28
TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS: APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA DISPOSICIONALISTA Eixo Políticas e Fundamentos aberta.senad.gov.br

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS

CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS: APROXIMAÇÃO

ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA

E A SOCIOLOGIA DISPOSICIONALISTA

Eixo Políticas e Fundamentos

aberta.senad.gov.br

Page 2: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

APRESENTAÇÃO

As investigações sobre o uso de crack no Brasil vêm ganhando importância devido aos agravos sociais e sanitários provocados pelo uso da

substância, sobretudo em populações vulneráveis. Este módulo propõe uma visão compreensiva do problema do abuso de crack nas

“cracolândias” brasileiras, a partir de uma aproximação entre a psicopatologia fenomenológica e a sociologia disposicionalista. Utilizou-se

o método fenomenológico para a análise de 74 entrevistas com usuários de crack de seis cidades brasileiras, procurando-se a determinação

de um tipo antropológico essencial geral. A análise fenomenológica centrou-se sobre a temporalidade e a identidade, ambas dimensões

que fundamentam a estrutura pré-reflexiva da existência. A redução da temporalidade ao instante e a necessidade extrema de unificação

da identidade, reafirmando a identidade de classe, caracterizaram o tipo essencial geral dessa população.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-

CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em

http://aberta.senad.gov.br/.

AUTORIA

Guilherme Peres Messas

lattes.cnpq.br/4385703295450760

Psiquiatra formado pela Faculdade de Medicina da USP com mestrado e doutorado pela mesma

instituição e pós-doutorado pelo no Instituto de Psiquiatria da FMUSP. Estudioso dos temas:

psicopatologia fenomenológica, psicopatologia da embriaguez por álcool e drogas, depressão,  psicose e

drogas e história da psiquiatria. Atualmente é coordenador do curso de Especialização em Psicopatologia

Fenomenológica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, editor da revista

Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea e Coordenador da Câmara Técnica de Psiquiatria do

CREMESP.

Vanessa Marins Amado Henriques

lattes.cnpq.br/6228908741946303

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Publicou,

em coautoria, o artigo “O poder discricionário dos agentes institucionais que lidam com usuários de crack:

invisibilidade de classe e estigma de gênero”, publicado no livro Crack e exclusão social (2016), organizado

por Jessé de Souza.

Leon de Souza Lobo Garcia

lattes.cnpq.br/3561515616362901

Graduado em Medicina com residência em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São

Paulo, doutor em Epidemiologia e Saúde Pública pela University College London. Foi diretor de articulação

e coordenação de políticas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça

(SENAD-MJ). Tem experiência profissional clínica e didática na área de psiquiatria e de gestão na área de

saúde pública.

Jessé José Freire de Souza

lattes.cnpq.br/0579479554424887

Pós-doutor em Filosofia e Psicanálise pela New School for Social research de Nova Iorque, EUA, e livre

docência em sociologia pela Universität Flensburg, Alemanha. É professor titular de Ciência Política da

Universidade Federal Fluminense. Atualmente é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA).

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

Page 3: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

 

SITUAÇÃO PROBLEMATIZADORA

 https://youtu.be/pSz2jUPkCNw

Nos últimos anos, sobretudo na cidade de São Paulo, o problema do uso de crack logrou se tornar tema central dos principais meios de

comunicação e de conversas aflitas travadas cotidianamente por aqueles que, por um motivo ou outro, precisavam trafegar pela região

central do município e se deparavam com uma quantidade expressiva de indivíduos fazendo uso da substância. O problema rapidamente

começou a ser categorizado como “epidemia” pelos veículos de comunicação: o crack começa a ser apresentado como uma pedra cujos

“poderes mágicos” seriam capazes de tragar para o universo das ruas, quase que instantaneamente, os incautos que ousassem

experimentar seus efeitos. Os usuários de crack – não raras vezes designados como “zumbis” ou “mortos-vivos” – são representados pelos

noticiários como seres subtraídos de sua humanidade: a droga teria roubado desses indivíduos parte de sua energia vital, transformando-

os em criaturas movidas pelo único desejo de reinstalar, incessantemente, a intoxicação causada pelo estimulante.

Conformou-se, então, uma ideia geral acerca desse fenômeno social que leva em consideração apenas os efeitos físico-químicos da

substância e que ignora toda uma diversidade de problemáticas que acometem os sujeitos usuários. Diante disso, como podemos refletir

sobre as distintas condições históricas e sociais que propiciam o aumento do fenômeno do uso abusivo de crack, tendo em vista a tríade

sujeitos, contextos e substâncias? Que possibilidades para a compreensão desse fenômeno social deixamos passar ao centrar nossa análise

apenas em um desses aspectos?

Neste módulo, aprofundaremos esses e outros debates à luz das teorias da psicopatologia fenomenológica e da sociologia

disposicionalista.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

 

SOBRE A PESQUISA

Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter sociológico, que entrevistou usuários de crack em cenas de uso

brasileiras para investigar a gênese social do uso dessa droga. As entrevistas foram realizadas por cientistas sociais experimentados.

Utilizou-se de entrevistas semiestruturadas, guiadas por questões sobre o uso de crack e os efeitos nele buscados, vida familiar e escolar,

trabalho e relações afetivas. O material foi colhido entre março e novembro de 2014, nas cidades de Fortaleza, Salvador, Brasília, Porto

Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Campos dos Goytacazes, buscando-se usuários que, em sua quase totalidade, encontravam-se em cenas

de uso de crack. Posteriormente, pesquisadores destacaram das transcrições os segmentos vinculados a expressões de experiências

subjetivas de maior valor afetivo e a experiências psicopatológicas.

As experiências psicopatológicas são exemplos extremos do uso da substância, favorecendo a visualização de estruturas de ser. Vivências

afetivas fundamentais para a significação individual biográfica foram captadas por ressonância afetiva, ou seja, pelo modo como os afetos

do entrevistado mobilizaram os do entrevistador , com base no método fenomenológico, que provém da interpessoalidade primária, da

qual entrevistadores, entrevistados e autores, responsáveis pelas reduções, fazem parte inexoravelmente do mesmo mundo .

Contextualmente, foi a partir dos anos 90 do século XX que se começou a identificar um uso pontual de crack no Brasil. Uma pesquisa

recente, realizada nas capitais brasileiras, identificou uma prevalência de uso regular de crack e similares levado a cabo por 0,81% da

população. O padrão de uso mais visível dessa substância assume uma característica inusitada, que vem provocando alarme na sociedade

brasileira. Os usuários de crack concentram-se em regiões específicas de várias cidades, constituindo cenas de uso a céu aberto, nas quais

1

2

Page 4: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

se intoxicam diante dos olhos da população. Essas cenas, povoadas em sua maioria por homens entre 18 e 34 anos de idade que fazem

uso de 16 pedras de crack por dia, em média, são muitas vezes chamadas de “cracolândias”, pelo fato do uso continuado de crack parecer

ser o motivo principal da existência dessas associações de pessoas. A dificuldade do poder público em lidar com essa situação, devido, em

parte, à formação social inusitada em que se reproduz, traz para os pesquisadores o desafio de um melhor entendimento desse fenômeno

psicopatológico e social.

Embora o abuso do crack pareça não se restringir às classes desfavorecidas, a investigação epidemiológica mostra que conhecidos

marcadores de exclusão social estão fortemente sobrerrepresentados entre os frequentadores dessas cenas de uso, se comparados com

a população geral brasileira. Dentre esses marcadores, destacam-se a baixa escolaridade e a cor da pele, parda ou negra, autorreferida,

sugerindo uma trajetória de marginalização social que precede o uso de drogas. Somam-se à escolaridade e à cor da pele outros

marcadores de exclusão social presentes, esses já passíveis de terem sido influenciados ou originados pelo uso problemático de droga,

como a falta de moradia e o desemprego ou trabalho precário.

Saiba Mais

Pesquisa Nacional sobre o uso de crack, realizada pelo instituto FioCruz em 2014. Para acessá-la na íntegra, clique neste link

(http://portal.fiocruz.br/pt-br/content/fiocruz-lanca-livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack).

Glossário

Ato ou efeito de intoxicar(-se); envenenamento.  (INTOXICAÇÃO. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário eletrônico Houaiss da

língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.) 

Page 5: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Figura 1: nesta figura constam os principais marcadores sociais dos usuários de crack e suas porcentagens. Fonte: Bastos e Bertoni (2014) adaptado por NUTE-UFSC (2017).

Assim, é nítido que o fenômeno psicopatológico “uso abusivo de crack” apresenta peculiaridades sociais que exigem que sua

investigação se faça a partir de uma análise dialógica da psicopatologia com a sociologia.

Page 6: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

Saiba Mais

Do ponto de vista psicopatológico, categorias tão abrangentes quanto as de abuso ou dependência de substâncias são indefinidas

demais para captar as complexidades da questão , já que, por exemplo, valorizam de maneira semelhante um jovem negro de

baixa escolaridade que vive em uma cena de uso e um profissional liberal branco que usa o crack depois do trabalho em sua casa.

Para que se atinja um apuramento das experiências psicopatológicas, deve-se construir uma estratégia que leve em conta a

dimensão sociológica, uma vez que toda experiência psicológica, patológica ou não, apoia-se de formas diversas no corpo social.

3

Saiba Mais

Por sua vez, do ponto de vista sociológico, um entendimento estrito das cracolândias como apenas uma das variantes da

marginalização social dos brasileiros pobres e negros vedaria o olhar dos pesquisadores aos significados das experiências

individuais patológicas daqueles que, intoxicando-se ininterruptamente, agravam sua exclusão da cidadania. A aproximação da

psicopatologia com a sociologia pode contribuir para iluminar elementos estruturais desse complexo fenômeno contemporâneo

da sociedade brasileira.

Entretanto, para que essa aproximação entre campos científicos diversos não seja mera justaposição de conhecimentos parciais, incapazes

de estabelecer um diálogo profícuo e investigar as origens profundas de um fenômeno, é necessário que ambos tenham perspectivas

ontológicas e epistemológicas comuns.

Glossário

Ontologia

Segundo o aristotelismo, parte da filosofia que tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais do ser, apartada da infinidade

de determinações que, ao qualificá-lo particularmente, ocultam sua natureza plena e integral. (ONTOLOGIA.  In: HOUAISS, A.;

VILLAR, M. de S. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009).

Epistemologia

Reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento humano, esp. nas relações que se estabelecem entre o

sujeito indagativo e o objeto inerte, as duas polaridades tradicionais do processo cognitivo; teoria do conhecimento.

(EPISTEMOLOGIA. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,

2009.)

1  MINKOWSKI, E. Le Temps Vécu. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

2  GIORGI, A. The questions of validity in qualitative research. Journal of Phenomenological Psychology, v. 33, n. 1, p. 1-18, 2002.

3 SHAFFER, H. The most important unresolved issue in the addictions: conceptual chaos. Subst Use Misuse, v. 11, n. 32, p. 1573-1580, 1997

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

A CONFLUÊNCIA DA PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA COM A SOCIOLOGIA DISPOSICIONALISTA

Page 7: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 A CONFLUÊNCIA DA PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA COM A SOCIOLOGIA DISPOSICIONALISTA

A psicopatologia fenomenológica investiga as condições de possibilidade das vivências conscientes . Seu campo de interesse ultrapassa a

descrição das experiências subjetivas, penetrando em sua  estrutura pré-reflexiva intersubjetiva  (pagina-03-extra-01-1.html)  de

significação, ou seja, explorando as condições, inadvertidas pela consciência, que determinam comportamentos, valores e expectativas na

vida .  Essa estrutura pré-reflexiva engloba tanto os fenômenos conscientes quanto os inconscientes.  A estrutura psíquica, assim

compreendida, delimita o campo de atuação das disponibilidades individuais e da vontade livre, caracterizando as personalidades e

também as patologias. Assim, para a compreensão antropológica das patologias, mais do que uma investigação sintomatológica , deve-se

investigar a estrutura psíquica a partir das cinco dimensões apresentadas na Figura 2.

4

5

6

Figura 2: esta imagem ilustra a estrutura psíquica dos sujeitos, a partir de cinco dimensões. Fonte: NUTE-UFSC (2017).

Page 8: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Saiba Mais

Fundamentalmente, a psicopatologia fenomenológica busca compreender a estrutura das vivências psíquicas tais e quais

realmente experimentadas pelos sujeitos. Entre os principais autores, pode-se citar Karl Jaspers, Eugène Minkowski, Ludwig

Binswanger, Erwin Straus e Viktor von Gebsattel. Você pode compreender melhor essa linha teórica clicando aqui

(http://www.fenomenoestrutural.com.br/home). 

Fonte:  MOREIRA, Virginia. A contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a psicopatologia fenomenológica.  Rev.

abordagem gestalt.,  Goiânia ,  v. 17,  n. 2,  p. 172-184,  dez.  2011 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S1809-68672011000200008&lng=pt&nrm=iso (http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?

script=sci_arttext&pid=S1809-68672011000200008&lng=pt&nrm=iso)>. Acesso em:  18  abr.  2017.

Essas dimensões se dão, em seu aspecto mais profundo, como modificação das relações da existência com o próprio eu, com a alteridade

interpessoal e com o mundo . 

De modo análogo, a sociologia disposicionalista busca investigar as condições pressupostas nas quais se fundamenta a realidade social ,

visando esclarecer o comportamento social individual ou coletivo . 

Nessa perspectiva, Jessé de Souza, em seu livro A ralé brasileira: quem é e como vive, postulou que a condição social das crianças pobres

brasileiras produz padrões de temporalização psíquica diferentes daqueles das crianças de classe média. 

Esses mecanismos pré-reflexivos dificultam as possibilidades de acesso dos pobres às “oportunidades” oferecidas pela sociedade . A

igualdade de oportunidades transforma-se em falácia quando essas oportunidades, de ascensão no sistema educacional ou no mercado

de trabalho, por exemplo, são organizadas a partir de valores e da realidade existencial da classe média, que não necessariamente

conseguem ser incorporadas em suas exigências pelas pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Dessa maneira, a diferenciação

social por esses mecanismos pré-reflexivos contribui para a perpetuação transgeracional da desigualdade e, por sua opacidade, permite

que a meritocracia seja usada para justificar privilégios.

7

8

9

10

Page 9: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Saiba Mais

A sociologia disposicionalista é uma corrente sociológica que pretende explicar as estruturas que orientam os sujeitos, nos mais

diversos contextos – família, amizades, escola, trabalho, entre outros. O sociólogo Pierre Bourdieu é o principal pensador dessa

teoria. Caso queira saber mais a respeito, leia este artigo (http://www.anpad.org.br/admin/pdf/eneo435.pdf).

Fonte:  SÁ, M. G. A Sociologia Disposicionalista e o Homem de Negócios Contemporâneo. In: VI ENCONTRO DE ESTUDOS

ORGANIZACIONAIS DA ANPAD, 2010, Florianópolis. Anais... Florianópolis: ANPAD, 2010.

Biografia Autor

 

Jessé José Freire de Souza

É um pesquisador brasileiro com formação nas áreas de direito e sociologia. Escreveu e organizou diversos livros,

sendo o Brasil e suas diversas características e problemáticas sociais temas bem explorados pelo autor. Ocupou o

cargo de presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2015 e atualmente é professor na

Universidade Federal Fluminense.

Fonte: JESSÉ Souza. In: Wikipedia. 2016 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Jess%C3%A9_de_Souza). Acesso em 18

abril 2017.

Glossário

Os mecanismos pré-reflexivos podem ser compreendidos como os processos psicológicos primários, que são vividos na

espontaneidade. É a resposta primeira do sujeito frente às exigências do mundo.

Glossário

Sistema de recompensa e/ou promoção (p. ex., num emprego) fundamentado no mérito pessoal. (MERITROCACIA. In: HOUAISS, A.;

VILLAR, M. de S. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009)

 

Portanto, o interesse pela formação pré-reflexiva da vivência temporal nos indivíduos e grupos sociais é a raiz comum que iremos

explorar no diálogo da psicopatologia com a sociologia para a compreensão das condições que favorecem o uso imoderado do

crack no Brasil.

Page 10: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

 

4 CHARBONNEAU, G. Introduction à la psychopathologie phénoménologique. Tome II. Paris: MJW Fédition, 2010.

de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 221-226, 2012.

5 TATOSSIAN, A.; MOREIRA V. Clínica do Lebenswelt: psicoterapia e psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Editora Escuta, 2012.

6 GOROSTIZA P. R.; MANES, J. A. Misunderstanding psychopathology as medical semiology: an epistemological inquiry. Psychopathology, v. 44, n. 4, p. 205-215,

2011.

7 MOREIRA, V.; BLOC, L. G. O Lebenswelt com fundamento da psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian. Psicopatologia Fenomenológica

Contemporânea, v. 4, p. 1-14, 2015.

8 BERGER, P. LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1973..

9 BOURDIEU, P. La distinction: critique social du jugement. Paris: Minuit, 1979.

10 SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

 

A ESTRUTURA PRÉ-REFLEXIVA INTERSUBJETIVA

A psicopatologia fenomenológica compreende que o psiquismo seja estruturado por categorias fundamentais, como as de tempo, espaço e

intersubjetividade, que condicionam os conteúdos e as significações das experiências que podem ser adquiridas ao longo da vida. Da

mesma forma que é impossível pensar qualquer objeto que não esteja localizado num certo lugar do tempo e do espaço, a própria

consciência está encerrada nessas categorias, que funcionam como seus "quadros móveis" de sustentação. 

Essas categorias condicionam a amplitude de possibilidades da existência mesma, incluindo os caminhos de seu desenvolvimento.

Vejamos, por meio de um exemplo, como a intersubjetividade pré-reflexiva ocorre: antes mesmo de sentirmos que somos, já existe uma

presença ativa de um outro determinando e regendo nossas vidas. Um exemplo disso é a relação mãe-bebê. O bebê recém-nascido sequer

é capaz de conhecer a si mesmo, mas já "sabe" que tem uma mãe com quem se relaciona.

Essa estrutura de dimensões fundamentais que orienta a existência regula a produção e as características daquilo que chamamos de

camada vivencial da existência, uma camada composta por sentimentos, pensamentos, sensações e esquemas avaliativos que os

indivíduos efetivamente experimentam. Damos um exemplo aqui, muito ligado aos problemas vivenciados pelos usuários de crack. Uma

estrutura pré-reflexiva na qual o tempo presente é muito mais importante do que os tempos futuro e passado determina que as ideias e

sentimentos que surjam na consciência tenham muito valor presente, mas pouca capacidade de se articular com o passado e com o

futuro.    A pessoa pode desejar intensamente ser cantora (um exemplo tirado de uma usuária entrevistada pela pesquisa), mas não dar

nenhum passo para realizar esse desejo. O desejo fica como que "empoçado" no presente, sem nenhuma consequência prática. As duas

camadas, a pré-reflexiva e a vivencial, podem ser compreendidas como condições antropológicas gerais, compartilhadas entre os sujeitos,

sendo a segunda delimitada e “formatada” pela primeira.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

 

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE

A temporalidade vincula-se diretamente com a identidade .11

 

Esta será entendida aqui como o núcleo de todas as vivências unitárias parciais nas quais se desdobra a existência de um

indivíduo. As vivências unitárias parciais são os papéis sociais da identidade.

Page 11: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

Os papéis são uma unidade em si – por exemplo, o papel de pai/mãe ou de enfermeiro/a –, mas, ao mesmo tempo, são apenas

parcializações da unidade identitária. As parcialidades da identidade compreendem um amplo espectro, que vai desde a identidade de

filho até unidades mais amplas, como classe social ou nacionalidade. A capacidade da personalidade singular de se pluralizar em

identidades parciais requer uma condição de possibilidade para sua atualização, a ipseidade . Assim, há uma relação inversamente

proporcional entre ambas. Uma existência com grande capacidade de ipseidade apresenta menor valor relativo de cada identidade parcial

(papel) e, consequentemente, maior capacidade de multiplicação da identidade existencial total.

Glossário

Capacidade da identidade de pluralizar-se em diferentes papéis sociais.

 

Quando a capacidade de pluralização da identidade for grande, ou seja, quando o indivíduo for capaz de assumir simultaneamente

um leque de papéis, os trajetos biográficos podem abarcar diversas identidades parciais, abrindo-se ao horizonte existencial

renovador da vida.

Mas não apenas a multiplicidade de papéis como também a temporalidade parcial de cada papel social sustentam o vigor existencial. Por

exemplo, um papel profissional estável, com um plano de carreira definido, é capaz de apoiar a identidade como um todo, mantendo sua

temporalidade saudável mesmo na ocorrência de crises em outros papéis, como o conjugal. Em síntese, pode-se dizer que a saúde da

temporalidade biográfica depende da capacidade de pluralização de papéis e da capacidade destes de oferecer temporalidade à

existência. A presença excessiva ou insuficiente dos papéis identitários na totalidade da existência favorece fenômenos

psicopatológicos . 12,13

 

As condições de existência das classes sociais desfavorecidas em estruturas sociais desiguais fazem com que essas pessoas tenham

uma tendência de vivência da temporalidade mais ancorada no presente. Para quem sobrevive no fio da navalha da miséria,

qualquer acidente de percurso (desemprego, separação conjugal) ameaça a própria sobrevivência. Uma vida sobressaltada e sem

perspectivas aprisiona no presente.

Estudos de psicopatologia fenomenológica com pessoas que abusam de substâncias também encontraram, independentemente da classe

social, uma vivência da temporalidade ancorada no presente, vinculada ao abuso de substâncias .14,15

Page 12: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

A fala de uma das entrevistadas da pesquisa é exemplar nesse sentido, pois demonstra sua dificuldade em criar uma narrativa de

reconstrução da própria trajetória no passado, numa linha de causas e efeitos, bem como, consequentemente, sua dificuldade em se

projetar num futuro imaginado, a curto ou a longo prazo:

Você quer saber por que cheguei nessa situação? Nem eu sei. Acho que foi ao acaso. Não sei, é uma fase que eu tô passando, eu não sei se é

provação, não sei, só Deus que sabe, eu não sei, é o acaso que tá acontecendo comigo, eu não tenho tanta inteligência. É só Ele que sabe das

coisas. Ele sabe as peças colocadas em cada... a vida é um tabuleiro de xadrez, Ele sabe qual peça colocar ali dentro. Ele vai mexer nas

peças.

(N. 34 anos)

11 RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990.

12 KRAUS, A. Pseudohysterischer Melancholischer. In: SEIDLER G. H. (Org.). Hysterie heute: metamorphosen eines Paradiesvogels. Estugarda: Ferdinand Enke

Verlag, 1996. p. 131-143.

13 TELLENBACH, H. Melancholie: Problemgeschichte Endogenität Typologie Pathogenese Klinik. Berlin: Springer Verlag, 1983.

14 KIMURA, B. Scritti di psicopatologia fenomenologica. Roma: Giovanni Fioriti Editore, 2005.

15 MESSAS, G. A existência fusional e o abuso de crack. Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, v. 4, n. 1, p. 124-140, 2015.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

A ESTRUTURA EXISTENCIAL DA PSICOPATOLOGIA DO CRACK

As descrições subjetivas dos usuários a respeito dos efeitos da substância revelam grande variabilidade, indo da euforia e disposição para o

trabalho até a irritabilidade e agressividade; no entanto, todas têm um fator em comum: a rapidez da redução da consciência ao

instante. É consistente entre os depoimentos que a rapidez com que o crack altera suas consciências é fator fundamental, achado

que sugere uma especificidade da droga .16

Eu gostava de usar cocaína pela sensação que ela dava. De poder e tal. Pra falar com as gurias. Mas a fissura é mais longa. O crack não, o

bagulho é momentâneo. [...] Me subiu adrenalina, me deixou eufórico, sensação de poder, a droga é fogo, cara. O bagulho te satisfaz. Por

isso que deixar é tão difícil.

(G., 25 anos)

Page 13: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

O crack tira o sono. E o barato dele vai e vem muito rápido, então tu quer ficar fumando. [...] O crack é diferente da cocaína, porque na

cocaína tu usa a noite inteira, vira, mas chega uma hora que tu não quer mais. E o crack não, tu sempre quer mais. Na cocaína, tu consegue

dormir e acorda enojado da droga. O crack não tem isso. [...] É uma sensação de perfeição. Dura 15 segundos.

(J., 31 anos)

A existência, subjugada ao instante, perderia sua capacidade de individualizar-se no tempo. Se, por um lado, há grande variabilidade

subjetiva nos relatos dos efeitos do crack, as expressões psicopatológicas, por sua vez, confluem todas para uma experiência de

desconforto interpessoal. Em sua maioria, esse desconforto remete a figuras do entorno imediato, com perfis sociais nítidos . Alguns

relatos expressam, por exemplo, o medo de que os parceiros do crack ou a polícia venham violentar-lhes ou, ainda, visões de vultos ou

vozes, que o próprio usuário atribui ao crack.

 

17

 https://youtu.be/wI7-lveu4RI

O crack faz os seus piores medos... Imagine um filme de suspense, aquele terror, tipo o assassino vai entrar com uma faca pela porta,

entendeu? Quando você usa crack, você fica sentindo isso o tempo todo... Os seus piores medos vêm à realidade... Isso aqui que é a

realidade, porque agora eu tô com a mente sã, eu tô sem usar droga, mas quando você usa crack essa realidade aqui para de existir. Tudo

fica sinistro, tudo fica suspeito, você se torna uma pessoa muito perigosa, muito perigosa…

       (J., 33 anos)

 

Uma nova redução fenomenológica desses achados identifica três condições de possibilidades homogêneas entre as experiências, as quais

estão descritas a seguir.

Page 14: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Elevação da materialidade vivida

Esta é a primeira delas. Reduzida a temporalidade, a espacialidade primária das vivências tende a intensificar-se . Essa intensificação

é tal que promove conjuntamente a compressão da materialidade . A expressão psicopatológica disso são as alucinações auditivas ou

visuais, desacompanhadas de delírios (com exceção dos delírios transitórios de perseguição, discutidos abaixo). A fala de um dos

usuários de crack entrevistados consegue ilustrar como o momento pós-intoxicação promove a impressão de que suas sensações

ganham aspecto de solidez:

Quando eleva-se a materialidade, uma das expressões psicopatológicas mais básicas é a sensação de que o som da rua invade o

ouvido, como se o som fosse mais sólido. São frequentes os relatos de ruídos na cabeça que o sujeito não consegue afastar, ou a

sensação de que há bichos sob a pele. Nesse momento, a "neutralidade" do corpo é perdida; não há experiência de tempo e todo o

corpo se movimenta.

No fragmento destacado acima, vale ressaltar como o sujeito mantém o juízo da realidade. O entrevistado em questão tem noção de

que suas visões não são reais. Trata-se, portanto, da vivência de uma “hiper-realidade”. Assim, vivenciar a sensação de materialidade

elevada não é o mesmo que "enlouquecer".

18

19

No início, né, era uma euforia... Era uma euforia... Eu que já falava muito, muito dado à fala, despencava a falar assim, de uma tal

forma, descontrolada... mas... com o tempo, isso foi mudando... Da euforia, passou pra... Era uma coisa assim, de..., meio

inexplicável, assim... Como eu vou dizer? Tô querendo achar a palavra certa pra isso... Era como se você sentisse a compulsão... tátil!

Sabe, como você pegar a compulsão e não conseguir largar ela? Eu quero, pronto e acabou, eu vou dar meu jeito de conseguir, não

importa se é assim ou daquele jeito, sabe.

(M., 37 anos, usa crack há 21 anos.)

A minha audição fica bem mais ativa. O corpo fica, os nervos agitados. E a pessoa fica alucinada. Tu não tem noção de nada. Eu via

coisas.” [...] Qualquer barulho incomoda. O crack ataca muito a audição. 

(O., 35 anos)

Mano, eu já vi até bicho. Eu já vi até bicho, eu já vi monstro, eu já vi os cara me matando... Mas isso nunca aconteceu, tá ligada? Mas

eu já vi todo tipo de coisa que você imaginar, eu já vi, mano.

      (H., 19 anos)

Eu ouço vozes, olho pro lado, parece que tem alguém me cuidando, um espírito, uma mulher com uma roupa branca, as vezes é uns

enxu na minha volta, eu vejo eles todos na minha volta. Só que não é que eu vejo, é alucinação da droga. Se tem uma pessoa

conversando contigo, você já pensa que a pessoa quer brigar, quer te avançar. Mas tudo isso é a ira da droga.

(A., 22 anos)

Page 15: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Estreitamento identitário

Relacionado à materialidade elevada, essa condição é reveladora de aumento da solidez do real perceptual, estende-se igualmente à

identidade, provocando um estreitamento identitário. A expressão psicopatológica do estreitamento identitário é visível nas

experiências persecutórias, já que estas nascem da redução do leque das alternativas da presença inter-humana a seu papel, real e

frequente, de perseguidor. Aqueles que objetivamente assediam a consciência individual em seu cotidiano – a família, a polícia –

passam agora a sitiá-la também na ausência física do perseguidor . As identidades pessoais e interpessoais possíveis dentro do corpo

familiar ou social ficam restritas àquelas que não apenas o cercam de todos os lados, como também enfatizam os valores da

sociedade, em sua condenação do uso da substância. É constante a queixa dos usuários de serem sentidos como lixo social. O

estreitamento identitário, gerando a incapacidade de renovação existencial, favorece também a presença frequente de depressão e de

intenções suicidas nos relatos .

 

 

20

21

 https://youtu.be/8WhVOMjI65E

Eu não tenho nada a perder. Eu não tenho nada. Eu não tenho dignidade, eu não tenho família, entendeu? É só eu por mim. Só eu

por mim. Só eu com os meus problemas, entendeu? Daqui eu posso piorar, é facinho pra eu piorar (estala os dedos). Pra melhorar

que é difícil.

(J., 33 anos)

Page 16: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

Submissão ao social

Destaca-se que a posição básica dos usuários em suas relações com o entrevistador foi a de sintonia integral com as significações

sociais pré-reflexivas, deixando, na maioria das vezes, a impressão de que o usuário relata aquilo que imagina que dele se espera. A

identidade de usuário de crack é assumida integralmente pelo entrevistado, enrijecendo especularmente a identidade do

entrevistador. A esse movimento chamamos de submissão ao social. A excessiva aproximação do social reduz os usuários à

obediência à prescrição rígida e definitiva de condutas e identidades, deixando à existência duas alternativas: aderir a ele

incondicionalmente ou permanecer em dívida com relação a suas prescrições. Há, assim, uma direta vinculação entre as frequentes

experiências de culpa dos usuários e sua submissão ao social, mesmo naqueles que não se sentem deprimidos e até exaltam a vivência

da marginalidade. 

 

 

 https://youtu.be/8jz4Rh6koYQ

 

(http://youtu.be/watch=0000/)

Pra eu estar aqui também é porque eu não sou flor que se cheire. Essa que é a grande verdade. Mas sinceramente me arrependo de

muitas coisas que eu fiz, principalmente de envolvimento com drogas e de não ter ouvido meus pais. Não ter ouvido meus pais…

                                                                                                  (J. 33 anos)

Page 17: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

 

 https://youtu.be/ZdXkzjfrrpI

Amo muito meu filho. Me sinto muito incapacitado, me sinto muito derrubado como homem em relação a não poder estar com meu

filho, eu fico envergonhado. Eu morro de vergonha, morro de medo, se, por exemplo, eu não tenho medo de polícia eu não tenho

medo de nada, eu morro de medo de algum parente meu entrar por essa porta e me ver aqui, nesta situação. Pra mim vai ser muito

vergonhoso. Vai ser tão vergonhoso que eu acho que eu vou meter o pé daqui e vou parar no meio da rua, entendeu? [...] eu acho

que estraguei a vida do meu filho porque eu não tô perto dele, eu não posso orientar o meu filho.

                                                                                                 (J. 33 anos)

16 KRAUS A. Phenomenological and criteriological diagnosis: different or complementary? In: SADLER, J. Z.; WIGGINS, O. P.; SCHWARTZ, M. A. (Org.).

Philosophical Perspectives on Psychiatric Classification. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.

17 DI PETTA, G. L´experience paranoide chez les cocaïnomanes: phénoménologie, psychopatholoige, traitement. In: BALLERINI, A.; DI PIAZZA, G. (Org.) Délirer:

analyse du phénomène delirant. Paris: Le cercle herméneutique, 2011. p. 65-78.

18 MESSAS, G. Psicose e embriaguez: psicopatologia fenomenológica da temporalidade. São Paulo: Editora Intermeios, 2014.

18 SBARTHÉLÉMY, J. M. L´analyse Phénoméno-strucuturale dans l´étude Psychologique des Alcooliques. Toulouse: Erès, 1987.

20 RIBEIRO, L.; SANCHEZ, Z.; NAPPO, S. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. Jornal

Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 59. p. 210-18, 2010..

21 KRAUS, A. Der Typus Melancholicus als Normopath. In: LANG, H.; FALLER, H.; SCHOWALTER, M. (Org.) Struktur, Persönlichkeit, Persönlichkeitsstörung.

Würzburg: Köningshausen & Neumann, 2007. p. 131-143.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA 

Page 18: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

A ESTRUTURA EXISTENCIAL DA PSICOPATOLOGIA DO CRACK

Os entrevistados se condicionam pré-reflexivamente por deveres sociais definidos, cujo valor não conseguem relativizar. Estão

demasiadamente expostos àquilo que lhes é prescrito, desprovidos da capacidade de encontrar a distância suficiente para uma reflexão

sobre essa condição. Dentre esses deveres, destaca-se o respeito incondicional pela família, que se expressa na grande influência desta

como fator de risco ou proteção para o uso de crack .

A adesão incondicional a um corpo social rígido com identidades fixas esculpe uma hierarquia nas relações interpessoais, qualificando a

submissão ao social como hiperhierárquica. Em diálogo direto com a experiência de culpa, há sempre a presença ativa de seu polo

oposto, a convicção. A identidade social dos convictos e dos autoritários é decorrência natural da estruturação interpessoal

destemporalizante. Quanto mais uma identidade for chancelada por uma frágil vivência da temporalidade, mais se adequará a essa

condição pré-reflexiva.

De modo sintético, a psicopatologia do usuário das cracolândias reflete, portanto, a transformação da existência em um aprisionamento

imutável e rígido dentro de um corpo social saturado, prescritivo e inclemente. As palavras de um usuário entrevistado dentro da

cracolândia paulistana, descrevendo seus pares e a si mesmo, resumem a homogeneidade dessa queda existencial: “[...] se estagnaram

aqui dentro, não saem nem pra tomar um porre, nem pra arrumar um dinheiro”. Restaria acrescentar que estagnaram em uma cidadela

sitiada, assediada por olhos vigilantes e suspeitos.

22

Momento Cultural

“Nasceram todos jogados na calçada

Sem estrutura para nunca terem nada

Que vê na pedra sua única saída

Pra esquecer o seu futuro nessa vida.”

(PROJECT46, 2014)

Esses são versos (https://www.letras.mus.br/project46/empedrado/) da música "Empedrado", da banda de heavy metal

paulista Project46. A Project46 surgiu em 2008 na capital paulista e segue em atividade até hoje, com dois álbuns de estúdio

lançados. A faixa “Empedrado” faz parte do álbum Que seja feita a nossa vontade, de 2014, e fala sobre o sofrimento de uma

vida marcada pela miséria material comum aos indivíduos que fazem uso abusivo de crack. Tanto essa música como o álbum

completo podem ser ouvidos no canal oficial da banda no YouTube, disponível aqui (https://www.youtube.com/watch?

v=i_CwbiDE_eU&list=PLIz11ApVxr-QhyjSJAYSYuRHcxZdwMfj4&index=7).

 

22 HORTA, R. et al.  Influência da família no consumo de crack. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 63, n. 2, p.104-12, 2014.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

ESTREITAMENTO IDENTITÁRIO E VULNERABILIDADE DE CLASSE SOCIAL

A manutenção da unidade identitária causada pela intoxicação aguda é insuficiente para produzir dependência, como observado nos casos

de uso controlado do crack .23

Page 19: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

O ponto fundamental para a compreensão antropológica do usuário abusivo de crack passa pela observação de que a procura repetida

pela manutenção da unidade, proporcionada pela droga, leva a um estreitamento identitário que paralisa a existência. Deve-se, portanto,

indagar sobre: (1) os motivos pelos quais certas estruturas de personalidade tornam-se tão vulneráveis à necessidade de manter sua

unidade, terminando por deixarem-se dominar por ela e (2) a razão pela qual o estreitamento identitário determina, nesta população, as

formas sociais encontradas nas cracolândias.

É para essa investigação que a confluência da psicopatologia fenomenológica com a sociologia disposicionalista apresenta seu valor

elucidativo, seja pelo momento da vida – especialmente adolescência (http://www.aberta.senad.gov.br/modulos/capa/o-adolescente-

em-desenvolvimento-e-a-contemporaneidade), quando as identidades parciais são mais frágeis –, seja pelas características da história

de vida, da personalidade ou do meio social (http://www.aberta.senad.gov.br/modulos/capa/o-sujeito-os-contextos-e-a-

abordagem-psicossocial-para-pessoas-que-usam-drogas), certo contingente de pessoas é mais vulnerável à instabilidade existencial e,

portanto, buscam mais unificação. A vulnerabilidade à instabilidade existencial requer um contraponto capaz de oferecer a mínima

unidade à personalidade, uma identidade suficiente para a manutenção da existência na sua trajetória de vida. Essa unidade se dá,

preferencialmente, pela presença, maior ou menor ao longo da vida, de uma alteridade interpessoal íntegra e estável.

Glossário

Alteridade é a concepção de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Nenhum indivíduo pode existir senão a

partir da visão e do contato com o outro. Não pode haver indivíduo se não houver uma relação estabelecida entre ele e outro ou

outros (a coletividade).

https://youtu.be/APBNBsl7tUU

Page 20: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

   Eu sou um tipo de pessoa que eu não presto pra viver sozinho. Se eu prestasse pra viver sozinho eu estaria morando dentro de alguma

maloca aí, tinha alugado um quarto pra eu poder ficar, porque eu tenho já as condições de fazer isso. Mas eu não vou fazer isso agora,

porque eu preciso ter uma pessoa do meu lado pra ficar falando do meu lado: 'pô, cara, não faz isso', 'pô, mano, tá nervoso por quê?'.

(J., 33 anos, expressando a necessidade de uma alteridade interpessoal que lhe confira estabilidade existencial).

Há elementos geradores de estabilidade existencial que, na sua ausência ou fragilidade, aumentam a vulnerabilidade pessoal. Esse

fenômeno ocorre independentemente da posição social do usuário . Trata-se de uma condição antropológica geral. No entanto, as cenas

de uso de crack a céu aberto revelam majoritariamente a presença de grupos socialmente vulneráveis.

Elementos geradores de estabilidade existencial:

24

   Relações familiares

Historicamente, as relações familiares são as primeiras e mais importantes fontes de promoção de unidade. São elas que mantêm a

existência calcada em um passado contínuo que permite a transformação do presente rumo ao futuro. Em nossa população estudada,

é frequente a ausência ou fragilidade dessas relações primeiras. Violência familiar e abandono precoce são achados frequentes dos

usuários de crack brasileiros . A ausência de um anteparo humano para a unidade da personalidade favorece a busca supletiva pela

unidade oferecida pelo crack. A alteração súbita de consciência causada pela droga, reduzindo a ipseidade, estabiliza a estrutura da

existência, protegendo-a, inicialmente, de uma intolerável falta de determinação identitária.

     Papel profissional

  O papel profissional é importante fator de orientação da existência. Embora haja papéis sociais que permitam maior ou menor

criatividade, todo papel constitui-se por uma prescrição de condutas definidas a partir de suas relações recíprocas com os demais

papéis da sociedade. Souza demonstrou como a assunção de papéis profissionais entre os excluídos brasileiros é instável e efêmera.

A maior parte da população deste estudo não apresenta profissão definida, vivendo de bicos instáveis e de mínimo valor na hierarquia

social. Sua identidade profissional não é capaz de oferecer estabilidade, ampliando, assim, a ipseidade da existência e potencializando

a necessidade de busca de unidade.

   Escolaridade

O outro elemento gerador de estabilidade ausente ou frágil na população das cracolândias é a escolaridade. 80% de usuários

regulares de crack das cenas de uso brasileiras não chegaram ao Ensino Médio . A trajetória de classe que vai da família ao papel

profissional tem a vida escolar como intermediária. É típico das instituições escolares brasileiras um distanciamento entre as

necessidades e predisposições de classe dos mais pobres e os programas oferecidos, dificultando a identificação entre estudante e

escola. Não raro, é pela identidade de oposição à escola que esses estudantes conseguem alguma estabilidade . Assim, a imensa

maioria dos frequentadores das cenas de uso de crack não pode, na transição para a vida adulta, encontrar na identidade estudantil

apoio para a estabilidade de sua identidade.

25

26

25

27

23 OLIVEIRA, L.; NAPPO, S. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Revista de Saúde Pública, v. 42, n. 4, p.

664-671. 2008.

24 FREIRE, S. D. et al. Intensidade de uso de crack de acordo com a classe econômica de usuários internados na cidade de Porto Alegre/Brasil. Jornal Brasileiro

de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 221-226, 2012.

25 BASTOS, F. I.; BERTONI, N. Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais

brasileiras? Rio de Janeiro: Lis/Icict/Fiocruz, 2014.

26 SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

27 ROCHA, E.; TORRES, R. O crente e o delinquente. In: Souza J (Ed.) A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 205-40.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

E

Page 21: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

ESTREITAMENTO IDENTITÁRIO E VULNERABILIDADE DE CLASSE SOCIAL

Quanto menores forem os recursos individuais para a multiplicação de parcialidades identitárias, maior a chance de um elemento exógeno

capaz de oferecer força à unidade da personalidade (como o crack) encontrar apenas a identidade de classe como estrutura a ser

reforçada.

A identidade de classe excluída é especialmente exaltada pelo efeito do crack, porque ambos operam na temporalidade do presente

absoluto. Assim, o estreitamento identitário subordinado ao social provocado pela substância encontra consolidação na classe social,

última instância da identidade a ser perdida. Se o passado pessoal dissolve-se pelas alterações da intoxicação e o futuro não se apresenta,

resta à existência cristalizar-se na instância temporal mais resistente da história de vida, a classe social. A classe social, como parcialidade

da identidade, apresenta particularidades que a diferenciam, por exemplo, do papel profissional ou mesmo do familiar. O papel

profissional pode ser exercido com maior ou menor rigidez; o familiar permite ao menos uma modificação parcial veloz, ainda que seja pelo

mero abandono físico da família (caso típico das cracolândias). Há, enfim, como deles tomar alguma distância. As condições encarnadas na

classe social são de difícil mudança, já que não dependem apenas do indivíduo. A estrutura social brasileira determina destinos de classe

rígidos. Um indivíduo pertence ou não a uma classe e não pode dela escapar rapidamente por um ato de fuga ou criatividade. Em síntese, a

subordinação ao social assim produzida não se dá por um reforço de papéis profissionais ou de afinidade ideológica, mas pela cristalização

da tipicidade da classe social.

Como mostrou Binswanger em estudo clássico (1977), a inautenticidade existencial substitui o indivíduo pelo tipo, em sua tentativa de

alcançar estabilidade para viver.

Esses usuários perdem seus perfis idiossincráticos homogeneizando-se em sua identidade de classe, cristalizada no presente absoluto. Mas

se toda experiência humana se constitui pelo diálogo com a alteridade, e as classes sociais não fogem a isso, o estreitamento identitário

subordinado ao social da classe dos excluídos usuários de crack constitui-se pela elevação de seu contraste com relação às classes média e

alta.

28

Biografia Autor

 

Ludwig Binswanger

Foi um psiquiatra suíço precursor no campo da psicologia fenomenológica e expoente da Daseinsanalyse, uma

linha de psicopatologia e psicoterapia que se baseia nas teorias do filósofo Martin Heidegger. Binswanger nasceu

em 1881 e formou-se em medicina na universidade de Zurique, tendo estudado e trabalhado com diversos nomes

importantes da psicanálise, como Sigmund Freud, Carl Jung e Eugen Bleuler. É considerado o primeiro profissional

a combinar fenomenologia, psicopatologia e psicologia e psicoterapia.

Fonte: LUDWIG, Binswanger. In: Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Binswanger). 2015. Acesso

em: 18 abr. 2017.

Assim, a formação das cracolândias revela ao máximo um isolamento por oposição da classe dos excluídos, constituindo uma

caricatura da sociedade brasileira.

A formação de cracolândias não é, portanto, casual ou provocada apenas pela pobreza (países pobres podem não ter cracolândias), mas

determinada pela dominação da existência por uma unificação artificial, atuante sobre indivíduos que não puderam ao longo de suas

vidas, pelos motivos que forem, encontrar a unidade pessoal necessária para temporalizar-se por meio das relações e instituições

humanas. Inexiste, assim, no fenômeno das cracolândias, uma decomposição existencial neutra, na qual a rua seria meramente a ausência

Page 22: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

de um local íntimo e pessoal para se viver. Como relata um dos usuários entrevistados na pesquisa realizada

(http://obid.senad.gov.br/obid/livro-crack-e-exclusao-social_digital_web.pdf/view), “[...] dormir na rua é comparecer na sociedade”. A

frase revela como a sociedade, mesmo nessas cenas de flagrante abandono e ausência, segue presente para os usuários que nela vivem. 

A compreensão das condições de possibilidade do fenômeno social mostra que as cenas de uso nas ruas estão por necessidade

situadas diante dos olhos dos demais membros das classes sociais brasileiras.

Esse achado pré-reflexivo não é negado pela existência de usuários de crack que fazem uso da droga solitariamente . O uso solitário ou

coletivo em locais isolados apenas atesta que o efeito de obtenção de unidade de personalidade procurado com ou provocado pela

intoxicação encontrou outros anteparos para sua atualização, prescindindo da absorção completa do indivíduo em sua classe social. As

variantes de um fenômeno antropológico geral são determinadas pelas alternativas que uma sociedade oferece para a concretização de

uma forma típica de existência. Uma sociedade como a brasileira, na qual as fronteiras entre as classes sociais são fortemente

demarcadas , possibilita aos indivíduos excluídos encontrarem unidade existencial pela hiperacentuação de sua classe perenemente

excluída, tal unidade em outras populações pode ser oferecida por uma identidade étnica positiva . Constrói-se, assim, um círculo

vicioso, no qual a busca extremada por uma unidade da personalidade, ao não encontrar anteparo interpessoal sólido e estável, acarreta

um irrefreável anseio por mais unidade, solidificando o indivíduo num afunilamento existencial hipersocial, hipermaterial e anônimo.

29

30

31

28 BINSWANGER, L. Três formas da existência malograda: extravagância, excentricidade, amaneiramento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977.

29 JORGE, M. et al. Ritual de consumo de crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de

Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2909-2918, 2013.

30 SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

31 MARSIGLIA, F. F. Ethnicity and Ethnic Identity as Predictors of Drug Norms and Drug Use Among Preadolescents in the US Southwest. Subst Use Misuse, v. 39,

n. 7, p. 1061-94, 2004.

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

Síntese Reflexiva

Neste módulo, procuramos compreender o fenômeno das cracolândias por meio da aproximação de duas ciências

correlacionadas epistemológica e ontologicamente – a psicopatologia fenomenológica e a sociologia disposicionalista – ao

estabelecer relações entre a origem de classe dos marginalizados brasileiros com sua maior vulnerabilidade ao efeito

destemporalizador do crack. A partir das narrativas do vídeo e tomando como base a leitura do módulo, procure refletir sobre

como a história de vida desses sujeitos expressa uma situação de vulnerabilidade de classe social e implica um estreitamento

identitário. Como compreender, então, de forma mais complexa, o abuso de crack desses dois sujeitos? Dada essa

compreensão, como planejar uma abordagem de cuidado que considere esses determinantes psicossociais?

Práticas Potencializadoras (pagina-10.html)  

TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS CRACOLÂNDIAS BRASILEIRAS:

APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOPATOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A SOCIOLOGIA

DISPOSICIONALISTA

 

PRÁTICAS POTENCIALIZADORAS

Page 23: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

PRÁTICAS POTENCIALIZADORAS

O projeto Luz Solar faz parte do programa Braços Abertos

(http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/DBAAGO2015.pdf) e tem como objetivo levar à região da Luz, em

São Paulo, oficinas artísticas, como de percussão, música, teatro, expressão corporal e outras intervenções culturais, procurando abordar a

questão do crack a partir da arte. Para conhecer mais sobre essa iniciativa, leia esta matéria intitulada “Intervenções artísticas chegam à

Cracolândia (https://www.cartacapital.com.br/revista/804/pedras-musicas-palavras-e-afeto-6060.html)”.

REFERÊNCIAS

Textos

DUNN, J. et al. Crack cocaine: an increase in the use among patient attending clinics in São Paulo 1990-1993. Subst Use Misuse,  v. 31, n. 4,

p. 519-527, 1996.

BASTOS, F. I.; BERTONI, N. Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são

nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Lis/Icict/Fiocruz, 2014.

FREIRE, S. D.  et al.  Intensidade de uso de crack de acordo com a classe econômica de usuários internados na cidade de Porto

Alegre/Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 221-226, 2012.

SHAFFER, H. The most important unresolved issue in the addictions: conceptual chaos. Subst Use Misuse, v. 11, n. 32, p. 1573-1580, 1997

CHARBONNEAU, G. Introduction à la psychopathologie phénoménologique. Tome II. Paris: MJW Fédition, 2010.

TATOSSIAN, A.; MOREIRA V. Clínica do Lebenswelt: psicoterapia e psicopatologia fenomenológica. São Paulo: Editora Escuta, 2012.

GOROSTIZA P. R.; MANES, J. A. Misunderstanding psychopathology as medical semiology: an epistemological inquiry. Psychopathology, v.

44, n. 4, p. 205-215, 2011.

MOREIRA, V.; BLOC, L. G. O Lebenswelt com fundamento da psicopatologia fenomenológica de Arthur Tatossian.  Psicopatologia

Fenomenológica Contemporânea, v. 4, p. 1-14, 2015.

BERGER, P. LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1973.

BOURDIEU, P. La distinction: critique social du jugement. Paris: Minuit, 1979.

SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990.

KRAUS, A. Pseudohysterischer Melancholischer. In: SEIDLER G. H. (Org.). Hysterie heute: metamorphosen eines Paradiesvogels. Estugarda:

Ferdinand Enke Verlag, 1996. p. 131-143.

TELLENBACH, H. Melancholie: Problemgeschichte Endogenität Typologie Pathogenese Klinik. Berlin: Springer Verlag, 1983.

KIMURA, B. Scritti di psicopatologia fenomenologica. Roma: Giovanni Fioriti Editore, 2005.

MESSAS, G. A existência fusional e o abuso de crack. Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea, v. 4, n. 1, p. 124-140, 2015.

MINKOWSKI, E. Le Temps Vécu. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

Page 24: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

MESSAS, G. Psicose e embriaguez: psicopatologia fenomenológica da temporalidade. São Paulo: Editora Intermeios, 2014.

REIS H.; MOREIRA, T. Crack in the family´s context: a phenomenological approach. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n.

4, p. 1115-1123, 2013.

GIORGI, A. The questions of validity in qualitative research. Journal of Phenomenological Psychology, v. 33, n. 1, p. 1-18, 2002.

GIORGI, A. The descriptive phenomenological method in psychology: a modified Husserlian approach. Pittsburgh: Duquesne University

Press, 2009.

ANDRADE, C.; HOLANDA, A. Apontamentos sobre a pesquisa qualitativa e pesquisa empírico-fenomenológica. Estudos de Psicologia,

Campinas, v. 27, n 2,  p. 259-268, 2010.

BLANKENBURG, W. Der Verlust der natürlichen Selbstverständlichkeit. Berlin: Parodos Verlag, 2012.

KRAUS A. Phenomenological and criteriological diagnosis: different or complementary? In: SADLER, J. Z.; WIGGINS, O. P.; SCHWARTZ, M. A.

(Org.). Philosophical Perspectives on Psychiatric Classification. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.

STEWART, M. J.; FULTON, H. G.; BARRETT, S. P. Powder and crack cocaine use among opioid users: is all cocaine the same? Journal of

Addiction Medicine, v. 8, n. 4, p. 264-270, 2014.

MESSAS G. On the essence of drug intoxication and the pathway to addiction: a phenomenological contribution. Journal of Addictive

Behaviors,Therapy & Rehabilitation, v. 3, p.1-11, 2014.

DI PETTA, G. L´experience paranoide chez les cocaïnomanes: phénoménologie, psychopatholoige, traitement. In: BALLERINI, A.; DI PIAZZA,

G. (Org.) Délirer: analyse du phénomène delirant. Paris: Le cercle herméneutique, 2011. p. 65-78.

SBARTHÉLÉMY, J. M. L´analyse Phénoméno-strucuturale dans l´étude Psychologique des Alcooliques. Toulouse: Erès, 1987.

RIBEIRO, L.; SANCHEZ, Z.; NAPPO, S. Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da

droga. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 59. p. 210-18, 2010.

KRAUS, A. Der Typus Melancholicus als Normopath. In: LANG, H.; FALLER, H.; SCHOWALTER, M. (Org.) Struktur, Persönlichkeit,

Persönlichkeitsstörung. Würzburg: Köningshausen & Neumann, 2007. p. 131-143.

ADORNO, R. et al. Etnografia da cracolândia: notas sobre uma pesquisa em território urbano. Saúde & Transformação Social,

Florianópolis, v. 4, n. 2, p. 4-13, 2013.

HORTA, R. et al.  Influência da família no consumo de crack. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 63, n. 2, p.104-12, 2014.

 

SUÁREZ, H. et al. Fisuras, dos estudios sobre pasta base de cocaína en el Uruguay: aproximaciones cuantitativas y etnográficas. Facultad

de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República, 2014. Disponível em:

<http://www.adasu.org/prod/1/209/FISURAS.Estudio.pasta.base.en.Uruguay..pdf

(http://www.adasu.org/prod/1/209/FISURAS.Estudio.pasta.base.en.Uruguay..pdf)>. Acesso em: 9 mar. 2017.

 

SOUZA, J. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Minas Gerais: Editora UFMG, 2012.

 

OLIVEIRA, L.; NAPPO, S. Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Revista de Saúde Pública, v.

42, n. 4, p. 664-671. 2008.

 

ROCHA, E.; TORRES, R. O crente e o delinquente. In: Souza J (Ed.) A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2009. p. 205-40.

BINSWANGER, L. Três formas da existência malograda: extravagância, excentricidade, amaneiramento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1977.

Page 25: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter

 

 

 

JORGE, M. et al. Ritual de consumo de crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência e Saúde

Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2909-2918, 2013.

 

SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2012.

 

MARSIGLIA, F. F. Ethnicity and Ethnic Identity as Predictors of Drug Norms and Drug Use Among Preadolescents in the US Southwest. Subst

Use Misuse, v. 39, n. 7, p. 1061-94, 2004.

 

ONU. Joint statement: compulsory drug detention and rehabilitation centers. 2012. Disponível em:

<http://www.unaids.org/sites/default/files/en/media/unaids/contentassets/documents/document/2012/JC2310_Joint%20Statemen

t6March12FINAL_en.pdf

(http://www.unaids.org/sites/default/files/en/media/unaids/contentassets/documents/document/2012/JC2310_Joint%20Statemen

t6March12FINAL_en.pdf)>. Acesso em: 9 mar. 2017.

 

VICTORA, C. G. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet, v. 356, p.1093-98, 2000.

 

CARVALHO, I. S.; PELLEGRINO, A. P. Políticas de Drogas no Brasil: a mudança já começou Coordenação e Edição: Instituto Igarapé. 2015.

Disponível em: <http://igarape.org.br/wp-content/uploads/2013/05/AE-16_CADERNO-DE-EXPERI%C3%8ANCIAS_24-03w.pdf

(http://igarape.org.br/wp-content/uploads/2013/05/AE-16_CADERNO-DE-EXPERI%C3%8ANCIAS_24-03w.pdf)>. Acesso em: 15 abr.

2015.

 

GARCIA, L.; TYKANORI, R.; MAXIMIANO V. Uma perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as políticas públicas.

In: BASTOS, F. I.; BERTONI, N. (Ed.) Quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de

Janeiro: Lis/Icict/Fiocruz, 2014. p.147-155.

Vídeos

CRACK: repensar. Produção: Doctela. Fundação Oswaldo Cruz. 1 vídeo (25 min, 20 s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?

v=K-TFGOdW8RE (https://www.youtube.com/watch?v=K-TFGOdW8RE)>. Acesso em: 10 mar. 2017.

NOSSOS mortos. Produção e direção: David Vega. (49 min, 37 s), São Paulo: Cine Registro, 2013. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=g_Ogwxx1TQU (https://www.youtube.com/watch?v=g_Ogwxx1TQU)>. Acesso em: 10 mar. 2017.

Page 26: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter
Page 27: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter
Page 28: TEMPORALIDADE E IDENTIDADE DE CLASSE NAS …aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170619-131937-001.pdf · Este módulo explora os resultados de uma pesquisa nacional, de caráter