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 TERRAS INDÍGENAS  E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO  DA  NATUREZA  37 Problemas de terra continuam no foco central do noti- ciário desalentador que a mídia divulga a respeito dos ín- dios no Brasil. Infelizmente, o público continua mal infor- mado por notícias que apenas denunciam tensões, sem as remeter a uma história continuada de confl itos, cuja tra jetó- ria é não só muito bem documentada, como fundada nas próprias contradições da política indigenista brasileira. O comentário que segue não se aterá à análise des- ses conflitos, nem à discussão dessas contradições, mas tratará de outras tensões, que surgem na intersecção en- tre o conceito jurídico de Terra Indígena e a compreensão antropológica da territorialidade concebida e praticada por diferentes grupos indígenas. (1)  Territorialidade, como ve- remos, é uma abordagem que não só permite recuperar e valorizar a história da ocupação de uma terra por um gru- po indígena, como também propicia uma melhor compre- ensão dos elementos culturais em jogo nas experiências de ocupação e gestão territorial indígenas. Como exercí- cio, proponho distinguirmos entre os conceitos que sus- tentam as três formulações indicadas no título. Parece, de fato, essencial evidenciar que o enfoque da mídia nos conflitos entre índios e ocupantes não-indí- genas procura quase sempre caracterizar como provas de sua “acultu ração” o engajamento dos í ndios em at ivi- dades antes monopolizadas pelos não-índios ou sua ar- ticulação à economia regional. Por exemplo, ativida- des de criação de gado, de garimpagem etc... são apre- sentadas como aspectos incongruentes com seus di- reitos territoriais. Temos aqui um problema na compre- ensão da dimensão cultural envolvida na territorialidade indígena: a imagem romântica de índios nomadizando por amplos territórios intocados domina ainda a visão da po- pulação brasileira acerca dos “usos, costumes e tradições” indígenas. Dos índios que não estiverem correspondendo a essa imagem, diz-se que perderam sua tradição. Índios estes que acabam por serem responsabilizados pelos con- flitos que a mídia docum enta, como se as causas das ten- sões brotassem do interior da condição de índio. Terras ocupadas? Territórios? Territorialidades? Dominique Tilkin Gallois* O CONTATO COLOCA UM GRUPO INDÍGENA DIANTE DE LÓGICAS ESPACIAIS DIFERENTES  DA SUA E QUE PASSAM A SER EXPRESSAS TAMBÉM EM TERMOS TERRITORIAIS . AS DIVERSAS FORMAS DE REGULAMENTAR A QUESTÃO TERRITORIAL  INDÍGENA PELOS ESTADOS NACIONAIS NÃO PODEM SER  VISTAS  APENAS DO ÂNGULO DO RECONHECIMENTO  DO DIREITO À TERRA”, MAS COMO TENTATIVA DE SOLUÇÃO DESSE CONFRONTO. * Antropóloga, docente do Departamento de Antropologia Social da FFLCH-USP e coordenadora do NHII-USP (Núcleo de História Indígena e do Indigenismo) 1  Agradeço a Nadja Havt, pelas profícuas discussões que mantivemos ao longo de muitos anos sobre a temática aqui tratada, assim como suas valio- sas análises da territorialidade Zo´é, algumas delas incorporadas no presente texto (ver referências na bibliografia). T al desvirtuamento é grave, especialmente se consi- deramos que, apesar das diferenças entre o conceito jurí- dico de Terra Indígena, tal como está posto na Constitui- ção, e a compreensão antropológica dos fundamentos da ocupação e territorialidade indígena, há evidentes inter- secções e possibilidades de articulação. Senão vejamos: o artigo 231 reconhece aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”; o texto constitucional também indica que tal ocupação tradicio- nal deve ser lida através das categorias e práticas locais, ou seja, levando-se em conta os “usos, costumes e tradi- ções” de cada g rupo. Logo, uma Terra Indígena deve ser definida – identificada, reconhecida, demarcada e homo- logada – levando-se em conta quatro dimensões distin- tas, mas complementares, que remetem às diferentes for- mas de ocupação, ou apropriações indígenas de uma ter- ra: “as terras ocupadas em caráter permanente, as utiliza- das para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem- estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural”. Os antropólogos têm respondido a esses parâmetros através de sua participação nos processos de identifica- ção, nos termos da Portaria nº 14/1996 do Ministério da Justiça. Nesses relatórios, eles procuram evidenciar a exis- tência de diferentes lógicas espaciais que, em cada caso específico, promovem determinadas articulações entre essas distintas dimensões de uma Terra Indígena. Mas, por outro lado, os antropólogos também se interrogam teoricamente sobre a existência de conceitos indígenas a respeito de território, de limite, de posse etc... buscando por eventuais correspondências entre categorias locais e

Terras Ocupadas, Territórios e Territorialidades

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O CONTATO COLOCA UM GRUPO INDÍGENA DIANTE DE LÓGICASESPACIAIS DIFERENTES DA SUA E QUE PASSAM A SER EXPRESSASTAMBÉM EM TERMOS TERRITORIAIS. AS DIVERSAS FORMAS DEREGULAMENTAR A QUESTÃO TERRITORIAL INDÍGENA PELOSESTADOS NACIONAIS NÃO PODEM SER VISTAS APENAS DO ÂNGULODO RECONHECIMENTO DO DIREITO À “TERRA”, MAS COMO TENTATIVADE SOLUÇÃO DESSE CONFRONTO.

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  • TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA 37

    Problemas de terra continuam no foco central do noti-

    cirio desalentador que a mdia divulga a respeito dos n-

    dios no Brasil. Infelizmente, o pblico continua mal infor-

    mado por notcias que apenas denunciam tenses, sem as

    remeter a uma histria continuada de conflitos, cuja trajet-

    ria no s muito bem documentada, como fundada nas

    prprias contradies da poltica indigenista brasileira.

    O comentrio que segue no se ater anlise des-

    ses conflitos, nem discusso dessas contradies, mas

    tratar de outras tenses, que surgem na interseco en-

    tre o conceito jurdico de Terra Indgena e a compreenso

    antropolgica da territorialidade concebida e praticada por

    diferentes grupos indgenas.(1) Territorialidade, como ve-

    remos, uma abordagem que no s permite recuperar e

    valorizar a histria da ocupao de uma terra por um gru-

    po indgena, como tambm propicia uma melhor compre-

    enso dos elementos culturais em jogo nas experincias

    de ocupao e gesto territorial indgenas. Como exerc-

    cio, proponho distinguirmos entre os conceitos que sus-

    tentam as trs formulaes indicadas no ttulo.

    Parece, de fato, essencial evidenciar que o enfoque

    da mdia nos conflitos entre ndios e ocupantes no-ind-

    genas procura quase sempre caracterizar como provas

    de sua aculturao o engajamento dos ndios em ativi-

    dades antes monopolizadas pelos no-ndios ou sua ar-

    ticulao economia regional. Por exemplo, ativida-

    des de criao de gado, de garimpagem etc... so apre-

    sentadas como aspectos incongruentes com seus di-

    reitos territoriais. Temos aqui um problema na compre-

    enso da dimenso cultural envolvida na territorialidade

    indgena: a imagem romntica de ndios nomadizando por

    amplos territrios intocados domina ainda a viso da po-

    pulao brasileira acerca dos usos, costumes e tradies

    indgenas. Dos ndios que no estiverem correspondendo

    a essa imagem, diz-se que perderam sua tradio. ndios

    estes que acabam por serem responsabilizados pelos con-

    flitos que a mdia documenta, como se as causas das ten-

    ses brotassem do interior da condio de ndio.

    Terras ocupadas? Territrios? Territorialidades?

    Dominique Tilkin Gallois*

    O CONTATO COLOCA UM GRUPO INDGENA DIANTE DE LGICAS

    ESPACIAIS DIFERENTES DA SUA E QUE PASSAM A SER EXPRESSAS

    TAMBM EM TERMOS TERRITORIAIS. AS DIVERSAS FORMAS DE

    REGULAMENTAR A QUESTO TERRITORIAL INDGENA PELOS

    ESTADOS NACIONAIS NO PODEM SER VISTAS APENAS DO NGULO

    DO RECONHECIMENTO DO DIREITO TERRA, MAS COMO TENTATIVA

    DE SOLUO DESSE CONFRONTO.

    * Antroploga, docente do Departamento de Antropologia Social da

    FFLCH-USP e coordenadora do NHII-USP (Ncleo de Histria Indgenae do Indigenismo)1 Agradeo a Nadja Havt, pelas profcuas discusses que mantivemos aolongo de muitos anos sobre a temtica aqui tratada, assim como suas valio-sas anlises da territorialidade Zo, algumas delas incorporadas no presentetexto (ver referncias na bibliografia).

    Tal desvirtuamento grave, especialmente se consi-

    deramos que, apesar das diferenas entre o conceito jur-

    dico de Terra Indgena, tal como est posto na Constitui-

    o, e a compreenso antropolgica dos fundamentos da

    ocupao e territorialidade indgena, h evidentes inter-

    seces e possibilidades de articulao. Seno vejamos:

    o artigo 231 reconhece aos ndios os direitos originrios

    sobre as terras que tradicionalmente ocupam; o texto

    constitucional tambm indica que tal ocupao tradicio-

    nal deve ser lida atravs das categorias e prticas locais,

    ou seja, levando-se em conta os usos, costumes e tradi-

    es de cada grupo. Logo, uma Terra Indgena deve ser

    definida identificada, reconhecida, demarcada e homo-

    logada levando-se em conta quatro dimenses distin-

    tas, mas complementares, que remetem s diferentes for-

    mas de ocupao, ou apropriaes indgenas de uma ter-

    ra: as terras ocupadas em carter permanente, as utiliza-

    das para suas atividades produtivas, as imprescindveis

    preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-

    estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural.

    Os antroplogos tm respondido a esses parmetros

    atravs de sua participao nos processos de identifica-

    o, nos termos da Portaria n 14/1996 do Ministrio da

    Justia. Nesses relatrios, eles procuram evidenciar a exis-

    tncia de diferentes lgicas espaciais que, em cada caso

    especfico, promovem determinadas articulaes entre

    essas distintas dimenses de uma Terra Indgena. Mas,

    por outro lado, os antroplogos tambm se interrogam

    teoricamente sobre a existncia de conceitos indgenas a

    respeito de territrio, de limite, de posse etc... buscando

    por eventuais correspondncias entre categorias locais e

  • 38 TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA

    noes ocidentais que embasam o direito constitucional.

    Nesse tipo de estudos, costuma-se concluir pela inexis-

    tncia de correspondncias semnticas e pelas dificulda-

    des em estabelecer tais correspondncias, apesar da equi-

    valncia, to enraizada, entre terra e territrio.

    Para ilustrar a necessidade de desmonte desta equi-

    valncia, vamos a um exemplo de aplicao da definio

    de Terra Indgena, verificando a sobreposio lgica entre

    suas variadas dimenses, separadas na definio jurdica.

    Trata-se do caso Zo. Como se explicitou no Relat-

    rio de Identificao desta Terra Indgena (Gallois & Havt,

    1998), a noo zo de -koha traz elementos importantes

    para entender sua concepo de territrio, embora no

    corresponda a uma traduo deste conceito. -Koha pos-

    sui uma abrangncia mais ampla, no sentido de modo de

    vida, bem viver ou qualidade de vida, o que significa

    que as condies ambientais, ecolgicas e materiais so

    componentes obrigatrios na definio. Alis, os Zo usam

    esse termo tambm em referncia a algumas espcies

    animais, vegetais e aos mortos. Em relao aos prprios

    Zo, o conceito incorpora sua forma de organizar-se ter-

    ritorialmente, dividindo-se em grupos locais formados por

    famlias extensas. Por incorporar as condies ambien-

    tais de sua existncia, indica o empenho do grupo em

    conhecer o meio que ocupa. Para caracterizar os -koha

    de animais e plantas, esse conhecimento sistemtica e

    continuamente acumulado no prprio processo de ocupa-

    o, no manejo e uso dos recursos, observando ciclos,

    hbitos etc., o que, por sua vez, funciona como fator de

    aumento na racionalidade do manejo.

    Entretanto, os Zo esto ampliando ainda mais o uso

    desse conceito. O contato, da mesma maneira que tem

    contribudo para a formao de uma noo de identidade

    Zo genrica, ou seja, de um coletivo que abrange todos

    os grupos locais (ao qual se recorre segundo a necessida-

    de de diferenciao frente outros ou para a constitui-

    o de um ser ndio), tem motivado a construo de um

    zo rekoha, tambm genrico. No contexto da partici-

    pao do grupo nas atividades do GT de Identificao, os

    Zo tentaram responder com a adaptao da noo de

    -koha numa categoria capaz de traduzir para os kirahi

    (os no-ndios) as articulaes entre os grupos locais na

    ocupao territorial.

    A alternncia de movimentos de disperso e de con-

    centrao populacional, que marcam sua ocupao terri-

    torial, um princpio que rege a qualidade de vida do

    grupo, abrangendo desde as relaes interpessoais entre

    famlias e entre grupos locais, at aquelas mantidas com

    os no-Zo. Um princpio que impe limites ao uso do

    espao e dos recursos e que se verifica, no territrio, tan-

    to na relao entre distintos grupos locais e suas reas de

    influncia, como tambm nos marcos sociais da ocupa-

    o. Estabelecendo-se na regio em que os Zoe identifi-

    cam hoje como sua rea de ocupao histrica, o grupo

    desenvolveu detalhado conhecimento do ambiente, cujos

    recursos utilizam segundo regras socioculturais que pre-

    vem ocupao de reas diferentes por grupos locais di-

    ferentes. E este modelo de ocupao territorial que im-

    plica a superposio entre as reas imprescindveis pre-

    servao dos recursos necessrios ao seu bem-estar e

    aquelas necessrias sua reproduo fsica. Isso vale

    tanto para a rea de ocupao atual e seus limites, como

    para as reas de entorno. Suprimir desse territrio qual-

    quer poro levaria ao aumento de presso sobre a rea

    restante, pois o grupo local (ou grupos) prejudicado nes-

    se processo passaria a exercer suas demandas sobre re-

    gies ocupadas pelos outros grupos.

    Por todas essas razes, mostra-se claramente inade-

    quado, para o caso dos Zo, a noo de habitao per-

    manente, no sentido de uma vida sedentria ou centrada

    em aldeias. O grupo entremeia o perodo de cuidar das

    roas com deslocamentos para outras aldeias onde man-

    tm roas, e com expedies para fins de caa, pesca e

    coleta. Inversamente, nos perodos que passam afasta-

    das de suas roas, as famlias fixam-se em acampamen-

    tos a partir dos quais fazem suas expedies de caa. A

    agricultura e a roa demarcam o lugar dos Zo no mun-

    do, mas este um elemento que satisfaz apenas parcial-

    mente suas necessidades. As atividades de caa, pesca

    e coleta exigem reas de ocupao mais amplas que o

    permetro da roa, e os Zo esquadrinham completa e

    permanentemente seu territrio, explorando todos os re-

    cursos simultaneamente. Por outro lado, a delimitao de

    reas fsicas fixas, permanentes e descontnuas para cada

    grupo local, com base em sua regio de influncia atual,

    tambm no seria apropriado, pois a relao dos grupos

    com as regies de ocupao do territrio mudam no tem-

    po em funo das alianas engendradas entre eles. As-

    sim, as descontinuidades territoriais tambm podem ser

    redefinidas de acordo com os perodos de aproximao e

    distanciamento entre grupos, e de acordo com a extino

    de uns e criao de outros. Um processo que s pode

    ser compreendido e descrito a partir das lgicas de or-

    ganizao territorial, ou seja, a partir da abordagem da

    territorialidade.

    Terra Indgena o mesmo que

    territrio indgena?

    So comuns idias como imemorialidade da ocupa-

    o indgena em determinada regio, assim como cor-

    rente a caracterizao do modo de vida indgena atravs

    de seus vnculos com a natureza, ou com algum nicho

  • TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA 39

    ecolgico que acabaria configurando o que seria a sua

    terra. Aparentemente, provar a ocupao continuada de

    um grupo indgena numa rea e, a partir dessa relao

    histrica, caracterizar um modo de vida indgena a partir

    de sua adaptao ao ambiente ocupado seria suficiente

    para configurar a relao que um grupo indgena mantm

    com esta sua terra. Mas no to simples. Primeiro,

    porque seria negar o tremendo impacto que a coloniza-

    o teve sobre as populaes indgenas, muitas delas

    rechaadas e refugiadas em reas que no correspondem

    sua localizao histrica, nem extenso territorial ocu-

    pada antes da dizimao gerada pelo encontro com fren-

    tes de colonizao. Mas, ento, bastaria recuperar a do-

    cumentao comprobatria e a memria do grupo acerca

    de seu territrio para apoiar as demandas de demarcao

    ou reviso de limites das Terras Indgenas? Nessa acep-

    o, terra seria simplesmente uma parcela dentro de um

    territrio historicamente mais amplo. Como se sabe, pra-

    ticamente todos os grupos indgenas perderam grandes

    pores de seus territrios, fragmentados em parcelas que

    so reivindicadas e demarcadas, num parcelamento que

    gera novas reivindicaes, assentadas no direito consti-

    tucional que enfatiza os direitos originrios dos ndios

    sobre suas terras, independentemente da demarcao.

    Tal equao no suficiente. Territrio no apenas

    anterior terra e terra no to somente uma parte de

    um territrio. So duas noes absolutamente distintas.

    Como expuseram vrios estudos antropolgicos,(2) a

    diferena entre terra e territrio remete a distintas pers-

    pectivas e atores envolvidos no processo de reconheci-

    mento e demarcao de uma Terra Indgena. A noo de

    Terra Indgena diz respeito ao processo poltico-jurdico

    conduzido sob a gide do Estado, enquanto a de territ-

    rio remete construo e vivncia, culturalmente va-

    rivel, da relao entre uma sociedade especfica e sua

    base territorial.

    Todos os grupos indgenas possuem uma

    idia de territrio?

    Em muitos trabalhos acadmicos, a produo antro-

    polgica evidencia um desconhecimento indgena do que

    seja territrio, atestando inclusive a inexistncia dessa

    noo para determinados grupos. Nesses casos, a mobi-

    lidade espacial funciona como uma espcie de prova de

    que no h territrio, ou, como afirma Rivire, de que h

    ausncia de um senso de territorialidade (1984: 95).

    Anlises como esta procuram descrever as concepes

    indgenas a partir de noes abertas de territrio e de li-

    mites, extremamente variveis. Esses estudos tambm

    mostram que a idia de um territrio fechado s surge

    com as restries impostas pelo contato, pelos proces- 2 Ver Seeger & Viveiros de Castro (1979) e Oliveira Filho (1989 e 1996).

    sos de regularizao fundiria, contexto que inclusive

    favorece o surgimento de uma identidade tnica. Tera-

    mos ento de analisar, caso a caso, as respostas dos gru-

    pos indgenas converso de seus territrios em terras,

    uma vez que, como sugere Joo Pacheco de Oliveira: No

    da natureza das sociedades indgenas estabeleceram li-

    mites territoriais precisos para o exerccio de sua sociabili-

    dade. Tal necessidade advm exclusivamente da situao

    colonial a que essas sociedades so submetidas (1996: 9).

    Na transformao de um territrio em terra, passa-se das

    relaes de apropriao (que prescindem de dimenso

    material) nova concepo, de posse ou propriedade.

    Um exemplo desse tipo de anlise pode ser resumido

    a partir da experincia dos ndios Wajpi que vivem no

    estado do Amap. Entre a primeira proposta de delimita-

    o desta Terra Indgena, encaminhada Funai em 1978,

    e a concluso da demarcao fsica em 1996, os Wajpi

    modificaram radicalmente sua auto-imagem. Era antes

    construda como uma esparsa rede de sociabilidade, que

    se estendia alm das fronteiras do grupo Wajpi e que as

    ameaas e presses dos no-ndios no chegavam a

    enrijecer. Hoje, todas as relaes com o exterior encon-

    tram-se integradas uma rede interna e nesse proces-

    so que surgiu uma idia de territrio, antes inexistente.

    Sintetizando, passaram de:

    uma auto-representao no-centralizada (e sem co-

    notao tnica), baseada nos padres de sociabilidade

    interna, onde a organizao e ocupao territorial limita-

    vam-se apropriao de percursos historicamente reme-

    morados com que marcavam grosso modo reas de trn-

    sito dos grupos locais (-wan); no existia um territrio

    mas zonas suporte do modo de ser fragmentado, como

    se pode traduzir a expresso ekowa (lugar onde eu vivo

    meu modo de ser) usada por um indivduo para designar

    seu pertencimento um grupo local;

    para uma auto-representao tnica, a categoria ns

    Wajpi, que nasceu do enfrentamento ao modo de ser

    alheio e que, gradativamente, veio a se expressar na rei-

    vindicao de uma base territorial exclusiva: jane yvy, nos-

    sa terra. Termo este que s existe enquanto conceito glo-

    bal acoplado ao ns Wajpi, pois no faria sentido, nem

    ontem nem hoje, atribuir aos grupos locais uma base

    territorial. S h terra para esse todo construdo, a noo

    de um coletivo Wajpi, produzido ao longo de mais de

    duas dcadas.

    Para tanto, foi necessrio gerir novas formas de rela-

    cionamento intercomunitrio, em moldes radicalmente

    diferentes do intercmbio tradicional, marcado por ten-

    ses (nas trocas matrimoniais, rituais e sobretudo de agres-

  • 40 TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA

    ses xamansticas). Quando assumiram realizar a de-

    marcao, os Wajpi provaram que haviam alcanado

    uma etapa significativa no longo processo de adaptaes

    sociopolticas internas convivncia com o exterior.

    Se a terra para os Wajpi de hoje um suporte de sua

    etnicidade, o que parece bvio resultou, na verdade, de

    um longo processo de aprendizado de gesto do coletivo.

    Processo que s se cristalizou com a apropriao de uma

    territorialidade limitada, pois sem limites, nada precisava

    ser coletivo. A expresso jane yvy uma inveno dos

    anos 80, usada como sinnimo da auto-designao Wajpi,

    que tampouco era pronunciada nos anos 1970. Ambas

    so construes em constante transformao. Pois a apro-

    priao interdependente de limites tnicos e territoriais

    necessariamente uma construo em aberto, e por isso

    no necessariamente vivida enquanto um encapsula-

    mento definitivo (Gallois, 1998).

    Mas, se tentarmos ampliar este caso para outras situa-

    es, no encontraremos as mesmas transformaes. De

    fato, as respostas dos grupos indgenas variam enorme-

    mente e sob muitos aspectos. Por isso, no possvel

    concluir que a apropriao de uma terra necessaria-

    mente resulte na transformao da identidade tnica em

    marcador territorial. Concepes nativas de territrio,

    quando existem e considerando-se suas variaes, so

    essenciais ao entendimento das relaes de natureza so-

    cial que so tecidas entre diferentes comunidades, em

    redes extensas de troca de diversos tipos, apesar do en-

    capsulamento em terras fragmentadas.(3)

    Este exemplo evidencia que o estudo da organizao

    territorial de uma dada sociedade indgena deve levar em

    conta contextos especficos, historicamente localizados e

    no se limitar a tomar como dado que limites tnicos

    correspondem a limites territoriais.

    Para abarcar essas variadas dimenses das formas

    de organizao territorial indgenas, necessrio passar

    a outra perspectiva terico-metodolgica, adequada ao

    entendimento de lgicas espaciais diferenciadas. A van-

    tagem em adentrar por estas lgicas da territorialidade

    que se poder falar de territrios indgenas fora dos

    quadros da etnicidade, do Estado-nao e da posse da

    terra. Mas, claro, sempre considerando que a relao

    entre uma sociedade indgena e seu territrio no natu-

    ral ou de origem (Oliveira Filho,1989). H construes a

    serem consideradas, que remetem a diferentes experin-

    cias da territorialidade.

    Prticas territoriais e territorialidades

    A premissa bsica aqui proposta de que nenhuma

    sociedade existe sem imprimir ao espao que ocupa uma

    lgica territorial. Sairemos de definies pela ausncia,

    para verificar como um senso de territorialidade imple-

    mentado, de diversas maneiras, em diferentes contextos.

    Nessa abordagem, o contato efetivamente uma expe-

    rincia que acrescenta elementos territorialidade, levan-

    do criao de novas estratgias.(4) Mas o contato no

    uma prtica do territrio em si. Como vimos acima, ape-

    nas em relao terra e na transformao do territrio

    em terra pode-se falar em posse e propriedade. Espao

    e territrio s podem ser apropriados. essencial insistir

    nessa diferena, tendo em vista que o territrio de qual-

    quer grupo pode ser abordado em um estudo antropolgi-

    co, independente da possibilidade de equivalncia do con-

    ceito ocidental moderno com algum conceito local.

    Para tratar dessa perspectiva da territorialidade, in-

    teressante voltar ao ponto inicial da discusso, acima, que

    apontava a dificuldade de articular histria (presente na

    idia de imemorialidade) e modo de vida (presente na

    idia de adaptao a ambientes ecologicamente diferen-

    ciados). Pois Terra Indgena, especialmente se constitu-

    da como parcela de um territrio outrora mais amplo, no

    representa necessariamente um nicho ecolgico ao qual

    uma populao se adapta, ou se encapsula, atravs de

    seu modo de vida. Inmeras situaes evidenciam hoje

    que a defesa de um territrio parece dizer menos respeito

    preservao de formas tradicionais de manejo de um espa-

    o e de seus recursos do que a questes mais delicadas da

    convivncia intertnica. O panorama da fragmentao de

    Terras Indgenas confirma que no se pode abordar a terri-

    torialidade como questo prxima s das cincias ecolgi-

    cas, ou relacionadas a disputas por nichos de recursos. Se

    disputas existem, no sero equacionadas a partir de abor-

    dagens semelhantes s da Etologia, por exemplo.

    Dizer que uma forma especfica de ocupao espa-

    cial traduz-se em territrio falar de prticas sociais que

    regulam o uso do espao, como sugere Raffestin (1993).

    Autores da Geografia fornecem pistas interessantes para

    equacionar o lugar e impacto de determinantes culturais

    nos processos de territorializao. Segundo Costa (1988),

    os grupos sociais estabelecem determinados modos de

    3 Outro exemplo patente de existncia de uma noo prpria de territrio, queno terei oportunidade de desenvolver neste artigo, o caso Guarani. Essanoo ativada em sua prtica de mobilidade territorial, como atesta a inten-sidade dos laos sociais entre unidades territorializadas ou desterritorializadas.Como mostram os estudiosos desses grupos [ver, especialmente, Maria InsLadeira, 2001], territrio no uma noo que remete apenas ao espaofsico mas sobretudo a concepes cosmolgicas.4 O contato impe a necessidade de elaborar conhecimentos acerca da lgicasubjacente s polticas de controle territorial conduzidas pelo Estado (porexemplo, noes de limites fixos, ao mesmo tempo que parmetros paraidentificar-se e ser reconhecido como ndio) e elaborar tambm estratgiasterritoriais para lidar com essa lgica (por exemplo, reordenar a ocupao emfuno da localizao de postos de assistncia, ou de atividade ligada co-mercializao de produo indgena etc.).

  • TERRAS INDGENAS E UNIDADES DE CONSERVAO DA NATUREZA 41

    relao com o seu espao, ou seja, valorizam-no a seu

    modo e no interior deste processo que se pode identifi-

    car relaes culturais com o espao, em sentido estrito.(5)

    O espao pode ser o ponto de partida para pensar o

    territrio, enquanto suporte fsico que territorializado:

    relaes so estabelecidas, criando limites e canais de

    comunicao, proximidades e distncias, interdies, fron-

    teiras seletivamente permeveis conforme a lgica terri-

    torial do grupo que territorializa uma dada poro de es-

    pao. As relaes de apropriao do espao so aspecto

    central nesse tipo de abordagem. Levam a considerar as

    articulaes entre as diversas possibilidades de relaes

    de apropriao do espao com a organizao sociopoltica

    de um grupo, a qual fornece coordenadas e referncias

    para a elaborao dos limites fsicos, sociais e culturais

    que regulam a distribuio do espao e dos recursos

    ambientais. Nesse sentido, pode-se dizer que o contato

    coloca um grupo indgena diante de lgicas espaciais di-

    ferentes da sua e que passam a ser expressas tambm

    em termos territoriais. Como j se viu, o contato um

    contexto de confronto entre lgicas espaciais. Por este

    motivo, as diversas formas de regulamentar a questo

    territorial indgena implementadas pelos Estados Nacio-

    nais no podem ser vistas apenas do ngulo do reconhe-

    cimento do direito terra, mas como tentativa de solu-

    o desse confronto.

    Superposio das diferentes dimenses

    de uma Terra Indgena

    Levando o argumento adiante, a abordagem da terri-

    torialidade exige uma avaliao cuidadosa das intrincadas

    relaes entre terras ocupadas em carter permanente,

    terras utilizadas para atividades produtivas, terras im-

    prescindveis preservao dos recursos ambientais ne-

    cessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua repro-

    duo fsica e cultural. As sobreposies, sempre exis-

    tentes, entre essas dimenses s podem ser percebidas

    atravs da anlise de formas de organizao territorial de

    cada grupo indgena. Se no forem consideradas as for-

    mas especficas atravs das quais diferentes grupos ind-

    genas imprimem sua lgica territorial ao seu espao, o

    risco ser de reduzir a abrangncia das relaes terri-

    toriais produo e s atividades de subsistncia. Se des-

    crevermos apenas tais relaes a partir da suposta adap-

    tao cultural (habitualmente tida por tradicional) a ni-

    chos ecolgicos, toda a riqussima variao de formas de

    territorializao indgena se ver reduzida definio de

    limites da terra como modo de produo.

    Argumentamos, acima, que essa categoria de terra

    um dos elementos constitutivos do territrio, mas no

    seu equivalente. A no-equivalncia entre terra e territ-

    rio representando, enfim, a principal contribuio da an-

    tropologia, que postula h tanto tempo a no-uniformida-

    de no tratamento da Terra Indgena. A necessidade de

    estudos caso a caso funo da existncia de diferen-

    tes lgicas espaciais indgenas e, portanto, de diferentes

    formas indgenas de organizao territorial. nesse sen-

    tido que o territrio de um grupo pode ser pensado como

    um substrato de sua cultura.

    Referncias bibliogrficas

    5 Prosseguindo a citao: Exprimir, a partir dessa relao, uma srie demanifestaes: mitos, ritos, cultos, socializaes etc. Do mesmo modo, ex-primir, com seu trabalho e sua tcnica, formas de apropriao e exploraodesse espao, marcando-o com as suas necessidades e seu modo de produ-zir e, por que no dizer, impregnando-o assim com sua cultura... O especficoa reter, no nosso caso, entretanto, diz respeito ao fato de que esse grupo projetasobre o espao as suas necessidades, a organizao para o trabalho e a culturaem geral, mas projeta igualmente as relaes de poder que porventura se de-senvolvam no seu interior... Por isso, toda sociedade que delimita um espaode vivncia e produo e se organiza para domin-lo, transforma-o em seuterritrio. Ao demarc-lo, ela produz uma projeo territorializada de suasprprias relaes de poder (Costa, 1988: 18; grifos no original).

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