Tempo dos Gêmeos 2

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    Margaret WeisTracy Hickman

    TEMPO dos GMEOS

    VOLUME 2

    Poesia de Michael Williams

    Ilustraes interiores de Valerie ValusekTtulo original: Time of the TwinsTraduo de Maria Joo Bento

    Capa: arranjo grfico de estdios P. E. A., sobre ilustra-es de Larry Elmore

    LIVRO DOIS

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    palavras. Istar, cidade adorada pelos deuses, o centrodo universo e ns, encontrando-nos no corao da cidade,somos, por esse fato, o corao do universo. Tal como o

    sangue flui do corao, trazendo alimento at ao menordedo, assim a nossa f e os nossos ensinamentos fluemdeste grande templo para o menor, para o mais insignifi-cante de entre ns. Lembrem-se disto ao efetuarem asvossas tarefas dirias, pois vs que trabalhais aqui sois fa-vorecidos pelos deuses. Tal como aquele que toca no fiomais fino da teia sedosa faz estremecer toda a teia, de igual

    modo a vossa menor ao poder causar ondas de estre-mecimento por todo o Krynn.Denubis sentiu um arrepio. Desejou que o

    rei-sacerdote no usasse essa metfora em particular. De-nubis detestava aranhas. Na verdade, detestava todos osinsetos; algo que nunca admitira e sobre o qual, honesta-mente, sentia uma certa culpa. No lhe era ordenado queamasse todas as criaturas, com exceo, bvio, das quetinham sido criadas pela Rainha das Trevas? Isso incluaogros, gnomos, anes e outras raas ms, mas Denubisno estava muito seguro quanto a aranhas. Cada dia quepassava tencionava perguntar, mas sabia que isso iria oca-sionar uma discusso filosfica que se estenderia por largo

    tempo entre os Venerveis Filhos, e ele no achava quefosse motivo para tal. Secretamente, iria continuar a odiararanhas.

    Denubis bateu levemente na sua cabea calva. Co-mo fora levada a sua mente a pensar em aranhas? Estou aficar velho, pensou, com um suspiro. No tardarei a sercomo o pobre Arabacus, no fazendo outra coisa todo o

    dia a no ser ficar sentado no jardim e dormir, at que al-gum me desperte para jantar. Perante este pensamento,

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    Denubis suspirou de novo, mas era mais um suspiro deinveja do que de pena. Qual pobre Arabacus! Ao menosele poupado de...

    Denubis...Denubis estacou. Olhando para um lado e para ooutro do extenso corredor, no avistou ningum. O clri-go estremeceu. Teria escutado aquela voz suave, ou seriaapenas a sua imaginao?

    Denubis surgiu de novo a voz.Desta vez, o clrigo olhou com mais ateno para

    as sombras formadas pelas enormes colunas de mrmoreque suportavam o teto dourado. Uma sombra mais escura,um pedao de negrido dentro das prprias trevas era a-gora perceptvel. Denubis conteve uma exclamao deirritao. Combatendo o segundo estremecimento que lhepercorreu o corpo, parou a sua caminhada e deslocou-selentamente para a figura que permanecia nas sombras, sa-bendo que a figura nunca sairia das sombras para ir ao seuencontro. No porque a luz fosse perniciosa para aqueleque aguardava Denubis, tal como o para algumas criatu-ras das trevas. Na verdade, Denubis perguntou a si mes-mo se haveria alguma coisa superfcie deste mundo quepudesse ser pernicioso para este homem. No, simples-

    mente ele preferia as sombras. Uma maneira de chamar aateno, pensou Denubis sarcasticamente. Chamou-me, Sr. Negro? inquiriu Denubis

    numa voz que se esforou por fazer soar agradvel.Viu o rosto nas sombras sorrir, e Denubis soube de

    imediato que todos os seus pensamentos eram bem co-nhecidos deste homem.

    Com os diabos!, praguejou Denubis em pensa-mento (hbito esse que o rei-sacerdote detestava mas que

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    Denubis, um homem simples, nunca conseguira superar).Por que razo o manter o rei-sacerdote por aqui? Porque no o manda embora, como os outros que baniu?.

    Disse estas palavras para si, obviamente, porque,bem no ntimo da sua alma, Denubis sabia a resposta. Es-te homem era demasiado perigoso, demasiado poderoso.Este no era como os outros. O rei-sacerdote mantinha-otal como um homem mantm um co feroz para protegera sua casa; sabe que o co atacar quando lhe for dado ocomando, mas deve manter-se constantemente seguro de

    que a trela est bem presa. Se a trela alguma vez quebras-se, o animal atirar-se-ia sua garganta. Lamento incomod-lo, Denubis proferiu o

    homem na sua voz suave , sobretudo quando vejo queest embrenhado em pensamentos to profundos. Masum acontecimento de grande importncia est a ocorrer,neste preciso momento. Leve um esquadro de guardasdo Templo e dirija-se praa do mercado. A, na encruzi-lhada, encontrar uma Venervel Filha de Paladine. Ests portas da morte. E, a, encontrar tambm o homemque a atacou.

    Os olhos de Denubis abriram-se muito, cerrando-sedepois com sbita suspeita.

    Como sabe isso? inquiriu.A figura no seio das sombras agitou-se e a linhanegra formada pelos lbios finos alargou-se: a aproxima-o de um sorriso de homem.

    Denubis admoestou a figura, j me co-nhece h anos. Pergunta ao vento por que sopra? Interro-ga as estrelas para descobrir por que brilham? Sei, Denu-

    bis. Que isso seja suficiente para si. Mas... Denubis levou a mo cabea, con-

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    fuso. Isto ia requerer explicaes, relatrios para as auto-ridades apropriadas. Uma pessoa no convocava assim tofacilmente um esquadro dos guardas do Templo!

    Depressa, Denubis disse o homem gentil-mente. Ela no viver por muito tempo...Denubis engoliu em seco. Uma Venervel Filha de

    Paladine, atacada! A morrer... na praa do mercado! Pro- vavelmente, rodeada pelo povo. O escndalo! Orei-sacerdote iria ficar fortemente descontente...

    O clrigo abriu a boca, mas fechou-a de novo. O-

    lhou por momentos para a figura nas sombras e, vendoque no encontrava ali qualquer tipo de auxlio, Denubisdeu meia volta e, as vestes esvoaando, correu pelo cor-redor na direo de onde tinha vindo, as sandlias decouro estalando no cho de mrmore.

    Chegando ao aquartelamento central do capito daguarda, Denubis conseguiu, com dificuldade, exprimir asua solicitao ao tenente de servio. Tal como previra,causou todo o tipo de distrbios. Enquanto esperava queo prprio capito aparecesse, Denubis atirou-se para umacadeira e tentou recuperar o flego.

    A identidade do criador das aranhas poderia estaraberta a discusso, pensou Denubis com pesar, mas no

    havia qualquer dvida na sua mente quanto ao criador da-quela criatura das trevas que, de certeza, deveria encon-trar-se oculta nas sombras, rindo-se dele.

    Tasslehoff!O kenderabriu os olhos. Por momentos, no fez i-

    dia de onde se encontrava ou mesmo de quem era. Es-

    cutara uma voz chamando um nome que lhe pareceu va-gamente familiar. Confuso, o kender olhou em redor. Es-

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    tava por cima de um grande homem, estendido de costasno meio de uma rua. O homem enorme fitava-o comgrande perplexidade, talvez porque Tas estava empoleira-

    do em cima do seu grande estmago. Tas? repetiu o grande homem e, desta vez, orosto revelava surpresa. Devias estar aqui?

    E... eu no estou bem certo replicou o kender,tentando adivinhar quem seria o Tas. Depois, tudo re-gressou sua mente: ouvir o entoar de Par-Salian, tirar oanel do dedo, a luz ofuscante, as pedras cantantes, o grito

    horrvel do mago... Claro que devia estar aqui afirmou Tas irri-tado, bloqueando da memria o grito terrvel dePar-Salian. No achas que te iam deixar vir para c so-zinho, pois no? O kenderestava praticamente de narizencostado ao do grande homem.

    O olhar surpreendido de Caramon transformou-senum franzir de testa.

    No tenho certeza murmurou , mas nome parece que tu...

    Bom, agora estou aqui. Tas rolou de cima dorotundo corpo de Caramon para aterrar nas pedras do pa-vimento por debaixo deles. Seja onde for que aqui

    seja disse, entre dentes. Deixa-me ajudar-te a levan-tar afirmou para Caramon, estendendo a pequena mo,na esperana que esta ao o tirasse da mente de Cara-mon. Tas no sabia se podia ser mandado de volta ou no,mas no tencionava descobri-lo.

    Caramon esforou-se por se erguer, mais pare-cendo, primeira vista, uma tartaruga virada ao contrrio,

    pensou Tas com uma risada. Foi ento que o kenderrepa-rou que Caramon estava vestido de uma maneira muito

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    diferente de quando deixaram a torre. Nessa altura, eleusava a sua prpria armadura (pelo menos os elementosque lhe serviam) e uma tnica larga de tecido fino, costu-

    rada com todo o cuidado por Tika.Mas agora, usava um tecido grosso, cosido deslei-xadamente. Um colete em couro no tratado pendia-lhedos ombros. O colete poderia ter tido outrora botes, masse tal aconteceu, tinham agora desaparecido. De qualquerforma, no eram necessrios botes, pensou Tas, poisno havia processo de o fazer cobrir o ventre saliente de

    Caramon. Calas largas de couro e botas tambm decouro, j remendadas, com um grande buraco por cima deum dedo, completavam o quadro de mau gosto.

    Ufa! murmurou Caramon, cheirando. Que cheiro horrvel este?

    s tu disse Tas, apertando o nariz e acenan-do a mo, como se tal pudesse dissipar o odor. Caramontresandava a bebida dos anes! O kender observou-o aten-tamente. Caramon estava sbrio quando partiram e nohavia dvida que parecia estar sbrio agora. Os seus o-lhos, se bem que confusos, mostravam-se lmpidos e er-guia-se direito, sem vacilar.

    O grande homem olhou para baixo e, pela primeira

    vez, viu-se a si mesmo. Qu? Como? perguntou, espantado. Seria de esperar afirmou Tas severamente,

    observando as roupas de Caramon com desprezo queos magos conseguissem arranjar uns trajes com um poucomais de qualidade! Quero dizer, sei que este feitio podeser difcil no que diz respeito a roupa, mas, francamente...

    Ocorreu-lhe um pensamento sbito. Receosamen-te, Tas olhou para baixo para as suas roupas, libertando

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    depois um suspiro de alvio. Nada se modificara nele. Atas suas bolsas estavam com ele, perfeitamente intactas.Uma voz importuna dentro de si afirmava que isso talvez

    se devesse ao fato de a sua vinda no estar prevista, mas okenderlimitou-se a ignor-la. Bem, vamos ver onde estamos disse Tas em

    tom alegre, unindo a ao s palavras. Tinha j adivinhadoonde se encontravam, pelo odor: num beco. O kender tor-ceu o nariz. E pensara ele que Caramon cheirava mal! Re-pleto de lixo e refugo de todos os tipos, o beco era escuro,

    imerso nas sombras devido a um enorme edifcio de pe-dra. Tas podia afirmar que era de dia, olhando para o fimdo beco, onde podia avistar o que parecia ser uma rua a-gitada, apinhada de pessoas que andavam de um lado parao outro.

    Penso que um mercado afirmou Tas cominteresse, comeando a caminhar para o fim do beco, afim de investigar.

    Para que cidade disseste que eles nos manda-ram?

    Istar ouviu Caramon murmurar atrs de si.Depois:

    Tas!

    Detectando um tom de receio na voz de Caramon,o kenderapressou-se a virar-se, levando a mo de imediato pequena navalha que trazia no cinto. Caramon encon-trava-se ajoelhado junto de qualquer coisa que jazia nobeco.

    Que ? chamou Tas, correndo para trs. Lady Crysania disse Caramon, erguendo um

    manto preto. Caramon! Tas sentiu-se horrorizado. O

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    que lhe fizeram? Teria a magia deles corrido mal? No sei afirmou Caramon suavemente ,

    mas temos de ir buscar auxlio. Cobriu cuidadosamente

    o rosto ferido e ensangentado da mulher com o manto. Eu vou ofereceu-se Tas , tu ficas aqui comela. Esta no me parece ser uma zona amigvel da cidade,se que me entendes.

    Sim respondeu Caramon, suspirando pesa-damente.

    Vai correr tudo bem replicou Tas, dando

    umas leves palmadas no ombro do grande homem, para otranqilizar. Caramon anuiu, mas nada disse. Depois, Tasvoltou-se e correu pelo beco, em direo rua. Chegandoao fim, alcanou o passeio.

    Socor... comeou, mas, nesse instante, umamo firmou-se sobre o seu brao num aperto de ferro,iando-o do passeio.

    Ento disse uma voz severa , onde vais? Tas virou-se e avistou um homem de barbas, o

    rosto parcialmente oculto pela viseira brilhante do capa-cete, fitando-o com olhos negros e frios.

    Guarda da cidade, apercebeu-se rapidamente o ken-der, pois dispunha j de grande experincia em relao a

    este tipo de personagem oficial. Ia precisamente procurar um guarda disseTas, tentando libertar-se e assumir, simultaneamente, umar inocente.

    Essa uma histria muito plausvel, vinda de umkender! O guarda resfolegou, segurando Tas ainda commais fora. Seria um acontecimento digno de registro

    em Krynn, se fosse verdade, disso no haveria dvida. Mas, verdade replicou Tas, olhando para o

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    homem indignado. Uma amiga nossa est ali ferida.Viu o guarda lanar um olhar para um homem em

    quem no tinha ainda reparado: um clrigo trajando vestes

    brancas. Tas alegrou-se. Oh? Um clrigo? Como...O guarda tapou a boca do kendercom a mo. Que lhe parece, Denubis? Ali fica o Beco dos

    Pedintes. Talvez algum deles tenha sido esfaqueado.O clrigo era um homem de meia-idade, com pou-

    co cabelo e um rosto bastante melanclico e srio. Tas

    viu-o olhar em redor da praa do mercado e abanar a ca-bea. O Sr. Negro falou na encruzilhada, e aqui ou

    por aqui. melhor investigarmos. Muito bem. O guarda encolheu os ombros.

    Destacando dois dos seus homens, viu-os avanarem comprecauo pelo beco imundo. Mantinha a mo sobre aboca do kendere Tas, que asfixiava lentamente, soltou umsom pattico e aflitivo.

    O clrigo, seguindo ansiosamente os guardas com oolhar, virou-se.

    Deixe-o respirar, capito disse. Depois teremos que o ouvir a tagarelar res-

    mungou o capito irritado, mas retirou a mo da boca deTas. Ele vai ficar calado, no vai? perguntou o

    clrigo, fitando Tas com olhos gentis e, de alguma forma,preocupados. Ele compreende como isto srio, nocompreende?

    Sem saber muito bem se o clrigo se dirigia a ele ou

    ao capito ou aos dois, Tas pensou que o melhor seriaapenas anuir. Satisfeito, o clrigo voltou-se de novo para

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    observar os guardas. Tas conseguiu libertar-se o suficientedo aperto do capito para que, tambm ele, pudesse ver.Viu Caramon levantar-se, gesticulando para o volume es-

    curo e sem forma jazendo junto dele. Um dos guardasajoelhou-se e puxou o manto para o lado. Capito! gritou, ao mesmo tempo que o ou-

    tro guarda prendia imediatamente Caramon. Perplexo eirritado com aquele tratamento, o grande homem liber-tou-se do guarda. Este gritou e o seu companheiro er-gueu-se. Avistou-se o brilho de metal.

    Raios! praguejou o capito. Vigie este fi-lho da me, Denubis! Atirou Tasslehoff na direo doclrigo.

    Eu no deveria ir? protestou Denubis, segu-rando em Tas quando o kenderesbarrou nele.

    No! O capito corria j pelo beco, empu-nhando a sua prpria espada curta. Tas ouviu-o murmurarqualquer coisa como grande bruto... perigoso.

    Caramon no perigoso protestou Tas, o-lhando preocupado para o clrigo chamado Denubis. Eles no vo mago-lo, no? O que se passa?

    Receio que no tardaremos a sabr respondeuDenubis com voz severa, mas agarrando em Tas com to

    pouca fora que o kender poderia ter-se libertado facil-mente. No incio, Tas ponderou na hiptese de escapar.No havia lugar melhor no mundo para uma pessoa seocultar que uma praa de mercado. Mas o pensamento eraapenas um reflexo, tal como a tentativa de Caramon parase libertar dos guardas. Tas no podia deixar o seu amigo.

    No o magoaro, se ele se entregar pacifica-

    mente. Denubis suspirou. Contudo, se ele fez... O clrigo estremeceu e, por momentos, ficou em silncio.

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    Bom se ele fez aquilo, poder encontrar aqui umamorte mais fcil.

    Fez o qu? Tas estava cada vez mais confuso.

    Tambm Caramon parecia confuso, pois Tas viu-o ergueras mos numa demonstrao de inocncia.Mas, enquanto alegava a sua inocncia, um dos

    guardas foi por detrs dele e atingiu-o na parte traseira dosjoelhos com o cabo da lana. As pernas de Caramon do-braram-se. Quando vacilou, o guarda na sua frente deitouo grande homem ao cho com um potente soco no peito.

    Caramon no atingira ainda o solo e j a ponta dalana estava apontada sua garganta. Levantou as mosdebilmente, num gesto de rendio. Rapidamente, osguardas fizeram-no rolar sobre o estmago e ataram-lhe asmos atrs das costas com veloz percia.

    Faa-os parar! gritou Tas, avanando. E-les no podem fazer aquilo...

    O clrigo segurou-o. No, pequeno amigo, ser melhor para si ficar

    comigo. Por favor disse Denubis, agarrando Tas sua-vemente pelos ombros. No pode ajud-lo, e s o fatode tentar tornar as coisas mais difceis para si.

    Os guardas puseram Caramon de p e comearam a

    revist-lo totalmente, chegando mesmo a introduzir asmos no interior das calas de couro. Encontraram umaadaga no cinto, que foi entregue ao capito, alm de umfrasco. Abrindo-o, cheiraram-no e atiraram-no fora, comrepulsa.

    Um dos guardas moveu-se para o vulto escuro nopavimento. O capito ajoelhou-se e ergueu o manto. Tas

    viu-o abanar a cabea. Depois o capito, com o auxlio dooutro guarda, levantou cuidadosamente o volume e os

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    dois voltaram-se para sair do beco. Disse qualquer coisa aCaramon ao passar por ele. Tas escutou a palavra obscenacom um choque, o mesmo acontecendo, aparentemente,

    com Caramon, pois o rosto do grande homem ficou mor-talmente lvido.Olhando para Denubis, Tas viu os lbios do clrigo

    comprimirem-se e os dedos sobre o ombro de Tas estre-mecerem.

    Ento, Tas compreendeu. No! murmurou suavemente com grande a-

    flio. Oh, no! No podem pensar isso! Caramon nofaria mal a um rato! No foi ele quem feriu Lady Crysania!Estava apenas a tentar ajud-la! Foi essa a razo que nostrouxe aqui. Bem, pelo menos uma das razes. Por favor! Tas virou-se para enfrentar Denubis, unindo as mos. Por favor, tem de acreditar em mim! Caramon umsoldado. J matou coisas, claro que sim. Mas s coisasms, como draconianos e gnomos. Por favor, por favor,acredite em mim!

    Mas Denubis limitou-se a fit-lo severamente. No! Como pode pensar uma coisa dessas? De-

    testo este lugar! Quero regressar a casa! Tas choravadestroado, vendo a expresso carregada e confusa de

    Caramon. Lanando-se num choro convulsivo, o kenderafundou o rosto nas mos e soluou amargamente.Ento, Tas sentiu uma mo toc-lo, hesitar e depois

    dar-lhe umas leves palmadas. Pronto, pronto disse Denubis. Ter o-

    portunidade de contar a sua histria. O mesmo se passarcom o seu amigo. E, se forem inocentes, nada de mal lhes

    acontecer. Mas Tas ouviu o clrigo a suspirar. Oseu amigo tinha estado a beber, no tinha?

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    No! Tas fungou, olhando para Denubis comuma expresso suplicante. Nem uma gota, juro ...

    A voz do kenderdesfaleceu, contudo, perante a vi-

    so de Caramon ao ser conduzido para fora do beco paraa rua onde Tas e o clrigo se encontravam. O rosto deCaramon estava coberto de lama e sujidade do beco, e osangue escorria-lhe de um corte no lbio. Os olhos mos-travam-se esbugalhados e raiados de sangue, a expressodo rosto absorta e revelando medo. O legado das muitasrodadas de bebida que j tomara marcava-lhe visivelmente

    as faces salientes e vermelhas e os membros vacilantes.Uma multido, que comeara a aglomerar-se ao avistar osguardas, comeou a escarnec-lo.

    Tas deixou cair a cabea. O que estava Par-Salian afazer?, interrogou-se, confuso. Teria alguma coisa cor-rido mal? Estariam mesmo em Istar? Estariam perdidosem algum lugar? Ou talvez isto se tratasse de algum pesa-delo terrvel...

    Quem ... O que aconteceu? perguntou De-nubis ao capito. O Sr. Negro estava certo?

    Certo? Claro que sim. Alguma vez ouviu dizerque ele se enganava? retorquiu o capito. Quanto aquem... no sei quem ela , mas trata-se de um membro da

    sua ordem. Usa o medalho de Paladine em redor dopescoo. Est bastante ferida. Na verdade, pensei que es-tivesse morta, mas apanhei um leve sinal de vida no pes-coo.

    Acha que ela foi... ela foi... comeou Denu-bis.

    No sei afirmou o capito severamente.

    Mas foi espancada. Teve um tipo qualquer de ataque, pa-rece-me. Tem os olhos bem abertos, mas no parece ver

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    ou ouvir seja o que for. Temos de a conduzir de imediato para o templo

    disse Denubis rispidamente, embora Tas detectasse um

    tremor na voz do homem. Os guardas dispersavam a mul-tido, segurando as lanas na frente e empurrando os cu-riosos para trs.

    Est tudo sob controle. Dispersem, dispersem.O mercado est prestes a fechar por hoje. melhor ter-minarem as vossas compras enquanto tm tempo.

    Eu no a toquei! afirmou Caramon, desola-

    do. Tremia de terror. No a toquei repetiu, as l-grimas correndo-lhe pelo rosto. Sim, pois! replicou o capito. Levem estes

    dois para as prises ordenou aos guardas.Tas choramingou. Um dos guardas puxou por ele

    rudemente, mas o kender, confuso e atordoado, segurou-ses vestes de Denubis e recusou-se a solt-las. O clrigo, amo pousada sobre a forma sem vida de Lady Crysania,virou-se quando sentiu as mos do kenderagarrarem-se aele.

    Por favor suplicou Tas , por favor, ele estdizendo a verdade.

    O rosto endurecido de Denubis suavizou-se.

    um amigo leal afirmou, gentilmente. Caracterstica pouco habitual num kender. Espero que asua f neste homem seja justificada. Absorto, o clrigoafagou o topete de cabelo de Tas, com uma expressotriste. Mas, deve compreender que, por vezes, quandoum homem bebe, o lcool faz com que faa coisas...

    Vamos embora! rosnou o guarda, puxando

    por Tas. Deixa-te de representaes. No dar resul-tado.

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    No deixe que isto o perturbe, Venervel Filho disse o capito. Sabe como so os kenders!

    Sim replicou Denubis, de olhos em Tas, en-

    quanto os dois guardas conduziam o kender e Caramonatravs da multido na praa do mercado. Sei exata-mente como so os kenders. E esse um muito especial. Depois, abanando a cabea, o clrigo voltou de novo a suaateno para Lady Crysania. Se no se importar decontinuar a segur-la, capito disse, suavemente ,solicitarei a Paladine que nos conduza para o Templo com

    toda a velocidade.Tas, virando-se com dificuldade devido ao apertodo guarda, avistou o clrigo e o capito da guarda com-pletamente ss na praa do mercado. Surgiu um reflexo deluz branca e desapareceram.

    Tas pestanejou e, esquecendo-se de olhar por ondeia, tropeou. Caiu no pavimento de pedra, esfolando osjoelhos e as mos. Um aperto firme no colarinho fez comque se pusesse de p e uma mo firme deu-lhe um em-purro nas costas.

    Vamos embora. Nada de truques. Tas avanou, demasiado miservel e aborrecido

    para sequer olhar sua volta. Virou-se para Caramon e o

    kendersentiu o corao doer-lhe. Subjugado pela vergonhae pelo medo, Caramon caminhava cegamente, com passosvacilantes.

    No a toquei! Tas ouviu-o murmurar. Tem de haver algum engano...

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    CAPTULO 2

    As bonitas vozes dos duendes erguiam-se cada vezmais alto, as suas doces notas, movendo-se em espiral pe-las oitavas, como se transportassem as suas preces para oscus unicamente por subirem de escala. Os rostos dasmulheres duendes, tocadas pelos raios do sol do acaso,

    penetrando atravs das elevadas janelas de cristal, estavamtingidos por um delicado rosa e os seus olhos brilhavamcom uma inspirao ardente.

    Os peregrinos que escutavam, choravam peranteto grande beleza, fazendo com que as vestes brancas eazuis do coro, vestes brancas para as Venerveis Filhas dePaladine, vestes azuis para as Filhas de Mishakal, se des-

    focassem na sua viso. Muitos haveriam de jurar mais tar-de que tinham visto as mulheres duendes serem transpor-

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    tadas para o cu e serem envolvidas por nuvens macias.Quando a cano delas se lanou num crescendo de

    delicadeza, juntou-se a um coro de vozes masculinas pro-

    fundas, mantendo os que rezavam e que se sentiam ele-var-se como pssaros livres, presos ao solo, apertando asasas, podia-se dizer, pensou Denubis carrancudo. Calcu-lou que estivesse saturado. Tambm ele, quando era jo- vem, inundara a sua alma de lgrimas quando escutou,pela primeira vez, o Hino da Noite. Depois, com a passa-gem dos anos, tornara-se rotineiro. Recordava-se bem do

    choque que sentira quando se apercebera de que os seuspensamentos se tinham perdido durante a cano. Agora,era pior do que rotina. Tornara-se numa coisa irritante emaadora. Na verdade, comeara a detestar esta parte dodia e aproveitava todas as oportunidades para escapar.

    Porqu? Atribua muitas das culpas s mulheresduendes. Discriminao racial, disse consigo mesmo,melancolicamente. Contudo, nada podia fazer contra isso.Todos os anos, um grupo de mulheres duendes, Vener-veis Filhas e outras, viajavam das gloriosas terras de Silva-nesti para passarem um ano em Istar, devotando-se i-greja. Tal significava que cantavam o Hino da Noiteao fimdo dia e passavam o resto do tempo a recordar a todos

    sua volta que os duendes eram os favoritos dos deuses,criados primeiro do que qualquer outra raa, abenoadoscom um tempo de vida de centenas de anos. Contudo,ningum, com exceo de Denubis parecia ficar ofendidocom tal fato.

    Esta noite, em particular, o cantar tornava-se irri-tante para Denubis porque estava preocupado com a jo-

    vem mulher que levara para o templo, naquela manh. Naverdade, quase conseguira evitar vir esta noite, mas fora

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    abertura e atravessou-a.Um jovem aclito, de rosto suave e plcido, fez

    uma vnia ao clrigo corado e suado, como se nada fosse

    inoportuno. As minhas desculpas por interromper as suasoraes da noite, Venervel Filho, mas o rei-sacerdotepede que o honre com alguns momentos do seu tempo, seisso for conveniente. O aclito proferiu as palavrasprescritas com uma cortesia to casual que no teria pare-cido invulgar a qualquer observador se Denubis tivesse

    respondido: No, agora no. H outras questes a quetenho de dar a minha assistncia direta. Talvez mais tar-de?

    Denubis, contudo, no disse nada que se parecesse.Empalidecendo visivelmente, murmurou qualquer coisasobre a honra ser toda dele, com a voz cada vez maissumida. O aclito estava, no entanto, habituado a isto e,anuindo compreensivamente, voltou-se e seguiu suafrente atravs dos corredores vastos, vazios e ventosos dotemplo, at aos alojamentos do rei-sacerdote de Istar.

    Caminhando com rapidez atrs do jovem, Denubisno precisava de se interrogar sobre o que se trataria. Dajovem mulher, obviamente. H mais de dois anos que no

    era chamado presena do rei-sacerdote, e no poderiatratar-se de uma coincidncia que ele fosse chamado nomesmo dia em que encontrara a Venervel Filha s portasda morte num beco.

    Talvez ela tivesse morrido, pensou Denubis tris-temente. O rei-sacerdote vai-me informar pessoalmente.Seria sem dvida uma atitude simptica da parte do ho-

    mem. No se coadunava com ele, talvez, com um homemque tinha tantos assuntos em mente em relao ao destino

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    das naes, mas, mesmo assim, era uma atitude simptica.Desejou que ela no tivesse morrido. No apenas

    por ela, mas tambm pelo humano e pelo kender. Denubis

    tinha tambm pensado muito sobre eles. Sobretudo nokender. Como muitos outros em Krynn, Denubis no gos-tava muito de kenders, os quais no nutriam qualquer res-peito por regras ou propriedades pessoais, quer suas querdos outros. Mas este kender parecia diferente. A maioriados kendersque Denubis conhecia (ou pensava conhecer)teria escapado ao primeiro sinal de encrenca. Este perma-

    necera junto do enorme amigo com uma lealdade como-vedora e chegara mesmo a falar em defesa do amigo.Denubis abanou a cabea tristemente. Se a rapariga

    morresse, eles teriam de enfrentar... No, no podia pen-sar nisso. Murmurando uma orao a Paladine para queprotegesse todas as pessoas envolvidas (se o merecessem),Denubis tentou libertar a mente destes pensamentos de-primentes e esforou-se por admirar o esplendor da resi-dncia privada do rei-sacerdote do templo.

    Tinha-se esquecido da beleza das paredes brancasde leite, reluzindo com uma suave luz prpria que provi-nha, assim contava a lenda, das prprias pedras. Eram todelicadas na sua forma e entalhe que brilhavam como

    grandes ptalas de rosas brancas, saltando do cho brancopolido. Atravs delas corriam leves veios de azul-claro,suavizando a dureza do branco rigoroso.

    As maravilhas da entrada deram lugar s belezas daantecmara. Aqui, as paredes elevavam-se para suportarema cpula, tal como a prece de um mortal ascendia aosdeuses. Havia frescos de deuses pintados em cores suaves.

    Tambm eles pareciam reluzir com uma luz prpria: Pala-dine, o Drago de Platina, Deus do Bem; Gilean do Livro,

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    Deus da Neutralidade; at a Rainha das Trevas estava aquirepresentada, pois o rei-sacerdote nunca ofenderia ex-pressamente um deus. Estava pintada com um drago de

    cinco cabeas, mas era um drago to brando e inofensivoque Denubis se perguntou se ela no se deitaria no cho elamberia o p de Paladine.

    Contudo, s pensou em tal coisa mais tarde, refle-tindo. Naquele momento, sentia-se demasiado nervosopara observar sequer aquelas pinturas maravilhosas. O seuolhar estava fixo nas portas de platina cuidadosamente

    lavradas que davam acesso ao corao do templo propri-amente dito. As portas abriram-se, emitindo uma luz gloriosa.

    Chegara a altura da sua audincia.A Cmara de Audincias dava a sensao, queles

    que ali vinham, da sua prpria humildade. Este era o co-rao da bondade. Aqui estava representada a glria e opoder da Igreja. As portas abriam-se para dar lugar a umaenorme sala circular, com pavimento em granito brancopolido. O pavimento seguia verticalmente para formar asparedes em ptalas de uma rosa gigantesca, elevando-separa apoiar uma grande cpula. A prpria cpula era umcristal fosco que absorvia o brilho do sol e das luas. A sua

    radiao penetrava em todas as partes da sala.Uma enorme onda arqueada de espuma martimaazul deslizava do centro do pavimento para uma alcovalocalizada do lado oposto porta. Aqui, existia um nicotrono. Mais brilhante do que a luz que jorrava da cpula,era a luz emanada deste trono.

    Denubis entrou na sala de cabea baixa e as mos

    dobradas na sua frente, como exigiam as regras. Era noitee o sol j se tinha posto. A iluminao da cmara onde

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    Denubis entrara era composta apenas por velas. No en-tanto, como sempre, Denubis sentia a impresso distintade que entrara num ptio ao ar livre, banhado pela luz do

    sol. Com efeito, os seus olhos ficaram momentanea-mente ofuscados pelo brilho. Mantendo o olhar baixo, talcomo estabelecia o protocolo, at lhe ser dado permissopara o erguer, avistou partes do pavimento e objetos, bemcomo de pessoas presentes na cmara. Via as escadas aodesc-las. Mas o esplendor que provinha da frente da sala

    era to magnfico que ele no reparou literalmente emmais nada. Levanta os teus olhos, Venervel Filho de Pala-

    dine proferiu uma voz, cuja musicalidade provocoulgrimas nos olhos de Denubis, aqum a msica encanta-dora das mulheres duendes j no afetava.

    Denubis olhou para cima, e a sua alma estremeceude admirao. Dois anos tinham decorrido desde a ltima vez que estivera to perto do rei-sacerdote, e o tempoperturbara-lhe a memria. Como era diferente observ-lotodas as manhs distncia, v-lo como se v o sol apare-cendo no horizonte, aquecer-se no seu calor, sentindo-sealegre com a sua luz. Como era diferente ser-se convoca-

    do presena do sol, ficar na sua frente e sentir a almaenlevada pela pureza e claridade da sua luminosidade.Desta vez, hei de recordar-me, pensou Denubis

    severamente. Mas ningum, depois de uma audincia como rei-sacerdote, podia afirmar exatamente qual o aspectodele. Na verdade, parecia sacrilgio sequer tentar faz-lo,como se pensar nele em termos de mera carne fosse sacri-

    lgio. Tudo o que qualquer pessoa recordava era apenasque tinha estado na presena de algum incrivelmente be-

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    lo.A aura de luz rodeava Denubis e este sentiu-se i-

    mediatamente dilacerado pela mais terrvel sensao de

    culpa pelas suas dvidas, apreenses e interrogaes. Emcontraste com o rei-sacerdote, Denubis via-se a si mesmocomo a criatura mais miservel sobre Krynn. Caiu de joe-lhos, suplicando perdo, quase totalmente inconsciente doque estava a fazer, sabendo unicamente que era a coisaadequada a fazer.

    E o perdo foi concedido. A voz musical falou e

    Denubis foi de imediato envolvido por uma sensao depaz e tranqilidade. Erguendo-se, enfrentou orei-sacerdote com uma humildade reverente e pediu parasaber em que podia servi-lo.

    Trouxeste esta manh para o templo uma jovemmulher, uma Venervel Filha de Paladine disse a voz, e sabemos que tens estado preocupado com ela, o que natural e muito apropriado. Pensamos que te daria con-forto saber que ela est bem e completamente recuperadadas suas terrveis provaes. Podes tambm tranqilizar atua mente, Denubis, amado filho de Paladine, ao saberque no foi maltratada fisicamente.

    Denubis ofereceu os seus agradecimentos a Paladi-

    ne pela recuperao da jovem mulher e preparava-se parase colocar de lado e desfrutar por alguns momentos da luzgloriosa quando o sentido integral das palavras dorei-sacerdote fez eco na sua mente.

    Ela... ela no foi atacada? conseguiu Denubisproferir.

    No, meu filho respondeu a voz, soando a

    um jovial hino. Paladine, na sua sabedoria infinita, a-poderara-se da alma dela para ele prprio, e eu consegui,

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    depois de longas horas de preces, rogar-lhe que nos de-volvesse tal tesouro, dado que fora retirada, fora de tem-po, do seu corpo. A jovem mulher descansa agora num

    sono restabelecedor de vida. Mas, e as marcas no rosto dela? protestouDenubis, confuso. O sangue...

    No havia qualquer marca afirmou orei-sacerdote suavemente mas com um toque de reprova-o, que fez Denubis sentir-se terrivelmente miservel. Como te disse, ela no estava fisicamente maltratada.

    Fico inteiramente feliz por saber que estava en-ganado respondeu Denubis com sinceridade. Aindamais porque tal significa que aquele homem que foi presoest inocente como afirmava e pode agora ser libertado.

    Sinto-me verdadeiramente agradecido, tal comotu ests agradecido, Venervel Filho, por saber que umacriatura neste mundo no cometeu um crime to hedion-do como a princpio recevamos. Contudo, quem entrens verdadeiramente inocente?

    A voz musical fez uma pausa e parecia estar es-pera de uma resposta. E as respostas chegavam. O clrigoescutou vozes murmuradas sua volta fornecerem a res-posta adequada e, pela primeira vez, Denubis teve cons-

    cincia de que estavam outras pessoas presentes junto aotrono. Tal era a influncia do rei-sacerdote que ele quaseacreditara encontrar-se s com o homem.

    Denubis murmurou a resposta a esta pergunta emconjunto com os outros e compreendeu subitamente, semque algum lhe tivesse dito, que estava dispensado da au-gusta presena. A luz j no incidia diretamente sobre ele,

    voltara-se dele para outra pessoa. Sentindo-se como setivesse passado de um sol brilhante para a sombra, desceu

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    de costas e meio cego, as escadas. Aqui, no piso principal,conseguiu recuperar o flego, descontrair-se e olhar suavolta.

    O rei-sacerdote estava sentado num dos cantos,rodeado de luz. Mas pareceu a Denubis que os seus olhoscomeavam a ficar acostumados luz, por assim dizer,pois conseguia por fim reconhecer outros perto dele. Aquiencontravam-se reunidos os chefes das diversas ordens,Os Venerveis Filhos e as Venerveis Filhas. Conhecidos,quase em tom de brincadeira como as mos e ps do

    sol, eram estes que tratavam dos assuntos mundanos di-rios da igreja. Eram estes quem governava, Krynn. Masestavam outros presentes, para alm das altas autoridadesda Igreja. Denubis sentiu o seu olhar ser arrastado paraum canto da cmara, o nico canto, segundo parecia, quese encontrava envolto nas sombras.

    A estava uma figura vestida de negro, a sua negri-do salientada pela luz do rei-sacerdote. Mas Denubis,estremecendo, teve a impresso distinta de que a escuri-do estava meramente a aguardar, sabendo que, a seu de-vido tempo, o sol teria de se pr.

    O fato de descobrir que o Sr. Negro, como Fistan-dantilus era conhecido ali, tinha permisso para entrar na

    corte do rei-sacerdote, revelou-se um choque para Denu-bis. O rei-sacerdote estava a tentar libertar o mundo domal, que, no entanto, estava aqui presente, na sua corte!Ento, um pensamento reconfortante chegou mente deDenubis: Talvez, quando o mundo estivesse totalmenteliberto do mal, quando a ltima das raas ogre tivesse sidoeliminada, o prprio Fistandantilus fosse derrubado.

    Mas, no preciso momento em que pensava isto esorria perante esse pensamento, Denubis viu o brilho frio

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    dos olhos do mago voltar-se para ele. Denubis estremeceue desviou rapidamente o olhar. Que contraste havia entreesse homem e o rei-sacerdote! Quando se encontrava sob

    a luz do rei-sacerdote, Denubis sentiu-se calmo e tranqi-lo. Ao olhar para os olhos de Fistandantilus, sentiu-seforado a recordar-se das trevas que existiam dentro de si.

    E, sob o mirar daqueles olhos, viu-se subitamente ainterrogar-se sobre o que o rei-sacerdote teria querido di-zer com aquela declarao curiosa, quem, de entre ns, verdadeiramente inocente?.

    Sentindo-se pouco vontade, Denubis passou parauma antecmara onde se encontrava uma gigantesca mesade banquete.

    O cheiro das comidas deliciosas e exticas, trazidasde todo o Ansalon por peregrinos ou adquiridas nos e-normes mercados ao ar livre de cidades to distantesquanto Xak Tsaroth, fez Denubis recordar-se de que nocomia desde a manh. Indo buscar um prato, rodeou amaravilhosa comida, selecionando isto e aquilo. O pratoestava j cheio e ainda s se encontrava a meio da mesa, aqual suspirava literalmente sob o seu peso aromtico.

    Um servente trouxe copos redondos de vinho aro-mtico de duendes. Pegando num e, colocando o prato

    cheio numa das mos e o vinho na outra, Denubis afun-dou-se numa cadeira e comeou a comer com satisfao.Estava precisamente a desfrutar a combinao divinal defaiso assado e do sabor excelso do vinho de duendesquando uma sombra caiu sobre o seu prato.

    Denubis olhou para cima, tossiu, engoliu o que ti-nha na boca e limpou o vinho que lhe escorria pelo quei-

    xo, embaraado. Venervel Filho afirmou com dificuldade,

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    fazendo uma fraca tentativa para se erguer no gesto derespeito que o Chefe dos Irmos merecia.

    Quarath olhou-o com um divertimento sarcstico e

    acenou uma mo, languidamente. Por favor, Venervel Filho, no deixe que eu operturbe. No tenho qualquer inteno de interromper oseu jantar. S queria conversar consigo. Talvez, quandotiver terminado...

    Estou mesmo... mesmo a terminar apres-sou-se a afirmar Denubis, entregando o prato quase cheio

    e o copo a um servente que passava. Parece que notenho tanta fome como pensava. Ao menos isso eraverdade. Perdera completamente o apetite.

    Quarath sorriu delicadamente, o seu fino rosto deduende, de feies finamente esculpidas, parecia ser feitode frgil porcelana, e sorria sempre de forma cuidadosa,como se receasse que o rosto se quebrasse.

    Muito bem, se as sobremesas no o tentarem... No, no, de forma alguma. Doces... so maus

    pa... para a digesto a uma ho... hora to tardia... Nesse caso, acompanhe-me, Venervel Filho.

    H muito que no conversamos os dois.Quarath tomou o brao de Denubis com uma fa-

    miliaridade casual, embora se tivessem passado mesesdesde a ltima vez que o clrigo vira o seu superior.Primeiro o rei-sacerdote, agora Quarath. Denubis

    sentiu um n frio no estmago. No momento em queQuarath o conduzia para fora da cmara de audincias, a voz musical do rei-sacerdote ergueu-se. Denubis olhoupara trs, desfrutando por mais um momento daquela luz

    maravilhosa. Depois, ao desviar o olhar com um suspiro,fitou o mago de vestes negras. Fistandantilus sorriu e a-

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    nuiu. Estremecendo, Denubis apressou-se a acompanharQuarath, atravessando a porta.

    Os dois clrigos caminharam por corredores sun-

    tuosamente decorados at alcanarem uma pequena divi-so, a qual pertencia a Quarath. Tambm esta estava es-plendidamente decorada no interior, mas Denubis senti-a-se demasiado nervoso para reparar em qualquer por-menor.

    Por favor, sente-se, Denubis. Posso chamar-lheassim, uma vez que nos encontramos confortavelmente

    sozinhos.Denubis no sentia qualquer conforto, mas no ha-via dvida de que se encontravam a ss. Sentou-se na ex-tremidade da cadeira que Quarath lhe oferecera, aceitouum pequeno copo de licor que no bebeu, e aguardou.Quarath falou de assuntos insignificantes por alguns mo-mentos, perguntando pelo trabalho de Denubis. Este tra-duzia passagens dos discos de Mishakal para a sua lnguanativa, Solamnico, e outros assuntos nos quais no estava,obviamente, minimamente interessado.

    Depois, aps uma pausa, Quarath disse, casual-mente:

    No pude deixar de ouvir a pergunta que fez ao

    rei-sacerdote.Denubis pousou o licor sobre uma mesa, as mostremendo-lhe de tal maneira que quase entornou.

    Eu... eu estava... simplesmente preocupado...acerca... acerca do jovem homem... que prenderam erro-neamente respondeu, com pouco vigor.

    Quarath anuiu com gravidade.

    E com muita razo. Muito adequado. Est es-crito que nos devemos preocupar com os nossos conter-

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    cadeira, Quarath fixou o teto mais uma vez. Os doisvo ser vendidos nos mercados de escravos amanh.

    Denubis quase se levantou da cadeira.

    Qu? Meu senhor...O olhar de Quarath fixou-se instantaneamente noclrigo, fazendo com que o homem ficasse como que pe-trificado onde se encontrava.

    Mais perguntas? Outra vez? Mas... ele est inocente! foi tudo o que De-

    nubis conseguiu pensar para dizer.

    Quarath sorriu de novo, desta vez de forma cansa-da e indulgente. um bom homem, Denubis. Um bom homem,

    um bom clrigo. Talvez um homem simples, mas bom.No se trata de uma deciso tomada levianamente. Inter-rogamos o homem. As suas declaraes sobre o local deonde veio e sobre o que fazia em Istar so confusas, parano dizer pior. Se no tiver qualquer responsabilidade emrelao aos ferimentos da rapariga, tem, seguramente, ou-tros crimes que lhe rasgam a alma. Pelo menos isso vis- vel no seu rosto. No dispe de meios de subsistncianem foi encontrado dinheiro com ele. Trata-se de um va-gabundo e muito provvel que se volte para o roubo se

    for deixado por sua conta. Estamos a fazer-lhe um favorao arranjar-lhe um mestre que cuidar dele. Com o tempo,pode vir a ganhar a sua liberdade e, temos esperana, a suaalma ser aliviada de todas as suas culpas. Quanto ao ken-der... Quarath acenou uma mo negligente.

    O rei-sacerdote sabe? conseguiu Denubisreunir coragem para perguntar.

    Quarath suspirou e, desta vez, o clrigo avistouuma leve ruga de irritao aparecer na testa suave do du-

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    ende. O rei-sacerdote tem assuntos de importncia

    mais premente em que pensar, Venervel Filho Denubis

    retorquiu, friamente. Ele to bom que a dor dosofrimento deste homem o perturbaria durante dias. Nodisse especificamente que o homem deveria ser libertado,pelo que simplesmente tiramos o peso desta deciso dosseus pensamentos.

    Avistando o rosto de Denubis cheio de dvidas,Quarath sentou-se para a frente, fitando o clrigo com um

    franzir de testa. Muito bem, Denubis, se quer saber, houve cir-cunstncias muito estranhas em respeito descoberta dajovem mulher. Ainda por cima, tanto quanto soubemos,foi instigada pelo Sr. de Negro.

    Denubis engoliu em seco e voltou a mergulhar nacadeira. A sala j no parecia quente. Tremia.

    Isso verdade afirmou, em tom miservel,passando a mo pelo rosto. Ele encontrou-se comigo...

    Eu sei! interrompeu Quarath. Ele con-tou-me. A jovem mulher ficar aqui conosco. uma Ve-nervel Filha. Usa o medalho de Paladine. Tambm elaest de certa forma confusa, mas tal seria de esperar. Po-

    demos ficar de olho nela. Mas estou certo que compreen-der como impossvel deixarmos assim em liberdadeaquele homem. Nos dias de outrora, t-lo-iam lanadopara uma masmorra e no voltariam a pensar no assunto.Ns somos mais iluminados. Trataremos de lhe arranjarum lar apropriado e, simultaneamente, poderemos vigi--lo.

    Para Quarath, o fato de um homem ser vendidocomo escravo no passava de um ato de caridade, pensou

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    Denubis confuso. Talvez fosse. Talvez eu esteja errado.Tal como ele diz, sou um homem simples. Meio tonto,ergueu-se da cadeira. A comida extica que comera pesa-

    va-lhe no estmago como uma pedra. Murmurando umadesculpa ao seu superior, dirigiu-se para a porta. Quarathtambm se levantou, com um sorriso conciliatrio norosto.

    Venha visitar-me outra vez, Venervel Filho disse, junto da porta. E no receie interrogar-nos. assim que aprendemos.

    Denubis anuiu, entorpecido, e depois fez uma pau-sa. Nesse caso, eu... eu tenho uma outra pergunta

    afirmou, hesitante. Fez referncia ao Sr. Negro. Oque sabe dele? Quero dizer, por que razo ele est aqui?Ele... assusta-me.

    O rosto de Quarath revelou-se grave, mas no pa-receu ficar ofendido com a pergunta. Talvez estivesse ali-viado por a mente de Denubis se ter voltado para outroassunto.

    Quem sabe seja o que for sobre os meios dosutilizadores de magia respondeu , a no ser que osseus meios no so os nossos, nem mesmo os meios dos

    deuses? Foi por essa razo que o rei-sacerdote se viu for-ado a libertar Ansalon dessas pessoas, tanto quanto pos-svel. Agora, vivem encarcerados na sua nica Torre deAlta Feitiaria que lhes resta, naquela floresta de Wayreth.Em breve, at isso desaparecer, medida que o seu n-mero decrescer, uma vez que encerramos as escolas. Ou-viu cantar sobre a maldio da Torre em Palanthas?

    Denubis anuiu em silncio. Que acidente terrvel! Quarath franziu o ce-

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    nho. Serve para lhe mostrar como os deuses amaldio-aram estes feiticeiros, arrastando aquela pobre alma paratal loucura que se lanou sobre os portes, apaziguando a

    ira dos deuses e encerrando a torre para sempre, assimacreditamos. Mas, o que estvamos ns a discutir? Fistandantilus murmurou Denubis, lamen-

    tando o fato de ter levantado a questo. Agora, tudo o quequeria era regressar ao seu quarto e tomar o p para o es-tmago.

    Quarath ergueu o cenho.

    Tudo o que sei dele que j c estava quandocheguei, h uns cem anos atrs. velho, muito mais velhodo que muitos dos meus parentes, pois h muito poucos,mesmo dos mais velhos da minha raa, que se recordemde um tempo em que o seu nome no era murmurado.Mas humano e, portanto, deve servir-se das suas artesmgicas para manter a vida. Como, nem me atrevo a ima-ginar. Quarath olhou para Denubis intensamente. Compreende agora, por certo, por que razo orei-sacerdote o mantm na corte?

    Teme-o? inquiriu Denubis inocentemente.O sorriso de porcelana de Quarath tornou-se fixo

    por momentos, transformando-se depois num sorriso de

    um pai explicando uma questo simples a uma criana a-borrecida. No, Venervel Filho disse, pacientemente.

    Fistandantilus de grande utilidade para ns. Quemmelhor conhece o mundo? Ele viajou por todo o lado.Conhece as lnguas, os costumes, o saber de todas as raasem Krynn. O seu conhecimento vasto. til ao

    rei-sacerdote, pelo que permitimos que permanea aqui,em lugar de o banirmos para Wayreth, tal como banimos

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    os seus companheiros.Denubis anuiu. Compreendo disse, sorrindo francamente.

    E... e agora, devo ir. Obrigado pela sua hospitalidade, Ve-nervel Filho, e por esclarecer as minhas dvidas. Eu... eusinto-me muito melhor agora.

    Fico satisfeito por ter podido ajudar replicouQuarath gentilmente. Que os deuses lhe confiram umsono tranqilo, meu filho.

    E a si tambm murmurou Denubis em res-

    posta e saiu, escutando, com alvio, a porta a fechar-seatrs dele.O clrigo passou com rapidez pela cmara de audi-

    ncias do rei-sacerdote. A luz jorrava da porta e o som davoz doce e musical arrastava-lhe o corao ao caminhar,mas receou ficar doente e assim resistiu tentao de re-gressar.

    Desejando a paz do seu quarto tranqilo, Denubisatravessou rapidamente o templo. Perdeu-se uma vez, vi-rando numa curva errada em corredores que se cruzavam.Mas um servo gentil conduziu-o para a direo que eledevia tomar para alcanar a parte do templo onde vivia.

    Esta parte era austera, comparada com as instala-

    es onde o rei-sacerdote e a corte residiam, embora esti-vesse presente o luxo concebvel segundo os critrios deKrynn. Mas, ao caminhar pelos corredores, Denubis pen-sou como seria acolhedor e confortvel a suave luz das velas. Outros clrigos passaram por ele com sorrisos emurmurando saudaes de boa-noite. Era aqui que elepertencia. Era simples, tal como ele.

    Libertando um outro suspiro de alvio, Denubischegou ao seu pequeno quarto e abriu a porta (no existia

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    nada trancado no templo, o que seria considerado comodesconfiana em relao aos companheiros) e comeou aentrar. Depois parou. Pelo canto do olho tinha avistado

    movimento, uma sombra escura no seio se sombras aindamais escuras. Fitou o corredor com intensidade. Nada.Estava vazio.

    Estou a ficar velho. Os meus olhos esto a pre-gar-me partidas, disse Denubis a si mesmo, abanando acabea. Penetrando no quarto, as suas vestes brancas sus-surrando em redor dos tornozelos, fechou a porta firme-

    mente e foi buscar o p para o estmago.

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    CAPTULO 3

    Uma chave fez rudo na tranca da porta da cela.Tasslehoff estava sentado direito. Uma luz plida

    rastejava para a cela atravs de uma pequena janela combarras, construda bem alto na parede espessa de pedra.Amanheceu, pensou, sonolento. A chave provocou no-

    vo rudo, como se o carcereiro estivesse com dificuldadesem abrir a tranca. Tas lanou um olhar intranqilo a Ca-ramon, que se encontrava do outro lado da cela. O grandehomem estava deitado na laje de pedra que constitua asua cama sem se mover ou sem dar qualquer indcio deque escutara o barulho.

    Mau sinal, pensou Tas ansiosamente, sabendo

    que o guerreiro bem treinado (quando no estava embria-gado) teria, noutros tempos, despertado com o som de

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    passos fora da cela. Mas Caramon no se movera nemfalara desde que os guardas os trouxeram para ali, no diaanterior. Recusara comida e gua (embora Tas lhe tivesse

    assegurado que era melhor do que a comida de muitasprises). Limitou-se a ficar deitado na laje de pedra, fitan-do o teto, at que anoiteceu. Depois moveu-se, pelo me-nos um pouco: fechara os olhos.

    A chave provocava um rudo mais forte e, a acres-centar a esse rudo, escutava-se o praguejar do carcereiro.Apressadamente, Tas ergueu-se e atravessou o cho de

    pedra, retirando palha do cabelo e alisando as roupas aofaz-lo. Localizando um banco envelhecido num doscantos, o kenderarrastou-o para a porta, subiu e espreitou,atravs da janela com barras na porta, para o carcereiro dooutro lado.

    Bom dia afirmou Tas alegremente. Estcom problemas?

    O carcereiro deu um salto para trs perante o sominesperado e quase deixou cair as chaves. Era um homembaixo, enfezado e cinzento como as paredes. Olhandopara cima, para o rosto do kender, atravs das barras, ocarcereiro grunhiu e, inserindo a chave na tranca mais umavez, empurrou-a e vibrou vigorosamente. Um homem que

    se encontrava atrs do carcereiro franziu o cenho. Era umhomem bem constitudo, trajando roupas finas e envoltonuma capa de pele de urso, que o protegia do frio da ma-nh. Na mo tinha uma pea de ardsia com um pedaode giz preso por um fio de couro.

    Despache-se resmungou o homem para ocarcereiro. O mercado abre ao meio dia e tenho de ter

    esta gente lavada e com bom aspecto at l. Deve estar partida murmurou o carcereiro.

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    kender, disse qualquer coisa incoerente como apodrecerna cela para sempre e preparava-se para se ir emboraquando o homem de capa de pele de urso o agarrou.

    Onde pensa que vai? Preciso do homem que es-t l dentro. Eu sei, eu sei lamentou-se o carcereiro numa

    voz fina , mas ter que esperar que o serralheiro... Impossvel. Tenho ordens para lev-lo hoje para

    o mercado. Bem, nesse caso, melhor pensar numa maneira

    de tir-los dali. O carcereiro escarneceu. Arranje umnovo gancho ao kender. Agora, quer os outros ou no?Comeou a afastar-se, deixando o homem de pele

    de urso a fitar pensativamente a porta. Sabe de onde recebo as minhas ordens disse,

    em tom ominoso. As minhas ordens vm exatamente do mesmo

    local replicou o carcereiro por cima do ombro ossudo, e se no lhes agradar a eles, que venham rezarpara a-brir a porta. Se isso no resultar, podem esperar pelo ser-ralheiro, como qualquer outra pessoa.

    Vo libertar-nos? inquiriu Tas ansiosamente. Se vm, podemos dar uma ajuda... Ento, um pen-

    samento sbito passou-lhe pela mente. No nos voexecutar, pois no? Porque, nesse caso, penso que o me-lhor esperarmos pelo serralheiro...

    Executar! resmungou o homem de pele deurso. H dez anos que no h uma execuo em Istar.A Igreja proibiu esses atos.

    , uma morte rpida e limpa era demasiado

    bom para um homem troou o carcereiro, que se virarade novo. O que quer dizer com dar uma ajuda, sua

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    pequena besta? Bom hesitou Tas , se no nos vo execu-

    tar, o que vo ento fazer conosco? Por acaso no esto a

    pensar em nos deixar seguir em liberdade? Afinal de con-tas, estamos inocentes. Quero dizer, ns no... No vou fazer nada consigo replicou o homem

    de pele de urso, sarcasticamente. o seu amigo quequero. E no, no o vo deixar seguir em liberdade.

    Uma morte rpida e limpa murmurou o ve-lho carcereiro, sorrindo sem dentes. E ainda por cima,

    reunia sempre uma boa multido para observar. Fazia umhomem sentir que a sua morte significava qualquer coisa,o que precisamente o que Harry Snaggle me dissequando o levaram para ser enforcado. Esperava que hou-vesse bastante gente a assistir, e havia mesmo. At lhe feza lgrima vir ao olho. Toda esta gente, disse-me ele,desperdiando o seu feriado para se virem despedir demim. Um cavalheiro at ao fim.

    Ele vai para o mercado! disse o homem depele de urso em voz alta, ignorando o carcereiro.

    Rpida e limpa. O carcereiro abanou a cabe-a.

    Bem disse Tas, com dvidas , no tenho

    bem a certeza do que isso quer dizer, mas se vai realmentedeixar-nos sair, talvez Caramon possa ajudar.O kenderdesapareceu da janela e ouviram-no gritar. Caramon, acorda! Querem-nos fazer sair e no

    conseguem abrir a porta e receio que a culpa seja minha,bom, em parte...

    Compreende que vai ter de levar os dois a-

    firmou o carcereiro astuciosamente. Qu? O homem de pele de urso virou-se pa-

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    ra fitar o carcereiro. Tal nunca foi mencionado... Eles devem ser vendidos em conjunto. Essas

    so as minhasordens e, uma vez que as suas ordens e as

    minhas ordens tm a mesma origem... Isso est escrito? O homem franziu o cenho. claro. O carcereiro mostrava-se convenci-

    do. Vou perder dinheiro! Quem ir comprar um

    kender?O carcereiro encolheu os ombros. Isso no lhe di-

    zia respeito.O homem de pele de urso abriu outra vez a bocamas fechou-a em seguida, quando um outro rosto surgiuna porta da cela. Desta vez no era o kender. Era o rostode um humano, de um homem jovem, com cerca de 28anos. O rosto poderia ter sido bonito outrora, mas agora alinha do queixo estava deformada de gordura, os olhoscastanhos sem brilho, o cabelo encaracolado numa massaconfusa e emaranhado.

    Como est Lady Crysania?O homem de pele de urso pestanejou, confuso. Lady Crysania. Levaram-na para o templo

    repetiu Caramon.

    O carcereiro deu uma cotevelada nas costelas dohomem de pele de urso. Voc sabe... a mulher que ele espancou. Eu no a toquei afirmou Caramon calma-

    mente. Agora, como est ela? Isso no lhe diz respeito respondeu violen-

    tamente o homem de pele de urso, recordando-se subita-

    mente das horas. Voc serralheiro? O kender men-cionou algo de que voc poderia abrir a porta.

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    No sou serralheiro replicou Caramon ,mas talvez possa abri-la. Os seus olhos fixaram o car-cereiro. Se no se importar que ela se parta.

    A fechadura j est partida! respondeu o car-cereiro. No vejo que danos maiores voc possa pro-vocar, a menos que deitasse a porta abaixo.

    o que tenciono fazer disse Caramon fria-mente.

    Deitar a porta abaixo? gritou o carcereiro. idiota! Como...

    Espere. O homem de pele de urso avistara osombros de Caramon e o seu pescoo de touro atravs dasbarras na porta. Vamos ver isto. Se ele o fizer pago osprejuzos.

    Pode apostar que sim! respondeu o carcerei-ro. O homem de pele de urso fitou-o pelo canto do olho eo carcereiro ficou em silncio.

    Caramon fechou os olhos e respirou fundo por di-versas vezes, expirando lentamente. O homem de pele deurso e o carcereiro afastaram-se da porta. Caramon desa-pareceu de vista. Ouviram um rosnado e o som de umtremendo golpe atingindo a slida porta de madeira. Comefeito, a porta estremeceu nas dobradias, e mesmo as pa-

    redes de pedra pareceram vibrar com a fora do golpe.Mas a porta manteve-se firme. O carcereiro, contudo, re-cuou mais um passo, de boca muito aberta.

    Soou outro rosnado do interior da cela e, depois,mais um golpe. A porta explodiu com tal fora que os -nicos fragmentos remanescentes e reconhecveis eram asdobradias retorcidas e a fechadura ainda presa armao

    da porta. A fora desenvolvida por Caramon a fez voarpara o corredor. Sons abafados de aclamao podiam ser

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    escutados das celas vizinhas, onde outros prisioneiros ti-nham os rostos colados s grades.

    H de pagar isto! virou-se o carcereiro para o

    homem de pele de urso. Vale cada centavo disse o homem, ajudandoCaramon a levantar-se e a sacudir a poeira de cima dele,ao mesmo tempo que o observava com olhos crticos. Tem andado a comer demasiado bem, no ? Aposto quetambm gosta do seu copo? Foi provavelmente o que otrouxe para aqui. Bom, no interessa. Isso ser remediado

    em breve. O nome ... Caramon?O grande homem anuiu, sombriamente. E eu sou Tasslehoff Burrfoot disse o kender,

    passando pela porta despedaada e estendendo de novo amo. Vou para todo o lado com ele, absolutamentepara todo o lado. Prometi a Tika que assim faria e...

    O homem de pele de urso escrevia qualquer coisana ardsia e limitou-se a olhar para o kenderdistraidamen-te.

    Mmmmm, compreendo. Bom prosseguiu o kender, enfiando a mo na

    algibeira com um suspiro , se nos tirar agora estas cor-rentes dos nossos ps, ser sem dvida mais fcil cami-

    nhar. No duvido murmurou o homem de pele deurso, anotando alguns nmeros na ardsia. Somando-os,sorriu. Vamos ento solicitou o carcereiro. Vbuscar os outros que tem para mim hoje.

    O velho homem seguiu caminho no sem anteslanar um olhar maligno para Tas e Caramon.

    Vocs dois, sentem-se ali junto da parede atestarmos prontos para partir ordenou o homem de

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    pele de urso.Caramon agachou-se no cho, esfregando o ombro.

    Tas sentou-se ao lado dele, com um suspiro de felicidade.

    O mundo fora da cela da priso j parecia mais alegre. Talcomo dissera a Caramon: Assim que estivermos fora da-qui, teremos uma oportunidade! No temos oportunidadealguma, aqui encarcerados.

    Oh, a propsito disse Tas para o carcereiroque se afastava , no se importa de tratar para que omeu gancho me seja devolvido? Valor sentimental, sabe.

    Uma oportunidade, huh? disse Caramon paraTas, quando o ferreiro se preparava para trancar o colar deferro. Levara algum tempo a encontrar um suficientemen-te largo e Caramon fora o ltimo dos escravos a ter estesinal de cativeiro colocado em redor do pescoo. O gran-de homem estremeceu de dor quando o ferreiro soldou atranca com um ferro em brasa. Sentiu-se um cheiro a car-ne queimada.

    Tas arrastava miseravelmente o seu colar e estre-mecia em simpatia pelo sofrimento de Caramon.

    Lamento disse, soluando , no sabia oque ele queria dizer com ir para o mercado! Pensei que

    seria um local de encontro, ou qualquer coisa assim. Fa-lam de um modo bastante estranho por aqui. Honesta-mente, Caramon...

    No tem importncia replicou Caramon comum suspiro. A culpa no tua.

    Mas a culpa de algum afirmou Tas, Pensa-tivamente, observando com interesse o ferreiro a passar

    um pouco de gordura por cima da queimadura de Cara-mon, inspeccionando depois o seu trabalho com olhar

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    crtico. Mais do que um ferreiro em Istar tinha perdido oemprego quando surgia um dono de escravos, exigindoretribuio por um escravo que escapara por ter conse-

    guido abrir o colar. Que queres dizer? murmurou Caramon, orosto adquirindo aquele aspecto resignado e vazio.

    Bem sussurrou Tas, olhando para o ferreiro , pra para pensar. V como estavas vestido quandoaqui chegamos. Parecias mesmo um desordeiro. Depoisapareceu aquele clrigo com os guardas, como se estives-

    sem nossa espera. E Lady Crysania, com o aspecto comque estava. Tens razo disse Caramon, um lampejo de

    vida surgindo nos seus olhos mortios. O brilho tornou-semais forte, iniciando um autntico fogo. Raistlin murmurou. Ele sabe que vou tentar impedi-lo. Foi eleo autor disto!

    No estou assim to certo afirmou Tas, apsalguma reflexo. Quero dizer, no teria sido mais pro-vvel que fizesse com que te queimassem ou te enforcas-sem, ou qualquer coisa assim?

    No! replicou Caramon, e Tas vislumbrouexcitao nos olhos dele. No compreendes? Ele quer

    que regresse... para fazer alguma coisa. Ele no nos mata-ria. Aquele... aquele duende negro que trabalha para eledisse-nos isso, lembra-se?

    Tas olhou com certa dvida e preparava-se paradizer qualquer coisa mas, naquele instante, o ferreiro fezlevantar o guerreiro. O homem de pele de urso que esti-vera a espreit-los impacientemente da porta da oficina do

    ferreiro, fez sinal para dois dos seus escravos pessoais. Apressando-se a entrar, agarraram violentamente Cara-

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    mon e Tas, alinhando-os com os outros escravos. Surgi-ram mais dois escravos que comearam a unir as correntesdas pernas de todos os escravos. Depois, perante um ges-

    to do homem de pele de urso, a cadeia viva e destroadade homens, semi-duendes e dois gnomos avanou.No tinham dado mais de trs passos quando se

    viram envolvidos uns nos outros devido a Tasslehoff, que,enganando-se, avanara na direo errada.

    Depois de muito praguejar e de algumas chicotadascom uma vara de salgueiro (vendo primeiro se havia al-

    gum clrigo em redor), o homem de pele de urso ps a filaem movimento. Tas saltava, tentando colocar-se em fila.Depois de o kender ter sido arrastado de joelhos por duasvezes, pondo outra vez o alinhamento em perigo, Cara-mon decidiu envolver o grande brao em redor da cinturade Tas, erguendo-o, com correntes e tudo, e transpor-tou-o no ar.

    At foi engraado comentou Tas, sem fle-go. Sobretudo quando ca. Viste a cara daquele ho-mem? Eu...

    Que querias dizer l atrs? interrompeu Ca-ramon. O que te leva a pensar que Raistlin no est pordetrs disto?

    O rosto de Tas ficou srio e pensativo, coisa poucohabitual nele. Caramon disse, aps alguns instantes, colo-

    cando os braos em redor do pescoo de Caramon e fa-lando-lhe para o ouvido, por forma a poder ser escutadopor cima do barulho das correntes e do rudo das ruas dacidade. Raistlin deve ter estado terrivelmente ocupado,

    com essas coisas todas para viajar atravs do tempo. Pensabem, levou dias a Par-Salian para lanar o feitio de viajar

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    no tempo, e ele um mago realmente poderoso. Por isso,deve ter exigido muito da energia de Raistlin. Como pode-ria ele ter feito a magia e provocar-nos tudo isto, ao mes-

    mo tempo? Bem disse Caramon, franzindo o cenho. Se no foi ele, quem foi?

    E que tal... Fistandantilus? murmurou Tasdramaticamente. Caramon susteve a respirao e o seurosto tornou-se sombrio.

    Ele... ele um feiticeiro verdadeiramente pode-

    roso recordou-lhe Tas , e, bem, no fizeste qualquersegredo de que vinhas aqui para... uh... bem, lhe trataresda sade, por assim dizer. Isto , at disseste isso mesmona Torre de Alta Feitiaria. E sabemos que Fistandantiluspode andar pela Torre. Foi a que encontrou Raistlin, nofoi? E se ele l estava nesse momento e te ouviu? Pensoque ficaria realmente fulo.

    Bah! Se ele assim to poderoso, poderia ter-meliquidado logo ali! retorquiu Caramon.

    No, no poderia disse Tas, com firmeza. Escuta, j refleti bem no assunto. Ele no pode matar oirmo do seu prprio discpulo. Sobretudo se Raistlin tetrouxe aqui por um motivo. Tanto quanto Fistandantilus

    sabe, Raistlin pode amar-te, bem no seu ntimo.O rosto de Caramon empalideceu e Tas sentiu ime-diatamente vontade de morder a prpria lngua.

    De qualquer forma apressou-se a continuar, no se pode livrar de ti j. Tem de fazer com que istoparea uma situao normal.

    Ento?

    Ento... Tas respirou fundo. Bom, elesno executam pessoas aqui, mas dispem, obviamente, de

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    outros processos para lidar com aqueles que no queremver por aqui. Aquele clrigo e o carcereiro disseram ambosque as execues eram uma morte fcil quando compa-

    radas com aquilo que se passa agora.Uma chicotada nas costas de Caramon ps fim conversa. Fitando com fria o escravo que lhe batera (umfulano insinuante e ranhoso que, sem dvida, gostava doseu trabalho), Caramon mergulhou num profundo siln-cio, pensando no que Tas lhe dissera. Fazia efetivamentesentido. Ele vira o poder e concentrao que fora exigido

    a Par-Salian para lanar este difcil feitio. Raistlin poderiaser poderoso, mas no tanto assim! Alm do mais, aindase encontrava fisicamente enfraquecido.

    Subitamente, Caramon viu tudo com perfeita cla-reza.

    Tasslehoff estava certo! Estamos a cair numa arma-dilha. Fistandantilus livrar-se- de mim de qualquer formae depois explicar a minha morte a Raistlin como tendosido um acidente.

    Em algum lugar, na mente de Caramon, escutouuma velha voz de duende afirmar: No sei qual dos dois mais idiota, tu ou aquele kender!Se algum de vocs sairdisto com vida, eu ficarei surpreendido! Caramon sorriu

    tristemente ao pensar no seu velho amigo. Mas Flint noestava aqui, o mesmo acontecendo com Tanis ou qualqueroutra pessoa que o pudesse aconselhar. Ele e Tas depen-diam de si mesmos e, se o kenderno tivesse dado aquelesalto impetuoso para o feitio, poderia muito bem ter via-jado atravs do tempo completamente s! Tal pensamentoassustou-o. Caramon estremeceu.

    Tudo isto significa que tenho que apanhar esteFistandantilus antes que ele me apanhe, disse para si

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    mesmo, suavemente.Os grandes pinculos do templo contemplavam as

    ruas da cidade, mantidas escrupulosamente limpas; todas,

    com exceo dos becos traseiros. As ruas estavam api-nhadas de gente. Guardas do templo circulavam, man-tendo a ordem, sobressaindo da multido com os seusmantos coloridos e capacetes com plumas. Bonitas mu-lheres lanavam olhares discretos de admirao para osguardas ao passearem pelos bazares e lojas, os seus agra-dveis vestidos roando o pavimento ao moverem-se.

    Contudo, existia um local na cidade de onde as mulheresnunca se aproximavam, embora muitas a olhassem furti-vamente com curiosidade: a parte da praa onde se de-senrolava o mercado de escravos.

    Tal como era habitual, o mercado de escravos esta-va cheio de pessoas. Os leiles eram efetuados uma vezpor semana, uma das razes por que o homem de pele deurso se mostrara to ansioso por tirar das prises estaquota semanal de escravos. Embora o dinheiro da vendade prisioneiros revertesse para os cofres pblicos, era b-vio que o encarregado recebia a sua parte. Esta semanaparecia particularmente promissora.

    Tal como dissera a Tas, j no ocorriam execues

    em Istar ou nas regies de Krynn que a cidade controlava.Bom, poucas. Os Cavaleiros de Solamnia insistiam aindaem punir os cavaleiros que traiam a sua ordem segundo ovelho processo brbaro: rasgando a garganta do cavaleirocom a sua prpria espada. Mas o rei-sacerdote reunia-secom os cavaleiros e havia esperana de que, dentro embreve, essa horrvel prtica fosse abolida.

    Claro que o fim das execues em Istar originaraoutro problema: o que fazer com os prisioneiros, que

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    cresciam em nmero e criavam um dficit nos cofres p-blicos? Desta forma, a Igreja efetuou um estudo. Desco-briu-se que muitos prisioneiros eram indigentes, sem lar e

    sem dinheiro. Os crimes que cometiam, roubo, arromba-mento, prostituio, e outros no gnero, eram o resultadodas condies em que viviam.

    No , portanto, lgico disse o rei-sacerdotepara os seus ministros no dia em que fez o anncio oficial que a escravido seja no s a resposta para o proble-ma da sobrelotao das nossas prises, mas tambm um

    processo generoso e beneficente de lidar com esta pobregente, cujo nico crime foi ter sido apanhada na teia dapobreza, da qual no podem escapar?

    claro que sim. , portanto, nosso dever auxi-li-los. Como escravos, sero alimentados, vestidos e teroum teto para viver. Disporo de tudo o que lhes faltava eque os fez voltarem-se para uma vida criminosa. Ficare-mos encarregados de controlar se so bem tratados, como bvio, e permitiremos que, aps um certo perodo deservido, se se tiverem portado bem, possam comprar asua prpria liberdade. Regressaro depois para ns comomembros produtivos da sociedade.

    A idia fora posta em prtica de imediato e j se

    encontrava em vigor h dez anos. Tinham-se registradoproblemas. Mas estes nunca chegaram ateno dorei-sacerdote; no tinham sido suficientemente srios pararequerer a sua preocupao. Sub-ministros encarrega-ram-se de os resolver eficientemente e, agora, o sistemavigorava sem grandes problemas. A Igreja dispunha de umrendimento estvel que provinha do dinheiro recebido

    pelos escravos da priso (para os manter separados de es-cravos vendidos por interesses privados), e a escravatura

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    parecia at atuar como um impedimento ao crime.Os problemas que surgiram diziam respeito a dois

    grupos de criminosos: os kenderse aqueles criminosos cu-

    jos crimes eram particularmente repugnantes. Desco-briu-se que era impossvel vender um kendera quem querque fosse, e revelava-se tambm difcil vender um assas-sino, um violador, um louco, etc. As solues foram sim-ples. Os kenders ficavam encarcerados durante a noite eeram depois escoltados at s portas da cidade (tal resul-tou numa pequena procisso, todas as manhs). Foram

    criadas instituies para lidar com os criminosos maisgraves.Era como um dirigente ano de uma dessas institu-

    ies que o homem de pele de urso conversava animada-mente nessa manh, apontando para Caramon, que seencontrava com os outros prisioneiros num curral nojentoe mal-cheiroso, e fazendo um movimento dramtico dedeitar abaixo uma porta com o ombro.

    O dirigente da instituio no pareceu ficar impres-sionado. Tal fato no era assim to pouco habitual. A-prendera h muito que mostrar-se impressionado com umprisioneiro, podia fazer o seu preo subir para o dobro.Por isso, o ano franziu o cenho para Caramon, cuspiu no

    cho, cruzou os braos e, firmando os ps no pavimento,olhou para cima, para o homem de pele de urso. No est em forma, demasiado gordo. Para alm

    disso, um bbado, olhe para o nariz dele. O anoabanou a cabea. E no tem ar de mau. O que diz queele fez? Atacou uma eclesistica? Humpf! O ano res-folegou. A nica coisa que ele parece poder atacar

    um jarro de vinho! claro que o homem de pele de urso estava acos-

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    mem olha para um porco acabado de ganhar, Caramonsentiu o desejo urgente e premente de se libertar das cor-rentes, esmagar na sua frente o curral onde estava encar-

    cerado e estrangular o homem de pele de urso e o ano. Osangue martelava-lhe no crebro, fazia presso sobre oque o mantinha preso, os msculos nos seus braos en-cresparam-se, viso essa que fez o ano abrir muito osolhos e os guardas em redor do curral sacarem as espadasdas bainhas. Mas Tasslehoff deu-lhe subitamente uma co-tovelada nas costelas.

    Olha, Caramon! disse o kender, excitado.Por momentos, Caramon no conseguiu escutar,com tudo aquilo que lhe ia na cabea. Tas deu-lhe novacotovelada.

    Olha, Caramon. Ali, para l da multido, semningum sua volta. Vs?

    Caramon respirou fundo e esforou-se por se acal-mar. Olhou para o local para onde o kenderapontava e,subitamente, o sangue quente nas suas veias ficou gelado.

    Atrs da multido, encontrava-se uma figura devestes negras. Estava s. Na verdade, existia mesmo umcrculo largo e vazio em seu redor. Ningum da multidose chegava a ele. Muitos desviavam-se, saindo do seu ca-

    minho para evitar aproximar-se dele. Ningum falava comele, mas todos tinham conscincia da sua presena. Aspessoas que se encontravam mais prximas e que antesconversavam animadamente, caram num silncio des-confortvel, lanando olhares nervosos na sua direo.

    As vestes do homem eram de um negro profundo,sem qualquer ornamento. Nenhum fio dourado reluzia

    nas suas mangas, nenhuma faixa rodeava o capuz pretoque usava puxado para cima do rosto. No trazia nenhum

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    basto nem nenhuma pessoa conhecida caminhava ao seulado. Os outros magos que usassem smbolos de vigilnciae proteo, outros magos que carregassem bastes de po-

    der ou possussem animais para os servirem. Este homemno necessitava de nada disso. O seu poder jorrava do seuntimo, to forte que se estendera ao longo de vrios s-culos e de vrios nveis de existncia. Tal podia ser senti-do, podia ser vislumbrado ao seu redor, como o calor queemanava da fornalha de um ferreiro.

    Era alto e bem constitudo; as vestes negras caam

    de ombros magros mas musculosos. As mos brancas, asnicas partes do corpo que eram visveis, eram fortes, de-licadas e flexveis. Embora fosse to velho que poucos emKrynn se poderiam aventurar a adivinhar a sua idade,possua o corpo de uma pessoa jovem e forte. Rumoressombrios contavam como ele se servia da sua magia paraultrapassar as debilidades da idade.

    E, assim, permanecia s, como se um sol negro ti-vesse sido lanado sobre o ptio. Nem mesmo o brilhodos seus olhos podia ser avistado no interior das profun-dezas negras do seu capuz.

    Quem ? perguntou Tas a um companheiro,em tom perfeitamente normal, fazendo sinal com a cabea

    para a figura de vestes negras. No sabes? disse o prisioneiro nervoso, co-mo se sentisse relutncia em responder.

    No sou da cidade desculpou-se Tas. o Sr. Negro, Fistandantilus. J ouviu falar ne-

    le, com certeza? Sim replicou Tas, olhando para Caramon

    como que afirmando bem te disse! J ouvimos falarnele.

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    CAPTULO 4

    Quando Crysania despertou do feitio que Paladinelanara sobre ela, revelou-se num tal estado de espanto econfuso que os clrigos se sentiram fortemente preocu-pados, receando que a situao por que ela passara lhepudesse ter perturbado a mente.

    Crysania falou de Palanthas, pelo que partiram doprincpio de que ela devia vir de l. Mas chamava conti-nuamente pelo chefe da sua ordem, algum de nome Elis-tan. Os clrigos conheciam os chefes de todas as ordensque existiam em Krynn, mas deste Elistan nunca tinhamouvido falar. Contudo, ela insistia tanto que, no incio,alguns recearam que alguma coisa pudesse ter acontecido

    ao atual chefe de Palanthas. Foram enviados imediata-mente mensageiros.

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    Depois, Crysania falou tambm de um templo emPalanthas, onde nenhum templo existia. Por fim, faloucom excitao de drages e do regresso dos deuses, o

    que fez com que os presentes na sala Quarath e Elsa,chefe das Venerveis Filhas se fitassem horrorizados efizessem os sinais de proteo contra a blasfmia. Foi da-da uma poo de ervas a Crysania que a acalmou e, porfim, adormeceu. Os dois permaneceram com ela por lar-gos instantes depois de ter adormecido, discutindo o seucaso em voz baixa. Ento, o rei-sacerdote entrou na sala,

    vindo para aquietar os seus receios. Lancei um augrio disse a voz musical , efoi-me dito que Paladine a chamou a ele para a protegerde um feitio de magia negra que fora usado nela. Noacredito que nenhum de ns ache difcil acreditar nisso.

    Quarath e Elsa abanaram a cabea, trocando olha-res de compreenso. O dio do rei-sacerdote por utiliza-dores de magia era bem conhecido.

    Portanto, ela esteve com Paladine, vivendo nes-se reino maravilhoso que tentamos recriar neste solo. Semdvida que, enquanto l permaneceu, foi-lhe conferidoconhecimento do futuro. Ela fala de um bonito temploque est a ser construdo em Palanthas. No temos ns

    planos para construir tal templo? Fala deste Elistan, que provavelmente o clrigo destinado a governar l. Mas... drages, regresso dos deuses? mur-

    murou Elsa. Quanto aos drages disse o rei-sacerdote ir-

    radiando um certo calor e diverso , trata-se talvez dealgum conto da sua infncia que a atormentou durante a

    doena, ou talvez tivesse alguma coisa a ver com o feitioque lhe foi lanado pelo utilizador de magia. A sua voz

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    tornou-se severa. Sabem, diz-se que os feiticeiros tmpoder para fazer as pessoas verem aquilo que no existe.Quanto conversa dela sobre o regresso dos deuses...

    O rei-sacerdote ficou em silncio por momentos.Quando voltou a falar, foi quase em segredo. Vocs os dois, os meus conselheiros mais dire-

    tos, conhecem o sonho que existe no meu corao. Sabemque, um dia, e esse dia aproxima-se velozmente, eu irei aosdeuses e solicitarei o seu auxlio para combater o mal queest ainda presente entre ns. Nesse dia, o prprio Pala-

    dine prestar ateno s minhas preces. Vir para se colo-car ao meu lado e, juntos, combateremos as trevas at se-rem para sempre subjugadas! Foi isto que ela previu! aisto que ela se refere com o regresso dos deuses!

    O quarto encheu-se de luz, Elsa murmurou umaprece e mesmo Quarath baixou os olhos.

    Deixem-na dormir disse o rei-sacerdote. Ela estar melhor pela manh. Mencionarei o seu nomenas minhas oraes a Paladine.

    Deixou o quarto, que escureceu medida que elepassava.

    Elsa ficou a olhar para ele, em silncio. Depois,quando a porta se fechou, a mulher duende voltou-se para

    Quarath. Ter ele o poder? perguntou Elsa ao seucompanheiro, enquanto este fitava Crysania Pensativa-mente. Ser que tenciona realmente fazer... o que aca-bou de dizer?

    Qu? Os pensamentos de Quarath encon-travam-se longe dali. Olhou para o lugar por onde o

    rei-sacerdote acabara de sair. Oh, isso? Claro que tem opoder. Viu como curou esta jovem mulher. E os deuses

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    falam com ele atravs dos augrios, ou, pelo menos, assimo afirma. Quando foi a ltima vez que curou algum, Ve-nervel Filha?

    Nesse caso, acredita em tudo aquilo sobre Pala-dine se ter apoderado da alma dela e que lhe tivesse per-mitido ver o futuro? Elsa pareceu surpreendida. Crque ele realmente a curou?

    Creio que existe algo de realmente estranho emrelao a esta jovem e queles dois que vieram com ela replicou Quarath gravemente. Eu cuidarei deles. Voc

    fica de olho nela. Quanto ao rei-sacerdote. Quarathencolheu os ombros. Deixe que ele chame a estemundo o poder dos deuses. Se eles c vierem para lutaremcom ele, timo. Se no, tal no nos diz respeito. Sabemosquem desempenha o trabalho dos deuses em Krynn.

    Tenho algumas dvidas observou Elsa, afas-tando o cabelo preto de Crysania do seu rosto adormeci-do. Havia uma jovem na nossa ordem que tinha real-mente o poder de curar. Aquela jovem que foi seduzidapelo cavaleiro Solamnico. Como que ele se chamava?

    Soth disse Quarath. Lorde Soth, da Dar-gaard Keep. Oh, eu no duvido. Por vezes possvel en-contrar algum, sobretudo entre os muito jovens ou os

    muito idosos, que tm esse poder. Ou pensam possu-lo.Francamente, estou convencido que, em grande parte, apenas o resultado de as pessoas quererem acreditar todesesperadamente numa coisa que acabam por se con-vencer a si mesmos de que verdade. O que no afetanenhum de ns. Vigie com ateno esta jovem, Elsa. Secontinuar a falar de tais coisas quando a manh chegar,

    depois de estar restabelecida, talvez seja necessrio to-marmos medidas drsticas. Mas, por agora...

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    Ficou em silncio. Elsa anuiu. Sabendo que a jovemdormiria profundamente sob o efeito da poo, os doisdeixaram Crysania s, adormecida no grande templo de

    Istar. Crysania acordou na manh seguinte com a sensa-o de que a sua cabea estava cheia de algodo. Sentiaum gosto amargo na boca e tinha muita sede. Um poucotonta, sentou-se, tentando reunir os seus pensamentos.Nada fazia sentido. Tinha uma recordao vaga e horrvelde uma criatura assombrada do alm que se aproximara

    dela. Depois, estivera com Raistlin na Torre de Alta Feiti-aria. Seguiu-se uma difana recordao de se encontrarrodeada por magos de vestes brancas, vermelhas e negrase uma impresso de pedras cantantes, para alm de umasensao de ter efetuado uma longa viagem.

    Recordava-se tambm de ter despertado e de seencontrar na presena de um homem cuja beleza era im-pressionante e cuja voz lhe enchia de paz a mente e a al-ma. Mas ele dissera que era o rei-sacerdote e que ela estavano templo dos deuses, em Istar. Tal no fazia qualquersentido. Lembrava-se de ter chamado por Elistan, masparecia que ningum ouvira falar nele. Falou-lhes sobreele, como fora curado por Goldmoon, clrigo de Misha-

    kal, como ele conduzira o combate contra os drages domal, e como ele divulgava por entre as pessoas o regressodos deuses. Mas as suas palavras s fizeram com que osclrigos olhassem para ela com pena e alarme. Por fim,tinham-lhe dado uma poo de gosto estranho e ela a-dormecera.

    Agora, continuava confusa mas ainda determinada

    a descobrir onde se encontrava e o que se passava. Le-vantando-se da cama, esforou-se por se lavar como fazia

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    todas as manhs, sentando-se depois no estranho touca-dor, onde, calmamente, escovou e penteou o longo e pre-to cabelo. A rotina familiar f-la sentir-se mais descontra-

    da. Dedicou ainda alguns instantes a observar o quarto,e no pde deixar de admirar a sua beleza e esplendor.Pareceu-lhe, contudo, um pouco deslocado num templodevotado aos deuses, se era realmente a que se encontra-va. O seu quarto, na casa dos seus pais em Palanthas nopossua nem metade deste esplendor, e estava mobiliado

    com todos os luxos que o dinheiro podia adquirir. A sua mente viajou subitamente para aquilo queRaistlin lhe tinha mostrado, a pobreza e necessidade toprximas do Templo, e corou, em desconforto.

    Talvez este seja um quarto de hspedes disseCrysania a si mesma, falando em voz alta, sentindo-se re-confortada com o som da sua prpria voz. Afinal, osquartos de hspedes no nosso novo templo pretendemseguramente garantir o mximo conforto aos nossos con-vidados. Mesmo assim... franziu o cenho, o seu olharfixando-se numa dispendiosa esttua em ouro de umadrade, empunhando uma vela nas mos douradas , isto extravagncia. Alimentaria uma famlia durante meses.

    Como se sentia grata pelo fato de ele no poder veristo!Falaria com o chefe desta ordem, quem quer que

    ele fosse. (Seguramente que se enganara, ao pensar que eledissera ser o rei-sacerdote!)

    Decidindo-se a atuar e sentindo a cabea mais fres-ca, Crysania despiu as roupas de noite que tinha vindo a

    usar e colocou as vestes brancas, que encontrou cuidado-samente dobradas aos ps da cama.

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    Que vestes to antiquadas, reparou, enfiando-aspela cabea. Nada parecidas com as vestes brancas, sim-ples e austeras usadas pelos elementos da sua ordem, em

    Palanthas. Estas eram muito decoradas. Smbolos doura-dos reluziam nas mangas e orlas, uma fita carmesim eprpura ornamentava a frente, e um pesado cinto douradoreunia as pregas em redor da sua cintura magra. Mais ex-travagncias. Crysania mordeu o lbio em desagrado, masdeu tambm uma olhada em si mesma no espelho de ar-mao dourada. Ficava-lhe bem, tinha de admitir, alisando

    as pregas do vestido.Foi ento que sentiu o bilhete na algibeira.Introduzindo a mo, retirou um pedao de papel de

    arroz que fora dobrado em quatro. Fitando-o com curio-sidade, tentando adivinhar se a dona das vestes se esque-cera dele por acidente, ficou perplexa quando viu que lheestava dirigido. Intrigada abriu-o.

    Lady Crysania:Sabia que tencionava procurar o meu auxlio para regressar

    ao passado, num esforo para evitar que o jovem mago, Raistlin,levasse a cabo a misso do mal que planejou. Quando se dirigia ans, contudo, foi atacada por um cavaleiro da morte. Para a salvar,Paladine conduziu a sua alma para o seu reino dos cus. No existe

    ningum entre ns, nem o prprio Elistan, que a possa fazer regres-sar. S os clrigos que vivem no templo do rei-sacerdote dispem dessepoder. Assim, enviamos ao tempo, para Istar, exatamente para operodo que antecedeu o cataclismo, na companhia do irmo de Rais-tlin, Caramon. Enviamo-la para que sejam atingidos dois fins. Pri-meiro, para sar-la da grave ferida e, em segundo lugar, para permi-tir que tente ser bem sucedida nos seus esforos de salvar o jovem

    mago dele mesmo.Se, nisto, vir a ao dos deuses, talvez ento possa considerar

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    os seus esforos abenoados. Aconselhava-lhe apenas o seguinte: osdeuses operam de formas estranhas para os mortais, pois apenaspodemos ver parte do quadro que est a