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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO ESTUDOS SOBRE A INTERVENÇÃO PRECOCE EM PORTUGAL: IDEIAS DOS ESPECIALISTAS, DOS PROFISSIONAIS E DAS FAMÍLIAS Maria Isabel Silva Chaves de Almeida Tegethof Porto, 2007 Volume I

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  • UNIVERSIDADE DO PORTO

    FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS

    DA EDUCAO

    ESTUDOS SOBRE A INTERVENO PRECOCE EM PORTUGAL: IDEIAS DOS ESPECIALISTAS, DOS

    PROFISSIONAIS E DAS FAMLIAS

    Maria Isabel Silva Chaves de Almeida Tegethof

    Porto, 2007

    Volume I

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    Dissertao apresentada Faculdade de Psicologia e de Cincias da

    Educao da Universidade do Porto para provas de doutoramento, sob

    orientao do Prof. Doutor Joaquim Bairro e da Prof. Doutora Teresa Leal

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    AGRADECIMENTOS

    s famlias, aos especialistas e aos profissionais de interveno precoce, bem como s

    colegas do CEACF da equipa dos 0 aos 3 anos da cidade de Lisboa, que tornaram

    possvel a realizao deste trabalho.

    Ao Prof. Doutor Joaquim Bairro pelos conhecimentos que me transmitiu ao longo do

    meu percurso profissional, pelos horizontes que abriu e pelos desafios que me fizeram ir

    sempre um pouco mais longe.

    Prof. Doutora Teresa Leal pela amizade e disponibilidade que demonstrou ao aceitar

    orientar este trabalho j na sua fase final e por todo o apoio que me proporcionou.

    Ao Mestre Paulo Sargento pelo suporte que prestou a algumas das anlises

    estatsticas do Estudo II.

    Aos Prof. Doutores Robin McWilliam e Debra Skinner pelos ensinamentos e sugestes

    que deles recebi.

    Ao Instituto de Segurana Social, I.P. pela equiparao ao bolseiro que me concedeu

    e, em particular, Dr. Cristina Fangueiro e Dr. Ana Lage pela compreenso que

    demonstraram e que foi essencial para que se tornasse possvel levar este trabalho at ao

    fim.

    Ana Isabel Mota Pinto pela amizade, partilha de conhecimentos e preocupaes, a

    enorme disponibilidade para responder aos meus pedidos, o apoio logstico que me

    proporcionou e que facilitou e tornou to agradveis as minhas estadias no Porto, bem

    como pela importante contribuio que deu atravs da leitura e sugestes ao Estudo I.

    Um agradecimento muito especial Ceclia Aguiar pela forma como se disponibilizou

    para rever o Estudo II, pela leitura atenta e crtica que fez e pelas sugestes que tanto o

    enriqueceram.

    Alexandra Sequeira que to bem soube compreender as minhas impossibilidades

    temporrias e esteve sempre pronta para me ajudar.

    Jlia Serpa Pimentel e Isabel Felgueiras pela amizade, pelo incentivo, pela partilha

    conjunta de conhecimentos e de experincias, que tanto me enriqueceram e contriburam

    para o percurso que me conduziu at realizao deste trabalho.

    Ana Isabel Ribeiro, Helena Grilo e Fernanda Salvaterra pela amizade e estmulo

    que nunca faltaram ao longo destes anos.

    minha famlia, em particular minha me e ao Gnter, pela compreenso que

    demonstraram pelo meu alheamento e o apoio que me proporcionaram. Quero, ainda,

    agradecer de forma muito especial ao Philipp e Vera por me terem sempre encorajado a

    prosseguir e, particularmente, Sofia que esteve sempre ao meu lado e me ajudou em

    vrias fases deste trabalho, desde a introduo de dados realizao de algumas figuras.

    Lisboa, Julho de 2007

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    RESUMO

    Este trabalho pretende traar uma panormica geral da situao da interveno

    precoce (IP) e da utilizao do modelo de interveno centrado na famlia (ICF) em

    Portugal e tentar perceber at que ponto a prtica desenvolvida se enquadra num

    modelo sistmico e bioecolgico de prestao de servios e naquelas que so, neste

    mbito, as prticas recomendadas baseadas na evidncia. O fenmeno em anlise - o

    desenvolvimento de programas de interveno precoce dentro de um modelo de

    interveno centrado na famlia estudado com base (1) no testemunho de

    especialistas e de profissionais de interveno precoce de todo o pas ( excepo da

    regio do Algarve), bem como (2) num estudo de caso, com o objectivo, no de

    demonstrar os efeitos de uma prtica com vista sua generalizao, mas de

    compreender essa prtica de uma forma mais descritiva e processual, identificando

    eventuais reas a aperfeioar.

    Com este objectivo, desenvolveu-se um estudo exploratrio com um desenho de

    modelo misto paralelo, que recorre em simultneo a abordagens qualitativas e

    quantitativas, dentro das vrias fases da investigao e que integra dois estudos

    complementares:

    O Estudo I Estudo das Ideias - um estudo qualitativo em que se analisam as

    ideias de 10 pessoas-chave e de 209 profissionais pertencentes a 39 equipas de

    interveno precoce de todo o pas, sobre a temtica da interveno precoce, e, em

    particular, da interveno centrada na famlia, assim como sobre a forma como esta

    est a ser implementada, as dificuldades encontradas, o papel dos profissionais e o

    papel da famlia.

    O Estudo II Estudo das Prticas - um estudo de caso, de carcter exploratrio e

    descritivo, com um desenho longitudinal transverso, com o objectivo de perceber de

    que forma o fenmeno em anlise - o desenvolvimento de programas de interveno

    precoce dentro de um modelo de interveno centrado na famlia posto em prtica

    num contexto especfico e qual o seu efeito junto das famlias.

    A primeira concluso que retirmos que existe uma concordncia importante no

    que diz respeito ao quadro que possvel traar a partir das informaes recolhidas

    aos trs diferentes nveis: especialistas de IP, equipas/profissionais de IP de todo o

    pas ( excepo do Algarve) e estudo de caso.

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    Verificou-se que existe uma assimilao grande em relao aos conceitos tericos

    genricos subjacentes prtica da IP e da ICF, mas dificuldade na sua

    operacionalizao. No entanto, as famlias valorizam as componentes do programa

    que mais se aproximam da ICF e, de um modo geral, tanto as mes como os tcnicos

    mostram desejar uma participao mais activa da famlia, mostrando-se os tcnicos

    mais exigentes. O trabalho no sentido de promover o desenvolvimento da criana foi

    uma componente importante da maioria das intervenes, sendo bastante valorizada

    pelas famlias.

    No seu conjunto, constatou-se que as prticas destes profissionais correspondem

    s principais caractersticas da componente relacional das prticas de ajuda centradas

    na famlia, mas tm ainda muitas lacunas no que diz respeito componente

    participativa dessas mesmas prticas, tais como elas so entendidas dentro do

    modelo de interveno precoce de terceira gerao, baseado na evidncia (Dunst,

    2000b, 2005a,b). Os aspectos identificados como mais problemticos so: o

    envolvimento activo das famlias, a utilizao do Plano Individualizado de Apoio

    Famlia (PIAF), a mobilizao e fortalecimento das redes de apoio social da famlia,

    nomeadamente, das informais, a constituio de uma rede integrada de servios e de

    recursos a funcionar na comunidade, e a interveno com as famlias de risco

    ambiental.

    Detectaram-se, ainda, algumas especificidades na caracterizao que foi possvel

    fazer das vrias regies do pas ( excepo do Algarve), que seria interessante

    explorar noutros estudos, utilizando amostras representativas.

    Na anlise das mudanas nas crianas e famlias do estudo de caso, identificadas

    pelos profissionais e famlias, verificou-se que as intervenes parecem ter tido efeitos

    positivos no que se refere criana, mas no introduziram mudanas a nvel da

    famlia. Esta, no entanto, mostra-se genericamente satisfeita com a interveno. Desta

    anlise ressaltou, ainda, a necessidade de se intervir de forma diversificada, tendo em

    conta as caractersticas das diferentes problemticas.

    Foram ainda realadas vrias reas possveis de identificar como necessitando de

    ser melhoradas, nomeadamente, a nvel: da elegibilidade, da utilizao do PIAF, da

    mobilizao das redes de apoio social da famlia, da colaborao sistemtica com os

    outros recursos e servios direccionados para as crianas dos 0 aos 6 anos e suas

    famlias, da formao e superviso dos profissionais e da investigao, tendo sido

    sugeridas vrias hipteses de pesquisa.

    No final teceram-se algumas consideraes sobre o trabalho desenvolvido e as

    suas limitaes.

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    ABSTRACT

    The main objective of this work is to give an overview of Early Intervention (EI) and

    family-centred intervention (FCI) in Portugal in order to evaluate if current practices are

    based on bioecological and systemic models and on evidenced-based recommended

    practices.

    The development of family-centred early intervention programmes was studied

    based (1) on testimonies from early intervention experts and professionals from all

    Portuguese regions (except Algarve) and (2) on a single case research aiming at the

    understanding of such family centred-practices from a descriptive and process

    perspective, and trying to identify some areas that need to be strengthen (although

    without generalization objectives).

    This is an exploratory study with a parallel mixed method design where, during the

    sequential moments of research, we used both qualitative and quantitative approaches.

    We carried out two complementary studies:

    Study 1 Study of the ideas was a qualitative study that analysed the ideas of 10

    key-persons and 209 professionals working in 39 early intervention teams from all over

    the country (except Algarve) on early intervention, specifically, on family-centred

    practices and its implementation as well as main difficulties, professionals and families

    roles.

    Study 2 Study of practices was a single case descriptive and exploratory

    research with a transverse longitudinal design, carried on in order to understand how

    family-centred early intervention programmes were implemented in a specific context

    and their effects on families.

    Findings suggest an important convergence in the overall picture drew from data

    gathered at the three levels of analysis: early intervention experts, teams and

    professionals from all over the country (except Algarve) and the single case research.

    We found that basic theoretical concepts underlying EI and FCI are known and

    understood but not completely implemented. However, families value, mostly, practices

    that are close to FCI and mothers as well as professionals wish a more active familiar

    involvement, with professionals showing deeper demands concerning the quality of

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    families involvement. Intervention focused on promoting childrens development was

    an important component of most programmes and was highly valued by families.

    As a whole, we found that practices match the main characteristics of the relational

    component of family-centred help-giving practices but lack the participative one that

    characterises the third generations early intervention model based on evidence (Dunst,

    2000b, 2005a,b). We identified some areas that need to be improved: active family

    involvement, use of Individualized Family Support Plan (IFSP), mobilization and

    strengthening of families social support networks mainly informal ones building of a

    community based resources and services network and intervention with socially

    deprived or at-risk families

    We also found specific characteristics related to specific regions which need to be

    more deeply studied using representative samples.

    Within the single-case study, the analysis of changes in families and children

    suggested that early intervention had a positive influence on childrens development

    but had no effects at family level. Still, families were satisfied with early intervention.

    Data analysis showed that different family and child characteristics demand different

    early intervention strategies.

    We also found specific areas that need to be improved and strengthen, namely:

    eligibility, use of IFSP, mobilization and strengthening of families social support

    networks, systematic co-operation with different agencies and resources for families

    and young children, professionals training, supervision and research.

    Based on our conclusions, on the work that had been carried on, and its limitations,

    future research was suggested.

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    RSUM

    Cette tude cherche donner une ide gnrale de la situation de lintervention

    prcoce (IP) et de lutilisation du modle de lintervention centr dans la famille (ICF)

    au Portugal, dans le but dvaluer si les pratiques des professionnels sencadrent dans

    un modle systmique et bioecologique de prestation de services et dans les pratiques

    recommandes bases dans lvidence.

    Le dveloppement de programmes dintervention prcoce dans un modle

    dintervention centr dans la famille est tudi a partir (1) du tmoignage de

    spcialistes et de professionnels de tout le pays (sauf de la rgion de lAlgarve), et (2)

    dune tude de cas, avec lobjectif de comprendre cette pratique dune faon

    descriptive et processuel et didentifier des possibles domaines perfectionner (sans

    prtendre gnraliser les rsultats obtenus).

    Il sagit dune tude exploratoire avec un dessin de modle mixte parallle, qui,

    dans des diffrentes phases de linvestigation, utilise simultanment des abordages

    qualitatifs et quantitatifs. On a dvelopp deux tudes complmentaires:

    tude I tude des Ides une tude qualitative dans laquelle on analys les

    ides de 10 spcialistes et de 209 professionnels qui travaillaient dans 39 quipes

    dintervention prcoce de tout le pays (sauf lAlgarve), sur la thmatique de

    lintervention prcoce, et, en particulier, de lintervention centre dans la famille, son

    implmentation, aussi bien que les principales difficults, le rle des professionnels et

    celui de la famille.

    tude II tude des Pratiques une tude de cas, de caractre exploratoire et

    descriptive, avec un dessin longitudinal transverse, ayant comme objectif comprendre

    comment des programmes dintervention prcoce dvelopps dans un modle

    dintervention centr dans la famille sont accomplit dans un contexte spcifique et

    quelle est son effet sur les familles.

    Les rsultats suggrent quil existe une concordance importante dans lensemble

    des donns en ce qui concerne les trois niveaux danalyse: spcialistes de IP, quipes

    et professionnels de IP de tout le pays (sauf lAlgarve) et ltude de cas.

    On a vrifi que les concepts thoriques gnriques subjacents la pratique de lIP

    et de lICF sont connus et entendus, mais ils existent des difficults dans son

    implmentation. Cependant, les familles valorisent les composants du programme qui

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    sapprochent le plus de lICF et les mres, aussi bien que les professionnels,

    souhaitent une participation plus active de la famille, se montrant les professionnels

    plus exigeants. Le travail adress au dveloppement de lenfant a t un lment

    important dans la plus part des interventions, tant considrablement valoris par les

    familles.

    Dans lensemble, on a vrifi que les pratiques de ces professionnels

    correspondent aux principales caractristiques de llment relationnel des pratiques

    daide centres dans la famille, mais ils existent encore beaucoup de lacunes en ce qui

    concerne llment participatif de ces pratiques, qui caractrisent le modle de

    lintervention prcoce de troisime gnration, bas sur lvidence (Dunst 2000b,

    2005a,b). Les aspects identifis comme plus problmatiques sont: la participation actif

    des familles, lutilisation do Plan Individualis de Support a la Famille (PISF), la

    mobilisation et renforcement (empowering) des rseaux de support social de la famille,

    particulirement des rseaux informels, la construction dun rseau intgr de services

    et recours fonctionnant dans la communaut, et lintervention avec les familles de

    risque sociale.

    On a trouv, encore, quelques spcificits dans la caractrisation des diffrentes

    rgions du pays (sauf lAlgarve), qui serait intressant dexploiter dans dautres tudes,

    utilisant des chantillons reprsentatives.

    Dans ltude de cas, lanalyse des modifications dans les enfants et familles, telles

    quelles sont identifis par les professionnels et les familles, montre que les

    interventions semblent avoir eu des effets positifs en ce qui concerne lenfant, mais

    nont pas introduit des changements au niveau de la famille. Celle, toutefois, se montre

    gnriquement satisfaite avec lintervention. Lanalyse des donns montre, encore,

    quil est ncessaire dintervenir dune faon diversifi, considrant les caractristiques

    des diffrentes problmatiques.

    On a aussi identifi plusieurs domaines qui ncessitant dtre perfectionns,

    notamment, au niveau: de lligibilit, de lutilisation do PISF, de la mobilisation des

    rseaux de support social de la famille, de la collaboration systmatique avec les

    autres ressources et services dirigs aux enfants ds 0 6 ans et leurs familles, de la

    formation et supervision des professionnels et de linvestigation.

    Dans les conclusions on a rflchit sur les rsultats obtenus, les limitations de cette

    tude et on a suggres quelques hypothses de recherche future.

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    NDICE

    NDICE DO VOLUME I

    INTRODUO 1

    CAPTULO I: As teorias do desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito de Interveno Precoce

    11

    1. Introduo 13

    2. As teorias organicistas e os primrdios da Interveno Precoce 14

    2.1. A teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget 16

    2.2. A perspectiva preventiva e os antecedentes dos actuais programas de Interveno Precoce

    18

    3. As teorias mecanicistas e a sua aplicao nos programas de Interveno Precoce

    20

    3.1 Do behaviorismo de Skinner s teorias emergentes 21

    3.2. A aplicao das abordagens mecanicistas aos programas de Interveno Precoce dirigidos a crianas com deficincia ou incapacidade

    23

    3.3. O abandono gradual do reducionismo nas teorias mecanicistas 24

    4. As teorias contextualistas e a prtica actual da Interveno Precoce

    27

    4.1. A Teoria Sociocultural do Desenvolvimento de Vygotsky 27

    4.2. Do contextualismo s teorias desenvolvimentais sistmicas 28

    4.2.1. O contributo de Lerner e do seu modelo de contextualismo desenvolvimental

    32

    4.2.2. O contributo de Sameroff e do seu modelo transaccional 37

    4.2.3. O contributo de Bronfenbrenner e do seu modelo bioecolgico 44

    4.2.4. O contributo de Wachs para a compreenso da variabilidade individual no desenvolvimento

    50

    4.2.5. O papel das perspectivas sistmicas e ecolgicas na aplicao de modelos abrangentes prestao de servios de Interveno Precoce

    55

    CAPTULO II: Modelos e prticas de Interveno Precoce 59

    1. Introduo 61

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    2. O conceito de Interveno Precoce 61

    3. As diferentes formas de prestao de servios e a questo da elegibilidade 69

    3.1. O grupo etrio alvo para a Interveno Precoce 71

    3.2 A questo da elegibilidade em Interveno Precoce 73

    3.2.1. O contributo da CIF Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade para a questo da elegibilidade

    78

    4. Prticas recomendadas baseadas em valores e evidncias 80

    4.1. A nfase nas prticas baseadas em evidncias 85

    4.2. Um percurso no sentido da convergncia das prticas 89

    4.3. Princpios relevantes para a prtica da Interveno Precoce 93

    4.3.1. Uma interveno centrada na famlia e na comunidade 93

    4.3.2. Uma interveno nos ambientes de aprendizagem naturais da criana, utilizando prticas desenvolvimental e individualmente apropriadas

    94

    4.3.2.1. O conceito de ambientes naturais 96

    4.3.2.2. As prticas desenvolvimentalmente adequadas 100

    4.3.2.3. O modelo de interveno baseado nas actividades 102

    4.3.2.4. O modelo de prticas contextualmente mediadas 104

    4.3.3. Uma interveno baseada na colaborao e incidindo na integrao e coordenao de servios e de recursos

    112

    4.3.3.1. O trabalho de equipa em interveno precoce 112

    4.3.3.2. A colaborao e coordenao de servios e de recursos 118

    4.3.3.3. O modelo de prticas de interveno baseadas nos recursos 121

    4.3.3.4. O papel do coordenador de servios 124

    CAPTULO III: Papel da famlia na Interveno Precoce: A interveno centrada na famlia e na comunidade

    127

    1. Introduo 129

    2. O emergir das teorias desenvolvimentais sistmicas e o papel central da interaco: um enquadramento para o enfoque na famlia

    129

    3. O conceito de famlia e o papel dos factores de risco e de proteco 133

    4. A contribuio da perspectiva sistmica para uma melhor compreenso da famlia

    137

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    5. O modelo de interveno centrado na famlia e na comunidade 144

    5.1. O conceito de centrado na famlia 144

    5.2. A mudana do papel dos profissionais num modelo centrado na famlia

    148

    5.3. As relaes famlia-profissionais num modelo centrado na famlia 152

    5.4. O Plano Individualizado de Apoio Famlia (PIAF) 156

    CAPTULO IV: O futuro da Interveno Precoce: Uma reflexo sobre os modelos propostos por Dunst e Guralnick

    165

    1. Introduo 167

    2. O Modelo de Dunst e a sua evoluo: dos modelos de primeira gerao ao Modelo para a Interveno Precoce e Apoio Famlia de terceira gerao

    167

    2.1. O modelo de primeira gerao para a interveno precoce 168

    2.2. O modelo de segunda gerao para a interveno precoce 170

    2.3. O modelo de terceira gerao para a interveno precoce 173

    3. O Modelo de Sistemas Desenvolvimental para a Interveno Precoce 179

    4. O futuro da interveno precoce 187

    CAPTULO V: A avaliao de programas de Interveno Precoce 199

    1. Introduo 201

    2. A questo da avaliao dos programas de interveno precoce: dificuldades e desafios

    203

    2.1 As caractersticas especficas dos programas de interveno precoce 204

    2.2 As questes de ordem metodolgica 205

    2.2.1. A questo do desenho da avaliao 206

    2.2.2. A questo da amostra 208

    2.2.3. A questo da medida dos resultados 208

    2.2.4. Percursos metodolgicos alternativos para as investigaes de segunda gerao

    211

    3. Os estudos da primeira gerao de investigaes e a resposta questo da eficcia

    215

    3.1. A avaliao dos efeitos a curto prazo 216

    3.2. A avaliao dos efeitos a mdio e longo prazo 224

    3.3. Algumas concluses da primeira gerao de investigaes 233

  • -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    4. Os estudos da segunda gerao de investigaes e a questo da especificidade

    236

    4.1. Um modelo multidimensional para a investigao de segunda gerao 236

    4.2. A questo da avaliao dos resultados nas crianas e famlias 240

    4.2.1. A avaliao dos resultados nas crianas 240

    4.2.2. A avaliao dos resultados nas famlias 244

    4.3. A questo da avaliao dos efeitos de prticas especficas nos resultados da criana e da famlia

    262

    4.4. Caso exemplo de uma investigao de segunda gerao 267

    5. Desafios e propostas para o futuro 271

    CAPTULO VI: A Interveno Precoce em Portugal 277

    1. Introduo 279

    2. As modalidades de atendimento s crianas dos 0 aos 6 anos em Portugal 279

    3. As modalidades de atendimento s crianas dos 0 aos 6 anos com necessidades educativas especiais, em Portugal

    284

    4. A Interveno Precoce em Portugal em anos 80 90: da descoberta ao reconhecimento

    292

    4.1. A interveno precoce no mbito da DSOIP/CEACF 292

    4.2. A interveno precoce no mbito do Projecto Integrado de Interveno Precoce de Coimbra PIIP

    294

    4.3. O desenvolvimento de projectos de Interveno Precoce e os aspectos legislativos na dcada de 90

    296

    4.4. As principais investigaes em Interveno Precoce desenvolvidas na dcada de 90

    297

    5. A Interveno Precoce em Portugal a partir de 2000: um perodo de afirmao e de progressiva consolidao

    311

    5.1. O Despacho Conjunto n. 891/99 311

    5.2. Reflexo crtica sobre o Despacho Conjunto n. 891/99 313

    5.3. Os desenvolvimentos mais recentes no mbito da interveno precoce 318

    5.4. Duas investigaes recentes no mbito da interveno precoce 324

  • -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    CAPTULO VII: Metodologia da Investigao 333

    1. Introduo 335

    2. Mtodos mistos 335

    2.1. O Mtodo Estudo de Caso 342

    3. Mtodos 345

    3.1 Desenho da investigao e sua fundamentao 345

    3.2. Mtodos de recolha de dados 349

    3.2.1. A entrevista 350

    3.2.2. Os questionrios 352

    3.2.3. As escalas de registo ou de verificao de tipo Likert 353

    3.3. Mtodos de anlise de dados 353

    3.3.1. A anlise de contedo 354

    3.3.2. O programa de computador utilizado na anlise de contedo 356

    3.3.3. As anlises estatsticas 357

    3.4. As questes da validade e da qualidade 357

    3.4.1. A questo da validade/fidedignidade 357

    3.4.2. A questo da qualidade 359

    CAPTULO VIII: Estudo I - Estudo das Ideias 361

    1. Introduo 363

    2. Mtodos 363

    2.1. Desenho do estudo e questes de investigao 363

    2.2. Participantes 364

    2.3. Mtodos de recolha de dados 378

    2.4. Mtodos de anlise de dados 380

    3. Apresentao e interpretao dos resultados 381

    4. Anlise e discusso das questes de investigao 399

    5. Concluses do Estudo I 443

  • -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    NDICE DO VOLUME II

    CAPTULO IX: Estudo II - Estudo das prticas: um estudo de caso (CEACF)

    451

    1. Introduo 453

    2. Mtodos 453

    2.1. Desenho do estudo e questes de investigao 453

    2.2. Participantes 456

    2.2.1 O Programa de Interveno Precoce 456

    2.2.2. Crianas e Famlias Atendidas pelo Programa de Interveno Precoce

    456

    2.2.3. Tcnicos do Programa de Interveno Precoce 464

    2.3 Mtodos de recolha dos dados 465

    2.3.1 Instrumentos usados 466

    2.3.2. Procedimentos 476

    2.4. Mtodos de anlise dos dados 479

    3. Apresentao e interpretao dos resultados 484

    3.1. Dados relativos ao Programa de Interveno Precoce (Equipa dos 0 aos 3 anos, cidade de Lisboa)

    484

    3.2. Dados relativos aos programas individuais de cada criana/famlia 488

    3.2.1. Anlise principal: avaliao dos programas relativamente ao grau de utilizao de prticas centradas na famlia

    488

    3.2.2. Anlises complementares 513

    4. Anlise e discusso das questes de investigao 598

    5. Concluses do Estudo II 650

    CAPTULO X: Discusso conjunta e consideraes finais 675

    BIBLIOGRAFIA 693

    ANEXOS

  • Introduo

    1

    INTRODUO

    As prticas de interveno precoce tm subjacente a ideia de que as experincias

    precoces so cruciais em termos de desenvolvimento e que problemas de origem

    gentica, biolgica e ambiental podem ser ultrapassados ou atenuados atravs de

    uma interveno atempada e de qualidade. Esta convico est hoje empiricamente

    comprovada, razo pela qual a interveno precoce considerada uma rea prioritria

    em muitos pases, que a vem como um investimento eficaz e rentvel, tambm, em

    termos econmicos (Guralnick, 2007).

    Resultados provenientes de um nmero considervel de investigaes, tm vindo a

    apontar para a existncia de uma relao estreita entre as experincias de

    aprendizagem precoce e os resultados escolares futuros (Sandall & Smith, 2000). Por

    outro lado, os avanos ultimamente registados a nvel das neurocincias e das

    cincias sociais e do comportamento, vieram reforar as certezas relativamente: (i)

    importncia das experincias precoces e das influncias inseparveis e altamente

    interactivas dos factores genticos e ambientais no desenvolvimento cerebral e,

    consequentemente, no comportamento humano; (ii) ao papel central das relaes

    precoces como fonte, quer de apoio e adaptao, quer de risco e disfuno; (iii)

    importncia das capacidades, emoes e competncias sociais essenciais, que se

    desenvolvem durante os primeiros anos de vida; e (iv) possibilidade de aumentar as

    probabilidades de se conseguirem resultados positivos em termos de

    desenvolvimento, atravs de intervenes planeadas (Shonkoff, & Phillips, 2000).

    Existe, assim, uma filosofia fortemente preventiva que considera como objectivo da

    interveno precoce, prevenir ou minimizar os problemas do desenvolvimento

    resultantes de situaes de risco biolgico ou envolvimental, bem como de situaes

    j com alteraes do desenvolvimento estabelecidas, a par de um consenso alargado

    relativo ao direito, que tm estas crianas e as suas famlias, a um atendimento em

    programas de interveno precoce, sem o qual a sua situao tender a agravar-se.

    Finalmente existe, ainda, concordncia no que diz respeito aos princpios abrangentes

    que servem de guia aos programas: estes para terem sucesso devem centrar-se nas

    necessidades das famlias, envolver activamente as comunidades, integrar as

    contribuies de diferentes disciplinas, desenvolvendo um trabalho em equipa

    transdisciplinar e serem capazes de coordenar uma diversidade de apoios e servios

    numa perspectiva sistmica (Guralnick, 1997).

    Tal prtica, enquadra-se nas teorias actuais do desenvolvimento, nomeadamente,

    nas teorias transaccionais, bioecolgicas e sistmicas (Sameroff, 1975, 95; Sameroff &

  • Introduo

    2

    Fiese, 1990, 2000; Bronfenbrenner 1979, 1989, 1995a; Bronfenbrenner & Morris,

    1998; Turnbull, & Turnbull, 1986; Lerner, 2002; Wachs, 2000a,b), que se foram

    progressivamente afirmando nesta rea, chamando a ateno para a importncia das

    interaces dinmicas que se estabelecem entre a criana e o meio envolvente e para

    o impacto directo e indirecto que os diferentes contextos tm no seu desenvolvimento.

    A criana dever ser compreendida enquanto inserida na famlia, e esta, enquanto

    parte da sua comunidade e do seu contexto cultural e poltico, devendo o todo ser

    considerado como uma rede de componentes interrelacionadas e interdependentes.

    Torna-se, assim, indispensvel intervir dentro dos vrios contextos de vida da criana,

    avaliar as caractersticas desses contextos, bem como, as influncias que nele tm os

    contextos mais distais e definir as estratgias de interveno que melhor respondam

    s necessidades da criana e da famlia. Sabe-se hoje que as crianas em idades

    precoces aprendem atravs de interaces repetidas duma forma dispersa ao longo

    do tempo e no nos breves perodos em que decorrem as intervenes. Sabe-se,

    tambm, que, se as intervenes dos profissionais tm pouco efeito directamente na

    criana, tm um impacto importante na melhoria das competncias e da autoconfiana

    dos pais, famlias e outros prestadores de cuidados, que por sua vez tm uma

    influncia grande na promoo do desenvolvimento da criana (McWilliam, 2003).

    Assistiu-se, portanto, a um deslocar do foco da interveno da criana para a

    famlia e para o meio envolvente, bem como substituio de um modelo de

    tratamento, ou mesmo de preveno, por um modelo de promoo de competncias, o

    que se traduziu no enfatizar de prticas de interveno dentro de uma perspectiva

    centrada na famlia e na comunidade (Dunst, 1985, 2000b).

    Os princpios e as prticas da interveno centrada na famlia no so, como

    salientam Hanson e Bruder (2001), uma componente opcional da interveno precoce,

    mas devem constituir a fundamentao necessria a tudo aquilo que feito. Para

    estes autores o conceito de centrado na famlia , simultaneamente, uma filosofia e

    um conjunto de prticas empiricamente validadas. Enquanto filosofia encara a famlia

    como o centro de todos os servios e apoios. Enquanto conjunto de prticas validadas

    pela investigao, inclui: (i) tratar as famlias com dignidade e respeito; (ii) ser sensvel

    diversidade cultural e socioeconmica da famlia; (iii) proporcionar escolhas famlia

    em funo das suas preocupaes e prioridades; (iv) proporcionar toda a informao

    famlia, para que ela possa tomar decises fundamentadas; (v) utilizar os recursos

    informais da comunidade, como fontes de apoio para a famlia; e (vi) utilizar prticas

    de ajuda que fortaleam e promovam as suas competncias.

  • Introduo

    3

    uma prtica exigente que obriga a uma mudana de atitude por parte dos

    profissionais, que vo ter de passar de especialistas a parceiros da famlia e de uma

    prtica tradicional, dentro de um modelo, muitas vezes, monodisciplinar e centrado na

    criana, para um modelo de prestao de servios transdisciplinar, centrado na famlia

    e no meio envolvente. Torna-se necessrio incentivar e apoiar estes profissionais para

    um trabalho de colaborao que implica uma partilha de objectivos, uma comunicao

    aberta e eficaz e um desejo de discutir e resolver os problemas em equipa,

    ultrapassando as fronteiras das suas disciplinas especficas, para alm de uma real

    parceria com a famlia e abertura comunidade. Isto envolve toda uma reformulao

    em termos da formao e do acompanhamento dos profissionais de modo a dar-lhes

    novas competncias, e um repensar da estrutura e do modelo organizativo dos

    programas (Weston, Ivins, Heffron & Sweet, 1997).

    A organizao dos servios hoje uma pedra angular no campo da interveno

    precoce, de tal forma que Thurman (1997) afirma que esta pode ser definida como um

    conjunto de servios constitudo atravs da parceria com as famlias, com o objectivo

    de promover o seu bem-estar e o bem-estar dos seus filhos, em idades precoces, cujo

    desenvolvimento pode estar em risco devido a uma combinao de factores biolgicos

    e envolvimentais.

    Nos EUA a adeso a estes modelos abrangentes e fortemente enquadrados numa

    perspectiva sistmica e bioecolgica, que reforam cada vez mais a necessidade de

    um trabalho de colaborao entre profissionais, famlia e comunidade, implicando uma

    partilha e responsabilizao colectiva, veio a evoluir e a afirmar-se progressivamente,

    a partir de meados da dcada de 80.

    Em Portugal comeamos por essa altura a falar de interveno precoce, com a

    experincia pioneira da Direco de Servios de Orientao e Interveno Psicolgica

    (DSOIP), que iniciou um projecto de investigao-aco que, pela primeira vez no

    nosso pas, conduziu adaptao, aplicao, avaliao e disseminao de um modelo

    de interveno precoce, o Programa Portage para Pais. Este modelo distinguia-se das

    experincias de trabalho anteriores com crianas em idades precoces1, por ir para

    alm da simples estimulao da criana. Envolvia directamente os pais como

    parceiros dos tcnicos, no que era j um esboo de trabalho transdisciplinar, com um,

    ento designado, gestor de caso ou tcnico responsvel, incumbido de monitorizar o

    desenrolar do programa, que tinha na retaguarda o apoio pluridisciplinar

    proporcionado pelas reunies semanais de superviso.

    1 Destacamos aqui, nomeadamente, o trabalho dos Centros de Paralisia Cerebral e o das Equipas de Orientao Domiciliria OD, do ento Ministrio dos Assuntos Sociais.

  • Introduo

    4

    Foi j em finais de anos 80, inicialmente em estreita ligao com a D.S.O.I.P. e,

    mais tarde, com a Associao Portage, que o Hospital Peditrico de Coimbra comeou

    a desenvolver o Projecto Integrado de Interveno Precoce (P.I.I.P.), outra referncia

    de qualidade nesta rea, e que serviu de modelo a muitos dos projectos integrados de

    interveno precoce que comearam progressivamente a surgir por todo o pas a partir

    de meados da dcada de 90.

    Com a proliferao destes projectos, incentivados pelas polticas de apoio, quer do Ministrio da Educao (portaria 1102/97, alnea c), quer do Ministrio da Segurana

    Social (Programa Ser Criana) e devido ao interesse e empenhamento de muitos

    profissionais no terreno, surgiram experincias muito interessantes, a par de outras

    menos conseguidas, correspondendo a uma grande diversidade de prticas. Em

    termos de referencial terico, existiam ainda bastantes lacunas na maioria dos

    profissionais e no que diz respeito ao acompanhamento das prticas, em termos de

    formao em servio e de superviso, ela era praticamente inexistente. Esta situao

    era parcialmente colmatada com a enorme motivao de grande nmero de

    profissionais, aliada, nalguns, sua competncia em termos do trabalho desenvolvido

    com a criana e da capacidade de relacionamento com as famlias, assim como, por

    vezes, pela existncia de lideranas fortes e de qualidade.

    Pessoalmente, fui envolvida neste processo, tendo-o acompanhado de perto a

    partir do seu incio e, desde ento, nunca mais deixei de trabalhar nesta rea, seja a

    nvel do trabalho directo com crianas e famlias, seja a nvel da formao de outros

    tcnicos, seja a nvel da investigao e avaliao das prticas. Todas as actividades

    que fui desenvolvendo ao longo desses anos, bem como, e talvez principalmente, os

    contactos com inmeros profissionais e experincias diversificadas que tive,

    trouxeram-me um grande enriquecimento em termos do conhecimento da realidade da

    interveno precoce no nosso pas. Foi exactamente esse conhecimento, aliado ao

    desejo de perceber cada vez melhor esta realidade, que estiveram na origem da

    escolha do tema do presente trabalho.

    Assisti quilo que poderemos referir como um autntico boom, que foi a grande

    adeso s perspectivas de interveno centrada na famlia. Rapidamente, por todo o

    pas, a grande maioria dos profissionais de interveno precoce trabalhava centrada

    na famlia. Estando consciente das dificuldade que uma interveno desse tipo

    acarreta e dos resultados das investigaes realizadas nos Estados Unidos e que

    apontam para a discrepncia que existe entre aquele que o desejo dos tcnicos de

    trabalhar dentro desse modelo e aquelas que so, na realidade, as suas prticas

    (Bailey, 1994; Turnbull, Turbiville & Turnbull, 2000; Mahoney, OSullivan, & Fors, 1989,

  • Introduo

    5

    cit, Bailey, 1994; Mahoney & OSullivan, 1990, cit, Bailey, 1994; Bailey, Buysse,

    Edmonson, & Smith, 1992, cit, Bailey, 1994), despertou-me desde logo a curiosidade

    tentar perceber como que as coisas se passavam entre ns. Com a cada vez maior

    divulgao, atravs de livros, revistas e mesmo formaes especficas neste campo, a

    questo que se colocava era a de perceber se s designaes internacionais de

    modelos e de prticas de interveno precoce e, nomeadamente, de interveno

    centrada na famlia, correspondiam, de facto, contedos e/ou prticas idnticas s

    originalmente propostas, ou se elas passaram a fazer parte do repertrio de muitos

    profissionais, mas apenas ao nvel da desejabilidade.

    Como que os profissionais descreviam a sua prtica e que dificuldades

    identificavam? Como que os especialistas nesta rea avaliavam estas prticas em

    particular e, genericamente a situao da interveno precoce, entre ns? Como que

    uma equipa de profissionais, com condies que podemos considerar privilegiadas no

    panorama nacional, ou seja, uma formao considervel na rea, um enquadramento

    conceptual consistente e uma prtica supervisionada, aplicava aquele que diziam ser o

    seu modelo de referncia, a interveno centrada na famlia, e que efeitos as famlias

    sentiam, em si prprias e nos seus filhos? O que que as famlias portuguesas, de

    facto, pretendem quando se dirigem a um programa de interveno precoce? Ser que

    a to divulgada interveno centrada na famlia, com todos os pressupostos tericos

    que acarreta, corresponde quilo que as famlias portuguesas desejam? Qual o grau

    de adeso e de satisfao das famlias atendidas nestes programas?

    Neste sentido desenvolveu-se um estudo exploratrio com um desenho de modelo

    misto paralelo, que recorre em simultneo a abordagens qualitativas e quantitativas,

    dentro das vrias fases da investigao. O objectivo desta pesquisa , traar uma

    panormica geral da situao da interveno precoce e da utilizao do modelo de

    interveno centrado na famlia em Portugal e tentar perceber, at que ponto, a prtica

    desenvolvida se enquadra num modelo ecossistmico de prestao de servios e

    naquelas que so, neste mbito, as prticas recomendadas baseadas na evidncia,

    bem como, tentar identificar eventuais reas que possam necessitar de ser

    aperfeioadas. Para isso parte-se do testemunho de especialistas e de profissionais

    de interveno precoce de todo o pas, bem como de um estudo de caso incidindo

    sobre um programa de interveno precoce que assume, como seu modelo terico de

    referncia, a interveno centrada na famlia.

    Esta pesquisa integra dois estudos complementares:

  • Introduo

    6

    O Estudo I, designado Estudo das Ideias, em que se analisam as ideias de especialistas e de profissionais de interveno precoce de todo o pas, sobre

    interveno precoce no geral e interveno centrada na famlia, em particular.

    O Estudo II, designado Estudo das Prticas, em que se parte de um estudo de caso de carcter exploratrio e descritivo, para tentar perceber de que forma o

    fenmeno em anlise - o desenvolvimento de programas de interveno precoce

    dentro de um modelo de interveno centrado na famlia posto em prtica num

    contexto especfico e qual o seu efeito junto das famlias.

    Tentar responder s questes acima colocadas, recorrendo a fontes diversas,

    nomeadamente, especialistas na rea, profissionais de interveno precoce a

    trabalhar em diversas zonas do pas e um estudo de caso incidindo no trabalho de

    uma equipa com uma formao considervel e bastantes anos de prtica em

    interveno precoce, parece-nos ser a caracterstica que d maior coerncia e

    originalidade ao trabalho que em seguida se apresenta.

    Este estudo, que se intitula Estudos sobre a Interveno Precoce em Portugal:

    Ideias dos especialistas, dos profissionais e das famlias, est organizado em dez

    captulos.

    No primeiro captulo abordam-se as principais teorias do desenvolvimento, procurando traar um percurso, que parte daquelas que esto na origem dos primeiros

    programas de interveno precoce, at s que constituem actualmente o quadro de

    referncia conceptual das prticas de interveno nesta rea e que se inserem no

    quadro das teorias contextualistas. Dentro destas ltimas comeamos por analisar o

    modelo do contextualismo desenvolvimental de Lerner (1989, 1998, 2002; Dixon &

    Lerner, 1999), que prope uma explicao de desenvolvimento em que organismo e

    contexto aparecem mutuamente embebidos, ao longo de toda a vida do indivduo.

    Este modelo, apresenta um carcter abrangente aliado a caractersticas especficas

    que o tornam uma referncia importante para a compreenso da pessoa em

    desenvolvimento. Em seguida enfatizam-se os contributos tericos que tiveram uma

    maior influncia nesta rea: a perspectiva transaccional do desenvolvimento de

    Sameroff (Sameroff & Chandler, 1975; Sameroff & Fiese, 1990, 2000); o modelo

    ecolgico do desenvolvimento humano e, principalmente a sua verso mais recente, o

    modelo bioecolgico de Bronfenbrenner (1979, 1989, 1995a,b; 1998; Bronfenbrenner

    & Cecci., 1994; Bronfenbrenner & Morris, 1998). Termina-se com uma breve

    abordagem ao contributo de Wachs (2000 a,b) para a compreenso da variabilidade

    individual no desenvolvimento, pela achega importante que pode trazer definio de

    estratgias de avaliao e interveno, bem como ao desenho de pesquisas, na rea

  • Introduo

    7

    da interveno precoce. Ao longo deste captulo procura-se fazer um paralelo entre a

    evoluo das teorias do desenvolvimento e a correspondente evoluo a que se

    assistiu no campo da interveno precoce.

    No segundo captulo, comea-se por traar uma breve panormica da evoluo dos programas de interveno precoce, desde uma primeira gerao de programas

    centrados na criana, at aos programas centrados na famlia e na comunidade.

    Reflecte-se, em seguida, sobre o conceito de interveno precoce e sobre a questo

    da elegibilidade e das diferentes formas de prestao de servios. Analisam-se, ento,

    com maior detalhe, os modelos e prticas, daqueles que Dunst (2000b) designa como

    a terceira gerao de programas de interveno precoce, enfatizando as prticas

    recomendadas, baseadas em valores e na evidncia. Partindo do conceito de prticas

    baseadas na evidncia e no consenso que ele actualmente suscita, procura-se

    delinear um percurso no sentido da convergncia das prticas, fazendo um paralelo

    entre os princpios propostos, quer pela teoria unificada da prtica em interveno

    precoce de Odom e Wolery (2003), quer pelo modelo de sistemas desenvolvimental

    para a interveno precoce de Guralnick (2005). Passa-se, em seguida, a discorrer,

    brevemente, sobre a interveno centrada na famlia e na comunidade, que ser

    examinada no captulo seguinte, e d-se uma maior ateno: interveno nos

    ambientes naturais utilizando prticas desenvolvimental e individualmente adequadas,

    salientando o modelo de prticas contextualmente mediadas (Dunst, 2006; Dunst &

    Bruder, 1999a,b; Dunst & Hamby, 1999a,b; Dunst, Hamby, Trivette, Raab, & Bruder.,

    2000); e interveno baseada na colaborao e incidindo na integrao e

    coordenao de servios e de recursos, realando o trabalho em equipa

    transdisciplinar, bem como, o modelo de prticas de interveno baseadas nos

    recursos (Trivette, Dunst, & Deal, 1997; Mott, 2005; Mott & Dunst, 2006) e o papel do

    coordenador de servios.

    O terceiro captulo incide, especificamente, no tema da famlia, uma vez que nos propomos neste estudo analisar a forma como, no nosso pas, profissionais que

    defendem maioritariamente as prticas de interveno centradas na famlia, as

    utilizam na sua prtica, bem como, quais as percepes das famlias sobre a sua

    utilizao. Pareceu-nos, portanto, importante dedicar este captulo anlise da famlia,

    enquanto principal contexto de desenvolvimento da criana, no quadro das teorias

    desenvolvimentais sistmicas e do papel central que a se atribui interaco, como

    principal componente do processo de desenvolvimento. Comea-se por analisar o

    conceito de interaco, para em seguida se reflectir sobre o contributo que a

    perspectiva sistmica trouxe para uma melhor compreenso do sistema familiar e do

    papel desempenhado pelos factores de risco e de proteco (Barber, Turnbull, Behr, &

  • Introduo

    8

    Kerns, 1988; Werner, 1990; Pearl, 1993; Palacios & Rodrigo, 1998; Gabarino &

    Ganzel, 2000). O captulo termina com uma reflexo sobre o modelo de interveno

    centrado na famlia e na comunidade, discorrendo-se sobre este conceito (Dunst,

    Johanson, Trivette, & Hamby, 1991; Dunst, Trivette, & Deal, 1988; Dunst & Trivette,

    1994; Hanson & Bruder, 2001), a mudana do papel dos profissionais que ele implica

    (Dunst, 1998; Dunst, Trivette, & Deal, 1994; Trivette, Dunst, Hamby, & LaPointe, 1996;

    Bailey, 1994; McWilliam, Winton, & Crais, 1996; Harbin, McWilliam, & Gallagher,

    2000), as relaes famlia-profissional dentro deste modelo (Duwa, Wells, & Lalinde,

    1993; McWilliam, 2003; Turnbull, Turbiville & Turnbull, 2000; Bailey & Powel, 2005), e

    o Plano Individualizado de Apoio Famlia - PIAF (McWilliam, Ferguson, Harbin, & Al,

    1998; Simeonsson, 1996b; Bruder, 2000b; Bailey & Powel, 2005).

    Com o quarto captulo pretendemos abrir perspectivas que permitam enquadrar teoricamente, aquelas que se pretende que sejam as prticas de interveno precoce

    no futuro prximo, prticas baseadas na evidncia, que valorizem o efeito das

    interaces a nvel do desenvolvimento e o papel primordial da famlia e da

    comunidade. Neste sentido, so analisados aqueles que consideramos como os dois

    principais modelos que podem servir de enquadramento s prticas de interveno

    precoce do futuro: o Modelo para a Interveno Precoce e Apoio Famlia de Dunst

    (2000b), que enfatiza mais a componente do apoio social e das variveis

    envolvimentais associados promoo do desenvolvimento da criana e ao

    fortalecimento das famlias e o Modelo de Sistemas Desenvolvimental para a

    Interveno Precoce de Guralnick (2001, 2005), que, tendo como referncia uma

    perspectiva desenvolvimental, desenha um sistema abrangente de interveno

    precoce, que tem como principal objectivo a optimizao dos padres de interaco

    familiar, intervindo a nvel dos stressores que os afectam, e que podem estar

    associados a caractersticas, quer da criana, quer da famlia. Terminamos o captulo

    reflectindo sobre o futuro da interveno precoce, tendo em conta as alteraes que

    se tm vindo a registar nas ltimas dcadas, tanto a nvel do avano da cincia, como

    das transformaes a nvel social e econmico.

    O quinto captulo incide na temtica da avaliao de programas em interveno precoce. Aborda-se a questo da dificuldade e dos desafios que se colocam neste tipo

    de avaliao e que tm a ver com a especificidade da interveno, individualizada e

    simultaneamente abrangente (criana, famlia e comunidade), e com questes de

    ordem metodolgica. Em seguida, analisam-se os estudos que Guralnick (1998)

    considera como a primeira gerao de investigaes neste campo e que se

    preocuparam em responder questo da eficcia, ou seja, em avaliar os resultados

    dos programas, a curto e a longo prazo, com o objectivo de perceber se estes estavam

  • Introduo

    9

    ou no a produzir os efeitos que se esperava. Passa-se depois a reflectir sobre os

    estudos da segunda gerao de investigaes e a forma como abordam a questo da

    especificidade. Apresenta-se um modelo multidimensional que representa a interaco

    entre os factores da criana, da famlia e do programa, bem como as medidas dos

    resultados (Guralnick, 1993, 97) e abordam-se as questes da avaliao dos

    resultados nas crianas e famlias, e dos efeitos que prticas de interveno

    especficas tm nesses mesmos resultados. O captulo termina com a anlise de um

    caso exemplo de uma investigao de segunda gerao, o National Early Intervention

    Longitudinal Study (NEILS), o primeiro realizado nos EUA com uma amostra

    representativa a nvel nacional. Conclui-se com uma reflexo sobre os desafios e

    propostas para o futuro, no que diz respeito s questes que se colocam avaliao

    nesta rea.

    No sexto captulo, que encerra a parte terica deste trabalho, reflecte-se sobre a situao da interveno precoce em Portugal. A primeira parte incide na evoluo das

    respostas s crianas dos 0 aos 6 anos, no nosso pas, fazendo-se um breve historial

    das modalidades de atendimento dirigidas s crianas com e sem necessidades

    educativas especiais. Passa-se, em seguida, a analisar o percurso da interveno

    precoce, distinguindo dois perodos: um primeiro perodo que se inicia em meados de

    anos 80 e que vai terminar em finais de anos 90, com a publicao do Despacho

    conjunto n. 891/99, de 19 de Outubro, que veio regulamentar a sua prtica, e um

    segundo perodo, que se estende desde essa altura at ao momento. Neste percurso

    destacam-se as experincias pioneiras da Direco de Servios de Orientao e

    Interveno Psicolgica - D.S.O.I.P. e do Projecto Integrado de Interveno Precoce

    de Coimbra (PIIP) e o impulso que vieram dar ao desenvolvimento da interveno

    precoce entre ns. Faz-se uma reflexo crtica sobre o Despacho Conjunto n. 891/99

    e apresentam-se algumas das principais investigaes realizadas nesta rea.

    O captulo stimo dedicado fundamentao da metodologia da investigao, iniciando-se com uma reflexo sobre os mtodos mistos e uma anlise do mtodo de

    estudo de caso (Yin, 1994) usado no Estudo II. Em seguida apresenta-se e

    fundamenta-se o desenho da pesquisa, enunciam-se os objectivos e as questes

    gerais de investigao. Passa-se, ento, anlise dos mtodos de recolha e de

    anlise de dados utilizados e o captulo termina com uma reflexo sobre as questes

    da validade e da qualidade numa dupla vertente, uma vez que utilizmos metodologias

    qualitativas e quantitativas.

    Com o captulo oitavo inicia-se a apresentao do trabalho emprico, com a descrio do Estudo I, intitulado Estudo das ideias, que se baseia na anlise das

  • Introduo

    10

    ideias de especialistas e de profissionais de interveno precoce de todo o pas, sobre

    questes relacionadas com a interveno precoce. Apresentam-se os mtodos: o

    desenho do estudo e questes de investigao, os participantes, os mtodos de

    recolha de dados e respectivos procedimentos, bem como os mtodos de anlise de

    dados. Passa-se apresentao dos resultados, seguida da anlise e discusso das

    questes de investigao e termina-se apontando algumas concluses.

    O captulo nono diz respeito ao Estudo II, designado por Estudo das prticas: Um estudo de caso (CEACF), que constitudo por um estudo de caso instrumental em

    que, recorrendo a um desenho longitudinal transverso, se analisa, durante um

    determinado perodo de tempo, o percurso de algumas intervenes implementadas

    no mbito de um Programa de Interveno Precoce, que assume ter como modelo

    terico de referncia a interveno centrada na famlia. Este captulo obedece a uma

    estrutura de apresentao semelhante anterior: mtodos (desenho do estudo e

    questes de investigao, participantes, mtodos de recolha de dados, procedimentos,

    mtodos de anlise de dados); apresentao dos resultados; anlise e discusso das

    questes de investigao; e concluses.

    No captulo dcimo, o ltimo, apresentam-se as concluses gerais a partir dos dois estudos efectuados, tecem-se algumas consideraes sobre as limitaes deste

    trabalho, bem com sobre o desenvolvimento de futuras investigaes e fazem-se

    recomendaes para o futuro desenvolvimento da prtica de interveno precoce no

    nosso pas.

  • CAPTULO I AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO E A SUA INFLUNCIA NA ORIGEM E EVOLUO DO CONCEITO DE INTERVENO PRECOCE

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    1. Introduo

    Podemos considerar como objectivo lato da interveno precoce, a promoo do

    bem-estar das crianas em idades precoces e das suas famlias, crianas, essas, que

    nos levantem qualquer tipo de dvidas do ponto de vista do seu desenvolvimento,

    independentemente da origem do problema em causa. , portanto, a existncia de um

    problema a nvel do desenvolvimento, ou um risco elevado de que tal possa vir a

    suceder, e o facto de se acreditar que uma interveno pode resolver ou atenuar essa

    situao que torna uma criana elegvel para um programa de interveno precoce.

    Esta preocupao com a optimizao do desenvolvimento conduz existncia de uma

    ligao estreita entre o percurso histrico da interveno precoce e a evoluo das

    teorias do desenvolvimento. Neste captulo vamos, ento, fazer uma breve referncia

    origem e evoluo destas teorias, detendo-nos, apenas, com mais algum detalhe,

    naquelas que esto ligadas ao emergir da interveno precoce, assim como nas que

    constituem actualmente o seu quadro de referncia conceptual.

    O cientista que opta por uma teoria, mtodo e procedimento de recolha e anlise

    de dados, tem subjacente uma opo em termos de pressupostos tericos, no

    passveis de comprovao emprica, que lhe serve de guia na conduo da sua

    investigao. Assim deparamo-nos, ao longo da histria das teorias do

    desenvolvimento, com diferentes opes filosficas sobre o ser humano e o mundo

    que o rodeia, que esto na base das principais controvrsias conceptuais nesta rea,

    os debates nature-nurture e continuidade-discontinuidade (Dixon & Lerner, 1999) e

    que conduziram s diferentes teorias do desenvolvimento.

    O conjunto de tais opes vai constituir um sistema filosfico de ideias, que serve

    de enquadramento a um grupo ou famlia de teorias e de mtodos cientficos que

    lhes esto associados e que so designados como metateorias, teorias da cincia ou

    vises do mundo (Lerner, 2002). Embora no avancemos aqui para uma explicao

    pormenorizada sobre estes sistemas filosficos, tais como os propostas por Pepper

    (1942, cit. Altman & Rogoff, 1987), Reese e Overtone (1970), Altman e Rogoff (1987)1

    e, mais recentemente, Lerner (2002) e Dixon e Lerner (1999), iremos recorrer, por

    vezes, ao seu quadro referencial, pois pensamos que tal permitir uma melhor

    compreenso da evoluo, fundamentao e, consequentemente, da prtica da

    interveno precoce.

    Recordamos brevemente as principais vises do mundo, na terminologia de Altman

    e Rogoff (1987) e os modelos filosficos do desenvolvimento propostos por Lerner

    (2002). Altman e Rogoff, baseando-se nos paradigmas de Pepper e na obra de Dewey

    1 Em texto anterior detivemo-nos sobre as vises do mundo propostas por estes autores (Tegethof, 1996).

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    14

    e Bentley (1949), propem uma taxonomia organizada em quatro grandes

    perspectivas ou "vises do mundo", a saber: a perspectiva dos traos, a perspectiva

    interaccionista, a perspectiva organsmica e a perspectiva transaccional. Por sua vez

    Lerner (2002), Dixon e Lerner (1999), e Lerner e Kauffman (1985, cit Lerner 2002), aos

    dois modelos propostos por Reese e Overton (1970) e Overton e Reese (1973, 1981,

    cit Dixon & Lerner, 1999), o mecanicista e o organicista, acrescentam os modelos

    psicodinmico, dialctico e contextual1.

    Passando a reflectir sobre o conceito de desenvolvimento, central temtica da

    interveno precoce, verificamos que, de um modo geral existe consenso em

    reconhecer que o desenvolvimento implica mudana. Lerner (2002), especifica,

    considerando que o desenvolvimento implica mudanas numa organizao, mudanas

    essas que se produzem de uma forma sistemtica e sucessiva ao longo do tempo. Por

    sua vez, Magnussen (1995, p. 20), refere que este diz respeito s mudanas

    progressivas e regressivas de um organismo vivo, em termos de tamanho, forma e

    funo ao longo do seu ciclo de vida. Assim, os principais objectivos da psicologia

    desenvolvimental tm sido, descrever e explicar aquilo que permanece idntico e

    aquilo que muda ao longo da vida, assim como explicar em que condies tal

    estabilidade (continuidade) ou mudana (discontinuidade) ocorre. (Dixon & Lerner,

    1999, p. 4). Tendo sempre em conta, como salienta Magnussen, que a mudana e o

    tempo so questes centrais e que embora o tempo no seja o mesmo que

    desenvolvimento, o desenvolvimento tem sempre uma dimenso temporal.

    2. As teorias organicistas e os primrdios da Interveno Precoce

    Esta concepo dinmica e actual de desenvolvimento afasta-se das perspectivas

    nativistas que predominavam no incio do sec. XX, sob a influncia de Stanley Hall

    (1844-1924), que considerava a ontognese como uma recapitulao da filognese,

    correspondendo, portanto, a uma influncia determinante da componente nature. As

    perspectivas nativistas consideravam a inteligncia determinada antes do nascimento,

    pelo que as diferenas na aprendizagem das crianas seriam inatas, fixadas

    nascena e quantitativas. Esta orientao foi continuada pelos seus discpulos entre

    os quais se conta Gesell (1880-1961), autor que se destacou na psicologia do

    desenvolvimento na primeira metade do sculo passado, quer pelas suas propostas

    tericas, quer pelo estudo exaustivo que levou a cabo no sentido de catalogar de 1 De notar que tanto Reese (1975, 1977, cit Lerner, 2002), como Overton (1984, cit Lerner, 2002), discutiram a utilizao dos modelos dialcticos e contextuais do desenvolvimento e consideraram que eles s seriam teis se combinados com concepes mecanicistas ou organicistas. Lerner (2002), defende uma sntese entre os modelos contextualistas e organicistas e considera que, tal como o contextualismo necessita do organicismo, o oposto tambm acontece.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    15

    forma sistemtica as caractersticas e comportamentos das crianas referenciando-as

    aos seus diferentes nveis etrios.

    Para Gesell, a aprendizagem dependia da maturao do sistema nervoso central e

    ocorria de acordo com uma sequncia invariante, pelo que era intil tentar levar a

    criana a adquirir determinadas competncias, caso o seu nvel de maturao

    biolgico ainda no estivesse pronto para isso. A Teoria Maturacional de Gesell no

    nega a influncia do meio no desenvolvimento, mas atribui-lhe um papel secundrio de

    facilitador, proporcionando condies propcias actualizao dos processos de

    maturao, esses, sim, determinantes. No entanto, de certa forma, Gesell, com o seu

    conceito de crescimento em estadios, vem j lanar alguma dvida sobre a ideia,

    ento preponderante, da existncia de uma inteligncia fixa e quantitativa. A sua teoria

    maturacional situa-se dentro do modelo filosfico do desenvolvimento que Lerner

    (2002) designa por organicista e Altman e Rogoff (1987) por perspectiva organsmica1.

    A obra de Gesell teve uma influncia grande nos investigadores da poca. Como

    Meisels e Shonfoff (2000) referem, o modelo de causalidade linear, que este autor

    defende, resultou na popularizao do paradigma de determinismo biolgico

    caracterstico do conceito de continuum de morbilidade reprodutiva (continuum of

    reproductive casualty) de Pasamanick e Knobloch (1964), segundo o qual o efeito de

    sequelas no feto ou no recm-nascido, nos perodos pr, peri e ps-natal, seriam

    potencialmente geradores de alteraes neurodesenvolvimentais. , portanto, um

    conceito eminentemente organicista em que a nica meno a factores de ordem

    social e ao efeito multifactorial de diferentes variveis que se agravam mutuamente,

    uma referncia ao facto de estas situaes serem mais frequentes em crianas

    oriundas de meios em desvantagem socioeconmica, principalmente devido a factores

    ligados ao excesso de trabalho das mes, infeces ou outras complicaes com

    efeitos durante a gravidez e o parto, e necessidade de se actuar preventivamente

    aos diferentes nveis. Este conceito, como veremos, viria a ser mais tarde retomado e

    repensado por Sameroff (1975), numa viso contextualista do desenvolvimento.

    Estamos, ento, em finais de anos 60 incio de anos 70, altura em que se torna

    mais saliente o movimento crtico relativo aos modelos assentes num determinismo

    biolgico, caractersticos de anos 50/60, de que referimos o pensamento de Gesell e o

    1 As teorias que se enquadram dentro da perspectiva organsmica caracterizam-se por fazerem uma abordagem holstica dos fenmenos psicolgicos: a unidade de anlise o todo ou o sistema integrado, embora se continue a considerar o indivduo e o meio como unidades independentes e funcionando separadamente. Os factores temporais e a mudana so considerados como factores centrais que operam no sentido de manter a estabilidade do sistema, tendendo para um estado final ideal e estvel. A avaliao da mudana feita em termos qualitativos, sendo valorizada a anlise dos processos. Defende uma abordagem cientfica dos fenmenos psicolgicos, incluindo os princpios de objectividade, replicao, medio e independncia observador/observado. Para explicar os fenmenos psicolgicos enfatiza-se a procura de leis gerais com carcter universal. A metfora proposta por Pepper (1942, cit. Altman & Rogoff, 1987) para caracterizar esta perspectiva o organismo.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    16

    conceito de morbilidade reproductiva de Pasamanick e Knobloch. Nessa conjuntura,

    Scott (1978, cit Bairro 2003), analisa aqueles que refere como os trs modelos que

    enfatizam uma componente preventiva, mais usados na avaliao em interveno

    precoce.

    O primeiro um modelo mdico clssico utilizado em epidemiologia, o segundo, o

    modelo de enriquecimento de competncias (ability-enrichment model) um modelo

    psicomtrico baseado na noo de competncia e do seu treino e que, segundo

    Bairro (2003), se pode enquadrar no modelo de interaco aptido-tratamento

    (aptitude-treatment interaction model, Snow, 1991), que salienta o facto de o resultado

    da interveno depender da interaco entre as caractersticas do indivduo (aptido)

    e as caractersticas da instruo ou do ensino (tratamento).

    Finalmente o terceiro, o modelo de avaliao-interveno (assessment-intervention

    model), considerado por Scott demasiado recente para poder ser avaliado em termos

    de eficcia da interveno, um modelo que defende a existncia de uma estrutura

    hierrquica de pr-requisitos cognitivos que conduzem a estadios de aprendizagem e

    cognio. Neste modelo, as competncias e os seus pr-requisitos podem ser

    avaliados e alterados atravs de tcnicas de modificao de comportamentos, anlise

    de tarefas, definio de objectivos desenvolvimentais, bem como recorrendo a um

    currculo de referncia a critrios. Enquanto o primeiro modelo analisado por Scott

    um modelo claramente organicista, os dois ltimos caiem, j, dentro da mesma famlia

    de teorias de que faz parte o behaviorismo, movimento que apresentaremos mais

    frente.

    2.1. A teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget

    Antes, porm, vamos continuar dentro do sistema filosfico organicista (Lerner,

    2002) ou organsmico (Altman & Rogoff, 1987), para referir o pensamento de Piaget

    (1896-1980), que desenvolve uma teoria bastante mais elaborada, contrapondo

    preocupao descritiva de Gesell uma preocupao explicativa. A teoria desenvolvida

    por Piaget vai-se debruar sobre o desenvolvimento cognitivo procurando explicar de

    que forma as crianas aprendem a conhecer ou a formar conceitos, propondo um

    modelo com caractersticas interactivas, construtivistas e estruturalistas. Para ele, o

    desenvolvimento resulta da relao binria e interdependente que se estabelece entre

    o organismo e o meio, atravs de um processo em que a criana tem um papel activo,

    surgindo a inteligncia como algo que se constri.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    17

    Na sua Teoria do Desenvolvimento Cognitivo, Piaget prope o modelo de

    equilibrao que, em sua opinio, explicaria o processo de transio entre os quatro

    estadios que caracterizariam o desenvolvimento da criana. Na sua adaptao ao

    ambiente esta vai confrontar-se com acontecimentos que so inconsistentes com os

    seus conhecimentos e experincias anteriores, situao que vai provocar um

    desequilbrio. Para ultrapassar esta situao, vai incorporar os novos elementos aos

    esquemas j existentes, num processo de assimilao, ou modificar estes esquemas

    para que estes se adaptem aos novos elementos, num processo de acomodao.

    Deste modo, o sistema cognitivo do sujeito reorganiza-se e reencontra o equilbrio

    atravs destes processos homeostticos de adaptao. Ao sublinhar assim, o carcter

    indissocivel entre organismo e meio, Piaget vai colocar-se numa perspectiva

    transaccional1 (Altman & Rogoff, 1987), assim como levar Dixon e Lerner (1999) a

    considerar alguns aspectos do seu pensamento como distintamente dialcticos e vai,

    ainda, reaproximar os dois plos do acima referido debate nature-nurture.

    No entanto, a noo de interaco de Piaget diferente daquela que, como

    veremos mais frente, caracteriza o modelo contextual. Neste modelo de

    desenvolvimento a mudana ocorre como consequncia das relaes recprocas e

    bidireccionais que se estabelecem entre um organismo e um contexto activo, com

    efeitos em ambos, enquanto que na teoria de Piaget as mudanas ocorrem apenas no

    interior do sujeito (Lerner, 2002) e a progresso atravs dos diversos estadios -

    sensrio-motor, pre-operatrio, das operaes concretas, das operaes formais

    tem um carcter teleolgico, ao visar um estado final ideal e estvel.

    Este mesmo aspecto criticado por dois dos seus seguidores Doise e Mugny

    (1981) que referem no ter Piaget a preocupao de encontrar relaes de

    causalidade entre os fenmenos sociais e o processo cognitivo, aparecendo os

    primeiros sempre exteriores ao segundo. No entanto, e como j salientmos noutro

    texto (Tegethof, 1996), apesar de serem vrios os autores que criticam o facto de

    Piaget no valorizar suficientemente o contexto social (Vygotsky 1934/1981; Perret-

    Clermont, 1979; Doise & Mugny, 1981; Doise, 1985; Sigel & Cocking, 1977; Rogoff,

    1990; Bruner & Haste, 1990; Wertsch & Tulviste, 1992), outros vo considerar que isso

    mais aparente do que real e que, esse suposto menor destaque dado aos factores

    1 As teorias psicolgicas que se enquadram na perspectiva transaccional caracterizam-se, principalmente, pelo nfase dado aos factores contextuais e ao estudo dos processos; consideram como unidade de anlise a entidade holstica pessoa-contexto encarada como indissocivel, sendo, portanto, o evento psicolgico em si mesmo o objecto de estudo; reconhecem o tempo e a mudana como caractersticas centrais e intrnsecas aos fenmenos psicolgicos e o carcter inseparvel dos diferentes nveis de anlise dos processos psicolgicos. Mais do que analisar resultados, o que se pretende aqui analisar os processos em transformao e as relaes que se vo estabelecendo entre as pessoas e os seus contextos de vida, sem a preocupao de encontrar leis ou princpios gerais que regulem os fenmenos psicolgicos. A metfora proposta por Pepper (1942, cit. Altman & Rogoff, 1987) para caracterizar esta perspectiva o facto histrico.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    18

    sociais, se deve s suas preocupaes epistemolgicas e no a limitaes inerentes

    sua teoria (Loureno, 1994; Tudge & Winterhoff, 1993).

    Apesar do trabalho de Piaget ser conhecido nos EUA desde cerca de 1920, s

    comeou a ter maior reconhecimento a partir de finais de anos 50. Tal deve-se, de

    acordo com Lerner (2002), por um lado barreira lingustica, dificuldade inerente

    escrita de Piaget e aos conceitos abstractos que ele maneja, e por outro, ao facto de,

    na altura, predominar nos EUA uma perspectiva mecanicista da cincia, que seguia a

    lgica do positivismo implicando a experimentao e a utilizao de mtodos

    quantitativos. Ora tal lgica, como veremos a seguir, ope-se do modelo filosfico

    organicista (Lerner, 2002) ou organsmico (Altman & Rogoff, 1987), com aspectos

    transaccionais e dialcticos, que caracteriza o pensamento de Piaget, principalmente

    na sua vertente constructivista, interactiva e estruturalista. No entanto, a partir da

    dcada de 60, a obra de Piaget passou a ser largamente difundida nos EUA, tendo

    passado, progressivamente, a dominar o pensamento na rea da psicologia do

    desenvolvimento e influenciando os trabalhos a desenvolvidos.

    2.2. A perspectiva preventiva e os antecedentes dos actuais programas de Interveno Precoce

    A perspectiva construtivista e interaccionista de Piaget, que vem conferir ao

    contexto em que a criana est inserida um papel preponderante no seu

    desenvolvimento, est ligado ao aparecimento, em anos 60, dos designados

    programas de educao compensatria, percursores dos actuais programas de

    interveno precoce, j ento concebidos numa perspectiva preventiva. Neste

    processo, destacam-se dois autores, Hunt (1961) e Bloom (1964), que tiveram uma

    importante contribuio na traduo e divulgao da obra de Piaget, a par de um

    trabalho empenhado opondo-se ideia, ento prevalecente, do carcter

    geneticamente determinado e imutvel da inteligncia. Baseando-se em estudos sobre

    o comportamento animal defenderam a necessidade de uma interveno em idades

    precoces com base na existncia dos chamados perodos sensveis do

    desenvolvimento1. Este conceito vir a ser posto em causa, quando da avaliao dos

    primeiros programas de interveno precoce. No entanto, aquilo que se poder

    contrapor tem sobretudo a ver com o facto de os autores limitarem a interveno a um

    perodo de tempo especfico, de tal forma que se chegou a sugerir a quase inutilidade

    1 Segundo os autores, os perodos sensveis do desenvolvimento resultariam da existncia, nas idades precoces, duma particular vulnerabilidade e maleabilidade ao nvel do sistema nervoso central, pelo que, uma estimulao intensiva durante os primeiros quatro anos de vida, resultaria em ganhos importantes em termos de desenvolvimento com efeitos que se manteriam ao longo do tempo.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    19

    duma interveno depois dos 4, 5 anos (Bloom, 1964), aliada ao facto de no

    pensarem a interveno em termos de continuidade.

    Abrimos aqui um parntesis para mencionar o facto, que no deixa de ser curioso,

    de nos ltimos anos, se ter vindo a assistir, ainda que em moldes muito diferentes,

    quilo que poderamos designar como um repor da antiga polmica nature-nurture.

    Estamos a referir-nos ao interesse crescente pelo estudo dos mecanismos

    neurobiolgicos e do desenvolvimento cerebral, assim como ao papel que os factores

    do meio podero a desempenhar.

    Sabemos hoje que durante os primeiros anos de vida que, no crebro, se

    constituem a maioria das sinapses que se mantero durante o resto da vida e que

    nesse perodo que as clulas apresentam maior maleabilidade. Assiste-se assim ao

    retomar, ainda que de uma forma bastante mais depurada, do conceito de perodos

    crticos, defendidos por Hunt (1961) e Bloom (1964) em meados do sculo XX, ao

    voltar a referir-se a existncia de perodos que devido sua plasticidade neuronal

    seriam particularmente favorveis em termos de desenvolvimento (Nelson, 2000).

    Dentro desta perspectiva, defende-se que o sucesso de qualquer interveno depende

    da possibilidade do sistema nervoso ser modificado pela experincia.

    a eficcia de qualquer interveno depender da capacidade do sistema nervoso (ao

    nvel celular, metablico ou anatmico) ser modificado pela experincia. Este processo,

    referido ao longo deste captulo como plasticidade neuronal, est muitas vezes limitado pelo

    tempo; isto , pode existir uma janela de oportunidade, ou um perodo crtico, para alterar o

    funcionamento neuronal. (Nelson, 2000, p. 204)

    Estamos, portanto aqui numa linha de demarcao que poder facilmente resvalar

    para um novo tipo de reducionismo dando a primazia aos aspectos biolgicos do

    desenvolvimento, pelo que se torna cada vez mais necessria uma abordagem que

    permita uma compreenso interdisciplinar dos fenmenos do desenvolvimento.

    Mas, retomando a influncia crescente do pensamento de Piaget nos EUA e a

    importncia de que se reverteu o conceito de perodos sensveis do desenvolvimento,

    constituindo-se como o racional terico que esteve na base dos primeiros programas

    que surgiram em meados de anos 60. Eram os chamados programas de educao

    compensatria, destinados a crianas em desvantagem socioeconmica, que

    pretendiam compensar a deficiente estimulao que se considerava ser-lhes

    proporcionada pelo seu meio de origem. O seu objectivo ltimo era quebrar o ciclo de

    pobreza, proporcionando uma estimulao precoce e intensiva, num perodo que

    precedia a entrada da criana na escola, esperando-se assim facilitar a sua adaptao

    escolar e melhorar os seus resultados. Muitos acreditavam, mesmo, que esses ganhos

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    20

    iriam continuar a garantir-lhes o sucesso ao longo da vida escolar e, mais tarde, na

    vida social e profissional (Almeida, 1997a,b, 2000a).

    assim que surge em 1965 o programa Head Start, como um projecto piloto de 8

    semana para crianas em desvantagem, de idade pr-escolar e embora ele no

    conseguisse cumprir a sua promessa de quebrar o ciclo de pobreza, a verdade que

    foi de tal modo bem sucedido que ainda hoje se mantm, tendo, mesmo dado origem

    a outros programas como o Home Start, o Follow Through ou o Early Head Start,

    conjunto de programas sobre os quais teremos oportunidade de reflectir no captulo V.

    Este sucesso est concerteza muito ligado s suas caractersticas, ento bastante

    inovadoras, com um envolvimento activo da famlia, assim como uma preocupao

    abrangente, que ia muito para l da estritamente acadmica, envolvendo um vasto

    leque de profissionais e paraprofissionais que proporcionavam servios coordenados a

    nvel da sade, da educao e da segurana social (Meisels & Shonkoff, 2000;

    Richmond & Ayoub, 1993; Hanson & Lynch, 1989). No emergir destes programas na

    dcada de 60, para alm dos resultados da investigao e da evoluo das teorias do

    desenvolvimento, j referidas, encontram-se razes de ordem histrico-social e

    modificaes na forma como a sociedade tem vindo a encarar a criana e,

    particularmente, a criana em risco e com alteraes de desenvolvimento e a sua

    famlia1.

    3. As teorias mecanicistas e a sua aplicao aos programas de Interveno Precoce

    Retomando a evoluo das teorias do desenvolvimento, a nossa reflexo passa

    agora a incidir sobre a teoria dominante nos EUA, a partir da segunda dcada do sec.

    XX, e que continuou a predominar at anos 50, o behaviorismo ou

    comportamentalismo.

    1 Entre estas razes referimos sucintamente: (i) a preocupao crescente com a criana, o seu bem-estar e educao, que est na origem da publicao de legislao relacionada com a obrigatoriedade do ensino e a proibio do trabalho infantil; (ii) o desenvolvimento da educao pr-escolar com o aparecimento, primeiro na Europa e depois nos EUA, dos primeiros "Kindergarten, e das "Nursery Schools", que vo chamar a ateno para a importncia do investimento nos primeiros anos de vida; (iii) o aparecimento dos primeiros Servios de Sade Materno-Infantis, como o Childrens Bureau e programas como o Early and Periodic Screening, Diagnosis, and Treatment Program (EPSDT), que vm reforar a necessidade de encontrar respostas adequadas para populaes carenciadas e mais vulnerveis; (iv) a evoluo da educao especial, desde uma primeira fase de segregao e institucionalizao das crianas com deficincias ou incapacidade at ateno gradual e mudana de atitudes relativamente a estas crianas, que levou criao de respostas nas escolas pblicas. (Para informaes mais detalhadas sobre este tema, consultar Meisels & Shonkoff, 2000; McCollum & Maude, 1993; Richmond & Ayoub, 1993; Hanson & Lynch, 1989)

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    21

    3.1. Do behaviorismo de Skinner s teorias emergentes

    Ao recuperar o conceito de mente como tabula rasa de Locke (1632-1704), o

    behaviorismo, assim designado por Watson (1928), vai enfatizar o papel que o meio e

    o processo de aprendizagem tm no desenvolvimento e defender uma orientao

    quantitativa. Com estas caractersticas, o behaviorismo situa-se dentro daquele

    sistema de teorias que Lerner (2002) designa por mecanicistas e Altman e Rogoff

    (1987) por perspectiva interaccionista1, e est em directa oposio com as concepes

    que acabmos de apresentar e que enfatizam o papel da maturao e da

    hereditariedade defendendo uma orientao qualitativa, tais como as de Gesell e as

    de Piaget, embora, estas ltimas, j com caractersticas muito diferentes que as

    aproximam de modelos dialcticos e transaccionais.

    Na perspectiva behaviorista, o organismo assume um papel relativamente passivo

    em contraposio com o papel activo do meio ambiente, considerando-se que tudo

    aprendizagem. Assim, exceptuando os casos de alteraes significativas do sistema

    nervoso central, nos restantes seriam os estmulos do meio que iriam determinar o

    desenvolvimento. Este resultaria, portanto, de um acumular de sucessivas

    aprendizagens realizadas de acordo com um modelo linear estmulo-resposta, sem

    que se pressuponha qualquer reorganizao do estmulo pelo sujeito, atravs de um

    acumular de sucessivas aprendizagens que se vo processando de acordo com as

    leis do condicionamento. Ao eleger o comportamento observvel como unidade de

    anlise, a psicologia passava a ser uma cincia objectiva e quantificvel. Trata-se

    portanto de uma viso nurture ou ambiental do desenvolvimento, que se ope

    viso nature do modelo organicista, oposio, essa, que deu origem polmica

    nature-nurture que se arrastou durante a primeira metade do sec. XX e que s viria ser

    ultrapassado com o emergir da perspectiva contextual (Lerner, 2002).

    Skinner (1974), seguidor de Watson, preocupou-se essencialmente com a questo

    do reforo contingente e desenvolveu um modelo de mudana dos comportamentos

    dependente da consequncia das respostas (reforo contingente), de acordo com um

    procedimento sistemtico, que designa de condicionamento operante. Para o

    desenvolvimento de estudos empricos, este autor vai considerar o comportamento

    como a unidade de anlise e a frequncia da resposta como a unidade de medida a

    privilegiar. Segundo Dixon e Lerner (1999), Skinner (1974), tal como Bijou (1979),

    1 As teorias que se enquadram dentro da perspectiva interaccionista caracterizam-se por fazerem uma abordagem analtica dos fenmenos psicolgicos: as qualidades psicolgicas e as caractersticas do meio so vistas como unidades isoladas e independentes entre as quais se estabelecem relaes unidireccionais, que podem ser quantificadas. Os factores temporais e a mudana so considerados como exteriores aos fenmenos e esta ltima avaliada em termos de produto, sendo valorizado o aspecto quantitativo segundo um processo sistemtico, objectivo e parametrizado. Para explicar os fenmenos psicolgicos enfatiza-se a procura de leis gerais com carcter universal. A metfora proposta por Pepper (1942, cit. Altman & Rogoff, 1987) para caracterizar esta perspectiva a mquina.

  • As Teorias do Desenvolvimento e a sua influncia na origem e evoluo do conceito da Interveno Precoce

    22

    preocupou-se com questes metatericas e examinou alguns conceitos chave do

    desenvolvimento, tais como a natureza da mudana relacionada com a idade, o

    espao de vida e, principalmente, o envelhecimento, assim como o modelo do

    organismo e o papel do meio.

    Os conceitos de condicionamento operante e de reforo foram retomados e, em

    certa medida, postos em causa por outro autor, Bandura (1977, 1986), que na sua

    Teoria da Aprendizagem Social e na sua posterior evoluo, a Teoria da Cognio

    Social, integra aspectos do comportamentalismo e do cognitivismo, aplicando-os

    aprendizagem que ocorre em contexto social. Reala o papel da imitao e da

    modelagem na aprendizagem e diminui o papel do reforo que, na sua perspectiva,

    no indispensvel. Refere, no entanto, a possibilidade da utilizao daquilo que

    designa por reforo vicariante, uma forma de reforo indirecta aplicada a modelos que

    so socialmente valorizados pelo indivduo. Lerner (2002) considera, que a

    reconceptualizao levada a cabo por Bandura, na sua Teoria da Cognio Social,

    envolvendo processos causais baseados no determinismo recproco, em que ele

    salienta as interaces recprocas entre factores do comportamento, cognitivos e

    ambientais, vai colocar este autor dentro de um modelo contextualista.

    Mas regressemos a Skinner, uma vez que o seu contributo foi fundamental para o

    desenvolvimento da Anlise Comportamental Aplicada (ACA), uma tcnica que teve, e

    continua a ter, um papel importante na elaborao de programas educativos para

    crianas com situao de deficincias ou incapacidade, ou seja, para grande parte da

    populao-alvo da interveno precoce. A Anlise Comportamental Aplicada (ACA),

    manteve os princpios conceptuais e metodolgicos bsicos do behaviorismo de

    Skinner, mas alargou o seu campo de investigao e interveno aplicando-os aos

    comportamentos dos indivduos nos seus contextos de vida e, nomeadame