho, sino que se demuestra, se acredita o justifi ca.

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c: Y hay también fórmulas mixtas que contienen antecedentes de hecho y cuestiones de derecho a determinar por el juez.- “Quod Aulus Agerius Numerio Negidium fundum Cornelianum, quo de agitur, vendidit, quidquid paret ob eam rem Numerium Negidium dare facere oportere ex bona fi de eius iudex Numerium Negidium Aulo Agerio condemnato; si non paret, absolvito”: Puesto que Aulo Agerio vendió a Numerio Negidio un fundo Corneliano, que es el asunto de que se trata (hecho), todo cuanto aparece que por esta causa Numerio Negidio deba dar o hacer (determinación) conforme a la buena fé (estimación) , condena a Numerio Negidio a darlo y hacerlo a favor de Aulo Agerio; si no aparece, absuelvelo. Aquí tenemos un acto jurídico (hecho), una valoración ( la buena fé) y un arbitrio para determinar la naturaleza y entidad de las prestaciones ( qué y cuánto deba dar o hacer).

Como puede apreciarse a través de esta breve relación, la función del juez no se reducía a recibir y apreciar la prueba de los hechos, sino que debía justifi car o no cuestiones de derecho, emitir juicios de valor, calibrar prudencialmente penas, etc. Un examen más detenido de las distintas fórmulas, que no cabe en esta oportunidad, sin duda ampliaría mucho más el margen de posibilidades del juez y del alcance de la expresión “si paret”.

Se traduce generalmente la expresión de marras por “si aparece”; también podría ser “si resulta”, “si se justifi ca”, “si se acredita”, “si se prueba”. El verbo impersonal “oportere”, de uso frecuente en las fórmulas, puede signifi car conviene, corresponde, es razonable, es oportuno, etc. Pero, que signifi cación podemos atribuir al “si paret”? Qué es lo que debe aparecer, resultar, acreditarse en la sentencia, si no es “lo que le parece” subjetivamente al juez. Arriesgaríamos que no es “lo que le parece” sino “lo que se le aparece” al “iudex”, es decir, el “ius”, develado, objetivo, el “objeto procesal” que está “positum in causa”, y en el que “convergen” los elementos integrantes de la “res litigiosa” porque ha sido desentrañado como la cosa justa.

A esta solución no se ha llegado de cualquier manera sino a través de las reglas del proceso que es obra intersubjetiva en la que cada parte ha desempeñado sus pretensiones discursivas. El “ius” sentenciado es la mejor solución de justicia hallada en la causa, quizá tenga antecedentes en causas anteriores o servirá como precedente en el futuro y queda como un mojón en el camino de la justicia, pero no necesariamente será la solución defi nitiva en asuntos similares. Siempre será perfectible y susceptible mejor solución. Pero no es sólo “correcta” sino “ justa”. Y no lo es por la mera observancia de las reglas ni por arbitrio subjetivo del “iudex”; lo es porque se ha logrado una “convergencia”, una “confl uencia” de los elementos obrantes en la causa, una “adequatio” entre los resolución y los fundamentos (rei et intellectu) que llevan a un “con-vencimiento” pleno, a un “consenso” válido y realmente alcanzado sobre el derecho en el caso.

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El “ius”, según el Digesto, proviene de “iustitiae”, que es la “constans et perpetua voluntas suum ius cuique tribuere” y toda la organización de las instituciones y los procedimientos judiciales estaban encaminadas a encontrar y dar ese “ius” que a cada uno corresponde. El “ius”, así como no era la ley, tampoco su determinación era un acto voluntarista del juzgador. El ius, ínsito en la causa, tenía entidad como estructura inteligible latente que habría de aparecer, hacerse patente con tal evidencia que “con-venciere” produciendo una “convergencia” unifi cante. Y, como anticipándose a Javoleno, Cicerón había escrito que: “Aun a las cosas más extraordinarias da la naturaleza pequeños principios. Estos no han de sacarse de afuera sino de las entrañas mismas de la causa.

El juez actúa siempre ante casos litigiosos, es decir, situaciones que suponen una relación de confl icto intersubjetivo sobre personas, cosas y acciones. “Era misión propia de los jueces decir lo que era de cada uno: basta pensar en los términos de la fórmula de reivindicación. La tarea del juez se encontraba defi nida así: buscar si tal o cual bien, tal o cual esclavo, o tal campo es de tal litigante: si paret rem de qua agitur Aulii Agerii esse”, dice certeramente M.Villey. En esa función, el juez es el instrumento por el que se materializa el “ius civile”, cuyo fi n esencial, al decir, de Cicerón es conservar la legítima y observada proporcionalidad en las cosas y las causas de los ciudadanos :“ Sit ergo in jure civili fi nis hic: legitimae atque usitatae in rebus causisque civium aequibilitatem conservatio.

La proporcionalidad, la equidad del reparto, no es el resultado de la mera observancia de las reglas del proceso, no es una decisión “discrecional” o arbitraria del juzgador. Tiene una entidad objetiva de modo tal que de ella resulta el “ius”, no de la regla que se aplica: “Ius non a regula sumatur sed a iure, quod est, regula fi at”.

En Dig.(21) se lee: “Verbum “oportere” non ad facultatem iudicis pertinet, qui potest vel pluris, vel minoris condemnare, sed ad veritatem refertur”. La palabra “conviene” no corresponde a la facultad del juez, que puede condenar en más o en menos, sino que se refi ere a la verdad.- Análogamente podría decirse que la expresión “si paret” no corresponde a la subjetividad mental o emocional del juez sino a la realidad de lo que aparece objetivamente a través de lo probado. En términos gnoseológicos, “adequatio rei et intellectu”.

En otra pasaje (22): “Condemnatum” accipere debemus eum, qui rite condemnatus est, ut sententiam valeat; ceterum, si aliqua ratione sententia nullis momentum sit, dicendum est, condemnationis verbum non tenere. Debemos entender que fué “condenado” el que fue condenado con arreglo a derecho, de modo que sea válida la sentencia; pero, por si por alguna razón fuere de ningún valor la sentencia, se ha de decir, que no tiene efi cacia la palabra condenación. Es decir, la condena aun ajustada al rito procesal ( formalmente válida, i.d. “correcta”) no es sufi ciente si por otra razón ( vgr. no ser justa, no convenir a la realidad, etc) no puede considerarse un verdadero acto de justicia.

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Tanto es así que si un juez hubiere juzgado falsamente (depravada, mala, inopinada, inadvertidamente) no podía juzgar otra vez el mismo día. Sin duda, se juzga así cuando no se halla la “ipsa res iusta” a que se está funcional y como eidéticamente obligado.

Por las dudas , se aclara: “Nominis” apellatione rem signifi care ait. Con la designación nombre se signifi ca una cosa. Si las palabras son signos signifi cantes de cosas, la expresión “si paret” no puede signifi car sino la cosa justa que aparece en la etapa “in iudicio” y se expresa en la sentencia.

La solución del pleito pasa por la bisagra del “si paret”, lo que hace necesario la apreciación de los hechos y demás elementos del mismo, pero quizá se pueda arriesgar que todo ello no se agota en la condicionalidad el “si paret” (si aparece, si resulta) y toda la estructura funcional del proceso, de la primera a la segunda etapa, lleva implícita un “ut pareat”, una valoración de la prueba y componentes de la causa “para que aparezca” la cosa justa.

La actuación del pretor, de los prudentes, de las partes y sus asesores y fi nalmente la del juez han de llegar en un resultado, pero no a cualquier resultado, sino un resultado concertante en la “ipsidad” de una “res iusta”. Citando a Heidegger y Kasser, dice estupendamente Di Pietro: “...en la “res litigiosa”, las partes, los prudentes, el pretor, el iudex, todos ellos están “concernidos” en torno del anillo de la “res litigiosa”. De similar manera podríamos decir que en la sentencia todos están “convergidos” en la “res iusta” que ha sido fatigosamente hallada en el proceso para asignarla con constante y perpetua voluntad a quien corresponde.

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En términos modernos, el proceso civil romano habría sido un medio de resolución “discursiva” de los confl ictos, es decir, mediante confrontación de argumentos bajo ciertas reglas preceptivas de los discursos. Los prudentes tenían sus discusiones, sus “disputationes”, sus controversias, sus diversas escuelas, etc, de las que dan cuenta la literatura existente. Las partes en el proceso tenían posiciones encontradas que confrontaban argumentativamente según un orden ritual establecido, el pretor en la fórmula defi nía el litigio en cuanto a las pretensiones de las partes, el núcleo del asunto a tratar y la regla aplicable; el juez resolvía en el marco de la fórmula. Todo estaba ordenado minuciosamente a determinar en cada situación qué correspondía a cada uno, cual era la “cosa justa” objeto de la condena o absolución.

El proceso tendía asimismo a lograr un consenso. Aunque eventualmente no estuvieren conformes con el resultado del pleito, al menos estaba necesariamente presupuesto que el proceso era la vía apropiada para resolver el confl icto y, por ende, la solución debía ser aceptada o cargar con las consecuencias de la no aceptación. Aquel “manus conserere” ante el Pontífi ce simbolizaba ejemplarmente la renuncia a la violencia en la resolución de los confl ictos.

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Al proceso precede un suceso real y una relación jurídica que, en el proceso, se convierte en “causa”, “cosa litigiosa”. Aparece el tema u objeto procesal perseguido, impreciso y controversial que se irá perfi lando y adquiriendo sus contornos defi nitorios en todo el trayecto del proceso hasta desembocar en la solución justa. El objeto o tema procesal “in limine” está como latente, insinuado; se irá corporizando en el proceso hasta lograr su forma defi nitiva al concluirse el litigio. Y así como el objeto procesal ha de irse conformando, en cierta forma “construyendo” en el proceso, la solución investigada ( vestigium ) ha de ser desentrañada en el proceso hasta converger en la “ipsa res iusta”, como el fi n que corona la obra de la justicia (“fi nis coronat opus, opus coronat fi nem”).

Aquello en que se converge a través del proceso argumentativo es lo que, “se impone” a los participantes por su fuerza de convicción, por su patencia y potencia inteligible y su resistencia a todo el repertorio de razones opuestas.

Pero, ni el objeto procesal ni las soluciones casuísticas son defi nitivas, universales o fi nales. Son conocimientos convergentes intersubjetivos como “cosa justa” en el caso dado y cuya “regula iuris” puede servir para otros casos similares o análogos, pero siempre queda en espectativa la posibilidad de que en un nuevo proceso, con nuevas indagaciones, nuevas intuiciones, nuevos descubrimientos, nuevos medios, el objeto se construya y la cosa justa “aparezca” como otros matices, perspectivas, alcances.

El derecho, como dijera Santo Tomás, es la “actio iustitiae” y, perteneciendo el obrar humano al orden de lo particular, tiene la intrínseca posibilidad de ser de otra manera, según advierte Aristóteles , que también en su Etica Nicomaquea nos dice;

lo bueno y lo justo, de cuya consideración se ocupa la ciencia política, ofrecen tanta diversidad y tanta incertidumbre que ha llegado a pensarse que sólo existen por convención y no por naturaleza....En esta materia, por tanto y partiendo de tales premisas, hemos de contentarnos con mostrar en nuestro discurso la verdad en general y aun con cierta tosquedad. Disertando sobre lo que acontece en la mayoría de los casos y sirviéndonos de tales hechos como premisas, conformémenos con llegar a consideraciones del mismo género.

Lo que postula el Estagirita es un cierto tipo de acción que permanece sobre la variedad y contingencialidad; en otra palabras, que el accionar humano varía dentro de un cierto marco (tipo) estable. Y todo lo existente tiene una causa fi nal un “telos” al que tiende, está como animado por una “kínesis” o movimiento hacia su perfección. De allí que el acto de la justicia sea siempre perfectible.

Horacio preceptuó que hay un “modo”, una posibilidad de discrecionalidad en el manejo de las cosas, pero fi nalmente hay ciertos límites fuera de los cuales no puede tener consistencia nada recto”.- “Est modus in rebus: sunt certi denique fi nes quos ulta citraque nequit consistere rectum”.

Todo el proceso se compone de una confrontación argumentativa de posiciones y pretensiones a dirimir con ajuste a reglas (principio de argumentación discursiva) que han de conducir y concluir en una meta compartida (principio de consenso), que no

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es necesariamente consecuencia de haberse observado las reglas ni puede consistir en cualquier contenido legitimable por la sola observancia de las mismas ( justicia puramente procesal). Se trata de un punto fi nal concurrente, no en una mera decisión sino en una “cosa justa” ( justicia convergente), que puede estar dotada de todas las posibilidades de ser distinta que tiene la acción humana, pero siempre dentro de cierta medida, cierta “ratio” que se impone como marco de una convergencia intersubjetivamente alcanzada en el caso, sin por ello clausurar la posibilidad de perfeccionamiento propia de todo acto humano (principio de falibilidad).

La estricta observancia de las formas en la primera etapa confi gura inexcusablemente el “ius persequendi”; que en el ejercicio de este derecho persecutorio se alcance el “ius” como “ipsa res iusta” en la segunda etapa, ya entra en el ámbito de la falibilidad humana por el elemental principio “errare humanum est”. De ello despuntan dos signifi caciones: 1) En tanto la etapa “in iure” de las “acciones de la ley” pueden conformar una muestra de “justicia puramente procesal”, la segunda (in iudicio) lo es de una “justicia procesal imperfecta”. 2) Sin embargo, lo puramente procesal, lo estrictamente formal, lo “correcto”, no tendría sentido alguno si no lo fuere en función de una decisión jurisdiccional “justa”, aunque siempre susceptible de error. En suma: la forma, aun la más perfecta, está al servicio de la justicia, aun imperfecta. Lo “axiológico” (justo) tiene para el romano prioridad sobre lo “dentológico” (correcto) pero uno y otro plano, como la materia y la forma, han de complementarse funcionalmente para converger en el verdadero ser del derecho. Y si queremos hallar cuál era el “thema”, el “objeto procesal” de toda actividad jurisdiccional, bien podríamos decir que el derecho romano converge en la portada del Código Hermogeniano: “Omne ius propter hominem constitutm est”: todo el derecho ha sido constituído por causa del hombre.

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Eclipse y Renacimiento de laAdopción en su Devenir Histórico

Luis Rodríguez EnnesProfessor catedrático de Direito Romano na Univer-sidade de Vigo (Espanha)[email protected]

Sumário: I. Introducción. II. Singularidad de la adoptio romana. III. Vicisitudes ulteriores.

Resumen: En mi opinión, una de las más especiales características de la adopción como institución jurídica es su larguísimo eclipse y su singular renacimiento. La extraordinaria importancia, incluso política, que tiene durante toda la historia de Roma, se desvanece con la caída del Imperio y, tras 1.500 años de ostracismo, no vuelve a renacer hasta el siglo pasado. Bastaría con lo ya señalado para justifi car la actualidad del tema, como consecuencia de este panorama general. Pero el interés de la presente investigación se acrecienta cuando este fenómeno del “eclipse” y del “renacimiento” de la adopción se examina en la historia legislativa española.

Palabras clave: Eclipse. Renacimiento. Precedentes históricos. Derecho español.

I

Prima facie, se hace necesario dar pronta respuesta a los siguientes interrogantes: ¿Es la adopción un modo de crear una relación paterno-fi lial? ¿Es, acaso, una institución o relación de carácter patrimonial sucesorio? o ¿Es, quizá, un procedimiento técnico-jurídico, sin contenido específi co propio, pura fórmula que ha servido y puede servir para el cumplimiento de las más variadas fi nalidades familiares, patrimoniales, políticas y religiosas…?

En otras palabras: la adopción es una institución que ha variado, no ya a lo largo de la historia –donde ha sufrido una profunda evolución- sino que, dentro de una misma época las diferencias entre unos y otros países son básicas. Y, aún más, pues sucede que, en un mismo país, se suelen reconocer tipos radicalmente distintos. Y es aquí cuando surge la interrogante. Desde el momento en que unos y otros reciben la misma denominación genérica “adopción”, ¿es lícito pensar que en todas existe un trasfondo común, una esencia y naturaleza unitarias? O, por el contrario, estas diferencias son

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tales que cabría pensar si esta homonimia encubre solamente las consecuencias fi nales de diversos procesos de transformación que únicamente tienen en común un origen aproximadamente unitario.

La respuesta a estos interrogantes exige la previa delimitación de cuál ha sido la fi nalidad perseguida por la institución adoptiva a lo largo de todo su devenir histórico. En este sentido, cierto sector de la civilística ha entendido que el hecho de que la adopción se confi gure en cada época o país de una forma distinta para el logro de lo fi nes concretos que en cada momento se persiguen, viene predeterminado por ser la adopción una creación fi cticia de la Ley. Esta es una posición mayoritaria en la doctrina. Así se expresa, por ejemplo, López Alarcón: “No es la adopción una institución que haya mantenido rasgos uniformes, permanentes y defi nitivos a lo largo de la Historia. Al constituir una fi cción jurídica, su consistencia es muy débil y la ratio essendi de la misma entronca con las necesidades políticas, sociales y éticas del momento evolucionando al compás de las mismas, con radicales alternativas en su existencia hasta llegar a la época moderna, en que la fi cción se anula o reduce (¡o quizá aumenta!) en aras de una función protectora que tiene su fundamento en sentimientos caritativos políticos o de solidaridad humana.”1

Esta misma idea ha sido repetida o, al menos pensada, por casi todos los autores desde Aguilera2 en el Primer Congreso de Jurisconsultos Aragoneses, recogiendo el común sentir de los asistentes – al que se opuso Costa con brillante oratoria3 -, pasando por Comas4, hasta llegar a Pío Cabanillas, quien en su defensa del proyecto de reforma

1 LÓPEZ ALARCÓN, M.: “La adopción y el Registro Civil”, en Pretor (enero-febrero 1965) p. 5.2 El Sr. Aguilera califi có a la adopción de “institución artifi cial, repugnada por la razón natural” [Cfr.

COSTA, J.: La libertad civil y el Congreso de Jurisconsultos Aragoneses, Madrid, 1883,) p. 271]. En otro lugar de este mismo trabajo (cfr. pp. 263-264) recoge Costa la opinión manifestada en el mismo sentido por los Srs. Escosura y Zugarramundi: “La adopción es hija del sentimiento tan natural de la familia: se inventó para conservarla y perpetuarla, para consolar a las personas a quienes la naturaleza negó la dicha de tener hijos, o que habiéndolos tenido los perdieron. Ahora bien, cuando la Naturaleza ha dado satisfacción a ese sentimiento, la adopción no tiene razón de ser y es innecesaria (…) Su introducción en las sociedades modernas ha sido fruto de la fi lantropía, que es la caridad de los banqueros y de las damas del gran mundo, una falsifi cación y como remedo grotesco de la verdadera caridad. En el fondo es una transacción con el vicio disfrazado con máscara de virtud”.

3 “¡Ah! –exclamaba el gran polígrafo aragonés- si la adopción es una institución artifi cial, el Derecho todo es artifi cio, un artifi cio el matrimonio, un artifi cio la tutela, un artifi cio el seguro mutuo, un artifi cio la sociedad cooperativa. Benditos artifi cios de cuyo juego ordenado depende la existencia de la humanidad y el progreso de la historia, y sin los cuales el hombre sería víctima y juguete de la naturaleza, y la tierra más que un valle de lágrimas, un verdadero infi erno artifi cial que no ha ideado un gran árbitro soñador, sino que han brotado como un producto espontáneo de las entrañas mismas de la historia y ante las cuales debemos bajar humilde-mente la cabeza. No hay más que una soberanía en la sociedad, la soberanía del pueblo: cuando el soberano declare por sí su voluntad, no les queda a sus representantes más sino acatar sus resoluciones. El pueblo ha in-troducido en sus hechos la adopción, y al legislador no le es lícito prohibirla ni menoscabarla con limitaciones tan absurdas como la de las Partidas (cfr. COSTA, La libertad civil, cit, pp. 271-272).

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de 1970, llegó a decir: “dado que la adopción es una creación jurídica, no debe olvidarse nunca que la fi nalidad de la institución ha variado con las circunstancias históricas…”.

Todas estas afi rmaciones son parcialmente ciertas: en primer lugar y sustancialmente, en cuanto que toda institución lo es “ jurídica” desde el momento en que el Derecho lo recoge y regula, atribuyéndole consecuencias jurídicas. Y en segundo término, en cuanto se quiera expresar así que por la adopción se crea una relación de parentesco, sin un substrato generacional, físico, en la naturaleza. Pero con otro aspecto son inexactas, si con ellas se pretende decir que se crea un parentesco fi cticio, pues el que no se funde en la generación física no quiere decir que no sea real: así la afi nidad, que es una auténtica y real relación jurídica familiar, y no tiene base natural.

En este orden de ideas, creemos que merece ser traída a colación la experiencia histórica romana por lo mucho que puede ayudarnos a encontrar una explicación a tan interesante problema. Ante todo, hay que señalar que la artifi cialidad del vínculo derivado de la adopción es una nota inexistente en el Derecho romano clásico y postclásico, en el que el ingreso en la familia era independiente del hecho biológico de la generación5. Se entraba a formar parte de la familia como se entra a formar parte del Estado, o por haber nacido de un miembro de la familia, o sometiéndose a la patria potestas del pater mediante la adrogatio o la adoptio y perdiendo, de este modo, toda relación o vínculo con la familia a la que se pertenecía antes. El ingreso del adoptado o arrogado en la familia del adoptante o arrogante producía las mismas consecuencias jurídicas que si fuese si hijo legítimo, ya que la pertenencia al núcleo familiar venía determinada, única y exclusivamente, por la sumisión a la patria potestas de una misma persona. Así las cosas, en Roma sería absurdo hablar de artifi cialidad del vínculo adoptivo: tan fi lius familias es el adoptado que ingresó en la familia por un acto voluntario del pater, como el descendiente legítimo de éste6.

4 “No hay que olvidar que la adopción no es una verdad, es una mera fi cción, y si toda fi cción es vituper-able, aún en los asuntos ordinarios de las relaciones humanas, es mucho peor cuanto la fi cción procede del legislador. Y no es una fi cción a la manera que lo es la legitimación por subsiguiente matrimonio, que al fi n en esta se parte de un hecho verdad, y lo que únicamente se fi nge es que el hijo nacido fuera del matrimonio nació después que éste se hubo celebrado; en la adopción se fi nge más, se fi nge que es hijo el que no lo es en realidad, y se subvierten las relaciones de la vida y se da un mentís a la naturaleza. No, no puede hacerse esto; el Derecho no crea personas, ni cosas, ni relaciones (…); por esto entiendo que es profanar la paternidad y la fi liación el otorgar la patria potestad a una institución puramente artifi cial y fi cticia que está fuera de la realidad de la vida, y para la cual es bastante modelar una institución jurídica más en armonía con la verdad y más adecuada a la relación meramente afectiva, de protección y de piedad, a que únicamente la adopción puede dar lugar” [cfr. COMAS, A.: La revisión del Código Civil (Madrid, 1902) pp. 406-407].

5 Sobre la adoptio romana, vid.. RODRÍGUEZ ENNES, L.: Bases jurídico-culturales de la institución adoptiva, Santiago de Compostela, 1978, con abundante bibliografía.

6 A este respecto es claramente explícita la defi nición de familia que formula Ulpiano en D. 50, 16, 1-3: Iure proprio familiam dicimus plures personas quae sunt sub unius potestate.

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La nota de fi cción, de artifi cialidad, va introduciéndose paulatinamente a partir de la época postclásica. Originariamente la familia romana sólo comprendía a los agnati, es decir, las personas que permanecían bajo la potestas del pater. Con la evolución de las instituciones, a la que coadyuvó en gran medida el desplazamiento del centro de gravedad del Imperio hacia las provincias orientales, donde no existe una patria potestad en el genuino sentido romano, se introduce en el Derecho romano la cognatio, que es el parentesco basado en la comunidad de sangre.

Los vínculos cognaticios van sustituyendo progresivamente a los agnaticios hasta el punto de que –en la época justinianea- puede decirse que, tanto de la antigua institución de la patria potestas como de la concepción jurídica de la adopción, sólo sobrevive el nombre. La proclamación con carácter general en las fuentes justinianeas del principio adoptio naturam imitatur, consecuencia lógica del triunfo del parentesco por la sangre, implica la aparición de una nueva adopción radicalmente diferente a la genuina adoptio romana, por cuanto aquella, a diferencia de ésta, ya no está inspirada en la idea de procurar la agregación de nuevos súbditos a la familia, para lo que es irrelevante que existan condiciones tales que puedan hacer parangonable la adopción a la relación de fi liación, sino que se funda en una construcción artifi cial de la descendencia natural; el principio de la imitatio naturae denuncia que la adopción se concibe –al igual que en su moderna regulación como un sustitutivo de la fi liación natural.

Las consecuencias de un giro tan radical en la concepción de la institución son de enorme importancia. La primacía del parentesco por la sangre, el hecho de que la procreación en matrimonio legítimo constituyera el único medio de ingresar en la familia, originó el nacimiento de la tradicional desconfi anza hacia la institución adoptiva. Es a partir de Justiniano cuando la adopción deja de ser una institución natural que forma parte integrante del sistema familiar, para pasar a constituir una fi cción, una institución excepcional. De ahí que se establezcan requisitos que no repugnan directamente a la fi cción, de ahí la máxima adoptio naturam imitatur; de ahí, fi nalmente, la restricción en punto a los efectos y, por ende, el que la equiparación entre los hijos adoptivos y los legítimos no haya pasado de ser un mero desideratum de los legisladores. Con lo que acabamos de exponer, creemos que queda sufi cientemente claro que tan sólo desde Justiniano puede hablarse de la adopción como fi cción de la naturaleza. Pretender predicar esta afi rmación de toda la larga evolución de la institución desde Roma es, cuando menos, distorsionar la evidencia de las fuentes.

Entre la civilística moderna se ha ido abriendo paso –no sin difi cultades- una dirección doctrinal que –siguiendo el camino iniciado tan brillantemente por Joaquín Costa7 - pone en duda la artifi cialidad del vínculo adoptivo. En este contexto, merece

7 Sobre la opinión de Costa, vid., la nt. 3.

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ser reseñada la opinión de Roca Juan8, quien afi rma: “sin embargo, aunque no parece dudoso que, desde un punto de vista biológico, la familia es una entidad extra-jurídica no es menos cierto que –como ya escribía Colin9 - puede establecerse la distinción entre “vínculo de parentesco”, fundado en el vínculo de consanguinidad y “vínculo de familia”, que se funda en un acto de voluntad, y que la característica esencial de la familia está en ser una entidad que aparece como un grupo social organizado por la costumbre o por la ley, de modo más o menos artifi cial, por lo que sus principios pueden variar según las épocas y según las razas (…) De manera que hablar de la “artifi cialidad”10 de la adopción y de la familia adoptiva para contraponerla a la “naturalidad”11 del matrimonio y de la familia legítima, basada en éste, pierde su valor absoluto, porque, desde e punto de vista legal, los dos serían igualmente artifi ciales”12.

Aclarado este punto, creemos estar en disposición de analizar siquiera sucintamente, cuál ha sido la fi nalidad perseguida por la adopción o, mejor dicho, el interés principalmente protegido por el legislador al organizar su regulación en cada época. La adopción ha atravesado por tres grandes etapas a través de los tiempos. La primera, correspondiente a los derechos antiguos, caracterizada por el formalismo y la consideración cuasi-pública de la institución, en la que se concibe a favor y en interés exclusivo del adoptante; una intermedia, en la que pierde el favor de que anteriormente gozaba -al variar los presupuestos socio-políticos- regulándose como acto desprovisto de las antiguas formalidades solemnes e, incluso, en ocasiones, como acto meramente privado y en la que se considera como una institución fi lantrópica, con un sentido marcadamente paternalista, al que responden las codifi caciones decimonónicas; y un período fi nal en el que vuelve a gozar del favor legislador, por imposiciones sociales, quien la somete a rigurosas condiciones o requisitos de fondo y de forma, en interés primordial del hijo adoptivo menor.

8 S ROCA JUAN, JUAN: Sobre la nueva adopción. Discurso inaugural del curso 1971-72, La Laguna, 1971, p. 29.

9 COLIN, A., “De la protection de la descendance illégitime au point de vue de la preuve de la fi liation”, en RTDC (1902) p. 206: “Lo que produce la familia es un acto de voluntad: el matrimonio, la adopción, el reconocimiento”.

10 En bastardilla en el original.11 Ibid.12 El mismo autor añade en su impecable argumentación: “Si el parentesco se funda en la comunidad

de sangre que origina un vínculo entre personas que descienden unas de otras, o de un tronco común, signifi cando el título o “porqué” se está en una determinada relación familiar no deriva de la generación, sino de un acto solemne de voluntad, que es el matrimonio. Análogamente pueden verse hoy en la adopción los efectos correpondientes a una situación familiar, creando efectos personales y patrimoniales característicos de la familia, por un acto de voluntad” (cfr. ult. loc. cit.) Sobre el trabajo de Roca Juan, vid. nuestra recensión publicada en el ADC (26) fasc. 1, pp. 331 ss.

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II

La adoptio, en sentido genérico, es la forma jurídica por la que una persona extraña a la familia, distinta de la mujer, es agregado a la misma en calidad de fi lius familias. La adoptio se subdistingue en adoptio o adopción propiamente dicha, y adrogatio, que es la adopción de un jefe de familia o sui iuris, conllevando la agregación de todos sus bienes y de todas las personas a él sometidas. El nombre de la adopción expresa en el Derecho moderno un residuo de las dos mencionadas instituciones, pero no sirve para comprender la institución romana en su época más antigua13.

En efecto, la adoptio romana responde a preocupaciones tan alejadas de las actuales que no nos es posible comprender su verdadera naturaleza si no nos trasladamos a aquel ambiente, a aquel mundo14. No está inspirada en la idea de construir artifi cialmente la relación de fi liación y en el fi n sentimental de suplir la falta de prole natural. La comprensión del régimen de la adoptio romana exige, por el contrario, colocarse en la perspectiva de lo que esa institución signifi ca en la época arcaica, es decir, cuando adoptio y adrogatio, en las relaciones entre grupos familiares que tenían un carácter de organismo político-religioso soberanos signifi caban una concesión de la ciudadanía individual de un grupo soberano a otro grupo soberano, esto es, la concesión de la ciudadanía a toda una comunidad extraña15.

El mismo nombre de adoptio se manifi esta ya lejano de la concepción moderna y coherente con la ahora descrita. Adoptio no alude a la construcción de ninguna relación, aunque sea fi cticia, de fi liación, sino que expresa sólo la agregación de un extraño elegido para acrecentar el grupo familiar, es decir, de un nuevo sujeto de la potestad del pater familias. Adrogatio es también un término que se mueve dentro del mismo orden de ideas.

Por otra parte, la coexistencia de ambas modalidades es difícil de conciliar con la idea de que la adoptio antigua tratara de satisfacer la carencia de hijos naturales. Aquella fi nalidad podía ciertamente colmarse con la asunción de un individuo –como en la adoptio- pero resulta difícil comprender que lo mismo se persiga con la asunción de una familia completa, que puede ser muy numerosa, tanto más cuanto se observa que la adrogatio no es un fenómeno excepcional, sino muy frecuente. La incongruencia desaparece si se admite que la adoptio, en sus dos formas, tenía en la era arcaica el signifi cado que le hemos dato, esto es, el de la agregación de nuevos ciudadanos, puesto

13 S DAZA-RODRÍGUEZ ENNES, Instituciones de Derecho Privado Romano 4, Valencia, 2009, p. 429 ss.14 MAYNZ, C.: Curso de Derecho romano precedido de una introducción que contiene la Historia de la

legislación y de las instituciones políticas de Roma, trad. esp. A. J. Pou y Ordinas, III, Barcelona, 1888, p. 328, nt. 1.

15 BONFANTE, P.: Corso di Diritto romano, I, Diritto di Famiglia, Roma, 1925, p. 19.

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que esta institución servía entonces a los grupos romanos primitivos para los mismos fi nes para los que se la ve funcionar en todas las demás organizaciones primitivas, con distintas denominaciones: reforzar y vigorizar las comunidades con elementos extraños16. Se manifi esta así, aquí, el mismo medio con el que posteriormente la Roma ciudadana procedió para revitalizar sus propias fuerzas sociales, incorporando a la ciudadanía a enteras comunidades y regiones17.

Todo ello determinó la gran importancia que llegó a alcanzar esta institución, hasta el punto de que puede afi rmarse sin ambages que la historia de las familias romanas más ilustres –los Escipiones, los Césares, los Claudios- es una historia de adopciones18: sirven para evitar la extinción de las grandes familias republicanas; en el Principado son utilizadas por los emperadores para designar sucesor19. La división de clases sociales entre patricios y plebeyos, sus protagonismos y luchas por el poder y las vicisitudes por las que pasaron las magistraturas públicas que las representaban, fueron causas muy abonadas para que se considerara la adopción como el instrumento mediante el cual se pasaba de una clase a otra, haciéndose adoptar un patricio por un plebeyo y viceversa, e introduciendo de este modo personas extrañas a la familia natural20. Pero es sobre todo el régimen más antiguo de la institución el que depone a favor del originario valor de la adoptio, ya que esta institución está todavía construida de forma que no se presenta idónea para establecer una relación de fi liación, mientras que sí lo es para verifi car la agregación de una persona o de un grupo a un organismo de naturaleza político-religiosa.

16 Ello explicaría la intervención comicial en la adrogatio que analiza con precisión A. FERNÁNDEZ DE BU-JÁN, Derecho Público Romano. Recepción, Jurisdicción y Arbitraje 11, Madrid, 2009, p. 73 ss.

17 Vid., a este respecto: BRAVO BOSCH, M. J.: El largo camino de los “hispani” hacia la ciudadanía, Madrid, 2009, passim.

18 Cfr. Para las fuentes literarias: Cic., Pro domo sua, 24; Gel., Noctes Atticae 5, 19, 9; Liv., Ab urbe condita 45, 50; Suet.; Claudio 5, 39; Tac., Annales 12, 25. Una recopilación de ejemplos históricos de adopciones puede verse en VOIGT, M., Die Zwölf Tafeln II, Leipzig, 1883-84, p. 309,nt. 14. Vid., también OTERO, A., Sobre la realidad histórica de la adopción, en AHDE XXVIII (1958) p. 1145.

19 Es lugar común a este respecto, la cita del texto de Tácito (Annales, 12, 25) en el que pone de manifi esto como el emperador Claudio adopta a Nerón anteponiéndolo a su propio hijo Germánico. Una referencia a la adopción de Tiberio por Augusto puede verse en Inst., 1, 11, 11. Sobre la adopción imperial vid. PARADISI, B., Designación et Investidure de L’Empereur Romain (Iª e IIª aprés J.C.), París, 1963. Vid., también JAVI-ERRE, J. M., El tema literario de la sucesión, Zurich, 1963 p. 38-64. Sobre sucesión en el Principado, vid d’ORS, A., Introducción al “Panegírico de Trajano” de Plinio el Joven, Madrid, 1955 p. XXXII-XXXIV; LEMOSSE, M.; “L’adoption d’Octave et ses rapports avec les régles traditionelles du Droit civil”, en Studi Albertario, I, Milán, 1953; GESCHE, H., “Hat Caesar den Octavian Zum Magister equitum designiert? (Ein Bertrag zur Bauerteilung der Adoption Octavians durch Caesar)”, en Historia 22 (1973) p. 468 ss.

20 GIRARD, P. F., Manuel élémentaire de droit Romain 3, París, 1929, p. 186, nt. 4; HORVAT, M., “Les aspects sociaux de l’adrogation et de l’adoption à Rome”, en Studi Grosso 6, Turín, 1970, p. 45 ss.

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Durante siglos estas dos modalidades de la adopción van a seguir su evolución propia, permaneciendo todavía separadas en la época justinianea la denominación y las formas de ambas instituciones, lo que en opinión de Arangio-Ruiz “constituye una de las notas más características del espíritu conservador de la jurisprudencia romana”21. Empero, pese al antedicho conservadurismo jurisprudencial, la intervención del pretor, aquí como en todas las instituciones romanas, va a ser decisiva. El Imperio y, sobre todo el Bajo Imperio, van a acabar de simplifi carlas y de dotarlas de una nueva estructura en consonancia con las necesidades y las concepciones de una sociedad fuertemente evolucionada. Al término de este trabajo plurisecular, las dos instituciones se fundieron en una sola, del mismo modo que permanecen unidas en la moderna concepción de la adopción.

En efecto, fue en la época postclásica cuando adoptio y adrogatio sufren radicales transformaciones22. La infl uencia de las normas de la familia natural junto con el infl ujo de las costumbres helénicas, donde no existe una patria potestad en el genuino sentido romano, contribuyeron en gran medida a dar un nuevo sentido a la institución23. Como acertadamente señala Bonfante: “en la adopción –postclásica- no se considera la adquisición de la patria potestad, que ni siquiera es mencionada, sino el derecho a la asistencia y a la sucesión por parte del hijo adoptivo. Esto constituye el paradigma del pensamiento heleno-cristiano y, precisamente, el punto de vista opuesto al pensamiento de los romanos”24.

La adopción romana se establece en el interés del adoptante y de la familia considerada como grupo, la nueva adopción es en el interés del adoptado y, en consecuencia, le atribuye al adoptante más deberes que derechos hasta el punto que puede decirse que, tanto de la antigua patria potestas como de la concepción jurídica de la adopción, sólo sobrevive el nombre. Esta transformación tan radical de la adopción se debe –como ya apuntábamos- a la infl uencia preponderante del punto de

21 ARANGIO-RUIZ, V., Istituzioni di diritto romano 11, Nápoles, 1952, p. 466.22 WATSON, A., The Law of Persons in Later Roman Repúblic, Oxford, 1967.23 SCHULZ, F., Classical Roman Law, Oxford, 1951, p. 148: “This arcaic and petrifi ed law was drastically

reformed in the postclassical period”. Esta frase no es exagerada en opinion de BIONDI, B., Il diritto romano cristiano, III, Milán, 1954, p. 59.

24 BONFANTE, P., Corso, cit., I, p. 59. Esta nueva concepción de la adopción aparece en documentos greco-egipcios: Pap. Lips. 28 (a. 381 d. C.) Pap. Oxy. 9, 1206 (a. 335 d. C.); cfr. TAVBENGCHAG, R., The Law of Greco-Roman Egypt in the Light of the Papyri 2, Varsovia, 1955, p. 135. Sobre las innova-ciones postclásicas en el Derecho de Familia, ver entre otros: AMELOTTI, M., Per le interpretazione della legislazione privatística di Diocleciano, Milán, 1960, p. 109 ss.; GAUDEMET, Les transforma-tions de la vie familiare au Bas-Empire et l’infl uence du Christianisme”, en Romanitas 4 (1962) p. 58 ss.; VOLTERRA, E., en ED 16 (1967) p. 723 ss.

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vista heleno-cristiano que, en decir de Riccobono “penetra como una llama viva en la legislación justinianea”25. De acuerdo con esta opinión –que podemos considerar tradicional- la doctrina cristiana que había difundido una diversa concepción de la vida, nuevos ideales de paz, de caridad, inspiró al legislador otras motivaciones en la regulación de los intereses y los hechos humanos. Así se explica la tendencia que se advierte en el derecho codifi cado de Justiniano a la consideración del bien y la ventaja de la otra parte, a la protección del débil y de la pietas. En armonía con las ideas anteriormente expuestas, la adopción pasa a asumir una función ético-afectiva en tanto en cuanto se concibe como un acto destinado a proporcionar consuelo a los matrimonios sin hijos26. Esta concepción está en consonancia con las nuevas corrientes cristianas difundidas por los Santos Padres27.

Algunos autores como Ferrini28, Mitteis29 y Arangio-Ruiz30, señalan la infl uencia preponderante del derecho helénico en la radical transformación de esta institución. Otros, por el contrario, como Albertario31, Biondi32 y Bonfante33, entienden que la consagración a nivel legislativo de la nueva concepción ética de la adopción, se debe ala interpretación de ambos elementos: el derecho griego difícilmente habría podido determinar una transformación tan profunda sin el apoyo de las nuevas

25 RICCOBONO, S., “Cristinaesimo e diritto privato”, en RDC (1911) p. 36. En la segunda mitad del siglo XIX era lugar común entre los romanistas la opinión de que el cristianismo ejercitó su benéfi ca infl uencia en la sociedad medieval, no en la romana: en el Derecho romano no se encontraba el infl ujo cristiano salvo en las piae causae y en la relación contra el divorcio. La única voz disidente procede de un cultivador del Derecho civil, TROPLONG, R. T., quien en 1843 publicó en París una obra titulada L’infl uence du Chris-tianisme sur le droit civil del Romains en la que se pone de manifi esto el infl ujo de la doctrina cristiana, al menos en punto al derecho de la persona y de la familia. Este libro fue duramente criticado por la Escuela Histórica porque adolecía de un defecto fundamental: presuponer que los principios esenciales de la religión cristiana estaban difundidos en un estado latente en todas las clases sociales romanas al tiempo de los grandes jurisconsultos, a los cuales, por tanto, se atribuían lenguaje y sentimientos perfectamente cristianos [Cfr. PADELLETTI, G., en AG, XII (1918) p. 191] dice del trabajo de TROPLONG, R. T., que “está escrito con una increíble ligereza y con inconcebible ignorancia del tema”.

26 D’ORS, A., Derecho Privado Romano 3, Pamplona, 1973, p. 247.27 S. AGUSTÍN, en Johan. Evang. Tract., 2, 1, 3=P.L., 35, 1394 dice: Multi homines cum fi lios non

habuerint peracta aetate adoptant sibi, et voluntate faciunt quod natura non potuerant y el Sermo, 61, 16=P. L., 38, 348: Nam et qui adoptant fi lios; Cassius eos corde gignunt quos carne non possunt. Un amplio estudio de la infl uencia de la patrística en la concepción postclásica de la institución adoptiva puede verse en BIONDI, B.; Il Diritto Romano Cristiano, cit., III, p. 61-64.

28 FERRINI, C.; Manuale di Pandette 4, revisado por Grosso, Milán, 1953, p. 887.29 MITTEIS, L., Reichtsrecht und Volksrecht in den ostlichen Provinzen des römischen kaissenreich,

Leipzig, 1891, p. 214, 229 ss.30 ARANGIO-RUIZ, V., Istituzioni, cit., p. 470.31 ALBERTARIO, E., “La donna adoptante”, en AG 28 (1934) p. 13 ss.32 BIONDI, B., Il Diritto romano Cristiano, cit., III, p. 60.33 BONFANTE, P., Corso, I, Diritto di Famiglia, cit., p. 26.

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corrientes religiosas; por otra parte, el infl ujo cristiano habría resultado inoperante de no existir estas nuevas exigencias de carácter ético. En nuestra opinión entendemos –siguiendo a Volterra34, que para una investigación acerca de la infl uencia del cristianismo en el Derecho de Familia, es difícil encontrar bases seguras de apoyo en las fuentes jurídicas, habida cuenta de que continúan proclamando principios e instituciones clásicas. Otro gran inconveniente lo constituye la legislación fl uctuante del Bajo Imperio sometida a variadísimas infl uencias. Estamos en presencia de una época que bien podríamos califi car de tormentosa para el Derecho romano y, especialmente, para el Derecho de Familia; cada emperador que accede al poder está infl amado de un espíritu de reforma que le arrastra a la destrucción de la obra legislativa de su predecesor. Las transformaciones operadas por el cristianismo se encuentran ocultas en gran medida, incluso en la etapa de Justiniano que conserva en el Código y en el Digesto algunos principios e instituciones ya periclitados. El infl ujo cristiano aparece con más celeridad en el Derecho bizantino.

Hemos visto como en la oscura etapa postclásica la antigua adopción comienza a ser minada en su forma y sustancia por las instituciones provinciales. La progresiva helenización del Imperio, el desplazamiento de su centro de gravedad a Bizancio y la consolidación del cristianismo van a ocasionar la desaparición de los caracteres originarios de esta institución jurídica35. El golpe defi nitivo lo dará Justiniano fi jando y desenvolviendo, sobre la base de las escuchas, el principio de que la adopción imita a la naturaleza, cancelando todos los efectos de la adopción propia y verdadera e insertándola plenamente en los nuevos fi nes éticos asignados a la familia.

El ius novum viene, simplemente a consagrar el cambio que ya se había producido en las relaciones familiares. El parentesco agnaticio fue rechazado y hubo de ceder el puesto al parentesco cognaticio, es decir, por vínculos de sangre. La familia, en lugar de estar fundada sobre la potestad del pater y agrupar en torno a él a quienes estaba ligados por la agnación, presentará a partir de la Novela 18 (año 453) los mismos caracteres que la familia actual. A través de la nueva reglamentación de la adopción Justiniano trata de consolidar el triunfo del parentesco por la sangre36.

34 VOLTERRA, E., Istituzioni di diritto privato romano, Roma, 1961, p. 14 ss. Hay traducción española por J. Daza Martínez, Madrid, 1986.

35 Sobre las infl uencias oriental y cristiana del bizantinismo, vid.: DIEHL, E., Justinien et la civilisation byzantine au VIº siecle, París, 1901; COLLINET, P., Etudes historiques sur le droit de Justinien: le caráctere oriental de l’oeuvre legislative de Justinien, París, 1912; DE FRANCISCI, P., “Premesse storiche alla critica del Digesto”, en Conferencie IV Cent. Pandertte, París, 1931, p. 1 ss.; VOLTERRA, E., Diritto romano e diritti orientali, Bolonia, 1937; D’ORS, A., “La actividad legislativa del emperador Justiniano”, en Orientalia christiane periodica, 13, Roma, 1947, p. 119-142; BIONDI, B., Diritto Ro-mano Cristiano, cit., III, p. 100 ss.; ID., “Giustiniano”, en IVRA 16 (1965) p. 1 ss.; DE MALAFOSSE, Jl, “La loi et la coutume a Byzance”, en Travaux et recherches de l’Institute de Droit Comparé de l’Université de París, 23 (1962) p. 59 ss.; BONINI, R., Richerche de diritto giustinianeo, Milán, 1968; ARCHI, J. G., Giustiniano legislatore, Bolonia, 1970; GUARINO, A., “Giustiniano nel suo tempo”, en Labeo 16 (1970) p. 379 ss.; AMELOTTI, M., Giustiniano tra teologia e diritto, Roma, 1976.

36 DAZA-RODRÍGUEZ ENNES, Instituciones, cit., p. 433 ss.

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III

La adopción es una institución cuyo efecto inmediato es crear entre personas una relación jurídica de paternidad y fi liación puramente civil, porque no se asienta en el hecho biológico de la generación. Tal es su esencia que, aún siendo la misma desde que aparece, hace, sin embargo, de la adopción una de esas instituciones que presentan un largísimo “eclipse” y un singular “renacimiento”. Con la característica de que –por lo general- las instituciones cíclicas satisfacen una sola necesidad social, mientras que la adopción reaparece y sale de su eclipse siendo infi el a sí misma, a su inicial razón de ser37.

Perdida la especial signifi cación política y religiosa que tuvo en la antigüedad, el vínculo jurídico en que quedó eran tan débil y presentaba tantas difi cultades prácticas, que hasta tiempos muy recientes sugería la idea de que la institución de la adopción se encontraba como en el desván del viejo edifi cio de los Códigos donde se guardan viejas instituciones venerables, sin una vida social intensa y arraigada. En este sentido, los códigos del siglo XIX no la acogen, en general, más que con difi cultad y como a disgusto38.

Al iniciarse el movimiento codifi cador, la adopción aparecía regulada en el Codex Fredericianus de 1751, y en Francia en un Decreto de la Convención de 18 de enero de 1792, el que por primera vez mandaba que el Comité de Legislación comprendiera en su plan general de leyes civiles las relativas a la adopción. Sin embargo, no se incluyó en el primer proyecto del Código de Napoleón, y en el Consejo de Estado una parte considerable de sus miembros repudió la institución de manera absoluta. Demolombe recoge la argumentación empleada: que les parecía una institución “inútil”, porque las leyes ofrecen a la benefi cencia otros medios de ser ejercitada; “peligrosa”, porque alentaba las vanidades del régimen nobiliario y favorecía el celibato y la corrupción de costumbres; “inmoral”, por último, porque colocaba a un niño entre la fortuna y el abandono de sus padres39. De todas maneras, aún entre aquellos que la proponían como institución civil, se discutía sobre el carácter y los efectos que debería tener40. Ahora

37 LÉAUTÉ, J.: Les éclipses et les renaissances d’institutiones en Droit civil français, París, 1949, pp. 49-50.38 ANCEL, M.: L’adoption dans les legislations modernes, París, 1958, p. 5.39 DEMOLOMBE, J. CH.: Traité de l’adoption et de la tutelle ofíciense. De la puissance paternelle, París,

1886, p. 4.40 El criterio triunfante fue el del Consejero de Estado M. Berlier, quien en su defensa del proyecto de ley rela-

tiva a la adopción y tutela ofi ciosa, declaró: he indicado ya que supuesto que la adopción no produce ningún cambio de familia, el adoptante no será más que un protector legal que no gozará –ni aún por fi cción- de los derechos de la paternidad completa, a pesar de que le corresponden algunos de ellos: esa institución será, si cabe expresamente en tales términos, una cuasi paternidad fundada en el benefi cio de una parte y en el reconocimiento de otra” (cfr. Código de Napoleón. Con las discusiones, I, Barcelona, 1839, pp. 375-376).

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bien, aparte de la intervención personal de Napoleón41, cuyo toque se ve en aquellas regulaciones que detallan la posición de los soldados, los derechos de los extranjeros y con relación a la posición de la mujer, a la adopción y al divorcio de mutuo acuerdo42, el principal motivo que infl uyó en los redactores del Código de 1804 para incluir esta institución se deduce del dictamen de la Cour de Cassation sobre la coveniencia de implantar la adopción “Hay peligro en la introducción de ciertas leyes, que no están en armonía con las costumbres, cuando se imponen imperativamente; pero aquellas otras de simple facultad, leyes permisivas, que conceden un derecho, no hay peligro de ningún género en su reconocimiento y admisión43.

Parece que la enérgica intervención del Primer Cónsul puso en vigor la adopción, y que su opinión consistía en que la adopción debía imitar perfectamente a la naturaleza y producir un cambio completo de familia. El padre adoptivo debería ser preferido al natural, “no sólo a los ojos de la ley, sino en el corazón del niño adoptado”, y se ponen también en boca de Bonaparte las siguientes palabras: “Los hombres no tienen más que los sentimientos que se les inculcan, y si la adopción acoge al niño todavía pequeño y se pronuncia solemnemente, de manera que impresione la imaginación, o sea, por el poder legislativo, la paternidad fi cticia reemplazará por completo a la paternidad natural”44. Estamos, pues, en presencia de dos concepciones antitéticas: una –la de Napoleón- amplia, abierta, visión anticipada de la adopción moderna, demasiado avanzada en su tiempo; y otra –la de la Cour de Cassation y la del Consejero de Estado M. Berlier- restringida y llena de hostilidad hacia la institución adoptiva.

42 C Según THIBADEAU (Ibid.), Napoleón se preparó para los debates y sus discursos se prepararon con la ayuda de Tronchet, entre otros. Su papel como jurista en las discusiones técnicas fue secundario. Pero, por el contrario, en los debates sobre principios generales, sus opiniones eran contundentes. Asistió alrededor de 57 de las 106 sesiones de discusión del Code, mostrando un gran interés en aquello que re-percutía en derechos civiles, matrimonio, divorcio y adopción. Su punto de vista autoritario en reacción a los “excesos revolucionarios” se pone de manifi esto en su voluntad de establecer un orden familiar, fundado sobre una magistratura moderna. Manteniendo las conquistas de la Revolución –abandono de privilegios, supresión del régimen feudal- el Código Civil se funda sobre un poder paterno marital y fuerte, la afi rmación de la propiedad privada y el reconocimiento de una libertad contractual que no excluye el control del Estado.

43 Este fue el principal motivo que infl uyó en los redactores de los Códigos civiles decimonónicos para incluir esta institución en los mismos, ya que como dice Berlier en su discurso sobre la adopción, el bien necesita ser, las más de las veces, indicado para ser cumplido (loc. cit. en nt. 40). Tal dirección de pura tolerancia fue seguida por el Code francés de 1804, italiano de 1865, rumano de 1864, uruguayo de 1868, colombiano de 1867 y más tarde el Código suizo de 1907, que regulan la adopción sujetándola la mayoría de ellos a tal cúmulo de requisitos que la hicieron impracticable.

44 DEMOLOMBE, J. CH.: Traité de l’adoption, cit, p. 376.

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Las interpretaciones de la postura avanzada, defendida por Bonaparte son diversas45. Supone Ancel que la concepción del Primer Cónsul se debió a que pensaba en la posibilidad de procurarse un sucesor adoptivo, y quería una perfecta imitación a la naturaleza que reposara en una especie de sacramento civil46. “La adopción –decía Napoleón- no es ni un contrato civil ni un acto judicial ¿Qué es pues? Una imitación por la que la sociedad quiere remedar la naturaleza. Es una especie de nuevo sacramento, pues no encuentro en nuestro idioma palabra alguna que pueda defi nir bien este acto. El hijo de los huesos y la sangre pasa por voluntad de la sociedad a los huesos y la sangre de otro. Es el acto más grande que uno puede imaginarse”. Y concluye: “il donne des sentiments de fi ls á celui qui ne les abatí pas et réciproquement, de pére”47. Acaso por la infl uencia de la autoridad del Primer Cónsul estas ideas fueron recogidas en las primeras redacciones del Proyecto. Demolombe cita el siguiente texto de una de ellas: “El hijo adoptivo sale de su familia y pertenece a la familia del adoptante, en todos sus grados, directos y colaterales”48. Pero esta auténtica fi cción jurídica de carácter irrevocable, que llevaba consigo una ruptura total de los lazos que ligaban el adoptado con su familia de origen, no pudo franquear los obstáculos que se le interponían49. Tampoco prevaleció la idea de los viejos juristas -Maleville, Tronchet- de crear una adopción política a favor de ciudadanos distinguidos por servicios prestados al Estado50. La consecuencia de todo ello fue que la adopción sólo se admitió como un modo de consuelo y de benefi cencia pero con las garantías necesarias –y esto es clave en la regulación de la institución- para que no pudiera servir a culpables intenciones; garantías no siempre efi caces sin embargo, a juicio de los exegetas, para evitar que siguiera siendo un medio para eludir las prohibiciones de la Ley51.

45 C Cfr. VELIOUNSKY, R.: La legitimation adoptive, París, 1952, pp. 31 ss.46 ANCEL, M.: La fonction social de l’adoption, París, 1954, p. 333, quien añade: “trataba de encontrar la

respuesta al problema de su falta de descendencia… soñaba con adoptar a Eugéne de Beauhernais”.47 FENET, H.: Travailles préparatoires du Code civil, T. X., París, 1803, p. 420.48 DEMOLOMBE, J. CH.: Traité de l’adoption, cit., p. 5.49 “Se juzgó inmoral esta abdicación de los sentimientos naturales así como su sustitución por afectos

fundados en una fi cción jurídica” (cfr. ROUAST, A.: “L’oeuvre civiliste de Georges Ripert”, en Revue Trimestrielle de Droit Civil, 57, París, 1959, p. 1 ss.

50 Discusión del Consejo de Estado, sesión de 6 de frumario del año X (MALEVILLE, J.: Analyse raison-née de la discussion du Code Civil au Conseil d’Etat, 2ª ed., T. I., Paris, 1807 p. 251.

51 HUC, F.: Commentaire théorique et practique au Code Civil, T. III, París, 1892, p. 127 afi rma que “los redactores del Código habían consagrado un sistema equívoco, que en realidad no es más que una institución de heredero y cuya utilidad práctica es permitir a un padre natural el dar a sus hijos los dere-chos de un hijo legítimo”. MOURLON, H.: Repetitions écrites sur le Code Civil, T. I., París, 1877, p. 508 concreta qué peligros presenta y cómo la Ley trata de evitarlos.

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Y las garantías fueron rigurosas. la limitación de edad a cincuenta años para el adoptante (art. 343); la necesidad de que fuera el adoptado mayor de edad (art. 346); el carácter esencialmente contractual del acto de adopción, la prohibición de adoptar por quien tuviera hijos legítimos (art. 343); dejaban a la adopción prácticamente reducida al nivel de un pacto sucesorio. Esta normativa tan rigurosa constituye, a nuestro juicio, la expresión cabal del temor de que la adopción fuera utilizada para mejorar la situación de los hijos extramatrimoniales, pretendiendo así defender a la familia legítima de toda posible perturbación de su estabilidad y tranquilidad: para ello se procuró que la adopción no asumiera las características de una verdadera estructura familiar. Un prejuicio condicionante de toda la normativa de la adopción en la etapa codifi cadora52.

En España tuvo un refl ejo más débil ese prejuicio, pero lo tuvo a la hora de la Codifi cación a juzgar por el informe emitido por la Facultad de Derecho de la Universidad de Salamanca, al acudir a la información pública suscitada a propósito del Proyecto del Código civil de 1851, en cumplimiento de la R. O. de 12 de junio del mismo año, manifestando: “Es cuestionable si debieran o no abolirse las adopciones. La opinión no las favorece, la Comisión las respeta por una justa consideración a los autores del Proyecto”53. El criterio de que la adopción debía mantenerse como un medio de ejercitar la benefi cencia privada, que no debía excluirse, pero con escasa realidad práctica, fue una opinión general: García Goyena nos relata que entre los autores del Proyecto de 1851 hubo casi unanimidad para pasar la institución en silencio, pero porque un vocal andaluz hizo presente que en su país había algunos casos, aunque raros, se consintió en dejar el Título de la adopción y “porque al fi n este Título no es imperativo, sino permisivo o facultativo, y una cosa que puede conducir a sentimientos dulces y benéfi cos”54. Benito Gutiérrez, abundaba en el criterio de que “no había por qué abolir lo que sin causar daño puede en un caso ser útil”, ya que la adopción “sería innecesaria o indiferente, pero no podemos conceder que sea inmoral”55. En

52 A este respecto señala ROUAST, A.: “Comentaire de la loi du 19 juin 1923, en Dalloz Précise, 4, 1924, p. 257: “Institución de carácter patrimonial, sin consideración alguna de carácter afectivo, la adopción, sin embargo, sobrevive aunque vegeta. Implantada en nuestro Derecho por voluntad del legislador de la Revolución y después por la del Primer Cónsul, esta institución, que carecía de raíces en nuestro pasado, encuentra numerosos adversarios que tuvieron éxito llegando –sino a suprimirla- al menos a encerrarla en unas reglas tan severas que no tuvo más que raras aplicaciones en el siglo XIX”.

53 MADRUGA MÉNDEZ, J.: “La adopción”, en Anuario de Derecho Civil, 12, 1967, p. 751.54 GARCÍA GOYENA, F.: Concordancias, motivos y comentarios del Código civil español, T. I.; Madrid,

1852, p. 148. Es curioso el paralelismo que se observa entre las palabras del A. del proyecto isabelino y el dictamen de la Cour de Cassation francesa al que ya nos hemos referido. Amplia bibliografía sobre este “Proyecto” en RODRÍGUEZ ENNES, L.: “Florencio García Goyena y la codifi cación iberoameri-cana”, en Anuario de Historia del Derecho Español, T. 79, 2006, pp. 705 ss.

55 GUTIÉRREZ, B.: Códigos o estudios fundamentales del Derecho civil español, T. I., Madrid, 1882, pp. 600-601.

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términos semejantes se expresa Falcón cuando señala: “como remedio de la orfandad y consuelo a las personas que no tienen sucesión, la adopción tendrá siempre de una parte la razón y a la equidad56; y Del Viso que afi rma: “A nosotros nos parece que el autorizar esta institución puede conducir a sentimientos de humanidad y benefi cencia y esta circunstancia nos decide a considerarlo de gran utilidad”57. Y Escriche, en su Diccionario razonado58, se muestra igualmente favorable a la adopción.

Lo que no asoma en los autores citados es el prejuicio contra los posibles abusos de la adopción, en cuanto pudiera signifi car un ataque a la familia legítima y que en nuestro país mantiene en solitario Hernández de la Rúa59. Al contrario, es cierto que García Goyena60 parte de la afi rmación de que “la ley no reconoce por hijos, para los efectos civiles, sino a los legítimos y legitimados por subsiguiente matrimonio…”, y que al comentar el art. 151 del Proyecto isabelino escribe que “por más que se diga y haga repugnará siempre igualar la fi cción o adopción con la realidad o fi liación legítima o natural”. Pero en el “Apéndice número 2” de sus Concordancias, cuando relata la polémica sobre la condición de los hijos naturales, parece anticiparse a una de las funciones que hoy se reconocen a la adopción: “… no merecen consideración alguna –escribe- los que falso coelibatus nomine ni tienen la virtud de castidad conveniente al celibato, ni el valor sufi ciente para arrastrar las cargas y trabajos del matrimonio, y últimamente que, si después de sus fragilidades o extravíos quieren mostrarse padres hacia el fruto de ellos fuera del matrimonio, les queda abierta la puerta de la adopción sin escandalizar dándole publicidad, y sin ocultar al legislador

56 FALCÓN, A.: Exposición doctrinal del Derecho civil español común y foral, 5ª ed., T. I, Barcelona, 1897, p. 314.

57 DEL VISO, J.: Lecciones elementales de Derecho civil, 6ª ed, T. I., Valencia, 1889, p. 169.58 A este propósito señala en la p. 304: “Es una institución muy ventajosa a la sociedad; porque además del

bien que se produce a los que se ven sin descendencia, procura, por otra parte, a las familias de escasa tortura los medios de asegurar una suerte feliz a sus hijos, y excita de este modo entre ellos, la noble emulación de las virtudes que ejercitarán a porfía para merecer la estimación, la confi anza y el interés de la benefi cencia”.

59 Lecciones de Derecho español, T. I, Madrid, 1838, pp. 127-128 en las que apunta: “El consuelo de los que perdieron sus hijos tampoco puede ser, y si lo fuese no es una razón fundada, porque ni el amor paternal se sacia más que con los verdaderos hijos, ni el que los perdió ve en el adoptado más que un recuerdo que le representa a cada momento la triste idea de lo que perdió. Sería, pues, más ventajoso no tolerar tales adopciones, y se evitaría ligar a los hombres con unos lazos que les pueden ser muy pesados, por tener que sufrir las desazones consiguientes a la discordancia de genio y de educación. La experi-encia patentiza con toda evidencia la impertinenecia de la licencia adoptiva, puesto que en medio de la permisión se ven raras solicitudes de esta especie”.

60 GARCÍA GOYENA, F.: Concordancias, cit., p. 152.

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en el arreglo enojoso de sus consecuencias”61. Así se expresaba al autor del Proyecto de 1851, pero de modo explícito también Escriche, quien se mostraba partidario de la adopción de los propios hijos naturales, no siendo “inmoral porque lo mismo ocurre con el reconocimiento”62, idea que guarda proximidad con lo que muchos años más tarde llama Goguey “reconocimiento de complacencia”, que permite, a la inversa, realizar verdaderas adopciones al margen de la ley63.

El prejuicio aparece, en cambio, en la Base 5ª de la Ley de 11 de mayo de 1888, cuando decidió que “el Código regularía la adopción fi jándose las condiciones de edad, consentimiento y prohibiciones que se juzguen bastantes a prevenir los inconvenientes que el abuso de este derecho pudiera traer consigo para la organización natural de la familia”. Consecuencia de ello fue una regulación híbrida y borrosa, mantenida intacta durante sesenta y nueve años, que mereció los juicios más desfavorables. Mucius Scaevola64 compara la adopción a un árbol corpulento y frondoso del que se hubiesen podado ramas hasta dejar sólo el tronco, para expresar que en nuestro Código dicha institución había quedado reducida a la mínima expresión. Resumiendo su juicio crítico sobre la disciplina de la adopción en nuestro Código escribe: “Que la misma, por una parte, busca en las apariencias personales por la diferencia de edad, la imagen de la naturaleza entre el padre y el hijo, por otra, cercena los derechos del adoptado o los somete a un formulismo jurídico”65. Más recientemente Royo Martínez afi rmó en punto a la prístina regulación del Código que la adopción originaba tan sólo “una situación híbrida, mal defi nida y poco justifi cada”66.

Y lo cierto es que el Código llegó a una regulación que, en decir de Castán Tobeñas, estableció unos efectos de modo tal que se nos mostraba como institución establecida en benefi cio del adoptante, más que del hijo adoptivo, y de una fi nalidad muy borrosa, pues ni puede afi rmarse que creara una relación de paternidad y fi liación ni con mucho semejante a la paternidad legítima; ni signifi caba una protección de los menores de edad, ante la posibilidad de adoptar también a los mayores; ni a los huérfanos, porque podían ser adoptados –según el propio Código- los sometidos a la patria potestad de otro67.

Más quien formula –a nuestro juicio- una crítica más constructiva es Augusto Comas. En la concepción de este autor, la adopción no respondía, ya en la época del

61 Ibid., “Apéndice número 2”, p. 487.67 Diccionario razonado de legislación y jurisprudencia, T. I, Madrid, 1874, s. v. “arrogación”, p. 752.68 GOGUEY, A.: Les reconnaissances et légitimations de complaisance, París, 1959, p. 203.69 Código civil comentado y concordado, 5ª ed., Madrid, 1842, p. 630.70 MUCIUS SCAEVOLA, Comentarios al Código civil, 4ª ed., T. III, Madrid, 1903, p. 498.71 ROYO MARTÍNEZ, M.: Derecho de familia, Sevilla, 1949, p. 308.72 CASTÁN TOBEÑAS, J.: Derecho civil español común y foral, T. V, vol. 2, 8ª ed., Madrid, 1966, p. 216.

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Código, a una fi cción, ni a su organización tradicional, porque se habían introducido modifi caciones en la vida de familia y en la patria potestad; porque debía acomodarse a una función protectora, y sólo autorizarse en benefi cio de la infancia, por ser la época más apta para conseguir el favor de la obra de la Ley, cimentándose en verdaderos sentimientos de generosidad y desinterés68. Como veremos enseguida –lo que corrobora cuanto hemos dicho acerca de la opinión de Comas- una más amplia concepción de la familia, la función protectora, el que se establezca precisamente en benefi cio de la infancia, y el fundamento en los sentimientos de generosidad y desinterés, han sido las ideas impulsoras del sorprendente desarrollo de la institución.

El recelo frente a la institución adoptiva también está patente en el Codice civile italiano de 1865. El Ministro de Justicia, Pisanelli, la excluyó del primer proyecto porque –a su juicio- se trataba de una “institución contraria a las costumbres”, “irracional”, ya que alteraba el estado civil de las personas y falseaba la naturaleza, “inmoral”, porque permitía legitimar la prole respecto de la que no se admitía el reconocimiento legal y, fi nalmente, porque “situaba frente a la familia legítima una familia fi cticia provocando, de esta manera, celos, odios y rencores”69. Frente a la posición del Ministro de Justicia se alzaron diversas voces en defensa del mantenimiento de la adopción en el Código proyectado. En este sentido, Vigliani afi rmó en el Senado que se trataba –de una institución “che nutre e aviva i piu nobili sentimenti di generositá e di benefi cenza”; señalando que el peligro de que mediante la adopción pudieran ser reconocidos hijos ilegítimos no naturales, podía obviarse mediante la prohibición de que los padres adoptasen a los hijos fruto de sus relaciones ilícitas70. Manzini, en la discusión de la Cámara de Diputados califi có a la adopción de institución “morale e benefi ca, vincolo di affetto e di gratitudine tra gli individui e tal volta di riavvicinamento tra le diverse classi sociali71. Triunfante el criterio permisivo, la adopción fue incluida en el articulado del Código de 1865, pero a imitación el sistema del Código francés, limitando sus efectos al adoptante y adoptado, que permanecía ligado a su familia de origen. En el mismo sentido se manifi esta el Código rumano de 1864, que acoge a la adopción sometiéndola a condiciones extremadamente restrictivas, inspiradas en el Code Napoleón72.

68 COMAS, A.: La revisión del Código civil, Madrid, 1890, p. 253.69 DEGNI, C.: Il Diritto di famiglia nel nuevo Codice civile Italiano, Padua, 1943, p. 382, nt. 3.70 Ibid., p. 214.71 Ibid., p. 190.72 ANCEL, M.: L’adoption dans les legislations modernes, cit., p. 7.

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Muchos códigos latinos o de inspiración latina de la misma época la excluyen completamente, como el Código de los Países Bajos de 1838, el Código chileno de 185773, el portugués de 1867, el argentino de 1871 y muchos otros códigos hispanoamericanos. Es signifi cativo, a este respecto, destacar que cuando el Código colombiano de 1873, separándose en este punto de su modelo chileno de 1857, consagra un capítulo a la adopción, no lo hace más que por respetar la tradición jurídica española, lo que motivó acerbas críticas por parte de los juristas colombianos de fi nes del siglo pasado, que llegaron a declarar preferible la medida adoptada por el legislador chileno “que se ha separado de una institución desusada”74. Como conclusión para la etapa codifi cadora, podemos señalar con Ancel75, que la adopción es tolerada en la práctica, sin que se estime necesario reconocerla a nivel legislativo, y esto acaece bajo las latitudes y sistemas jurídicos más dispares.

III

Con el advenimiento del siglo XX y, sobre todo, a raíz del estallido de la primera confl agración mundial con su secuela de huérfanos desvalidos y hogares destrozados, se hace urgentísima una transmutación de principios. Como ha dicho Planiol76 -afi rmación que aún cuando referida al Code francés podemos extender a todos los códigos decimonónicos-: “Los defectos del Código, aunque señalados desde hace mucho tiempo, resultaron más patentes después de la guerra de 1914 a 1918. Los huérfanos de la guerra eran numerosos y muchos los hogares en que los padres habían sido muertos por el enemigo, y la adopción pareció a muchos como medio de reparar parcialmente estas desgracias. Pero era necesario que la adopción de los

73 Se han dado varias razones para justifi car esta actitud legislativa; así, se ha dicho que “la adopción…como que contraría la naturaleza y los principios de Derecho civil que reglan la familia y la sucesión no ha sido admitida por el Código” (cfr. CHACÓN, J.: Comentarios y concordancias al Código civil, Santiago de Chile, 1890, p. 235). Otros han explicado esta derogación tácita de la institución señalando que tiene sus fundamentos en razones de orden público, “en la esencia misma de nuestro sistema de leg-islación y… en el respeto debido a las leyes naturales y a las conveniencias de la sociedad” (cfr. VALEN-ZUELA, L.: La adopción ante la ley chilena, Santiago de Chile, 1885, p. 5). Sin embargo, para JARA MIRANDA, J. La legitimación adoptiva, Santiago de Chile, 1968, p. 38, el motivo de la no inclusión de la adopción en el Código chileno fue de índole puramente práctica. Según este autor, en Chile no se encuentran antecedentes de que la adopción -a pesar de estar vigente en el período que va hasta 1857 –hubiera tenido una aplicación amplia. “Frente a esta actitud casi general de repudio –concluye Jara- el legislador chileno juzgó superfl uo, seguramente, establecerla en nuestro Derecho”.

74 CHAMPEAU Y URIBE A.: Tratado de Derecho civil colombiano, T. I., Bogotá, 1899, p. 492.75 L’adoption dans les législations modernes, cit., p. 8.76 PLANIOL-RIPERT, G.: Tratado práctico de Derecho civil francés, trad. esp., T. II, La Habana, 1939, p. 787.

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menores fuera posible y que las condiciones y formalidades se simplifi caran. De ahí nació la nueva legislación de la adopción. En lugar de una adopción de constitución lenta y llena de difi cultades, concebida en benefi cio del adoptante, de interés privado, debería existir una institución simple, práctica y útil en benefi cio del huérfano y de la infancia desvalida, de constitución fácil y carente de rigorismos y formalidades.

En efecto, hoy se asignan a la adopción funciones de interés social muy concreto: aportar una vía de solución al problema de la infancia abandonada, con ventajas para el adoptado sobre las soluciones institucionales de benefi cencia pública que pueden –a lo sumo- prestar al niño atenciones en sus necesidades materiales primarias, mientras que la adopción crea un clima de normalidad, que es social y77 sicológicamente el más seguro. Por otra parte, se ha producido un cambio de mentalidad respecto a la adopción, porque no se ve su fundamento en la idea de “caridad” o “benefi cencia” –que en realidad no es muy compatible con la exigencia de seguridades y poderes sobre el hijo que la adopción confi ere y los adoptantes exigen- sino en la idea de que alguien se siente feliz de acoger y educar a un niño en familia78 y funciones de trascendencia individual, porque como se ha destacado por una socióloga francesa,79 la adopción constituye una respuesta al problema posible de la esterilidad con todas sus derivaciones y conexiones de índole social y sicológica cuando se presentan, cumpliendo también funciones económicas, educativas e incluso, de transmisión del factor cultural.

La adopción, en efecto, responde a una serie de exigencias humanas que pugnan por encontrar su fórmula correspondiente. Por eso los legisladores se han visto obligados bien a aminorar o a dulcifi car las onerosas condiciones con que aparecía regulada en los primeros códigos, o bien a recibirla sin difi cultad en el cuadro de sus instituciones80. A este respecto en el área legislativa el panorama es muy extenso.

77 S En este sentido, vid.: ARCE Y FLOREZ VALDÉS, J. A.: La adopción de expósitos y abandonados, Madrid, 1968, p. 44 en la que señala: “A través de tal instituto jurídico, se logra adecuadamente el objetivo de integración deseado y, con ello, el ambiente natural necesario para potenciar la formación integral del menor. Aún más, la adopción no solamente redime, por decirlo así, al menor directamente benefi ciado con ella, sino que, a la vez, abre un camino ideal a otro niño necesitado de ingreso que puede ocupar la plaza que aquél ha dejado y, aunque normalmente las necesidades exceden a los medios de satisfacerlas, siempre logrará ir archivando la distancia. En todo caso, en ello se tiende a esa meta ideal de plena atención por cuanto el índice de absorción que en el conjunto de Instituciones puede favorecer la adopción es mayor que el que a primera vista cabe pronosticar”.

78 LOJACONO, F.: Spunti critici e prospettive di reforma in tema di adozione, Milano, 1966, pp. 222-223, que añade: “En nuestro caso, la fecundidad espiritual, que corresponde a la naturaleza humana y se concreta en la nueva comunidad de vida surgida de la integración recíproca de los cónyuges, se materializa en el hijo del afecto, cuyo ingreso en la familia adoptiva es debido a un acto consciente en el plano de la autorresponsabilidad”.

79 Sobre el tema véase particularmente el libro de MARIE PIERRE MARMIER, Sociologie de l’adoption. Etude de sociologie juridique, París, 1969, pp. 297 ss.

80 MADRUGA MÉNDEZ, J.: loc. cit. en nt. 53.

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Dejando aparte los primeros pasos que se dieron en su favor hace algún tiempo, como la Ley francesa de 19 de junio de 192381, el reconocimiento de la adopción en el Reino Unido por Adoption of Children Act de 4 de agosto de 1926 y la primera ley noruega de 1917, la proliferación legislativa parece iniciarse –poco más o menos- a partir del año 1948, y aún está en pleno desarrollo.

Desde otro punto de vista, el evidente renacimiento normativo de la institución – hasta avanzado el siglo XX en “eclipse” – planteaba la cuestión de si en parte el auge se debe al cambio de función que a la adopción se asigna hoy en el que está latente una nueva concepción de la familia. Sin embargo, esta política legislativa favorable a la adopción, puede comportar algunos peligros que el legislador trata de frenar; y así, por una especie de efecto refl ejo bastante curioso, las facilidades dadas a la institución determinan la introducción de algunas limitaciones y de nuevas intervenciones de la autoridad pública82. Frecuentemente, estas disposiciones son promulgadas con el fi n de evitar fraudes fi scales o ciertas prácticas ilícitas que la adopción puede suscitar por parte de intermediarios sin escrúpulos83. Por todas partes la adopción se encuentra sometida a un control más riguroso por parte de los poderes públicos, lo que constituye un testimonio patente del dirigismo jurídico del derecho moderno o, dicho en otros términos, de la inexorable estabilización de las instituciones del derecho privado. Bastaría con lo ya señalado para justifi car la actualidad del tema, como consecuencia de ese panorama general. Pero el interés se acrecienta cuando este fenómeno del “eclipse” y del “renacimiento” de la adopción se examina en la historia legislativa española.

Desde 1889, el capítulo V del Título VIII del Libro I del Código, referido a la adopción, estuvo petrifi cado y quieto hasta la Ley de 24 de abril de 1958. Sesenta y nueve años84. En cambio cuando sólo han transcurrido doce desde esta reforma,

81 En Hispanoamérica uno de los factores que más ayudó a formar conciencia acerca de la necesidad de dictar normas que fomentasen la adopción fue la realización de Congresos Internacionales, como los Panamerica-nos del Niño en Buenos Aires, 1916; en Santiago de Chile en 1924, en Montevideo, Río de Janeiro y Lima.

82 ANCEL, M.: L’adoption dans les legislations modernes, cit., p. 10.83 Tal era el objeto de la Adoption of Children (Regulation) Act inglesa de 1939, inspirada en la necesidad

de poner punto fi nal a la práctica de ciertas sociedades dedicadas a proporcionar niños a personas deseo-sas de adoptar (cfr. MAC WHINNIE, A.: Adopted children. How they grow up, London, 1968, p. 289).

84 De manera que, en casi setenta años, la adopción estuvo casi ignorada, salvo un Decreto del Gobierno Republicano de 10 de abril de 1937 (Preámbulo: “Son muchos los españoles que llevados de este hu-manitarísimo deseo de adoptar y con el convencimiento de que la razón del afecto está por encima de la ley de la sangre, se han dirigido a este Ministerio en solicitud de que se modifi quen las disposiciones del Código civil en materia de adopción, sometida a una reglamentación rígida y severa”) y la alusión del preámbulo de la Ley de 17 de octubre de 1941 (“… Las normas sobre la adopción contenidas en el Código civil, no han satisfecho en la práctica el propósito de suplir los vínculos paterno-fi liales dados en la generación, respecto de los seres más desvalidos e inocentes, abandonados en torno de una casa de expósitos o recogidos en otros establecimientos benéfi cos”.

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el legislador ha sentido la necesidad o la conveniencia de establecer una regulación nueva, llevada a cabo por la Ley de 4 de julio de 1970 y diecisiete años después – el 11 de noviembre de 1987- se acomete una importante reforma que, posteriormente, ha sufrido retoques puntuales. Así las cosas, pocas instituciones han sido objeto de tantas modifi caciones legislativas desde la promulgación del Código civil, señal de que la normativa sobre ella no sintonizaba con la realidad social que debía regular, o que rápidamente ha sido superada por esa realidad. Por lo que hace a la primera – la de 24 de abril de 1958 – no hay duda de que esa reforma constituyó un importante cambio de orientación, sobre todo teniendo en cuanta el carácter rígido, severo y poco generoso de la regulación originaria del Código; pero sus efectos – en principio prometedores- no fueron sufi cientes85. La nueva regulación llevada a cabo por la Ley de 4 de julio de 1970 constituyó una reforma importante porque, pese a la afi rmación de la Exposición de Motivos de que “ahora lo nuevo no se traduce en una mutación de rumbo”86, respecto a la normativa de 1958, parece claro que la de 1970 ha supuesto una modifi cación casi radical en muchos aspectos, aunque, desde luego – y como veremos- quedó muy alejada de la línea de las legislaciones más avanzadas.

Esto dicho, tampoco nos parece que el legislador de 1970, aún habiendo desechado algunos de los viejos prejuicios que encadenaban la institución, haya conseguido una ordenación normativa satisfactoria. Hay que subrayar que las perturbadoras tensiones políticas de muy preciso signo habidas en las Cortes franquistas de la época, impidieron llevar a cabo una reforma de serio alcance y cristalizaron en una regulación plena de ambigüedades e innecesarias repeticiones conceptuales incompatibles con la técnica legislativa deseable en la elaboración de la norma. El juicio que nos mereció la norma – tras el análisis de las innovaciones realizadas87 – fue el de estimar que la nueva regulación – pese al avance que supuso respecto de la anterior- seguía quebrantando fundamentales exigencias de justicia, como son las de que la equiparación entre los hijos adoptivos y los legítimos sea proclamada a todos los efectos. Por lo que hace a la intervención judicial, la Ley de 1970 exigía para el nacimiento de la relación adoptiva la concurrencia de una triple formalidad: judicial, notarial y registral “todo ello con igual valor constitutivo”. Con el establecimiento

85 Acerca del verdadero alcance de esta reforma, vid. RODRÍGUEZ ENNES, L.: “La intervención judicial en materia de adopción a partir de la Ley de 1987, en El Derecho de familia de Roma al derecho actual, Ramón López-Rosa, Felipe del Pino-Toscano (eds.), Actas del Sexto Congreso Internacional y IV Iberoamericano de Derecho Romano, Huelva, 2004, pp. 629 ss.

86 Párrafo 3º de la Exposición de Motivos de la Ley de 4 de julio de 1970.87 Cfr. RODRÍGUEZ ENNES, L., “La adopción (análisis crítico-sistemático de la Ley de 4 de julio de 1970)”,

en Foro Gallego. Revista Jurídica General, núms.. 169-170-171 y 172, A Coruña, 1976, pp. 5 ss.

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de este complejo procedimiento, el legislador trató de poner punto fi nal –un tanto salomónicamente- a las fuertes discusiones doctrinales acerca de la naturaleza del acto constitutivo de la adopción. El resultado de esta política conciliatoria y transacional ha sido la instauración de un procedimiento todavía más complejo e híbrido que el de la normativa anterior que contribuyó a alejar en mayor medida a nuestra legislación de entonces de las modernas tendencias del derecho comparado. En efecto, así como la intervención judicial en la adopción es exigida por la totalidad de los ordenamientos, son escasos, empero, los que dan intervención en la misma al Notario y, más aún, los que atribuyen al otorgamiento de la escritura valor constitutivo. Concluíamos nuestra crítica a la legislación de 1970 señalando que el sistema judicial anglosajón y de otros muchos países, debió quedar implantado en toda su pureza por dicha reforma. Para ello bien se pudo escoger una fórmula semejante a la empleada por los legisladores portugués e italiano que proclamase claramente que la adopción nace en virtud de un auto judicial. La inscripción en el Registro podría practicarse en virtud de dicho auto, sin necesidad de pasar por el inútil trámite de la escritura pública. Así se hace en nuestro Derecho con los autos de cambio de nombre y de apellidos y otras muchas resoluciones que afectan al estado civil.

De esta suerte, no cabía más que poner punto fi nal a nuestro análisis, postulando por la necesidad de acometer una nueva revisión de tan problemática materia que llevase, por fi n, la equiparación a las últimas consecuencias, de tal modo que más que de equiparación pudiese hablarse de auténtica integración de los adoptados en la familia adoptiva y abogando, al propio tiempo, por la necesidad imperiosa de simplifi car el procedimiento proclamando sin ambages la naturaleza judicial del vínculo adoptivo y suprimiendo, por inútil y vacío de contenido, el trámite de la escritura pública. Por fortuna, el legislador español ha sido sensible a ello y el juicio que nos merece la actual normativa vigente introducida por la Ley de 11 de noviembre de 1987, en general, es positivo por cuanto mejora indudablemente la legislación anterior, acogiendo la mayor parte de las propuestas que, en su día, planteamos88.

88 Para una exposición exhaustiva de la normativa vigente en materia de adopción, me remito a DÍEZ-PICAZO y ANTONIO GULLÓN, Sistema de Derecho Civil, vol. IV, Derecho de Familia y Suce-siones, 10ª ed., Madrid, 2006, pp. 273 ss.

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Eclipse y Renacimiento de la Adopción en su Devenir Histórico 437

ECLIPSE E RENASCIMENTO DA ADOÇÃO NA SUA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Resumo: Uma das características mais especiais da adoção, como instituição jurídica, é seu grande eclipse e seu singular renascimento. A importância extraordinária, inclusive política, que tem durante toda a história de Roma se desvanece com a queda do império e, após 1500 anos de ostracismo, só renasce no século passado. Isto já bastaria para justifi car a atualidade do tema. Entretanto o interesse desta pesquisa aumenta quando o fenômeno de “eclipse” e “renascimento” da adoção é examinado na história legislativa espanhola.

Palavras-chave: Eclipse. Renascimento. Precedentes históricos. Direito espanhol.

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El Edictum de ConvicioAl profesor Agerson Tabosa, en ocasión de su homenaje, con respeto y afecto.

María José Bravo BoschProfessora titular de Direito Romano na Universidade de Vigo (Espanha)[email protected]

Resumen: Estudio sobre el edictum de convicio, un delito de injurias, caracterizado por ser una injuria verbal realizada de forma colectiva, con la intención clara de ofender a la víctima, independientemente de que esté presente o no ella misma en el momento de la ofensa. Era perseguido cuando se realizaba contra las buenas costumbres, concretadas como los mores huius civitatis. Se trata de un edicto especial al que se le ha prestado poca atención de forma individual, siendo nuestro propósito el identifi car los elementos objetivos y subjetivos del mismo, a fi n de que sea reconocido como fi gura singular.

Palabras clave: Iniuria. Edictum. Convicio. Bonos mores. Dolus.

El delito de injurias es uno de los más antiguos y singulares del derecho romano, ya que como decía Del Prete1, la injuria, por su posición particular en el mundo ético, está más expuesta a sufrir la infl uencia de concepciones diversas, dependiendo de la evolución de los grados de una civilización. Iniuria2, etimológicamente hablando,

1 DEL PRETE, La responsabilitá dello schiavo nel diritto penale romano, Roma, 1937, reimp. 1972, p. 34.

2 BERGER, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, Filadelfi a 1953, reimp. 1991, s.v. Iniuria; BRÉAL et BAILLY, Dictionnaire étymologique latin, París 19-, s.v. Iniuria; ERNOUT et MEILLET, Dictionnaire étymologique de la langue latine, París , 1959, s.v. Iniuria; FORCELLINI, Lexicon totius latinitatis 4, Patavii, reimp. 1940, s.v. Iniuria; HEUMANN – SECKEL, Handlexikon zu den Quellen des römischen Rechts, Jena, 1926, reimp. Graz. 1958, s.v. Iniuria; LEWIS& SHORT, A Latin Dictionary, Oxford, 1966, reimp. 1995, s.v. Iniuria; WALDE, Latein. Etymologisches Wörterbuch, Heidelberg, 1965, s.v. Iniuria.

3 PLESCIA, “The development of iniuria”, en Labeo 23, 1977, p. 271: “ Etimologically iniuria is a com-pound word of in and ius the in being a negative particle and the ius meaning right and binding. Iniuria then would refer to whatever has been done non iure, i.e., contra ius, and it may be defi ned, in a very general sense, as a violation of another´s rights either in deed or words”.

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proviene del vocablo iure precedido del prefi jo negativo in3, por lo que se infi ere que todo acto non iure, contrario a derecho, se comprende dentro de la iniuria en un sentido amplio, como afi rma Von Lübtow4 al hablar de “das Unrecht”. En un sentido más técnico y estricto, se incluyen en esta denominación los más variados delitos, que causen daño o perjuicio aut re aut verbis -como señala Labeón en D. 47. 10. 1. 1- a la persona de otro o de sus dependientes. Aquí es donde debemos ubicar – por el tipo de ofensa realizada- la claúsula edictal de convicio, introducida por el pretor para sancionar los insultos o vocería proferidos por varias personas adversus bonos mores, reunidas en grupo o asamblea ante el domicilio de la persona a quien se injuria o en un lugar frecuentado por ella.

El presupuesto de hecho del ilícito pretorio se encuentra tipifi cado en la cláusula edictal, recogida por Ulpiano en D. 47, 10, 15, 2 (57 ad ed.), lo que demuestra la existencia del texto original del edicto de convicio: Ait praetor: Qui adversus bonos mores5 convicium cui fecisse cuiusve opera factum esse dicetur, quo adversus bonos mores6 convicium7 fi eret, in eum iudicium dabo.

4 D Cfr. VON LÜBTOW, “Zum römischen Injurienrecht”, en Labeo 15, 1969, p. 163.5 Paul. Coll. 2. 5. 2: “Commune omnibus iniuriis est, quod semper adversus bonos mores fi t… » ; vid.

sobre la afi rmación contenida en el texto de la Coll., RABER, Grundlagen klassischer Injurienansprüche, Viena-Colonia-Graz, 1969, p. 5 ss. en donde rechaza la afi rmación de que toda iniuria, en cuanto sea jurídicamente relevante, sea realizada adversus bonos mores, ya que pueden darse casos de injuria en donde los boni mores no sean tomados explícitamente en consideración, añadiendo a continuación datos sobre la infracción de los boni mores; WITTMANN, “Die Entwicklungslinien der klassischen Injurienklage”, en ZSS 91, 1974, p. 303-304. “Ein weiterer abstrakter Gesichtspunkt, den die Klassiker aus dem Edikt herleiten konnten, war das Kriterium des Handelns adversus bonos mores, das nur in drei Spezialedikten –im edictum de conviciis, im edictum de adtemptata pudicitia, und im edictum de iniuriis quae servis fi unt- explizit gennant war, von den Klassikern jedoch als im gesamten Bereich der actio iniuriarum ma�geblich betrachtet wurde: Commune omnibus iniuriis est, quod semper adversus bonos mores fi t idque non fi eri alicuius interest (Paul. Coll. 2. 5. 2); MAYER-MALY, “Contra bonos mores”, en Iuris Professio, Festgabe für Max Kaser, 1986, p. 157 ss.

6 No entendido como un concepto abstracto, sino como se desprende de Ulpiano en D. 47. 10. 15. 6: Idem ait: <<adversus bonos mores>> sic accipiendum, non eius, qui fecit, sed generaliter accipiendum adversus bonos mores huius civitatis. Vid. al respecto, MEZGER, Stipulationen und letztwillige Verfü-gungen “contra bonos mores” im klassisch – römischen und nachklassischen Recht, Göttingen, 1930, p. 18, cuando considera interpolado el fragmento desde non eius hasta accipiendum por ser ésta una explicación superfl ua; PÓLAY, Iniuria types, cit. p. 105, donde afi rma que la expresión adversus bonos mores se refi ere a “the boni mores in the state (this term meaning, therefore, objective measure)”.

7 Aparte del uso edictal, el vocablo convicium en ocasiones se utiliza para designar afrentas que pueden dar lu-gar a una represión pública, como señalan SANTA CRUZ/ D’ORS, “A propósito de los edictos especiales de iniuriis”, en AHDE 49, Madrid, 1979, p. 657, en donde ponen como ejemplos: “cuando hay convicium, por parte de quien apela, contra el juez apelado (D. 49. 1. 8: non debere conviciari ei a quo appellat, y D. 47. 10. 42: iudici ab appellatoribus convicium fi eri non oportet, cuya inserción en el título de la actio iniuriarum no implica que ésta fuera la acción apropiada); así también, cuando hay convicium contra el propio patrono, en cuyo caso impone un castigo el prefecto de la ciudad (D. 1. 12. 1. 10) o el gobernador provincial (D. 37. 14. 1). Estos convicia no tienen que ver con el edicto especial de convicio (§ 191)”.

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Si bien Maschke8 hablaba en un principio de una interpolación desde cuiusve hasta esse y de quo a fi eret, posteriormente cambió de parecer, entendiéndose el fragmento hoy en día libre de toda sospecha. Del texto se deduce la protección que concede el pretor ante hechos considerados muy graves en una sociedad romana que era extremadamente sensible en todo aquello que afectaba a la buena reputación y al honor9, por lo que los insultos realizados en público, objeto de nuestro edicto ya que a decir de Watson:10 “Convicium means public insult”, eran sancionados con severidad.

El motivo de la protección concedida por el pretor, en el último tercio del siglo II a.C. no es otro que el amparo del cives que sufre una afrenta verbal11, en público12, proferida por un grupo de personas que realiza la ofensa, por lo que la intervención dirigida a reprimir tal conducta nos demuestra que la actuación del magistrado era absolutamente

8 MASCHKE, Die Persönlichkeitsrechte des römischen Iniuriensystems, Breslau, 1903, p. 43.9 Vid. al respecto, POMMERAY, Études sur l’infamie en Droit Romain, París, 1937, p. 113: “Le préteur,

comme tout magistrat romain, attribuera à l’existimatio des individus une grande importance. Celle-ci sera tout particulièrement grande en raison de l’activité même qui est dévolue au préteur. C’est dans deux cas qui correspondent d’ailleurs à deux passages différents de son Edit, qu’il sera appelé à s’occuper de l’honorabilité des gens et à exercer son contrôle sur le libre jeu de l’infamie populaire.Tout d’abord, le magistrat s’est donné comme tâche de défendre le membre de la cité contr ceux qui voudraient faire naître à son égard la réprobation populaire que nous avons décelée dans le type ancien ; des moyens de droit seront accordés à celui qui se prétendrait ainsi incriminé à tort : à la rubrique de injuriis, tit. XXXV de l’Edit, les édits §191, 192 et 193, de convicio, de adtemptata pudicitia, et ne quid infamandi causa fi at » ; sobre el signifi cado de existimatio, GREENIDGE, Infamia. It’s place in Roman Public and Private Law , reprint. Aalen, 1977, p. 1- 17.

10 WATSON, The Law of Obligations in the later roman Republic, Oxford, 1965, reimp. 1984, p. 251. 11 Cfr. CARNAZZA-RAMETA, Studio sul Diritto penale dei romani, ed. anast. Roma, 1972, p. 214, en

donde dice que la injuria se podía cometer verbis, y que el edicto del pretor se ocupó de las injurias ver-bales que eran privadas o públicas, división mantenida en los códigos modernos; la injuria privada era un maledictum, no tenía la importancia de la segunda que para constituirla era necesario el convicium por concitatio o conventus o collatio vocum; MÉHÉSZ, La injuria en Derecho Penal Romano, Buenos Aires, 1969, p. 30, en donde defi ne el convicium como una injuria inmediata verbal, a lo que añade que la injuria verbal era muy común en Roma: “porque ahí nunca faltaban los impertinentes y groseros, que con vocerío vulgar y palabras torpes, sabían como amargar a sus víctimas”.

12 Precisamente contra la difamación efectuada sin la presencia de público, no existía protección alguna, hasta la emanación del edicto ne quid infamandi causa fi at (posterior al de convicio), que comprende cualquier ilícito que se realice infamandi causa fi at. En palabras de DAUBE, Ne quid infamandi causa fi at, en Collected Studies in Roman Law I, Frankfurt, 1991, p. 469, la aparición de este edicto “Was a tremendous innovation, the effects of which are still felt in our day. Any human act might come under the prohibition; and wether or not a given act did come under it was to depend, in the fi rst place, on the intent with which it was done. It was the craftiness of those out to destroy the good name of others which had led to this triumph of a ‘subjective’ criterion. As they had demonstrated that there was practically no act which could not be used for the purpose of defamation, the only thing for the praetor to do was to include any act having that purpose”.

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necesaria por la multitud de casos acaecidos en la sociedad romana de la época13. Ayuda a comprender la importancia de este edicto el hecho de que el pretor lo promulgase como primer edicto especial después del edictum generale de iniuriis aestimandis, para proporcionar fundamento legal a las ofensas cometidas contra el honor.

La palabra convicium ha suscitado desde hace tiempo las dudas de los intérpretes y los críticos. Tiene razón Huvelin14 cuando afi rma que convicium facere, en su sentido técnico, no se aplica más que al hecho de una persona que, junto con otras, o al menos en medio de otras, vocifera, entendiendo como tardía la posibilidad de que convicium tenga el signifi cado de insulto realizado por una sola persona, tema debatido constantemente por la doctrina, en cuanto a si el convicium se podía realizar sólo por parte de un grupo de personas o incluso por alguien de forma singular. Esta posibilidad de la afrenta singular es mantenida por Raber15, en el sentido de aceptar como convicium el realizado por una sola persona, ya que de acuerdo con D. 47, 10, 15, 12, los requisitos cum vociferatione e in coetu se pueden entender como referidos no necesariamente a una pluralidad de sujetos, ya que se dice sive unus al principio del texto.

Algunos, como Fraenkel16, afi rman la relación entre la noción edictal privada de convicium y la decenviral del carmen famosum (recitado o cantado: occentare; escrito: carmen condere), documentada en un pasaje de Festo, afi rmando que el occentare en las XII Tablas ya gravitaba en la esfera de la difamación verbal. Otros, como Manfredini17, recurren a la etimología del vocablo para hablar de su naturaleza colectiva: cum e voces, pero incidiendo en que la noción originaria de convicium nada tiene que ver con la difamación a través de las palabras ni con la difamación escrita contenida en un carmen, liber o libellus, sino que se refería a gritos y alborotos colectivos, dirigidos como protesta sobre todo contra primores.

Es cierto que el comentario de Ulpiano sobre la cláusula de progenie edictal recogida en D. 47, 10, 15, 2, nada dice acerca del signifi cado de convicium. Pero hay otro pasaje del propio Ulpiano, reproducido en D. 47, 10, 15, 4, (57 ad. ed.) que nos brinda el signifi cado

13 Las fuentes literarias describen a la sociedad romana de los últimos tiempos de la República y de los primeros siglos del Imperio como una civitas calumniadora, que ridiculizaba, criticaba y sometía a escarnio público a todo el mundo, sin respeto por nadie, y siempre dispuestos a la mofa y burla de cualquiera, ya sea adversario, conocido o amigo, como se aprecia en Cic. Pro Cael. 38, Quaest. Tusc, 4. 2; Hor. Sat. 1. 4. 75; id. 86-89; Ibid. 1. 7. 20 ss.; Juv. Sat. 102-120, Suet. Caes. 22, 49.

14 HUVELIN, La notion de l’iniuria dans le très ancien droit romain, Lyon, 1903, reimp. Roma, 1971, p. 59.15 RABER, Grundlagen, cit., p. 27 ss.16 FRAENKEL, “Rec. a Beckmann. Zauberei und Recht im Romsfrühzeit”, en Gnomon 1, 1925, p. 193-194.17 MANFREDINI, La diffamazione verbale nel Diritto Romano, Milán, 1979, p. 61.

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etimológico de convicium: Convicium18 autem dicitur vel a concitatione19 vel a conventu20, hoc est a collatione vocum; cum enim in unum complures voces conferuntur21, convicium appellatur, quasi convocium.

El interés suscitado en la doctrina por lo que se refi ere a este pasaje se infi ere de la necesidad de circunscribir el ámbito del edicto de convicio. Así, mientras unos, como Hendrickson22, apuestan por la posibilidad de que constituya conducta punible

18 Imprescindible la lectura de Th. l. l. s. v. convicium: orig. inc. sunt qui conferant c. vocare, vox, en donde cita a Festo, De verb. cit. s. v. convicium, y a Ulpiano en este texto del Digesto, así como a Non. p. 64: convicium dictum est quasi e vieis logi, in quis secundum ignobilitatem loci maledictis et dictis turpibus cavilletur; Boeth. top. Arist. 6, 3, p. 976d: qui convicium iniuriam cum irrisione defi nivit; Ov. met. 6, 362. 13, 306. 14, 522. Como otro signifi cado, i. q. exprobatio cum clamore facta, maledictum probrium, acris vituperatio, sim. Por lo que se refi ere a las fuentes literarias en cuanto a su signifi cado generatim: Plaut. Bacch. 874, Cic. Verr. 2, 158: hominum clamore atque convicio; 5, 141.6, 28:erant convivia…cum maximo clamore atque convicio. Or. Frg. A 6, 1: fi t clamor, fi t convicium mulierum. El Th. l. l. nos proporciona además los posibles synonima: clamor, contumelia, detestatio, improperium, infamia, iniuria, insectatio, lis, maledictum, obiurgatio, opprobium, pipulum, probrum, rixa, sibilus, strepitus, vellicatio, vociferatio.

19 Th. l. l. s. v. concitatio; signifi cado en sentido propio: vehemens motus, excitatio, agitatio; en sentido trans-laticio: motus, incitatio populi, militum, multitudinis. Incluso parece obligada la referencia que hace a s.v. concitare, II B: de sedictione ac tumultu; cfr. Quint. xi. 3. 175: fortis et vehemens et latro erecta et concitata voce dicendum est ; Val. Max. ix 3. 8 : animi concitatione nimia atque immoderato vocis impetu.

20 Cfr. Th. l. l. s. v. conventus: signif. I A: concursus, congregatio; Paul. Diac. s.v. conventus (L. 36) : Con-ventus quattuor modis intellegitur. Uno, cum quemlibet hominem ab aliquo conventum esse dicimus. Altero, cum signifi catur multitudo ex conpluribus generibus hominum contracta in unum locum. Ter-tio, cum a magistratibus iudicii causa populus congregatur. Quarto cum aliquem in locum frequentia hominum supplicationis aut gratulationis causa conligitur, siendo el núcleo central del signifi cado la pluralidad de personas citadas en un lugar.

21 Vid. al respecto, PÓLAY, Iniuria types, cit. p. 103, en donde habla del convicium “Commited by more persons than one, who shout together (conferuntur)”, añadiendo en p. 146 n. 21 que la expresión de D. 47, 10, 15, 12 sive unus, sive plures dixerint está en contradición con el supuesto original (con-vocium) ya que el grito de una sola persona no puede realizar esta clase de iniuria. Para él, resulta evidente que puede tratarse de una interpretación postclásica extensiva del signifi cado original.

22 HENDRICKSON, “Convicium”, en Cl. Ph. 21, nº 2, 1926, p. 116 ss. en donde hace un análisis exhaus-tivo del texto de Ulpiano, del que destaca que en un lenguaje que semeja llano e inequívoco, aparente-mente los juristas modernos se dieron cuenta del hecho de que son dos las interpretaciones posibles ofre-cidas, exactamente como las de los antiguos gramáticos en las presentes etimologías, por ejemplo, Paulus ex Festo s. v. convicium : “a vicis…videtur, dictum, vel inmutata littera quasi convocium”. La primera defi nición, a concitatione, da la idea de concentración o intensidad “that is of noise, or, as is said pres-ently, vociferatio”; la segunda, a conventu, “of a plurality of speakers”. Así, Ulpiano tendría en mente dos posibles acepciones del convicium, una desde el punto de vista de la vociferatio, otra dependiendo del número de los que vociferan, coetus. Continua el autor diciendo: “In sections 11 and 12 there is an apparent blending of these points of view, which has I suspect been the source of the error noted in the ci-tations from the modern jurists at the beginning of this paper”, todo ello por la pérdida de la partícula vel que para Hendrickson debía estar en el texto: ex his apparet non omne maledictum convicium esse, sed id solum quod cum vociferatione dictum est,…[b] <vel> quod in coetu dictum est, convicium est. “That this sharp twofold division –obscured by the loss of vel- is intended, appears from the words following:

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el convicium proferido por una sola persona, otros como Wittmann23 - que representa la opinión de la mayoría- niegan por el contrario el ilícito realizado de forma individual, afi rmando que el edicto condena única y exclusivamente la actitud de una pluralidad de personas. Para él, Ulpiano se limitó a ofrecer en el pasaje un cuadro etimológico del término convicium, con dos posibles acepciones, siendo la primera: vel a concitatione, vel a conventu, y la segunda, por la que Ulpiano se decanta: cum enim in unum conplures voces conferuntur, convicium appellatur quasi convocium.

Ambas teorías relacionan la etimología de convicium prevista en D. 47, 10, 15, 4, con el contenido de lo dispuesto en D. 47, 10, 15, 11- 12, cuyo tenor literal es el siguiente:

Ex his apparet, non omne maledictum24 convicium esse: sed id solum, quod cum vociferatione dictum est. Sive unus, sive plures dixerint, quod in coetu dictum est, convicium est: quod autem non in coetu, nec vociferatione dicitur, convicium non proprie dicitur, sed infamandi causa dictum.

quod autem [b]non in coetu [a]nec vociferatione dicitur, convicium non proprie dicitur, sed infamandi causa dictum”, para terminar diciendo que la creencia de que convicium implica la presencia de una multitud o muchedumbre es claramente errónea. Merece la pena traer a colación las conclusiones del fi lólogo, cuando afi rma en la p. 119: “It is spun out of an assumed etymology, which Ulpian does not in fact entirely indorse, but merely advances in explanation of one aspect of his twofold conception of convicium. But while not accepting it unreservedly, he yet rests one leg of his structure upon it. This is the starting point of the modern doctrine, which, failing to note the alternatives, has accepted the idea of a plurality of voices or persons as the unqualifi ed teaching of the jurists. Convicium has necessarily no more to do with a plurality of utterance than has clamor, or the ancient pipulum and vagulatio, both of which are defi ned by convicium. To be sure a mob might shout insults at an individual, and these were convicia, not however, because they were shouted by a crowd or in chorus -quasi convocium, but because they were vehement expressions of hostile feeling- a concitatione, and meant to overwhelm (convincere)”; ya anteriormente, CARNAZZA-RAMETA, Studio sul diritto, cit. p. 214, cuando defi ne el convicium como la propagación de la iniuria realizada por una o más personas en un lugar público, como en una plaza, en una posada o en un camino; del mismo modo, JÖRS-KUNKEL-WENGER, Römisches Privatrecht, Berlín-Gotinga-Heidelberg, 19493, p. 259, traducían la palabra convicium con la expresión “gemeinsames Schreien mehrerer Personen”, que podía cometer alguien incluso solo; como seguidor de esta teoría, vid. RABER, Grundlagen, cit. p. 27 ss, en donde argumenta que también una sola persona puede hacer convicium.

23 WITTMANN, “Die Entwicklungslinien der klassischen Injurienklage”, en ZSS 91, 1974, p. 308; ante-riormente, en Die Körperverletzung an Freien im klassischen römischen Recht, Munich, 1972, p. 29, se refería ya al convicium de la siguiente forma: “convicium ist jedenfalls ursprünglich ein Schimpfkonzert, das von mehreren gegen jemanden veranstaltet wird”, quedando claro el espíritu colectivo de los que realizan una afrenta verbal contra otro.

24 Vid. al respecto, FERRINI, Diritto Penale Romano. Teorie generali, Milán, 1899, p. 236, en donde dice que si el maledictum no es público, no puede considerarse “infamatio”; ZIMMERMANN, The Law of Obliga-tions. Roman Foundations of the Civilian Tradition, Oxford, 1996, p. 1054, cuando afi rma que no todo tipo de ofensa verbal era convicium, ya que “It had to be bawled aloud (id solum, quod cum vociferatione dictum est), and it had to be voiced within a crowd of people (…quod in coetu dictum est), sin pronunciarse sobre la posibilidad de que una sola persona pueda cometer convicium, apuntando tan sólo en forma interrrogativa si tal opción podía acontecer: “Could an individual person commit the offence of convicium?”.

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Del contenido del texto se infi ere la no consideración de convicium ante cualquier afrenta verbal25, siendo imprescindible el requisito de elevar la voz, cum vociferatione, y con intención de lesionar el honor de otra persona. También es necesaria la presencia de un grupo de personas ante las que se realiza la vocería26, puesto que si no existe una multitud de personas cuando se profi ere el ilícito contenido en el convicium, no se gozaría de la protección de pretor. Por lo que resulta clara la necesidad de que ambos supuestos se den a la vez, es decir: si existe vociferación, pero no en presencia de un grupo de gente, no existirá convicium, y al revés. Esta obligación cumulativa de ambos supuestos se produce porque en ausencia de alguno de estos requisitos, estaríamos ante el infamandi causa dictum no ante un caso propio de convicium27.

Por lo que hace al fr. 12, debemos poner de manifi esto que seguramente sea un requisito de época clásica la participación de varios sujetos profi riendo insultos a otro, mientras que la posibilidad prevista sive unus, de incurrir en el ilícito edictal cuando es una sola persona la que realiza la vocería puede ser de progenie postclásica, aunque la doctrina resulta difusa en torno a este punto, siempre sometido a meras hipótesis. Con todo, no es menos cierto que en medio de una turba encolerizada que insulta a alguien28, resulta dudoso pensar que tan sólo sea uno el que participe de forma directa

25 Cfr. PUGLIESE, Studi sull’ “iniuria”, Milán, 1941, p. 53, en donde declara: “Inoltre occorre tenere pre-sente che il convicium non è propriamente un’ingiuria verbale, ma qualcosa di più caratteristico, come è ripetuto ancora da Ulpiano (D. 47, 10, 15, 11), ed è pure una fi gura tipicamente romana, in quanto non ha riscontro, a quel che pare, in nessun delitto greco”.

26 Cfr. SANTACRUZ/D’ORS, “A propósito de los edictos”, cit. p. 657: “El concurso de varias personas es esencial para este tipo delictual, aunque no es necesario que las voces ofensivas sean proferidas por todas o muchas de ellas, sino que basta que lo sean por una; pero, si no hay concurso, las palabras injuriosas proferidas por alguien quedan sancionadas por el otro edicto especial contra actos difamatorios, como aclara Ulpiano”, optando por la posibilidad de que exista convicium aunque sea tan sólo uno el que profi era la ofensa verbal.

27 Cfr. WITTMANN, “Die Entwicklungslinien”, cit. p. 310, en donde dice que Ulpiano impone para la noción de convicium dos condiciones que tienen que existir a la vez: “Die kumulativ vorliegen müssen. Die Beschimpfung mu mit lauter Stimme (cum vociferatione) und öffentlich (in coetu) erfolgen”. Para Witmann, la locución sed id solum, quod cum vociferatione dictum est, sive unus sive plures dixerint, quod in coetu dictum est, convicium est, se debe entender en el sentido de que para Ulpiano no podía darse el convicium sin vociferatio, y aunque D. 47, 10, 15, 12, hable de quod autem non in coetu nec vo-ciferatione dicitur, en vez de quod autem non in coetu aut non vociferatione dicitur, ello no signifi ca que bastase para la existencia del convicium solamente el in coetu dictum o la vociferatio, siendo necesaria la concurrencia de ambos requisitos cumulativamente. Es decir, para que se pueda dar el supuesto punible, debe existir -además de una multitud- el autor o autores del convicium, que deben proferir el insulto con vociferación infl uyendo en los que conforman la muchedumbre, y no en voz baja de modo que nadie comprenda lo que dicen.

28 Vid. al respecto, AJA SÁNCHEZ, “Plebs contra Dominum ( in Edessa). La modalidad del «convicium» como forma de expresión de la «iustitia populi», en Homenaje al profesor Montenegro Duque,Valladolid, 1999, p. 728, cuando al referir la vejación de la estatua de Constancio II en Edessa, suceso conocido a través del testimo-nio de Libanio, en Orat. XIX. 48 y XX. 27 y acaecido en el siglo IV, dice lo siguiente: “…Libanio tampoco fue

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en la afrenta verbal y pública contra otro. Por todo ello, resulta más acorde con la lógica pensar que el pretor quiso condenar la conducta ilícita de un grupo de individuos que realizan convicium a otro, es decir, que insultan como conjunto a una persona, y que buscan como resultado el menoscabo del honor de la misma.

A mayor abundamiento, en D. (h. t.) fr. 8, encontramos la siguiente consideración del jurista Ulpiano:Fecisse convicium non tantum is videtur, qui vociferatus est, verum is quoque, qui concitavit ad vociferationem alios vel qui summissit ut vociferentur.

Suponemos, a la vista de este fragmento, que se podía dar en ocasiones que hubiese un instigador, que sublevase a una muchedumbre para que profi riese el convicium, aun cuando él mismo no estuviese presente en la realización del acto ilícito, ya que nada dice Ulpiano de la necesidad de que esté presente el que concita a otros a vociferar o los envía para que vociferen. Por lo tanto, se presupone la existencia de diversos sujetos activos en la realización del convicium, siendo punible la conducta de todos los que hayan intervenido en la ofensa, aún cuando directamente no hayan proferido el convicium condenable. Esto vendría en ayuda de la tesis de Wittmann, según la cual sólo es posible el convicium realizado por varios, aun cuando persiste la duda de qué hacer ante un caso de convicium proferido por uno solo, y sin la instigación de nadie, sin olvidar que el vocablo convicium nos refi ere la necesidad de un conjunto de voces29.

Acabamos de ver como para subsumir una determinada conducta en el concepto de convicium resultan necesarios ciertos requisitos (vociferación, conjunto de voces, tumulto, insultos). Del mismo modo, para que una afrenta verbal sea considerada objeto de reprobación debe efectuarse contra bonos mores, debiendo analizar a continuación que signifi cado se le debe atribuir a los boni mores, pudiendo así saber cuando se contravienen esas buenas costumbres, y se actúa adversus bonos mores.

especialmente explícito al referirse a los autores del derribo y vapuleo humillante sufrido por la estatua. Tan solo señaló a “los habitantes de la ciudad”, en un sentido así de amplio y general, como los responsables y autores materiales de la ofensa al emperador, ello cuando no prefi ere referirse a «la ciudad», como si toda la población hubiera participado de una u otra forma en el suceso, ya que es siempre de este modo genérico como alude a los culpables y autores materiales de la afrenta al eikon imperial”; además, en p. 732, al hablar de la existencia de un “convicium in effi giem”, ante el que el emperador adopta una actitud de silencio y de perdón, comenta que este acto popular de desacato frente al poder central proviene de una antigua y popular tradición edessense, por lo que Libanio consideró justifi cable la conducta de los habitantes de la ciudad cuando hicieron convicium a la estatua del emperador, pero solo porque ello formaba parte de una costumbre de larga tradición; cfr. sobre la mención más detallada del suceso, GLEASON, “Festive satire: Julian’s Misopogon and the New Year at Antioch”, en JRS 76, 1986, p. 106-119, en donde además refi ere el tumulto popular más conocido del siglo IV, el ocurrido en Antioquía en el año 387 (posterior al de Edessa), cuando la población injurió una serie de estatuas de la familia imperial, con gran repercusión en el mundo antiguo.

29 MARRONE, “Considerazioni in tema di iniuria”, en Synteleia Arangio-Ruiz, Nápoles, 1964, p. 479, cuando declara: “Convicium vuol dire riunione di più voci: consisteva nello schiamazzo ingiurioso, ef-fettuato da un grupo numeroso di persone presso l’abitazione di alcuno, durante il quale, tra l’altro, si proclamavano ad alta voce torti e colpe della vittima”.

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La referencia a las buenas costumbres entre los juristas es muy frecuente30, hablando incluso del papel decisivo que la contravención de las mismas, como norma objetiva, tiene en los diferentes tipos de iniuria31. Ahora bien, como dice Mezger32, la percepción de la máxima contra bonos mores referida a la moral, que es el signifi cado que se le suele atribuir, no es propio del Derecho clásico, sino de la etapa postclásica, siendo nuestra labor la de concretar la acepción de los bonos mores previstos en el edicto del pretor, como recoge Ulpiano en el texto ya citado D. 47. h. t. 2: Qui adversus bonos mores convicium cui fecisse…quo adversus bonos mores convicium fi eret, in eum iudicium dabo.

A tenor de lo dispuesto por el magistrado, resulta indispensable la combinación de convicium con adversus bonos mores, por cuanto la conducta punible la constituye la injuria verbal cometida contra las buenas costumbres33, y sólo en ese caso será condenado el insulto. A mayor abundamiento, Ulpiano concreta en D. 47. 10. 15. 534 la declaración

30 KASER, Das Römische Privatrecht I3, Munich, 1971-1975, p. 195-196; traemos a colación las pala-bras de Paulo contenidas en D. 47, 11, 1, 1: Fit iniuria contra bonos mores, veluti si quis fi mo corrupto aliquem perfuderit, coeno, luto oblinierit, aquas spurcaverit, fi stulas, lacus, quidve aliud ad iniuriam publicam contaminaverit; in quos graviter animadverti solet.

31 Como se puede comprobar en el testimonio de Paulo recogido en D. 47, 10, 33 (10 ad Sab.): Quod reipublicae venerandae causa secundum bonos mores fi t, etiam si ad contumeliam alicuius pertinet, quia tamen non ea mente magistratus facit, ut iniuriam faciat, sed ad vindictam maiestatis publice respiciat, actione iniuriarum non tenetur, lo que se hace según bonos mores para venerar a la república -aunque sea en afrenta de alguien- no está sujeto a la acción de injurias; incluso en el edicto suplementario de iniuriis quae servis fi unt, recogido en D. 47, 10, 15, 34: Praetor ait: qui servum alienum adversus bonos mores verberavisse, deve eo iniussu domini quaestionem habuisse dicetur, in eum iudicium dabo; item si quid aliud factum esse dicetur, causa cognita iudicium dabo; asimismo, en D. h. t. 38: Adiicitur: «ad-versus bonos mores», ut non omnis omnino, qui verberavit, sed qui adversus bonos mores verberavit, teneatur; ceterum si quis corrigendo animo, aut si quis emendandi, non tenetur”.

32 MEZGER, Stipulationen, cit. p. 4: “Nach allgemeiner Anschauung soll contra bonos mores den Versto gegen das Sittlichkeits ~oder Moral~ gesetz bezeichnet haben. Ich glaube nicht, da dies der Standpunkt des klassischen Rechtes war”, sino de la época postclásica, apuntando el hecho de que el cristianismo fue el que introdujo una consideración más fuerte de la moral.

33 Vid. al respecto, MARRONE, “Considerazioni”, cit. p. 480, en donde dice que el convicium era un concepto bastante difuso por lo que mereció la atención del pretor, el cual concedió una pena pecuniaria privada contra los autores de un convicium adversus bonos mores, precisando que no se trataba de mo-res individuales, sino de los mores de la civitas, como se desprende de D. 47. 10. 15, 6, que luego anali-zaremos en profundidad. Añade que el convicium continuó siendo lícito, con tal de que esté justifi cado, a condición de que se realice en la confrontación con un indigno, “di un individuo che avesse in sostanza meritato quella condanna popolare, di cui il convicium era al contempo la pronunzia e l’esecuzione”.

34 Sobre la interpretación de este texto, WITTMANN, “Die Entwicklungslinien”, cit. p. 313-314, en donde señala que la comprensión clásica del criterio edictal de la acción adversus bonos mores es tratada por Ulpiano en D. 47. 10. 15. 5, en donde se recogen los posibles comportamientos de los autores que infrinjan los boni mores; MANFREDINI, la diffamazione verbale, cit. p. 72 n. 108, en donde dice que en el tratamiento ulpi-aneo de la noción edictal de convicium, “proprio perchè il giurista non si pone in una netta prospettiva storica consapevolmente scelta ma ad essa approda indirettamente, attraverso il commento lemmatico dedicato alla clausola edittale dai precedenti commentatori ad edictum che egli mette a profi tto”, se asiste a una interferen-cia entre reglas y conceptos del pasado con las actuales, en vigor en la época del jurista.

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realizada por el pretor: Sed quod adiicitur a Praetore:«adversus bonos mores», ostendit, non omnem in unum collatam vociferationem Praetorem notare, sed eam, quae bonis moribus improbatur, quaeque ad infamiam vel invidiam alicuius spectaret.

La parte quaque ad infamiam, vel invidiam alicuius spectaret, es entendida por algunos como una interpolación, posiblemente realizada, ya que el sentido originario de la cláusula edictal se ve perturbado por la inserción de esta última frase35. Por lo tanto, sólo la vociferación reprobada por las buenas costumbres es susceptible de ser perseguida, y no cualquier otra manifestación ruidosa de voces. Y en el párrafo siguiente, D. 47 h. t. 6, el jurista Ulpiano nos refi ere la realidad del alcance de la expresión “adversus bonos mores”36: Idem ait: «adversus bonos mores » sic accipiendum, non eius, qui fecit, sed generaliter accipiendum adversus bonos mores huius civitatis.

La concreción ahora resulta meridianamente clara. Lo que importa no es si el autor contravino su propia concepción de las buenas costumbres, es decir, aquí el concepto de bonos mores no se refi ere a las buenas costumbres del autor del ilícito, sino que deben ser asumidas en un ámbito concreto: contra las buenas costumbres de la ciudad. Dicho esto, debemos dejar constancia de la teoría de Mezger37, que habla de una interpolación desde non eius hasta generaliter accipiendum, lo que facilitaría todavía más la comprensión del texto. Así, lo que se dirime no son los bonos mores del autor de la injuria verbal –algo superfl uo- sino la interpretación de los bonos mores en el sentido de los huius civitatis, como medida objetiva. A tenor de lo dispuesto, resulta mucho más sencilla la tarea de identifi car cuando se contravienen las buenas costumbres -en el sentido de los bonos mores de la civitas- siendo un ámbito concreto el que delimita la acción ilícita. No cabe duda de que en caso contrario, si se hiciese depender la condena de la conducta adversus bonos mores de un ámbito más amplio, o de un concepto vagamente delimitado (contra las buenas costumbres de los romanos -por ejemplo- sin especifi car más) hubiese sido tarea harto dífi cil el condenar a los que hubiesen proferido una afrenta verbal a otra persona.

35 K PÓLAY, Iniuria types in Roman Law, Budapest, 1986, p. 104, cuando considera probable la inter-polación “because the text –if not interpolated in this part- would already mean the connection of the edict-clauses arranging the concepts of convocium and infamandi causa”.

36 Cfr. RABER, Grundlagen, cit. p. 24 ss. en donde sostiene que el atentado contra las buenas costum-bres es un elemento objetivo; contra, WITMANN, “Die Entwicklungslinien”, p. 314, para quien el hecho de que sean los mores de la civitas el referente para determinar la conducta ilícita, “folg nicht die Objektivierung des Kriteriums des Handelns adversus bonos mores in dem Sinne, dadie Rufschädi-gungsabsicht, sobald objektiv die Mibilligung des Verhaltens des Täters durch die boni mores feststeht, unbeachtlich wäre. Diese muvielmehr zur objektiven Nichtübereinstimmung des Verhaltens mit den boni mores hinzukommen”.

37 MEZGER, Stipulationen, cit. p. 18.

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Por lo que se refi ere a los que sufren la realización del convicium, que resultan afectados por la vocería de un grupo que profi ere insultos y descalifi caciones contra su persona, debemos interesarnos por las palabras pronunciadas por Labeón, recogidas por Ulpiano en D. 47, 10, 15, 7, en donde se determina lo siguiente:

Convicium non tantum praesenti, verum absenti quoque fi eri posse, Labeo scribit. Proinde si quis ad domum tuam venerit te absente, convicium factum esse dicitur. Idem et si ad stationem vel tabernam ventum sit, probari oportere.

El texto precisa quién puede ser afrentado con el convicium, aclarando que no se exige la presencia del sujeto -una persona concreta38 - para que se produzca el ilícito, sin duda porque lo que protege el edicto es el honor de la persona que se ve insultada por otros, por lo que resulta indiferente que el individuo esté o no en su domicilio, incluyendo un punto de parada o una hostería. Lo que se condena aquí es la vulneración de los derechos del otro, la difamación realizada directamente contra una persona39, en presencia de un grupo que participa de la afrenta40, motivo por el cual el Pretor concederá una acción, la actio iniuriarum.

Es obvio que para que exista el convicium se debe realizar la injuria a una persona cierta, concreta, determinada, no siendo posible la protección prevista en el edicto del Pretor si la vocería no se puede identifi car como lesiva a los intereses de un sujeto determinado. Es decir, si alguien profi ere insultos en grupo, pero no se sabe contra

38 HAGEMANN, Iniuria, Von den XII Tafeln bis zur Justinianischen Kodifi kation, Colonia, 1998, p. 70: “Ein convicium kann auch gegen eine bestimmte abwesende Person verübt werden”; vid. en relación con el concepto de persona determinada, la acción de injurias concedida en caso de error con respecto a la identidad de alguien, prevista en D. 47. 10. 18. 3 (Paul. 55 ad ed.): Si iniuria mihi fi at ab eo, cui sim ignotus, aut si quis putet, me Lucium Titium esse, quum sim Caius Seius, praevalet quod principale est, iniuriam eum mihi facere velle; nam certus ego sum, licet ille putet me alium esse, quam sum, et ideo iniuriarum habeo.

39Cfr. PÓLAY, Iniuria types, cit. p. 145-146, cuando dice que la parte injuriada no necesita estar presente cuando se comete convicium, ya que se puede realizar contra una persona ausente, siendo sólo esencial que se profi era el ilícito directamente “against his (her) person and be contra bonos mores “.

40MARRONE, “Considerazioni”, cit. p. 485, cuando declara que lo que se reprime es la afrenta misma, directa o indirecta, a la fama o consideración de una persona, que le puede suponer a esa víctima una disminución o anulación de su capacidad jurídica (lo que ponemos en relación con el elemento subjetivo del ilícito, que veremos posteriormente). Añade que bastaba que la acción del ofensor se realizase en un sitio público para que su conducta pudiese ser condenada, “sulla pubblica via, nel Foro… in modo che molti vedessero e sentissero. Le fattispecie dell fonti sono tutte di questo tipo e non occorre citarle una per una per sottolineare in esse la presenza del particolare requisito della publicità”, limitándose a recordar como eso resulta evidente en el primer edicto especial pretorio en materia: el edicto de convicio.

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quién van dirigidos, al no haber sujeto pasivo no existirá la tutela del edicto de convicio. Con patente rotundidad nos refi ere Ulpiano en D. 47, 10, 15, 9 la siguiente afi rmación: «Cui» non sine causa adiectum est; nam si incertae personae convicium fi at, nulla executio est.

Se condena la realización del acto que produce daño en la víctima, daño real y lesivo para su honor, sin reconocer como conducta imputable la actitud del que desea que profi eran convicium a alguien, sin conseguirlo, por el motivo que sea, como se desprende de Ulpiano en D. (h. t.) fr. 10: Si curaverit quis convicium alicui fi eri, non tamen factum sit, non tenebitur. Lo importante es el resultado, el atentar contra el honor de un sujeto determinado, y conseguir realizar la afrenta, en este caso verbal, y sometida a los límites del convicium esto es, en grupo, en público, y por supuesto, adversus bonos mores. Ahora bien, no se enumeran los sujetos que pueden ser defendidos con la cláusula edictal -como sucede por ejemplo en el edictum de adtemptata pudicitia- sino que se deducen en cada caso concreto. La única referencia que nos brinda Ulpiano en cuanto a la objetivación de un posible sujeto pasivo, se encuentra en D. 47, 10, 15, 13, pero como bien dice Marrone41, no parece que el texto se refi era al edicto de convicio, sino que “tenuto presente il contenuto di esso, è probabile che si riferisse all’editto «ne quid infamandi causa fi at»”: Si quis astrologus, vel qui aliquam illicitam divinationem pollicetur, consultus aliquem furem dixisset, qui non erat, iniuriarum cum eo agi non potest, sed Constitutiones eos tenent.

Ya en referencia al elemento intencional, debemos señalar que el matiz relevante que identifi ca el ilícito del convicium como delito especial de injurias es el dolo, ese dolus malus que se exige para condenar una determinada conducta, lo que signifi ca que la injuria debía inferirse de forma voluntaria, y con intención de causar un perjuicio moral42, lo que supone la presencia en la iniuria de un animus iniuriandi. La intencionalidad en el agresor que causa la ofensa, es decir, el animus iniuriandi43, se refl eja en un fragmento de Ulpiano, D. 47, 10, 3 (Ulp. 56 ad ed.), en relación con la consideración de sujeto activo y pasivo del delito de iniuria:

41 Ibid., p. 482.42 La mayor parte de la doctrina considera como presupuesto de la iniuria el dolo cualifi cado, la inten-

ción clara de cometer la injuria condenable, pudiendo destacar a FERRINI, Diritto Penale, cit. p. 235; RABER, Grundlagen, cit. p. 108 ss.; DEVILLA, NNDI, 8, 1962, s.v. Iniuria; MARRONE, “Consider-azioni”, cit. p. 485, cuando afi rma: “Altri ancora erano i requisiti dell’offesa morale, affi nchè questa fosse giuridicamente repressa: requisiti obiettivi … e requisiti soggettivi (animus iniuriandi)”; KURYLOW-ICZ, “Paul. D. 47, 10, 26 und die Tatbestände der römischen Iniuria”, Labeo 33, 1987, p. 302.

43 Vid. al respecto, PLESCIA, “The development of iniuria”, cit. p. 272, en donde declara “Dolus (evil intent, animus iniuriandi)”, añadiendo en n. 6 que el dolo “need not be explicit, it may be presumed”.

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Illud relatum peraeque est eos, qui iniuriam pati possunt, et facere posse. §1.- Sane sunt quidam, qui facere non possunt, utputa furiosus et impubes, qui doli capax non est : namque hi pati iniuriam solent, non facere; quum enim iniuria ex affectu facientis consistat, consequens erit dicere, hos, sive pulsent, sive convicium dicant, iniuriam fecisse non videri44. § 2.-Itaque pati quis iniuriam, etiamsi non sentiat, potest, facere nemo, nisi qui scit, se iniuriam facere, etiamsi nesciat, cui faciat.§ 3.- Quare si quis per iocum percutiat, aut dum certat, iniuriarum non tenetur.§ 4.- Si quis hominem liberum caeciderit, dum putat servum suum, in ea causa est, ne iniuriarum teneatur.

Resulta meridianamente claro que la falta de animus iniuriandi en quien carece de capacidad, le exime de responsabilidad alguna, lo que sin duda apoya los argumentos de la necesaria presencia del ánimo de ofender a alguien, la intención dolosa de injuriar y causar un daño en otra persona. La necesidad del elemento intencional se refl eja así mismo en Paulo, D. 47, 10, 4 (50 ad. ed.)45: Si, quum servo meo pugnum ducere vellem, in proximo te stantem invitus percusserim, iniuriaum non teneor. A tenor de las palabras de Paulo podemos colegir que el dolus malus, resulta un elemento imprescindible para la confi guración del delito de injurias, pero, como dice Kaser46, el dolo no es un requisito que resulte necesario probar, ya que está implícito en el delito legalmente tipifi cado, y en consecuencia, probado el hecho, se tendrá por probado el dolo, lo que reafi rma que la explícita mención del mismo no haya sido requerida. Además del dolus malus, debe existir un hecho injurioso en clara correspondencia con el elemento subjetivo, pues al animus debe continuarle un elemento objetivo que puede incluso determinar que un supuesto sea considerado como iniuria y no como otro delito, como podría ser el damnum iniuria47.

44 IEn el mismo sentido, PS 5. 4. 2; vid. sobre la imputabilidad del infans y furiosus, FERRINI, “Espo-sizione storica e dottrinale del diritto penale romano”, en Enciclopedia del diritto penale, Milán, 1905, p. 39, en donde habla de la ausencia en las fuentes de un término equivalente al de imputación, existente en la teoría moderna del delito, ya que imputare tiene un signifi cado diferente. Pero a pesar de no estar elaborado dicho concepto, sí se observan casos de no imputabilidad del infans y del furiosus, como en Ulpiano D. 21, 1, 23, 2 (1 ad ed. aed. cur.); Paulo D. 50, 17, 108 (4 ad ed.) y D. 48, 10, 22, pr (lib. sing. ad sen. Lib.); HAGEMANN, Iniuria, cit. p. 102: “Die Kernaussage des ersten Paragraphen, es gebe Menschen, die keine iniuria verüben könnten, weil sie nicht doli capax seien und iniuria ex affectu faci-entis consistat, wird in § 2-4 erweitert: Nicht nur, wer generell nicht doli capax ist, begeht keine iniuria, sondern auch, wer im konkreten Fall nicht de entsprechenden dolus hat”.

45 Cfr. RABER, Grundlagen, cit. p. 110, cuando relaciona el pasaje de D. 47, 10, 3, con este de Paulo, para plantear a continuación una serie de interrogantes: “Doch geht es in diesem Zusammenhang weniger um eine Klärung dieses Problems als um die Feststellung, welche Tragweite der Satz cum enim iniuria ex affectu facientis consistat im klassischen Recht hatte. Galt er uneingeschränkt in dieser allgemeinen Formulierung, wöfur auch der Text von Paulus D. 47, 10, 4 spräche? Oder war sein Anwendungsbere-ich in sachlicher Hinsicht auf bestimmte Injurientatbestände, in persönlicher auf einzelne Personengrup-pen beschränkt? Worauf hatte sich der affectus des Täters zu beziehen? Welchen Inhalt hatte das Wort im Recht der iniuria? Wird es überhaupt in allen Injurienstellen in der gleichen Bedeutung verwendet?”.

46 KASER,“Typisiert dolus im altrömischen recht”, en BIDR 1962, p. 79 ss. 47 BIRKS, “Ulpian 18 ad edictum: introducing damnum iniuria”, en Collatio iuris romani. Études dédiées

à Hans Ankum, Amsterdam, 1995, p. 94 ss.

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Temas de Direito Privado452

Refi riéndonos ya en concreto al edicto de convicio, debemos destacar la presencia del elemento subjetivo o intencional. Para poder diferenciar conceptualmente nuestro ilícito debemos analizar la intención48 con la que se causa una lesión a otro sujeto, teniendo claro además que en este caso no se trata de un daño corporal, sino de una iniuria extra corpus, injuria verbal, que infl inge un resultado lesivo en otra persona pero no de carácter físico, sino referido a su honor, por cuanto lo que se busca es el menoscabo de su personalidad, el escarnio en presencia de otros a través del insulto realizado públicamente. Lo importante y esencial

48 Cfr. la defi nición de Servio sobre el dolo malo recogida en D. 4, 3. 1. 2, dentro del título denominado De dolo malo, dedicado específi camente a esta acepción, en donde habla del elemento intencional: Dolum malum Servius quidem ita defi niit, machinationem quandam alterius decipiendi causa, quum aliud simulatur, et aliud agitur; vid. en relación con esto, Ulpiano, en D. 2, 14, 7, 9, en donde reproduce la defi nición de Pedio sobre el dolus malus, en parte coincidente con la citada de Servio: Dolo malo ait Praetor pactum se non servaturum. Dolus malus fi t calliditate et fallacia, et ut ait Pedius, dolo malo pac-tum fi t, quoties circumscribendi alterius causa aliud agitur, et aliud agi simulatur ; sobre la autenticidad del pasaje de Servio dice CARCATERRA, Dolus bonus/Dolus malus. Esegesi di D. 4. 3. 1. 2-3, Nápoles 1970, p. 85: “Il passo di Pedio conferma l’autenticità della defi nitio di Servio”; añade en p. 88 n. 13 su desconcierto sobre la forma en que Ulpiano decide hablar sobre el dolo malo, eligiendo a Pedio en det-rimento de Labeón , cuya acepción conocía; interesante la lectura del trabajo de GIACCHI, “Per una biografía di Sesto Pedio”, en SDHI 62, 1996, p. 117, en donde analiza un fragmento del libro octavo ad edictum de Pedio recogido por Ulpiano en D. 4.3.1.4 (Ulp. 11 ad ed.) referente a la rúbrica edictal de dolo malo, cuyo tenor literal es el siguiente: Ait praetor: ‘si de his rebus alia actio non erit’. Merito prae-tor ita demum hanc actionem pollicetur, si alia non sit quoniam famosa actio non temere debuit a pre-tore decerni, si sit civilis vel honoraria, qua possit experiri: usque adeo, ut et Pedius libro octavo scribit, etiamsi interdictum sit quo quia experiri, vel exceptio qua se tueri possit, cessare hoc edictum. Idem et Pomponius libro vicensimo octavo, et adicit: et si stipulatione tutus sit quis, eum actionem da dolo habere non posse, ut puta si de dolo stipulatum sit. Idem Pomponius ait[…].La autora nos dice que en este texto se comenta la rúbrica edictal de dolo malo, a lo que añade: “Nella rubrica de dolo malo si determina-vano, tra l’altro, i presupposti necessari per la concessione dell’actio de dolo, strumento di carattere sus-sidiario che tutelava il soggetto vittima di un raggiro. Dopo aver riportato i verba edicti, Ulpiano ricorda le defi nizione del termine dolus date dalla giurisprudenza più antica: Servio e, in particolare, Labeone. Prosegue, poi, il commento concentrandosi sulle parole dell’editto si alia actio non erit. Il problema spe-cifi co che si impone all’attenzione del giurista è individuare l’ambito di applicazione dell’actio doli. Ulpi-ano, nel proporsi questo obiettivo, intende defi nire il carattere sussidiario di questo strumento di tutela e, in questo contesto, il giurista severiano ricorre al pensiero di Pedio per strutturare un punto importante della propria argomentazione. Come il testo ci ricorda, l’actio doli ha una applicabilità limitata dal fatto che si tratta di un’actio famosa. Parte della storiografi a romanistica, rispetto a questo carattere dell’actio doli, ha invece sottolineato maggiormente l’infl uenza che ebbero le circostanze nelle quali sorse l’istituto. Quest’ultimo, infatti, avrebbe tratto origine proprio dall’intento di dare tutela a quelle situazioni che ne fossero rimaste prive sulla base dei rimedi esistenti”; anteriormente, en la misma dirección, ALBANESE, “La sussidiarietà dell’actio de dolo”, en AUPA 28, 1961, p. 304 ss. en donde afi rma que el hecho de que la actio doli sea una acción infamante no es la causa de la subsidiariedad, , y que en D. 4. 3. 1 se trata de “un’osservazione stilizzata di Ulpiano, per sottolineare l’esigenza di cautela che il pretore impone a se stesso”; contra, GUARINO, “La sussidiarietà dell’actio de dolo”, en Labeo 8, 1962, p. 272, en donde sostiene que este argumento planteado para reafi rmar la genuinidad del pasaje, que lleva a “sminuire la portata giustifi cativa della sussidiarietà”, resulta poco convincente.

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El Edictum de Convicio 453

en este ilícito es la presencia o no del dolo49 en el autor del mismo, ya que la voluntariedad en el convicium, la intención clara de ofender a otra u otras personas es la que indica la imputabilidad o no del sujeto que profi era la injuria verbal. Además, el elemento subjetivo se ve acompañado en el caso concreto del convicium del requisito de la pluralidad de autores50 en la comisión del delito, por cuanto la palabra convicium nos refi ere la necesidad de varios sujetos que, con capacidad de actuar, y con la intención de injuriar a alguien, se dirigen en público, en grupo, en presencia de otros y con vociferación contra el sujeto pasivo, lo que sin duda causará un detrimento mayor en el honor del destinatario que si el ilícito se cometiese en otras circunstancias. Con todo, la necesaria conjunción de un plural animus iniuriandi en lo que se refi ere a los autores del ilícito debe ir acompañada de la imprescindible existencia de un sujeto o sujetos pasivos a quienes vaya inferida la ofensa. Resulta evidente que si se infi riese una injuria verbal sin concretar a quién se dirige el insulto del convicium, no produciría efecto alguno, por lo que tampoco se concede ninguna acción al efecto.

49 Sabiendo que no resulta tarea fácil el determinar la presencia o no del dolo, dado su carácter inten-cional; de acuerdo con esto, vid. BLANCH NOUGUÉS, J.M., “Nota a propósito de la actio de dolo y su carácter infamante”, en Estudios Homenaje a Juan Iglesias 3, Madrid 1988, p. 1153: “…la difi cultad añadida, que presentaba la actio de dolo, de la demostración de un elemento intencional como es el dolo, frente a la sencillez de tramitación de la correlativa actio in factum”; recientemente, CORBINO, “Ec-cezione di dolo generale: suoi precedenti”, en L’eccezione di dolo generale. Diritto romano e tradizione romanística, Padua, 2006, p. 44-45, cuando al hablar de la presencia del dolo en el procedimiento formulario, dice: “Ed è per questo, ritengo, che Cicerone attribuisce ad Aquilio Gallo come merito non quello di avere preso in considerazione il dolo … ma quello di avere prediposto ‘formule’… in grado di contrastarlo con effi cacia: Canio, dice il nostro, si era trovato nei guai perché nondum enim C. Aquilius, collega et familiaris meus, protulerat de dolo malo formulas (off. 3. 14. 60). Perché non vi erano insomma ancora quegli strumenti che avrebbero permesso allo stesso Cicerone di ricordare il proprio amico come colui che era stato, con le sue formule de dolo appunto, everriculum malitiarum omnium (de nat. deor.3. 30. 74). È solo la conceptio della formula che permette alla circostanza in difesa fatta valere (il dolo) di assumere un rilievo ‘decisivo’ (vincola il giudice a pronunziarsi conseguentemente)”.

50 Vid. al respecto la opinión de HENDRICKSON, “Convicium”, cit. p. 116 ss. en donde afi rma que la creencia de que convicium implica la presencia de una multitud o muchedumbre es claramente er-rónea, declarando en p. 119: “It is spun out of an assumed etymology, which Ulpian does not in fact entirely indorse, but merely advances in explanation of one aspect of his twofold conception of convi-cium. But while not accepting it unreservedly, he yet rests one leg of his structure upon it. This is the starting point of the modern doctrine, which, failing to note the alternatives, has accepted the idea of a plurality of voices or persons as the unqualifi ed teaching of the jurists. Convicium has necessarily no more to do with a plurality of utterance than has clamor, or the ancient pipulum and vagulatio, both of which are defi ned by convicium. To be sure a mob might shout insults at an individual, and these were convicia, not however, because they were shouted by a crowd or in chorus –quasi convocium, but because they were vehement expressions of hostile feeling- a concitatione, and meant to overwhelm (convincere); contra, WITTMANN, Die Körperverletzung an Freien im klassischen römischen Recht, Munich, 1972, p. 29, cuando afi rma: “convicium ist jedenfalls ursprünglich ein Schimpfkonzert, das von mehreren gegen jemanden veranstaltet wird”, dejando claro el espíritu colectivo de los que reali-zan una afrenta verbal contra otro; posteriormente, en “Die Entwicklungslinien”, cit. p. 308, en donde niega el ilícito realizado de forma individual, afi rmando que el edicto condena única y exclusivamente la actitud de una pluralidad de personas.

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Temas de Direito Privado454

El animus iniuriandi lleva implícito el deseo o la intención de causar un resultado lesivo en otra persona -por lo tanto determinada a priori- que es a la que van dirigidos los ataques verbales. Sin esa determinación previa del sujeto que va a ser el destinatario fi nal del convicium no se puede colegir que estemos ante la presencia de un supuesto ilícito, y por lo tanto, susceptible de ser perseguido.

Para poder condenar una determinada conducta, debe existir además una relación directa entre las palabras proferidas y la recepción de las mismas por parte del injuriado o agraviado con las mismas, y como hemos dicho anteriormente, debe tratarse de un sujeto concreto.

El elemento intencional es el requisito esencial para condenar la injuria verbal proferida, ante la cual el pretor concederá una acción, la actio iniuriarum, recordando la necesidad, en el caso concreto del convicium, que se realice en grupo y con vociferación51, ya que si no el animus iniuriandi se entendería referido al infamandi causa dictum, y no a nuestro edicto.

La naturaleza subjetiva de la protección concedida en el edictum de convicio demuestra la importancia del nexo causal entre la intención ínsita en el animus iniuriandi y el resultado lesivo que recibe el sujeto pasivo de una injuria verbal. Se castiga la intención con la que se profi ere el convicium, que debe realmente producir un menoscabo en el honor de alguien, que constituye el resultado querido por los autores del ilícito. Sin olvidar, en cualquier caso, la tarea harto difícil de identifi car a los que intervienen de forma activa en esta injuria verbal colectiva a la hora de atribuirles el correspondiente delito. Debe existir una relación de causa a efecto entre los autores de la injuria verbal y el resultado producido52, por lo que el elemento subjetivo del edictum de convicio nos informa de la necesaria responsabilidad subjetiva para tipifi car un acto como susceptible de ser perseguido y condenado cuando se realiza un convicium.

Para terminar, quiero incidir de nuevo en la singularidad de este edicto, conocido por la reconstrucción de Lenel53, y que reside precisamente en su propio nombre, convicium, que indica la presencia necesaria del elemento colectivo a la hora de cometer el delito perseguido. Con todo, nos encontramos ante un edicto poco conocido y menos estudiado que otros de contenido más general, de ahí que haya despertado mi interés en analizar jurídicamente el motivo de su existencia y el contenido de la protección edictal contenida en el mismo.

51 S Como se refl eja en las palabras de Ulpiano recogidas en D. 47, 10, 7, 5: Si mihi plures iniurias feceris, puta, turba et coetu facto domum alicuius introëas, et hoc facto effi ciatur, ut simul et convicium patiar…

52 Cfr. RODRÍGUEZ ENNES, “Refl exiones en torno a diversos delitos de Derecho honorario”, en El derecho penal: de Roma al derecho actual, VV. AA., Madrid, 2005, p. 530, cuando al hablar de la ac-ción edilicia de feris, afi rma: “Existe, pues, un nexo de causalidad, una relación de causa a efecto entre el autor material del factum y el resultado dañoso: responde única y exclusivamente el detentador del animal peligroso causante del daño. Se trata, por tanto, de una responsabilidad subjetiva en la que incur-rió el autor del daño, que con su conducta descuidada desencadenó el evento damnifi cador”.

53 En EP3, Leipzig, 1927, reimp. 1985.

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O EDITO DE CONVÍCIO

Resumo: Trata-se aqui de estudo sobre o edito de convício, um delito de injúria verbal realizada de forma coletiva, com a intenção clara de ofender a vítima, independentemente da sua presença no momento da ofensa. Ocorria quando se ofendiam os bons costumes, especialmente como mores huius civitatis. Tratava-se de um edito especial, ao qual se tem dado pouca atenção de modo individualizado, sendo nosso propósito o de identifi car os elementos objetivos e subjetivos, para que seja reconhecido como fi gura singular.

Palavras-chave: Iniuria. Edictum. Convicio. Bonos mores. Dolus.

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Notas Sobre la Abogacía en el Mundo Romano

Ad Doctorem Agerson Tabosa Pinto, Magistrum iuris, ex: amicitiae officio et suae sapientiae et magna-nimitatis admiratione.

Modesto Barcia LagoDoutor em Direito pela Universidade da Coruña (Espanha). Advogado.

Sumário: I. Un cierto aroma helénico. II. Introducción de la retórica en Roma. III. Oradores y juristas. IV. Etapas de formación del ofi cio. V. Patronazago liberal y remuneración de la actividad. VI. Reconocimiento del derecho a la remuneración del ejercicio de la Abogacía. VII. Reticencia y crítica social

Resumen: Parte el autor de los orígenes griegos de la oratoria forense romana, que daría lugar a la institucionalización de la profesión de la abogacía a través de una evolución en tres estadios delimitados, del “patronatus iudiciarius”, de la actividad liberal y del munus publicum integrado en las corporationes togatorum.

Palabras clave: Roma. Jurista. Abogacía.

IUN CIERTO AROMA HELÉNICO

Es un lugar común sintetizar la expresión del genio griego en la fi gura del fi lósofo y la del romano en la del jurista. Aunque no va descaminada la crítica que, acerca de la preterición del estudio del Derecho griego por la omnipresencia romanista, hacía PALAO HERRERO1, podemos, no obstante, asumir la tesis de LATORRE:

51 PALAO HERRERO, Juan: El sistema jurídico ático clásico. Dykinson, S.L. Madrid, 2007.

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Temas de Direito Privado458

La gran innovación de Roma fue la aparición de un grupo de ciudadanos especializados en estudiar y ayudar a resolver los problemas que planteaban aquellas necesidades sociales. Ellos fueron los juristas. El jurista como fi gura importante de la comunidad y como persona seriamente dedicada al estudio del Derecho aparece por primera vez en Roma2.

Pero las soluciones jurídicas exigen ser actuadas en el proceso3 y como apuntaba BARTOL refi riéndose a la diferencia entre las codifi caciones griegas y la Ley de las XII Tablas – que tal vez alguna inspiración habrían tenido de Solón el ateniense –, “mientras las leyes griegas son un catálogo de normas, la ley romana es el origen de un sistema jurídico basado en el proceso”3 y éste no es concebible sin la fi gura del defensor de la parte, actora o interpelada, concernida por la decisión del arbiter o iudex sobre la quaestio disputata4. El offi cium advocationis pasa, pues, a primer plano si se quiere entender la funcionalidad del sistema jurídico romano, aunque, claro está, se iría perfi lando en sucesivas etapas, desde la inicial del patronazgo honorario de los oradores no juristas, hasta alcanzar la fi sonomía defi nitiva de la profesionalidad, prestigio y reconocimiento institucional, que, pese a todas las reticencias de los poderes públicos y aparente descrédito social, conservará durante toda la historia hasta nuestros días, culminando una evolución que entronca con el magisterio de la actividad de los Rhétores judiciales de la Hélade, tan hábiles en la techne peithoús, en el arte de la persuasión, como al propio tiempo, peritos en los dicasterios, syndikoi, y conocedores del nomos5 y por ello nomikoi, juristas lato sensu, que ya unían esta condición a la genérica aptitud retórica, tan cultivada por la sofística como denostada por Platón, aun conservando el proceso griego la bipartición en dos fases, la anákrisis y el juicio, que en Roma excusaría, hasta el surgimiento de la cognitio extra ordinem, a los oratores forenses la condición de juristas, apartados éstos en cuanto tales del proceso judicial.

Así que hay que tomar cum grano salis afi rmaciones demasiado contundentes acerca de que Grecia nada tenía que enseñar en materia de Derecho y proceso, como sostiene, entre otros, FINLEY, porque, en su opinión, en las poleis, a diferencia de Roma, “nunca se desarrolló una clase de juristas profesionales, de modo que los jurados populares interpretaban la ley a la vez que determinaban los asuntos de hecho, guiados

2 LATORRE, Ángel: Iniciación a la lectura del Digesto. Editorial Dirosa, en colaboración con el Seminario de Derecho Romano de la Universidad de Barcelona, 1978. Publicación universitaria nº 3; pág. 16.

3 BARTOL, Francisco: La “Lex XII Tabularum ex Cicerone”. Revista de Derecho UNED, nº 1, 2006; pág. 385.

4 FUENTESECA DEGENEFFE, Margarita: La función jurisdiccional en Roma. Fundación Registral. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España, Madrid, 2008.

5 BARCIA LAGO, Modesto: Abogacía y Ciudadanía. Biografía de la Abogacía Ibérica. Dykinson, S.L. Madrid, 2007.

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Notas Sobre la Abogacía en el Mundo Romano 459

solamente por los discursos preparados para las partes por los abogados más o menos profesionales y por citas, dentro de los discursos, de leyes o decretos”6 , pues, en fi n, “Atenas no contaba con juristas en el propio sentido del término”7.

IIINTRODUCCIÓN DE LA RETÓRICA EN ROMA

Graecia capta, ferum victorem cepit. Puede ser, como dice LANE FOX, que Roma, “el pueblo más importante del futuro fuera investigado por los primeros seguidores de Alejandro, pero fue el menos comprendido”;8 no obstante, el verso horaciano, ya en la época augústea – sintetiza tanto lo que Roma debe a la Hélade, cuanto lo que rebasó de esta herencia, y en el tema que nos atañe, el acervo de la retórica – y muy en concreto la oratoria forense –, iba a convertirse en instrumento fundamental de ascenso económico y social de los homines novi, esos que el historiador de Oxford denomina “advenedizos acaudalados”9, que nutrían la clase de los potentiores; por más que el viejo Catón y los sectores conservadores del patriciado de la nobilitas clamasen contra la moda de pergraecari, es decir, contra la imitación de los usos y lujos helénicos – que desde el siglo III a.C. deslumbraron a los rústicos hijos de la loba capitolina en Sicilia, el sur de Italia y en el levante mediterráneo –; moda propiciada por el enriquecimiento derivado de la dinámica expansión conquistadora de la República romana y que seducía a la juventud acomodada, poniendo en crisis los valores tradicionales de la austera gravitas y los mores maiorum que conformaran la Ciudad de Rómulo.

Pero no podían ponerse puertas al campo. Pese a las iniciales prohibiciones y hasta expulsiones de maestros helenos, la explosión de entusiasmo helenístico, como cuentan Plutarco o Cicerón, que catalizó aquella famosa embajada del año 155 a.C. donde brilló el académico Carnéades, hizo de la educación retórica y del fi lohelenismo el referente de los “tiempos modernos” de una República que señoreaba el Mediterráneo sobre las cenizas de su vieja rival Cartago, fi nalmente destruida el 146 a.C.

Inicialmente cultivada en griego por la juventud acomodada de la nobilitas, que incluso hacía de las estancias de estudios en la propia Grecia marca diferencial de

6 FINLEY, M.I.: El Nacimiento de la Política. Editorial Crítica, S.A. Barcelona, 1986¸pág. 47.7 FINLEY, Moisés, I.: Vieja y nueva democracia. “Los demagogos atenienses”. Ariel, S.A. Barcelona,

1980; pág. 134.8 LANE FOX, Robin: El mundo clásico. La epopeya de Grecia y Roma. Crítica, S.L. Barcelona, 2007;

pág. 349.9 Ibídem; pág. 364.

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educación superior, ya desde el año 94 a.C. con la iniciativa de Plocio Galo se abrirían escuelas de Retórica en Roma10, en las que ésta ya se enseñaba en latín y se hacía accesible a estratos sociales inferiores, al tiempo que se escribirían manuales latinos, como la muy exitosa obra anónima Rethórica ad Herennium, y el ejercicio juvenil De Inventione ciceroniano, ambos con acusadas infl uencias del tratado de Hermágoras de Temnos y dentro de moldes aristotélicos. El de Arpino cultivaría una retórica forense en sus obras principales, pero, desde el siglo I al V d.C. dominará un escolasticismo desvinculado del compromiso político, como se constata en el “Diálogo sobre los oradores” de Tácito y la práctica va a decantarse en estilismo de las declamationes, como los doce libros de controversiae y los dos de suasoriae de Séneca “el Viejo”; si bien la retórica romana culminaría con la Institutio oratoria del hispano Quintiliano, de neta intención pedagógica de la bene dicendi scientia, que será modelo clásico del Humanismo, dejando defi nitivamente asentada la vieja defi nición de Catón “el Censor” del orador como vir bonus dicendi peritus.

IIIORADORES Y JURISTAS

Ni que decir tiene que, como ya ocurriera en Grecia, los Tribunales de Justicia de la República fueron lugares privilegiados en donde el dominio del ars oratoria por un patronus confería éxito en la defensa de las causas y fama pública, que podía cimentar un brillante cursus honorum, como fue el caso de Cicerón.

Estos patroni y oratores que actuaban en los procesos defendiendo las posiciones de las partes no eran en las primeras etapas, sin embargo, como pudiera pensarse, juristas, expertos en el ius. El propio Cicerón deja clara la displicencia con la que los oratores, integrantes de un estamento consciente de su fortaleza e infl ujo social, contemplaban a los cultivadores del ius (De offi ciis, II, 19), aunque éste no fuese desconocido para él, que tenía presente que el dicere retórico no podía disociarse del sapere – cuanto más amplio, no sólo derecho, mejor y es sobre este fondo que el propio Cicerón reformula la doctrina aristotélica en sus propios Tópica, o en el Brutus y en el “Orator” para expresar el ideal de magister dicendi, vinculado a la práctica del foro – en una profesión práctica como lo era la defensa de los intereses de los particulares.

La jurisprudencia, la ciencia del Derecho, primero ocupación de los Pontífi ces, pertenecientes al estamento aristocrático de los patricios, era una jurisprudencia “esotérica”, “in penetralibus pontifi cum, isto é, nos santuários dos pontífi ces”, como apunta TABOSA

10 Vide AGUDO RUIZ, Alfonso: Abogacía y Abogados. Un estudio histórico-jurídico. Universidad de La Rioja y Egido Editorial. Zaragoza 1997.

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PINTO11, pero se haría laica y plebeya, desde que, en el año 304 a.C., el liberto Gneo Flavio diese a la publicidad las fórmulas procesales y negociales – el denominado ius fl avianum, que el Colegio Pontifi cal guardaba en secreto –, de manera que, poco después, la lex Ogulnia permitió ya que los plebeyos accediesen a dicho Colegio.

Pues bien, si los responsa prudentium fueron parte principalísima en la creación del monumento del Derecho Romano12, sólido cimiento de nuestros sistemas jurídicos, a su lado una pléyade de laudatores, de patroni, y fundamentalmente de oratores, eran quienes en el foro abogaban por los intereses concretos de los ciudadanos cuyo patrocinio asumían. No eran, como se dijo, propiamente expertos conocedores del derecho, sino de la práctica procedimental y de los recursos emotivos de la oratoria, y por eso solicitaban dictámenes y opiniones jurídicas a los iurisprudentes, los intérpretes del ius.

La división de los procedimientos judiciales de las legis actiones y del agere per formulas, que desde el siglo II a.C. fue desplazando el excesivo formalismo y arcaísmo del anterior, en dos fases procesales, la fase denominada in iure y la referida apud iudicem, no hacía necesario el conocimiento jurídico al orator, que practicaba las pruebas de los hechos y realizaba, en defensa de los intereses de su cliente, el alegato público apud iudicem, ante el Tribunal, que estaba compuesto por jueces legos en Derecho, ante los que el patronus exhibía sus dotes oratorias para su persuasión, pero no se ocupaba de las cuestiones específi camente jurídicas; pues en la fase preliminar, la fase in iure, se había ya concretado la pertinente fórmula iuris y el petitum con ayuda del Jurisperito. La labor de estos oratores concernía, así, no al Derecho, reservado al prudens, sino a los hechos, que el jurista minusvaloraba, como lo hacía malhumorado Aquilio Galo: Nihil hoc ad ius, ad Ciceronem! al rechazar consultas sobre cuestiones fácticas, según relata el propio arpinate (Top. 12, 51).

IVETAPAS DE LA FORMACIÓN DEL OFICIO

La actividad de la postulatio pro aliis decantará en la advocatio, professio advocationis, dicho con más propiedad, offi cium advocationis, como dedicación específi ca del advocatus, término que, por su ajuste semántico, haría fortuna y se generalizaría para designar la fi gura profesional plenamente reconocida e institucionalizada. Es una evolución que avanzará en tres etapas bien reconocibles al compás de la evolución política y social del mundo romano.

11 TABOSA PINTO, Agerson: Direito Romano. FA 7-Facultade 7 de septembro; Fortaleza (Brasil), 2ª ediçâo, 2003; pág. 59.

12 DAZA MARTÍNEZ, Jesús/RODRÍGUEZ ENNES, Luis: Instituciones de Derecho civil romano. Jesús Daza, 2ª edición, Madrid, 1997; pág. 25.

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Se inicia este proceso con lo que cabe denominar patronatus iudiciarius, que, desde una fase primitiva de patronazgo nobiliario estricto, se caracteriza por una relación clientelar entre el patronus y el cliens, carente de cualquier vínculo contractual, en tanto que se asentaba en los deberes de la fi des y de la amicitia, y por consiguiente conllevando la gratuidad de los servicios rendidos por el patronus, que revertirían, naturalmente, en su prestigio e infl uencia social y política, apuntando, eso sí, su condición de orator a miras que excedían la estricta preocupación forense, pues, en el marco de los iura patronatus esperaba contar con agradecimiento de su benefi ciado cliente. Pero ello no excluía lo usual de recibir ciertas donationes ex beneffi cium, que podrían resultar bien remuneratorias, como Cicerón criticaba respecto de Quinto Hortensio, guardándose de su propia fortuna, y cuya creciente desnaturalización en la práctica llevaría a la prohibición establecida en la Lex Cincia de donis et muneribus el año 204 a.C. que, sin embargo, no podría, al cabo, impedir la remuneración de los servicios forenses de los oratores. Culmina esta fase hacia el fi nal de la República.

“Mas o patronato haverìa de acabar, e com ele a advocacia de elite (Brutus, Crassus, Antonius, etc.), a advocacia das arengas elaboradas nas técnicas puramente retóricas, a advocacia exercida sem profesionalismo”, dice FRANÇA MADEIRA13. La dinámica económico-social de la expansión republicana daba paso a una segunda etapa de desarrollo de una advocatio concebida como dedicación profesional marcada por el interés privado, una etapa ésta “liberal”, que cubriría los tiempos del Alto Imperio y transformaría el viejo patronatus iudiciarius en una verdadera proffessio advocationis, que conseguría afi anzarse como un honestus labor merecedor de una codigna remuneración, a la par que, paradójicamente, declinaría el prestigio de que gozara el patronazgo republicano mientras se fortalecía la funcionalidad social de la actividad de postulación forense.

A lo largo de esta segunda etapa, en la que, sin perjuicio de signifi cativas oscilaciones terminológicas con que se designaba la actividad y sus practicantes, causidicus, togatus, incluso scholasticus, que, no obstante, denotan matices particulares en su apreciación, se impuso la denominación de advocatus para designar a quienes ejercían la defensa forense de las partes, ya asumiendo la condición de juristas junto a la aptitud elocuente, pero perdiendo el prestigio que incorporaba el antiguo término de orator, ahora reservado para una élite cualifi cada de modo específi co en la retórica de exhibición y desvinculada de la práctica forense. Se distingue con precisión la fi gura profesional del advocatus respecto de la los jurisconsultos; lo aclaraba el texto de Ulpiano (“Digesto” 3.1.1.2 Ulp. 6 ad.ed.): “Abogar – postulare – es exponer ante el magistrado jurisdiccional la pretensión propia o la de un amigo, o rebatir la pretensión de otro.”

13 FRANÇA MADEIRA, Hélcio Maciel: História da Advocacia. Origens da profi ssâo de advogado no direito romano. Editora Revista dos Tribunais Ltda. Sâo Paulo-Brasil, 2002; pág. 49.

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Por eso, completaba el matiz en otro apartado (“Digesto” 50.13.1.11 Ulp. 8 de omn.trib.) diciendo: “Debemos considerar abogados a los que se dedican a la defensa de las causas; no se tendrán por abogados, sin embargo, a los que suelen recibir algo por su consulta sin intervenir en las causas.”

Así, pues, son diferentes actividades y no pueden confundirse el dictamen y la postulación forense; primariamente, abogar es defender en juicio, disputatio fori.

La denominación de advocatus iría desplazando insensiblemente a la de causidicus, pues este término incorporaba un matiz peyorativo referido al “picapleitos” o simple practicón forense, cuando aquél sumó a su habilidad retórica el conocimiento de la ciencia jurídica. Porque aunque el abogado no pudiese, inicialmente, dar responsa como el jurisconsulto a quien solicitaba dictamen sobre la cuestión a debatir en el foro, no puede sorprender el hecho de que, naturalmente, en su función de defensa iba aneja, inevitablemente, una evaluación de las perspectivas de éxito de la posición del cliente y el consejo o asesoramiento al respecto; como, por lo demás, ya había ocurrido en la Atenas clásica con los logógrafos, que, como expertos juristas, rhétores nomikoi, preparaban los discursos forenses que, desde Solón, las partes declamaban por sí o asistidas de un synégoro, ante los tribunales de jurados populares14.

Para el orador forense, el conocimiento del Derecho, si en cualquier caso conveniente, como demuestra el ejemplo ciceroniano y patentiza la propia dinámica profesional, se hizo inexcusable al surgir en la época del Principado el nuevo procedimiento de la cognitio extra ordinem, que iría apartando al formular.

En efecto, el nuevo proceso extraordinario operaba la refundición en una sola fase procesal de las dos, in iure y apud iudicem, de que constaban los procesos anteriores y ya no era posible disociar el argumento jurídico de la exposición fáctica. Tanto más, cuanto que se iba a acentuar la burocratización del aparato judicial imperial encomendado a jueces funcionarios y no a legos como en época republicana15. El advocatus resumiendo en su fi gura los antiguos papeles del patronus y del orator,añadió, en consecuencia, la condición de iuris peritus, ejerciendo, así, los tres cometidos clásicos del agere, respondere y cavere. De forma que, andando el tiempo la abogacía iba incorporar a su primaria función oratoria, también la dimensión jurisconsulta.

Y lo haría confi gurando ya defi nitivamente el concepto del ofi cio con otras dos notas peculiares que deben destacarse: a) la independencia y libertad de criterio profesional del abogado; particularidad contra la que van a estrellarse todas las

14 BARCIA LAGO, Modesto: Abogacía y ciudadanía. Biografía de la Abogacía ibérica. Editorial Dykinson, S.L. Madrid, 2007.

15 FERNÁNDEZ DE BJUJÁN, Antonio: Derecho Público Romano. Recepción, Jurisdicción y Arbitraje. Edi-torial aranzadi, S.A. Navarra, 9ª edición, 2006; pág. 501.

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tentativas de control externo de su actividad, de una parte, y b) la exclusividad de su ministerio, es decir, el monopolio profesional de su cometido, de otra.

Así, respecto de la primera característica, un texto de Paulo (D.3, 3,77) proclama: “Todo el que es defendido debe serlo al arbitrio de buen varón.”

Respecto de la segunda, pronto quedó claro (D. 3.1.1 Pr. Ulp. 6, ad ed.), que solamente quienes estuviesen autorizados podrían abogar: “El pretor estableció este título para hacer valer su decoro y velar por su dignidad, evitando que abogase ante él un cualquiera.”

El trabajo del advocatus, pues, como ha estudiado con su habitual rigor RODRÍGUEZ ENNES16, se diferenciaba netamente de otras profesiones de menor rango social, como el pragmaticus, el leguleius y el formularius, dedicaciones todas que cumplían cometidos complementarios o auxiliares de la labor de aquél.

El tiempo del Bajo Imperio contempla el devenir de la tercera fase evolutiva, caracterizada por una reglamentación intensa y creciente del ofi cio y su estructuración corporativa en los ordines advocatorum derivada de la envoltura burocrática del Poder público, que concibe la abogacía como un munus publicum que le resulta ya imprescindible y que, paralelamente, se muestra preocupado por la conveniente formación jurídica y moral de los ofi ciantes, dando lugar a la creación de las escuelas, demandadas ya por los aspirantes, pues el prestigio que fue alcanzando el ofi cio hizo surgir la práctica de la “pasantía” de los jóvenes, que deseosos de iniciarse en los secretos del foro, seguían a sus maestros en el Tirocinium fori y en las Stationes ius publice docentium aut respondentium, y, después de la división del Imperio, se formarían en las prestigiosas Escuelas de Beirut y de Constantinopla, entre otras de menor importancia, así como la constitución Omnem reipublicae contiene el plan de estudios de Justiniano17.

Pero, pese a la cuasi funcionarización de los abogados, defenderían éstos su independencia profesional incardinándola en la conciencia de servicio público, si es que esta expresión anacrónica nos es permitida, transformando, ya para siempre, la profesión en un ministerio público ejercido con autonomía por profesionales particulares, sin perjuicio de las oscilaciones que la tensión entre la base privada y la función pública de la profesión introducía en la sempiterna reticencia con que desde el Poder se contemplaba la indisciplinada libertad de abogar y los sucesivos intentos de control e intervención administrativa de la misma.

16 RODRÍGUEZ ENNES, Luis: La remuneración de la oratoria forense: del rechazo inicial a su acep-tación social y normativa. Contribución publicada en Studi in memoria di Giambattista Pallomeni; publicazioni della Facolta di Giurisprudenza della Universita di Trieste, núm.44. Milano-Dott. A. Giufre Editore, 1999.

17 GARCÍA GARRIDO, Manuel Jesús/EUGENIO, Francisco: Estudios de Derecho y Formación de Juristas. Editorial Dykinson, S.L. Madrid, 1990.

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VPATRONAZGO LIBERAL Y REMUNERACIÓN DE LA ACTIVIDAD

Importa destacar que el patronazgo patricio tenía inicialmente el carácter de un mecenazgo protector del inmigrante peregrino, que así se convertía en cliente, protegido, de un civis romanus persona de relieve e infl uencia social. La prestación de protección a su cliente era un ars liberalis, ejercido gratuitamente por el patronus como carga – onus – inexcusable de su condición patricia, por lo que no podía ser actividad mercenaria; aunque, obviamente, su desarrollo en el foro daba ocasión al patronus para el lucimiento, que le reportaba consideración social – honos – e infl uencia política; la relación clientelar venia defi nida por el conjunto de los iura patronatus – una especie de estatuto de vasallaje – que, entre otras servidumbres y gabelas, iba acompañado del abono de una retribución no exigible – el honorarium –, por contraposición a la retribución ordinaria del salarium, propia de las operae o artes illiberales, preservándose así el carácter de gratuidad característico de las artes ingenuae, vinculadas al concepto de amicitia, derivado de la noción aristotélica de fi lia, ese “ser otro yo mismo” que glosaba LLEDÓ comentando la expresión del autor de la “Ética eudemia” (VII, 30) y que Cicerón recoge diciendo (De Amicitia VII,23) que verum enim amicum qui intuetur, tanquam exemplar aliquod intuetur sui.

Esta relación desigual y vasallática entre el patrono y su cliente la defi ne Plutarco con precisión:

...pero aun se distinguió de otro modo a los principales respecto de ésta (la plebe), llamándolos patronos, esto es, protectores; y a los plebeyos, clientes, como dependientes o colonos, estableciendo al mismo tiempo entre unos y otros una admirable benevolencia, fecunda en recíprocos benefi cios; porque aquéllos se constituían abogados y protectores de éstos en sus pleitos, y sus consejeros y tutores en todos los negocios; y éstos los reverenciaban, no sólo tributándoles obsequio, sino dotando a las hijas de los que venían a menos y pagaban sus deudas; y a atestiguar no se obligaba, ni por ley ni por los magistrados, o al patrono contra el cliente o al cliente contra el patrono. Ahora, últimamente, con quedar las mismas obligaciones de unos y otros, se ha considerado ignominioso y torpe el que los poderosos reciban retribución pecuniaria de los clientes19.

Sin embargo, otra vez de modo semejante a lo que ya había ocurrido en Atenas con los logógrafos y los synégoros, no podía mantenerse la gratuidad de los servicios jurídicos, cuando el notable incremento de la litigiosidad, propiciada por el desarrollo

18 LLEDÓ, Emilio: Memoria de la Ética. Santillana, S.A. Taurus, Madrid, 1994; pág. 108.19 PLUTARCO: Vidas paralelas. Cicerón, En Biógrafos Griegos; pág, 911.

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económico y social, planteaba la necesidad de satisfacer la creciente demanda de servicios forenses; demanda social reforzada por la extensión, cada vez mayor, hasta hacerse general con el Edicto de Caracalla, del 212 d.C., que solamente excluyó de ella a los dediticii, rebeldes a la autoridad de Roma, del estatuto de ciudadanía20 y por el enriquecimiento y ascenso social de un gran número de ofi ciantes, advocati, causidici y otros relacionados, la mayoría de extracción social plebeya y carentes de otros recursos propios que no fueran los obtenidos con su dedicación profesional, que se integraban en la categoría de homines novi – clase de la que Cicerón sería el paradigma – surgidos al calor del desarrollo y que ejercían una infl uencia social y política notable.

En estas circunstancias, aunque la lex Cincia de donis et muneribus, del año 204 a.C., en tiempos republicanos, lo había prohibido expresamente, se imponía la costumbre, como quedó dicho más atrás, de percibir una remuneración habitual por la prestación de tales servicios forenses, bien que fuese disfrazada de gratifi cación no mercenaria.

Aunque, obviamente, no todos tenían la misma fortuna, como refi ere Marcial en sus epigramas (Epigr. XII, 72; IV, 46), lo mismo que Juvenal (Saturae VII, 119), el ofi cio podía ser bien remunerador y así lo acredita Tacito el historiador en un “Diálogo sobre los oradores”, destacando, en una tertulia de abogados prestigiosos, como dos de los más famosos, Eprio Marcelo y Crispo Vibio, habían logrado un patrimonio personal de doscientos y trescientos millones de sestercios, respectivamente, “por la gratifi cación a su elocuencia”, y subraya la baja extracción social de tales oradores, para resaltar la importancia de este arte, diciendo:

Cuanto más humilde e ínfi mo fue su nacimiento y cuanto más notable fue la pobreza y lo precario de la situación que los rodeó al nacer, tanto más ilustres son sus ejemplos para demostrar la utilidad de la oratoria, porque sin apoyo en su linaje, sin fortuna que los respalde, sin sobresalir ninguno de los dos por sus hábitos y nada favorecido uno de ellos por su aspecto físico, son durante muchos años ya los más infl uyentes de la ciudad y, mientras quisieron, los príncipes del foro, y ahora son los primeros en la amistad del César, tienen todo en sus manos y son apreciados por el mismo príncipe con un especial respeto, porque Vespasiano, anciano venerable y que no se ofende nunca con la verdad, se dio perfecta cuenta de que, mientras sus restantes amigos se apoyaban en lo que habían recibido de él mismo y en lo que estaba dispuesto a acumular en ellos mismos o destinar a otros, Marcelo y Crispo habían aportado con su amistad lo que no habían recibido, ni podía serlo del Príncipe.

Y por eso, concluía su alegato: “Podemos ver cargados de honores, distinciones y riquezas las casas de quienes, desde el comienzo de su juventud, se entregaron a las causas forenses y a su afi ción por la oratoria’21.

20 Para el proceso de incorporación de los hispanos a la ciudadanía romana, véase la magnífi ca monografía de BRAVO BOSCH, Mª José: El largo camino de los hispani hacia la ciudadanía. Dykinson, S.L. Madrid, 2008.

21 TACITO: Diálogo sobre los oradores, 8,3 y 4.

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Es así, que el parejo incremento de la infl uencia de los abogados plebeyos, signo del ascenso social de los homines novi cual lo era Cicerón, se dobla con las tensiones sociales y políticas que recorren la tardo República – cuya historia secreta, como dijera Carlos Marx, radica en la propiedad de la tierra – y el Imperio.

El hispano Marco Valerio Marcial, cuyo talento literario se ofendía con la ordinariez de las ínfulas poéticas de Flaco, le recomendaba con desprecio que se dedicase por entero al ofi cio forense, diciéndole que “el foro de Roma está más cerca y es más rico; allí suena el dinero”, dejando caer, de paso, la inmoralidad que lo animaba, de modo que las personas honestas no tenían lugar en Roma y solamente, “si eres bueno, puedes vivir, Sexto, de milagro”22, aunque también reconocía los benefi cios de la profesionalidad (Epigr.I, 17).

El mismo Tacito da cuenta en los “Anales”, del disgusto con que los sectores aristocráticos soportaban el dinamismo profesional que enriquecía y ennoblecía a un estamento plebeyo, cuya dedicación al ofi cio de abogar lo era con todo descaro mediante la contrapartida de crecidas retribuciones, en contravención pública de la antigua Lex Cincia caída en desuso. El propio historiador se complace en la percepción aristocrática, según la cual, “por entonces no había mercancía más venal que la perfi dia de los abogados”23 y Ovidio descargaría la rabia de su decepción amorosa con un símil acaído, del mismo modo era indecoroso ofrecer amores mercenarios que era deshonesto defender a los miserables con lengua comprada: turpe, reos empta miseros defendere lingua (“Amores” I, 10, 35).

VIRECONOCIMIENTO DEL DERECHO A LA REMUNERACIÓN

DEL EJERCICIO DE LA ABOGACÍA

La tensión había estallado con ocasión del suicidio de un insigne caballero romano, Samio, al que un afamado y amoral abogado de extracción social plebeya, Suilio, le había cobrado cuatrocientos mil sestercios y se planteó por ello la revalidación de la vieja prohibición del ejercicio forense mercenario; prohibición, como sabemos, ligada al carácter patricio de la actividad de los oratores.

Sobre la base de su propia potencia económica, las clases aristocráticas terrate-nientes argumentaban, por boca del Cónsul Gayo Silio, la nobleza del patrocinio como ars ingenua, porque en los viejos tiempos de las relaciones regidas por los iura -patronatus se había “considerado la fama y la gloria en la posteridad como premio

22 MARCIAL: epigramas, 1,76.23 TACITO, Cornelio: Anales. Libro XI, 5.

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de la elocuencia”, pues de otra manera, “la más hermosa y la principal de las artes liberales quedaba mancillada por sórdidas mercaderías”24.

Por eso, un auténtico “Príncipe del Foro” como Cicerón, según cuenta Plutarco, reprochaba a su colega Quinto Hortensio que percibiese retribución por sus defensas, ya que la actividad del orador forense solamente perseguiría procurar un benefi cium, y consiguientemente, habría de ejercerse gratuitamente a favor de la colectividad; aunque no dejaba de ser un reproche un tanto hipócrita, pues el propio preclaro orador no desdeñaba, por su parte, aceptar valiosos donativos por sus defensas, que le procuraban un saneado patrimonio.

Pero, lo cierto es que los conservadores optimates, a los que tanto cuidaba Cicerón, asumían esta posición y así el inquisitivo Cónsul Gayo Silio arguía fogoso en su alegato contra Suilio y los otros, que, “si los pleitos no se hacían en provecho de nadie, habría menos”, mientras que el afán de lucro de los advocati era altamente pernicioso, porque con él se favorecían las enemistades, las acusaciones, los odios y las injusticias, de manera que, al igual que la virulencia de las enfermedades proporciona ganancias a los médicos, así también la podredumbre del foro les suponía dinero a los Abogados25.

Es decir, para los críticos patricios del ofi cio, los abogados, cual carroñeros, se alimentaban de las miserias de la sociedad, si es que no eran ellos mismos quienes provocaban la existencia de los pleitos para lucrarse a cuenta de los incautos que acudían a recabar sus pérfi dos servicios; no serían, pues, las discrepancias y contradicción de intereses entre los ciudadanos en una sociedad dinámica, las que hacían nacer la abundante confl ictividad, cuya resolución en términos jurídicos aquéllos profesionales del foro canalizaban ante los tribunales desde la perspectiva que convenía, claro está, a sus clientes.

Nihil novum sub sole. Es ésta una recriminación que se repetirá constantemente a lo largo de la historia y llega a nuestros días.

Sin embargo, ello no dejaba de ser el velo ideológico que ocultaba la ambición reaccionaria de volver a las antiguas costumbres del clientelismo servil de los estamentos plebeyos en favor de las clases patricias. Como apuntaba Mesala en el citado “Diálogo” tacitiano, una oratoria profesional, aprendida en las escuelas de retórica, que buscaba el efecto demagógico antes que el benefi cium público, era una corrupción de la verdadera ars oratoria practicada por los antiguos y, en realidad, en su opinión, resultaba contraproducente para el buen orden social:

24 TACITO: Anales, Libro XI, 6.25 Ibídem.

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Pues bien, hubiera sido mejor no tener motivos de queja que reclamar justicia. Porque si pudiera lograrse una ciudad en la que nadie cometiera faltas, superfl uo resultaría el orador entre inocentes, lo mismo que un médico entre gente sana; igual que el arte del médico no encuentra posibilidad de práctica y perfeccionamiento entre personas que disfrutan de una salud robusta y de unos cuerpos sanos, en el mismo grado es menor el prestigio de los oradores y más oscura su gloria entre gentes de buena conducta y bien dispuesta para obedecer a sus gobernantes. ¿Qué necesidad tiene el senado de largos debates cuando los optimates llegan a un rápido acuerdo?¿Qué necesidad de continuas peroratas en la asamblea del pueblo cuando en las deliberaciones no participa la masa ignorante, sino un caudillo de enorme categoría? ¿Qué necesidad de acusaciones particulares, cuando se delinque tan escasa y levemente? ¿Qué necesidad de defensas odiosas y abusivas, cuando la clemencia del juez acude en ayuda de los acusados?26

Reverberan en este debate ecos antiguos, pero lo que nos atañe en esta polémica romana sobre la profesionalización retribuida de los abogados, es destacar el argumento con que Suilio, Cosuciano y los demás imputados por cobrar por su patrocinio honorarios crecidos, desvirtuando la primitiva liberalidad patricia inherente a esa dedicación, defendían animosamente la licitud de la remuneración de sus servicios; en su opinión, en realidad, los cobros por una dedicación que les suponía el esfuerzo de estudio constante y el abandono de sus asuntos particulares para atender los ajenos, no eran otra cosa que los emolumenta pacis; ésto es, la condigna retribución de un trabajo útil en una sociedad de ciudadanos libres.

Porque, ¿de qué servirían las leyes sin el abogado que las hiciese valer ante el Tribunal? Quintiliano, el famoso orador y maestro de oratoria hispano, respondería sentencioso: “El hecho es que las mismas leyes no tendrían valor alguno si no estuviesen defendidas por la voz idónea del abogado”.

Pues, en defi nitiva, destacaban en su defensa Suilio y Cosuciano, con su actividad profesional, “lo que se hacía era proporcionar un apoyo a la necesidad práctica, de manera que nadie se encontrara a merced de los poderosos por falta de abogados” – argumento que hará suyo el Rey Alfonso X el Sabio en “las Partidas” (III, título VI, preámbulo) y que ya había esgrimido el rhétor Hipérides en sus brillantes piezas retóricas forenses en la Atenas del siglo IV a.C. (“Defensa de Licofrón”, 10; “Defensa de Euxenipo”, XXV, 11) –, al mismo tiempo que un modo legítimo de ascenso social de los plebeyos “que resplandecían en la abogacía”, y que carecían de las grandes fortunas que les facilitaran, como a los famosos Asinio, Mesala, Esernio o Arruncio, que sus detractores ponían de ejemplo de nobleza y gloria oratoria, “haber adoptado un aire magnánimo” de liberalidad, ya fuese por volver colmados de riquezas y honores alcanzados en botines y rapiñas de guerra, o bien por haber heredado patrimonios cuantiosos.

24 TACITO: Diálogo sobre los oradores, 41,3 y 4.

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Pero los abogados, militantes profesionales, en fi n, de la causa de la convivencia cívica, “no eran más que unos modestos senadores que en una república tranquila no buscaban más que las recompensas propias de la paz”27.

El desenlace se decantó por la licitud del cobro remuneratorio y, cierto que un tanto a regañadientes, el Emperador Claudio aceptó el derecho a percibir retribución, aunque rebajó la crecida minuta, reduciéndola a diez mil sestercios, que en lo sucesivo serviría de parámetro de la licita quantitas. Se habría de consolidar la legitimidad plena de la percepción de retribución por los servicios forenses, en los avatares de un camino que pasaría por Nerón, quien, pese al recrudecimiento del antiguo rigor de la vieja Lex Cincia en su tiempo, llega, no obstante, a reconocer el derecho de los abogados a una certa et iusta merces y se llegaría a tomar la referencia de un cierto valor de mercado; incluso Trajano ya admitirá el cobro de percepciones anticipadas, provisiones de fondos que garantizaban el cobro a clientes reacios como ya criticaba Marcial (“Epigr.” I, 98), en un incidente protagonizado por el abogado Nominato; aunque el derecho de retribución de los abogados, como otros productos y servicios en el contexto de crisis social y económica del Imperio, sufriría las limitaciones del Edictum de pretiis rerum de Diocleciano, y por fi n se articulará la exigibilidad procesal del pago a través del procedimiento de la cognitio extra ordinem28.

De manera que el ejercicio remunerado de la Abogacía se convertiría, como constata Quintiliano en su “institución oratoria”, al fi n en un honestus labor, preguntándose el calahorrense quae iustior adquirendi ratio quam ex honestisimo labore, por estimar que la defensa forense era el modo más digno de ganarse la vida (Inst. orat.12).

Así se desprende ya de la tesis que Tacito pone en boca de Marco Apro, uno de los contertulios de su mencionado “Diálogo sobre los oradores”, reprochando a su ilustre compañero de oratoria forense Curiacio Materno, el preferir “las salas de lectura y los teatros al foro y los pleitos, a las auténticas luchas”29, evadiéndose de las “fatigas del foro”30 y de la notoriedad e infl uencia pública que esta profesión reportaba por solazarse en el diletantismo poético.

27 TACITO: Anales, XI, 11, 7.28 Cfr. Alfonso AGUDO RUIZ: Abogacía y Abogados. Un estudio histórico-jurídico. Universidad de La

Rioja y Egido Editorial; Logroño-Zaragoza, 1997. 29 TACITO: Diálogo sobre los oradores, 10, 5.30 Ibidem, 11,3.

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VIIRETICENCIA Y CRÍTICA SOCIAL

No extraña que, al quebrar el corsé patricio y constituirse el ejercicio de la Abogacía como ofi cio profesional remunerativo, abierto al estamento plebeyo, si la vieja ars oratoria se ensalzaba, en palabras de Cicerón, reclamando la preeminencia de la toga sobre la milicia y recabando para ella los laureles de la gloria cívica – cedant armae, togae; concedant laurea, laudi (De Offi ciis I,XXII,77) –, suscitase la fi gura del abogado una gran desconfi anza, e incluso hostilidad y animadversión, caracterizándosele, desde entonces para toda la posteridad, como personaje codicioso, favorecedor de la querulancia, cínico, inmoral, jactancioso y engañador de quienes a él acudían incautamente en busca de consejo o defensa jurídica, experto en retorcer la ley para su propio provecho y benefi cio, en vez de colaborar a la realización de la justicia.

Pero era cierto que, cuando la actividad del patrocinio forense rompió el marco patricio, en el que la liberalidad, gratuidad del servicio, venía a ser elemento esencial de una relación asimétrica de vasallaje entre el patrono y su cliente, y se hizo lucida y remunerativa, el incontrolado afán de lucro se convirtió en polo de atracción de un sin fi n de pícaros, cuya venalidad y codicia, no atemperadas por la solvencia de conocimientos, ni por la virtud cívica del servicio público, dio ocasión a la lógica desconfi anza hacia un ofi cio que, se presentaba afeado por la perversión de muchos de sus practicantes, suscitando la recriminación social e institucional. Y si Juvenal reconocía (Saturae, XVI, 47) lentaque fori pugnamus arena, criticando los privilegios forenses militares, porque ciertamente los ciudadanos corrientes luchan “en la arena viscosa del foro”, en donde el tribunal no está menos empapado de las pasiones de los litigantes que el circo lo estaba de la sangre de los gladiadores, los literatos, como el propio Juvenal, Lucilio o Marcial, no se anduvieron con remilgos en la sátira y crítica destemplada de los malos usos del ofi cio, aunque, muchas veces, resultasen aquellas sarcásticas descalifi caciones más expresión de su incomodo particular que objetivas invectivas contra las disfunciones del foro, como puede advertirse en el disgusto de Apuleyo contra la “locuacidad mercenaria” (“Apología”, 3) que le difamaba.

No debe extrañar la reticencia oficial y el intento de encorsetar con normativa casuística la labor de los abogados. Su independencia profesional, si pronto sirvió a muchos oficiantes, claro, de cobertura de actitudes indignas, no puede agradar, en general, a los rectores de la cosa pública. De ahí que se dictase un corpus normativo regulador de su intervención forense y de control de sus retribuciones, prohibiéndose el pacto de quota litis, que el Digesto califica de malus mos, tildándolo el calahorrense Quintiliano de piraticus mos, considerándose ilícita la costumbre de vincular el éxito de la acción al cobro de honorarios subidos —el palmarium— y descalificándose con severidad al abogado que incurría en esa práctica denominándolo avarus et avidus aeris. Criterios deontológicos estas

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prohibiciones de la quota litis y del palmarium, que han llegado hasta nuestros días, en que el viento neoliberal de la “desregulación” los ha barrido, con dudosa ventaja, por cierto, para los ciudadanos que utilizan esos servicios profesionales.

Pero ya se sabe por el refrán que, “hecha la ley, hecha la trampa”, y como habría de recoger el dicho popular español, “da elocuencia al abogado el dinero ya contado”. Las limitaciones al tiempo de exposición de los oratores, medido por la clepsidra, un reloj de agua ya empleado en Grecia, no impedía rellenar el líquido consumido de aquélla, cuando la indolencia del juez lo consentía, o el interés del discurso así lo requería; lo que la experiencia del vulgo enseguida tradujo como parejo aumento de los honorarios del profesional, en la expresión malévolamente intencionada de “dar más agua al abogado” con el propósito de estimular su efi caz facundia; pues, según el testimonio de Tacito en su “Diálogo” comentado, “en nuestros tiempos, el juez se adelanta al que está hablando y, si no queda convencido y seducido por el desarrollo de los argumentos, o por el colorido de las sentencias, o por el brillo y cuidado de las descripciones, le vuelve la espalda”31, acuciándose, de este modo, en los profesionales una preparación en la elocuencia, pero también en la desfachatez de ataques a personajes renombrados, ya que el público estimaba la osadía y “hasta los comediantes se servían de los gustos del pueblo”32. Ello fácilmente degeneraba en detrimento del fondo de justicia de los argumentos, según la queja de Mesala, y Salustio observa que canina, ut ait Appius, facundia exercebatur, es decir, “se practicaba, como afi rma Apio, una elocuencia malhumorada” (“Fragmentos de Historia” 4, 54).

Quintiliano exhortaba a guardar “el mayor cuidado posible al hablar en público” para servir con diligencia a la causa que el abogado ha de defender consejo que haría suyo el Rey Alfonso X el Sabio cuando en “Las Partidas” ordenaba que el abogado “debe fablar ante el juez mansamente, e en buena manera, e non a grandes bozes, nin tan baxo que non lo puedan oyr” (Partida III, título VI, ley VII). Aunque Plinio el Joven era de la opinión de que “la primera virtud de la que un juez debe responder ante su conciencia es la paciencia, que constituye uno de los elementos fundamentales de la justicia” y por eso se mostraba generoso concediendo el máximo de clepsidras, aunque era consciente de que, en ocasiones, podría ser un tiempo de mera divagación, diciendo que “lo admito sin más, pero es preferible que se digan cosas superfl uas a que no se digan las necesarias”, y recomendaba, con imágenes de experiencia campesina, que en el alegato judicial se sembrase esparciendo semillas sobre un vasto terreno para recoger lo que germinase, porque, a fi n de cuentas, “las disposiciones de los jueces son tan imprevisibles, inciertas y engañosas como las del tiempo y del terreno33.

31 TACITO: Diálogo sobre los oradores, 20, 2.32 Ibidem, 40.33 PLINIO el Joven: Cartas, I, 20 (a Cornelio Tacito).

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Igualmente, también se reveló harto difícil la erradicación de los malos mores en la percepción de las retribuciones y otros abusos y distorsiones, a que la complicidad de las codicias de los propios clientes, cuando no la corrupción de los encargados de impartir justicia, daba ocasión y estímulo.

Así, no cejarían los Poderes Públicos de intentar el control y sometimiento de la actividad y de las retribuciones de los abogados, siempre antipáticos por su independencia, por otra parte, timbre de grandeza del ofi cio, frecuentemente incomprendido en su verdadera signifi cación de muralla defensiva de la ciudad.

Por eso, más allá de los motivos personales y hasta mezquinos de muchos de los denuestos de la opinión pública ofi cial o del “parnasso”, pues ya se sabe que, de acuerdo con el refrán gallego, “cada quén fala da feira segundo lle foi nela”, lo importante de esta crítica social que vehicula la literatura satírica, y que retomará con brillantez el sarcasmo de la novela picaresca y del teatro de “de cordel” del siglo de oro ibérico, es la madurez interna que demuestra, pues asume ya los matices profesionales expuestos por Cicerón en De Offi ciis, distinguiendo los cometidos del juez y del abogado como piezas de un sistema que busca realizar el Derecho como ars boni et aequi, en la bella expresión de Celso; de manera que, para el eximio orator romano (De Offi ciis, II, 14, 51), iudicis est semper in causis verum sequi; patroni nonnumquam verisimile, etiam si minus sit verum, defendere; es decir, si en todo caso el juez debe perseguir la verdad, al abogado incumbe defender lo verosímil, aunque a fi n de cuentas no sea toda la verdad, sino la parte de ella que interesa al derecho del cliente, ya que, de otro modo, si como dice el adagio, de veritate magis quam de victoria, solliciti esse debent causarum patroni, si los defensores de las causas debieran perseguir la verdad más que la victoria, se estaría confundiendo – como le sucedía a Platón en su crítica a los sofi stas, pero también puede advertirse en la desconfi anza del formalismo escriturario egipcio contra la oratoria forense, como cuenta Diod. Sículo (“Bibl. Hist.” I, 76, 2)–, el proceso judicial, contradictorio, con juegos fl orales de jurisprudencia a cuenta de los intereses de los litigantes; una tentación que se repetirá a lo largo de la historia entre quienes preferirían no tener que confrontar en términos de debate de derecho las decisiones del Poder, sino solamente vestirlas con el adorno de la apariencia.

Por eso la crítica se dirige contra las desviaciones respecto del canon de comportamiento decoroso y ético que en la vida personal y profesional de sus ofi ciantes se producen, incluso contra la propia querulancia de los particulares (Marcial: “Epigr. VII, 65; VIII, 9)) y no contra la profesión en sí misma, cuyo prestigio social acrecentaban afamados forenses, según lo fueron, además de Cicerón, notabilísimos jurisconsultos, entre los cuales destacaban Numa, califi cado de “oráculo de la jurisprudencia”, Licinio Craso, Quinto Mucius Scaevola, Celso, Papiniano, o Herennio Modestino – el último jurista clásico –, y entre los que desempeñaron con nombre propio también distinguidas damas. Así, cabe recordar a Mesia Sentina, de la que cuenta elogiosamente Valerio Máximo que mereció por su competencia y coraje el sobrenombre de “Andrógina”,

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ya que “escondía un alma viril en su aspecto de mujer”; igualmente descollaron con luz autónoma Amasia y Hortensia; pero, debido a las quejas que provocaba el descaro e impudor con que Caya Afrania se comportaba ante los tribunales, se prohibió que las mujeres ejerciesen ofi cios “viriles”; disposición que habría de retomar Alfonso X el Sabio en “Las Partidas” y estaría vigente prácticamente hasta poco más de un lustro antes de los tiempos de la Segunda República española y no comenzaría a normalizarse la presencia de las féminas en los ofi cios jurídicos y otras profesiones que antes les estaban vedadas, hasta mediada la época del franquismo, para hacerse torrente incontenible desde la instauración de la Democracia34. Brasil sería en este tema la Nación adelantada del mundo ibérico, al admitir, ya en 1902, a Doña María Augusta Saraiva como primera mujer abogado, en lo que fue seguido por Portugal, que, en 1913, autorizó, a despecho de las normas prohibitivas entonces existentes, a Doña Regina Quintanilha a “exercer o patrocínio em pleito que decorreu no Tribunal da Boa-Hora”35. Pero el Pais Lusitano fue el primero de la iberidad36 que contó con una mujer Bastonário al frente de la Orden dos Advogados Portugueses, Doña María de Jesús B.L.M. Serra Lópes, que desempeñó esta responsabilidad en el período 1990-1992 y en la novísima Orden dos Advogados de Cavo Verde, ejerció de Bastonario Doña Lígia Arcângela Lubrino días Fonseca en 2001. El cargo homólogo en España, el de Presidente del Consejo General de la Abogacía Española, Corporación institucional de la profesión que agrupa a los diferentes Colegios de Abogados territoriales, todavía no ha sido ocupado por una mujer, si bien la Decana del Ilustre Colegio de Abogados de Tenerife, Doña Carmen Pitti García, fue la primera que sentó plaza de Vicepresidente en tal Consejo.

La conciencia que los profesionales tenían de su propia estima y nobleza del ofi cio, llevaría, desde el siglo III a formar agrupaciones, que darían lugar, en el marco cortesano del Bajo Imperio, al primer Collegium Togatorum, de preceptiva incorporación para todos, presidido por el Primus fori, a quien correspondían importantes privilegios y honores de Spectabilis y Clarisimus, máxima dignidad atribuida a los senadores y cónsules.

34 Para una panorámica de la profesionalidad jurídica de la mujer en España Véase YANES PÉREZ, José Santiago: Mujer y Abogacía: Biografía de María Ascensión Chirivella Marín; Ilustre Colegio de Abogados de Valencia, 1998. Para la etapa central del franquismo en España, véase el documentado estudio de ESPUNY TOMAS, María Jesús/CANABATE PEREZ, Josep/ GARCIA GONZALEZ, Guillermo/ PAZ TORRES, Olga: Subiendo al estrado: Mujeres y Administración de Justicia (1961-1966). En JAIME DE PABLOS, Ma Elena (Ed.): Identidades femeninas en un mundo plural. 2009 Arcibel editores http://www.arcibel.es.

35 ALVES, Adalberto: História Breve da Advocacia em Portugal. Ediçâo do Clube do Coleccionador dos Correios, 2003; pág. 156.

36 Acerca de este concepto, véase BARCIA LAGO, Modesto: Geopolítica de la Iberidad. Dykinson, S.L. Madrid, 2008.

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De esta manera, la corporación de los abogados se constituye en un auténtico cursus honorum, puesto que in advocatorum tutela, non privatorum duntaxat, sed et reipublicae salus continetur, no solamente se les confía la protección de los intereses de los particulares, sino la propia salvación del Estado. y, en defi nitiva, resulta proporcionado el elogio de que nec solos militare credimos, illos, qui gladiis nituritur; sed etiam advocatos: militant namque a causarum patroni, qui gloriosae vocis confi si munimine, laborantium spem, vital et posteros defendunt; ya que, desde luego, no sólo se milita con la espada, sino que los abogados, verdaderos militantes de la convivencia cívica, con su discurso defi enden la esperanza, la vida y la posteridad de los desafortunados, como de manera, tal vez hiperbólica, pero atinada en la dirección de fondo, decía el “colorido elogio” con que la Constitución del año 443 (C.J. 2, 7, 14 “Impp. Leo et Anthemius AA. Callicatri P.P. Illyrici” se refi ere a los Abogados. Un tono laudatorio que, junto con las críticas, se convertirá en recurrente.

Pero aquí debo poner fi n a estas notas de humilde, pero sentido, homenaje al eminente jurista y universitario que es el Prof. Dr. Agerson Tabosa Pinto, a quien, desde este lado del Océano Atlántico que susurra amoroso en la ría de Pontevedra, en el recuncho gallego de España, mirando para Brasil al Occidente, rindo tributo de amicitia.

REFERENCIAS

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REFERENCIA DE FUENTES ANTIGUAS

APULEYO:Apología

CICERÓN:De Offi ciis; De Amicitia; Brutus; Topica; De Inventione retorica, Orator.

DIODORO SÍCULO:Biblioteca Histórica

HIPERIDES:Defensa de Licofrón; En defensa de Euxenipo

HORACIO:Epístolas; Sátiras

JUVENAL:Sátiras

MARCIAL: Epigramas.

OVIDIO NASON:Amores

PLINIO el Joven: Cartas.

PLUTARCO: Vidas paralelas. Cicerón.

QUINTILIANO: Institución Oratoria

SALUSTIO:Fragmentos de Historia

TACITO, Cornelio: Anales; Diálogo sobre los oradores

VALERIO MÁXIMO:Dichos y Hechos memorables

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FUENTES NORMATIVAS

ALFONSO X el Sabio:Las Partidas

JUSTINIANO:DigestoCódigo

NOTAS SOBRE A ADVOCACIA NO MUNDO ROMANO

Resumo: O presente artigo aborda o início das origens gregas da oratória forense romana, resultando na institucionalização da profi ssão da advocacia, através da evolução em três estágios delimitados: o patronatus iudiciarius, a atividade liberal e o munus publicum, integrado nas corporationes togatorum.

Palavras-chave: Advocatus. Orator. Patronus. Offi cium advocationis.

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