318
1 (DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL DE FAVELAS: O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NO CONTEXTO DA “PACIFICAÇÃO” VANESSA BRULON SOARES Tese apresentada à Fundação Getulio Vargas-RJ Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, como requisito final à obtenção do título de Doutorado em Administração. Orientadora: Prof. Dr. Alketa Peci Rio de Janeiro Junho 2015

Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

1

(DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL DE FAVELAS: O CAM PO

BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NO CONTEXTO DA “PACIF ICAÇÃO”

VANESSA BRULON SOARES

Tese apresentada à Fundação Getulio Vargas-RJ – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, como requisito final à obtenção do título de Doutorado em Administração.

Orientadora: Prof. Dr. Alketa Peci

Rio de Janeiro Junho 2015

Page 2: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

2

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Soares, Vanessa Brulon (Des)organizando o espaço social de favelas: o campo burocrático do estado em ação no contexto da “pacificação” / Vanessa Brulon Soares. - 2015. 318 f.

Tese (doutorado) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa.

Orientadora: Alketa Peci. Inclui bibliografia.

1. Favelas. 2. Políticas públicas. 3. Intervenção estatal. 4. Espaço urbano. I. Peci, Alketa. II. Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa. III. Título. CDD – 351

Page 3: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)
Page 4: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

3

Esta tese é dedicada à Marcelo Milano Falcão Vieira, com quem

tudo começou, minha eterna fonte de inspiração.

Page 5: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

4

“(...)Afastando-o com a ajuda de um bom sanduíche de anchova e ovo

cozido, organizou o subgrupo dos dois capivaras, e se dispunha a inscrevê-lo

em seu caderno de trabalhos científicos quando um dos capivaras olhou para

um lado e o outro capivara olhou para o lado oposto, em consequência do

que a esperança e os demais candidatos puderam perceber que, enquanto o

primeiro capivara era evidentemente um nariz achatado braquicéfalo, o

outro possuía um crânio muito mais apropriado para pendurar um chapéu

do que para encaixá-lo. Assim foi que se dissolveu o subgrupo, e do resto

nem é bom falar porque os demais sujeitos haviam passado do mazagrán à

cachaça queimada, e a essa altura dos acontecimentos a única semelhança

entre eles era o firme propósito de continuarem bebendo à custa da

esperança”

(Histórias de cronópios e de famas – Julio Cortázar)

Page 6: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à minha querida orientadora Alketa Peci, sem a qual esta

tese certamente não seria a mesma. Agradeço-a por assumir o verdadeiro papel de um

orientador e por me ensinar também a sê-lo. Agradeço-a por compartilhar comigo ao longo de

todo o trabalho a sua capacidade analítica ímpar, por me desafiar e me apoiar, sempre nas

medidas certas. Espero que, ao longo deste processo, tenha conseguido apreender pelo menos

um pouquinho da grande pesquisadora que me guiou por esse caminho.

Agradeço aos outros grandes pesquisadores com os quais tive oportunidade de

dialogar neste percurso. À Rafael Alcadipani, a quem muito admiro como pesquisador e como

pessoa, pelos bons conselhos a respeito de uma pesquisa etnográfica, ainda que eu não tenha

seguido a todos, agora com um pouco de arrependimento. À Mariana Cavalcanti, cujas

palavras escritas e faladas, de forma tão inspiradora, me abriram as portas para a antropologia,

me ajudaram a desconstruir as favelas, e tiveram tamanha influência em minha tese e em

minha vida. À Luiz Alex Saraiva, pelas constantes trocas nos congressos da vida, por insistir

em abrir meus olhos de pesquisadora para o que os meus dados tinham a me dizer. À Sueli

Goulart, por me guiar pelos caminhos da geografia, cruciais para os fins desta tese.

Aos queridos amigos do campo acadêmico Rafael Goldszmidt, Anna Katharina Lenz,

Mônica Pinhanez e Diego de Faveri pelas angústias e alegrias compartilhadas, pelas risadas

terapêuticas, por tanto desabafo... Aos queridos amigos dos estudos organizacionais, Amon de

Barros e Daniel Lacerda, pela constante troca e debate teórico, misturados com afetos, e ao

segundo, especialmente, por me conduzir às favelas. Aos queridos amigos não acadêmicos,

tantos que nem consigo sintetizá-los aqui, especialmente por me permitirem não falar da

minha tese!

Ao meu namorado, Eduardo Savino, por tanta coisa, que nem posso enumerá-las

todas... Especialmente, por me oferecer um espaço onde pudesse escrever a minha tese, por

me ajudar a dar um pouco de ordem à minha desordem (que gosto de chamar de criativa),

para que esta tese pudesse ser finalizada. Nenhum agradecimento lhe seria digno.

Aos meus pais, meu irmão e minha família, por todos os acertos e erros que me

conduziram até aqui. É preciso reconhecer que a minha infindável busca por reconhecimento

influenciou-me em traçar esse caminho tão desafiador.

Por fim, agradeço aos meus interlocutores, moradores de favelas e agentes do Estado,

por me doarem tempo, atenção, palavras, gestos, muito café e carinho. Por confiarem em

mim. Espero que esta tese faça jus ao tanto que vocês me ensinaram, e tento com ela retribui-

Page 7: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

6

los um pouco. Espero ter conseguido, com o meu olhar, mostrar pelo menos parte do que

vocês me mostraram. Obrigada por me receberem tão bem em suas casas e em suas vidas,

tornando a minha saída tão difícil.

Page 8: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

7

RESUMO Nesta tese tive por objetivo analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em

ação e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”. Para tal, me propus a

responder a três questões de pesquisa: Como os agentes do campo burocrático do Estado se

fazem presentes no espaço social de favelas? Qual é a relação entre o campo burocrático do

Estado em ação nas favelas e os processos de organizar dos agentes do campo? Qual é a

relação entre os processos de organizar dos agentes do campo burocrático do Estado em ação

nas favelas e o espaço social? Para o desenvolvimento da pesquisa, realizei um trabalho de

campo em duas favelas da cidade do Rio de Janeiro, durante 1 ano e 4 meses (de janeiro de

2013 a abril de 2014). Nesse sentido, a coleta de dados se deu por meio de observação

participante e 91 entrevistas com moradores e representantes do Estado. Os dados foram

analisados com base em teoria fundamentada, conforme proposta por Strauss e Corbin (2008),

bem como por meio de análise retórica. Com base nos conceitos de campo proposto por

Bourdieu, na literatura sobre processos de organizar, e na noção de espaço social cunhada por

Lefebvre (2007), busquei demonstrar como os agentes do campo burocrático do Estado

inserem-se nas favelas a partir de lógicas institucionais distintas, o que serve para incentivar

disputas e inibir a cooperações. Mostro como as estratégias retóricas de legitimação utilizadas

pelos agentes apontam para as posições de incumbentes e desafiadores do campo, o que é

reforçado pela análise da distribuição de capitais. Aponto como alguns agentes conseguem ter

acesso ao capital social e informacional, os quais se retroalimentam, enquanto outros possuem

uma concentração maior de capital econômico, espacial e simbólico, aproximando-se das

posições de incumbentes. Em seguida, busco mostrar como os processos de organizar,

imbricados ao campo, assumem, como consequência da dinâmica do campo, padrões de

lentidão, descontinuidades, dispersão e (des)materialização. Por fim, analiso a produção do

espaço social de favelas a partir de um choque entre o campo burocráticos do Estado e o

campo das favelas, o que se expressa em hibridismos e ambiguidades. Há a produção de

hibridismos no espaço, ambiguidades de leis nas favelas, e ambiguidades na própria noção de

organizar, aqui reinterpretada para processos de (des)organizar, tendo em vista que organizam

ou desorganizam para diferentes pontos de vistas. Chego, enfim, à noção de “maquiagem do

espaço”, com base em uma metáfora utilizada pelos moradores para descrever a favela

“pacificada” como uma favela que emite, por meio da dimensão simbólica da matéria,

significados de segurança e progresso, quando é, para seus habitantes, uma favela também

insegura, submetida a uma “administração da pobreza”.

Page 9: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

8

ABSTRACT

My aim in this thesis was to analyze the relationship between the bureaucratic field of

State in action and the social space of favelas, in the context of “pacification”. To this end, I

propose to answer to three research questions: How are agents of the bureaucratic field of

State present in the social space of favelas? What is the relationship between the bureaucratic

field of State in action in favelas and the organizing of the field agents? What is the

relationship between the organizing of the agents of the bureaucratic field of State in action in

favelas and the social space? For the development of this research, I carried out fieldwork in

two different favelas in the city of Rio de Janeiro for 1 year and 4 months (from January 2013

to April 2014). Accordingly, the data collection was carried out through participant

observation and 91 interviews with residents and State representatives. Data were analyzed

based on grounded theory, as proposed by Strauss and Corbin (2008), as well as through

rhetorical analysis. Based on the concepts of field as proposed by Bourdieu, on the literature

about organizing, and on the notion of social space as coined by Lefebvre (2007), I sought to

demonstrate how agents of the bureaucratic field of State fit into favelas based on distinct

institutional logics, which serves to encourage disputes and inhibit cooperation. I showed how

the rhetorical strategies of legitimation used by agents point to the positions of incumbents

and challengers in the field, which is reinforced by the analysis of capital distribution. I

pointed out how some agents can have access to social and informational capital, which feed

of each other, while others have a higher concentration of economic, spatial and symbolic

capital, getting closer to the incumbent positions. Following, I tried to show how organizing,

enacted to the field, assume, as a result of the dynamic of the field, patterns of slowness,

discontinuities, dispersion and (dis)materialisation. Finally, I analyze the production of the

social space of favelas, from a clash of the bureaucratic field of State and the field of favelas,

which is expressed in hybridisms and ambiguities. There is a production of hybridisms in

space, ambiguity of laws in favelas, and ambiguities in the very notion of organizing, here

reinterpreted for (dis)organizing processes, since to organize or to disorganize varies for

different points of view. I arrive, finally, to the notion of “makeup of Space”, based on a

metaphor used by the locals to describe a “pacified” favela as a favela that sends, through the

symbolic dimension of matter, meanings of security and progress, when it is to its inhabitants,

also an insecure favela submitted to a “administration of poverty”.

Page 10: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

9

Sumário

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 13 1.1 Objetivo Geral ............................................................................................................ 17 1.2 Objetivos Específicos ................................................................................................ 17 1.3 Relevância .................................................................................................................. 17

2 CONTEXTUALIZANDO ESTADO E FAVELAS ......................................................... 20 2.1 As Representações Sociais em torno das Favelas ...................................................... 21 2.2 As Intervenções Estatais em Favelas ......................................................................... 27 2.3 A Política de “Pacificação” ........................................................................................ 32 2.4 Conclusão ................................................................................................................... 37

3 MÉTODO DE PESQUISA ............................................................................................... 38 3.1 Coleta de Dados ......................................................................................................... 41 3.2 Análise dos Dados ..................................................................................................... 47 3.3 Do Asfalto para o Morro: Desaprendendo o que são as Favelas ............................... 50

3.3.1 As Favelas e os Agentes do Campo Burocrático do Estado ............................... 52 3.3.2 A Inserção no Campo ......................................................................................... 61

4 SOBRE CAMPOS DE PODER: REINTERPRETANDO ESTADO E FAVELAS ........ 64 4.1 Desconstruindo o Estado enquanto “Entidade”: Disputas e Cooperações entre Burocratas do Estado em Ação nas Favelas ......................................................................... 65 4.2 Sobre o Estado enquanto Campo de Poder ................................................................ 70 4.3 O Campo Burocrático do Estado e o Campo Político: Relações e Interdependências 82 4.4 Sobre Favelas enquanto Campos de Poder ................................................................ 99 4.5 Conclusão ................................................................................................................. 111

5 O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NAS FAVELAS: AS LÓGICAS EM DISPUTA E O CAPITAL ESPACIAL ......................................................... 113

5.1 Da “Época dos Meninos” a “Depois das UPPs” ...................................................... 115 5.2 Entre Consensos e Discordâncias: as Lógicas por trás das Disputas no Campo Burocrático do Estado ........................................................................................................ 125 5.3 A Dinâmica dos Capitais: Marcando Posições ........................................................ 161

5.3.1 O Capital da Força Física ................................................................................. 162 5.3.2 O Capital Social ................................................................................................ 166 5.3.3 O Capital Informacional ................................................................................... 177 5.3.4 O Capital Econômico ....................................................................................... 184 5.3.5 O Capital Espacial ............................................................................................ 191

5.4 Conclusão ................................................................................................................. 207 6 DISPERSÕES, LENTIDÃO, DESCONTINUIDADES E (DES)MATERIALIZAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO E OS PROCESSOS DE ORGANIZAR ......................................................................................................................... 210

6.1 Onde estão as Organizações? Assumindo o Conceito de Processos de Organizar .. 211 6.2 Descontinuidades e Lentidão em Processos de Organizar ....................................... 220 6.3 Dispersões e Sobreposições em Processos de Organizar ......................................... 229 6.4 Organizando para o Acúmulo de Capital: A (Des)Materialização dos Processos de Organizar ............................................................................................................................ 236 6.5 Conclusão ................................................................................................................. 245

7 (DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL: HIBRIDISMOS, AMBIGUIDADES E A FAVELA MAQUIADA ..................................................................................................... 247

7.1 As Favelas enquanto Espaços Sociais ..................................................................... 248

Page 11: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

10

7.2 Quando Campos se Chocam: Hibridismos e Ambiguidades no Espaço Social ...... 254 7.2.1 Hibridismos ...................................................................................................... 258 7.2.2 Que Lei Seguir? A Ambiguidade entre Leis do Tráfico e das UPPs na Favela “Pacificada” .................................................................................................................... 261 7.2.3 A Materialidade Social e os Processos de (Des)organizar ............................... 266

7.3 A Maquiagem do Espaço ......................................................................................... 290 7.4 Conclusão ................................................................................................................. 296

8 CONCLUSÃO: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAMPOS, PROCESSOS DE ORGANIZAR E ESPAÇO SOCIAL ..................................................................................... 298 9 REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 303 10 ANEXOS ........................................................................................................................ 313

Page 12: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

11

Índice de Figuras

Figura 1. Vista da janela do apartamento onde morava no período da minha pesquisa de campo ....................................................................................................................................... 13 Figura 2. Lógica Burocrática .................................................................................................... 88 Figura 3. Campo das favelas................................................................................................... 111 Figura 4. Capital da força física.............................................................................................. 166 Figura 5. Capital Social .......................................................................................................... 177 Figura 6. Capital Informacional.............................................................................................. 183 Figura 7. Relação entre capital social e capital informacional ............................................... 184 Figura 8. Capital econômico ................................................................................................... 190 Figura 9. Capital Espacial ....................................................................................................... 198 Figura 10. Relação entre capital econômico, capital espacial e capital simbólico ................. 205 Figura 11. Posição aproximada dos agentes no campo burocrático do Estado ...................... 206 Figura 12. Processos de Organizar Descontínuos .................................................................. 225 Figura 13. Processos de Organizar Lentos ............................................................................. 228 Figura 14. Processos de Organizar Dispersos ........................................................................ 234 Figura 15. Processos de organizar sobrepostos ...................................................................... 236 Figura 16. (Des)materialização de processos de organizar .................................................... 242 Figura 17. Acúmulo de processos de organizar ...................................................................... 244 Figura 18. Hibridismos ........................................................................................................... 261 Figura 19. Ambiguidades ....................................................................................................... 290

Page 13: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

12

Índice de Tabelas

Tabela 1. Entrevistados Favela da zona Sul ............................................................................. 45 Tabela 2. Entrevistados Favela da zona Norte ......................................................................... 45 Tabela 3. Entrevistados Gerais ................................................................................................. 46 Tabela 4. Características dos principais agentes do campo burocrático do estado em ação nas favelas ....................................................................................................................................... 58 Tabela 5. Estratégias de Legitimação – UPP – Logos: Argumentos Racionais com Base em índices de Criminalidade ........................................................................................................ 131 Tabela 6. Estratégias de Legitimação – UPP - Presença ........................................................ 133 Tabela 7. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados em Valores .............. 134 Tabela 8. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados na Superioridade...... 135 Tabela 9. Estratégias de Legitimação – PAC - Presença ........................................................ 140 Tabela 10. Estratégias de Legitimação – PAC – Ethos – Argumentos Baseados em Valores ................................................................................................................................................ 141 Tabela 11. Estratégias de Legitimação – PAC - Pathos ......................................................... 142 Tabela 12. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Logos ............................................... 146 Tabela 13. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Presença ........................................... 147 Tabela 14. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Pathos ............................................... 149 Tabela 15. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Logos .................................... 153 Tabela 16. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Presença ................................ 154 Tabela 17. Estratégias de Legitimação – CRAS – Presença .................................................. 156 Tabela 18. Estratégias de Legitimação – CRAS – Pathos ...................................................... 158 Tabela 19. Lógicas institucionais em ação ............................................................................. 160 Tabela 20. Síntese dos agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas .......... 208

Page 14: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

13

1 INTRODUÇÃO

Figura 1. Vista da janela do apartamento onde morava no período da minha pesquisa de campo

Esta era a vista da minha janela no período de minha pesquisa de tese. Não obstante as

cortinas, os sons transpassam. As festas do sábado à noite e os cultos religiosos das

madrugadas de segunda atrapalham a leitura do meu Bourdieu e lembram-me que sou vizinha

da favela. Mas a distância do meu sofá ao morro, embora de alguns metros, é suficiente para

dar espaço a especulações sobre a vida na favela, que logo dão os contornos de uma favela

inventada - para mim, real.

Como a minha janela, muitas outras em apartamentos da cidade do Rio de Janeiro

emolduram favelas, e a relação de proximidade distante que mantenho com a minha favela

repete-se para muitos moradores do asfalto. A proximidade inevitável, não importa o quanto

tentamos, não nos deixa ignorar que a favela existe e está logo ali. A distância, quase forçada,

dá margens ao imaginário, e inventamos uma favela de onde só podem sair tiros, funks, armas

e drogas, nossos porteiros, nossas empregadas domésticas e os bandidos que vão nos assaltar.

A favela que vemos da nossa janela, diariamente, não é real? Surpreende quando

Valladares (2005) nos fala sobre a invenção da favela. Mas quando se sobe o morro logo se

sente na pele o que a autora nos mostra em palavras: “essa favela tão evidente é, de certo

modo, uma favela ‘inventada’” (VALLADARES, 2005, p. 21). As diferentes representações

Page 15: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

14

sociais da favela que foram sendo construídas ao longo do tempo determinam o que hoje os

moradores do asfalto entendem como “favela” (VALLADARES, 2005). Os incontáveis

estereótipos atrelados à palavra compõem uma carga muito pesada que nos inibe de subir o

morro, que nos mantém presos à favela que inventamos1.

Nesse processo de construção da favela, naturaliza-se o uso do singular e a palavra

“favela” passa a representar todos esses territórios como iguais e unitários (VALLADARES,

2005). A ideia de homogeneização desses territórios é cada vez mais reforçada frente a

propostas como a tese da “cidade partida” (VENTURA, 1994), em que a favela (no singular)

representa “a outra metade da cidade” (VALLADARES, 2005). Lógica conveniente, que

muitas vezes serve para justificar um tratamento igual a territórios tão diversos

(VALLADARES, 2005).

As intervenções do Estado nas favelas, por meio de seus representantes - diferentes em

outros territórios, mas semelhantes em todas as favelas (pensadas no singular) -

acompanharam historicamente as representações sociais das favelas. Em síntese, foram

passando de ações que priorizavam as remoções das favelas, entendidas como um “problema

social”, a tentativas de “integração” da “outra metade da cidade” (CAVALCANTI, 2009).

“A outra metade da cidade”, considerada o lugar dos marginais, principalmente a

partir da década de 1980, passa a ser construída, com um importante reforço da mídia, como

um território de violência, conforme mostra Valladares (2005) em sua reconstrução histórica.

A instalação do tráfico de drogas prioritariamente em favelas ajudou a estigmatizá-las como

“antro de criminosos”. Os episódios de disputas entre traficantes e policiais, que com

frequência tem as favelas como palco, foram sendo transformados em grandes espetáculos

violentos, transmitidos pelos jornais e TV à população que não os acompanha ao vivo. Aos

poucos, todos os que residem em favelas passaram a ser “confundidos” com os protagonistas

dos crimes que assistimos na TV, e a eles foi atribuída a responsabilidade pela violência que

priva a liberdade dos “cidadãos de bem”.

Em um contexto de fragmentação do território (SANTOS, 2008), característico do

momento atual, torna-se possível encontrar espaços às margens do Estado, que se apresentam

como periferias onde as pessoas são insuficientemente socializadas nas leis (DAS e POOLE,

2004), onde o Estado não se faz presente da mesma forma e na mesma intensidade (ASAD,

2004). Dito de outra forma, a presença do Estado não é homogênea em todo o território

1 Mesmo os moradores do asfalto que sobem a favela, como os turistas, por exemplo, sobem, em geral, uma favela inventada, sem a intenção de desconstruí-la. Os carros de “Safári” utilizados para transportar os turistas ilustram bem essa situação.

Page 16: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

15

nacional (MACHADO DA SILVA, 2008a). No contexto brasileiro em geral e, em particular,

no Rio de Janeiro, os espaços às margens do Estado podem ser representados principalmente

pelas favelas, historicamente identificados como a expressão de antítese da ordem pública

(STROZEMBERG, 2009).

A presença do tráfico prioritariamente em favelas, ajudou a reforça-la enquanto um

espaço às margens do Estado, e aos traficantes foram sendo associadas analogias ao Estado,

que os apontam enquanto um “poder paralelo” dentro das favelas. As “leis do tráfico”, os

“tribunais do tráfico”, o “dono do morro” são expressões que nos levam a crer que as favelas

sob domínio do tráfico possuem um funcionamento próprio, ou suas próprias regras, e,

portanto, não estão inseridas nas leis do Estado, estão às suas margens.

O tráfico de drogas, ainda, ao ser apontado como um “poder paralelo”, destaca-se

como uma importante ameaça à posição do Estado enquanto detentor do monopólio do uso

legítimo da violência. A legitimidade do Estado é posta em xeque frente a um grupo de

criminosos que agora são vistos como os “donos do morro”, que dizem possuir um espaço que

é público, onde exercem a violência que ganha as páginas dos jornais. As imagens de

traficantes armados, portando de pistolas a fuzis, expondo suas armas, sem nenhum receio,

nas favelas, são conhecidas por qualquer brasileiro, e nos levam a crer que, nesses espaços, o

monopólio da violência está em outras mãos. O contexto de aumento da violência urbana

vivido pela cidade do Rio de Janeiro leva-nos a buscar um culpado pela sensação de

insegurança diária, e é difícil não lembrar das imagens daqueles jovens armados dentro das

favelas - atribui-los a culpa segue-se como a saída mais natural.

É nesse sentido que a partir da década de 1980 as intervenções do Estado em favelas

ganham um diferencial: querem combater a criminalidade que estes territórios de violência

parecem originar. A figura dos traficantes como os “donos do morro” começa a atrair uma

séria de ações de representantes do Estado nas mais diversas áreas de atuação

(CAVALCANTI, 2009). Correspondendo à construção da favela como territórios de

violência, as ações parecem girar em torno da questão da segurança pública, que ganha lugar

de destaque. Representantes de organizações públicas - da área urbanística, social ou de

segurança - são guiados pela mesma crença de que mais investimentos na favela levam à

redução da violência urbana (CAVALCANTI, 2009).

Seguindo essa tendência, foi implementada, a partir de 2008, no Rio de Janeiro, a

chamada “política de pacificação”, por meio da qual são instaladas Unidades de Polícia

Pacificadoras (UPPs) nos espaços das favelas, com o objetivo de recuperar o controle destes

Page 17: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

16

territórios (BANCO MUNDIAL, 2012). Como consequência da “pacificação”, outros

representantes do Estado também foram entrando, e a presença do Estado em favelas foi

intensificada. Após um histórico de políticas anteriores que acabaram como tentativas mal

sucedidas, agora os representantes do Estado entram em uma tentativa de inseri-los em suas

leis, ainda seguindo uma lógica de “integração” das favelas à cidade.

Mas não foi preciso muito tempo de pesquisa de campo para que eu reforçasse a

minha suspeita inicial de que estes diversos representantes do Estado que adentram as favelas,

ou nelas permanecem, em um contexto de “pacificação”, são, eles mesmos, concorrentes nos

espaços de favelas. O ideal comum de “integrar” a favela à cidade não parece ser interpretado

da mesma forma pelos diversos representantes, e isto os leva a disputar uma posição que os

permita definir o que seria este ideal de “integração”, ou, nas palavras de Bourdieu (2014), o

que seria o bem público para aquela população. Foi a partir destas reflexões que me aproximei

do conceito de campo, que já me era caro, para tratar do Estado nas favelas. Portanto, me

refiro nesta pesquisa ao campo burocrático do Estado como o conjunto de representantes do

Estado que compõem a burocracia pública por meio de algum vínculo formal, e a estes

representantes, como agentes do campo, por vezes individuais, por vezes coletivos, como

organizações.

Busco atender ao apelo de pesquisadores em estudos organizacionais, como Dale e

Burrell (2008) ou Clegg e Kornberger (2006), que chamam atenção para o fato de que as

organizações não estão atentas para elementos do mundo material e social, são omissas em

relação ao espaço que ocupam - e o próprio fato de serem pensadas como organizações

prontas, como entidades definidas a priori, aponta para esta omissão. Mas para a retomada da

dimensão espacial na análise organizacional, faz-se necessário a compreensão do espaço

como uma realidade social, um conjunto de relações e formas, como produto e produtor,

como um espaço social (LEFEBVRE, 2007). E em decorrência da mútua relação de produção,

a qual se estabelece entre organizações e espaço social, as primeiras são melhor representadas,

em uma perspectiva processual, como processos de organizar, “as they happen” (SCHATZKI,

2006). Ou podem ainda ser tratadas como organizações, mas com a ênfase na palavra “ação”

que contêm, mas às vezes escondem – como organiz(Ações), para não esquecermos que são

também processos.

Compreendendo que são os efeitos sobre o espaço social aqueles de maior relevância

para a vida dos habitantes das favelas, volto o meu olhar nesta pesquisa para a produção do

espaço social por meio de processos de organizar dos agentes do campo burocrático do Estado

Page 18: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

17

em ação nas favelas. Especialmente em um contexto em que as ações do Estado em favelas

estão intensificadas, e tendo em vista que as transformações no espaço social produzem

consequências duráveis (CARLILE ETA AL, 2013), busco, na presente tese, responder ao

seguinte problema de pesquisa: qual é a relação entre o campo burocrático do Estado em ação

e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”?

1.1 Objetivo Geral

Analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em ação e o espaço social de

favelas, no contexto da “pacificação”.

1.2 Objetivos Específicos

• Analisar como os agentes do campo burocrático do Estado se fazem presentes no

espaço social de favelas;

• Analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e os

processos de organizar dos agentes do campo;

• Analisar a relação entre os processos de organizar dos agentes do campo burocrático

do Estado em ação nas favelas e o espaço social;

1.3 Relevância

Do ponto de vista teórico e metodológico a proposta de tese que aqui se apresenta

busca contribuir para uma releitura das perspectivas organizacionais a partir de lentes

bourdiesianas, que apresentam o potencial de resgatar uma visão processual, com reflexos

epistemológicos e metodológicos na forma como concebemos e olhamos as organizações. Tal

perspectiva possibilita o questionando do essencialismo e de dualismos, tão caros às teorias

organizacionais e nelas de tal forma arraigados, que nos amarra a análises limitadas dos

fenômenos organizacionais e de suas consequências para o mundo material e social.

A perspectiva de Bourdieu, inerentemente processual, possibilita ainda o resgate da

dimensão espacial, tendo em vista que para se pensar o espaço social também é preciso

superar os dualismos e compreendê-lo como inacabado e, portanto, dinâmico (LEFEBVRE,

2007). Embora negligenciada em estudos organizacionais, a dimensão espacial é rica em suas

Page 19: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

18

possibilidades de contribuições para a área. Conforme mostrou Goulart (2006), o conceito de

espaço possibilita ampliar a compreensão dos efeitos das ações organizacionais para a

sociedade.

A centralidade da noção de poder pode também ser recuperada a partir de uma ótica

dinâmica. Os jogos inerentes aos campos, retratados por Bourdieu, permitem pensar o poder

de forma processual e relacional. Nesse sentido, busco reforçar, apoiada na lente

bourdieusiana, a relação entre o poder e o espaço social, marcada e remarcada por muitos

autores da geografia (Ex: SOUZA, 2002; RAFFESTIN, 1993; BRANDÃO, 2007; CASTRO,

2003; EDUARDO, 2006), mas raras vezes explorada empiricamente, principalmente devido à

dificuldade de operacionalização da categoria “poder” e de sua identificação no território em

análise (RAFFESTIN, 1993), seja na geografia ou em estudos organizacionais.

Embora adote a perspectiva de Bourdieu para pensar o Estado como um campo

burocrático, também procuro atualizá-la, na medida em que aponto para a importância de se

trabalhar com uma nova espécie de capital, o capital espacial. A bem fundamentada proposta

de Bourdieu para se pensar o Estado, quando transposta para o contexto contemporâneo, um

contexto de fragmentação do território (SANTOS, 2008) e de espaços às margens do Estado

(DAS e POOLE, 2004), ou, mais especificamente, para o contexto atual das favelas,

demandou aqui ser complementada por uma nova espécie de capital que amplia as

possibilidades de compreensão do campo burocrático do Estado em ação nas favelas.

O conceito de capital espacial aqui proposto também aponta para uma intensa

interferência do Estado na materialidade das favelas, como forma de acúmulo desta espécie de

capital. Indo ao encontro da superação de dualismos presente na perspectiva de Bourdieu,

adoto a noção de materialidade social como forma de apontar para um imbricamento entre

social e material, e, mais ainda, para uma capacidade de organização da matéria,

extremamente relevante nos espaços de favelas.

A partir da análise da materialidade social, e dos efeitos da matéria na organização do

espaço, busco desconstruir a noção de “organizar”. Mostro que organizar ou desorganizar

podem ser intercambiáveis dependendo da lógica específica de cada campo, e que as favelas,

embora à primeira vista pareçam espaços marcados pela desorganização, possuem a sua forma

própria de organizar. É nesse sentido que proponho o conceito de processos de (des)organizar,

tendo em vista que os mesmos processos podem se assumir como organizadores ou

desorganizadores, a partir de diferentes pontos de vista.

Page 20: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

19

Proponho-me a tratar, neste trabalho, da questão das favelas, que foram historicamente

transformadas em um “problema” a ser resolvido (VALLADARES, 2005) e que, portanto,

acabam por entrar na agenda do pesquisador como um tema que clama por soluções. Como as

favelas suscitam debates, e por alguns são consideradas um “problema social grave”, acredito

que o trabalho que venho desenvolvendo pode trazer luz à temática das favelas e das

intervenções públicas nestes territórios, favorecendo o encontro de alternativas para se pensar

a questão, e quem sabe até para se repensar a sua condição de “problema social grave” que

requer soluções urgentes e bem específicas, porém iguais para todas as favelas.

Reforço, entretanto, que não me coloco aqui em uma posição assistencialista, com a

pretensão de “resgatar”, “empoderar” ou “dar voz” a uma população mais pobre e desprovida

de recursos. Acredito que o meu campo muito mais me “salva” do que eu a ele. Busco, isto

sim, por meio deste trabalho, problematizar a categoria “favela” e as demais questões que esta

palavra suscita. Procuro repensar a “favela” tratada no singular (VALLADARES, 2005) e os

consequentes tratamentos homogêneos que recebem. Chamo atenção para a importância de se

refletir sobre questões esquecidas, mas que se escondem por trás da palavra “favela”: o que

faz de um território uma favela? Por que outras regiões da cidade igualmente desprovidas de

certos serviços públicos não recebem essa denominação? Isto é um benefício para estas

regiões? Ou, mais ainda, ainda faz sentido falarmos em “favela”? Embora eu não tenha a

pretensão de responder a essas perguntas, elas perpassam o trabalho como forma de

incomodar o leitor e gerar reflexões.

Por fim, embora analise as intervenções estatais em favelas, também não me posiciono

de forma a “propor ‘soluções’ para o ‘problema social’ das favelas” ou a ajudar o poder

público a “integrá-las” ao restante da cidade (MACHADO DA SILVA, 2011, P. 699). Mais

uma vez, acredito que minha contribuição vai no sentido de colocar em questão, de buscar

problematizar as intervenções estatais em favelas, que se intensificam em um contexto de

“pacificação”. Porém acredito, é claro, de forma talvez ingênua e idealista, que meu trabalho

possa vir a encontrar os meus interlocutores, os quais me doaram tempo e atenção,

responderam às minhas perguntas, compartilharam um conhecimento único, e me

contagiaram, por meio de seus brilhos nos olhos, com um pouco mais de esperança. Livre de

um objetivo propositivo, este trabalho lança luz sobre a relação entre Estado e favela, e espero

que possa cair nas mãos desses sujeitos, cheios de boa vontade, que podem fazer bom uso do

conteúdo que se segue.

Page 21: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

20

2 CONTEXTUALIZANDO ESTADO E FAVELAS

A sensação de insegurança, real ou produzida, permeia em algum momento aqueles

que circulam pelo espaço público. Desconfia-se de alguém, troca-se de calçada, trocam-se

olhares suspeitos e atentos a possíveis atos de violência. Quer-se circular livremente por uma

cidade segura, sem que seja preciso lembrar, cotidianamente, que naquela cidade também

circulam “criminosos” ou “bandidos”.

A expansão da criminalidade, impulsionadora do cenário descrito, põe em xeque o

papel do Estado como garantidor da ordem pública. O monopólio do uso legítimo da

violência pelo Estado é questionado em um cenário de insegurança generalizada e a

legitimidade do Estado torna-se ameaçada.

Diante da ameaça, procura-se um culpado. Recai sobre os “marginais”,

geograficamente localizados em espaços às margens do Estado (DAS e POOLE, 2008), a

responsabilidade pela origem e disseminação da criminalidade. Representados no Brasil

principalmente por favelas, os espaços “marginais” costumam ser considerados a gênese do

crime, o berço dos bandidos que tiram a paz dos cidadãos. A invenção da favela como um

território de violência (VALLADARES, 2005) a transformou em ímã para ações em prol da

segurança.

As ações do Estado, manifestas em geral por meio de políticas de segurança e

habitação/urbanização, ou a partir de programas e projetos sociais, implementados por uma

rede de órgãos públicos, voltam-se, incessantemente, para um mesmo espaço: a “favela”

(pensada no singular). Embora as favelas não contem com a presença do Estado na mesma

proporção que o restante da cidade, são alvo de uma série de programas e políticas públicas

que, independente de sua área principal de atuação, coincidem, em geral, no contexto atual,

em seu objetivo maior de integração da favela à cidade .

Entretanto, as ações do Estado não têm sido consideradas como bem sucedidas frente a

este objetivo maior. Não obstante os diversos representantes do Estado que atuam ou atuaram

em favelas nos últimos anos, a população externa permanece insatisfeita com a elevada

criminalidade, a qual atribuem às favelas, e os habitantes de favelas continuam com algumas

demandas básicas não satisfeitas.

O programa de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) surgiu em 2008, no estado

do Rio de Janeiro, como mais uma tentativa de combate à violência e voltado, mais uma vez,

para os territórios de favelas. O programa trouxe com ele outras iniciativas públicas que

passaram a atuar em favelas “pacificadas”, intensificando a ação do Estado nestes territórios.

Page 22: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

21

Com vistas a trazer luz para o cenário atual em que a presença do Estado em favelas

vem se dando de forma mais intensa, este capítulo tem por objetivo contextualizar as

intervenções estatais em favelas, de seu percurso histórico ao contexto atual. Para tal, discuto

as representações sociais em torno das favelas, e as consequentes intervenções públicas nestes

territórios, conduzindo ao contexto atual da favela “pacificada”.

2.1 As Representações Sociais em torno das Favelas

Não é difícil perceber, quando se chega a uma nova cidade, onde estão os espaços

reservados aos considerados “marginais”, muito embora as fronteiras entre estes e outros

espaços sejam muitas vezes imprecisas. As grandes cidades, desde sua origem, sempre

procuraram destinar espaços, geralmente às margens (DAS e POOLE, 2004), aos “excluídos”

ou “menos favorecidos”.

Durante o século XIX, eram os cortiços que ocupavam o papel de lugar de pobreza e

serviam como moradia para aqueles que na época eram considerados membros de uma “classe

perigosa” (VALLADARES, 2005). Portanto, os cortiços tinham a eles associada a ideia de

“antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias, constituindo

ameaça à ordem social e moral” (VALLADARES, 2005, p. 24). Por isso, eram com

frequência alvo dos discursos médicos e higienistas, o que muitas vezes desencadeava a

adoção de ações por parte dos governos (VALLADARES, 2005). Um exemplo, talvez dos

mais emblemáticos, foi a demolição do famoso cortiço “cabeça de porco”, no final do século

XIX na cidade do Rio de Janeiro (VALLADARES, 2005).

Segundo Valladares (2005), alguns estudos sugerem que os cortiços podem ser

considerados o “germe” da favela. Conforme os cortiços foram perdendo seu lugar de

destaque dentre aqueles preocupados com o higienismo, a partir do início do século XX, as

favelas vão, pouco a pouco, assumindo esse lugar (VALLADARES, 2005).

A acelerada disseminação de favelas no Brasil teve início no fim do século XIX,

quando foi formada a primeira aglomeração urbana que recebeu esse nome na cidade do Rio

de Janeiro, no Morro da Providência (OLIVEIRA, 1985). O Morro da Favella, como

inicialmente era chamado, surge a partir da instalação, iniciada em 1887, de combatentes de

Canudos que tinham por finalidade exercer pressão para que o Ministério da Guerra pagasse a

eles o que os devia (VALLADARES, 2005). Não há consenso, entretanto, em relação à

origem do nome. Conforme explica Valladares (2005), embora alguns defendam que o nome

advém da planta favella, comum no morro da Favella situado na Bahia e também encontrada

Page 23: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

22

no morro carioca que recebeu este nome, outros defendem que o Morro da Favella localizado

na Bahia foi um local de resistência dos combatentes durante a guerra de Canudos.

Aos poucos a denominação “Morro da Favella” passou a ser estendida para qualquer

aglomerado de barracos sobre terrenos invadidos, que não contavam com serviços públicos

(VALLADARES, 2005; OLIVEIRA, 1985). Embora, conforme relata Valladares (2005), já

existissem outras aglomerações semelhantes ao Morro da Favella, foi este último que entrou

para a história a partir de sua relação com Canudos e que teve seu nome associado ao

fenômeno em geral.

No início do século XX, as favelas começaram a se expandir e a se tornar “visíveis”

(OLIVEIRA, 1985). Embora esse processo tenha sido iniciado nos anos de 1930, é nos anos

1950 a 1960 que começa uma expansão descontrolada das favelas (VALLADARES, 2005).

Segundo Pino (1998), foram principalmente problemas como inflação, desemprego, bem

como altos preços de aluguéis que levaram a este quadro. As favelas foram se constituindo

como parte da evolução urbana de algumas cidades do Brasil, como Belo Horizonte, Recife,

Salvador e Brasília (SILVA, 2009). Agravado pela tendência migratória para centros urbanos,

o crescimento das favelas acelerou-se, e em 1950 7% da população total da cidade do Rio de

Janeiro morava em favelas (OLIVEIRA, 1985).

As favelas têm sido tradicionalmente definidas a partir de uma lista de características

que se propõem comuns e generalizáveis a todas as favelas e que, em geral, retratam um

cenário de precariedade. Segundo Maricato (2001), por exemplo, o termo “favela” refere-se a

regiões marcadas por uma situação ilegal de ocupação do solo, na qual o morador não tem

direito legal sobre a terra que ocupa, podendo ser despejado a qualquer momento. A autora as

caracteriza como regiões sujeitas à exclusão urbana, já que são mal servidas pela

infraestrutura e serviços urbanos, como os de água, esgoto ou transporte. Outro problema das

favelas, levantado pela autora, diz respeito à sua localização em áreas ambientalmente frágeis,

como encostas íngremes ou beira de córregos, sujeitas a desmoronamento. Nesse mesmo

sentido, segundo Zaluar e Alvito (2006), as favelas ficaram oficialmente registradas como

uma área marcada por habitações irregulares, ausência de plano urbano, água, esgoto ou luz.

A partir de suas definições correntes, as favelas são caracterizadas como espaços

fortemente marcados por uma lógica de ausências, e historicamente definidos a partir daquilo

que não tem ou não são (OBSERVATÓRIO DE FAVELAS, 2009). Como explicam Zaluar e

Alvito (2006), a partir destas definições, as favelas acabaram sendo associadas a uma imagem

de carência, falta, vazio. Cavalcanti (2007) destaca os termos “pobreza” e “ilegalidade” como

Page 24: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

23

aqueles que, historicamente, passaram a constituir a essência da maior parte das definições da

palavra “favela”.

A caracterização das favelas como espaços carentes, precários em uma série de

aspectos, além da carga pejorativa que acaba por associar a esses espaços, leva a uma falsa

ideia de homogeneidade entre os diversos territórios denominados de favela. Para Valladares

(2005, p. 151), ao se pensar a favela no singular, acaba-se reduzindo “um universo plural a

uma categoria única” e negando as diferenças de natureza sociológica que existem entre elas.

Como lembra Cavalcanti (2009), diversos estudos já mostraram que as características

tradicionalmente suscitadas para definir o que são as favelas já não são mais capazes de

retratar a diversidade de realidades que hoje estão atreladas à palavra “favela” e que por ela se

pretende representar. O Observatório de Favelas (2009), uma organização social de pesquisa

que se dedica a produção de conhecimento sobre favelas e fenômenos urbanos, em relatório

resultante do seminário “O que é favela, afinal?”, realizado em 2009, defende que esses

espaços devem ser definidos a partir daquilo que eles são, e devem ser reconhecidos em sua

especificidade sócio-territorial.

Mesmo em sua diversidade, os territórios de favelas possuem em comum uma

importante característica: o nome a eles atribuído. Em decorrência do nome que

compartilham, os territórios chamados favelas passam também a compartilhar uma série de

estereótipos e estigmas que as levam a receber um tratamento comum.

Como bem mostra Valladares (2005), a favela foi inventada. Não obstante a

concretude que a favela parece ter, retratada por estatísticas diversas e por sua frequente

presença nos noticiários, uma séria de representações sociais a respeito da favela foi sendo

construída nos últimos 100 anos (VALLADARES, 2005). Em sua obra A invenção da favela:

do mito de origem a favela.com, Valladares (2005) retoma às representações sociais da favela

desde sua origem, e mostra como esta passou de um problema a ser solucionado, alvo de um

discurso médico-higienista, a um problema que exigia administração e conhecimento e até

mesmo à solução. Mostra, ainda, o surgimento da favela como objeto de interesse das ciências

sociais e como as inúmeras pesquisas, que foram sendo desenvolvidas principalmente desde a

década de 1950, ajudaram a desencadear uma série de dogmas sobre os territórios de favelas.

À favela inventada, aos poucos foi sendo associada uma noção de marginalidade, que

se originou de uma diversidade de perspectivas que compõem o que ficou conhecido como

teoria da marginalidade, desenvolvida principalmente a partir da década de 1960

(VALLADARES, 2005). Como explica Valladares (2005), a teoria da marginalidade

Page 25: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

24

articulou-se à ideia da existência de uma “cultura da pobreza” e passou a ser associada a

espaços urbanos “marginais”, segregados do restante da cidade, como eram consideradas as

favelas.

Em artigo originalmente publicado em 1967, Machado da Silva (2011) já chamava

atenção para ideia de marginalidade expressa em uma das vertentes que estudam as favelas.

Segundo o autor, a perspectiva que tem o intuito de propor soluções para o “problema social”

das favelas, tem por trás a crença de que é preciso integrar a favela ao restante da cidade, de

que a favela funciona como uma entidade autônoma, autonomia esta “expressa em termos de

uma ‘marginalidade’ sociopolítica e econômica” (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 699). O

autor apresenta uma visão crítica a essa posição e defende, em primeiro lugar, que ao partir de

uma ideia de favela como algo isolado, essa vertente ignora os vínculos que esta estabelece

com o sistema global. Machado da Silva (2011) aponta, ainda, que a compreensão da favela

como “marginal” leva a uma postura assistencialista e também dá margens à imposição de

valores das classes dominantes como forma de solucionar os seus problemas.

Uma síntese do debate em torno da Teoria da Marginalidade, que também se apresenta

como uma crítica a esta teoria, foi apresentada por Perlman (2002) no livro O mito da

marginalidade. Embora tal livro tenha recebido muito destaque em âmbito nacional e

internacional, Valladares (2005) lembra que a crítica que a autora traz à teoria da

marginalidade não é original ou pioneira, mas segue, isto sim, o trabalho de outros autores,

brasileiros e americanos, como o próprio Machado da Silva (2011), que já haviam discutido a

questão.

Ao discutir o “mito da marginalidade”, Perlman (2002) mostra que há um conjunto de

estereótipos atrelado às favelas, de tal forma generalizado, que constitui uma ideologia

utilizada para justificar as políticas das classes dominantes voltadas para as favelas. A partir

de uma revisão das escolas de pensamento que se desenvolveram em torno da noção de

marginalidade, Perlman (2002) chega a um “tipo-ideal” da subcultura marginal, que

representa a figura do favelado como um indivíduo caracterizado como desorganizado e

isolado, pobre, desintegrado da vida política da cidade ou que assume uma postura de

radicalismo de esquerda, para mencionar alguns dos seus traços.

A partir da visão dicotômica da cidade, incentivada pela teoria da marginalidade e

anos mais tarde reforçada pela tese da “cidade partida” (VENTURA, 1994), as favelas,

pensadas de forma unitária, recebem até hoje estereótipos diversos que mudam de acordo com

o contexto histórico e social. Dentre tais estereótipos, pretende-se aqui destacar, como forma

Page 26: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

25

de trazer luz ao contexto atual das favelas, aquele relacionado à violência urbana, que

identifica as favelas como a gênese do crime.

Ao tratar da favela “inventada”, referindo-se às diversas formas de representação

social que as favelas assumem ao longo da história, Valladares (2005) demonstra a invenção

da favela como um território de violência, que se desencadeou principalmente a partir da

década de 1980. A autora explica que “a associação, quase sistemática, entre pobreza e

criminalidade violenta fez da favela sinônimo de espaço fora da lei, onde bandidos e policiais

estão constantemente em luta” (VALLADARES, 2005, p. 20). E com isso as favelas passam a

ser vistas como a outra metade da cidade, metade marcada pela violência e pela pobreza

(VALLADARES, 2005).

Valladares (2005) associa o fenômeno descrito com a ideia de apartheid socioespacial

ou de uma segregação espacial entre morro e asfalto. Segundo a autora, à imagem da favela

como território de violência, pode-se acrescentar, a partir desta leitura, uma representação da

favela como o lugar por excelência da exclusão social, e destaca que a segunda serve para

reforçar a primeira.

Mas a ideia das favelas como territórios de violência também parece estar associada à

ação do tráfico de drogas e milícias, que se instalam prioritariamente nestes territórios. Para

Machado da Silva (2010), a segregação espacial, marca das grandes cidades, favorece a

concentração do tráfico nas favelas, redefinindo a imagem pública destes territórios como

territórios marcados pela violência. Os sistemas de controle e proteção social, frágeis nos

territórios onde a pobreza predomina, também facilitam o estabelecimento do tráfico

(MACHADO DA SILVA, 2010). As favelas acabam por assumir um papel de destaque neste

processo, firmando-se como o local privilegiado da venda de drogas nos centros urbanos

(SAPORI, 2007), embora seja importante lembrar que o tráfico de drogas também acontece

fora das favelas.

Com o fortalecimento do tráfico de drogas, especialmente a partir da década de 1980,

a questão passou a se tornar um dos focos centrais das políticas de segurança pública, e a

“guerra ao tráfico” passou a se basear “no combate às redes de distribuição de drogas em

favelas, através do confronto armado entre policiais e traficantes” (GRILLO, 2013, p. 5).

Grillo (2013) ressalta como um dos efeitos desta “guerra ao tráfico” a estigmatização dos

moradores das favelas.

Em sua etnografia sobre o crime, realizada em diversas áreas do Rio de Janeiro

controladas pela facção do tráfico de drogas intitulada Comando Vermelho, Grillo (2013)

Page 27: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

26

mostrou como a firma2 mimetiza o Estado e busca alcançar o monopólio do uso legítimo da

violência dentro do espaço das favelas. A autora mostra, ainda, como as lideranças destes

grupos buscam legitimar o seu poder usando, para isso, práticas como comprar remédios para

alguns moradores ou brinquedos para crianças.

Essa “mimesis” da forma-Estado, demonstrada por Grillo (2013, p. 65), reforça a ideia

de “poder paralelo”, a crença na “existência de um Estado dentro do Estado”. Entretanto,

Grillo (2013) reforça que não há realmente um Estado dentro de um Estado, e que embora o

tráfico mimetize a forma-Estado ele não a é. A autora lembra que existe uma grande

superioridade do poder armado do Estado, o que faz com que traficantes tenham que negociar

e pagar subornos aos policiais para resolver questões como possíveis prisões ou repressões

policiais. Assim, segundo a autora, os traficantes, simultaneamente, relacionam-se com o

Estado e a ele se opõem. O que não significa dizer que o poder do tráfico não ameace a

legitimidade do Estado, tendo em vista que como ressalta a própria autora, e o que aqui é

importante retomar, o tráfico de drogas “disputa com o Estado o monopólio da violência

legítima em seus territórios de atuação” (GRILLO, 2013, p. 69).

Além da ação do tráfico, as favelas também se destacam como locais de atuação de

milícias. Segundo Zaluar (2007) as milícias se disseminaram nas favelas, principalmente a

partir de 2000. A autora explica que esses grupos podem ser entendidos como “organizações

formadas primordialmente por policiais e bombeiros militares, além de guardas penitenciários

– ativos ou aposentados -, que garantem a segurança de moradores de algumas vizinhanças

em troca de uma taxa mensal” (ZALUAR, 2007, P. 89). Nos casos em que as milícias atingem

um maior grau de desenvolvimento, elas impõem à população, além de seu serviço de

segurança, a compra de sinal ilegal de TV a cabo, a compra de mercadorias por um valor mais

elevado, uma taxa para o comércio de imóveis, ou uma taxa para cooperativas de transportes

alternativos, como os mototaxis ou as kombis (ZALUAR, 2007).

A mídia também parece assumir um papel importante na invenção da favela como

território de violência (VALLADARES, 2005). Segundo Valladares (2005), a partir da década

de 1980, a mídia brasileira passou a reservar espaço cada vez maior a reportagens retratando

as ações do tráfico de drogas, a criminalidade e a violência nas favelas. O estudo sobre a

evolução da cobertura da imprensa brasileira sobre segurança pública realizado por Ramos e

Paiva (2007) mostra que há um reconhecimento por parte dos próprios profissionais da área

de que os seus veículos contribuem para a associação entre territórios populares e violência, 2 Forma como é denominada a organização das atividades comerciais do tráfico de drogas da facção Comando Vermelho, em referência ao seu caráter empresarial (GRILLO, 2013).

Page 28: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

27

tendo em vista que a grande maioria de reportagens sobre favelas nos últimos anos abordam

temáticas como tiroteios ou ações policiais.

É como consequência de uma diversidade de fatores característicos do contexto atual

que “as favelas passaram a ser vistas – pouco importa o quão errônea possa ser essa

compreensão – como o valhacouto de criminosos que interrompem, real ou potencialmente, as

rotinas que constituem a vida ordinária na cidade” (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 297).

Com isso, os moradores das favelas passaram a ser identificados de forma generalizada como

bandidos ou quase bandidos (MACHADO DA SILVA, 2008a). Mais ainda, para Zaluar

(1999), tem-se hoje, dentro deste cenário, um paradoxo que marca o contexto urbano, em que

os pobres assumem, simultaneamente, um protagonismo como responsáveis e vítimas dos

crimes.

Ainda que se configure como um mito, que paira sobre a favela inventada, a ideia de

território de violência traz consequências que são reais. Além do aumento do preconceito

contra os seus moradores (ZALUAR, 2004), a identificação das favelas como responsável

pela violência urbana faz destes territórios atrativos para ações do Estado voltadas para a

reafirmação de sua legitimidade como monopólio do uso legítimo da violência.

2.2 As Intervenções Estatais em Favelas

Desde o início do século XX, quando as favelas passam a assumir o lugar dos cortiços

como “problema social” (VALLADARES, 2005), algumas ações governamentais passam a se

direcionar para elas. No Brasil, as intervenções estatais em favelas podem ser melhor

analisadas na cidade do Rio de Janeiro, local em que foi formulado o maior número de

políticas governamentais voltadas para as favelas (VALLADARES e FIGUEIREDO, 1983) e

onde foi recentemente implementada uma política considerada inovadora: a política de

“pacificação”.

Como espaços às margens do Estado, as favelas são entendidas como “places where

state law and order continually have to be reestablished3” (ASAD, 2004, p. 279). Nesse

sentido, programas e políticas estatais voltam-se e tornam a se voltar para as favelas, ora para

eliminá-las, resolvendo um problema social, ora para integrá-las ao restante da cidade.

Entretanto, as ações estatais estão voltadas para a favela inventada e tem por trás uma

forma específica de representação social das favelas. As políticas públicas voltadas para as

favelas sempre as trataram como um universo homogêneo entre si, mas específico em relação

3 Tradução Livre: “lugares onde a lei e a ordem do Estado precisam ser continuamente reestabelecidas”.

Page 29: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

28

ao restante da cidade, e esta visão serviu para justificar as especificidades das ações

direcionadas às favelas (VALLADARES, 2005). Para o Estado tem sido mais conveniente

trabalhar com uma categoria única de “favela”, como “um alvo homogêneo ao qual

corresponderão exatamente programas especiais, ad hoc, capazes de resolver problemas

sociais bem identificados, não contestados pela base nem pelos políticos” (VALLADARES,

2005, p. 159). Mas esta categoria única de favela, conforme retratado por Valladares (2005),

modifica-se com o contexto histórico e social, o que se reflete também nas formas

preferenciais de intervenção estatal.

No início do século XX, as primeiras ações estatais direcionadas para as favelas

assumiram a forma de políticas de remoção (VALLADARES, 2005), medida privilegiada

para acabar de vez com o “problema social”, eliminar “o mal pela raiz”. Como mostrou

Valladares (2005, p. 41), “dentro dessa lógica particular, as favelas seriam elementos que

tanto se opunham à racionalidade técnica quanto à regulação do conjunto da cidade. Acabar

com elas seria, então, uma consequência ‘natural’”.

É em 1937 que as favelas aparecem pela primeira vez em um documento público,

sendo registradas no Código de Obras da cidade do Rio de Janeiro como uma “aberração” que

precisava ser eliminada (BURGOS, 2006). Com o Código de Obras, a partir da década de

1940, aos poucos começa a se impor a crença na necessidade de se administrar as favelas e os

seus moradores (VALLADARES, 2005).

Seguindo as recomendações do Código de Obras de 1937, a primeira experiência de

política pública voltada às favelas, os parques proletários, propunha a construção de parques,

com a finalidade de resolver o problema de insalubridade das franjas do Centro da cidade,

seguindo uma abordagem sanitarista do problema (BURGOS, 2006). Segundo Burgos (2006),

as medidas adotadas pelo poder público como uma tentativa de solucionar o problema das

favelas foram desde o início marcadas por uma lógica autoritária e excludente, que não

enxergava os moradores das favelas como cidadãos possuidores de direitos sociais, mas sim

como “almas necessitadas de uma pedagogia civilizatória” (BURGOS, 2006, p. 28). Vitor T.

Moura, organizador do programa, propunha medidas como o controle da entrada de

indivíduos de baixa condição social na cidade do Rio de Janeiro, o retorno dos indivíduos

com essas condições para os seus estados de origem, e a reeducação social dos moradores das

favelas voltada para a correção de hábitos pessoais e o incentivo a escolha de melhores

moradias, de forma que os moradores eram submetidos a sessões de lições de moral

Page 30: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

29

(BURGOS, 2006), exemplificando a “pedagogia civilizatória” à qual se referiu Burgos

(2006).

Quando tiveram início os programas do Estado de remoção em favelas, na década de

1940, tais programas tornaram-se frequentes e passaram a fazer parte da realidade das favelas,

embora fossem muitas vezes intercalados com pequenas ações de urbanização

(CAVALCANTI, 2009). Como consequência, os moradores das favelas começaram a se

organizar, em um primeiro momento em comissões de moradores (BURGOS, 2006), e mais

tarde na Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg), formada por

lideranças de moradores da favela que lutavam contra a remoção (CAVALCANTI, 2009).

Segundo Cavalcanti (2009, p. 73), principalmente em decorrência do período de regime

militar, “em meados dos anos de 1970, quase 140 mil moradores já haviam sido removidos de

cerca de noventa favelas, sendo realocados para áreas distantes das favelas de origem”.

De forma sintética, Cavalcanti (2009) aponta um padrão de políticas públicas

direcionadas para as favelas que se estabeleceu durante o século XX: durante os governos

autoritários predominavam as políticas de remoção; em períodos democráticos predominavam

políticas de urbanização, porém a partir de acordos clientelistas, efetivando-se apenas na

forma de pequenas melhorias de infraestrutura.

Segundo Cavalcanti (2009), na década de 1980, durante o primeiro governo Brizola,

este cenário se altera, e as favelas passam a receber uma diversidade de serviços públicos, na

forma de eletricidade, redes de esgoto ou coleta de lixo. Burgos (2006) reforça esta ideia ao

marcar que durante o governo Brizola foi desenvolvida uma agenda social especialmente

voltada para as favelas e houve mudanças importantes no que diz respeito à política de

direitos humanos, que propunham uma nova conduta policial diante dos moradores das

favelas.

A partir da década de 1980, conforme mostrou Burgos (2006), a questão das favelas se

complexifica ainda mais, diante de um contexto de disseminação da violência e da

consolidação de grupos paraestatais, como traficantes e banqueiros do jogo do bicho, nas

favelas cariocas. Como discutido anteriormente, é nesse período e dentro deste contexto que a

favela é inventada como território de violência (VALLADARES, 2005). Ao mesmo tempo,

sob influência da lógica da “cidade partida”, que ajuda a reforçar a compreensão da favela

como gênese do crime, há uma mudança nas políticas governamentais, que passaram de um

paradigma pautado na remoção para um paradigma de “integração” da favela ao restante da

cidade (CAVALCANTI, 2009). Diante da relação estabelecida entre o problema da violência

Page 31: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

30

e “o problema das favelas”, reforçado pela lógica de segregação socioespacial entre morro e

asfalto (VALLADARES, 2005), as políticas que surgem neste período assumem como missão

central a integração das favelas (BURGOS, 2006).

Nesse sentido, foram desempenhadas, por parte do Estado, algumas tentativas

frustradas de recuperação do controle territorial das mãos dos criminosos por meio de

programas de requalificação urbana ou de segurança pública. Cavalcanti (2009) explica que a

apropriação das favelas pelo tráfico contribuiu para atrair ações do Estado voltadas para a

urbanização, tendo em vista que a questão da segurança pública ganha lugar de destaque na

agenda política e, portanto, projetos sociais e de urbanização voltaram-se para estes territórios

com o intuito de reduzir as chances de envolvimento de sua população com o crime. Tais

intervenções em alguns casos até levaram a melhorias na qualidade de vida, mas não

conseguiram recuperar o controle dessas áreas, resultando na manutenção do domínio do

tráfico nos territórios das favelas (BANCO MUNDIAL, 2012).

Segundo o Banco Mundial (2012), o mais ambicioso destes projetos foi o Favela-

Bairro, que teve início em 1994, perdurando por mais cinco anos. O programa Favela-Bairro,

política habitacional proposta pelo Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GEAP),

criado pelo prefeito César Maia em 1993, surge com o objetivo de oferecer condições para

que a favela pudesse ser assumida como bairro da cidade (BURGOS, 2006). Conforme

explica Burgos (2006), como o programa foi elaborado sem que fosse debatido pelos diversos

atores políticos, seus objetivos, que inicialmente se restringiam à urbanização e à

infraestrutura, tiveram que ser adaptados, e passaram a incorporar outras dimensões, como

desemprego, geração de renda, lazer, esporte e cultura. Cunha e Mello (2011, p. 376) apontam

como o principal obstáculo para o sucesso do programa “a presença e atuação de grupos de

criminosos ostensivamente armados nesses territórios”. Para Cavalcanti (2007), embora o

programa não tenha sido capaz de alcançar os seus principais objetivos, ele serviu para a

consolidação da mudança da lógica de “remoção das favelas” para a lógica de “integração” da

favela à cidade.

Assumindo de forma mais direta a intenção de combate ao crime, programas de

segurança pública também foram direcionados aos territórios de favelas. Conforme destaca

Machado da Silva (2010), a superposição que foi se estabelecendo entre “o problema da

segurança pública” e o “problema das favelas” é importante para se compreender o sentido

das políticas de segurança, que passaram a adotar as favelas como objeto de ação. Segundo o

autor, tal superposição “acaba por concentrar o foco da política de segurança sobre os espaços

Page 32: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

31

físicos, mais do que sobre as práticas das categorias sociais que os ocupam” (MACHADO

DA SILVA, 2010, p. 298).

Durante muitas décadas o Estado tentou se estabelecer permanentemente nas favelas

cariocas, por meio de uma postura baseada no uso da força. Entretanto, não foi bem sucedido

e acabou por retirar-se de forma abrupta dos territórios (BANCO MUNDIAL, 2012).

O estado do Rio de Janeiro lançou em 2000 um programa voltado para reduzir a

violência letal em favelas com alta incidência de homicídios (CANO, 2006). O Grupo de

Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), o mais próximo de um precursor da UPP (BANCO

MUNDIAL, 2012), foi implementado pela primeira vez na favela do Cantagalo/Pavão-

Pavãozinho e estendido posteriormente para mais três favelas da cidade. Conforme explica

Cano (2006), o programa traz como diferencial a permanência da polícia na comunidade,

como uma tentativa de estabelecer uma relação de proximidade com os moradores e a busca

por inclusão da comunidade em programas sociais de prevenção à violência, em substituição

às estratégias anteriores de invasões periódicas das favelas, que levavam a muitos confrontos

armados. ISER (2012) explica que o GPAE tinha como conceitos básicos a implantação de

uma unidade de policiamento especializada voltada para o território de favelas, a presença

local da estrutura de comando de um batalhão da PM, o enfoque no policiamento das armas e

não das drogas, e o estabelecimento de parcerias para a instalação de políticas sociais.

Entretanto, conforme Cano (2006), o GPAE não pode ser considerado um novo modelo de

polícia. Em estudo realizado pelo ISER (2012, p. 24) em quatro favelas pacificadas do Rio de

Janeiro, a comparação entre o GPAE e a UPP é frequente, e revela uma visão dos moradores

de que a UPP conseguiu fazer o que o GPAE não conseguiu: “efetivamente retirar o controle

armado da favela da mão dos traficantes”. O próprio Major Carballo Branco, primeiro

comandante do GPAE, afirma sua frustração diante da incapacidade operacional e política do

GPAE de atender às demandas dos moradores das favelas. Conforme explica o Banco

Mundial (2012), o GPAE não pode ser considerado um programa bem sucedido, devido às

denúncias frequentes de corrupção policial, e a permanência de traficantes armados nos

territórios das favelas.

Não obstante a intensificação de investimentos, em um contexto de expansão da

criminalidade, o Estado não tem se mostrado capaz de retomar o monopólio do uso legítimo

da violência nestes espaços, e após tentativas frustradas de ocupar os territórios vê-se

obrigado a se retirar. Conforme aponta Soares (2006), as políticas de segurança pública

brasileiras são, em geral, ineficientes e não conquistam a confiança da população. As políticas

Page 33: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

32

públicas de segurança não têm sido bem sucedidas em conter o crescimento dos crimes ou da

violência em geral, não obstante os investimentos realizados por governos federal ou

estaduais, ou a pressão social, que se acentua em meio à crescente sensação de insegurança

(ADORNO, 2002b).

2.3 A Política de “Pacificação”

Após sucessivas tentativas frustradas de domínio ou ocupação dos territórios das

favelas, o Estado depara-se com um cenário de expansão desenfreada da violência urbana.

Com a aprovação do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos em 2016 e a Copa do

Mundo em 2014, e diante da eminência de todos os olhares voltarem-se para a Cidade

Maravilhosa exibindo suas deformidades e a inconsistência do apelido, a preocupação com o

problema da segurança da cidade potencializou-se. O Banco Mundial (2012) explica que foi

dentro deste contexto que a formulação do Programa das UPPs teve início em 2006, quando a

alta cúpula do governo estadual, o setor de inteligência e figuras influentes do setor privado

reuniram-se para discutir possíveis soluções para o problema. Com base em programas de

segurança pública bem sucedidos em outras cidades do mundo, concluiu-se que “para

avançar, a primeira ação precisaria ser uma retomada definitiva dos territórios perdidos para o

tráfico, seguida pela instalação de policiamentos preventivos permanentes” (BANCO

MUNDIAL, 2012, p. 23).

Em novembro de 2008, o governo estadual do Rio de Janeiro inaugurou a primeira

UPP na favela Santa Marta, em Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro, “com o objetivo de

recuperar o controle de territórios tomados pelo crime organizado, desarmando o tráfico de

drogas e permitindo a integração social, econômica e política das favelas com a cidade”

(BANCO MUNDIAL, 2012, p. 12). Fleury (2012, p. 195) descreve o processo de pacificação

como “a ocupação militar, com ou sem confronto, seguida de instalação permanente de uma

unidade policial”, processo este que passou a ser considerado como condição para a desejada

integração da favela à cidade.

Em uma tentativa de sistematizar o processo de pacificação, Canavêz (2012) explica

que este tem início com um primeiro momento de planejamento a partir de investigações

sobre as características da favela a ser ocupada (como aspectos socioeconômicos, análises

cartográficas, etc). Em seguida, ocorre uma comunicação aos moradores e aos traficantes de

Page 34: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

33

que a região será pacificada, principalmente para que os traficantes saiam antecipadamente,

evitando confrontos diretos entre a polícia e os criminosos.

Após a etapa inicial de preparação, sucede a entrada na favela em questão das

chamadas “forças pacificadoras”, compostas pela polícia militar, pelo Batalhão de Operações

Espaciais (BOPE), e em alguns casos também há o auxílio de tropas da Marinha, do Exército

e da Aeronáutica (CAVANÊZ, 2012). Esta etapa é oficialmente denominada de “intervenção

tática” (ISER, 2012). Antes da implantação da UPP em si, passa-se por uma etapa de

“estabilização”, em que ainda ocorrem intervenções táticas, mas também ações de cerco à

região abrangida pela UPP (ISER, 2012).

Conjuntamente com a retirada das forças armadas, ocorre a constituição da UPP, que

conta com a implementação de uma unidade da polícia entendida como comunitária, ou seja,

como uma polícia “que tem como conceito e estratégia a parceria da população com as

instituições da área de segurança” (CUNHA e MELLO, 2011, p. 373). As UPPs instalam-se

em prédios já existentes, em geral em prédios públicos que eram utilizados por outros órgãos

governamentais, ou em contêineres, posicionados em locais estratégicos (ISER, 2012). A este

respeito, ISER (2012) destaca que a unidade de polícia conta com policiais formados

especialmente para a atuação na UPP, que são treinados para a lógica de policiamento de

proximidade, e que se constituem obrigatoriamente por policiais recém-formados, sem os

“vícios” dos policiais que já praticaram as formas tradicionais de policiamento. A rotina de

implantação conta com atividades de policiamento com rondas, em que os policiais circulam

pelo território das favelas, constituindo-se, efetivamente, um comando local da unidade, que

está subordinado à Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP).

Com o programa de pacificação, nos moldes descritos, o governo do estado se propõe

a chegar a um novo modelo de segurança pública, que se distingue da forma tradicional de

ocupação de favelas, a partir de dois pontos principais: “(i) a proposta de ocupação

permanente, sem previsão de término; (ii) o enfoque na retirada das armas no lugar da

erradicação do tráfico de drogas” (ISER, 2012, p. 10). As ocupações policiais em favelas

estabelecidas até então eram pautadas no combate a situações de violência armada, e as forças

do Estado se retiravam assim que o confronto estivesse sob controle, levando, portanto, à

retomada do território pelo tráfico (ISER, 2012). Já as UPPs “se orientam pela proposta da

ocupação permanente com a expectativa de tomada do controle territorial das favelas por

parte do Estado” (ISER, 2012, p. 10).

Page 35: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

34

É importante marcar, entretanto, que isto que é denominado de “retomada do controle

territorial pelo Estado” não significa a erradicação por completo do tráfico de drogas, mas

apenas a retirada de seu poder armado, como declarou publicamente o secretário de

Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame (ISER, 2012). Pode-se

concluir, a partir das falas do secretário, que as UPPs têm como principal objetivo a retomada

do território, e não o fim do tráfico de drogas. Segundo o diagnóstico do Banco Mundial

(2012, p. 44),

ao substituir a pretensão de ‘acabar com o tráfico’ pelo objetivo de ‘acabar com a

circulação de armas nas mãos de gangues de traficantes’, as UPPs mudaram o debate sobre

segurança pública, dissociando o problema do combate ao tráfico de drogas do problema de

territorialização da economia do tráfico. O programa pode, então, concentrar-se na

‘recuperação de territórios’, efetivamente comprometendo-se com uma agenda mais

orientada a emancipar os habitantes dessas áreas, embora a permanência da presença da

polícia certamente ajude a inibir atividades de comércio de drogas.

Grillo (2013, p. 7), que em sua etnografia do crime teve a oportunidade de

acompanhar um período de entrada das Unidades de Polícia Pacificadoras nas favelas onde

realizava sua pesquisa, defende que as UPPs conseguiram modificar de forma acentuada a

forma como se organiza o mercado ilegal de drogas no Rio de Janeiro e produziram

“mudanças na ostensividade do poder dos traficantes sobre um território”. A autora ressalta,

entretanto, a permanência do tráfico de drogas em todas as áreas ocupadas pelas UPPs,

embora o porte de armas pelos traficantes não seja mais tão aparente. Segundo Grillo (2013,

p. 8), no contexto de “pacificação”, “os traficantes se referem à relação que passaram a

manter com a polícia como ‘brincar de pique-pega’, pois, em vez de confrontá-la, refinaram

as suas técnicas para driblar a polícia e conseguir compartilhar o mesmo território com os seus

agentes”.

Machado da Silva (2010) chama atenção para o fato, ainda, de que não se pretende

uma disseminação das UPPs por toda a cidade, até mesmo pela insustentabilidade da

proposição. O que se tem em mente, isto sim, é a adoção de uma “política pacificadora” nas

regiões da cidade onde ainda não há paz, quais sejam, as favelas (MACHADO DA SILVA,

2010). Mas o autor lembra que a proposta das UPPs não diz respeito apenas a lidar com o

crime, mas também com a sensação de insegurança por ele provocada e, nesse sentido, a

instalação de UPPs em lugares estratégicos da cidade, como por exemplo em favelas com

maior visibilidade, se faz suficiente. Conforme explica o autor, o sentimento de segurança

pode sim ser reduzido com a transposição de atividades como o tráfico de drogas para regiões

mais distantes e com a redução da exibição de armas pelos criminosos.

Page 36: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

35

É importante destacar no discurso oficial em torno das UPPs o seu vínculo com o

fortalecimento de projetos sociais nas favelas onde atuam (ISER, 2012). Não se pode perder

de vista que paralelamente à instalação da UPP nas favelas cariocas também são levados a

esses territórios uma série de serviços urbanos e de ações sociais, considerados parte do

processo de pacificação (CUNHA e MELLO, 2011). Além disso, como lembra Machado da

Silva (2010), os próprios policiais das UPPs passaram a ocupar outros papéis dentro das

favelas, como o lugar de alguém responsável por solucionar pequenos problemas do dia a dia

ou de mediadores entre os moradores das favelas e os demais órgãos públicos, a partir de uma

demanda dos próprios moradores, e cumprindo também ali um papel social.

Vale notar os novos programas introduzidos na favela a partir da instalação das UPPs.

Talvez o programa mais destacado na mídia, a UPP social, embora seja às vezes

compreendido como uma fase da política de pacificação, à ela diretamente vinculado (ex:

CAVANÊZ, 2012), não tem efetivamente nenhum vínculo formal com a UPP. A UPP Social

surgiu inicialmente como uma iniciativa da Secretaria de Estado de Assistência Social e

Direitos Humanos (SEASDH), em 2010, e no mesmo ano foi transferida para o município,

tornando-se um programa vinculado ao Instituto Pereira Passos (IPP). Outro programa social

desencadeado com a política de pacificação, ainda hoje vinculado à SEASDH, o “Territórios

da Paz”, com a proposta de criar redes sociais nos territórios em que atua.

Por possibilitar intensificação de intervenções estatais nas favelas e principalmente por

nelas ter conseguido permanecer, as UPPs são vislumbradas como uma política de segurança

pública que assume novos parâmetros e recebem, em geral, uma avaliação positiva, o que não

se restringe a uma simples percepção midiática. Machado da Silva (2010) explica que a

avaliação positiva das UPPs vem sendo reforçada, não apenas pelas inúmeras referências à

redução do crime que se perpetuam pela mídia, mas também pela aprovação da população do

Rio de Janeiro, tanto de moradores das favelas como daqueles que vivem em áreas externas.

Na visão do autor, existem evidências que sustentam esta visão positiva, como a apresentação

de bons resultados nas favelas em que atuam, sustentados por indicadores como a queda da

violência policial nas regiões com UPPs ou elevação do sentimento de segurança por parte

dos moradores. Entretanto, Machado da Silva (2010) chama atenção para a desconfiança que

perpassa os moradores em torno da permanência das UPPs, fundamentada por um histórico de

políticas públicas descontínuas.

A visão positiva do programa, apontada por Machado da Silva (2010), é reforçada por

meio dos resultados de diversas pesquisas que tem se voltado para análises do impacto das

Page 37: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

36

UPPs. Com base em uma destas pesquisas, realizada em quatro favelas pacificadas do Rio de

Janeiro, ISER (2012) mostra que houve uma mudança no fluxo de circulação de pessoas que

não moram nas favelas, como agentes do Estado, pesquisadores, empresários ou turistas. São

destacados principalmente, os atores que se voltam para intervenções de caráter social, como

projetos esportivos, cursos profissionalizantes, atividades culturais ou mutirões de limpeza.

No relatório Os donos do morro, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança

Pública em parceria com o Laboratório de Análise da Violência da UERJ (LAV – UERJ) com

a proposta de apresentar uma avaliação do impacto das UPPs, também são apontados

resultados positivos, como redução da violência letal, de roubos e principalmente de mortes

em intervenções policiais dentro das favelas pacificadas, uma maior sensação de liberdade por

parte dos moradores das favelas, e a redução do estigma a elas atrelado, que resultou no

aumento considerável da entrada de pessoas de fora das favelas e no fortalecimento da

identidade e da auto-estima local.

O Banco Mundial (2012), a partir de uma pesquisa a respeito da transformação da vida

nas favelas trazidas com processo de pacificação, também mostra, por meio de entrevistas e

grupos focais com moradores de diferentes favelas – sendo três pacificadas e uma não

pacificada-, que a principal mudança consiste na possibilidade de os moradores circularem

pela favela com liberdade muito maior. Além disso, a UPP conseguiu melhorar a relação dos

moradores das favelas com a polícia, pois é vista pelos moradores como uma tentativa do

Estado de pacificar a própria polícia (BANCO MUNDIAL, 2012). Segundo o relatório, há

uma materialização, embora gradual, da integração dos moradores das favelas com o restante

da cidade, que se destaca, principalmente, no que diz respeito à regularização dos serviços

públicos. No relatório é destacado, ainda, o aumento do preço dos imóveis como decorrência

da pacificação, o que gera nos moradores o medo daquilo que eles chamam de “remoção

branca”. Ao sintetizar seus resultados, afirma-se que “a UPP já foi reconhecida, no Brasil e no

exterior, como uma iniciativa muito promissora, e este relatório aponta o mesmo” (BANCO

MUNDIAL, 2012, p. 24). Diante da visibilidade do programa, e das avaliações positivas que

vem recebendo, que o qualificam enquanto um programa a ser “copiado” em outras regiões,

destaca-se aqui a extrema relevância de análises detalhadas acerca deste contexto de

“pacificação”.

Page 38: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

37

2.4 Conclusão

Neste capítulo, procurou-se contextualizar as intervenções estatais em favelas, de seu

percurso histórico ao contexto atual. Buscou-se destacar as diversas representações sociais

que foram, historicamente, atreladas às favelas, e a forma como as ações do Estado pautam-se

nestes estereótipos e voltam-se para a favela no singular, o que implica um tratamento

homogêneo às favelas.

Por meio de uma descrição do histórico das intervenções estatais em favelas, é

possível notar que tem-se, hoje, um cenário no qual as favelas destacam-se como territórios de

violência, responsabilizadas pela criminalidade da cidade. Nesse sentido, busca-se a

integração das favelas ao restante da cidade, como forma de lidar com o problema da

segurança pública.

Ganhou destaque, neste capítulo, o programa das UPPs, para que se aponte as

principais características do contexto no qual esta pesquisa foi desenvolvida. Entretanto,

embora as UPPs mereçam destaque, por serem apontadas como o programa que inaugura uma

nova etapa da vida nas favelas, “abrindo” a favela ao Estado, vale ressaltar que as UPPs vêm

acompanhadas de uma intensificação de ações do Estado na favela, e em minha pesquisa de

campo, que serviu de base para as análises teórico-empíricas que serão desenvolvidas a partir

daqui, volto meu olhar para os diversos representantes do Estado, para o que chamarei aqui de

campo burocrático do Estado em ação nas favelas.

Page 39: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

38

3 MÉTODO DE PESQUISA

Para atender ao objetivo de investigar como se dá a relação entre o campo burocrático

do Estado em ação nas favelas e o espaço social, no contexto da “pacificação”, foi preciso

voltar meu olhar para o espaço em si, para os processos de organizar no espaço, para a vida no

cotidiano da favela e para a compreensão da dinâmica do campo burocrático do Estado em

ação nas favelas. Mas para aproximar o meu olhar disso que se configurou como meu objeto

de pesquisa, foi preciso fechar um pouco os livros e subir o morro, com vistas a adquirir um

novo conhecimento, agora “permeabilizado por cheiros, cores, dores e amores” (DA MATTA,

1978, p. 24).

Indo ao encontro da perspectiva teórica que fundamenta a pesquisa de tese aqui

apresentada, parte-se de um entendimento relacional e processual do objeto de estudo. Busca-

se, nesse sentido, a superação da dicotomia objetividade-subjetividade e dos demais

dualismos que dela decorrem (ação/estrutura, indivíduo/sociedade). Como consequência, as

organizações não são pensadas como produtos acabados, possibilitando que o fenômeno

organizacional seja investigado a partir da inclusão de novas dimensões (espaciais,

relacionais, ...). Tal opção epistemológica possibilita, ainda, a abertura para um pluralismo

metodológico, conforme mostrou Peci (2006).

A discussão em torno da dicotomia objetividade-subjetividade está presente nos

debates dos estudos filosóficos e sociais há muitos anos (PECI, 2006), e ganhou destaque na

área de estudos organizacionais especialmente a partir da publicação da destacada obra de

Burrell e Morgan Sociological paradigms and organisational analysis, em 1979. Na referida

obra, os autores propõem que a teoria social em geral, mas especialmente as teorias

organizacionais, podem ser analisadas a partir de quatro visões de mundo mais amplas -

funcionalismo, interpretativismo, humanismo radical e estruturalismo radical - que se refletem

em diferentes pressupostos teóricos sobre a natureza da ciência e da sociedade, e refletem

também diferentes escolas de pensamento (MORGAN, 1980). Burrell e Morgan marcam,

ainda, que os quatro paradigmas são incumensuráveis (TADAJEWSKI, 2009).

Em texto mais recente, o próprio Burrell (2007) reconhece algumas limitações do

modelo, mas ressalta como um de seus pontos positivos o fato de ter sido capaz de destacar

que a orientação funcionalista dominante na área não era a única possível. A visão objetivista,

inerente ao funcionalismo dominante, levou ao que Vergara (2007, p. 461) denominou de uma

“simplificação da vida organizacional” ou ao privilégio da “homogeneidade em detrimento

das diferenças”. Duarte e Alcadipani (2013) mostram como o objetivismo dominante na área

Page 40: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

39

leva à naturalização de uma compreensão das organizações de forma reificada e neutra, com

fronteiras bem definidas, o que, segundo os autores, não dá conta de entender fenômenos

organizacionais complexos.

Como uma tentativa de síntese da dicotomia objetividade subjetividade reforçada na

obra de Burrel e Morgan e, portanto, rompendo com a incomensurabilidade paradigmática por

eles proposta, pode-se destacar a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu (WACQUANT,

2012; PECI, 2006). O autor sofreu influências de diversas perspectivas teóricas, dentre as

quais se destacam a fenomenologia, o estruturalismo e o marxismo (PECI, 2006), e sua

perspectiva própria, derivada das diversas influências, chegou a ser denominada de

estruturalismo construtivista ou construtivismo estruturalista (MISOCZKY, 2006). O

estruturalismo construtivista de Bourdieu é descrito por Wacquant (2012) como uma

combinação entre abordagens fenomenológica e estruturalista, que possibilita uma

investigação social integrada e coerente. Sobretudo, a perspectiva de Bourdieu “afirma a

primazia das relações” (MISOCZKY, 2006, p. 80) e possibilita uma perspectiva relacional e

processual de análise (SETTON, 2002).

Os avanços trazidos por Bourdieu para as diferentes áreas sob sua influência podem

ser entendidos como reflexo de sua inquietude diante do estado do conhecimento que

dominava em sua época. Conforme Everett (2002), Bourdieu era inconformado com a

natureza dualística do pensamento sociológico e com a necessidade de escolher entre o foco

na estrutura ou na agência, no micro ou no macro, no qualitativo ou no quantitativo. Para

Bourdieu, o dualismo dominante na área era problemático, tendo em vista que o foco

exclusivo em um ou em outro leva necessariamente a contradições lógicas. Na visão do autor,

“de todas as oposições que dividem artificialmente a ciência social, a mais fundamental, e a

mais danosa, é aquela que se estabelece entre o subjetivismo e o objetivismo” (BOURDIEU,

2011a, p. 43).

Rompendo com os dualismos, a abordagem proposta por Pierre Bourdieu apresenta-se

como uma alternativa conciliadora para se pensar o mundo social (e mais tarde as

organizações que também o compõem), na medida em que se propõe a superar dicotomias

como objetividade/subjetividade, ação/estrutura, e indivíduo/sociedade (PECI, 2003).

Produzida com esse viés integrador, a perspectiva teórica de Bourdieu tem como marcas

fundamentais o pensamento relacional e o uso da reflexividade (SWARTZ, 2008).

Nesse sentido, a perspectiva teórica de Bourdieu pode ser transposta a área de estudos

organizacionais, de forma a prover uma visão processual para se pensar os fenômenos

Page 41: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

40

organizacionais. Segundo Langley e Tsoukas (2010), a visão processual é aquela visão de

mundo que olha para os processos, muito mais do que para substância, como as formas

básicas do universo, priorizando atividades, mudanças e novidades, em detrimento do

produto, da persistência e da continuidade. Pettigrew (1997, p. 338) explica que a noção de

processo pode ser compreendida como “a sequence of individual and collective events,

actions, and activities unfolding over time in context”. Portanto, os estudos processuais

preocupam-se em analisar ou explicar essas sequências de ações coletivas ou individuais,

tendo em vista que a realidade social não é estática, mas sim um processo dinâmico

(PETTIGREW, 1997). Pettigrew (1997) ressalta, ainda, a importância do contexto para uma

análise processual. O autor explica que quando o interesse de investigação está no processo, o

contexto no qual ele está inserido, que molda o fluxo de eventos e que por sua vez é moldado

por ele, também merece ser investigado. Assim, assumir uma visão processual das

organizações significa entendê-las “como processos ou práticas de organização (organizing),

os quais se mostram heterogêneos, difusos e complexos, em constante fluxo e

transformações” (DUARTE e ALCADIPANI, 2013, p. 4).

Neste sentido, uma visão processual também possibilita a retomada da dimensão

espacial nos estudos organizacionais. Ao apresentar o seu conceito de espaço social, Lefebvre

(2007), não por acaso, adota como ponto de partida a crítica à dicotomia entre sujeito e objeto

advinda da lógica cartesiana, e denuncia o pressuposto de identidade entre o espaço mental e

o espaço real, que cria um abismo entre a esfera mental e as esferas física e social. Assim, o

conceito de espaço social, que tem origem no pensamento de Lefebvre, no qual esta tese se

baseia, está também inserido nesta mesma perspectiva teórica, na medida em que

compreende-se o espaço como um conjunto de relações e formas, no qual o social e o material

estão imbricados (LEFEBVRE, 2007).

Seguindo esta perspectiva epistemológica é possível compreender as organizações

enquanto processos de organizar - aproximando-as do dinamismo que é marca dos campos-, e

com isso possibilitando que se recupere a relação entre as organizações e o espaço, em que

ambos são, ao mesmo tempo, produto e produtor, inacabados, processuais. Pautando-me nessa

perspectiva teórica, este capítulo tem como objetivo descrever as estratégias metodológicas

que foram adotadas para atender ao objetivo de pesquisa proposto. Para tal, serão descritos os

métodos de coleta de dados e os métodos de análise de dados utilizados ao longo da pesquisa,

bem como o meu processo de inserção no campo.

Page 42: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

41

3.1 Coleta de Dados

A coleta de dados se deu por meio de uma pesquisa de campo de inspiração

etnográfica com duração de 1 ano e 4 meses, de janeiro de 2013 a abril de 2014, em duas

favelas cariocas com UPPs, selecionadas com base nos seguintes critérios: localização em

duas diferentes regiões da cidade (zona norte e zona sul); acessibilidade. A escolha de duas

favelas em regiões diferentes da cidade, marcadas por uma discrepância em termos de renda

média de seus habitantes (enquanto a zona Sul é considera uma zona rica da ciada, a zona

Norte é considerada uma zona pobre), foi ao encontro da noção de amostragem teórica

proposta por Strauss e Corbin (2008), segundo a qual é válida a procura por locais, pessoas ou

fatos que maximizem as oportunidades de descobrir variações entre os conceitos, tornando as

categorias mais densas. O trabalho de campo teve o propósito de investigar, a partir da

realidade diária das favelas, o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e a forma

como produzem o espaço social de favelas. Em suma, busca-se, via um olhar etnográfico,

identificar como os processos de organizar (re)produzem e são produzidos no espaço social

das favelas.

A pesquisa de campo foi realizada por meio de observação participante, de inspiração

etnográfica. Conforme explicam Emerson, Fretz e Shaw (1995, p. 1), a etnografia “involves

the study of groups and people as they go about their everyday lives”. Portanto, para a

realização de uma pesquisa etnográfica, o pesquisador precisa se aproximar de seu objeto de

pesquisa, o que significa não apenas uma proximidade física e social, mas também uma

verdadeira inserção no mundo daqueles outros que se está pesquisando (EMERSON, FRETZ

e SHAW, 1995). Segundo Cunliffe (2010), a etnografia diz respeito à compreensão da

experiência humana, da vida de uma comunidade específica, e por isso requer uma interação

com a comunidade, a construção de relações.

Nesse sentido, a imersão etnográfica não pressupõe um pesquisador passivo, um

pesquisador que procure se manter como “a fly on the wall” (EMERSON, FRETZ e SHAW,

1995, p. 3). Ela envolve um pesquisador com ativa participação nas atividades diárias, cuja

presença tem inevitável interferência nos acontecimentos do campo (EMERSON, FRETZ e

SHAW, 1995).

Não obstante as inúmeras descrições sobre o método etnográfico, Van Maanen (2010)

lembra que não existe nenhuma técnica específica atrelada à etnografia, e ela permanece

aberta ao improviso e a modos situados de pesquisa. Humphreys, Brown e Hatch (2003) a

comparam ao jazz, e mostram como o trabalho do etnógrafo no campo envolve um improviso

Page 43: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

42

semelhante ao da conversação musical presente no gênero musical. Músicos do jazz e

etnógrafos, mostram os autores, buscam assumir uma identidade, passam por um processo de

auto-descoberta e de descoberta do outro, e estão envolvidos em atividades coletivas e sociais.

Tudo isso requer uma grande dose de espontaneidade e de intuição por parte do músico e do

pesquisador etnográfico (HUMPHREYS, BROWN e HATCH, 2003).

As etnografias estão enraizadas na observação (ZICKAR e CARTAN, 2010). A

observação participante, em particular, é caracterizada por uma abordagem em que o

pesquisador insere-se em um campo, e passa a participar de suas rotinas diárias para observá-

las de perto (EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995). O pesquisador que adota a técnica de

observação esforça-se para enxergar os eventos a partir da perspectiva daqueles que estão

sendo estudados (ANGROSINO, 2000). Adotamos a observação participante, que, segundo

Angrosino (2000), baseia-se no estabelecimento de uma relação harmônica entre o

pesquisador e a comunidade estudada, e por isso requer um período relativamente longo de

imersão do pesquisador na vida diária daquela comunidade.

Embora a etnografia seja amplamente adotada principalmente nas áreas de

antropologia e sociologia, Van Maanen (2010) lembra que, no contexto atual, as pesquisas de

inspiração etnográfica, pautadas na observação participante, têm sido realizadas em várias e

diferentes áreas do conhecimento, como estudos culturais, jornalismo, tecnologia, medicina,

dentre outras. Entretanto, segundo Cunliffe (2010), pesquisas etnográficas ou de inspiração

etnográfica não são adotadas com muita frequência em estudos organizacionais. Alcadipani

(2008) lembra que embora a etnografia tenha tido, no passado, uma presença importante na

área de estudos organizacionais, a tendência ao seu uso vem diminuindo na área. Assim como

outros métodos qualitativos, a etnografia carrega, às vezes, um sentido pejorativo na área, pois

é associada a resultados que não são generalizáveis (CUNLIFFE, 2010). Para Cunliffe (2010),

a impopularidade do método na área de estudos organizacionais está também associada ao

longo tempo que precisa ser empregado em uma pesquisa etnográfica, o que vai de encontro

às atuais pressões por publicação. Zickar e Cartan (2010) ressaltam, ainda, que o crescente

interesse por métodos estatísticos, fortemente disseminados na área a partir da crença de que

estes fornecem um maior senso de precisão, contribui para afastar os pesquisadores

organizacionais de métodos qualitativos, dentre os quais se destaca a pesquisa etnográfica.

Como lembra Agar (2010), as organizações também são feitas de pessoas que

percebem, que interpretam, que possuem afetos e pensamentos e, portanto, as análises deste

mundo humano que compõe as organizações precisam investigar as perspectivas e as relações

Page 44: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

43

sociais que nele estão em jogo, para que não se restrinjam apenas a aspectos superficiais. A

observação participante apresenta-se, assim, como uma alternativa apropriada para a análise

organizacional, especialmente quando as organizações são pensadas a partir de seus processos

de organizar, “as they happen” (SCHATZKI, 2006), sob uma ótica processual.

Embora no trabalho de campo que venho desenvolvendo eu não tenha “empacotado

minha escova de dente” (CUNLIFFE, 2010) e mudado para a favela, meu esforço em

investigar os processos de organizar de agentes do campo burocrático do Estado envolve uma

observação que se dá de forma ativa, no sentido de que minha presença traz consequências

para as atividades que ali se desenvolvem. Fui muitas vezes chamada “a colocar a mão na

massa”, seja ajudando a tirar fotos para a elaboração de um relatório, seja ajudando a cuidar

das crianças na UPP Mirim, e algumas vezes, até mesmo, a minha opinião foi solicitada, e

tentei expressá-la sem gerar controvérsias ou grandes alterações no curso natural dos eventos.

Com vistas a me capacitar neste tipo de abordagem metodológica, que não envolve

“receitas de bolo” ou listas de instruções, segui, primeiramente, as recomendações de Zickar e

Cartan (2010) que sugerem aos pesquisadores a leitura de outras pesquisas etnográficas.

Preparei-me para meu trabalho de campo lendo pesquisas de áreas alheias aos estudos

organizacionais (ex: WHYTE, 2005), de outras áreas, mas que também adotam a favela como

campo (ex: GRILLO, 2013; CAVALCANTI, 2007; ZALUAR; 2000), e, embora mais

escassas, etnografias em estudos organizacionais (ex: ALCADIPANI, 2008).

Busquei, em um primeiro momento, me inserir na vida das favelas estudadas por meio

de contato com os moradores locais, e a partir deles identificar os agentes do campo

burocrático do Estado que se inserem no cotidiano da favela e realizam processos de

organizar. Conforme ressaltou Alcadipani (2008), uma grande dificuldade da observação está

em decidir para onde olhar, e é preciso tomar decisões neste sentido. Portanto, para selecionar

aqueles agentes cujos trabalhos eu iria acompanhar mais de perto, pautei-me na visão dos

próprios moradores e esperei que eles me indicassem os agentes com quem interagiam e que

transformam seu espaço, e muitas vezes até mesmo que me apresentassem para eles. Além

disso, também procurei selecionar aqueles que têm maior circulação pelo espaço das favelas,

ampliando as minhas possibilidades de compreender o processo de produção do espaço.

Ressalto, entretanto, que também interagi e acompanhei, embora de forma mais eventual, o

trabalho de outros agentes do campo burocrático do Estado, na medida em que existia uma

interação entre os próprios agentes do campo burocrático do Estado que me conduziam uns

Page 45: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

44

aos outros, e que em alguns momentos era convidada pelos próprios moradores para participar

de eventos de outros agentes.

Inicialmente fazia visitas semanais às favelas, e aos poucos a frequência de visitas foi

sendo intensificada, conforme apareciam eventos, reuniões ou atividades para os quais era

convidada. Em muitos momentos foi necessário, inclusive, escolher entre um evento e outro,

pois alguns eventos se sobrepunham, especialmente entre as duas diferentes favelas. Minhas

visitas eram sempre acompanhadas de notas de campo, que consistem em anotações

sistemáticas a respeito daquilo que se observa, com vistas a acumular um registro escrito das

vivências no campo (EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995).

Entretanto, como apontam Emerson, Fretz e Shaw (1995), o pesquisador precisa saber

identificar quando e como é possível fazer notas de campo. Logo de início percebi que as

anotações raramente poderiam ser feitas dentro das favelas. Primeiro, porque podem gerar

constrangimentos e desconfortos, e até mesmo interferência de traficantes. E, ainda, porque,

em geral, estava envolvida em algum tipo de atividade, como festas, caminhadas, recreações

ou conversas informais, que não me permitiam parar e fazer anotações. Portanto, foi

necessário trabalhar com a memória e passei a fazer minhas anotações de campo no momento

em que chegava em casa, logo após alguma visita. Em situações em que participava de

reuniões algumas notas de campo podiam ser ali realizadas, já que outras pessoas também

estavam com seus cadernos anotando algumas questões referentes à reunião. Vale ressaltar

que recebi autorização para gravar algumas reuniões e eventos, o que facilitou o registro dos

acontecimentos do campo.

A observação participante é, em geral, complementada com outras formas de coleta de

dados, que permitem ao pesquisador conferir os resultados obtidos por meio da observação

(SANDAY, 1979). Assim como o olhar, o ouvir também é importante, e a realização de

entrevistas, paralelamente às conversas informais, pode ser uma boa complementação na

medida em que possibilita obter e aprofundar explicações fornecidas pelos próprios membros

da comunidade investigada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). Nesse sentido, realizei

entrevistas com agentes do campo burocrático do Estado que realizavam processos de

organizar nas favelas, para também ouvir seus relatos a respeito de suas ações dentro e fora

das favelas. Para obter mais observações neste sentido, também foram realizadas entrevistas

com agentes do campo burocrático do Estado que assumem posição hierárquica superior em

algumas organizações que possuem representantes inseridos na favela, mas que não estão lá

presentes em seu dia a dia de trabalho, os quais geralmente estão inseridos em atividades de

Page 46: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

45

planejamento dos processos de organizar em favelas. As entrevistas possibilitaram, ainda, um

conhecimento mais profundo da ação de agentes que realizam intervenções esporádicas no

campo, que não estão inseridos rotineiramente nas favelas, e que, portanto, não tem suas

ações observadas com tanta frequência, ou daqueles agentes que estão inseridos nas favelas,

mas que possuem pouca interação com os moradores e cujo trabalho eu acompanho apenas de

forma esporádica por meio da observação. Alguns moradores também foram entrevistados, no

sentido de obter informações sobre a interface que se estabelece entre moradores e os

representantes do Estado dentro daquele espaço do qual também são parte importante. As

entrevistas também se mostraram importantes no sentido de obter informações a respeito de

um momento anterior, em que eu ainda não estava inserida no campo. As comparações entre

as favelas antes e depois do processo de “pacificação” foram surgindo naturalmente nas

entrevistas realizadas, e trouxeram informações que não podiam ser captadas apenas por meio

de observação. Nesse sentido, 91 pessoas foram entrevistadas, e as entrevistas tiveram

duração média de 2 horas. A distribuição de entrevistados de acordo com o programa ou

favela está especificada nas Tabelas 1, 2 e 3 abaixo:

Tabela 1. Entrevistados Favela da zona Sul Categoria de Entrevistado Quantidade

Morador 18

Representantes da UPP 10

Representantes do PAC 5

Representantes da UPP Social 2

Representantes do Territórios da Paz 2

Representantes do CRAS 2

Representantes da Clínica da Família 1

Representantes do CIEP 1

Representantes da Comlurb 2

Representantes do ITERJ 4

Total 47

Tabela 2. Entrevistados Favela da zona Norte Categoria de Entrevistado Quantidade

Morador 14

Representante da UPP 11

Representante da UPP Social 2

Representante do Territórios da Paz 2

Page 47: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

46

Representante do CRAS 6

Representante da Comlurb 2

Total 37

Tabela 3. Entrevistados Gerais Categoria de Entrevistado Quantidade

Representante da UPP 2

Representante da UPP Social 3

Representante do Territórios da Paz 2

Total 7

Vale ressaltar que as entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado. Embora

tenham sido construídos roteiros específicos para cada entrevistado, a base dos roteiros

encontra-se em Anexo (sendo um roteiro relativo a agentes do campo burocrático do Estado e

outro a moradores). Os moradores entrevistados foram selecionados a partir da observação,

que possibilitou identificar lideranças comunitárias, e pessoas que possuíam maior interação

com alguns agentes do campo burocrático do Estado. Além disso, ao final de cada entrevista

foram pedidas indicações de pessoas a serem entrevistadas. Os agentes do Estado foram

selecionados também por meio de observação, e nos casos em que os programas possuíam

poucos representantes nas favelas buscou-se entrevistar todos eles (este é o caso do PAC,

UPP Social e Territórios da Paz). Foi adotado o critério de saturação para selecionar a

quantidade de pessoas entrevistadas, ou seja, os dados foram coletados até que todas as

categorias estivessem saturadas e nenhum dado novo ou relevante parecesse surgir

(STRAUSS e CORBIN, 2008). Vale ressaltar, que a diferença na quantidade dos agentes do

campo burocrático do Estado entrevistados em cada um dos programas se dá também pela

quantidade destes agentes presentes em campo. Programas como a UPP Social e o Territórios

da Paz, por exemplo, possuíam apenas 2 representantes em cada favela, e portanto todos os

agentes dos programas em campo foram entrevistados. Já a UPP destaca-se como o programa

com maior número de entrevistas devido à grande quantidade de policiais em cada favela

(cada UPP possuía em torno de 120 policiais), e devido à minha dificuldade inicial de

“aprender” a linguagem policial. Dentre todos os agentes que participaram da pesquisa, os

policiais eram aqueles que se destacavam por possuir uma linguagem própria, um vocabulário

muito particular, e no início tive dificuldades para compreender a sua língua. Usavam termos

como “guarnição”, “grupamento”, “peixes”, “FEM”, “RUMBI”, “bico”, nomes de armas,

Page 48: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

47

nomes de uniformes, referiam-se às escalas e às divisões internas às UPPs por meio de

códigos, e para que eu aprendesse a “falar a língua” dos policiais foi preciso uma interação

mais intensa e um maior número de entrevistas. Ao final, os policiais já brincavam que eu

deveria fazer concurso para a PM, porque eu já falava muito bem a língua deles. A diferença

no número de entrevistados entre a favela da zona Norte e a favela da zona Sul se deu devido

ao reduzido número de agentes do campo burocrático do Estado da segunda em relação à

primeira. Este dado também servirá para embasar a análise apresentada nos próximos

capítulos.

Vale ressaltar, que também recebi autorização para gravar algumas reuniões entre

UPPs e moradores, reuniões do Territórios da Paz e audiências públicas. Entretanto, ao todo

apenas 6 reuniões foram gravadas, no início da minha pesquisa de campo, tendo em vista o

clima acalorado das reuniões. As reuniões do PAC, por exemplo, sempre muito conflitivas,

nunca foram gravadas, porque temia pela integridade do meu gravador. Com o decorrer da

pesquisa de campo, o “clima” em ambas as favelas foi ficando mais tenso, e as reuniões

refletiam esta mudança. Acabei optando por encerrar as gravações, e me pautei em minha

habilidade de fazer anotações rápidas para registrá-las.

De forma a possibilitar a análise de dados, foi necessário, primeiramente, a

organização dos dados coletados ao longo da pesquisa de campo e a transcrição de todas as 91

entrevistas realizadas e das 6 reuniões gravadas. Para isso, contei com a ajuda de alguns

profissionais que foram instruídos por mim para me auxiliar nas transcrições literais das

entrevistas, embora eu mesma tenha realizado parte das transcrições. O auxílio externo foi

necessário devido à grande quantidade de entrevista e o tempo limitado para a finalização da

pesquisa de tese. As notas de campo e as entrevistas transcritas totalizaram mais de 3.200

páginas de dados.

3.2 Análise dos Dados

Os dados obtidos por meio da pesquisa de campo foram analisados com base em teoria

fundamentada (ou grounded theory), conforme propõe Strauss e Corbin (2008). O termo

“teoria fundamentada” refere-se a uma teoria que surge com base em dados, reunidos e

analisados de maneira sistemática por meio de um processo de pesquisa (STRAUSS e

CORBIN, 2008). O objetivo deste tipo de análise é possibilitar que, com base nos dados,

parta-se da descrição para um ordenamento conceitual, que se constitui na organização dos

dados em categorias segundo suas propriedades e suas dimensões, para a produção de teoria,

Page 49: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

48

ou seja, um conjunto de conceitos desenvolvidos e relacionados por meio de declarações de

relações.

Para me engajar neste tipo de análise, contei com o auxílio do software Atlas.ti 74, que

me ajudou a lidar com as mais de 3.200 páginas de dados. Com auxílio do software, seguindo

as etapas de análise sugeridas por Strauss e Corbin (2008), iniciei o meu processo de análise

de dados a partir da microanálise, ou seja, da análise detalhada, linha por linha, de cada

documento de nota de campo ou de entrevista transcrita, produzindo, a partir daí, as primeiras

categorias, que se configuraram enquanto categorias iniciais. Tendo em vista que o processo

de análise não é um processo estático ou rígido, mas envolve a liberdade e criatividade do

pesquisador, na microanálise já são realizadas tanto a codificação aberta quanto a axial.

Enquanto a codificação aberta consiste em um processo analítico que possibilita a

identificação de conceitos e de suas propriedades e dimensões nos dados, criando categorias

ou subcategorias, a codificação axial consiste no estabelecimento de relações entre categorias

e subcategorias. Nesse sentido, na primeira leitura detalhada buscou-se identificar temas

persistentes, aspectos chave, que pudessem ser organizados em categorias, bem como a forma

como eles estavam relacionados. Busquei organizar estes dados empíricos recorrentes em

códigos, que também foram influenciados pelos meus pressupostos de pesquisa.

Após a primeira etapa de microanálise, seguiu-se uma nova etapa voltada para uma

codificação seletiva, ou seja, para a integração e refinamento de teoria às categorias, para a

formação de um esquema teórico maior. Nesse sentido, ainda com o auxílio do software

Atlas.ti 7, voltei-me novamente à leitura dos dados, buscando elevar as minhas categoriais a

um nível teórico. A aderência conceitual das categorias produzidas ajudou a validá-las

enquanto categorias teóricas.

Uma importante parte da teoria fundamentada diz respeito à validade das categorias

construídas. Uma das formas de conseguir esta validade é por meio da apresentação e

discussão destas categorias construídas com outros pesquisadores, para verificar o seu sentido

e incorporar estas sugestões. Seguindo esta lógica, ao longo de todo o trabalho, as categorias

foram compartilhadas com minha orientadora, que cumpriu este papel de validação, sugerindo

categorias novas e eliminando outras. Buscamos, por meio deste processo, conferir maior

validade às categorias construídas.

Como forma de complementar a teoria fundamentada, e diante da importância

explicativa que pareciam ter as falas persuasivas dos agentes investigados, também foi 4 Vale ressaltar que o software foi utilizado apenas para facilitar a organização da grande quantidade de dados, porém não recorri às ferramentas de codificações automáticas disponíveis no software.

Page 50: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

49

utilizada uma análise retórica, complementada pela análise argumentativa. Conforme

explicam Bauer e Gaskell (2012), a análise retórica envolve a análise de discursos

persuasivos, desvelando tais discursos e questionando-se a respeito do porque eles são

persuasivos. Desta forma, o objeto da análise retórica é a persuasão (BAUER e GASKELL,

2012).

A análise retórica foi utilizada na presente pesquisa como forma de investigar as

estratégias de legitimação utilizadas por agentes dos programas da UPP, PAC, UPP Social,

Territórios da Paz e CRAS, conforme será explicado em capítulo posterior, de forma a prover

elementos que ampliem a compreensão a respeito das disputas entre os agentes e a respeito de

seus posicionamentos no campo burocrático do Estado. Para realização da análise retórica

foram selecionados argumentos persuasivos destes agentes, apresentados em entrevistas ou

em reuniões gravadas e transcritas. Tais argumentos foram analisados de forma a identificar a

origem dos argumentos, ou “como os oradores inventam argumentos em relação a

determinados objetivos” (BAUER e GASKELL, 2012, p. 302). Para a análise retórica, parte-

se da ideia de que cada estrutura de argumento dá um peso maior a uma das três qualidades da

fala propostas por Aristóteles (BAUER e GASKELL, 2012). Aqueles argumentos cuja

estrutura privilegia o Ethos configuram-se como uma argumentação persuasiva fundamentada

em princípios morais ou na credibilidade de seu autor. Os argumentos baseados em Pathos

apelam para a emoção como forma de persuasão. Já argumentos baseados em Logos

configuram-se enquanto argumentos lógicos, que se baseiam em uma lógica racional como

forma de convencimento. Além dos três tipos tradicionais de estruturas de argumento,

também foi possível identificar nos dados argumentos baseados em presença. Perelman e

Olbrechts-Tyteca (2005) chamam atenção para o fato de que as concepções tradicionais da

retórica negligenciam os argumentos de presença, fator essencial na argumentação segundo as

autoras. A presença possui um efeito direto em nossa sensibilidade, e não basta que uma coisa

exista para que se sinta a sua presença (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Por

isso, nos argumentos de presença o orador tenta tornar presente ou valorizar tornando mais

presentes certos elementos, por meio de recurso, principalmente, a objetos concretos

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

Como forma de facilitar a análise daquilo que está sendo privilegiado na estrutura dos

argumentos, também utilizei aqui uma análise argumentativa conforme proposta por Toulmin.

Toulmin (2001) parte da ideia de que argumentos, assim como organismos, possuem uma

estrutura. Propõe, assim, uma análise argumentativa a partir da análise do layout do

Page 51: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

50

argumento, ou seja, da forma como ele está estruturado. Para o autor, um argumento apresenta

dados (D) que consistem nos fatos aos quais recorremos para fundamentar uma alegação. A

alegação ou conclusão (C), por sua vez, consiste na parte do argumento cujos méritos

buscamos estabelecer. Normalmente, a relação entre estas duas partes resume-se em

expressões do tipo “se D, então C” ou “D, portanto C”. Por trás da relação entre o dado e a

conclusão, existe, segundo o autor, uma garantia (W), que determina o grau de força que os

dados conferem à alegação, ou, em outras palavras, a garantia é “uma premissa consistindo de

razões, autorizações e regras usadas para afirmar que os dados são legitimamente utilizados a

fim de apoiar a proposição” (BAUER e GASKELL, 2012, p. 226). Neste sentido, a análise

argumentativa, a partir da perspectiva de Toulmin, também nos permite acessar as premissas

por trás dos argumentos dos agentes, e por isso foi utilizada nesta pesquisa como forma de

ajudar a acessar as lógicas institucionais em disputa no campo burocrático do Estado,

conforme será explicitado em capítulo posterior.

Ainda seguindo a perspectiva da análise retórica, também busquei analisar ao longo da

tese o papel das metáforas utilizadas pelos agentes em sua “transferência” de sentidos de um

conceito a outro, conforme explicaram Bauer e Gaskell (2012). Na análise retórica a metáfora

é considerada um tropo, ou seja, uma mudança de significado de uma palavra que se dá de

forma bem sucedida (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Conforme explicam

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), por meio da metáfora é possível transpor a significação

de um nome para outra significação. Tendo em vista que o uso de metáforas era muito

frequente entre os agentes de minha pesquisa, e referiam-se a fenômenos importantes em

minha análise, não pude deixar de me atentar para os sentidos que os agentes tentavam

transferir por meio de suas metáforas.

Enquanto os fundamentos da teoria fundamentada perpassam toda a análise, a análise

retórica e, mais especificamente, a análise de metáforas, foi utilizada em pontos mais

específicos da análise, nos quais se mostram úteis. Nesse sentido, ao início de cada um dos

capítulos teórico-empíricos que se seguem buscarei explicitar as técnicas de análise de dados

que os embasaram.

3.3 Do Asfalto para o Morro: Desaprendendo o que são as Favelas

A relação de proximidade distante que estabeleci com as favelas ao longo de minha

vida de moradora do asfalto, não obstante fosse uma relação de vizinhança, sempre me

concedeu distância suficiente para inventar a minha favela, ou aderir à favela inventada e

Page 52: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

51

compartilhada pelos demais moradores do asfalto. Portanto, subi o morro com uma bagagem

pesada, cheia de estigmas e estereótipos que davam os contornos da favela que inventei.

Ainda indecisa sobre meu objeto de investigação na tese de doutorado, no início de

2011, aceitei ao convite de um amigo e fui conhecer uma favela localizada na zona Sul do Rio

de Janeiro. Fomos ajudar na mudança de uma senhora, fundadora e responsável por uma

Organização Não-Governamental (ONG) que ensina música às crianças da favela. Em

decorrência do aumento do preço dos aluguéis, que se desencadeou após a “pacificação”, ela

se viu obrigada a mudar para uma casa menor, para a laje da casa de outra moradora.

O meu primeiro contato implicou, decididamente, uma sensação de estranhamento. Da

minha parte, eu não conseguia entender como tantas pessoas viviam em tão pouco espaço,

nem como aquelas casas podiam se sustentar tão bem em cima umas das outras. Eles

pareciam pressupor que por eu ser branca, de olhos e cabelos claros, não falava português.

Eles não eram todos pobres, sem estudo ou bandidos. Eu não era uma gringa que não falava

português. Algumas bagagens tiveram que ser deixadas no asfalto. Eu precisava estar mais

leve para voltar a subir o morro.

Hoje entendo que a minha sensação de estranhamento, que em parte ainda se mantém,

se deu, principalmente, porque naquele momento o que eu subia era a minha favela inventada.

Aos poucos, reduzindo a bagagem, pude perceber que as coisas são muito mais heterogêneas,

e que existem diferenças importantes não só entre diferentes favelas, mas dentro de uma única

favela, e coisas bastante semelhantes entre favelas e outras partes da cidade. Pude também me

dar conta de que eu pareço gringa em qualquer lugar da cidade, mas que isso se acentua

quando estou em pontos que costumam receber turistas com maior frequência, seja na favela

“pacificada” ou no pão-de-açúcar (embora o último eu não costume visitar).

Sobretudo, a relação de proximidade distante, que na minha visita à favela revelou-se

mais claramente, deixou-me intrigada. E a sensação de estranhamento me causava um prazer

inenarrável, semelhante ao de uma viagem para um país culturalmente distante, com a

diferença de que desta vez eu estava bem perto de casa. Depois de outras visitas informais,

que voltaram a me revelar essa relação e essa incrível sensação, decidi estudar favelas. Mas

entendi que para isso era preciso passar por um longo processo de desaprendizagem, era

preciso desconstruir a favela que inventei. Quanto mais estreitos foram se tornando os meus

laços com as favelas, mais a palavra “favela” foi perdendo seus sentidos, e hoje já me

questiono até mesmo sobre sua razão de ser.

Page 53: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

52

Meu processo de desaprendizagem me levou à conclusão - talvez temporária - de que

o único elemento comum a todas as favelas, que pode ser apontado com certeza e segurança, é

o nome “favela” que todas assumem para si. Mas as palavras não aparecem

desacompanhadas. Carregam com elas os seus sentidos mais diversos. E, assim, os

estereótipos que historicamente foram atribuídos à palavra “favela” atrelam-se a esses

territórios - territórios de pobreza, territórios de sujeira, territórios da malandragem, territórios

de violência.

3.3.1 As Favelas e os Agentes do Campo Burocrático do Estado

O trabalho de campo aqui descrito foi desenvolvido em duas favelas cariocas, uma na

zona sul e outra na zona norte. A zona sul do Rio de Janeiro é destacada como a região mais

rica da cidade, principal zona de residência da elite carioca. A zona norte, por sua vez,

destaca-se como uma região mais pobre, com um custo de vida mais baixo. Com vistas a

controlar possíveis interferências desta diferença social entre as regiões da cidade, optei por

me inserir em favelas em regiões diferentes. Inicialmente acreditava que seria importante

acompanhar favelas nas diferentes regiões, porque tinha a crença de que favelas da zona Sul

eram diferentes de favelas da zona Norte. Aos poucos percebi que cada favela é muito

particular, e que estas diferenças vão além de uma simples separação entre zona Sul e zona

Norte. Entretanto, minha escolha inicial acabou assumindo um novo sentindo. Percebi que os

próprios agentes do campo burocrático do Estado adotam como premissa que favelas de zonas

diferentes da cidade são diferentes entre si, e por isso tais favelas parecem receber tratamentos

diferenciados, intensificação suas ações nas favelas da zona Sul.

3.3.1.1 A Favela da Zona Sul

A favela com a qual estabeleci meu primeiro contato foi, naturalmente, a favela que

comecei a pesquisar. Localizada na zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, essa favela tem bem

delimitada sua separação do asfalto, e é bem fácil perceber o momento em que se dá o

primeiro passo para dentro do morro. Como está entre dois bairros nobres da cidade, o

contraste entre morro e asfalto torna-se especialmente acentuado.

A favela em questão é na verdade um conjunto de favelas composto por duas favelas

distintas que compartilham o mesmo morro e a mesma UPP. O número de moradores ainda

não é um consenso. Embora as autoridades afirmem que ali há um total de 10 mil habitantes,

os moradores discordam, e apontam que só nos registros do posto de saúde há mais de 20 mil.

Provavelmente em decorrência de sua visibilidade e da “boa” localização, a favela tem como

Page 54: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

53

característica de destaque a enxurrada de projetos sociais que oferecem serviços ali – mais de

60 organizações estão ali com este fim. Os projetos ou organizações oferecem atividades

muito variadas como aulas de luta, ballet, música, natação, circo, dentre outras. Também em

decorrência de sua localização, há grande circulação de pessoas do asfalto, dentre turistas,

pesquisadores ou voluntários das ONGs. Esse fluxo acentuado pode ser uma explicação para a

desconfiança que os moradores apresentam com pessoas de “fora”, especialmente com a

figura do pesquisador. Olham com desconfiança para quem tira fotografias e reclamam de

serem com frequência tratados “como macacos no zoológico”.

Como já havia estabelecido ali alguns contatos, foi fácil marcar as primeiras

entrevistas com alguns moradores, ainda em 2011, para levantar informações iniciais. Mas o

desenvolvimento das entrevistas, naquele primeiro momento, mostrou-se penoso, e percebi

que muitas dificuldades ainda precisavam ser superadas.

Embora eu e os entrevistados falássemos a mesma língua, a comunicação em si era

muito difícil. Percebi que eu usava um vocabulário muito “acadêmico”, e que muitas vezes

minhas perguntas eram incompreensíveis, não importava o quanto eu tentasse repeti-las e

explicá-las. Por outro lado, o vocabulário do local era, algumas vezes, incompreensível para

mim. Como lembra Cardoso de Oliveira (1996), a maior dificuldade da entrevista está,

possivelmente, em uma diferença entre “idiomas culturais”, que decorrem da diferença entre o

mundo do pesquisador e do nativo. Essa dificuldade revelou-se para mim.

Também se despontou, logo de início, uma agressividade muito grande diante da

figura do pesquisador. No caso mais representativo desta questão, uma entrevistada me

perguntou o que ela ia “ganhar com isso”, e afirmou, de forma incisiva, que não aguentava

mais “ser pesquisada”. Respondi, com minha ingenuidade de costume, que os resultados da

minha pesquisa poderiam contribuir para as discussões em torno da questão das favelas e das

intervenções estatais em favelas. Ela riu e me disse que eu não era nem a primeira nem a

última pesquisadora a passar por ali, e que minha pesquisa só ia servir para me dar um título

de doutora e, portanto, só traria benefícios para mim.

Aquela fala, severa e convicta, me fez repensar a pesquisa, mas não abalou minhas

crenças na relevância de meus resultados – afinal, eu também tenho minhas próprias

convicções. Conclui que as entrevistas não eram a melhor estratégia para entrar no campo.

Primeiro era preciso me inserir, aprender a linguagem, aprender sobre as relações, e depois

disso as entrevistas poderiam se tornar naturais e até secundárias. Faltava-me, ainda, o

“anthropological blues” (DA MATTA, 1978).

Page 55: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

54

Em janeiro de 2013, com meu objetivo melhor delimitado, voltei a me inserir no

campo, com uma nova estratégia. Passei a fazer algumas visitas àquela primeira senhora que

ajudei a se mudar. Paralelamente, estabeleci contato com estudantes de uma organização, sem

fins lucrativos, que auxilia projetos sociais em favelas por meio de ações de

empreendedorismos. O grupo estava inserido na favela que eu estava a pesquisar, e passei a

acompanhá-los em algumas visitas. Por meio deles também fui me aproximando de outros

moradores. Fui, aos poucos, criando uma rede de contatos.

Mas o meu interesse maior de pesquisa estava nos agentes do campo burocrático do

Estado inseridos na favela, e foi por meio dos meus contatos com moradores ou trabalhadores

locais que busquei identificá-los e estabelecer contatos, com vistas a acompanhar o trabalho

que realizavam ali. Talvez os mais óbvios, os policiais da UPP foram desde o início

acompanhados em meu trabalho, tendo em vista que os policiais de rua estavam por toda a

parte e sua relação com os moradores sempre pode ser observada. Fui informada por

moradores que o comandante daquela unidade havia sido recentemente alterado, e que por

isso a UPP local estava passando por uma reorganização interna. Aguardei esse primeiro

momento de reestruturação para estabelecer o contato com o novo comandante, que ainda não

havia se apresentado aos moradores.

Por meio dos alunos da organização estudantil e de moradores que atuavam em ONGs,

fui convidada a participar de um evento na favela da Rocinha, organizado pelo programa

Territórios da Paz, programa social vinculado à Secretaria de Assistência Social e Direitos

Humanos (SASDH), de nível estadual, que tem por objetivo criar redes nos territórios em que

atua, a partir do protagonismo dos moradores neste processo. Para tal, o programa contava

com um gestor e um assistente em quase todas as favelas pacificadas. Esse evento se mostrou

de extrema importância para o desenrolar da pesquisa.

Lá conheci a gestora do Territórios da Paz da favela da zona Sul. Apresentei-me para

ela e para o superintendente do programa. Expliquei a minha pesquisa e pedi permissão para

acompanhar o trabalho. Os dois se mostraram muito dispostos a ajudar. A gestora local

passou a me informar das atividades que desenvolvia na favela, e comecei a ser convidada

com muita frequência a participar. Embora não tenha tido resistência em me deixar

acompanhar seu trabalho, inicialmente foi muito cuidadosa com o que falava na minha

presença e lembrava sempre a todos, em tom de brincadeira, que eu era uma pesquisadora.

Com o tempo, consegui criar uma forte relação de confiança, e ela passou a ser uma das

minhas principais informantes no campo.

Page 56: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

55

Ainda no mês de janeiro, alguns moradores me avisaram que havia sido convocada a

primeira reunião da UPP sob novo comando e me chamaram para participar. Nessa reunião, o

novo comandante pretendia se apresentar aos moradores. Cheguei mais cedo, para me

apresentar ao comandante, mas ele ainda não havia chegado. Apresentei-me ao sub-

comandante, que já estava no local, e este se mostrou muito receptivo e se disponibilizou a me

apresentar todo o prédio da UPP. Ele deu início à reunião sem a presença do comandante, que

só se apresentou no meio do encontro. Ao final da reunião, quando o comandante já estava

presente, me apresentei, expliquei minha pesquisa e falei do meu interesse em acompanhá-los.

Ele concordou sem resistência, me deu seu e-mail e o número do seu celular, e me apresentou

à soldado responsável pelas relações públicas da UPP, pedindo que ela me desse a assistência

necessária. A partir daí passei a ser informada por e-mail sobre todos os eventos e reuniões

realizados pela UPP. No início o sub-comandante não me autorizava à gravar as reuniões.

Depois de alguns meses, acostumado com a minha presença, passou a autorizar a gravação.

Pude perceber que uma relação de confiança foi sendo estabelecida.

Além de participar de eventos e reuniões, solicitei que me deixassem passar alguns

dias de trabalho com eles, para realizar observação. Embora tenham concordado com a minha

solicitação, nunca chegaram a formalizar uma visita apenas com o intuito de observação, se

não houvesse nenhuma atividade formal sendo realizada, como reuniões, UPP Mirim ou

Caravana da Saúde. Percebi que se sentiam mais confortáveis com entrevistas e que o objetivo

destas era sempre melhor compreendido. Assim, comecei a agendar algumas entrevistas, com

o intuito de ir até o local, mas estas acabaram sempre se seguindo por longos períodos de

observação a partir do meu envolvimento em alguma atividade.

De início os moradores também mencionavam com frequência a atuação da UPP

Social, mas nunca souberam me dizer exatamente em que atividades seus gestores estavam

envolvidos. A UPP Social é um programa social que entrou após a “pacificação”, e tem como

proposta integrar as áreas “pacificadas” ao restante da cidade. É vinculado ao Instituto Pereira

Passos (IPP), de nível municipal. Uma moradora que se declarou amiga da gestora da UPP

Social no local, me passou o seu contato. Conversamos, e ela insistiu que eu entrasse em

contato com um setor responsável por autorizar a realização de pesquisas, pois só eles

poderiam autorizar que eu acompanhasse seu trabalho. Mandei e-mail e, inicialmente, não

obtive retorno. Liguei algumas vezes, mas não encontrei o responsável. No mês seguinte

recebi a notícia, por meio de moradores, de que a UPP social estava saindo do campo, e

surgiram rumores de que o programa tinha chegado ao fim. Não obstante as informações

Page 57: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

56

fornecidas pelos moradores, insisti em meu contato com a UPP social. O funcionário

responsável por autorizar a pesquisa respondeu ao meu e-mail informando que não estava

mais vinculado ao programa. Consegui falar, por telefone, com outra funcionária, que

informou que ela agora era a responsável por autorizar as pesquisas, mas que eu precisaria

aguardar, pois o programa passava por uma fase de reformulação. Informou-me que a gestora

na favela de meu interesse tinha saído do programa e que em breve entraria outra em seu

lugar.

Quase um mês depois, participei de uma reunião no IPP com uma funcionária da UPP

Social para quem expliquei novamente a minha pesquisa e minhas intenções de realizar

observações e entrevistas. Ela me forneceu uma entrevista inicial para uma compreensão geral

do programa. Retornou-me informando que eu poderia acompanhar os gestores em campo, e

agendou uma primeira reunião com os quatro representantes do programa – dois responsáveis

pela favela da zona Sul e dois responsáveis pela favela da zona Norte. A partir daí, os gestores

começaram a me inserir em suas atividades em campo, convidando-me para acompanha-las.

Foi uma surpresa quando percebi que a UPP Social, de tamanho destaque na mídia,

não tinha tanto destaque no campo, a ponto do próprio comandante da UPP compará-la com

uma “cabeça de bacalhau”. Embora na mídia e na literatura a UPP social apareça como um

programa relacionado à UPP, ela não tem nenhuma ligação formal com a UPP em si e na

prática o comandante da UPP nem mesmo conhecia a gestora da UPP social. Além disso, é

importante ressaltar que os moradores queixavam-se com frequência da ausência da UPP

Social, mas não sabiam explicar o porquê de seu afastamento. Após o retorno oficial do

programa às favelas, estas queixas foram amenizadas, embora os moradores ainda se

questionassem a respeito do papel da UPP Social nas favelas.

Os moradores também me apontaram a presença de um outro agente importante: o

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PAC, de âmbito federal, está voltado para

a realização de obras de infraestrutura urbana, social e logística. Embora o PAC já estivesse

atuante antes da pacificação, os representantes do programa relatavam que suas ações foram

facilitadas com a instalação da UPP na medida em que passaram a circular com maior

liberdade pela favela, sem a necessidade de crachás de identificação ou de serem

acompanhados por moradores. Na favela investigada, o programa se dividia em duas frentes:

uma frente social, gerenciada por uma empresa privada selecionada por meio de um processo

de licitação, e uma frente de obras, gerenciada por uma empreiteira que também passou por

Page 58: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

57

um processo de licitação. Além disso, havia dois agentes do governo, um referente à frente de

obras e outro referente à frente social, que supervisionam todo o trabalho no campo.

Um morador, responsável por uma organização de sociedade civil voltada para o

problema do lixo, me informou que trabalhava em parceria com o PAC, realizando mutirões

de limpeza, e me passou o contato do responsável pela frente social do programa. Consegui,

rapidamente, fazer o contato. O gestor foi muito receptivo, passou a me informar de todas as

reuniões do programa, e me explicou, detalhadamente, todo o seu funcionamento. Passei a

acompanhá-los de perto, sem maiores dificuldades. Entretanto, em junho, a empreiteira

licitada, responsável pela frente de obra, pediu o desligamento do programa, e as obras, assim

como o trabalho da frente social, foram paralisadas. Quando saí de campo, ainda estavam

aguardando a entrada de uma nova empreiteira no campo e a entrega de apartamentos sofreu

grande atraso, ainda que algumas Áreas de Reassentamento (AR) já estivessem prontas, o que

foi motivo frequente de reclamação dos moradores.

Vale ressaltar que, embora com menor frequência, também acompanhei o trabalho de

outros agentes do campo burocrático do Estado inseridos na favela que têm uma relação

menos frequente com os moradores em geral, como os representantes do Centro de Referência

de Assistência Social (CRAS) ou do Centro de Referência da Juventude (CRJ). Algumas

vezes tive a oportunidade de acompanhar eventos ou cursos oferecidos por essas

organizações. Entretanto, o CRAS foi apontado pelos moradores como um órgão quase sem

função. Uma evidência da baixa interação entre os representantes do CRAS e os moradores é

o fato de ter sido recentemente criado, por um grupo de adolescentes moradoras da favela, um

programa com o objetivo de auxiliar egressos do tráfico. O CRAS tem um programa com o

mesmo objetivo, que nunca recebeu nenhum egresso. As adolescentes já estão trabalhando

com três destes jovens, em poucos meses de atuação, e ficaram surpresas ao saber que o

CRAS também oferece esse auxílio. Ainda assim, consegui, por meio de um pedido de

autorização formal na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SDS), acompanhar

mais de perto algumas ações do CRAS e realizar entrevistas com alguns de seus funcionários.

O CRJ, por sua vez, atendia a um grupo restrito de jovens. Participei de um novo

programa voltado para jovens, organizado por moradores de uma outra favela também da

zona sul, que está entrando na favela que pesquisava por meio de uma parceria com o CRJ e

com o Territórios da Paz. Este programa tem um potencial para ampliar o número de jovens

que frequentam o CRJ.

Page 59: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

58

Como os diversos agentes do campo burocrático do Estado também costumavam

interagir entre si, participar de eventos e reuniões uns dos outros, e até realizar eventos em

parceria, mesmo que eu não acompanhasse com a mesma frequência todos os agentes,

acabava também interagindo com eles. Além disso, algumas vezes tive contato, por meio dos

moradores, com agentes como representantes da Light, da Comlurb ou da CEDAE, mas a

interação entre os moradores e os agentes representantes destas organizações era restrita,

embora os moradores, muitas vezes, buscassem representantes em cargos superiores para

fazer reclamações ou estabelecer parcerias. Em geral, eles não eram bem sucedidos.

As características dos principais agentes do campo burocrático do Estado, com os

quais tive mais interação e os quais se mostravam mais presentes nas favelas, e que portanto

também foram mais explorados em minhas análises de dados, estão sintetizadas na Tabela 4 a

seguir.

Tabela 4. Características dos principais agentes do campo burocrático do estado em ação nas favelas

Nome do Programa Vínculo Institucional Objetivo5

Unidade de Polícia Pacificadora Secretaria Estadual de

Segurança Pública (Estadual)

Retomar dos territórios das

favelas

Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC)

Ministério do Planejamento

(Federal)

Ampliar a infraestrutura das

favelas

UPP Social Instituto Pereira Passos - IPP

(Municipal)

Encaminhar demandas dos

moradores de favelas a outros

órgãos públicos

Territórios da Paz

Secretaria Estadual de

Assistência Social e Direitos

Humanos – SEASDH

(Estadual)

Fortalecer redes

Centro de Referência de

Assistência Social (CRAS)

Secretaria Municipal de

Desenvolvimento Social – SDS

(Municipal)

Antecipar demandas;

Possibilitar o acesso a

benefícios.

3.3.1.2 A Favela da Zona Norte

A favela na Zona Norte do Rio de Janeiro, que acabou por também se tornar meu

campo de pesquisa, é localizada em um bairro onde moram classes mais baixas, e por isso o

5 Os objetivos apontados nesta tabela estão baseados nos objetivos declarados pelos representantes dos programas entrevistados ao longo da pesquisa.

Page 60: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

59

contraste entre morro e asfalto não é tão acentuado aqui. É difícil perceber o exato momento

em que se está adentrando a favela, pois as casas localizadas em suas proximidades, também

são, em geral, habitadas por pessoas de classes sociais mais baixas.

A favela da Zona Norte é, oficialmente, considerada parte de um complexo de favelas,

embora muitos moradores relutem em aceitar esta definição. O complexo é composto por 7

favelas com um total de 30 mil habitantes, e a favela específica que é o foco de estudo aqui

possui em torno de 7 mil habitantes, segundo informações de uma gestora local. Os dados

oficiais mais uma vez são outros – em torno de 2.000 na favela em questão e 10 mil no total.

Esta favela não é considerada uma favela de grande visibilidade, e fui recebida com

estranheza quando disse que estava realizando minha pesquisa lá. Moradores e gestores me

questionaram inúmeras vezes “por que você escolheu fazer sua pesquisa aqui?”. A circulação

de pessoas externas lá ocorre muito pouco: raramente recebe turistas, pesquisadores não se

interessam em estudá-la, e, oficialmente, não há nenhuma ONG no local, embora alguns

gestores afirmem ter no máximo duas, não muito reconhecidas enquanto ONGs. Ouvi relatos

de que algumas ONGs tentaram atuar lá, mas não conseguiram apoio financeiro e tiveram que

sair.

Foi também no evento realizado na Rocinha que conheci uma moradora desta favela

da zona norte. Ela fazia um trabalho em sua favela para conscientizar a população local a

respeito do problema do lixo, contando-os sobre a história do rio que corta o morro. Além

disso, em parceria com um professor universitário, ela estava organizando um eco-museu na

favela. Ela me convidou para fazer uma visita na favela onde mora e conhecer o seu projeto.

Fiz a minha primeira visita e fiquei encantada com o lugar. A moradora que conheci

na Rocinha me levou para conhecer toda a favela, e foi me contando a história do rio

enquanto caminhávamos. As casas eram maiores, assim como as ruas, e havia áreas florestais

ao redor. Lá as pessoas pareciam mais receptivas com pesquisadores, com os quais ainda não

haviam tido muito contato. Quando contava aos moradores que estava lá com propósito de

pesquisa, alguns prontamente se ofereciam para me conceder entrevistas. Foi possível,

inclusive, tirar fotos sem problemas. Os moradores pareciam até gostar.

Quando perguntei a alguns moradores sobre representantes do Estado que atuavam ali,

eles me informaram ter contato apenas com a UPP, com a gestora do Territórios da Paz e com

os representantes da UPP Social, mas não souberam me passar os contatos. Com a gestora do

Territórios da Paz da favela da zona sul consegui o contato da gestora do programa na nova

favela em que tentava me inserir. Ela marcou uma reunião comigo na SEASDH, onde

Page 61: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

60

conversamos sobre a minha pesquisa e sobre o seu trabalho. Ela me passou muitas

informações sobre a favela, mas se mostrou surpresa por tê-la escolhido para estudar. A partir

daí passei a acompanhar de perto seu trabalho, e ela me informava sobre todas as suas

atividades. Também se tornou uma informante chave sobre a favela em questão.

Fui avisada por uma moradora que ocorreria uma reunião, chamada “Café

Comunitário”, que acontecia toda última terça-feira do mês na UPP local. Compareci à

reunião e me apresentei ao comandante, que era o mesmo desde a implantação da UPP. Ele

me contou que também era acadêmico e que realizava pesquisas naquela favela também.

Autorizou-me a realizar a pesquisa e me apresentou para a soldado responsável pelas relações

públicas da UPP. A soldado também foi muito solícita em me ajudar e passou a me fornecer

todas as informações necessárias. Eles me deram, desde o início, autorização para gravar as

reuniões e me permitiam frequentar à UPP, ainda que fosse apenas com o propósito de

observação.

No “Café Comunitário” conheci a gestora da UPP Social daquela favela. Da mesma

forma que na favela da zona Sul, pedi autorização para acompanhar o trabalho no campo para

a responsável no IPP, e tratamos do assunto na mesma reunião realizada no IPP. Embora

também lá eu tenha sido informada que a UPP social passava por reformulações, a gestora

local foi alterada um pouco depois.

Em ocasião de uma caminhada ecológica realizada na comemoração do aniversário da

favela, passamos por algumas regiões, bem no topo do morro, onde algumas obras estavam

acontecendo. Os moradores que me acompanhavam informaram que eram obras do Cimento

Social, programa criado pelo Senador Marcelo Crivella e incorporado à prefeitura do Rio de

Janeiro, que realizava reforma de casas e remoções e reconstruções de casas que antes

estavam em áreas de risco. Os moradores relataram alguns confrontos entre os representantes

do programa e os moradores cujas casas foram marcadas para remoção. O contato dos

representantes do Cimento Social com os moradores se dava apenas nos casos em que era

necessário ocorrer a remoção. Eu tive a oportunidade de acompanhar algumas reuniões dos

moradores que tiveram as suas casas removidas pelo programa.

Também aqui tive contato com representantes do Centro de Referência de Assistência

Social (CRAS), que costumavam realizar parcerias com outros agentes que acompanhei em

minha pesquisa, como a UPP ou o Territórios da Paz. Neste caso, também foi necessário o

pedido de autorização para a SDS. Os representantes do CRAS nesta favela pareciam ser mais

Page 62: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

61

atuantes, talvez pelo menor número de agentes do Estado nesta favela, e por isso com eles tive

um contato mais próximo.

A Comlurb, neste caso, recebe destaque por possuir uma relação conflituosa com os

moradores, e por isso tive um contato mais frequente. O problema do lixo era fonte de

constantes reclamações dos moradores, que entravam em contato com frequência com a

Comlurb para fazer reclamações ou para auxiliá-los em mutirões de limpeza organizados por

eles mesmos.

O contato entre os moradores e representantes da Light ou da CEDAE era bem

restrito. A favela não era abastecida pela CEDAE, pois seus representantes afirmavam que

não era possível abastecer o morro devido à inclinação. Os moradores, portanto, criaram seu

sistema próprio de distribuição de água. Embora solicitassem o contato com representantes

destas organizações para reclamações, em geral não recebiam retorno.

3.3.2 A Inserção no Campo

Como lembra Cardoso de Oliveira (1996), na observação participante é necessário que

o pesquisador consiga viabilizar a sua aceitação no campo, de modo a facilitar sua interação.

Ainda que se saiba que o pesquisador nunca se tornará exatamente igual aos nativos

(WHYTE, 2005), é preciso ser aceito e estabelecer boas relações.

Embora o processo de negociação para entrada no campo seja em geral descrito na

literatura como um processo demorado (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996), o meu processo

de negociação com os agentes que pretendia acompanhar, em geral, se deu de forma rápida,

facilidade que atribuo ao fato de se tratarem de agentes públicos, em um momento em que se

evoca maior transparência do Estado. Muitas vezes recebi como resposta à minha solicitação

de pesquisa: “Sou um representante do Estado, tenho que dar liberdade para quem quiser

acompanhar o meu trabalho”. E nem sempre foi preciso recorrer a um superior com um

pedido formal de autorização (pedidos formais de autorização foram necessários apenas nos

casos do CRAS e da UPP Social).

Cabe ressaltar, entretanto, que embora no âmbito formal esse processo tenha sido

facilitado, na prática foi preciso um tempo para que alguns dos agentes deixassem de “temer”

a minha presença. Principalmente no período inicial, percebi claramente que alguns dos

agentes evitavam falar certas coisas na minha frente ou, quando deixavam escapar, em um

momento de distração, logo me alertavam “não coloca isso na sua tese não!”.

Aos poucos uma relação de confiança foi sendo construída, e as coisas passaram a ser

ditas com um cuidado menor. Em uma das reuniões da UPP, em que eu estava gravando, o

Page 63: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

62

sub-comandante fez uma piada e chamaram sua atenção: “Tenente, a Vanessa está

gravando!”. Ele respondeu, rindo, “não tem problema, eu confio nela”. Uma gestora do

Territórios da Paz declarou diretamente: “sou uma pessoa muito intuitiva, e minha intuição

me diz para confiar em você”. A partir daí, até mesmo confissões de sua vida pessoal

passaram a ser compartilhadas comigo.

Com o tempo, alguns acontecimentos começaram a me apontar que eu estava

conquistando minha aceitação no campo. Alguns moradores começaram a me ligar para avisar

sobre eventos que iriam acontecer. Ou quando me encontravam falavam de imediato “vai ter

uma reunião na semana que vem que você não pode perder!”. Convites para atividades

sociais, para além dos meus objetivos de pesquisa, como “tomar uma cerveja”, também

passaram a ser frequentes.

Na favela da zona Norte, fui convidada a participar ativamente da construção do Eco-

museu, e a dar aulas em um curso que seria ministrado para os moradores. Fui, ainda,

convidada, com direito a acompanhante, para o baile de debutantes que os representantes da

UPP estavam organizando para se aproximar dos jovens da favela, e ajudei, com frequência,

nos preparativos para a festa. Na favela da zona Sul, também recebi um convite para auxiliar

em um curso a ser ministrado para os policiais e um pedido de representar uma gestora do

Estado em um evento na favela em que ela não poderia estar presente.

Aos poucos minhas diferenças deixaram de ser tão acentuadas. Em uma ocasião, uma

moradora me relatou que uma turista havia sido confrontada pelos “meninos” do tráfico, e

atribuiu parcialmente a culpa do acontecimento à forma como ela estava vestida, claramente

como alguém de “fora”. E em seguida completou, apontando para a minha roupa: “essas

pessoas não se vestem assim como a gente, de calça jeans e All Star”. Nesse momento percebi

que estávamos vestidas de forma muito similar e que ela não estava mais me comparando a

uma pessoa de “fora”. Mas o acontecimento talvez mais emblemático ocorreu quando uma

gestora me chamou a atenção, durante uma conversa: “Não use esse vocabulário na frente dos

policiais! Você está usando expressões cunhadas pelo tráfico!”.

As dificuldades passaram a girar em torno de gerenciar as relações criadas, que muitas

vezes envolviam desavenças entre os diversos grupos com os quais criei laços. Depois de me

inserir em grupos diferenciados, passei a compartilhar das dificuldades relatadas por Whyte

(2005) de conciliar interesses e conflitos no campo. Fui aprendendo a circular, seguindo uma

regra fundamental da observação participante: evitando influenciar ativamente os eventos

(WHYTE, 2005).

Page 64: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

63

Senti que com o tempo consegui criar boas relações no campo, e meu trabalho foi

facilitado por isso. Os meus próprios sentimentos, de afeição e de carinho, de saudade quando

não os via, e a alegria de estar ali, mostraram-me que eu também aceitei o meu campo como

parte importante da minha vida, mesmo com as diferenças que ainda se mantinham.

Tendo em vista os fortes vínculos que estabeleci com moradores e com agentes do

Estado nas favelas, o processo de saída de campo mostrou-se muito mais difícil do que o

esperado. Em um ano de pesquisa, já possuía uma grande quantidade de dados, e em minhas

conversas com pesquisadores mais experientes sempre ouvia conselhos no sentido de sair do

campo. Pensar em deixar de frequentar as favelas me trazia tamanha angústia, que acabei

estendendo a minha pesquisa por mais quatro meses além dos 12 meses inicialmente

planejados. Pressionada por prazos e pela grande quantidade de dados, após 1 ano e 4 meses

de pesquisa de campo, finalmente, aceitei a minha saída e retornei, de vez, do morro ao

asfalto.

Page 65: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

64

4 SOBRE CAMPOS DE PODER: REINTERPRETANDO ESTADO E FAVELAS

Era uma noite de quarta-feira, quando adentrei o teatro localizado na favela da zona

Sul. Naquele dia, a minha ida à campo foi motivada por um evento específico: uma audiência

pública convocada com o propósito de discutir problemas da comunidade. Representantes dos

mais diversos órgãos públicos mostraram-se presentes e compuseram a mesa que daria início

à discussão. A maioria dos rostos ansiosos em cima do palco já me era familiar de minha

rotina na favela e pertenciam a pessoas que trabalhavam ali. Contrariando o meu pressuposto

inicial de que em favelas não há Estado, àquela altura já não era mais possível negar que o

Estado estava presente nas favelas, de forma concreta e objetiva, representado pelas figuras

daquelas pessoas que se acomodavam no palco. Com o início do debate, o clima começou a

“esquentar”, e os moradores que tiveram a oportunidade de falar ao microfone gritavam as

mais diversas queixas e em voz alta tentavam se fazer ouvir. Suas reclamações não eram

simples caprichos. Tratava-se de questões básicas, de condições básicas de vida, que iam

desde falta de luz, à água contaminada por fezes. Diante do espetáculo, não pude deixar de me

questionar: se o Estado está presente na favela, por que demandas tão básicas ainda não foram

atendidas?

Um olhar retrospectivo para os meses de pesquisa de campo que já haviam ficado para

trás me fez notar que foi aquela a ocasião em que mais me aproximei do encontro de uma

entidade, grupo ou organização a qual poderia denominar de Estado: o grupo de pessoas em

cima do palco. Pela primeira vez em campo, pude respirar aliviada, direcionar o meu olhar

para um único lugar e dizer, com certa tranquilidade, que estava observando o Estado na

favela. Quase todos estavam ali.

Entretanto, este foi um momento atípico. Desde que entrei na favela, com o objetivo

de acompanhar as ações do Estado, vivi uma angústia constante. O Estado estava em muitos

lugares ao mesmo tempo. E o meu olhar, único, não dava conta de observá-lo como um todo.

A agonia de ter que escolher para onde olhar acompanhou a minha trajetória em campo e

resultou em uma agenda complexa, em minutos contados, em difíceis decisões entre um

evento e outro, e em uma pesquisa de campo muito maior do que eu pude antecipar. Mas

acima de tudo, em uma frustração: a impossibilidade de encontrar uma unidade que pudesse

chamar de Estado, para a qual eu pudesse apontar e dizer com segurança “está ali o que eu

vim procurar”.

Em meu esforço de acompanhar cada um deles, em separado ou em parcerias, vi que

para além de uma discordância em termos de horários e locais de atuação, as pessoas que se

Page 66: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

65

apresentavam na favela como representantes do Estado discordavam em muitos outros

aspectos. Críticas diretas ou indiretas, disputas por recursos em geral, omissão de

informações, conflitos abertos ou velados, contrapunham-se a ações conjuntas,

compartilhamentos de recursos, de ideias ou de angústias, e até relações de amizades. As

relações que eu observava em campo me apontavam para o fato de que a entidade que eu vim

observar tratava-se, na verdade, de uma rede de relações entre posições: corroborando meus

pressupostos iniciais, o Estado parecia ser melhor descrito enquanto um campo de poder.

Antes de voltar-me a responder diretamente às minhas perguntas de pesquisa, tenho

como objetivo, neste capítulo, demonstrar como cheguei ao conceito de campo para retratar

teoricamente tanto Estado quanto favelas. As noções de campo burocrático do Estado e de

campo da favela darão suporte aos capítulos que se seguem e é com base nelas que me

proponho a responder às minhas questões de pesquisa. Para tal, este capítulo parte dos dados

coletados tanto por meio de entrevistas quanto por meio de observação, no que dizem respeito

a moradores e representantes do campo burocrático do Estado, e pautou-se na teoria

fundamentada como forma de análise de dados.

Começarei apresentando o Estado enquanto um campo de poder. Depois, mostrarei

como o campo burocrático do Estado também sofre influência e é interdependente do campo

político. Em seguida, discuto também as favelas enquanto campos.

4.1 Desconstruindo o Estado enquanto “Entidade”: Disputas e Cooperações entre Burocratas do Estado em Ação nas Favelas

O primeiro problema com o qual me deparei em minha pesquisa de tese dizia respeito

a como tratar teoricamente o Estado. Embora meus pressupostos teóricos já me aproximassem

da noção de campo, buscava me manter fiel aos dados, e procurei olhá-los de forma cuidadosa

para corroborar ou refutar empiricamente minha premissa teórica. Este problema passou a ser

analisado com mais detalhes após a minha entrada em campo. Os burocratas do Estado que eu

fui observar eram muitos, representavam esferas diferentes do governo, disputavam entre si,

mas também cooperavam. Uns tinham mais poder e legitimidade do que outros e pareciam

seguir uma lógica própria.

Disputas eram frequentes entre vários burocratas. Em geral, representantes da UPP

Social e do Territórios da Paz compareciam às mesmas reuniões. Em uma noite de terça feira,

saíamos de uma reunião comunitária na favela da zona Sul em que representantes de ambos os

programas estavam presentes. Os dois membros da UPP Social, como era de costume, saíram

Page 67: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

66

andando mais rápido na frente. Embora todos soubéssemos que estávamos descendo o morro

pelo mesmo lugar, e que íamos pegar o mesmo ônibus de volta para casa, eu e o representante

do Territórios da Paz fomos andando mais devagar, como quem mantém um distanciamento

intencional. Aquela dinâmica que sempre me incomodava, mas que permanecia velada,

naquele dia foi posta em palavras pelo membro do Territórios da Paz: “Olha lá! Eles sempre

fazem isso, sempre saem correndo na frente!” (Notas de Campo, 29/10/2013), falou em voz

baixa ao meu ouvido. Agora um pouco mais afastados dos sujeitos da nossa conversa, ele

continuou a reclamar, com um tom de voz um pouco mais alto, que os gestores da UPP Social

se afastam porque não gostam de compartilhar informações, acham que suas ideias serão

roubadas. Completou que os gestores do programa não são nada colaborativos, que são muito

competitivos com o Territórios da Paz.

A disputa entre os dois programas era acirrada. Embora nada fosse dito diretamente, e

houvesse uma relação de respeito mútuo entre os gestores dos programas, as reclamações nos

bastidores eram constantes. E aconteciam até mesmo disputas entre as demandas dos

moradores. Em uma reunião comunitária que tinha por objetivo a construção de projetos da

comunidade, os moradores pediram à UPP Social auxílio para digitar os seus projetos. A

reação ao ocorrido eu pude ouvir no dia seguinte: “Eles ficam lambendo o cu da UPP Social!”

(Notas de Campo, 15/10/2013), reclamou de forma exaltada um representante do Territórios

da Paz. E completou que a UPP Social acabou de chegar, e ainda não sabia de nada sobre a

comunidade.

A competição entre Territórios da Paz e UPP Social, programas que compartilham

tanto em comum e que teriam muitas oportunidades para atuar em parceria, embora bastante

emblemática, não era a única. Participei de uma reunião a respeito de um projeto com idosos

realizado a partir de uma parceria entre Territórios da Paz, prefeitura e CRAS, em que foi

planejado o próximo evento que fariam com os idosos de algumas favelas da zona norte: uma

série de palestras sobre idosos que voltavam a trabalhar. Este evento, particularmente, seria

coordenado pelo representante do CRAS presente na reunião. Na semana seguinte, ao

questionar sobre os preparativos para o evento, a gestora do Territórios da Paz me explicou,

meio sem jeito: a presidente do CRAS pediu que seu funcionário se retirasse do projeto,

porque acreditava que os demais programas estavam explorando “os idosos do CRAS”.

As relações se complexificavam ainda mais no que dizia respeito à figura da UPP, que

ocupava, para os demais representantes do Estado, seu lugar de “inimigo do povo”. E quem é

inimigo do povo é também inimigo do restante do Estado, como deixou claro um

Page 68: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

67

representante da Clínica da Família: “Com a UPP a gente nem fala, (...), quer distância da

UPP, porque se você é amigo da UPP, você é inimigo da comunidade. Porque, cara, não bate,

não rola, os caras estão aí. Mas não é..., a gente não fala nem bom dia para eles”.(

Representante da Clínica da Família 1, Favela da zona Sul). A UPP Social, por sua vez, lutava

para esconder qualquer possível grau de parentesco com a UPP que seu nome denuncia. Seus

representantes foram, aos poucos, criando estratégias: apresentam-se aos moradores como IPP

ou ONU Habitat, órgão por meio do qual foram contratados. Em conversa informal com um

dos gestores da UPP Social, este me relatou, em tom jocoso, que surgiu uma ideia no IPP de

que eles andassem uniformizados: “pra andar com o nome da UPP Social é mais fácil eles

colocarem logo um alvo na nossa camisa para as pessoas atirarem, né” (Notas de Campo,

21/09/2013).

Os policiais também não davam tratamento especial a quem era representante do

Estado, e chegavam a revista-los, ainda que uniformizados, revelando a ausência de relações

de confiança entre eles. Durante entrevista, um funcionário da UPP Social me relatou a

seguinte situação:

Entrevistado: Uma vez eu estava ajudando o pessoal da Rio Luz a carregar as lâmpadas e a

polícia revistou todo mundo, inclusive o pessoal da Rio Luz. (risos)

Vanessa: Revistou o pessoal da Rio Luz?

Entrevistado: revistou o pessoal da Rio Luz. Perguntou o que que a gente estava fazendo.

(risos) "Que que estão fazendo aí?" Nem respondi, né.

Vanessa: Mas aí foi, acabou sendo uma situação conflituosa, assim?

Entrevistado: Claro, pô, você está trabalhando, o cara manda você largar a coisa, encostar a

mão na parede e tal. Eu nem encostei a mão na parede, eu fiquei virado, virado eu fiquei.

Assim, não dei, só larguei a caixa, e o cara veio, eu levantei a mão assim. Mas os caras da

Rio Luz, botaram a mão na parede lá. Largaram aquela escada, pesada, botaram a mão na

parede (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).

E para concluir, comentou: “(...) é até bom porque tira totalmente a nossa visão,

entendeu, mas uma porrada de morador sendo revistado e a gente passando batido, entendeu.

A gente ri da situação depois, entendeu” (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).

As disputas traziam implicações diretas para a minha pesquisa de campo, e eu era

claramente afetada por aquele ambiente conflituoso. A simples escolha de onde sentar em

uma reunião em que vários burocratas do Estado estavam presentes era uma grande fonte de

tensão. Abraços calorosos recebidos em público, falas de gestores ou policiais em reuniões

que demonstravam algum grau de intimidade comigo, ou um simples “boa noite” direcionado

de um policial, me causavam constrangimento. Acompanhada dos gestores do Territórios da

Page 69: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

68

Paz cruzei com policiais conhecidos e fingi não os ver. Um dos gestores fez um comentário

em voz alta: “pra quê tanta arma?! Parece que estamos em guerra!” (Notas de Campo,

21/11/2013). Hesitei em concordar e dei um sorriso sem graça. O cumprimento aos policiais

ou a concordância com o gestor seriam sinais de posicionamento – afinal, eu estava do lado de

quem?

Tão frequentes quanto as disputas era a ausência de cooperação, mesmo em situações

em que a ajuda mútua era simples e bem vinda. Em incontáveis situações os funcionários do

PAC, que precisavam com frequência do suporte da Light ou da CEDAE em suas obras,

foram “deixados na mão”. A UPP Social que tinha como seu objetivo primeiro o

encaminhamento de demandas para outras secretarias chegou ao ponto de ter que se

reformular, em face de tamanha negligência dos órgãos acionados. E mesmo os representantes

do Estado que não são tão dependentes da cooperação dos demais tem a percepção de falta de

parceria, e reconhecem que isso atrapalha o trabalho: “é negativo também no sentido de que

as políticas não se conversam. As políticas não andam no mesmo ritmo” (Representante do

CRAS 4, Favela da zona Norte).

Os moradores, em seu convívio quase diário com os burocratas do Estado, sempre

tentando extrair deles melhorias para a sua comunidade, têm a compreensão de que o

individualismo dos representantes do Estado atrapalha a comunidade, e defendem que se

houvesse mais cooperação, não seria necessário tanto “Estado” dentro da favela. Este

reconhecimento foi expresso por uma frase muito repetida entre os moradores: “Eu acho que é

cada um por si e Deus por todos” (Morador 12, Favela da zona Norte). Conforme relata uma

moradora:

O Município e o Estado não se falam, continuam, no CRAS, a secretária de saúde não se

comunica com a assistência social e ocupa o mesmo espaço. Não se falam, são duas

secretárias, não.... Nada.... O Território da Paz detona a UPP Social, porque é Estado e

Município, entendeu? E o pessoal vai juntando pra poder, vão fazer, juntar forças e fazer,

eles também não facilitam a nossa vida, porque eles mesmos não se falam. Polícia civil e

polícia militar não se.... Não sei se já conversam, mas antes era disputa total. [...](Morador

10, Favela da zona Sul).

Mas também foram observadas relações de cooperação. As orientações iniciais aos

programas estão em geral direcionadas para o estabelecimento de parcerias, para que práticas

conjuntas aconteçam em campo. Ao ingressar nos territórios de favelas, os novos

representantes do Estado, em geral, apresentam-se aos demais e acreditam ser importante que

os outros representantes do Estado saibam que eles existem e o que eles estão fazendo ali.

Page 70: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

69

A importância da cooperação entre os diversos representantes do Estado é reconhecida

como fundamental para o sucesso de suas ações: “Porque não dá pra gente ‘fazer acontecer’

sozinhos” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul). E as orientações dos superiores

acabam se dando neste sentido: “teve uma determinada reunião em que a orientação ‘olha só,

precisa se aproximar do PAC e precisa se aproximar da UPP’”.

Entretanto, no dia a dia em campo, estas parcerias não são tão óbvias, e os

representantes reconhecem, que não obstante o esforço, as cooperações são exceção e não a

regra: “Mas é muito, muito pontual, sabe” (Representante da UPP Social 3, favela da zona

Sul).

As relações de cooperação com a UPP parecem ser as mais complicadas, ponto que

será discutido posteriormente nesta tese. Com o temor de terem suas imagens afetadas na

favela, os demais representantes do Estado evitam o contato, mas participam das reuniões

organizadas pela UPP para que se mantenham informados. E muitas vezes os policiais das

UPPs nem mesmo sabem quem são os demais burocratas do Estado presentes na favela.

É claro que neste caso também existem algumas exceções. O PAC, por exemplo, não

demonstra temor de se ver associado à UPP, e tem uma boa relação com os policiais: “a gente

está direto com a UPP, a gente pede muita ajuda a eles, a UPP também nos solicita,

trabalhamos juntos que nem irmãos, todo mundo filho do mesmo pai?!”( Representante do

PAC 3, Favela da zona Sul).

Outra exceção aparece na relação entre o Territórios da Paz da favela da zona Norte e

a UPP local. Ao longo do tempo os gestores e policiais foram construindo uma relação de

confiança e passaram a incluir em suas rotinas de trabalho ações conjuntas. A gestora do

Territórios da Paz local explicou como se deu este processo:

A gente [na favela da zona Norte] trabalha com a UPP, mas também foi uma coisa que

levou bastante tempo. Eu comecei a trabalhar [na favela da zona Norte] no começo de

2012, mas eu levei um bom tempo até fazer alguma parceria com eles, assim. Antes eu ia

aos conselhos comunitários, eu conversa com o [comandante], e tal, mas eu não fiz

nada.(...). Então já teve reunião que a gente fez, que eu falei para eles, eu não quero que

vocês vão, entendeu, não quero. Teve uma coisa que por quê? Eu achei que não ia ser

produtivo e aí depois já teve, a partir do momento que eu já tinha uma segurança maior no

trabalho dele, achava que não, que eles tinham objetivos que eu considerava interessantes e

que eu vi que eles tinham relacionamento com outras pessoas, também, que era positivo

com as lideranças, não tinha aquela coisa centralizadora de tentar meio que apagar as

lideranças, aí, sim, aí a gente foi começando a trabalhar com eles, (...). Mas esse, mas fora,

mas antes da gente ter essa segurança a gente não fazia nada, nossas coisas, nossos projetos,

Page 71: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

70

nossos projetos. Nossas reuniões, nossas reuniões, entendeu. É mais ou menos assim

(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).

Possíveis explicações para as exceções mencionadas serão discutidas posteriormente

neste capítulo. Mas as minhas observações iniciais já pareciam me apontar para o fato de que

o que eu observava era um campo de poder, era um Estado que, como retrata Bourdieu

(2014), não se podia tocar com o dedo.

4.2 Sobre o Estado enquanto Campo de Poder

A observação empírica serviu para me apontar para o conceito de campo como aquele

que melhor retrataria o Estado, pelo menos na situação investigada. Conforme explica

Bourdieu (2014), dentro do campo burocrático do Estado existem agentes com interesses

diversos, que por isso estão em constante luta. As lutas são intrínsecas ao campo burocrático

do Estado (BOURDIEU, 2014). Ou, como relatam Fligstein e McAdam (2012), os campos

são inerentemente conflituosos.

Ao observar um campo e, portanto, uma arena de disputas, vivenciei e ouvi relatos de

conflitos e competições entre os agentes com os quais buscava conviver, conforme

demonstrado anteriormente. Mas os campos não são dinâmicos apenas por suas disputas.

Competição e cooperação estão sempre na base da construção de todos os campos

(FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Portanto, no campo do Estado aqui em análise, algumas

práticas de cooperação também foram observadas.

Para retratar dinâmicas como a descrita acima, a noção de campo é utilizada nas mais

diversas áreas do conhecimento, e hoje pode-se encontrar pesquisas em sociologia, psicologia,

saúde, educação, tecnologia, dentre muitas outras, que se pautam no conceito. A ideia geral

por traz da noção de campo diz respeito a um espaço social, que contém nós ou posições, bem

como suas mútuas relações (MAZZA e PEDERSEN, 2004).

O conceito de campo aparece com uma frequência cada vez maior nas pesquisas da

área de estudos organizacionais (EMIRBAYER E JOHNSON, 2008), principalmente para se

pensar as relações de poder, dominação, classes, que estes campos representam (EVERETT,

2002). Intensamente difundido na área, o conceito de campo ganhou força, particularmente, a

partir da noção de campos organizacionais cunhada pela abordagem institucional, perspectiva

teórica que até hoje possui forte influência na área. DiMaggio e Powell (2005, p. 76), autores

de destaque dentro da abordagem institucional, definiram os campos organizacionais como

“aquelas organizações que, em conjunto, constituem uma área reconhecida da vida

Page 72: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

71

institucional: fornecedores-chave, consumidores de recursos e produtos, agências regulatórias

e outras organizações que produzam produtos ou serviços similares”.

A noção de campos organizacionais traz contribuições para os estudos das

organizações na medida em que inclui não apenas um tipo de organização, mas todas as

organizações relevantes para o fenômeno em análise (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008). Em

virtude de sua utilidade para a análise das organizações, o conceito de campo organizacional

ganhou grande apelo, a ponto de podermos dizer que foi dentro da abordagem institucional

que o conceito de campo foi mais utilizado e elaborado (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008).

Entretanto, conforme defendem Emirbayer e Johnson (2008), embora o conceito tenha

trazido fortes contribuições para a área, a utilidade da noção de campo conforme formulado

originalmente por Bourdieu (autor cujo pensamento influenciou fortemente a noção de

campos organizacionais da abordagem institucional) tem sido subutilizada quando aplicada

apenas ao nível dos campos organizacionais: “A truly unified field-based framework for

organizational analysis must bring the field-theoretic approach to bear, not only on the

analysis of clusters of organizations, but also on the analysis of the social configurations in

which organizational fields are themselves embedded” (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008, p.

3).

Favorável à utilização do conceito em estudos organizacionais, Swartz (2008), defende

que a perspectiva de campo de Bourdieu oferece à área ganhos conceituais muito maiores do

que as noções de contexto organizacional, ambiente ou população, com as quais os seus

pesquisadores estão habituados a trabalhar. Ao discutir as contribuições que tal conceito pode

trazer, o autor explica que a noção de campo ressalta, por exemplo, as dinâmicas de conflito,

que ficam em segundo plano em outras perspectivas teóricas. Segundo Swatz (2008), o

conceito ajuda, ainda, a explicitar o tipo e a qualidade das relações que se estabelecem,

indicando quem é dominado e quem é dominante, o que não ocorre a partir da noção de

populações ecológicas. O conceito engloba, também, conforme o autor, os laços concretos

entre agentes, também presente na análise de redes sociais, mas vai além, ao se atentar para

efeitos institucionais mais amplos, como o papel do capital simbólico. Em face das múltiplas

contribuições do conceito, Emirbayer e Johnson (2008) defendem que a noção de campo,

conforme proposta por Bourdieu, precisa ser reconhecida como um conceito crucial para a

análise de organizações, tendo em vista que estas precisam ser situadas em seu contexto

relacional, dentro da matriz de ralações que estabelecem.

Page 73: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

72

Indo ao encontro dos autores, me proponho aqui a trabalhar com a noção de campo,

conforme proposta por Pierre Bourdieu, para a análise do Estado nas favelas, como forma de

localizar as organizações que representam o Estado dentro do contexto relacional no qual são

constituídas e constituintes, assumindo que uma organização em ação também pode ser

compreendida enquanto um agente social coletivo, embora por vezes os agentes sociais do

campo burocrático do Estado também se apresentem na forma de agentes individuais, que

merecem relevo para as análises organizacionais, tendo em vista que compõem o contexto

relacional do campo.

O conceito de campo é definido por Bourdieu e Wacquant (2012, p. 134) “como una

red o una configuración de relaciones objetivas entre posiciones”. Os campos, assim

pensados, são relacionais, dinâmicos, contingenciais, em constante mudança, indicando a

necessidade de serem pensados relacionalmente ou dialeticamente (EVERETT, 2002).

O dinamismo que marca as estruturas do campo segue uma lógica própria. Cada

campo possui sua lógica específica que vai determinar o seu funcionamento particular

(BOURDIEU & WACQUANT, 2012). Marca-se, assim, que o campo deve ser pensado

“como um espaço estruturado com suas próprias regras de funcionamento e suas próprias

relações de força” (MISOCZKY, 2006, p. 81). Ou seja, cada campo possui um jogo que lhe é

próprio e que o distingue de outros.

A lógica inerente a determinado campo está associada a relações de poder e

dominação. Disputam-se a hegemonia do saber (campo científico), da linguagem (campo

linguístico), do bem estar social (campo do Estado), de acordo com a lógica que determina um

campo específico.

Daí que os campos são constantemente comparados aos jogos - analogia originalmente

estabelecida por Bourdieu e Wacquant (2012). Entretanto, para eles, diferentemente de um

jogo, o campo possui regras que não estão explícitas ou codificadas, e as próprias regras do

jogo estão também em jogo ali.

Decifrar a lógica de determinado campo implica compreender as lógicas de dominação

em ação, assim como o valor relativo das diferences espécies de capital. Seguindo sua

analogia com um jogo, Bourdieu e Wacquant (2012) comparam os diferentes tipos de capital

com cartas de um baralho, cujo valor relativo de cada uma delas, muda de acordo com o jogo

em questão. Em outras palavras, o valor relativo das diferentes espécies de capital varia para

cada um dos campos, de acordo com o jogo que se estabelece ali. Conforme Bourdieu (2012,

p. 134), “as espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem

Page 74: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

73

as probabilidades de ganho”, servindo como “armas” na luta por ascendência em um campo

(EMIRBAYER E JOHNSON, 2008).

Entretanto, não são os tipos de capitais que diferenciam um campo de outro, mas a sua

lógica inerente de disputa e dominação, que, eventualmente, pode levar ao recurso de capitais

específicos. Existem espécies de capitais que são consideradas fundamentais, e que, portanto,

fazem-se presentes em vários campos (SALLAZ & ZAVISCA 2007). Este é o caso, por

exemplo, do capital econômico - considerado por Bourdieu como a forma mais óbvia de

capital - e também dos capitais cultural e social, mencionados em vários estudos. O capital

econômico é aquele que se apresenta na forma de riqueza material, como dinheiro, ações,

bens patrimônios; já o capital cultural se apresenta como conhecimento, habilidades,

informações, por exemplo; por fim, o capital social corresponde ao conjunto de acessos

sociais, que se dá sob a forma de relacionamento e redes de contatos (THIRY-CHERQUES,

2006).

Mas existem ainda espécies especializadas de capital, que só tem valor dentro de um

campo particular. Estas são definidas em função da lógica específica de cada campo ou do

jogo que ali se joga, o qual determina as propriedades que ali tem cotação ou que ali são

consideradas eficientes. Estas propriedades funcionam como o capital específico do campo

em questão e como fator explicativo das práticas que nele ocorrem (BOURDIEU, 2011b). Por

exemplo, o capital científico é identificado por Bourdieu (2004b) como o capital específico do

campo científico.

Embora existam, em um mesmo campo, diversos tipos de capital – fundamentais ou

especializados -, Everett (2002) chama atenção para o fato de que todas as formas de capital

estão conectadas. Quando um agente possui uma grande quantidade de um dado tipo de

capital (o econômico, neste caso, pode ser um bom exemplo), ele provavelmente também terá

uma grande quantidade de outros tipos de capitais (linguístico, social, etc) (EVERETT, 2002)

Merece relevo na perspectiva de Bourdieu uma forma destacada de capital, a qual o

autor denomina de capital simbólico, ou seja, “a forma percebida e reconhecida como legítima

das diferentes espécies de capital” (BOURDIEU, 2012, P. 135). Conforme explica, em mais

detalhes, Bourdieu (1996, p.170):

o capital simbólico é uma propriedade qualquer (...) que, percebida pelos agentes sociais

dotados das categorias de percepção e de avaliação que lhes permitem percebê-la, conhecê-

la e reconhecê-la, torna-se simbolicamente eficiente como uma verdadeira força mágica:

uma propriedade que, por responder às ‘expectativas coletivas’, socialmente constituídas,

em relação às crenças, exerce uma espécie de ação à distância, sem contato físico.

Page 75: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

74

A partir do conceito de capital simbólico, conforme definido acima, Bourdieu (2012,

p. 7) propõe que se trabalhe com a noção de poder simbólico, descrito pelo autor como “esse

poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem

saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. O poder simbólico é uma forma

transfigurada e legitimada de outras formas de poder. Assim, para Bourdieu (2012, p. 15), as

relações de força são transformadas em poder simbólico a partir de um “trabalho de

dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira

transubstanciação das relações de força, fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas

encerram objetivamente”. Nesse sentido, o poder simbólico proposto pelo autor deriva da

posse de um recurso reconhecido e valorizado pelos demais agentes do campo (CARVALHO

e VIEIRA, 2007), ou seja, da posse do capital simbólico.

A lógica de dominação que determina um campo específico é jogada pelos agentes

que compõem a estrutura do campo. É quando um determinado agente possui uma ou mais

espécies de capital que são eficazes naquele campo, que ele adquire poder e influência, e isso

o faz existir como um agente no campo em questão (BOURDIEU e WACQUANT, 2012). A

distribuição dos agentes no campo, por sua vez, dependerá do volume e da estrutura de capital

que possuem, determinando suas posições (BOURDIEU, 1996).

Thiry-Cherques (2006) explica, de forma sintética, que Bourdieu adota o termo

“agentes” para designar todo aquele que atua tentando manter ou alterar as relações de força,

e que possui um sistema adquirido de preferências, de percepção, de classificação, tendo os

seus atos limitados a certos “constrangimentos estruturais”.

De forma a representar este “agente em ação”, Bourdieu desenvolve o conceito de

habitus, definindo-o como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas

cognitivas e avaliatórias que eles (os agentes) adquirem através da experiência durável de uma

posição do mundo social” (BOURDIEU, 2004a, p. 158). Como estrutura estruturante, mas

também estruturada (PECI, 2003), o habitus interioriza o exterior e exterioriza o interior, ao

juntar um aspecto objetivo (estrutura) e um aspecto subjetivo (percepção, classificação,

avaliação) (PINTO, 2000). Em outras palavras, o habitus, é “um corpo estruturado, um corpo

socializado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor

particular desse mundo” (BOURDIEU, 1996, p. 144), que pode ser assumido como uma

subjetividade socializada (BOURDIEU E WACQUANT, 2012).

Essa estrutura estruturante e estruturada, a qual Bourdieu denomina de habitus, é

produzida a partir de estruturas características de certas condições de existência, é produto da

Page 76: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

75

história (BOURDIEU, 2011a). Portanto, “the habitus could be considered as a subjective but

not individual system of internalized structures, schemes of perception, conception, and action

common to all members of the same group or class (…)” 6 (BOURDIEU, 1977, p. 86).

Embora exista uma tradição em estudos organizacionais que investe na transposição

da perspectiva de campo de Bourdieu para auxiliar na elucidação da realidade organizacional,

as dificuldades na transferência de conceitos ainda não estão plenamente superada. Não é por

acaso que ainda são empreendidas muitas discussões teóricas a respeito do tema em

periódicos importantes (Ex: EMIRBAYER e JOHNSON, 2008; VAUGHAN, 2008;

DOBBIN, 2008; SWARTZ, 2008; EVERETT, 2002; OZBILGIN e TATLI, 2005;

GOLSORKHI ET AL, 2009).

Fligstein e McAdam (2012) trazem importantes contribuições para que se avance em

relação ao pensamento de Bourdieu em sua recente obra A Theory of Fields. Apesar de a

teoria proposta não estar direcionada exclusivamente aos pesquisadores de estudos

organizacionais, os avanços que ela traz ajudam a superar uma das principais dificuldades da

área no que diz respeito à perspectiva de campos: o tratamento das organizações enquanto

agentes coletivos.

Inspirados fortemente (mas não exclusivamente) na perspectiva de Bourdieu, com a

qual declaram ter grande afinidade, Fliegstein e McAdam (2012) se propõem a apresentar

uma teoria integrada que explique como a estabilidade e a mudança são alcançadas por atores

sociais em arenas sociais circunscritas. Para tal, partem do conceito de campos de ações

estratégicas, como unidades fundamentais de ação coletiva na sociedade, “which can be

defined as mesolevel social orders, as the basic structural building block of modern

political/organizational life in the economy, civil society, and the state” (FLIGSTEIN e

MCADAM, 2012, p. 3)7. Eles enxergam os campos como arenas construídas socialmente

dentro das quais atores com dotes variados de recursos competem por vantagens. Fligstein e

McAdam (2011) reforçam que o que eles chamam de campos de ações estratégicas é um

termo que pode ser usado de forma intercambiável com o conceito de campo.

Assim como Bourdieu, Fligstein e McAdam (2012) também estão preocupados em

repensar o problema da relação entre agência e estrutura e a relação entre processos

macrossociais e as micro relações. Entendem que a melhor maneira de alavancar discussões a

6 Tradução livre: o habitus pode ser considerado como um sistema subjetivo, mas não individual, de estruturas internalizadas, esquemas de percepção, concepção, e ação comuns a todos os membros do mesmo grupo ou classe. 7 Tradução livre: que podem ser definidas como ordens sociais de nível meso como o bloco básico de construção estrutural da vida política/organizacional moderna na economia, na sociedade civil e no Estado

Page 77: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

76

este respeito se dá por meio da criação de uma teoria de ação de nível meso, alcançada por

meio do conceito de campo. Os autores também compartilham com Bourdieu uma noção de

processualidade inerente aos campos. Para eles, mesmo campos que podem ser considerados

estáveis tem a eles inerentes um constante processo de mudanças incrementais: “To a degree,

change is always going on”8 (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012, p. 7). Assim, como em

Bourdieu, esse dinamismo implica que os limites do campo não são fixos, mas mudam de

acordo com a definição da situação e das questões em jogo.

Com vistas a marcar as diferentes posições assumidas pelos atores nos campos,

Fliegstein e McAdam (2012) adotam os termos incumbentes e desafiadores. Enquanto os

primeiros assumem posições privilegiadas e uma influência desproporcional nos campos, os

segundos assumem posições menos favorecidas e tem pouca influência no campo.

Naturalmente, incumbentes lutam para se manter em suas posições, enquanto desafiadores

esperam a oportunidade para desafiar a ordem dominante.

Uma das mais importantes contribuições de Fliegstein e McAdam (2012) está em

pensar o contexto ambiental mais amplo no qual os campos estão inseridos, ajudando-nos a

compreender a inter-relação entre campos e evitando que o pesquisador foque apenas no que

ocorre no interior do campo (MORGAN ET AL, 2014). Para os autores, este contexto

ambiental pode ser pensado como um sistema intrincado de campos, mais próximos ou mais

distantes, que se influenciam mutuamente. Utilizam a metáfora da Boneca Russa para auxiliar

na compreensão de sua perspectiva teórica: assim como a boneca, o ambiente contextual é

composto por campos dentro de campos, de maior ou menor dependência, que podem levar a

mudanças uns nos outros. Em síntese, todos os campos estão embebidos em uma rede

complexa de outros campos. Para os autores, estas relações entre campos constituem uma das

principais fontes de mudança e estabilidade em todos os campos.

Campos próximos, segundo os autores, são aqueles com laços recorrentes e cujas

ações afetam o outro campo. Campos distantes, por sua vez, são aqueles que não possuem

laços e não tem capacidade de influenciar um outro campo. Distinguem-se também campos

dependentes e interdependentes. Um campo que está muito sujeito à influência de outro diz-se

dependente. Esta dependência pode ter uma série de fontes, como autoridade legal ou

burocrática, dependência de recursos, ou de força física ou militar (FLIGSTEIN e MCADAM,

2012). Quando dois campos ligados exercem mais ou menos igual influência sobre eles, diz-

8 Tradução livre: em certo grau, as mudanças estão sempre acontecendo

Page 78: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

77

se que eles estão em uma relação de interdependência. Mas os campos também podem ser

independentes, ou seja, não afetados por outros campos.

A compreensão deste contexto mais amplo se faz necessária, na visão de Fligstein e

McAdam (2012), porque o estado de um campo em um determinado momento é

simultaneamente moldado pela dinâmica interna do campo e pelos eventos que se dão em um

campo de ações estratégicas externo com o qual o campo em questão tem laços próximos e de

dependência. Os autores reconhecem a dificuldade de se delimitar as fronteiras do que é

externo e interno, mas defendem que qualquer análise de campo que falhe em levar a sério a

questão das relações externas está fadada a ser incompleta.

Fligstein e McAdam (2012) evidentemente reconhecem a influência de Bourdieu em

sua obra e referem-se a teoria do autor como uma das mais desenvolvidas e consolidadas

perspectivas de campo já produzidas. Mas não deixam de apontar os seus avanços em relação

à Bourdieu, os quais, segundo os autores, poderiam ser aceitos pelo próprio Bourdeiu como

um caminho profícuo para a expansão da teoria dos campos. Para os autores, embora

elaborada e consistente, a teoria do Bourdieu não dá conta de compreender a natureza dos

atores coletivos, tão importantes para os estudos organizacionais. As discussões empreendidas

por Bourdieu estão focadas em atores individuais, e são raras as considerações a respeito de

atores coletivos. Esse foco nos indivíduos é muito útil, mas tende a obscurecer a dinâmica

coletiva dos campos (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Os autores enxergam estas dinâmicas

coletivas como complementares às ações individuais gerais que é a preocupação central de

Bourdieu.

Além disso, embora Bourdieu também considere a existência de múltiplos campos que

estabelecem relações entre si, o autor não discute a natureza destas relações entre campos.

Bourdieu estava ciente do fato de que os campos eram interligados uns aos outros, mas ele

raramente teorizou sobre a relação entre os campos e a dinâmica que poderia resultar desta

interação (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Para os Fligstein e McAdam (2012), esta

discussão é fundamental para entender a estabilidade ou mudança dos campos. Por fim, a

maioria do trabalho do Bourdieu estava orientada para a compreensão de campos existentes, e

como eles moldam o comportamento dos agentes de forma profunda. Mas o seu trabalho não

estava tão preocupado com a emergência de novos campos e a transformação dos campos

existentes, preocupação que se torna central na perspectiva de Fliegstein e McAdam (2012), e

que pode ser de grande valia para a compreensão da realidade organizacional.

Page 79: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

78

É a partir desta noção de campo, conforme cunhada por Bourdieu e posteriormente

complementada por Fliegstein e McAdam (2012), que o Estado será aqui compreendido. O

Estado, na visão particular de Bourdieu (2012), é entendido como um campo burocrático ou

campo da função pública, que se define “par la possession du monopole de la violence

symbolique e légitime”9, capaz de regular os demais campos, como um poder no topo do

poder (BOURDIEU, 2012, p. 14). Em termos mais específicos, Bourdieu, Wacquant e Farage

(1994, p. 3), a partir da proposição weberiana, definem o Estado como “an X (to be

determined) which sucessfully claims the monopoly of the legitimate use of physical and

symbolic violence over a definite territory and over the totality of the corresponding

population”10.

Para chegar a sua definição própria de Estado, Bourdieu (2012) faz uma adição à

tradicional definição weberiana – que o entende como monopólio da violência legítima,

tratada como sinônimo de uma coerção física (WEBER, 1999) – acrescentando que se trata de

um monopólio da violência física e simbólica, ou simplesmente da violência simbólica

legítima, já que o monopólio da violência simbólica é condição para que se possa exercer o

monopólio da violência física. Para Bourdieu (2012) se a palavra “legítima”, já empregada

por Weber, for levada a seu extremo, ela já é suficiente para evocar a dimensão simbólica da

violência, tendo em vista que a ideia de legitimidade tem a ela atrelada a ideia de

reconhecimento. Entretanto, para Bourdieu (2012), Weber não desenvolveu profundamente

este aspecto do Estado em sua teoria, e é ele que Bourdieu (2012) se propõe a desenvolver.

Conforme explica o próprio autor:

Max Weber diz que o Estado é o monopólio da violência legítima. E eu o corrijo dizendo: é

o monopólio da violência física e simbólica legítima. As lutas a respeito do Estado são lutas

pelo monopólio desse monopólio, e penso que os fundadores do Estado moderno ficaram

bem colocados na luta por esse monopólio – como o atesta a permanência no tempo do que

chamo de nobreza de Estado (BOURDIEU, 2014, p. 450).

Para Bourdieu, (2014) o Estado não é um bloco, não pode ser compreendido como

uma unidade monolítica. O Estado é um campo, um campo administrativo, um setor

específico do campo de poder, “isto é, um espaço estruturado segundo oposições ligadas a

formas de capital específicas, interesses diferentes” (BOURDIEU, 2014, p. 51).

Assim como os demais campos descritos por Bourdieu, o campo burocrático do

Estado também possui uma lógica própria. Segundo Bourdieu (2012), no interior deste campo

9 Tradução livre: pela possessão do monopólio da violência simbólica e legítima 10 Tradução livre: como um X (a ser determinado) o qual clama com sucesso o monopólio do uso da violência física e simbólica sobre um território definido e sobre a totalidade da população correspondente

Page 80: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

79

joga-se um jogo particular, guiado por uma lógica burocrática. Dentro deste campo, a política

está posta em jogo, e os agentes que possuem o privilégio de entrar neste jogo também

adquirem o privilégio de ter acesso a um recurso particular, o qual Bourdieu (2012) denomina

de um recurso universal ou metacapital, por meio do qual tais agentes tornam-se aptos a falar

em nome da totalidade de um grupo, do universum, em nome de um bem público, a falar o

que é bom para o público. Dito de outra forma, no interior do campo burocrático, os agentes

lutam pela posse de um capital capaz de lhes dar poder sobre os outros campos.

É por meio da acumulação por um mesmo poder central das diversas espécies de

capital postas em jogo no campo do Estado – como o capital econômico, informacional,

militar ou simbólico – que se forma um todo capaz de gerar esta espécie de metacapital a qual

se refere Bourdieu (2014), um capital que exerce poder sobre o capital. Em outras palavras, “o

Estado, à medida que acumula em grande quantidade diferentes espécies de capital, encontra-

se dotado de um metacapital que permite exercer um poder sobre qualquer capital”

(BOURDIEU, 2014, p. 266).

O campo burocrático configura-se, então, como a arena em que os agentes possuem

um metapoder, um poder sobre todos os poderes: “o campo burocrático é um campo que está

sobrelevado em relação a todos os campos” (Bourdieu, 2014, p. 477). Ou seja, é no campo

burocrático do Estado que são editadas as normas relativas a todos os demais campos, onde

são tomadas medidas transcampos (BOURDIEU, 2014).

Seguindo essa concepção de Estado, Bourdieu (2012, p. 16) refere-se ao campo

burocrático como o “point de vue des points de vue”11. Bourdieu (2012, p. 25) explica que o

Estado é assumido como um quase-Deus, “l`État est cette illusion bien fondée”12, que existe

apenas porque se acredita em sua existência, porque há uma crença coletiva nele, embora não

se possa tocá-lo. Em síntese, para o autor, o Estado é uma entidade teológica, que existe a

partir da crença.

O Estado, ao qual Bourdieu (2011a, p. 105) refere-se como um “corpo fictício”,

“molda as estruturas mentais e impõe princípios de visão e divisão comuns”, especialmente

por meio de procedimentos burocráticos, de estruturas escolares, e assim leva à construção de

uma identidade nacional. Torna-se, com isso, “o lugar por excelência da concentração e do

exercício do poder simbólico” (BOURDIEU, 2011a, p. 108).

Diante desta legitimidade do Estado perde-se de vista questões fundamentais: porque

temos que recorrer ao crime para punir o próprio crime? “O ato do justiceiro – Orestes - não é 11 Tradução livre: o ponto de vista dos pontos de vista 12 Tradução: O Estado é esta ilusão bem fundamentada

Page 81: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

80

um crime igual ao ato inicial do criminoso?” (BOURDIEU, 1996, p. 101). Segundo Bourdieu

(1996), questões como estas só são lembradas em situações-limite, como em discussões como

a pena de morte. Em função de sua legitimidade, de sua condição de lugar por excelência do

poder simbólico, o Estado exerce coerções “invisíveis”, que contam com a cumplicidade dos

que as sofrem. E as favelas, investigadas neste trabalho, parecem se apresentar como uma

destas condições limites, na qual as coerções nem sempre contam com essa cumplicidade.

Em sua obra Sur L`État, Bourdieu (2012) explica que é possível encontrar no

dicionário duas definições de Estado: a primeira no sentido de um aparelho burocrático que

realiza a gestão dos interesses coletivos, uma administração, que pode ser representada pelo

governo francês, por exemplo; e a segunda no sentido de instância dentro da qual a autoridade

deste aparelho é exercida, em outras palavras, Estado-nação, território nacional ou, por

exemplo, a França. Para Bourdieu (2012), embora útil, esta distinção é artificial. Na visão do

autor, estas duas noções estão interligadas, na medida em que o Estado em seu sentido

administrativo se faz ao fazer o Estado em seu sentido territorial. Ou, de forma ainda mais

direta, a gênese do Estado como um aparelho burocrático é acompanhada da gênese do Estado

como um território nacional, e os dois sentidos atribuídos ao conceito são inseparáveis

(BOURDIEU, 2012).

É sobre esse território, que na visão de Bourdieu (2012) confunde-se com o próprio

Estado, que o campo burocrático exerce sua posição de legitimidade do uso da violência. A

capacidade do Estado de exercer a violência física e simbólica se dá devido a sua capacidade

de encarnar a si próprio objetivamente, por meio de mecanismos e estruturas organizacionais,

e subjetivamente, por meio de estruturas mentais e categorias de pensamento e de percepção

(BOURDIEU, WACQUANT e FARAGE, 1994). A este respeito, Bourdieu (2012) explica

que uma série de agentes sociais (os quais o autor exemplifica como reis, membros do

conselho do rei, funcionários do judiciário, dentre outros) constrói o Estado e se apresenta

como encarnações do Estado em suas diversas formas. Os atos do Estado, segundo Bourdieu

(2012), são ações desempenhadas por agentes dotados de uma autoridade simbólica. O Estado

existe, então, por meio de suas representações, “da instituição investida do monopólio da

violência simbólica legítima, ou do funcionário, titular do officium que fala e age ex officio”

(BOURDIEU, 2014, p. 484).

Essa é uma leitura clássica e tradicional do Estado, pautada em uma concepção

weberiana, e sempre será necessário retornar aos clássicos para se pensar ou repensar essa

“entidade”. Entretanto, de uma perspectiva organizacional, concebendo o Estado enquanto um

Page 82: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

81

campo composto por agentes sociais que também assumem a forma de agentes coletivos,

como as organizações que o representam, aqui também se ganha partindo para as

contribuições da teoria dos campos proposta por Fligstein e McAdam (2012).

Como todos os campos, o Estado também é compreendido por Fligstein e McAdam

(2012) como um sistema complexo de campos, com as mesmas propriedades dos demais

campos. Assim como Bourdieu, os autores também rejeitam a visão comum do Estado como

único e hegemônico. O Estado é composto de uma miríade de ordens sociais, “the modern

state is a set of strategic action field that claim to make and enforce authoritative rules over a

specified geographic territory”13 (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012, p. 68).

Dentro do campo burocrático do Estado também existem disputas, que neste caso se

apresentam como um conflito sobre qual burocracia controla qual questão. Como resultado,

Fliegstein e McAdam (2012) explicam que o governo moderno está sempre mudando sua

burocracia executiva para organizar melhor o controle de várias arenas da vida social. Assim,

a perspectiva de Fligstein e McAdam (2014) também dá conta de analisar a dinamicidade do

Estado moderno, tendo em vista que os autores entendem que o campo do Estado está sempre

produzindo novas burocracias (ou agentes sociais coletivos) para lidar com eventos que os

demandem.

Embora semelhante aos demais campos, o campo do Estado se diferencia por sua

habilidade de reter o controle sobre o uso legítimo da violência que representa sua última base

de poder (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Segundo Fligstein e McAdam (2012), hoje, a

legitimidade do Estado está em prover bens públicos para os seus cidadãos, incluindo

proteção de ataques de Estados de fora, ordem pública, as regras da lei, e arbitragem de

controvérsias públicas. Para Fligstein (2008), os governos podem ser vistos como conjuntos

de organizações que formam campos constituídos pela reivindicação de fazer as regras para

todos em uma dada área geográfica. Os atores do Estado conseguiram reivindicar a

possibilidade de definir as regras das interações em um dado território geográfico, e tais

regras podem ser reforçadas pelo uso da violência física. Entretanto, ainda que o Estado

reivindique a soberania sobre uma questão ou um território, sua habilidade para exercer essa

autoridade é sempre aberta a contestações (FLIEGTEIN e MCADAM, 2012).

Devido à sua reivindicação para exercer soberania em dados territórios, os campos do

Estado têm um grande potencial para influenciar as mudanças e estabilidade em quase todos

os campos não-estatais dentro destas coordenadas geográficas (FLIGSTEIN e MCADAM, 13 Tradução livre: o Estado moderno é um conjunto de campos de ação estratégica que clamam para fazer e impor regras de autoridade sobre um territórios geográfico específico

Page 83: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

82

2012). As relações entre os campos do Estado e não-estatais não é, entretanto, inteiramente de

mão única. Os autores explicam que a estabilidade do Estado depende do suporte que ele

recebe de incumbentes que controlam alguns campos não-estatais mais importantes.

Mais uma vez indo ao encontro de Bourdieu, Fligstein e McAdam (2012) também

enxergam nesta perspectiva o benefício de evitar o problema de reificar o Estado que para

eles, definitivamente, não é um ator unificado, mas avançam, principalmente, ao apontar para

a interdependência entre o campo do Estado e os demais campos, capaz de produzir mudanças

e instabilidades. Portanto, a combinação de ambas as teorias tornou-se elucidativa para a

análise do campo burocrático do Estado aqui empreendida e apresentada a seguir. Indo ao

encontro dos autores, a partir daqui passarei a me referir ao grupo de representantes do Estado

que atuam nas favelas como o campo burocrático do Estado em ação nas favelas, e a tais

representantes individuais ou organizacionais como agentes do campo burocrático do Estado,

assumindo os segundos enquanto agentes coletivos em ação.

4.3 O Campo Burocrático do Estado e o Campo Político: Relações e Interdependências

Era uma sexta-feira à noite e, como de costume, as ruas da favela da zona Norte

estavam movimentadas. O som alto vindo de diferentes bares da favela gerava uma mistura de

funk e pagode, que produzia em mim uma sensação bastante agradável – eu adorava a sexta-

feira na favela. Enquanto muitos moradores andavam animados pela rua, dirigindo-se para os

estabelecimentos de onde vinham as músicas, outros, mais preocupados do que animados,

dirigiam-se para a reunião que aconteceria no principal Clube da favela. Naquele dia, eu

acompanhava os segundos.

A reunião à qual nos dirigíamos tratava-se de um encontro entre um grupo de

moradores removidos pelo programa Cimento Social e o presidente da associação de

moradores, para discutirem o encaminhamento da questão. Entrei no clube e, como estava

habituada, me sentei entre os moradores para darmos início à reunião. O presidente da

associação de moradores, que se posicionava à frente de todos, começou a reunião me

apresentando e explicando que eu era uma pesquisadora convidada por ele para acompanhar a

situação do Cimento Social, com vistas a dar mais visibilidade à questão. Em seguida, ele

pediu que eu me sentasse à frente da sala e explicou que reservara os minutos iniciais da

reunião para que os moradores me apresentassem as suas queixas. Um pouco desconfortável,

devido à fala do presidente, e um pouco sem graça, devido à minha timidez habitual, me dirigi

à frente da sala e expliquei sinteticamente aos moradores o objetivo da minha tese,

Page 84: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

83

esclarecendo que estava ali por vontade própria, porque eu achei que seria importante para

minha pesquisa acompanhar aquela situação. Passei a palavra aos moradores e iniciou-se uma

enxurrada de queixas. O valor baixo do aluguel social, a demora na finalização das obras, a

má qualidade das novas casas, a perda de espaço com as novas construções – as insatisfações

não se esgotavam.

Depois de ouvir os moradores e retornar ao meu lugar original, o presidente da

associação, finalmente, deu início à reunião, explicando a todos o real motivo para o atraso

nas obras do Cimento Social: o programa que havia removido os moradores de situações de

risco para construir novas casas, agora seguras, foi criado e era dirigido pelo político Marcelo

Crivella, embora agora tivesse sido incorporado pela prefeitura, que passou a financiar o

programa; acontece que Marcelo Crivella decidiu se candidatar à governador nas eleições que

aconteceriam no ano seguinte, e o prefeito, Eduardo Paes, estava apoiando outro candidato

para o cargo, o político Pezão; assim, para não contribuir para a campanha do Crivella, cuja

imagem estava diretamente associada ao programa, a prefeitura resolveu “atrapalhar” o

andamento das obras do Cimento Social. E concluiu, em síntese: “então eles estão fazendo de

tudo para dar errado e a gente tá fazendo de tudo para dar certo” (Notas de Campo,

01/11/2013).

Dando continuidade à reunião, o presidente da associação discutiu com os moradores

possíveis formas de driblar a situação. Sua primeira estratégia consistia na elaboração de um

dossiê detalhado, com foto e planta de todas as casas removidas, registros de seus tamanhos

exatos, planta das novas casas conforme prometidas pelo programa e planta das novas casas

conforme estavam sendo construídas, para dar encaminhamento ao Ministério Público. A

segunda estratégia consistia em levar a situação à mídia: estava organizando um abaixo

assinado e se articulando para divulgar o problema preferencialmente na Band, mas também

servia a Record. Todos os presentes concordaram que estas eram duas boas estratégias para

lidar com a questão.

Foi, também, a partir dos moradores, que eu compreendi que no meu campo de

pesquisa havia um jogo. Embora fosse o jogo do campo burocrático do Estado, os moradores,

afetados por ele, compreendiam a sua lógica e, tentavam se guiar por ela para terem suas

demandas atendidas. Bourdieu e Wacquant (2012) lembram que o que define um campo

enquanto tal é o fato deste possuir uma lógica que lhe é própria, capaz de o distinguir dos

demais campos. E o campo burocrático do Estado é marcado por uma lógica burocrática

Page 85: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

84

(BOURDIEU, 2014), a qual os moradores de favelas tentavam se adequar em busca de

ganhos.

A primeira tática adotada pelos moradores para lidar com a questão das remoções do

Cimento Social foi recorrer a uma instância superior, o Ministério Público, responsável por

fiscalizar o cumprimento da lei, demonstrando um reconhecimento de que no jogo que se joga

no campo burocrático do Estado predomina a lógica burocrática.

Em seus estudos, Weber identificou a burocracia como a forma de dominação social

predominante na sociedade moderna, que se disseminou por se apresentar como a forma mais

eficiente de dominação social. Weber (2012) explica que na burocracia predomina a

dominação racional-legal, que tem sua legitimidade com base na crença em normas e regras.

As burocracias formais, embora sempre ideais, possuem normas e regras formais a

serem seguidas. Cada um dos agentes burocráticos analisados possuíam seus regulamentos

próprios, os quais alguns seguiam de forma mais rigorosa do que outros. Os agentes do

campo, em geral, guiavam-se por normas e regulamentos - alguns mais do que outros – que

ditavam as formas de contratações dos funcionários, os horários ou escalas de trabalho,

autorizações e proibições e até possíveis punições para o seu descumprimento.

Em suas interações com o Estado, os moradores têm dificuldades de lidar com as

normas e regras da burocracia estatal. Tive oportunidade de acompanhar diversas reuniões

comunitárias na favela da zona Sul, que estavam voltadas para a elaboração de um “projetão”,

que unisse os mais diversos projetos da comunidade, para uma proposta de financiamento do

BNDES. O BNDES estava oferecendo à comunidade o valor de 3,5 milhões. Diante da

motivação financeira, os moradores se empenhavam em tentar atender às mais diversas

exigências do BNDES, e muitas vezes se indignavam com tantas regras que não conseguiam

entender.

Conforme explicam Weber et al (1982), a burocracia moderna funciona com base em

princípios ordenados por regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas. Composto

por burocracias formais, o campo burocrático do Estado tem o seu funcionamento pautado em

uma série de regulamentos formais que regem o seu funcionamento.

As burocracias modernas estão também baseadas em documentos escritos, preservados

em sua forma original ou em esboço (WEBER ET AL, 1982). No PAC a formalização de

todas as ações e decisões é sempre necessária: para terem o direito de podar uma árvore que

está atrapalhando as obras, é necessário um documento formal que registre a autorização; para

Page 86: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

85

a compra de qualquer material, é preciso a cotação de preços, ainda que seja de um prego que

custe centavos. Conforme explica um representante do PAC:

Você tem que entender de tudo que está aqui e saber onde é que este tapume vai acontecer

na obra, então eu tenho que conferir o projeto com isto aqui e determinar, legal, esta

metragem está certa, é isto mesmo que tem que ser feito. E preparar toda esta

documentação para poder entregar ou para CEF ou para o próprio Estado, para poder

efetuar os pagamentos. Este é o lado chato, a parte burocrática da coisa (Representante do

PAC 3, Favela da zona Sul).

Nas UPPs não é preciso observar muito para perceber o formalismo presente ali.

Mesmo avisos rotineiros são registrados por escrito e pregados no quadro de avisos da

corporação. A respeito do preenchimento do uso de armários, havia um aviso digitado em um

papel, por sua vez pregado no quadro de avisos do hall principal da base da UPP da favela da

zona Sul: “Aviso: Foi observado que no alojamento dos soldados existem 25 armários sem

identificação! Favor identificá-los até o dia 04/9, caso essa ordem não seja cumprida até a

data informada, os mesmos serão abertos. Subcomandante” (Notas de Campo, 06/09/2013). A

ordem era clara e foi registrada por escrito para marcar a sua oficialidade.

Um representante da Clínica na Família, ao me relatar o seu dia de trabalho, ressaltou

a grande quantidade de horas dedicadas na sua rotina ao registro de suas atividades. Tudo

deve ser devidamente documentado, e para cada paciente, às vezes mais de uma ficha precisa

ser preenchida:

Vanessa: Como é um dia a dia de trabalho seu?

Entrevistado: Hoje, por exemplo, eu sentei só para almoçar, não tive nem horário de almoço

ainda. Então assim, dia a dia você já sai de manhã, hoje eu sai cedo de casa, bati meu ponto,

aí sentei no computador para fazer as fichas Bs, porque eles agora querem as fichas Bs

todas a caneta.

Vanessa: O que é ficha B?

Entrevistado: É um complemento da ficha A, porque a gente tem uma ficha A, e a ficha B é

tipo um complemento, é tipo as doenças classificadas. Cada pessoa com uma doença

classificada tem uma segunda ficha, além da ficha de cadastro inicial, a ficha A, tem a ficha

B, que é a ficha do hipertenso, do diabético, a ficha da criança até dois anos de idade, a

ficha da gestante, tudo isso é separado. Cada coisa dessa tem que ser alimentada no sistema,

tem a ficha do idoso, cada ficha dessa, além da ficha A que contém todos os dados, tem as

fichas de classificação (Representante da Clínica da Família 1, Favela da zona Sul).

Os gestores da UPP Social, por sua vez, devem registrar em seus blogs e agendas

todas as atividades de campo realizadas ao longo da semana, trabalho do qual costumavam

reclamar. Eu mesma tive que preencher fichas com informações pessoais e informações sobre

a minha pesquisa que ficariam arquivadas no setor de pesquisas do IPP.

Page 87: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

86

Nesse sentido, os agentes do campo burocrático do Estado também estão sujeitos ao

formalismo: é preciso documentar por escrito todas as comunicações, decisões, ações dos

agentes. É como se houvesse uma “linguagem formal” que precisa ser falada para que se

possa ser ouvido. Como forma de ação legítima no campo, o formalismo era incorporado por

todos os agentes para que aumentassem suas chances de ganhos. Gestores dos programas

Territórios da Paz e UPP Social, que precisavam se fazer ouvir por outros agentes do Estado,

encaminhavam as demandas das favelas, na forma de relatórios, com explicações por escrito e

fotos da demanda local. Se as demandas não fossem encaminhadas por escrito as chances

neste jogo eram quase nulas.

Diante da informalidade da favela, o formalismo era difícil de ser seguido. Os

moradores, muitas vezes, não conseguiam ter suas demandas atendidas pelos agentes do

campo burocrático do Estado, porque não tinham registros formais ou os mais diversos

documentos. Na elaboração do projeto para a proposta do BNDES, a dificuldade diante do

formalismo ficou latente. Era demandado, por exemplo, que os moradores apresentassem o

Registro Geral de Imóveis (RGI) de seus imóveis. Nenhum deles possuía este documento para

apresentar.

Aos poucos os moradores foram aprendendo, que para fazer demandas, deviam seguir

o formalismo. Nunca vi os moradores tão entusiasmados em uma reunião quanto naquela

terça feira à noite. Pela primeira vez cheguei a uma reunião comunitária e me senti atrasada.

Os moradores já estavam organizados em torno de uma mesa redonda e redigiam uma carta.

Explicaram-me que se tratava de uma carta a ser entregue para a presidente Dilma, por uma

moradora que estava indo à Brasília no dia seguinte. Na carta, os moradores contavam que

eles tinham recebido muito bem o PAC, mas que agora tinham algumas reivindicações a

fazer. Fizeram uma lista de reivindicações, que incluíam desde a construção de uma nova

associação de moradores para que eles pudessem sair daquela, à construção dos prédios antes

da remoção dos moradores. No dia seguinte pela manhã, quando retornei à associação, a

presidente me mostrou orgulhosa o resultado do trabalho da noite anterior: a carta fora

impressa em um papel bem bonito, com o símbolo da associação de moradores, para lhe dar

ares mais formais. Entendi que tentavam seguir a lógica burocrática da formalização para que

fossem ouvidos.

Para a devida contratação de funcionários e ingresso formal no campo burocrático,

eram em geral exigidas a participação em concurso público. Segundo Weber et al (1982)

somente são empregadas nas burocracias modernas as pessoas que possuem as devidas

Page 88: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

87

qualificações, previstas por regulamento. A meritocracia nos diz que para que haja uma

contratação ou ascensão de cargos, o contratado precisa mostrar objetivamente que é ele o

mais competente.

Atrelada à noção de meritocracia, há a impessoalidade. Conforme explica Bourdieu

(2014, p. 341):

O que está em jogo é a invenção de um campo cujas regras do jogo estão em ruptura com as

regras do jogo do mundo social corrente: no mundo público, não se é indulgente; no mundo

público, já não se tem irmão, nem pai, nem mãe – em teoria... No mundo público (ou nos

Evangelhos), repudiam-se os laços domésticos ou os laços étnicos pelos quais [se

manifestam] todas as formas de dependência, de corrupção. Tornamo-nos uma espécie de

sujeito público, cuja definição é servir essa realidade transcendente aos interesses locais,

particulares e domésticos, que é o Estado.

Assim, a impessoalidade também está presente no campo nos tratos em geral. Para

garantir a impessoalidade, contrata-se por meio de concursos públicos: os mais diversos

campos do Estado realizam processos formais para selecionar os seus candidatos, com base na

meritocracia. Os concursos para policiais que se tornaram mais frequentes, não cessam de

selecionar policiais novos e os mais aptos. Foi também por meio de concurso público que se

contrataram os gestores e assistentes do programa Territórios da Paz. Mas neste caso, os

concursos não são tão frequentes, e a falta de funcionários passa a incomodar.

Os processos de ascensão, quando possíveis, também são regidos pela impessoalidade

e pela meritocracia. Conforme explica um representante da Comlurb, a respeito do processo

de promoções na organização:

Nós temos aqui também o nosso, a nossa avaliação individual, o funcionário aqui é

avaliado diariamente pelas atividades dele. Aquele que se destaca ele fica apto a qualquer

progressão individual se tiver na empresa. Como agora tá tendo. Os garis bem avaliados

eles foram classificados e tão fazendo provas, estão passando por algumas etapas

eliminatórias pra chegar ao cargo de agente de limpeza urbana, que é aquele fiscal, né, que

o pessoal fala que é fiscal. É agente de limpeza urbana (Representante da Comlurb 1,

Favela da zona Norte).

Em processo de contratações maiores, como nos casos de contratação de uma empresa

privada pelo setor público, a impessoalidade e a meritocracia também devem prevalecer. O

PAC se deparou com esta questão, quando a empresa responsável pelas obras na favela da

zona Sul abandonou as obras. A explicação desta situação eu escutei em diferentes reuniões:

A [empresa X] pediu para sair, quando eles pediram para rescindir o contrato, foi legal,

foram chamar a 2ª colocada. A 2ª. colocada por logística não pôde aceitar, aí a lei manda

que a gente faça uma nova licitação e aí agora estamos trabalhando com uma nova

Page 89: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

88

licitação, para chamar uma nova empresa, voltar tudo para trás, preparar tudo de novo para

continuar as obras e aí é isto que está rolando lá (Representante do PAC 3, Favela da zona

Sul).

Para entrar no jogo era preciso inserir-se na lógica burocrática: passar por um processo

impessoal e meritocrático de seleção. Mas os moradores também tinham dificuldades de

guiar-se por estes princípios, e reivindicavam ações do Estado que não podiam ser atendidas

por outra via alternativa. Havia uma reclamação constante, por exemplo, a respeito dos garis

comunitários: os moradores defendiam que o trabalho do gari comunitário era muito melhor, e

que gostariam que moradores das favelas voltassem a assumir seus trabalhos de garis. Os

representantes da Comlurb, em reunião, explicaram: só pode ser gari da Comlurb quem for

aprovado em concurso público. O Ministério Público não permite mais outra forma de

contratação.

A Figura 2 a seguir sintetiza as categorias expressas aqui:

Lógica Burocrática

Regras e Normas Formais

Formalismo

Impessoalidade e Meritocracia

- Concursos públicos;- Licitações;- Progressões

meritocráticas

- Registro formal da comunicação;- Registro formal das decisões;- Exigência de documentação;- Elaboração de relatórios

- Regulamentos;- Punições com base em

regulamentos formais;- Horários rígidos

Figura 2. Lógica Burocrática

A lógica burocrática do campo parece bastante clara, porque aparece em regras

explícitas e formais. Entretanto, são difíceis de serem acompanhadas pelos moradores, até

pelo seu afastamento histórico da ação do campo burocrático do Estado. Para seguir estas

formas de ação legítimas no campo, os moradores aprenderam (e me ensinaram ao aprender)

Page 90: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

89

que para ser ouvido pelo Estado é preciso elaborar documentos formais e em última instância

podem, ainda, recorrer formalmente ao Ministério Público.

Ao impor tantas exigências, a lógica burocrática gerava o descontentamento constante

daqueles que tinham que lidar com elas. Em decorrência de suas disfunções, que não

chegaremos a tratar aqui, a burocracia passou a ter inerente a ela um sentido negativo, e os

agentes do Estado desabafavam com frequência: “É uma burocracia gigante que você tem que

enfrentar” (Representante do ITERJ 2, Favela da zona Sul). Os moradores, que tinham suas

demandas postergadas por conta da lógica burocrática, também faziam frequentes

reclamações: “(...) é uma burocracia muito grande, até para trocar uma lâmpada, porra, precisa

fazer não-sei-o-quê, não-sei-o-quê, não-sei-o-quê, para a escada tem, passa 20 anos”

(Morador 9, Favela da zona Sul)

Entretanto, Bourdieu (2014) entende que paralelamente ao campo burocrático, existe

uma série de campos, como o campo jurídico, o campo intelectual, ou o campo político, que

estão em concorrência entre si e que buscam triunfar sob os demais campos. Conforme

explicou Bourdieu (2014), são os agentes advindos do campo político que ocupam os cargos

da alta função pública, de altos funcionários no campo burocrático do Estado. Nesse sentido, é

preciso destacar a forte influência que o campo burocrático do Estado sofre do campo

político, este último entendido por Bourdieu (2012, p. 164) como:

O lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos,

produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos,

acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de

‘consumidores’, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores

quanto mais afastados estão do lugar de produção.

A medida que se avança e se ganha força no campo político, aumenta-se os efeitos de

acesso às posições de permanência no campo burocrático (BOURDIEU, 2012). No caso do

programa Cimento Social relatado anteriormente, fica clara a interdependência entre os dois

campos: Marcelo Crivella, que no momento da pesquisa ocupava um cargo de Senador, em

parceria com a prefeitura do Rio de Janeiro, deu início ao programa e passou a dirigi-lo em

nome da prefeitura, claramente influenciado pelas disputas do campo político. O programa

formalmente vinculado a prefeitura, e por isso parte do campo burocrático do Estado, tem a

sua lógica burocrática influenciada por uma lógica do campo político: é interrompido por uma

disputa política entre o prefeito Eduardo Paes e o senador Marcelo Crivella. As lutas políticas,

segundo Bourdieu (2014, p. 477), envolvem agentes “que estão numa relação de homologia

Page 91: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

90

com os agentes inscritos no campo burocrático e nas lutas inerentes ao campo burocrático”,

como é aqui o caso dos agentes envolvidos nas disputas em torno do Cimento Social.

A história a respeito da reunião para tratar do programa Cimento social narrada

anteriormente vai claramente ao encontro do que propunha Bourdieu (2014): há uma

interdependência e uma competição entre os campos político e burocrático. Segundo Weber

(1974, p. 56) pode-se compreender por política “o conjunto de esforços físicos com vistas a

participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de

um único Estado”. Assim, para o autor, quando se diz que uma questão é política, isto

significa que os interesses de divisão, conservação ou transferência do poder são fatores

essenciais. Todo homem que se envolve com a política aspira, de alguma forma, o poder

(WEBER, 1974).

Para Bourdieu (2014, p. 39) pode-se dizer que há uma política reconhecida como

legítima quando não se é questionada a possibilidade de fazer de outra maneira: “esses atos

políticos legítimos devem sua eficácia à sua legitimidade e à crença na existência do princípio

que os fundamenta”. No jogo político a política parece possuir a sua legitimidade, e as coisas

são feitas de acordo com as regras por ela impostas.

A disputa entre os políticos Marcelo Crivella e Pezão (o segundo no caso apoiado e

representado pelo prefeito Eduardo Paes) retrata uma relação importante entre o campo

burocrático do Estado e o campo da política: para que se possa ocupar os cargos da alta

função pública no campo burocrático é preciso acumular votos. Uma tática utilizada no

campo da política é a oferta de bens públicos como forma de angariar votos. Caso o político

Marcello Crivella fosse bem sucedido em seu programa Cimento Social, e conseguisse

construir as prometidas casas para aqueles moradores, provavelmente ganharia seus votos, e

isso o ajudaria em sua disputa pelo governo do estado contra Pezão.

Cada vez que eu explicava aos moradores de ambas as favelas que a minha tese tratava

de ações do Estado nas favelas, antes que eu fizesse qualquer pergunta, estes resumiam em

uma frase o que para eles me importava saber: “só aparecem aqui em época de eleição”.

Explicavam-me que a relação dos políticos com a favela resumia-se, basicamente, a uma troca

de bens públicos por votos, às vezes mais explícita outras mais discreta: “é um processo de

negociação política através do voto de cabresto. Eu faço isso lá porque aquela comunidade

tem uma barganha de voto e se eu fizer qualquer coisa vão votar em mim” (Morador 9, Favela

da zona Sul). Os agentes do campo burocrático do Estado também reconhecem e explicitam

esta lógica: “Isso só acontece porque o cara, sei lá, o cara tem o curral eleitoral dele. Ele vai

Page 92: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

91

beneficiar e vai fazer o serviço onde ele ganha mais votos, isso é fato, entendeu”

(Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).

Os agentes que já conseguiram compor o campo burocrático do Estado, como

influência do campo político, utilizam de seus cargos burocráticos para, assim, angariar votos.

Alguns agentes me explicaram que existem comunidades que são “as meninas dos olhos” do

governo, como é o caso da favela da zona Sul onde desenvolvi minha pesquisa. Tais

comunidades recebem mais atenção, porque as ações do Estado nelas desempenhadas acabam

ganhando mais visibilidade, e com isso possuem um maior potencial de serem transformadas

em votos. Uma gestora do PAC, por exemplo, reconheceu sobre o programa: “Olha, a gente

sabe que é uma grande jogada política, todo mundo sabe. Mas, pelo menos, está sendo feita

alguma coisa pela comunidade”(Representante do PAC 4, favela da zona Sul). Da mesma

forma, os policiais da UPP reconhecem que a UPP é um grande programa “eleitoreiro”.

Os moradores, cientes do que precisam fazer para conseguir melhorias para sua

comunidade, seguem esta lógica e tentam se beneficiar. Foram muitos os relatos de moradores

que já haviam apoiado algum político em época de eleição, levando-o pela mão para dentro da

favela, tentando auxiliá-lo em sua busca por votos. Muitos comentavam comigo que estavam

aguardando o próximo ano: 2014 seria um ano de eleições. Segundo os relatos, anos de

eleições costumam ser bastante movimentados nas favelas: “o que tu vai ver de candidato

subindo esse moro: vem distribuição de peixe, vem que fulano vai te ajudar nisso. ‘Não,

quando eu estiver lá, vou te ajudar, quando eu tiver coisa lá, eu vou fazer isso, vou fazer

aquilo’” (Morador 28, favela da zona Norte).

O presidente da associação de moradores da favela da zona Norte considera que eles não

conseguem muita coisa para lá, devido à incapacidade dos moradores de se unirem e votarem

no mesmo político. Reclama que os moradores se vendem por qualquer coisa, como um

pequeno churrasco e uma caixa de cervejas, e que assim eles não conseguem negociar grandes

melhorias para a favela.

Então por exemplo, o candidato espera ter 10 mil votos, 5 mil votos [da favela da zona

Norte], aí teve mil. Ele achou que não é vantajoso pra ele satisfazer aqui, atender às

necessidades daqui. Por causa de mil votos... Se ele teve a oportunidade lá na Penha em que

ele teve 2 mil 2 mil e 500... Ele vai atender à comunidade da Penha, que foi aonde ele

obteve a quantidade maior de votos. Entendeu? Eles não pensam em plantar a sementinha e

em esperar aquela sementinha germinar, eles querem já plantar e colher frutos. E como[a

favela da zona Norte] não está acostumado com isso, então fica difícil de acontecer,

entendeu?( Morador 11, Favela da zona Norte)

Page 93: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

92

Bourdieu (2012) aponta que o capital político, principal espécie de capital valorizada

no campo político, pode se apresentar em duas formas principais: um capital político pessoal,

que diz respeito à força de mobilização que um político detém à título pessoal, firmado no

fato de ser conhecido ou reconhecido em sua pessoa, de ter um nome ou uma reputação, e um

capital delegado da autoridade política, detido e controlado pela instituição, são o

reconhecimento e a fidelidade acumulados por um partido, por exemplo. O acúmulo do

capital político, seja na forma pessoal ou de autoridade, tem o poder de converter-se em votos,

seja para o político em sua esfera individual ou para o partido angariador de fidelidade e

reconhecimento. Conforme Weber (1974, p. 84) já enfatizava, “os homens interessados pela

vida política e que desejam participar do poder tentam, constantemente, aliciar seguidores,

reúnem os meios financeiros necessários e se põem à caça de sufrágios”. Esta caça por votos,

retratada por Weber (1974), aparece de forma muito clara nas favelas, onde a luta por

sobrevivência leva os moradores a se aproveitarem dela. Constitui-se, assim, como uma

influência do campo político no campo burocrático, na medida em que agentes do campo

político que querem um lugar no campo burocrático utilizam esta estratégia, e mesmo os

agentes que já compõe as altas funções públicas do campo burocrático, utilizam-se dela para

manterem-se no campo.

Retomando mais uma vez o exemplo inicial, o problema que ocorreu com o programa

Cimento Social explicita mais uma forma de influência do campo político no campo

burocrático: a formação de acordos políticos aumenta as chances de um agente ser mais bem

sucedido em seu ingresso no campo burocrático, por meio da oferta de cargos, por exemplo, e

tais acordos afetam diretamente as ações desempenhadas pelos agentes do campo burocrático.

Foi neste sentido que o prefeito Eduardo Paes decidiu apoiar o candidato Pezão para o

governo do estado. Embora naquela situação específica o ganho fosse do segundo, na medida

em que o primeiro tentava atrapalhar o sucesso do seu concorrente, um acordo político

envolve ganhos para ambos os lados. Os acordos políticos e seus efeitos (em geral negativos)

sobre às práticas dos agentes do campo burocrático também eram relatados abertamente pelos

agentes:

É, tem o acordo político, você sabe disso, né, o secretário que responde pela Comlurb não

conversa direito com o prefeito, porque sabe que tem que fazer aquela aquele aquela junção

de partido para ganhar uma eleição, né? E aí você tem que dividir um monte de coisa, um

monte de cargo e aí isso afeta no campo, entendeu. Por isso que eu falei para você que o

programa da UPP Social foi um programa muito bacana, muito bem elaborado, mas só que

na prática não funcionou (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul)

Page 94: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

93

Conforme o relato, os acordos políticos podem facilitar em termos de sucesso nas

eleições e, consequentemente, em uma forma de ingresso no campo burocrático, mas também

atrapalham as ações dos agentes do campo burocrático em seu dia a dia de trabalho. O caso da

UPP Social é bastante emblemático neste sentido. O programa precisou ser reestruturado por

não conseguir cumprir sua função inicial de encaminhamentos de demandas: as demandas da

favela eram levantadas pelos gestores, que as registravam em relatórios e as encaminhavam

aos órgãos públicos competentes; entretanto, se o responsável pelo órgão não tivesse um bom

diálogo com o prefeito (tendo em vista que o IPP é um órgão municipal) as demandas não

eram resolvidas e a prefeitura não conseguia ter legitimidade diante dos moradores das

favelas. Os moradores também sofrem com as consequências negativas desta questão.

Relatam que em períodos em que o governo do estado e a prefeitura seguem políticas

diferenciadas, cada um respondendo por um partido independente, eles têm um problema

sério: os dois não se ajudam e ainda tentam se atrapalhar. Os agentes sintetizam esta situação,

consequência da existência de acordos políticos, por meio da expressão “vontade política”:

“dar importância a essa atividade social, depende do partido que tem interesse”

(Representante do CRAS 6, Favela da zona Norte).

Com base nesta discussão, também aparece uma forte oposição entre o “técnico”,

como algo exclusivamente do campo burocrático, e o “político”, que pode sofrer influências

de ambos os campos. Quando algum programa, órgão ou funcionário público quer se dizer

“neutro”, livre de acordos políticos que possam o comprometer, “sem rabo preso” como

dizem por aí, intitulam-se “técnicos”. Esta foi a saída, por exemplo, encontrada pela UPP

Social. Quando o IPP passou para as mãos de uma nova diretoria a principal mudança foi

clara: “despolitizar a UPP Social, ou seja, transformá-la de um programa político em um

programa técnico” (Notas de Campo, 11/03/2014). A ideia era minimizar as influências do

campo político no campo burocrático. Conforme explicou um dos gestores do programa, em

entrevista:

E o que é bom da UPP Social, é que são questões técnicas. Ninguém aqui, esteja gestor,

esteja assistente, entrou aqui porque foi o vereador, porque foi o fulano... não é que eu seja

contra isso, mas eu acho que, muitas vezes, quando a gente, quando a instituição de

secretaria, num programa desse, eu acho que a gente acaba politizando, não, politizando

não, politicando muito mais. Porque, aí, eu sou da área da Tijuca, eu vou querer que o

gestor seja alguém que, se eu for vereador, eu vou querer que seja alguém meu. Pra quando

o serviço chegar, eu dizer que fui eu que mandei. Então, o ponto-chave da UPP Social é ter

as pessoas técnicas (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).

Page 95: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

94

Consequência direta da oposição entre “técnico” e “político” são os cargos “técnicos”

ou “políticos”. Segundo Bourdieu (2012), a mobilização de capital político também se assenta

em estruturas objetivas, em instituições permanentes, como nos postos oferecidos pela

burocracia e instrumentos de mobilização. Conforme lembrou Weber (1974, p. 68), há uma

tendência à distribuição de empregos de toda espécie como formas de gratificações, empregos

estes que são distribuídos por chefes de partido a seus partidários: “as lutas partidárias não

são, portanto, apenas lutas para consecução de metas objetivas, mas são, a par disso, e

sobretudo, rivalidades para controlar a distribuição de empregos”. Os denominados “cargos

políticos” eram frequentes e geravam um certo desconforto em quem a eles estava

subordinado. Conforme explica um representante do Territórios da Paz:

(...) eu acho um absurdo completo, por exemplo, na minha secretaria só ter cargos

comissionados. Eu acho um absurdo completo. Você não tem continuidade política, você

não tem um quadro próprio de servidores concursados, permanente ali. Imagina. Muda

secretário, muda todo mundo. Até é um absurdo, você não tem continuidade nas políticas.

Não tem memória, você não consegue criar memória, entendeu. É um problema do serviço

público brasileiro em geral, você não conseguir criar memória ou não está preocupado com

a memória também (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)

Os “cargos políticos”, além de comprometerem as práticas dos agentes em campo, que

perdem parte de sua autonomia de ação, ainda geram descontinuidades políticas, e os agentes

passam a falar em “políticas de governo”, que mudam com as mudanças no governo, em

oposição às “políticas de estado”, estas sim permanentes: “e [a UPP] também se confundiu

muito com uma política de governo, né, que o governador mudou, muda secretário, muda

comandante e eles vão deixando de lado os projetos que eles acham que não são importantes”

(Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). Conforme lembra Weber (1974, p. 73), “os

funcionários ‘políticos’, no sentido próprio do termo, são, regra geral, reconhecíveis

externamente pela circunstância de que é possível desloca-los à vontade ou, pelo menos

‘colocá-los em disponibilidade’”. É esse deslocamento dos funcionários “políticos”, conforme

a eles se referia Weber (1974), que leva às descontinuidades políticas relatadas pelos agentes.

Os deslocamentos de funcionários “políticos” e as descontinuidades políticas foram

ficando mais claros com o aproximar das eleições. Em janeiro de 2014, os agentes do campo

burocrático do Estado passaram por um momento de forte tensão, quando o PT resolveu

“entregar” todas as suas secretarias. Um funcionário do Territórios da Paz contou, assustado,

para uma gestora do PAC que haveria uma mudança no secretário da SEASDH, e que eles

não tinham nem certeza a respeito da continuidade do programa. Mas eu só tomei ciência do

grau de instabilidade política daquele cenário quando a gestora do PAC me apresentou a

Page 96: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

95

questão em números: contou que seriam publicadas 28 páginas de demissões no diário oficial

– todos cargos políticos. “Meu prédio inteiro vai pra rua!” (Notas de campo, 29/01/2014),

brincou o representante do Territórios da Paz.

Mas Weber (1974) também lembrou que a essa tendência se opõe o desenvolvimento

de um corpo de trabalhadores intelectuais especializados, altamente qualificados, que se

prepararam para o desempenho de sua tarefa profissional. Existem, segundo o autor, as

exigências de ordem técnica. Para suprir essas exigências, existem os “cargos técnicos”, e

aqueles que os ocupam se proclamam neutros. Reconhecem, entretanto, vantagens e

desvantagens de não se ocupar uma posição política neste jogo do Estado:

Então tem uma influência dessa coisa, da questão de eu não ser filiado a partido nenhum,

que eu acho que foi um pouco negativo em termos de me dar força política para

determinadas articulações, mas também teve um lado bom, que é por não ser filiado a

partido nenhum, algumas articulações se tornam mais fáceis (Representante do Territórios

da Paz 2, Geral)

Os moradores também participam dos acordos políticos, que muitas vezes interferem

nas ações dos agentes do campo burocrático em favelas. O funcionamento das associações de

moradores, que aos poucos fui compreendendo melhor, revela essa dinâmica. Em conversa

informal, um gestor do Territórios da Paz comentou, medindo suas palavras, que enquanto a

associação de moradores de um dos morros da favela da zona Sul possui uma “relação de

proximidade” com a prefeitura, a associação do outro morro era “mais próxima” do governo

estadual. Com o tempo comecei a perceber ao que o gestor estava se referindo. Pude observar,

durante as reuniões, que o presidente de uma das associações sempre se posicionava de forma

favorável ao governador, era a favor das UPPs e as defendia “com unhas e dentes”. Chegou

até mesmo a me dizer publicamente que eu poderia fazer a minha pesquisa ali, mas que eu

não deveria sair nestas manifestações que se posicionam contra o governador, exigência que

deixou alguns dos presentes um pouco indignados – “relaxa, a Vanessa não é Black Bloc

não!” (Notas de campo, 07/08/2013). Da mesma forma, a presidente da outra associação,

tendia a defender o prefeito e os programas municipais. Em entrevista, ao ser questionada a

respeito de sua “boa relação” com a prefeitura, me respondeu diretamente: “Eu tenho sim,

com o prefeito! Com o prefeito.... Ele já é uma pessoa mais flexível, entendeu? Do que o

governador” (Morador 13, favela da zona Sul). E completou me explicando que tem contato

direto com ele: “se eles não resolvem, eu vou ao prefeito. Eu deixo o prefeito sempre a última

cartinha, escondida aqui na manga, entendeu?” (Morador 13, favela da zona Sul). Percebi

então que os acordos políticos também se estabelecem com lideranças comunitárias, e mais

Page 97: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

96

uma vez os moradores tiram proveito da lógica do campo para conseguir ter acesso mais fácil

àquilo que precisam para sua comunidade. Ao declarar o seu apoio a um agente do campo

burocrático – nestes casos, prefeito ou governador – que também são, simultaneamente,

agentes do campo político, os presidentes das associações de moradores estavam declarando o

seu apoio político, útil para mantê-los no campo burocrático.

Quando estes acordos não são feitos, a favela tem mais dificuldades em obter algum

benefício. Este é o caso da favela da zona Norte, em que o presidente da associação me

contou, orgulhoso, que não se vendia a nenhum político, não fazia acordos. Reconhecia que as

consequências disso eram um problema: aquela favela recebia poucas ações do Estado, muita

coisa faltava ali. Alguns moradores, por sua vez, estavam insatisfeitos com o posicionamento

do presidente da associação.

O resultado dos acordos políticos reflete-se na dificuldade de articulações que

almejam transpassar estes acordos, e logo se vê porque os programas que foram criados com

este propósito tiveram tanta dificuldade em suas ações. Conforme explica um representante do

programa Territórios da Paz: “Então você tem vários outros partidos funcionando em lógicas

centralizadas; disputa mesmo o espaço de poder. Então é muito, o meio político brasileiro ele

é muito fragmentado para você construir determinadas políticas de articulação institucional”

(Representante do Territórios da Paz 2, Geral). A fala do representante revela como a

excessiva competição política, característica do campo político brasileiro, dificulta uma

articulação entre os agentes do campo burocrático, apontando para a relação entre ambos os

campos.

Voltando, ainda, ao exemplo inicial, a segunda estratégia utilizada pelos moradores

para lidar com o problema do programa Cimento Social consistia em levar à mídia,

transformar o ocorrido em um escândalo político. Esta não foi a primeira vez em campo que

eu presenciei moradores buscando a via do escândalo político para conseguir o que queriam.

Uma moradora da favela da zona Norte teve a sua casa demolida, junto com a de outros

moradores, em um desabamento de terras no ano anterior. Depois de muita luta com a

Secretaria Municipal de Habitação (SMH), conforme ela me relatou meses depois, ela e os

demais moradores decidiram aproveitar o momento de Copa das Confederações para planejar

uma manifestação que consistia em abraçar o Maracanã em dia de jogo, vestindo uma camisa

com os dizeres: “SMH, queremos moradia!”. Quando ela me contou a história, o problema já

havia sido resolvido. Receberam do governo apartamentos em um novo complexo

habitacional. Não precisaram levar adiante a manifestação planejada. A ameaça foi suficiente.

Page 98: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

97

Os moradores sabiam muito bem tirar proveito dos escândalos políticos a seu favor:

qualquer problema na comunidade divulgavam nas redes sociais e, quando possível, na mídia.

A favela da zona Norte lidava com o seu problema do lixo assim. Quando queria a presença

da Comlurb, divulgava no Facebook que a favela estava suja, tática muito mais eficaz do que

o canal formal do 1746: “Quer ver se você tiver um problema na sua rua e quiser resolver

rápido, joga no Face. Assim ó! (estala os dedos). Quando tu vê... ‘Ué, consertou? Tanto tempo

que eu to pedindo, eu ligo pro 1746 e não acontece...’” (Morador 17, Favela da zona Norte).

Além do Facebook, a força da mídia era reconhecida pelos moradores, que acreditam

que não há ameaça maior aos agentes do Estado:

A mídia hoje está no morro. A mídia ela é mais forte que o próprio governo, ela veio para

cá, os caras peidam, irmão, não, porque meu nome vai ser lançado, eu vou ser preso

mediante a mídia, entendeu, então os caras não têm nem medo da UPP. Bota os caras para

descer, acabou, não tem medo do Governo, não tem, tem medo da mídia, irmão, entendeu.

E eles me respeitam, porque eu respeito eles e eles sabem que eu conheço um monte de

gente da mídia. Se eu sentir, meu irmão, que eu estou, sabe, sentindo cheiro de outra coisa,

eu vou falar com a mídia, sou um cara de explanar mesmo, cai para dentro, entendeu e

acabou, eu vou ferrar todo mundo (Morador 20, Favela da zona Sul).

Conforme lembrou Bourdieu (2014), os políticos ou os membros da nobreza do Estado

não possuem uma vida privada, pois esta está sempre sujeita à publicação. Segundo Bourdieu

(2014, p. 104), há, no campo político, uma teatralização do interesse pelo interesse geral, que

é desmascarada pelos escândalos políticos: “os escândalos políticos são a derrocada dessa

espécie de crença política, na qual todos estão de má-fé, sendo a crença uma espécie de má-fé

coletiva, no sentido sartriano: um jogo em que todos se mentem e mentem a outros sabendo

que se mentem”. Como o político é um homem conhecido e reconhecido, estão eles

particularmente vulneráveis ao escândalo, “sendo o escândalo gerador de descrédito, e o

descrédito é o inverso da acumulação do capital simbólico” (BOURDIEU, 2014, p. 260).

Para que não caiam no descrédito e na perda de legitimidade relatados por Bourdieu

(2014), os agentes do campo político e os agentes do campo burocrático que também possuem

participação no campo político respondem prontamente a qualquer iminência de um escândalo

político. Adentrando a favela da zona Sul, vi pendurada na rua principal da favela uma

enorme faixa convocando para uma reunião do PAC. Sabia que as obras do PAC estavam

naquele momento paradas, em decorrência da saída da construtora que estabelecera parceria,

por meio de licitação, com o governo federal para realizar as obras do PAC. Não entendia,

assim, o motivo de uma reunião emergencial. Por coincidência naquele dia me dirigia a uma

outra reunião do PAC, voltada para integração dos moradores do novo prédio. Chegando lá,

Page 99: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

98

minha dúvida foi esclarecida: no domingo anterior saíra uma enorme reportagem no jornal “O

Globo” denunciando os problemas nas obras do PAC da favela da zona Sul, que iam desde

interrupção nas obras à redução do valor do aluguel social, de R$650 para R$400 – a

construtora, agora não mais no programa, ajudava a pagar parte do aluguel aos moradores.

Tentando evitar o descrédito, decorrente do escândalo público, agendou-se uma enorme

reunião para novos esclarecimentos. Os agentes de ambos os campos reconhecem o temor do

escândalo político: “a mídia é muito forte para promover ou deslegitimar programas e tal,

então eu acho que tem esse incômodo mesmo” (Representante da UPP Social 4, favela da

zona Sul).

Não foram raras as vezes em que eu me vi inserida neste jogo. Alguns moradores viam

em mim uma forma de divulgar informações e produzir os tão efetivos escândalos políticos.

Na reunião sobre o Cimento Social, narrada inicialmente, me vi nesta situação. O presidente

da associação fez parecer aos moradores que eu estava ali para dar visibilidade aos “erros” do

Estado – o que, em certa medida, não deixa de estar acontecendo. Os agentes do Estado, por

sua vez, às vezes temiam a minha presença e me perguntaram, inúmeras vezes, se eu era

jornalista.

A influência do campo político no campo burocrático se dá, em síntese, na medida em

que os dois campos possuem lógicas distintas, que se interpenetram. Enquanto o primeiro é

guiado por uma lógica política, o segundo é guiado por uma lógica burocrática, conforme

descrito anteriormente. Entretanto, Bourdieu (2014, p. 437) lembra que é em Maquiavel que

aparece pela primeira vez “a ideia de que a política tem princípios que não são os da moral

nem os da religião”. Bourdieu (2014) ressalta que existe uma lógica política que é indiferente

aos fins éticos, e com esta lógica eu me deparei, com grande pesar, muito mais do que com

surpresa, em muitos dos meus dias de pesquisa de campo. A lógica política pode levar a

resultados que desviam dos princípios éticos – e as pessoas que foram removidas e não

tinham onde morar devido a (des)acordos políticos são apenas um exemplo. Conforme

lembrou Weber (1974, p. 120): “Quem deseja a salvação da própria alma ou de almas alheias

deve, portanto, evitar os caminhos da política que, por vocação, procura realizar tarefas muito

diferentes, que não podem ser concretizadas sem violência” (WEBER, 1974, p. 120).

Diante da forte relação que se estabelece entre campo burocrático e campo político, foi

preciso fazer um esforço para trata-las separadamente. Quando uma figura como o Marcelo

Crivella coordenava um programa como o Cimento Social, ele é um burocrata ou um político?

Não estão os “burocratas” que coordenam o PAC sujeitos à mesma lógica política de pressões

Page 100: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

99

para angariar votos para o governo Federal ou evitar escândalos políticos que o deslegitime?

A explicação que aqui se buscou para resolver este imbricamento entre os campos veio da

compreensão de que muitos agentes do campo burocrático também fazem parte do campo

político, e estes ainda lutam no campo político para manter as suas posições, assim como

agentes do campo político lutam para assumir posições no campo burocrático. Conforme

defende Loureiro et al (2010, p. 74), existe uma “burocratização da política e a politização da

burocracia, fazendo com que ambos adotem estratégias híbridas de atuação”. Foi este

hibridismo que pude observar em meu campo, e que tornou tão difícil estabelecer uma

separação entre ambos os campos.

4.4 Sobre Favelas enquanto Campos de Poder

Embora as favelas não possam ser consideradas como espaços onde habitam apenas

pessoas pobres ou marcados apenas por faltas e ausências, conforme já defendia Machado da

Silva (1967) na década de 1960 – e conforme eu mesma pude constatar ao longo de minha

pesquisa de campo -, há, sem dúvida, nos espaços de favelas, uma série de necessidades

básicas que ainda não foram satisfeitas. Nas duas favelas em que desenvolvi a minha pesquisa

o lixo era um problema gritante. Ainda que os moradores jogassem os seus lixos em

caçambas, estas viviam lotadas e transbordando e, muitas vezes, dificultavam ou impediam a

circulação por determinadas ruas. Como consequência, em ambas as favelas, havia ratos, que

alguns moradores até brincavam de chamar por um nome próprio para revelar, de forma bem

humorada, o frequente convívio com o animal. Quando chovia, ficava claro que o sistema de

esgoto era inadequado: o esgoto transbordava de forma muito intensa, e às vezes chegávamos

a ver fezes boiando pelas ruas. O acesso à saúde e à educação eram precários, assim como o

acesso a transporte público que era inexistente dentro das favelas. Por diversas vezes

vivenciei falta de água e de luz, o que ocorria quase semanalmente, e na favela da zona Sul os

moradores chegaram a passar a noite de natal do ano de 2013 às escuras. As minhas

observações a este respeito eram reforçadas pelas falas dos moradores, que faziam questões

de me apontar os problemas da comunidade, pois viam em mim uma possível via para que

suas demandas fossem atendidas, não importa o quanto eu esclarece que este não era o meu

papel. Embora as favelas tendam a centralizar as discussões em torno do problema de

segurança pública na cidade do Rio de janeiro, esta está longe de ser a única questão na qual o

Estado precisa intervir e prover melhorias dentro destes espaços.

É claro que existem outros espaços da cidade que vivem em situações similares ou

piores do que algumas favelas cariocas. Entretanto, conforme mostrou Valladares (2005), a

Page 101: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

100

criação de uma categoria única que se intitula a “favela” no singular, fez com que estes

espaços se tornassem “símbolos” dos problemas sociais da cidade. E, mais ainda, tratadas no

singular, as favelas passaram a atrair ações do Estado homogeneizadas e homogeneizadoras

(VALLADARES, 2005).

Embora as favelas sejam espaços heterogêneos, cada uma delas com suas

características próprias, os moradores parecem possuir um reconhecimento de sua condição

comum como alvo destas políticas que se voltam para a “favela” no singular (BIRMAN,

2008). Há, segundo Birman (2008, p. 114), um reconhecimento, de que todos ali “são objetos

de uma política discursiva que os aloca numa posição subalterna e estigmatizada,

independente de e contra as suas vontades”, “um reconhecimento de que existe um ‘nós’ cujo

sentido é dado essencialmente pelo fato de serem, em conjunto, alvo dessa política que os

governa”.

Esta identidade conferida a este grupo de pessoas que possuem em comum ao menos o

reconhecimento de serem alvo de uma mesma política, de um mesmo tratamento

estigmatizado - pelo simples fato de habitarem um mesmo espaço geográfico, ou espaços

geográficos com algumas características comuns -, permite relacionar a favela mais

proximamente ao um sentido de campo de poder. Conforme definido anteriormente, consigo

enxergar nas favelas uma rede de relações entre posições, marcada por conflitos, mas também

por cooperações, bem como uma lógica própria de funcionamento. Apoio-me aqui no

pensamento de Fliegstein e McAdam (2012), os quais defendem a existência de uma relação

entre o espaço social, composto de campos, e o espaço geográfico. Para os autores, uma

proximidade geográfica leva também a uma proximidade no espaço social, e por isso é

comum que campos de poder estejam ligados no espaço geográfico. Os autores defendem que

os espaços físicos são também ocupados por campos, e torna-se muito mais fácil a criação de

um novo campo, quando as pessoas que irão fundá-lo possuem um contato físico direto. É

nesse sentido que o crescimento das cidades é uma das forças que claramente estão

envolvidas na proliferação de campos (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Embora não tratasse

as favelas enquanto campos, Cavalcanti (2007) já apontava para esta possibilidade, ao afirmar

que as fronteiras sociais e espaciais tornam-se um princípio estruturador da vida social na

favela, e com o tempo tornam-se estruturas incorporadas, parte do habitus dos moradores de

favelas, por meio de seu reforço e seu apego constitutivo ao espaço.

Como um campo fundado a partir de sua estreita relação com o espaço físico ocupado

por seus agentes, o campo da favela, conforme chamarei aqui, tem no próprio espaço físico

Page 102: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

101

uma condição definidora de seus agentes e dos próprios limites do campo. Dito de outra

forma, para que se faça parte do campo da favela é preciso possuir um parte do espaço físico

que a constitui. Cavalcanti (2007) defende que seria enganador inferir que, quando os

moradores de favela mudam-se para regiões externas próximas às favelas os limites da favela

são reconfigurados, pois partir para essa hipótese seria equivalente a assumir o argumento da

“cultura da favela”, e assumir que os moradores de favela levam a favela com eles. Ao

contrário, conforme mostra a autora, a distância simbólica entre morar na favela e morar de

frente para a favela é a principal atração para se mudar para fora da favela, para sua

vizinhança desvalorizada. É nesse sentido que afirmo que o campo da favela corresponde e

restringe-se ao seu espaço geográfico ou tem na dimensão espacial um forte elemento

constitutivo.

Embora não tenha aqui o objetivo de descrever em detalhes o jogo no campo da favela

e suas dinâmicas de capitais, conforme farei com o campo burocrático do Estado mais

adiante, me proponho apenas a apresentar os elementos empíricos que me levam a crer que,

para os propósitos da presente pesquisa, é possível compreender as favelas enquanto campos.

Segundo Bourdieu e Wacquant (2012), o principal aspecto que define um campo é o fato

deste possuir uma lógica própria. No caso das favelas foi possível observar a existência de

uma lógica própria a qual chamarei aqui de lógica de “lutas”, denominação que parte de uma

expressão cunhada pelos próprios moradores. Diante de uma série de necessidades básicas

não satisfeitas e de uma escassez de ações do Estado, os moradores de favelas são guiados por

um sentido de urgência, tendo em vista que lhes faltam coisas básicas para sua sobrevivência.

Nesse sentido, passaram a assumir para si a responsabilidade de “lutar” para que suas

demandas sejam satisfeitas, seja fazendo eles mesmos, seja por meio de um grande esforço

para cobrar uma ação do Estado. Parece existir uma crença generalizada de que os moradores

de favelas precisam lutar.

Não foram poucas as vezes em que ouvi na minha pesquisa, relatos de moradores mais

idosos a respeito de seu passado de “luta” na comunidade. Cavalcanti (2007) identificou em

sua pesquisa o uso do termo “luta” pelos moradores para se referir a um período marcado por

esforços coletivos voltados para o melhoramento das construções e dos serviços coletivos na

favela. Segundo Cavalcanti (2007, p. 128), a expressão “muita luta” “has a teleological effect

that is productive of a sense of agency, and of a mode of identification that expresses an ethics

Page 103: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

102

that values hard work and perseverance14”. O que significa dizer que para os moradores as

coisas não chegam com facilidade. Assim, a construção material da favela é atribuída ao

trabalho físico e aos investimentos financeiros desempenhados pelos moradores ao longo dos

anos (CAVALCANTI, 2007).

Também em minha pesquisa deparei-me com estas falas, que me contavam sobre uma

vida na favela muito mais difícil do que a atual, e que diziam que os jovens de hoje tinham

tudo muito fácil. Contavam-me sobre as longas horas que passavam na fila para pegar água,

para as quais chegavam a levar colchões para passar a noite; falavam-me sobre como

construíram com as próprias mãos suas casas, o atual sistema de distribuição de água e o de

esgoto da favela, e às vezes discutiam se determinada obra havia sido realizada por eles ou

por algum programa público – já não se lembravam mais.

Embora Cavalcanti (2007) tenha se referido às “lutas” para marcar um período

específico da vida na favela, o termo “lutas” ainda é hoje usado pelos moradores para retratar

a dinâmica da favela, e o mecanismo que eles utilizam para conseguir melhorias para este

espaço. As “lutas” retratam tanto o fato de os moradores fazerem muitas coisas por eles

mesmos, como obras, mutirões de limpeza ou de construção, quanto a estratégia por eles

desempenhada para conseguir atrair ações do Estado ou fazer com que os órgãos públicos

cumpram a sua função dentro das favelas. “Antes era muita dificuldade mesmo. E hoje você

sabe a minha luta, né? (Morador 6, Favela da zona Norte) – assim comparou uma moradora o

período passado e o atual. As lutas ainda se fazem presentes e necessárias para a conquista de

melhorias nas favelas: “Se tem alguma coisa aqui, é com muita luta. Muita luta” (Morador 26,

favela da zona Norte).

Os moradores hoje se referem a estas “lutas” como marca de sua relação com o

Estado, e afirmam que para conseguir alguma coisa dos órgãos públicos é preciso “muita

luta”. As lutas às quais os moradores se referem, necessárias para conseguir alguma ação do

Estado, versam desde abaixo-assinados entregue aos órgãos públicos em prol de alguma

demanda, à denúncias ao Ministério Público, denúncias nas redes sociais ou na imprensa,

ameaças ou concretizações de manifestações, incessantes ligações de vários moradores ao

1746, ou até ações um pouco mais violentas quando os agentes do Estado levam adiante ações

com as quais os moradores não concordam. Este foi, por exemplo, o caso dos nomes de ruas

na favela da Formiga, conforme me relatou um representante da UPP Social:

14 Tradução Livre: tem um efeito teleológico produtor de um senso de agência e de um modo de identificação que expressa uma ética que valoriza o trabalho duro e a perseverança.

Page 104: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

103

Inventaram o decreto de que todas as ruas da Formiga iam receber o nome de fruta. Estou

morando na Formiga, na Uva, na Formiga, Melão da Formiga, pô, gente, tá de sacanagem.

Os moradores não aceitaram. Então quando alguém foi lá botar a placa, eles sacudiram a

escada para o cara cair. E não vai botar. E não aceitaram, não botaram (Representante da

UPP Social 2, Favela da zona Norte)

E as “lutas”, muitas vezes, parecem ter resultados, ainda que após alguma situação de

estresse com o órgão público que está sendo demandado. Uma moradora bastante engajada

neste tipo de ação, especialmente em relação a problemas de lixo da comunidade, contou com

orgulho suas conquistas em relação à Comlurb:

Quantas e quantas vezes eu deixei eles enfurecidos comigo. Já troquei três pessoas da

Comlurb para a comunidade. Se eles começam a vacilar com a comunidade ‘ah, não vou

fazer isso, ah, não quero fazer isso’. Eu meto o pau mesmo. Vamos embora. Você não

servem para a comunidade (Morador 6, Favela da zona Norte).

Entretanto, como o campo burocrático do Estado, guiado por uma lógica burocrática,

parece ter mais dificuldades de atuar em espaços como as favelas, para além de qualquer tipo

de falta de vontade de que se possa acusa-los, os moradores encontram no campo da política

um imediatismo semelhante ao presente no campo da favela: enquanto os moradores querem

que suas demandas básicas sejam atendidas com urgência, justamente porque dizem respeito a

necessidades básicas não atendidas, os agentes do campo político querem angariar seus votos,

com urgência, para as próximas eleições. Por isso, os moradores também apelam muitas vezes

para o campo político, contando com a sua influência no campo burocrático, conforme

mostrado anteriormente. Zaluar (2000) também mostrou como os moradores da Cidade de

Deus, favela em que a autora realizou sua pesquisa de campo, recorriam a políticos para

satisfazer as suas demandas, como canal de acesso ao governo, que não os dá o que precisam.

Nas favelas aqui pesquisadas os acordos políticos também se mostraram presentes, conforme

já relatado, como uma forma de “luta” para conquistar melhorias para a favela, o que pode se

apresentar como uma alternativa mais fácil, diante do imediatismo comum aos campos

político e da favela.

Quando a articulação com o campo político não é bem sucedida, e quando o campo

burocrático do Estado não consegue atendê-los - seja por conta da sua lógica burocrática, que

impõe uma série de exigências de formalização a qualquer ação, seja pela dificuldade de criar

novas rotinas em um novo território com o qual não estão familiarizados -, os moradores de

favelas, diante da urgência que lhes é comum devido à natureza de suas demandas, optam por

fazer por eles mesmos, ainda que para isso precisem partir para a informalidade. Enquanto o

campo burocrático do Estado é marcado pela lógica burocrática, que exige alto grau de

Page 105: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

104

formalização, o campo da favela e sua lógica de “lutas” é pautado em uma informalidade, que

os permitir “lutar” de maneira mais ágil e funcional. Misse (2013) mostra como as favelas são

marcadas pela ilegalidade e pela informalidade, desde sua forma de moradia irregular até o

transporte e o sistema de entrega de correspondências irregulares. O mesmo pode ser

observado em minha pesquisa de campo. Nas favelas que frequentei, os traços da

informalidade estavam por toda parte: os meios de transporte que eu usava para subir os

morros variavam entre a Kombi e o moto-taxi, ambos irregulares; nas associações de

moradores havia amplos escaninhos onde era organizada a correspondência a ser distribuída

na favela, tendo em vista que os endereços não eram formalizados; as moradias não possuíam

um registro formal; as organizações que funcionavam na favela e quase todo o comércio eram

irregulares; boa parte da energia elétrica era distribuída pela comunidade por meio dos

famosos “gatos”, ligações elétricas ilegais.

Partindo para a informalidade, nestes anos de “luta” em prol da comunidade, em

muitos aspectos os moradores de favelas aprenderam a ser muito mais ágeis e funcionais do

que o próprio Estado. Em outras palavras, eles aprenderam a resolver os próprios problemas

em um ritmo de urgência compatível à natureza de suas demandas, de uma forma que o

Estado, em sua lógica burocrática, ainda não consegue fazer. Por isso, em alguns casos eles

assumem a incapacidade dos agentes do Estado de resolver os problemas, reconhecem a sua

funcionalidade superior, e arregaçam as mangas, fazem eles mesmos o que seria função do

Estado.

Já em meus primeiros contatos com a favela da zona Sul, primeira favela que

frequentei, me deparei com uma infinidade de organizações criadas pelos próprios moradores

para tentar suprir demandas não atendidas pelo Estado – suas ações giravam em torno de

questões ambientais, educacionais, música, dança... Embora a favela da zona Sul recebesse

especial atenção, por se tratar de uma favela de grande visibilidade, e por isso recebesse mais

recursos e apoios para este tipo de organização, logo no início da minha pesquisa de campo

tive oportunidade de constatar que esta não era uma característica que se restringia a ela.

Participei do evento Troca de Saberes, organizado pelo Territórios da Paz, na favela da

Rocinha. Lá tive oportunidade de conhecer diversos projetos de moradores das mais diversas

favelas da cidade, que se propunham a suprir as demandas não atendidas, naquele caso

especialmente voltadas para a área ambiental, foco do evento. Foi neste mesmo evento que

conheci a senhora que me levou para conhecer a favela da zona Norte, onde também realizei

Page 106: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

105

minha pesquisa de campo. Mesmo lá, uma favela de pouca visibilidade, esta senhora

organizava um projeto voltado para o problema de poluição do Rio local.

Para além deste tipo de organização, que funcionava de uma forma mais permanente,

os moradores de favelas têm, em geral, o hábito de realizar mutirões, nos quais se organizam

coletivamente para realizar alguma ação em prol da comunidade. Tive oportunidade de

participar de alguns destes mutirões na favela da zona Norte. Os moradores queriam remover

o lixo de uma pedra no alto do morro, muito importante para a história da comunidade: ali era

o local onde no passado pegavam água; depois se tornou o “micro-ondas15” do tráfico de

drogas, e com a entrada da UPP virou local de grande acúmulo de lixo. A ideia era retirar o

lixo para a construção de um eco-museu. Recorreram à Comlurb para a retirada do lixo. A

Comlurb respondeu que não seria capaz de atender a esta demanda. Assim, fizeram um

acordo de que eles retirariam e ensacariam o lixo, e a Comlurb desceria com o lixo aos

poucos, de dez em dez sacos. Reconhecendo a incapacidade da Comlurb de resolver este

problema, o assumiram para si, arregaçaram as mangas, e com “muita luta”, tiraram o lixo de

lá.

A lógica parece ser esta: se o Estado não tem condições de fazer, os moradores fazem

por eles mesmos. Esta lógica foi retratada em entrevista por uma moradora:

as coisas que acontecem aqui que eu te falei é na força do braço. Então eu acredito que ( )

da comunidade a gente não espera o Poder Público chegar, a gente não espera o Estado

chegar, ( ) a gente, a gente. Que que tem que fazer? Tem que desentupir bueiro. Vai lá,

desentope. Árvore está ameaçando cair em cima da casa de uma pessoa. Tem que vir o

Estado. Não. Vai lá, corta a árvore (Morador 22, Favela da zona Norte).

Os próprios agentes do Estado reconhecem que muitas vezes os moradores têm mais

facilidade do que eles para lidar com alguns problemas da comunidade. E cheguei a

presenciar agentes do Estado recorrendo a moradores, com pedidos de ajuda. Caminhava com

uma moradora da favela da zona Norte pelas ruas da favela, e quando chegávamos na rua

principal, mais larga, cruzamos com um mini-trator da Comlurb. O motorista, que parecia já

conhecer a moradora, disse para ela que estava cheio de buracos em uma das subidas do

morro, que estavam dificultando a subida da Comlurb. Perguntou à moradora se ela sabia que

outro órgão público era responsável pelos buracos, e pediu para que ela entrasse em contato

com a CEDAE para verificar se aquilo era de responsabilidade deles.

A necessidade das “lutas” para que suas demandas sejam satisfeitas parece não ser

mais questionada, nem por moradores de favelas, nem pelos agentes do Estado. Por diversas

15 Local onde os traficantes queimavam corpos.

Page 107: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

106

vezes os agentes do Estado criticavam os moradores porque estes não se mobilizavam, não

participavam das reuniões, não se inscreviam em cursos oferecidos, como se sua falta de

esforço fosse um dos grandes motivos que justificasse a situação atual das favelas. E mesmo

entre os moradores parecia haver uma aceitação de que eles tinham a obrigação de fazer mais

esforço. As mesmas queixas que faziam os agentes do Estado, faziam os moradores a si

mesmos: reclamavam que eram desmobilizados, que quase ninguém comparecia às reuniões,

e ouvi uma liderança comunitária fazer um discurso acalorado aos jovens, dizendo que eles

tinham que se esforçar muito mais do que os outros, porque eles eram negros e pobres.

Na ocasião do mutirão de limpeza relatada anteriormente, eu parecia a única realmente

indignada com a incapacidade da Comlurb de retirar o lixo dali – indignação que só fez

aumentar quando dois policiais da UPP pararam para filmar a nossa ação de limpeza. Bastante

inconformada com aquela situação, diante da enorme quantidade de lixo que ainda tínhamos

que retirar, enquanto trabalhava questionei a um morador a respeito do motivo da

impossibilidade da Comlurb. O morador me respondeu que a Comlurb não tinha

infraestrutura e nem efetivo suficiente para realizar o trabalho. Deixando escapar a minha

indignação falei em voz alta “a Comlurb não dá conta, mas os moradores dão, né?” (Notas de

Campo, 21/09/2013). Um representante da UPP Social que também ajudava no mutirão tentou

“salvar” a Comlurb (e o munícipio em geral) da minha crítica e respondeu: “mas tem coisas

que a gente não tem condições mesmo de fazer” (Notas de Campo, 21/09/2013). Meio sem

graça respondi: “entendo...” (Notas de Campo, 21/09/2013), e guardei para mim a minha

indignação. Posteriormente, em entrevista com uma moradora, percebi que os moradores

pareciam não questionar o fato de estarem fazendo o trabalho da Comlurb. A moradora,

orgulhosa, assim me retratou a contribuição da Comlurb para os mutirões na pedra: “A

Comlurb tá fazendo o papel dela. Ela tá providenciando os sacos que nós estamos enchendo,

né? Ela está descendo... Todo dia ela carrega dez saquinhos e coloca lá na caçamba e leva”

(Morador 4, Favela da zona Norte). Com o tempo pude identificar de onde vinha este aparente

conformismo dos moradores com a incapacidade do Estado em atendê-los: os moradores

entendiam, muito melhor do que eu, que para o Estado a favela era um território novo e

complexo, e que eles precisariam de tempo para criar novas rotinas que incluíssem este

espaço “alheio” da cidade. Diante deste reconhecimento, moradores e agentes do Estado

assumiam que os primeiros precisavam “lutar”.

O que me inquietava não era a visão de que é necessária uma mobilização social.

Sempre acreditei e defendi esta ideia, e não foi à toa que decidi me dedicar à área de estudos

Page 108: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

107

organizacionais, quando constatei a dimensão libertadora que a noção de organizações

também pode conter, embora a primeira vista pareça paradoxal. Entretanto, qualquer forma de

desigualdade sempre me inquietou, e me deparei em campo com uma forte desigualdade de

percepções em termos do que são obrigações de um morador de favelas e de um morador do

“asfalto”. Como parte do segundo grupo, nunca tive que fazer grandes esforços para ter o meu

lixo removido, e também nunca sofri pressões para participar de reuniões com os mais

diversos órgãos públicos, e ainda assim tive minhas necessidades básicas atendidas. Por que

se cobra de um morador de favelas um esforço tão maior?

O esforço dos moradores desencadeavam-se nas “lutas” devido a uma coesão social

existente nas favelas. Conforme demonstrou Grillo (2013), pode-se dizer que há nas favelas

uma experiência de comunidade, enquanto uma vivência comum ou um compartilhamento.

Segundo a autora, embora não se possa dizer que todos se conhecem ou saibam tudo sobre a

vida alheia, há, nas favelas, redes sociais de interconhecimento densas e extensas. Neste

mesmo sentido, Misse (2013) também defende em sua pesquisa que há, nas favelas, forte

coesão social, como nenhuma região de classe média da cidade é capaz de alcançar.

Entretanto, esta coesão social não é harmônica. As favelas são marcadas por disputas

internas e por grupos antagônicos que concorrem entre si. Tive que aprender a circular com

muito tato entre os grupos antagônicos em ambas as favelas, que também me disputavam

como recursos de poder. Aprendi a identificar os principais grupos em disputa, os líderes de

cada grupo, e após esse exercício confirmava com alguns agentes do Estado, especialmente da

UPP Social e do Territórios da Paz (que pareciam ter um conhecimento mais profundo a

respeito da dinâmica da comunidade) se eles identificavam os mesmos grupos que eu.

As disputas se revelavam de formas diversas. A concorrência talvez mais óbvia se

dava em torno da associação de moradores, um núcleo organizacional de destaque no

território de favelas. Em ambas as favelas pude identificar grupos de oposição à associação

em vigência, que faziam planos e traçavam estratégias para ganhar o poder nas próximas

eleições. Estes grupos também disputavam os recursos do Estado investidos nas favelas, e

ouvi várias acusações de “roubos” de projetos, de ideias, ou disputas por materiais. Em

ocasião em que os moradores foram forçados a montar conjuntamente um “projetão” para

angariar um recurso oferecido pelo BNDES, tais disputas tornaram-se ainda mais evidentes.

Os moradores se recusavam a “colocar o seu projeto na mesa” para juntar com os demais,

porque acreditavam que suas ideias seriam roubadas. E as reuniões para a construção deste

projeto, as quais eu acompanhei desde o início da minha pesquisa, eram ambientes de disputas

Page 109: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

108

muito mais do que de consenso, o que aumentou ainda mais a dificuldade de se chegar a um

projeto final.

Também pude observar, ao longo de minha pesquisa de campo, inúmeras disputas

entre moradores em torno da posse de espaço na favela, como um recurso, ou um capital, nas

palavras de Bourdieu, importante para defini-los enquanto parte do campo. Até hoje me

recordo com detalhes da primeira reunião entre UPP e moradores que participei na favela da

zona Sul. Quando o comandante abriu a discussão para ouvir as queixas da comunidade, a

reunião passou a girar em torno da temática do espaço, e diversos moradores questionavam

como deveriam fazer para conseguir espaço, fosse para projetos socais ou para moradias, e

outros reclamavam de invasões e discutiam formas de retomar um espaço que antes era seu.

Uma moradora contou, por exemplo, que o espaço da rádio comunitária que ela comandava

havia sido cedido, pela prefeitura e pelo presidente da associação, para uma família que

perdeu a sua casa em um desabamento na favela. Queixou-se de estar sendo impedida de dar

continuidade às atividades da rádio, porque a família havia ocupado o local, e brincou que

eles já tiveram três filhos desde que se mudaram para lá. Outro morador, também brincando,

sugeriu que lhes dessem uma televisão, para evitar o aumento da família e a ocupação

permanente do espaço.

De forma ainda mais surpreendente, ouvi sérias discussões entre moradores, em ambas

as favelas, por terem sido acusados de não serem moradores da favela. Na favela da zona

Norte, em ocasião da festa de comemoração do aniversário da comunidade, duas senhoras

discutiram fervorosamente porque uma havia acusado a outra de ser moradora do asfalto e de,

portanto, não poder dar palpite a respeito da organização da festa. A discussão terminou em

choro e em gritos da segunda moradora, argumentando que embora ela morasse na parte baixa

da favela, ali ainda era favela. Já na favela da zona Sul, em algumas reuniões comunitárias, do

PAC ou da UPP, moradores foram acusados de não ter mais direito a voz, porque, afinal,

haviam se mudado para fora da favela. Estas acusações também terminavam em intensas

discussões.

Dentro das favelas pesquisadas havia, ainda, divisões territoriais que também geravam

disputas. Alvito (2006) refere-se a estas divisões como microáreas da favela, e mostra o apego

dos moradores a suas localidades de origem, e a competição entre elas. Indo ao encontro do

autor, também pude observar nas favelas subdivisões internas, e percebi como estas

subdivisões também impunham competições, tendo em vista que cada localidade buscava

atrair recursos para si, por meio de suas “lutas”. Esta temática será explorada em mais

Page 110: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

109

detalhes em capítulo posterior. Mas cabe aqui ressaltar que a subdivisão territorial também é

marca das disputas internas às favelas, reforçando a possibilidade de pensá-las como campos

de poder.

As disputas também se davam entre favelas. Como os recursos fornecidos pelo Estado

eram escassos, as favelas precisavam lutar entre elas. Tive oportunidade de participar de

algumas reuniões que contavam com a presença de representantes de diferentes favelas.

Nestas, percebi um discurso de competição voltado para atração de recursos públicos, e para

queixas de que algumas favelas eram privilegiadas em detrimento de outras. Os moradores

brincavam, inclusive, que tinham que fazer mais coisas para chamar atenção em suas favelas,

para sair na mídia e, consequentemente, ganhar mais atenção do Estado. A fala de uma

representante do Territórios da Paz, ao me explicar porque ela resolveu criar reuniões

conjuntas para promover trocas entre diferentes favelas, revela o reconhecimento desta

competição entre favelas:

Quando eu comecei, eu comecei muito por conta disso. “Nós somos a melhor favela, aqui

ninguém entra, a gente é foda, a gente isso, a gente aquilo”. Eu falava assim: “[Rodolfo],

por que vocês são a melhor favela?” “Porque a gente arrasa numa reunião, a gente pode

chegar a uma Casa Civil, porque...”. “Pô”, eu falei “vem cá, tu conhece as lideranças do

Borel? Você conhece as lideranças lá do Leme? Você tem noção, [Rodolfo], do poder de

articulação?” “Ah, duvido”. “Então tá. Peraí, peraí que eu vou te convidar para você

conhecer”.

Mas como campos, as favelas também possuem relações de cooperação. As “lutas”

eram marcadas por criação de parceria entre os moradores. Era apenas por meio destas

coalizões ou relações de cooperação entre eles que era possível a realização de mutirões, a

criação de algum tipo de organização para suprir uma demanda da comunidade a qual o

Estado não consegue atender, ou para a cobrança de algumas demandas. As relações de

cooperação também se davam entre favelas, e era muito comum que as lideranças

comunitárias das favelas se conhecessem e estabelecessem contato, para troca de informações,

ou até mesmo parcerias diretas para realização de alguma ação conjunta.

Mas como todo campo, também nas favelas os agentes ocupavam posições, e era

possível perceber que alguns aproximavam-se mais da posição de incumbentes do campo, e

outros da posição de desafiadores. A expressão “donos do morro”, usada pelos moradores

para assim se referir ao chefe do tráfico daquela favela, é bastante simbólica da posição de

dominantes ou incumbentes ocupada pelos traficantes nos espaços das favelas. Estes são

designados como os donos do recurso capaz de definir um agente como parte do campo: o

espaço físico da favela. E o fato de os moradores se guiarem por uma “lei do tráfico”,

Page 111: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

110

conforme será discutido no próximo capítulo, também revela a posição de domínio destes

agentes. Para além do tráfico, também é comum a identificação dentro das favelas de agentes

intitulados “lideranças comunitárias”, em geral reconhecidas por todos como tal. O termo

“liderança” também é revelador de outros agentes que se aproximam mais desta posição de

incumbentes e, consequentemente, de uma desigualdade de poder dentro do campo da favela.

Também em ocasião da construção do “projetão” para angariar recursos do BNDES, em meio

aos conflitos, as posições de dominância revelaram-se. Em uma das favelas, por exemplo,

uma organização de muito poder, escolheu quais seriam os moradores que poderiam participar

com os seus projetos do “projetão” maior. Aqueles que ficaram de fora, foram procurar se

inserir no projeto da favela vizinha, pois aquela organização ditou que assim seria. Os agentes

do Estado reconhecem o domínio das “lideranças comunitárias” e precisam aprender a lidar

com elas para a realização de seu trabalho:

Porque também tem isso, né, toda liderança fala por um grupo de pessoas. Então ela tende a

centralizar que esse grupo de pessoas seja representado e que se fala com esse grupo de

pessoas. Também não gosta muito que você acesse pessoas que não são representadas por

eles, entendeu. Até porque isso poderia enfraquecê-los, de certa forma (Representante do

Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte)

Optei por tratar aqui também a favela enquanto um campo diante de algumas

evidências empíricas que me aproximaram do conceito: como todos os campos, as favelas

parecem possuir uma lógica própria, a qual aqui denominei de lógica de “lutas”, marcada pela

informalidade; relações de disputas e cooperações parecem marcar o espaço das favelas e a

relação entre favelas; os agentes que disputam parecem assumir relações assimétricas, nas

quais uns (como traficantes ou lideranças comunitárias) possuem mais poder do que outros.

A discussão aqui empreendida e a forma como parti dos dados para me aproximar do

conceito de campo das favelas são sintetizados na Figura 3 a seguir:

Page 112: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

111

Campo das Favelas

Lógica de “Lutas”

Disputas e Cooperações

Posições dos agentes do campo

- Os traficantes como os “donos do morro”;

- As lideranças comunitárias.

- Disputas entre grupos antagônicos de moradores;

- Disputas entre microáreas das favelas;

- Disputas entre favelas;- Cooperação entre moradores;- Cooperação entre favelas.

- “lutas” dos moradores para atrair ações do Estado;

- “lutas” dos moradores para fazer por eles mesmos o que o Estado não consegue fazer.

Figura 3. Campo das favelas

4.5 Conclusão

O presente capítulo teve por objetivo demonstrar como cheguei ao conceito de campo

para retratar teoricamente tanto Estado quanto favelas. Procurei mostrar, nesse sentido, que a

observação empírica de que, tanto Estado quanto favela, eram marcados por relações de

disputas e cooperações, que se davam de forma assimétrica, expressando relações de poder, e

que ambos eram guiados por uma lógica própria de funcionamento, ajudou-me a corroborar a

minha crença inicial de que eu estava analisando campos de poder.

No campo burocrático do Estado, além das disputas e cooperações entre agentes, pude

observar uma lógica burocrática, expressa por regras e normas, formalismos, impessoalidade

e meritocracia. Além disso, também revelou-se em meus dados uma estreita relação entre o

campo burocrático e o campo político, e uma mútua influência entre eles, com efeitos diretos

para ação dos agentes do campo burocrático nas favelas.

De forma mais inesperada, pude observar que também as favelas podem ser

aproximadas do conceito de campo, tendo em vista que estas também são marcadas por

disputas e cooperações, e por uma lógica própria, a qual aqui denominei de lógica de “lutas”.

A informalidade, que possibilita as “lutas”, leva a uma agilidade e funcionalidade dos agentes

da favela que se apresenta de forma superior aos agentes do Estado.

Page 113: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

112

A compreensão da favela enquanto um campo ajuda a elucidar a análise empírica na

medida que nos leva a compreender a relação entre Estado e favela como uma relação entre

dois campos de poder, com lógicas e dinâmicas distintas, que quando se encontram produzem

efeitos importantes, distintos dos efeitos das ações do Estado em outra região qualquer da

cidade. O conceito de campo, além de representar teoricamente as redes de relações

observadas tanto no que diz respeito à favela quanto no que diz respeito ao Estado, serviu para

elucidar as particularidades da relação que se estabelece entre eles. É nesse sentido que

tratarei a partir daqui a relação entre o campo burocrático do Estado e o espaço social de

favelas, a partir da perspectiva de que a produção deste espaço se dá em meio a um choque

entre campos com lógicas distintas.

Page 114: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

113

5 O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NAS FAVELAS: AS LÓGICAS EM DISPUTA E O CAPITAL ESPACIAL

Maio de 2005. Cheguei à favela de Bela Vista mais tarde do que o usual; eram cerca de

duas horas da tarde. Após estacionar no pé do morro, contemplei a possibilidade de subir de

Kombi. Mas, além de ter perdido a hora do rush das crianças voltando do turno matutino da

escola – o que implicaria uma longa espera para a Kombi encher – gostava mesmo de subir

a pé. Tomei o caminho do principal beco de acesso à Bela Vista. Este conduz o pedestre por

um caminho tortuoso que desemboca na única rua da favela. Nessa junção, lancei (como

sempre fazia) um olhar discreto para a “boca”. Como era de se esperar a essa hora do dia,

os seis ou sete enormes fuzis (além de algumas pistolas) ostensivamente à vista

contrastavam com o semblante entediado dos jovens que os seguravam. Aglomerados em

torno de um banco de concreto à sombra de uma amendoeira, jogavam conversa fora;

relaxados, fumavam um enorme baseado.

Algo parecia fora do lugar, mas eu não identificava de imediato a fonte do meu

estranhamento. Um segundo olhar, agora menos discreto, revelou o que me inquietava:

cerca de três metros dos jovens com suas armas, havia uma caminhonete da Light – a

empresa provedora de eletricidade do Rio de Janeiro. Pouco acima da “boca”, um técnico

da empresa, amarrado ao poste, distraidamente consertava os estragos do tiroteio da noite

anterior. Ele parecia tão indiferente aos jovens armados quanto estes à sua presença

(CAVALCANTI, 2009, p. 70).

Li e reli muitas vezes a introdução do texto da Mariana Cavalcanti. Repetia a leitura

não só porque me emocionava, mas também porque aquela cena não me era nada familiar.

Sabia que nas favelas pelas quais eu circulava, agora apelidadas de favelas “pacificadas”, a

situação narrada nunca seria vista. A cena voltou a se tornar uma impossibilidade.

Foi anterior à leitura deste artigo que vi cair por terra mais um dos meus falsos

pressupostos: a máxima de que não existia Estado ou serviços públicos nas favelas antes da

entrada das UPPs. Discussões com pesquisadores de outras áreas, depoimentos acalorados de

pessoas que agiam como representantes do Estado em favelas “não pacificadas”, narrativas

dos moradores de favelas, que lembravam do governo Brizola com paixão, e leituras de livros

e artigos que retratavam períodos anteriores às UPPs, me convenceram, por definitivo, de que

a UPP não “abriu as portas” da favela para o Estado pela primeira vez na história. Mas a

desconstrução dessa crença deixou sem resposta uma pergunta que me inquietava: afinal, o

que mudou na relação entre Estado e favela com o programa das UPPs?

Embora a presença de representantes do Estado nas favelas não tenha sido inaugurada

com as UPPs, os moradores sempre se referiam a um período anterior e posterior à entrada do

Page 115: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

114

programa nas favelas. Em ambas as favelas, os moradores pareciam assumir como um marco

histórico ou um “divisor de águas” na história das favelas a instalação da UPP.

Em conversas informais com outros pesquisadores, argumentava-se que a política de

“pacificação” apenas intensificou a presença do Estado em favelas. Mas cada vez que eu

voltava ao artigo da Mariana, ficava menos convencida desta explicação. O que eu via nas

favelas não eram cenas de indiferença mútua entre Estado e tráfico que se repetiam com mais

frequência. As relações se complexificaram, e eu não seria capaz de sintetizar em uma ou

duas cenas a relação entre Estado e tráfico que eu via na favela “pacificada”.

Guiada por estas inquietações, fui conduzida a primeira pergunta de pesquisa,

necessária para que eu alcançasse o meu objetivo geral de pesquisa: como os agentes do

campo burocrático do Estado se fazem presentes no espaço social de favelas, no contexto da

“pacificação”?

Parto de uma contextualização da relação entre os agentes do campo burocrático do

Estado e as favelas, em um período anterior às UPPs. Para isso, baseio-me, principalmente,

em pesquisas anteriores realizadas neste período pré-UPP, e na fala dos moradores, que

constantemente comparavam o “antes” e o “depois” da presença das UPPs. Em seguida,

analiso as estratégias argumentativas de legitimação utilizadas pelos agentes e suas lógicas

institucionais, comparando-os com base em características que os distinguem. Para isso,

selecionei falas gravadas e transcritas em entrevistas e reuniões referentes aos seguintes

agentes do campo burocrático do Estado: UPP, PAC, UPP Social, Territórios da Paz e CRAS.

Estes programas foram selecionados como foco de análise por terem sido os programas que se

mostraram mais presentes e com os quais tive mais interação e, portanto, a respeito dos quais

eu possuía mais dados. As falas selecionadas diziam respeito aos argumentos de persuasão,

tendo em vista a legitimação dos programas, apresentados pelos agentes. Estas falas foram

analisadas por meio de análise retórica, complementada pela análise argumentativa, conforme

descrito no método de pesquisa.

Por fim, apresento uma discussão a respeito das disputas pelas espécies de capital

valorizadas no campo burocrático do Estado em questão. Para tal, pautei-me nos dados

referentes a observação e entrevistas com agentes do Estado e com moradores, que foram

analisados seguindo a perspectiva da teoria fundamentada, conforme descrita por Strauss e

Corbin (2008).

Page 116: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

115

5.1 Da “Época dos Meninos” a “Depois das UPPs”

Não obstante as minhas tentativas iniciais de escapar da minha tendência a dar

centralidade às UPPs na análise do campo burocrático do Estado nas favelas - principalmente

porque acreditava que esta minha tendência referia-se a uma forte influência do discurso

midiático-, os moradores colocavam e recolocavam as UPPs no centro das minhas análises.

Quando questionados a respeito das ações de representantes do Estado ou órgãos públicos nas

favelas, os moradores nunca deixaram de mencionar as UPPs em primeiro lugar, e muitas

vezes suas falas restringiam-se a elas. E ao me narrar o histórico de ações do Estado nas

favelas, as UPPs eram novamente figura de destaque: apareciam como um “divisor de águas”,

falava-se em um “antes” e em um “depois” das UPPs: “É um marco, né. A pré-pacificação e a

pós-pacificação” (Representante da UPP Social 1, Geral).

Pode-se considerar que as favelas, conforme retratadas aqui, configuraram-se

historicamente como espaços às margens do Estado. Das e Poole (2004) ao apresentarem a

sua noção de “margens do Estado”, lembram que hoje existem lugares que estão sempre às

margens do que é assumido de forma inquestionável como território sob controle do Estado e

no qual ele tem legitimidade. Uma das possíveis formas de se compreender as margens do

Estado discutidas pelas autoras é pensá-las como periferias, como lugares naturais de pessoas

consideradas insuficientemente socializadas na lei, ou como espaços onde o Estado não tem

conseguido instaurar sua ordem, o exercício da sua autoridade. Asad (2004) lembra que as

margens do Estado estão onde está a incerteza perversa da lei e na arbitrariedade da

autoridade. Nesses espaços, o Estado “is constantly refounding its mode of order and

lawmaking” 16(DAS e POOLE, 2004, p. 8).

As margens do Estado, segundo Nelson (2004), costumam ser retratadas como locais

que ainda não foram mapeados e compreendidos, e por isso são pensados “more through myth

and stereotype than accurate information, full of often contradictory figures resisting state

rationality”17 (NELSON, 2004, p. 126). As pessoas não têm sobrenomes, os impostos não são

formalmente coletados, e os habitantes não são considerados dignos de confiança (NELSON,

2004, p. 126).

Mas isto não significa que todos os tipos de margens sejam homogêneos ou inertes

(DAS E POOLE, 2004). Ao contrário, Das e Poole (2004) utilizam o caráter indeterminado

16 Tradução livre: está constantemente refundando seus modos de ordem e de lesgislador 17 Tradução livre: mais por meio do mito e do estereótipo do que por meio de informações acuradas, cheio de frequentes figuras contraditórias que resistem à racionalidade do Estado

Page 117: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

116

das margens para desconstruir a ideia de que o Estado é sólido. Segundo Asad (2004), as

margens fazem mostrar como o poder do Estado é sempre instável, e lembra que “the state`s

margins can be viewed differently precisely because ‘the state’ it self is not a fixed object18”

(ASAD, 2004, p. 279).

O momento histórico anterior às UPPs parecia refletir bem a noção de “margens do

Estado” explicitada por Das e Poole (2004), e não era à toa que os moradores referiam-se a

este período como “a época dos meninos”, demonstrando que até então quem dominava eram

os traficantes, chamados carinhosamente de “meninos”, ilustrando a intrínseca relação com a

lógica distinta da favela enquanto campo. As falas comparativas relatavam-me um período

marcado pelo domínio do tráfico nos espaços das favelas, e referiam-se às “leis do tráfico”

para me explicar como funcionava a favela. Em sua pesquisa em favelas sem UPPs,

dominadas pelo tráfico, Grillo (2013) mostrou como o tráfico mimetiza o Estado e reivindica

o uso legítimo da violência dentro das favelas. A autora argumenta que embora esta

“mimesis” da forma-Estado leve à noção de “poder paralelo”, com frequência evocada para

retratar o tráfico como um Estado dentro do Estado, a relação entre tráfico e Estado se dá não

de forma “paralela”, mas sim “tangencial”, tendo em vista que o tráfico, ao mesmo tempo que

copia e tende a se opor ao Estado, também se relaciona com ele em muitas situações, como no

caso dos “arregos”19, por exemplo.

Embora não exatamente como um “poder paralelo”, a partir de sua “mimesis” do

Estado, o tráfico possui algumas “recomendações gerais de conduta” (GRILLO, 2013, p.

109), que podem ser reconhecidas nas favelas por meio do uso de expressões como “lei do

tráfico” ou “lei do morro” pelos seus habitantes. Grillo (2013) mostra que embora os

moradores refiram-se a estas “recomendações” como “leis do tráfico”, estas são de baixa

previsibilidade, são um controle social arbitrário, e por isso se distanciam das “leis do

Estado”. Conforme mostrou a autora, não há um conjunto claro de regras a serem seguidas ou

previsões de sanções específicas para cada tipo de infração. Entretanto, ainda assim, os

moradores referem-se a elas como leis ditadas pelo tráfico, que embora não muito específicas,

como as leis do Estado, mesmo de forma arbitrária são usadas para guiar as ações dos

moradores. Ao usar “lei do tráfico” ou “lei do morro” como sinônimos, revelam o domínio do

tráfico sobre o morro.

18 Tradução livre: as margens do Estado podem ser vistas de formas diferentes precisamente porque “o Estado” ele mesmo não é um objeto fixo 19 Arrego é a forma como moradores e policiais referem-se aos subornos, uma quantia de dinheiro que os traficantes pagam aos policiais para evitar que estes interferiram em suas atividades.

Page 118: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

117

Uma das mais conhecidas “leis do tráfico”, ditadas na “época dos meninos”, dizia

respeito à divisão territorial, por líderes de facções rivais, que impediam a circulação dos

moradores em comunidades rivais, onde eram chamados de “alemãos”. Relacionamentos

amorosos com pessoas da facção rival também eram proibidos e sujeitos a punições. No

mesmo sentido, os moradores relatavam proibições em termos das cores das roupas. Em

comunidades dominadas por facções rivais ao Comando Vermelho, por exemplo, era proibido

a circulação com roupas da cor vermelha. Havia, ainda, segundo o relato dos moradores, uma

cobrança dos traficantes pelos serviços de TV à cabo e internet, por exemplo. Além disso, o

tráfico cobrava pela emissão de documentos, que só eram válidos dentro da dinâmica da

favela. Conforme me explicou uma moradora:

E tinha uma cobrança de carteirinha de dinheiro ela fazia, coisa assim e os moradores eram

obrigados a participar daquilo. Se você vai fazer um documento era um documento de 500

reais para cima. Uma folha, por exemplo, se você quer vender tua casa, tua casa não é

registrada na prefeitura, que que eles faziam? Aí a Associação vem e te dá um papel

dizendo que você vendeu aquela casa, 500 reais (Morador 28, favela da zona Norte).

As “leis do tráfico” também se desenrolavam na realização de “tribunais do tráfico”

como forma de resolução de conflitos nas favelas, ilustrando mais uma transferência

metafórica do campo de Estado para o campo da favela. Grillo (2013, p. 104) explica que a

expressão “tribunais do tráfico” é utilizada pela imprensa carioca para designar “as práticas de

justiçamento ilegal cometidas por traficantes”. Para a autora este termo vai ao encontro da

ideia de que o tráfico configura-se enquanto um poder paralelo, “afinal, nada mais coerente do

que um Estado ter os seus tribunais” (GRILLO, 2013, p. 104). Grillo (2013) argumenta,

entretanto, que embora existam realmente processos de resolução de litígios, organizados por

“bandidos”, que com muita frequência envolvem o uso da força, não se tratam propriamente

de “tribunais do tráfico”, tendo em vista que o formato de tribunal é, na visão da autora,

inadequado para expressar os conflitos que são resolvidos entre os “bandidos”, onde não há

leis, juízes, ou tribunais, ou uma sequência clara de acusação, defesa, sentença e execução da

pena. Grillo (2013, p. 104) assim explica o seu funcionamento: conflitos de diferentes

naturezas, envolvendo “bandidos” ou “trabalhadores”, são encaminhados ao “dono do morro”

e desencadeiam os “desenrolos”, ou processos coletivos de mediação de disputas, por meio de

procedimentos orais, que visam o encontro de uma solução, “amparando-se no poder do

tráfico como instância mediadora”.

Embora entenda-se aqui a argumentação da autora de que estes processos de

“desenrolo” não são propriamente tribunais, e não possam ser retratados por uma única

Page 119: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

118

imagem simplificada, continuarei usando aqui a expressão “tribunal do tráfico” para me

referir a esta forma de “solução de conflitos”, tendo em vista que este termo foi utilizado

pelos moradores ao longo de minha pesquisa de campo, para me relatar a maneira como os

conflitos eram “desenrolados” com o “dono do morro”. Os moradores referiam-se aos

“tribunais do tráfico” para me explicar que “na época dos meninos” os traficantes interferiam

na resolução de conflitos, ainda que estas fossem brigas entre vizinhos ou entre marido e

mulher, por meio dos famosos “desenrolos”, conforme descritos por Grillo (2013): “tudo o

que acontecia, se fosse uma briga dentro de casa eles se metiam, eles que julgavam, eles que

achavam que tinham que ser feito” (Morador 22, Favela da zona Norte).

Embora as “leis do tráfico” e os seus “tribunais” não sigam os padrões exatos das leis

do Estado e dos tribunais do Estado, de forma que o tráfico não possa ser pensado exatamente

como um “poder paralelo”, conforme mostrou Grillo (2013), os moradores atribuíam aos

traficantes um poder semelhante ao do Estado, e os colocavam neste lugar do Estado,

conforme revela o uso de vocabulários semelhantes para se referir a um e a outro. Os

moradores reconheciam que legitimavam este papel do tráfico: “a própria comunidade em vez

de procurar o poder público, procurava o tráfico” (Morador 12, Favela da zona Norte).

Como o tráfico parecia ocupar um lugar semelhante ao do Estado dentro da favela,

embora não de forma paralela, mas tangencial, com o suporte dos moradores, o próprio

Estado, quando se voltava para a realização de qualquer ação dentro das favelas, fazia-o de

forma subordinada ao tráfico. De acordo com os relatos dos moradores, o Estado parecia agir

nas favelas subordinado à “lei do tráfico”: “O Estado sempre pediu licença pro tráfico pra

poder entrar aqui. Qualquer obra que o Estado fosse fazer aqui, que a prefeitura fosse fazer

aqui, sempre pediu licença ao tráfico” (Morador 11, Favela da zona Norte). E a subordinação

do Estado ao tráfico era tanta, que este exigia a prestação de certos serviços, de forma que em

alguns casos a comunidade era melhor atendida naquela época do que o que é hoje:

E, o mais engraçado, é que antigamente com o tráfico, se a gente tivesse um problema... A

bomba queimou. O traficante chamava o responsável da CEDAE aqui, [do Rocha], a

bomba no dia seguinte tava no lugar. Hoje se a bomba queimar é uma dificuldade danada.

(...) O serviço do Estado na época do tráfico funcionava melhor do que funciona hoje. Por

incrível que pareça. Tá? Isso eu to te falando CEDAE, os serviços prestados pelo Estado. E

hoje tá complicado (Morador 11, Favela da zona Norte).

Embora a favela funcionasse de acordo com as “leis do tráfico”, os moradores me

relatavam a presença de alguns agentes do Estado na favela já neste período anterior às UPPs.

Page 120: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

119

Agentes como a Comlurb, o PAC ou a Light já atuavam nas favelas, porém de forma bastante

diferente do que o que eu pude presenciar, no período “depois das UPPs”.

A Comlurb, por exemplo, agia nas favelas por meio da figura do gari comunitário: “a

gente tinha a Comlurb, os garis comunitários, né? Que aí era da própria comunidade. Então os

garis pegavam, recolhiam o lixo, faziam; a comunidade ficou bem mais limpa” (Morador 6,

Favela da zona Norte). Entretanto, em concomitância com o período de ingresso das UPPs nas

favelas, o projeto dos garis comunitário foi encerrado e estes foram substituídos por

funcionários devidamente concursados da Comlurb. Os representantes da Comlurb explicam

que os garis comunitários eram pessoas da comunidade selecionadas pela própria associação

de moradores, e insinuam que havia uma forte interferência do tráfico nesta seleção. Há uns

seis anos atrás, houve uma intervenção do Ministério Público nas situações dos garis

comunitários, que passou a exigir que apenas trabalhassem em nome da Comlurb,

funcionários que tivessem sido aprovados em concurso público. Um representante da

Comlurb, em entrevista, revelou de forma direta a interferência do tráfico em seu trabalho, em

período anterior às UPPs:

Até porque os garis comunitários, em algumas comunidades, não trabalhavam. Se tivesse

vinte, só trabalhavam cinco, seis. Porque a maioria era tudo parente de... Do poder paralelo.

Então, a gente se sujeitava a muita coisa antes disso (Representante da Comlurb 1, Favela

da zona Norte).

E completa: “Eu já tive reunião com traficantes pra pedir que os garis trabalhassem,

funcionassem. Na época do Borel já tive lá quase meia noite duas vezes pra conversar com

traficante pra pedir a ele pra fazer com que os garis trabalhassem” (Representante da Comlurb

1, Favela da zona Norte).

O PAC também já estava inserido em algumas favelas antes do processo de

“pacificação”, e algumas mudanças em sua forma de funcionamento foram relatadas por seus

representantes. A entrada do PAC na favela da zona Sul, naquele momento dominada pelo

tráfico de drogas, se deu por meio de adaptações às leis daqueles que naquele período eram os

“donos do morro”. Conforme explica um representante do PAC, para o ingresso do programa

houve negociações diretas com o tráfico de drogas:

Eu ouvia, o seguinte, eu ouvi lá atrás quando a [empresa de construção] entrou que eu não

era fiscal da obra, não estava envolvido com o PAC nem com nada, estava fazendo o tal

levantamento do CIEP, que a firma exigiu 30% do valor da obra para poder deixar a

empresa entrar lá no morro para poder trabalhar. Aí não tem condição e tal e não sei o que,

não sei o que foi conversado, mas de repente a obra começou a trabalhar e até então a

comunidade não era pacificada, mas logo um tempo depois, ocorreu a pacificação e aí o

Page 121: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

120

negócio andou direitinho. O que foi conversado eu não sei, não tenho a menor ideia, deve

ter rolado alguma coisa (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).

A mesma informação a respeito de negociações entre o PAC e o tráfico é apontada

pelos moradores: “O PAC chegou, teve que sentar com os meninos, entende, teve que dar

uma parcela do quinhão para eles” (Morador 15, Favela da zona Sul).

Uma vez dentro da favela, ainda sem UPP, os funcionários do PAC trabalhavam “de

acordo com as leis do morro” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul). Apenas podiam

circular acompanhados de moradores, usavam uniformes e crachás para facilitar a

identificação, tinham horários restritos de atuação e a circulação pelo morro era controlada

pelo tráfico. Assim narraram os funcionários que acompanharam o programa desde o início.

A própria Light que, hoje, conseguiu regularizar boa parte dos gatos das favelas

“pacificadas”, antes tinha que se submeter “às leis do morro”. De acordo com os moradores, a

Light, muitas vezes, era obrigada a obedecer ao tráfico, e fornecer energia mesmo a famílias

que não pagavam por ela:

Porque antes, por exemplo, a Light, quando era gato, às vezes a família assim, a pessoa não

tinha nem o que comer, não pagava luz. Aí a Light subia para cortar. Quando eles

cortavam, a bandidagem esperava eles, e aí falava assim ‘ó, volta e vai ligar a luz, porque

aquela senhora não tem nem o que comer com os filhos dela’. Mas eu achava isso certo,

sabe? Era, ‘você só sai daqui depois de você ligar a luz daquela senhora porque ela não tem

nem o que comer, muito menos dar de comer aos filhos. Ela não tem dinheiro para ficar

pagando luz’. Aí às vezes a pessoa não tinha nada, uma televisão, uma geladeira, a Light ia

lá cortar. E cortava mesmo. E a bandidagem mandava, aí eles voltavam, aí eles pararam de

entrar. Aí a Light começou a perder feio, né? (Morador 6, Favela da zona Norte).

Mais complexa era a relação da polícia com as favelas, que quando não se rendiam ao

tráfico por meio dos “arregos”, mantinham uma relação que se dava por meio das temidas

incursões policiais, sempre acompanhadas de trocas de tiros: “Agora em relação à polícia, eles

chegavam atirando, então tinha troca de tiro, era isso que é o problema, né?” (Morador 6,

Favela da zona Norte). Os policiais também lembravam desse passado em que a relação da

polícia com a favela se dava com base no combate: “Os policiais militares eles estavam

acostumados aqui quando a gente subia o morro era só tiro, porrada e bomba, era tiro para

tudo quanto é lado” (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).

Como esta forma de intervenção policial claramente não era bem sucedida, a Polícia

Militar desenvolveu o GPAE, que teve sua primeira unidade inaugurada no ano 2000. Embora

parecesse se basear em uma lógica semelhante à das UPPs, que partia da instalação de uma

unidade no interior das favelas, como forma de retomar o território, o GPAE não contou com

Page 122: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

121

o grande investimento do Estado com que hoje contam as UPPs. As comparações entre o

GPAE e as UPPs são constantes, tanto entre moradores quanto entre policiais, mas é unânime

a crença de que o GPAE não foi bem sucedido, e muitos temem que as UPPs “terminem como

o GPAE”. A falta de credibilidade do programa é evidenciada na fala dos moradores:

E o GEPAE e nada era a mesma coisa. Os cara ficavam dentro da casinhola deles, lá, os

meninos falavam vamos, fica aí, não precisa acontecer nada. Os meninos passava armado,

na casinhola, dentro da casinhola mesmo, na casinhola deles e fazia o que bem entendiam,

sabe, matavam, queimavam, esquartejavam, faziam o que bem entendia, então, a polícia aí

não fazia nada (Morador 15, Favela da zona Sul).

“A época dos meninos” descrita pelos moradores, e reforçada por pesquisas anteriores,

é caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da violência do tráfico de drogas, que, muito

além de seu poder armado, realizava ações em prol de sua legitimidade, como a compra de

gás ou de remédios para moradores que estivessem precisando ou a distribuição de brinquedos

às crianças na época do natal. O vocabulário usado pelos moradores para se referir ao tráfico e

às suas ações também são reveladores dessa legitimidade. A própria expressão “meninos”

usada para se referir a eles revela algum afeto dos moradores aos traficantes, afeto este

reforçado por comentários que, diversas vezes, acompanhavam a expressão: os moradores

costumavam lembrar que viram os “meninos” crescer, que eles eram “cria da comunidade”, e

que, apesar de tudo, eles os respeitavam – “No morro eles respeitavam o morador” (Morador

17, Favela da zona Norte). Além disso, muitos termos usados na sociedade em geral para

referir-se ao Estado enquanto detentor do monopólio da violência, eram utilizados nas favelas

para se referir ao tráfico, como as “leis do tráfico”, os “tribunais do tráfico”, que embora não

funcionassem exatamente da mesma forma que no Estado, eram tratados de forma similar

pelos moradores.

Nesse sentido, os agentes do campo burocrático do Estado presentes nas favelas neste

período eram incapazes de impor às favelas as leis do Estado, e eles mesmos precisavam agir

dentro das “leis do tráfico” para que tivessem a sua presença autorizada naquele território.

Ainda que alguns agentes do Estado já estivessem presentes na favela, elas ainda eram

espaços às margens do Estado, na medida em que o Estado não impunha a sua lei, mas, isto

sim, agia de acordo com as “leis do morro”.

Para compreender com mais clareza o que mudou, afinal, e por que as UPPs assumiam

este lugar central de “divisor de águas”, passei a ouvir com mais cuidado as falas que me

narravam a origem das UPPs. O programa havia sido criado com uma finalidade específica:

retomar o poder nos territórios de favelas, fortemente estimulado por “uma insatisfação do

Page 123: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

122

Estado diante da impotência de não poder fazer nada dentro de determinadas áreas”

(Representante da UPP 4, Favela da zona Sul) ou, em outras palavras, resgatar o seu

monopólio do uso legítimo da violência num território, até então, fora do seu alcance real.

Como uma forma de minimização do domínio do tráfico sobre os territórios, e de

ignorar que exista a possibilidade de se criar uma lei alternativa à do Estado, os policiais

referiam-se às favelas no período anterior às UPPs como uma “terra sem leis”. Reforçavam

que, para instaurar a lei neste território, era preciso criar uma nova polícia, ou fazer com que

os moradores vissem a polícia de uma outra forma, tendo em vista que a polícia, em sua forma

de funcionamento anterior, usava de violência, sem nenhuma legitimidade. Não tinha o

monopólio do uso legítimo da violência dentro dos espaços de favelas, fazendo com que se

perdesse o poder simbólico da ação do Estado.

Como espaços às margens do Estado, que além de estarem às suas margens ainda

possuem novos “donos”, detentores do uso legítimo da violência, as favelas incomodam. Ao

narrar com orgulho a origem do programa, os policiais da UPP não hesitavam em descrever as

atrocidades praticadas pelos traficantes em períodos anteriores: o sangue derramado, as

cabeças raspadas, os tribunais que terminavam em morte – um cenário insustentável, que

aumentava a violência por toda a cidade, diante do qual era preciso reagir. E o programa das

UPPs vem, então, como a resposta inevitável: “Chegava num nível de organização que, pô.

Não dava, não dava mais!” (Representante da UPP 1, Favela da zona Sul). O tráfico expandia

seu domínio de forma cada vez mais organizada e mais “semelhante” à ação do próprio

Estado.

Às margens e geridas por outras regras, as favelas colocaram em xeque o poder do

Estado, ameaçam gerar uma crise de legitimidade, e é nesse sentido que se entende aqui que a

criação do programa das UPPs apresenta-se como uma “nova polícia” em busca do monopólio

do uso legítimo da violência nas favelas. Não basta usar “polícias de confronto”, como o

BOPE ou a PM dos batalhões, para subir os morros, atirar e matar, pois esta estratégia não

contribui para que o Estado recupere a sua legitimidade, resgatando seu poder simbólico. É

preciso criar uma “nova polícia”, que assim como o tráfico lance mão também de estratégias

“legitimadoras”, como ações sociais ou boas relações pessoais, pois o puro e simples uso da

força não traz legitimidade:

E o processo de pacificação, o projeto do governo é esta aproximação, eles querem que a

população veja a polícia de uma outra forma, se a gente chegar aqui e se eu passar por eles

e não der bom dia, eu não vou mudar nunca a imagem para eles, então eu penso desta

forma, porque a gente tem que começar a mudar sim, porque a gente sai daqui até ali

Page 124: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

123

embaixo e já somos vistos de outro jeito. Mas aqui na comunidade eles ainda têm uma

imagem muito... (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).

Entretanto, não foram só as UPPs que surgiram neste período recente, e os programas

que as seguiram tiveram nelas sua motivação inicial. Em meu convívio nas favelas me foram

apontados, logo de início, dois principais programas que “acompanhavam” a UPP: a UPP

Social e o Territórios da Paz. Pude observar os dois programas em campo durante minha

trajetória de pesquisa, e do muito que aprendi sobre eles parte dizia respeito a suas condições

de programas quase gêmeos, separados ao nascer, que como os gêmeos que vemos por aí

tendiam sempre a reforçar suas diferenças, e a repetir incessantemente que não se tratavam da

mesma coisa. As diferenças foram notadas em minha pesquisa, conforme será discutido mais

adiante. Mas o que aqui importa é ressaltar que ambos nasceram como uma tentativa de suprir

as demandas sociais que a UPP não dava conta de atender, e evitar que as UPPs se tornassem

os novos “donos do morro”, monopolizando, mais uma vez, o poder na favela nas mãos de

apenas um. Conforme explica um dos envolvidos neste período inicial dos programas:

A proposta [da UPP Social] veio do Ricardo Henriques em 2010. Então ele chamou

literalmente todo o meio acadêmico, todo, todo, ele chamou todo mundo, literalmente, para

conversar, o meio acadêmico, os principais gestores de projetos sociais, foi todo mundo,

(...) até professores da UFRJ, todo mundo foi contribuindo para várias questões que ele foi

chamando para discutir, até que na época a gestora da Subsecretaria da Integração das

Políticas Sociais era a professora Silvia Ramos, e aí eles foram chamando mesmo. Fomos

conversar e pensar numa proposta de intervenção nos territórios pacificados que pudesse

prosseguir, levar o tal do social, que o Beltrame tanto insistia, né, para essas comunidades.

Mas por isso mesmo a sacação da UPP Social veio. O Beltrame falava tanto que a UPP ,

que a polícia entrou e faltava o social, que eles falaram ‘vamos tentar articular o social para

ele chegar junto’ (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)

É nesse contexto que surge a UPP Social, inicialmente sob tutela da Secretaria

Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH). Com a transferência do

Ricardo Henriques, fundador do programa, para o Instituto Pereira Passos, na esfera

municipal, a UPP Social o acompanhou e ambos deixaram a SEASDH:

Na transição do primeiro para o segundo mandato há uma mudança na secretaria, (...), o

Ricardo da Secretaria, recebe o convite do prefeito e num diálogo também com o

governador para assumir a presidência do IPP e para que o programa passasse a ser

conduzido a partir do município (Representante da UPP Social 7, Geral).

Mas foi deixado um embrião na esfera estadual: o concurso para contratação de

funcionários para a UPP Social da SEASDH já estava sendo realizado, e os aprovados

aguardavam a sua convocação. Surge, então, como solução, um novo programa, denominado,

Page 125: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

124

improvisadamente, de Territórios da Paz, que aproveitou os recursos deixados para trás pela

UPP Social. Esta situação me foi narrada diversas vezes pelos representantes dos dois

programas, em seu esforço para marcar a distinção e justificar possíveis confusões. A fala de

um representante do Territórios da Paz retrata o improviso desse período inicial do programa:

E aí quando o pessoal entrou, a primeira leva, assim você sabe o que que é não existir nada?

Não existir programa? Não existe superintendente? Primeira equipe que eram os primeiros

cinco primeiros colocados, e honestamente, (...), que eram os cinco primeiros gestores, que

eram pessoas competentíssimas, assim, sabe, se depararem com aquilo. Teve gente que saiu

do Rio Grande do Sul para vir trabalhar. Aí o pessoal ficou bem apavorado. Falou e agora,

o que que eu faço assim? Não tinha nada, o que que é, não tem chefe, que que eu faço?

Ninguém sabia o que fazer e ali, cara, às duras penas o programa começou a ser construído

por aquela equipe, iniciou. Até nome essa equipe criou e ali eles foram e aí veio a segunda

leva e aí veio uma galera, o programa foi ganhando corpo (Representante do Territórios da

Paz 1, Favela da zona Sul).

Guardadas as suas diferenças, os dois programas possuem em comum as suas

motivações iniciais. UPP Social e Territórios da Paz foram ambos criados como uma

consequência direta da criação das UPPs, e os próprios nomes expressam suas vinculações a

um processo de “pacificação” que estava em andamento: “É como se a UPP Social, pelo

menos na sua formulação inicial teórica, ela fosse responsável por consolidar o processo de

integração e de pacificação, compreendendo que pacificação não se faz só com a polícia”

(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).

Mesmo os programas que não foram criados como consequência da criação das UPPs,

e que já atuavam, de uma forma ou outra, dentro dos territórios de favelas, sofreram, neste

momento, algumas transformações. O PAC passou a atuar de forma mais livre, sem a

obrigatoriedade do uso de crachás ou uniformes, com uma livre circulação pelo território; a

Comlurb inseriu nas favelas os seus próprios garis, concursados como os do asfalto; a Light

conseguiu regularizar boa parte dos “gatos”.

Os exemplos narrados reforçam a minha suspeita inicial. A mudança na relação entre

Estado e favela trazida pela criação das UPPs não pode ser resumida apenas a intensificação

da ação do Estado. Agora o Estado não só se faz mais presente, com a criação de novos

programas voltados para a favela “pacificada”, como também ele se faz presente de uma outra

maneira, seguindo as suas próprias leis, sem se sujeitar de forma completa às (antigas) “leis

do morro”.

Embora já existisse, na “época dos meninos”, agentes do campo burocrático do Estado

inseridos nas favelas, parece ser esta a primeira vez em que o Estado consegue se aproximar

Page 126: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

125

de uma posição de dominante nestes territórios. A vida nas favelas com UPPs começa aos

poucos a se adaptar (embora de forma controversa, como será mostrado nos próximos

capítulos) às leis que o Estado impõe. E mesmo os agentes do Estado que já estavam na favela

em períodos anteriores podem agora atuar de uma outra maneira, pois as leis do Estado

começam a se sobrepor às “leis do tráfico”.

Embora não se pretenda encerrar aqui a resposta à minha inquietação inicial, um

importante motivo pelo qual a cena descrita pela Mariana Cavalcanti (2009) tenha se tornado,

novamente, uma impossibilidade, diz respeito ao fato de que agora a relação entre o campo

burocrático do Estado e os espaços das favelas não se trata mais de intervenções pontuais do

primeiro nos segundos, cuidadosas em respeitar e agir dentro das leis impostas pelo tráfico. A

indiferença não pode mais existir quando o Estado começa a ser bem sucedido em impor as

suas próprias leis. Em um esforço para replicar o exercício de transposição histórica que a

autora faz na introdução do seu artigo, trazendo a cena para 2013 poderíamos dizer que as

armas e o baseado estariam escondidos; os olhares de indiferença, agora, seriam mais atentos

à possível aproximação de alguma figura do Estado; se o fato se concretizasse, os meninos da

boca se espalhariam discretamente para que não fossem percebidos como tal. E, no fundo, o

representante estatal saberia, mas fingiria não ver, para não ter que admitir que suas leis não

estavam sendo cumpridas. Mas esta é apenas uma das muitas possibilidades que hoje se tem

para representar esta relação complexa. A indiferença, diante de leis que se chocam, não é

mais uma delas.

5.2 Entre Consensos e Discordâncias: as Lógicas por trás das Disputas no Campo Burocrático do Estado

O clima era de ansiedade e alegria entre algumas adolescentes da favela da zona Norte,

naquela segunda-feira à noite. Agora era oficial: teriam a sua sonhada festa de debutantes,

para comemorar os 15 anos que completavam naquele ano. A UPP local, em parceria com a

equipe do Territórios da Paz, estava organizando uma festa para todas as jovens de 15 anos

daquela favela que quisessem participar. Por se tratar de uma festa organizada pela UPP, não

foram muitas as famílias que aceitaram a oferta. Mas as poucas jovens (em torno de 10) que

compareceram à UPP naquela noite, para tratar dos preparativos da festa, exibiam em seus

semblantes grande felicidade. A ansiedade era tanta que não conseguiam aguardar o início

oficial da reunião: questionavam sobre a data e o local exatos da festa, sobre o número de

convidados que poderiam levar, onde conseguiriam seus vestidos, quais seriam os príncipes

que dançariam com elas – as perguntas não cessavam. Mas foi ao final da reunião, quando as

Page 127: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

126

meninas já haviam ido embora, que uma pergunta que não poderia ser respondida ali veio à

tona, em uma conversa informal entre as representantes do Territórios da Paz e a policial

responsável pelas relações públicas da UPP (P5): o funk seria liberado na festa? As

funcionárias do Territórios da Paz se recusavam a aceitar que fariam uma festa para

adolescentes da favela e não tocariam o funk. A policial, por sua vez, parecia desconcertada.

Embora sua posição fosse declaradamente contrária à liberação do funk, explicou que a

decisão não conferia a ela, e se comprometeu a tentar convencer o comandante – entretanto,

confessou que esta era uma missão complicada.

Apesar de seus interesses particulares naquela festa de debutantes, os representantes de

ambos os programas tinham um ideal em comum: acreditavam que os moradores da favela

mereciam ter acesso às mesmas coisas que qualquer morador do asfalto, sem distinção. E

como adolescentes comuns, aquelas meninas tinham direito a sua tão sonhada festa de 15

anos. Entretanto, não concordavam em tudo, e a disputa em torno do funk foi apenas a

primeira.

Conforme lembrou Bourdieu (2014, p. 31), no campo do Estado, um campo de

disputas, existe ao menos um acordo a respeito do sentido do mundo social, e é este

“consenso fundamental sobre o sentido do mundo social que é a condição mesma dos

conflitos”. Entre os agentes do campo do Estado parece haver um consenso em relação ao que

os levou à favela: “integrar a favela à cidade” parece ser ideal inspirador de todas as ações.

“As favelas eu enxergo como uma ocupação que foi irregular mas que agora tem que

dar um jeito de tomar, tem que transformar em um bairro” (Representante da UPP 3, Favela

da zona Sul), afirmou um representante da UPP; “(...) todo mundo da UPP Social,

independente de ser a equipe de campo, se está aqui internamente ou em outros lugares,

entende o conceito de cidade integrada” (Representante da UPP Social 1, Geral), explicou

uma representante da UPP Social; “Tentar transformar isso aqui, essa comunidade, em, no

mais próximo do que a gente costuma mais chamar de um bairro” (Representante do PAC 2,

Favela da zona Sul), reforçou uma representante do PAC. Estes são apenas alguns exemplos.

A ideia de integrar, acabar com as diferenças entre morro e asfalto, estava presente, de uma

forma ou outra, no discurso de todos os agentes do Estado. Isto é, todos pareciam concordar

em termos da finalidade de resgate territorial da presença do Estado. A palavra de ordem

parecia ser “integração”. A respeito deste ideal, um representante da UPP Social explicou:

(...) mas então o que significa integração no final do dia? A gente está perseguindo o quê?

(...)se o objetivo é integrar o que você precisa conseguir é que cada um dos órgãos que

proveem serviços públicos no espaço da cidade, passem a fazer o que fazem hoje, da

Page 128: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

127

mesma maneira também nessas comunidades e com o mesmo padrão (Representante UPP

Social 7, Geral).

Entretanto, nem todos os agentes parecem concordar com o sentido explicitado acima,

e menos ainda com os meios e objetivos específicos para alcança-lo. Guiados por este ideal,

os agentes do Estado foram atraídos à favela, e embora compartilhem ao menos a ideia de

“integração”, fizeram das favelas palcos de suas disputas. Se há no campo uma dinâmica

processual marcada pelos conflitos entre os agentes, isto se dá, pelo menos em parte, porque

há por trás de suas ações um conjunto de premissas que as governam e as moldam, que nem

sempre são compartilhadas por todos.

Para dar conta desses dados observados empiricamente, resgatou-se aqui a noção de

lógicas institucionais, compreendida como um conjunto de padrões históricos, construídos

socialmente, que incluem valores, crenças e pressupostos nos quais indivíduos e organizações

estão pautados para dar sentido às suas atividades diárias (THORNTON e OCASIO, 2008). A

noção de lógicas institucionais se desenvolveu a partir da teoria neoinstitucional, porém ela é

distinta desta teoria e não pode ser considerada uma extensão dela (THORNTON, OCASIO e

LOUNSBURY, 2012). Nesse sentido, ainda que aqui não se compartilhe de muitos

pressupostos da abordagem institucional, e nem se pretenda trabalhar dentro desta perspectiva

teórica, o conceito de lógicas institucionais mostrou-se de grande valia, quando agregado à

perspectiva teórica de Bourdieu, para uma melhor compreensão do conjunto de pressupostos,

valores e crenças por trás das ações dos agentes do campo. Segundo Thornton e Ocasio

(2008), os agentes sociais apoiam-se em suas compreensões a respeito da lógica institucional

em sua competição por poder e assim criam condições para a reprodução destas lógicas. As

lógicas possibilitam que os agentes deem sentido à ambiguidade do mundo, prescrevendo

suas ações (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Embora as lógicas institucionais possam

ser trabalhadas em diferentes níveis (campo, organizações, mercados,...) (THORNTON e

OCASIO, 2008), aqui buscarei ilustrar as diferentes lógicas institucionais que competem

dentro do campo burocrático do Estado em ação nas favelas, visando demonstrar que a

disputa que marca a dinâmica do campo se dá em torno de lógicas institucionais distintas, que

posicionam os agentes do campo em ação.

Para melhor demonstrar este ponto, tratarei aqui dos agentes com os quais tive maior

contato em minha pesquisa de campo, devido a sua presença mais frequente na favela e

interação mais constante com os moradores: aqueles que compõem os campos da UPP, da

UPP Social, do Territórios da Paz, do PAC e do CRAS.

Page 129: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

128

Para acessar o conjunto de premissas por trás das ações dos agentes, ao qual aqui

também me refiro como posicionamentos dos agentes, investiguei mais a fundo aquilo que

diferencia cada um deles em termos de: o nível governamental ao qual o agente está vinculado

(lócus), o que busca cada agente (seus objetivos), os meios que eles utilizam para alcançar os

seus objetivos (ações), e as suas estratégias de legitimação que revelam as premissas por trás

de seus argumentos (esta última por meio de uma análise retórica). Vale ressaltar que o

conceito de lógicas institucionais busca tipificar a partir de múltiplas dimensões de análise os

posicionamentos de agentes sociais e embora influenciem a ação individual, não a

determinam. Por isto, no próximo capitulo, introduzirei o conceito de processos de organizar,

e retratarei como estes agentes sociais também contém suas disputas próprias.

Como lugar por excelência de definição do bem público (BOURDIEU, 2014), o

campo burocrático do Estado é composto por agentes encarregados de definir o que é bom

para o público, mas que nem sempre estão de acordo nesta definição. Há, nas UPPs, uma

crença compartilhada de que o programa foi pioneiro na busca do ideal de integração. A

história que contam é clara e quase unânime: a UPP entrou para retomar o território das

favelas e abrir as suas portas para os demais representantes do Estado. Portanto, a sua missão

principal neste processo de integração é “acabar com essa cultura de domínio territorial”

(Representante da UPP 1, Favela da zona Sul) e fazer a “retomada do território que antes era

do Tráfico” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul): “é para isso que veio a UPP, para

tirar esse território desses marginais e devolver ao Estado” (Representante da UPP 2, Favela

da zona Sul).

A retomada do Território é vista como etapa necessária para que outros órgãos

públicos possam atuar nas favelas e, portanto, associa-se à entrada das UPPs uma ideia de

“abertura da favela”. “Acredito que a UPP primeiro era pra isso, reprimir o tráfico pra depois

entrar com os programas do governo que eles não tinham acesso, pra tentar resgatar essa

comunidade” (Representante da UPP 9, Favela da zona Norte), explica uma policial. A

retomada do território, na visão dos policiais, serviu “para que o Estado pudesse, sim, entrar

com políticas sociais, é, novos serviços, que não está ainda satisfatório para as pessoas da

comunidade” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).

O cumprimento desta duas etapas é o que define, para os policiais, aquilo que eles

chamam de “pacificação”. Primeiro, ocupa-se o território, retirando-o das mãos do tráfico;

depois, “abre-se as portas da favela”: “Estar pacificado significa, na minha opinião, ela estar

controlada territorialmente, onde qualquer agente público, sendo policial militar, sendo agente

Page 130: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

129

da CEDAE ou agente para qualquer serviço público, tem acesso” (Representante da UPP 11,

Favela da zona Sul).

Tendo em vista a retomada do território, até então controlado pelo tráfico, os policiais

da UPP apostam na presença ostensiva, e nem questionam o uso das armas como um meio

necessário. Falam da importância de “manter uma ostensividade de policiamento”

(Representante da UPP 11, Favela da zona Sul), que se dá por meio do uso de armas,

uniformes, giroflex, tudo aquilo que possa reforçar a sua presença. É inevitável, “Para inibir o

tráfico, o uso de armas” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul). A naturalização das

armas pelos policiais leva a uma quase invisibilidade das armas, e eles se referem a favela

atual como uma favela “sem armas”, não obstante a enorme quantidade de armas com as

quais eu cruzava diariamente. Afirmam que o maior ponto positivo da UPP foi a retirada das

armas das favelas. Ainda que as favelas estejam cheias de armas, quando estas estão nas mãos

de policiais beiram uma invisibilidade para eles.

Também compõe a ostensividade policial, a forte presença nas ruas da favela, o uso de

uniformes e a abordagem policial, marcando que ali todos podem ser suspeitos – até mesmo

crianças podem carregar drogas em suas mochilas. A abordagem de “trabalhadores” era

sempre questionada, mas tratada pelos policiais como “parte do trabalho”.

A retomada do território está associada a uma ideia de transformação das favelas para

o “bem”. A dicotomia entre “bem” e “mal” é frequente no discurso dos policiais, e o “bem”

neste caso é representado pelos valores nos quais eles acreditam. Nesse sentido, também é um

meio para se alcançar o cenário desejado, levar o “bem” para a favela, transmitindo a eles os

seus valores.

O projeto da UPP Mirim, desenvolvido para realização de diversos eventos com as

crianças, tinham suas atividades voltadas para a educação das crianças, pautada na concepção

de “bem” e “mal” desses policiais. Tive oportunidade de acompanhar algumas vezes a

realização deste projeto. Em uma das ocasiões, adentrei a sala do projeto acompanhada do

vice-comandante, e encontramos a policial responsável pela UPP Mirim bastante chateada. O

vice-comandante a abordou, tentando entender o que acontecera. A policial, um pouco

desconfortável com a minha presença, negou-se a falar. O vice-comandante, muito confiante,

tentado expressar sua confiança em mim, disse a ela que podia falar na minha frente, sem

problemas. Obedecendo a ordem, a policial nos narrou que uma das crianças havia invadido a

sala onde seriam realizadas as atividades da UPP Miriam e havia roubado o saco de pirulitos

que estava em cima da mesa, distribuindo os pirulitos, antes da hora, para todas as crianças.

Page 131: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

130

Disse, revoltada, que pretendia expulsá-lo da UPP Mirim, porque, afinal de contas, ele

roubou. O vice-comandante, agora meio sem jeito, falou para ela, olhando para mim: “Não

exagera, [Soldado], você tem que entender que isso é parte da cultura deles. Aos poucos eles

vão aprender o que é certo” (Notas de campo, 23/05/2013). Ainda, a respeito da UPP Mirim,

um policial explicou, relembrando com saudades o programa que estava temporariamente

interrompido:

A UPP mirim era tão legal, eles eram militarizados, têm umas crianças que passam até hoje

e prestam continência para a gente, ‘tão bonitinho’, muito legal e é assim, eles aprendem

valores que nem eles têm dentro de casa, muitos não têm, se você ficar um dia inteiro aqui,

você vai ficar...é complicado, é uma realidade que não estamos acostumados, é um choque,

é complicado, eu fico com pena das crianças porque não pedem para estar ali, crescem no

meio de uma ignorância, de uma falta de tantas coisas, de tantos valores e aqui pelo menos

aqui com a gente, eles tinham uma outra coisa, tinham educação, respeito, eles eram tudo

militarizados, eles entravam em forma, tudo bonitinho, um atrás do outro, cobrir, firme,

prestavam continência, legal!!! Tomara que volte, vou conversar com o comandante para

ver se retorna (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul)

Em entrevista, uma outra policial me narrou a seguinte situação: estava de serviço,

fazendo o policiamento nas ruas da comunidade, e resolveu abordar uma jovem que, segunda

ela, era “sapatão”, mais parecia um homem. Contou que a moradora tinha um pênis de

plástico dentro das calças e que ela fez questão de verificar se não havia drogas dentro do

pênis. Diante da situação, explicou à moradora que não era certo uma mulher andar com um

pênis de plástico nas calças: “Aí eu falei, você nasceu mulher, você não nasceu com isto e não

tem que andar com isto, fiz ela passar uma vergonha ali, um constrangimento...”

(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul). Outros relatos de moradores iam ao encontro

deste posicionamento da UPP: contaram-me que tiveram o celular quebrado porque estavam

ouvindo o funk; contaram-me que foram repreendidos por policiais por terem descolorido o

cabelo, o que, segundo os representantes da UPP, era “coisa de veado”.

Pautados em uma lógica de “bem” e “mal”, de “certo” e “errado”, os representantes da

UPP acreditam que precisam ser ostensivos para combater o mal e, transmitindo seus valores,

ensinarão o que é o “certo”. E para sustentar esta sua posição, os agentes utilizam estratégias

de legitimação.

Segundo Bourdieu (2014), o Estado produz discursos de legitimação para justificar a

sua existência como dominantes. Bourdieu (2014) reconhece que no campo burocrático do

Estado estratégias de legitimação podem se dar por meio do discurso. As discussões em torno

das concorrências entre lógicas institucionais apontam para o uso persuasivo da linguagem, ou

Page 132: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

131

retórica, como um mecanismo por meio do qual é possível ocorrer mudanças nas lógicas

institucionais (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Suddaby e Greenwood (2005)

demonstraram em sua pesquisa como a retórica pode ser utilizada para expor e manipular

lógicas institucionais dominantes e subordinadas. A análise retórica volta-se, especialmente,

para discursos políticos, e permite acessar pressupostos compartilhados por trás de textos

persuasivos (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Na perspectiva retórica, a linguagem,

reflexiva e dinâmica, é capaz de revelar as premissas embebidas na comunicação (HARMON.

GREEN JR. e GOODNIGHT, 2015). Nesse sentido, conforme explicado no capítulo de

método da presente tese, aqui será usada a análise retórica, complementada pela análise de

argumentos conforme proposta na teoria de Toulmin (2001). A partir de argumentos

utilizados pelos agentes como estratégias de legitimação, busco mostrar a natureza deste

argumento, acessando as premissas nas quais eles se sustentam.

Por meio da análise retórica, pode-se identificar que os agentes das UPPs fazem uso de

estratégias de legitimação com base em argumentos racionais - as quais são tradicionalmente

chamadas na análise retórica de Logos -, pautando-se especialmente em índices de

criminalidade para sustentar seu argumento. Como forma de legitimar o trabalho que vem

sendo feito pelas UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, os agentes apelam para a lógica,

pautada em números que indicam que o crime da cidade diminuiu. Exemplos deste tipo de

argumento podem ser encontrados na Tabela 5 abaixo:

Tabela 5. Estratégias de Legitimação – UPP – Logos: Argumentos Racionais com Base em índices de Criminalidade

Estratégias de Legitimação

Exemplos Estrutura do Argumento

Logos: Argumentos racionais com base em índices de criminalidade

“Eu me baseio muito pelas estatísticas, os índices de criminalidade caíram drasticamente, você vê. (...) Então isso com certeza deu certo” (Representante da UPP 15, Favela da zona Norte) “Então [o programa das UPPs] funciona por isso, você vê aí os resultados, os índices de criminalidade reduziram bastante, não vê mais todos os crimes que tinham antes” (Representante da UPP 9, Favela da zona Norte)

Dado: Os índices de criminalidade caíram drasticamente (Portanto) Proposição: O programa das UPPs deu certo Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favelas, onde as UPPs atuam. Dado: Os índices de criminalidade reduziram bastante (Portanto) Proposição: O programa das UPPs funciona Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favelas, onde as UPPs atuam.

Page 133: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

132

“Porque só de cair o índice de criminalidade [a UPP] já funcionou. E é o que a gente tem visto aí nos IBOPEs aí da vida” (Representante da UPP 7, Favela da zona Norte)

Dado: Os índices de criminalidade caíram (Portanto) Proposição: A UPP funciona Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favela, onde as UPPs atuam

Conforme demonstram os exemplos da Tabela 5, a proposição “o programa das UPPs

funciona” é sustentada, no argumento dos policiais, pelo dado “os índices de criminalidade

caíram” – um argumento lógico, pautado em números. Mas há uma premissa por trás de tal

argumentação que também precisa ser destacada: “A principal fonte de criminalidade está nas

favelas, onde as UPPs atuam”. Tal premissa demonstra que, na visão dos policiais, os grandes

responsáveis pela violência da cidade habitam ou habitavam as favelas. Com a atuação das

UPPs dentro das favelas da cidade os grandes vilões do crime foram presos ou fugiram para

longe, e as melhorias no problema da violência refletem-se nos índices apontados pelos

policiais. A visão de que há um “inimigo” nas favelas que precisa ser combatido pelas UPPs

vai ao encontro da ostensividade policial como meio de funcionamento, e ao seu objetivo de

retomada de um território perdido para estes “inimigos”.

Conforme explicitado em capítulo anterior, as UPPs têm no tráfico de drogas o seu

opositor direto em termos de monopólio do uso legítimo da violência. Diante do histórico de

domínio do tráfico nas favelas, ao qual, conforme retratado anteriormente, era atribuído um

papel semelhante ao do Estado dentro das favelas (tendo em vista as expressões utilizadas

pelos moradores para se referir a ele), as UPPs, em suas estratégias de legitimação, apelam

para o argumento de “redução da criminalidade” da cidade, como uma forma de qualificar o

suposto monopólio da violência pelo tráfico como uma importante fonte do crime na cidade.

Sendo assim, nada melhor do que a retomada deste monopólio pelas UPPs.

No mesmo sentido, também foi possível observar o uso de estratégias de legitimação

pautadas em um argumento de presença. Conforme explicaram Sillince e Brown (2009), a

“presença” diz respeito a uma propriedade do argumento de se fazer mais convincente quando

se baseia em exemplos vívidos ou que remetem a movimento. Os representantes da UPP

sucessivas vezes remeteram a este tipo de estratégia para melhor sustentar seus argumentos

em prol de sua legitimação. Os exemplos das estratégias de legitimação com base em

presença são apresentados na Tabela 6 a seguir:

Page 134: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

133

Tabela 6. Estratégias de Legitimação – UPP - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez

“Todos os cantos você pode estar andando na comunidade. Com segurança porque eu falo com a própria experiência porque eu rodo tudo aí. Vou nos mais diversos locais da comunidade. Então na minha concepção tá sim pacificado” (Representante da UPP 15, Favela da zona Norte). “Se [o programa das UPPs] não funcionasse você não ia conseguir subir [a favela]” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). “Não existem fuzis aqui, essa ostentação de fuzis ali na [favela da zona Norte] e tal, então hoje [na favela da zona Norte], a proposta governamental deu certo” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul)

Dado: É possível circular livremente pela comunidade (Portanto) Proposição: a comunidade está pacificada Garantia: “Estar pacificado” significa ter a liberdade para circular pela favela Dado: Você subiu a favela (Portanto) Proposição: o programa das UPPs funciona Garantia: o propósito das UPPs é permitir que qualquer pessoa possa entrar na favela Dado: Não existem mais fuzis na favela (Portanto) Proposição: A proposta governamental deu certo Garantia: o propósito da proposta governamental é retirar as armas da favela

Os argumentos de presença utilizados pelos policias tem como proposição a ideia de

que “o programa das UPPs funciona” ou de que as “a favela está pacificada”, ambas

legitimadoras das UPPs. Para sustentar suas proposições, partem de dados de presença, que

por serem mais salientes aos olhares possuem uma força própria. Partindo de dados como “é

possível circular livremente pela comunidade” ou “não existem mais fuzis na favela”, tais

argumentos servem para ressaltar que na luta pela retomada do território, por meio de sua

ação ostensiva, a batalha foi ganha, e nada poderia ser mais evidente do que a livre circulação

de todos pelos espaços da favela. O relevo da ausência de armas inimigas no território

conquistado, também mostra, de forma vívida, a vitória das UPPs: basta olhar ao redor e

constatar com seus próprios olhos que as armas, agora, não estão mais visíveis e, portanto, os

“inimigos” também não podem ser mais vistos por ali. Por trás deste tipo de argumento há

uma premissa que sustenta o objetivo declarado das UPPs: retomar o território do poderio do

Page 135: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

134

tráfico. O uso de argumentos de presença como estratégia de legitimação vai ao encontro da

noção de capital espacial que será discutida mais adiante neste capítulo.

Os representantes da UPP também se utilizam de uma forma de argumentação

persuasiva que se fundamenta na moralidade, com base no caráter ou em códigos morais,

conhecidos como Ethos. Este tipo de argumento mostrou-se presente em duas formas

principais. A primeira delas, consiste em estratégias argumentativas baseados em valores,

conforme os exemplos da Tabela 7 a seguir:

Tabela 7. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados em Valores Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Ethos: Argumento baseado em valores

“Resistência ao trabalho da gente? É, é aquelas pessoas que viviam do sustento do tráfico, entendeu. São os familiares, né, a mãe, a irmã, a sobrinha do traficante, que antigamente tinha tinha, como se chama, falam, moral, moral na favela. Era ‘ó, meu tio manda’. ‘Sou irmã do patrão’. E essas coisas assim” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul) “(...) são décadas e décadas por causa que tinha sempre aquela polícia e bandido não se dão, não se dá, comunidade do lado do bandido. Até a comunidade abraçar a polícia vai demorar meses, anos e décadas, entendeu, muito tempo que demora (Representante da UPP 17, Favela da zona Norte) “Bom, a grande maioria aceita a polícia e gosta do trabalho da polícia, então é essa maioria que a gente escuta, de pessoas de bem.” (Representante da UPP 13, Favela da zona Sul)

Dado: Existe resistência ao trabalho da UPP (Portanto) Proposição: Existem pessoas que viviam do sustento do tráfico Garantia: Quem resiste ao trabalho da UPP vivia do sustento do tráfico Dado: a comunidade está do lado do bandido há décadas (Portanto) Proposição: Até a comunidade abraçar a polícia vai demorar Garantia: A comunidade não apoia a polícia porque apoia o bandido Dado: a grande maioria dos moradores da favela são pessoas de bem (Portanto) Proposição: A grande maioria aceita e gosta do trabalho da polícia Garantia: Pessoas de bem gostam do trabalho da polícia

Page 136: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

135

A dicotomia entre “bem” e “mal” mais uma vez salta aos olhos ao se analisar as

estratégias argumentativas dos representantes da UPP. Uma forma de legitimar seu trabalho é

desqualificar todo aquele que a ele se opõe: quem é de “bem” apoia à UPP, quem resiste à

UPP é quem tem algum envolvimento com o tráfico (o que não os qualifica enquanto pessoas

de “bem”).

As premissas que pairam por trás da argumentação policial demonstram esta oposição.

Seus argumentos revelam um posicionamento da UPP como a figura do bem que resgatou a

favela das mãos do tráfico. Os pressupostos que sustentam sua argumentação são claros: todo

aquele que se opõe às boas ações da UPP possuem ou possuíram alguma relação com o

tráfico; ou aqueles que não apoiam à UPP apoiam os bandidos. Há quase uma obrigação de

apoiar a UPP para que se possa qualificar enquanto uma pessoa de “bem”. O trabalho da UPP

na favela consiste também em uma disputa entre bem e mal.

Mais uma vez, é por ter no tráfico de drogas o seu principal opositor dentro dos

espaços de favelas que os policiais das UPPs tentam desqualifica-los e desqualificar aqueles

que possuem qualquer tipo de relação com o tráfico. À oposição entre “bem” e “mal”

corresponde a oposição entre polícia e tráfico, polos opostos na luta pelo monopólio do uso

legítimo da violência.

O Ethos também se apresenta de uma outra forma na argumentação policial: como um

argumento baseado na superioridade de algumas regiões da cidade. Os exemplos são

apresentados na Tabela 8 a seguir:

Tabela 8. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados na Superioridade Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Ethos: Argumento baseado na superioridade

“Eu posso dizer que a comunidade hoje está pacificada a partir do momento que você pode, é, você pode ser alvejado no [na favela da zona Norte] ou você pode ser alvejado em qualquer lugar hoje: Grajaú, Vila Isabel, Tijuca. A violência da [favela da zona Norte] ela é igualitária ao Grajaú, ao Andaraí bairro, a Vila Isabel, bairro, é totalmente igual, a violência” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul) “(...) a UPP que deu certo hoje é que não tem essa ostentação do poder de arma de fogo. O tráfico vai rolar em qualquer lugar, na

Dado: A violência na favela da zona Norte hoje é igual à de outros bairros da cidade. (Portanto) Proposição: A comunidade está pacificada Garantia: A violência “ideal” a ser alcançada com a “pacificação” é a violência igual a de outros bairros da cidade. Dado: O tráfico de drogas existe em qualquer lugar do mundo (Portanto)

Page 137: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

136

minha opinião. O tráfico vai rolar em qualquer lugar, vai rolar aqui, vai rolar na Inglaterra, vai rolar na Holanda, vai rolar em qualquer país da África, vai rolar em qualquer lugar” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul) “[a UPP] funciona, é funciona para que hoje o morador da [favela da zona Norte] não sinta diferença em relação ao morador da Pereira Nunes, da Conde de Bonfim, entendeu, ele apenas está numa outra área, o morador que mora na [favela da zona Norte] hoje a diferença é apenas a ladeira” (Representante da UPP 6, Favela da zona Norte) “Tanto é que eu acho que funciona que pessoas de outros países vêm aqui conhecer. Outros Estados estão importando essa essa essa política, entendeu. Como não vai funcionar, se as pessoas querem ver o que está acontecendo no Rio de Janeiro, entendeu? Então eu acho que funciona e vai, vai continuar” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul)

Proposição: Para a UPP dar certo não precisa acabar com o tráfico, basta acabar com a ostentação de armas. Garantia: Para a UPP dar certo ela precisa fazer as favelas se assemelharem ao que existe em outros países. Dado: Hoje a diferença entre a favela e outras regiões da cidade é apenas a ladeira. (Portanto) Proposição: A UPP funciona Garantia: Para a UPP funcionar, ter um bom resultado, a favela precisa se tornar igual às demais regiões da cidade Dado: Outros Estados estão importando a política das UPPs (Portanto) Proposição: A política das UPPs funciona Garantia: os outros Estados sabem identificar o que são boas políticas e só importam políticas que funcionam

Os argumentos apresentados na Tabela 8 revelam que os policiais utilizam como

estratégias para se legitimar o apelo à superioridade das demais regiões da cidade e do mundo

em relação às favelas. São estas regiões externas que devem servir como modelo, e se elas

aprovam as UPPs isto significa que as UPPs deram certo, porque, afinal, elas sabem

diferenciar um bom e um mau programa.

Partindo de dados como “Hoje a diferença entre a favela e outras regiões da cidade é

apenas a ladeira” ou “Outros Estados estão importando a política das UPPs”, os policiais

sustentam as suas proposições de que “as UPPs funcionam”. Há, entretanto, por trás deste

argumento, a garantia de que “Para a UPP funcionar, ter um bom resultado, a favela precisa se

tornar igual às demais regiões da cidade” ou de que “os outros Estados sabem identificar o

que são boas políticas e só importam políticas que funcionam”. As premissas revelam, assim,

Page 138: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

137

a visão dos policiais de que as regiões externas às favelas são superiores e, por isso, devem

servir de modelo a ser seguido. Demonstram que por trás da ideia de “integração” em que

todos os agentes se pautam, mas cada um à sua maneira, há, para os representantes da UPP,

uma ideia de homogeneização, segundo a qual a melhoria das favelas diz respeito a se tornar o

mais próximo possível das outras regiões.

As estratégias de legitimação baseadas em argumentos de superioridade também

podem ser consideradas úteis para que não se questione o uso da violência como forma de

retomar aqueles espaços. O que se pretende pelo uso, pelo menos inicial, da violência, é

transformar estes territórios em algo “melhor”, “superior” porque semelhante ao que lhe é

externo. Neste sentido, o uso da violência tem a sua razão de ser e, portanto, não deve ser

questionado. Tem-se, mais uma vez, uma tentativa de retomada do monopólio do uso legítimo

da violência.

Às premissas que remetem a uma situação de conflito entre cidade e favela, que levam

a crer que é esta um território que precisa ser retomado, ocupado, posto à livre circulação – o

que só pode ser alcançado por meio de uma postura ostensiva – refiro-me aqui como uma

lógica de confronto. Por meio da análise retórica também foi possível revelar que os agentes

que compõem o campo das UPPs parecem embasar suas ações em premissas que dizem

respeito a uma crença de que há na favela um inimigo que precisa ser combatido, por ser ele o

responsável pelos altos índices de criminalidade da cidade. E o sucesso neste confronto é

comprovado por evidências vívidas, como a liberdade de circulação ou o fim da ostensividade

do tráfico.

Com base nas análises, também me refiro, quando se trata das UPPs, a uma lógica

civilizatória, como um conjunto de premissas que remetem a uma necessidade de transformar

a favela para o bem, transmitindo-lhe valores superiores, mais “civilizados”, com os quais

antes não tinha contato. Na análise retórica tal lógica se revela por estratégias argumentativas

com base no Ethos, em argumentos de moralidade ou caráter. As estratégias de Ethos

mostram que os policiais partem do pressuposto de que existem o bem e o mal – sendo as

UPPs e os que as apoiam representantes dos primeiros, e os traficantes e os que os apoiam

representantes do segundo. Ainda, parte-se da premissa de que regiões externas às favelas são

a elas superiores, e por isso devem ser imitadas, com vistas a uma homogeneização entre

favela e cidade.

O PAC, enquanto um programa de infraestrutura urbana, tem o seu objetivo claro:

ampliar a infraestrutura da favela. Consideradas como regiões com deficiências sérias em

Page 139: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

138

termos de infraestrutura, as favelas, ao menos algumas delas, receberam as obras do PAC

voltadas, principalmente, para “implantação dessa infraestrutura que sempre foi deficiente nas

áreas periféricas” (Representante do PAC 5, favela da zona Sul). Além disso, para o PAC, é

uma questão crucial que se possa resolver o problema do acesso às favelas, que em geral

possuem apenas uma via principal de acesso, sobrecarregada com a intensa movimentação.

Conforme explica um representante do PAC:

então a ideia do PAC é justamente isto, é oxigenar, abrindo estas avenidas, vai chegar o

carro das Casas Bahia, vai chegar o carro de polícia, vai chegar ambulância, o cadeirante

consegue chegar até mais perto de casa, então melhora muito a vida da população

(Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).

Conforme explicou o representante do programa, a ideia é que as obras do PAC

facilitem o acesso, não só dos moradores, mas também de empresas que fazem entregas ou de

órgãos públicos em geral.

Para a realização das obras na favela, tarefa nada simples, o PAC tem uma interação

constante com os moradores, e sua estrutura revela a crença de que não basta a realização de

obras, também é preciso que se faça trabalhos sociais com a população. Por isso, dentro das

favelas, o PAC possui duas equipes básicas: a frente de obra e a frente social. A primeira,

como o nome diz, é a responsável direta por realizar as obras, remover as casas, abrir as ruas,

ou o que mais for necessário para tal. A segunda, por sua vez, engloba algumas atividades

distintas: Desenvolvimento Territorial (DT), responsável, principalmente, por educação

sanitária ou geração de trabalho e renda, e Gestão de Impacto (GI), que lida com os impactos

da remoção, auxiliando, principalmente, no remanejamento dos moradores e encontros de

integração.

Ambas as equipes buscam cumprir seu propósito por meio de ações previamente

planejadas, e não envolvem os moradores em decisões a respeito das obras ou de como devem

habitar os apartamentos que receberão do PAC – embora realizem reuniões frequentes para

passar para a comunidade o que está sendo feito. Declaram diretamente sua crença de que os

moradores não sabem o que é melhor para eles:

Infelizmente, nós brasileiros somos um povo burro, então eu ouvi uma expressão cara a

cara, por um cara da comunidade, subindo a escada lá do prédio AR2 e eu estava subindo

atrás dele e ele reclamando, “porra, pobre é que nem minhoca, é que nem larva, tirou da

merda, morre”. Você começa a dar uns prédios bonitinhos para os caras, o cara fica

fazendo necessidades na rua, botando roupa no varal na janela (Representante do PAC 3,

Favela da zona Sul).

Page 140: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

139

Acreditam, nesse sentido, que é preciso levar a eles aquilo que é melhor, ainda que

eles só reconheçam que o PAC os está fazendo um “bem” quando as obras estão prontas e a

situação da favela, inegavelmente melhor:

A comunidade nunca sabe, eles só querem ouvir o que eles querem ouvir, isto é muito

complicado e é muito complicado mesmo, porque eles só ouvem blá-blá-blá-blá o Estado

ferrou com a gente, blá-blá-blá blá-blá o Estado não pagou, blá-blá-blá hoje está sol, blá-

blá-blá o final de semana tem churrasco, é isto! É isto que eles querem saber, infelizmente.

Até a hora que verificarem a coisa pronta, que nem eles viram aquela rua que está meio

caminho andado ‘caraca, realmente aconteceu, que maneiro!’ (Representante do PAC 3,

Favela da zona Sul)

Com base nesta crença, os agentes impõem aos moradores que deixem as suas casas

para que possam removê-la. As remoções são fonte de conflitos frequentes entre moradores e

representantes do PAC, mas as declarações emocionadas de moradores que não querem deixar

as casas que construíram com as próprias mãos – como eu mesma pude escutar diversas vezes

– não são suficientes para convencer os representantes do PAC de que podem ficar. As

negociações são intensas, e como última medida, apela-se para o Ministério Público. A este

respeito, uma representante do PAC reconhece: “agora, eu não sei, assim se todos os

moradores concordam com isso, né, aqueles que são diretamente afetados pela obra, né, eu

entendo que é difícil, né, para eles terem que sair porque acaba que não dá alternativa, né, tem

que sair para poder a obra passar” (Representante do PAC 2, Favela da zona Sul).

Mas as discordâncias em relação as obras não se restringem às remoções. O lixoduto

da comunidade foi removido para a construção de um elevador panorâmico. Embora o

elevador facilite o acesso dos moradores, a grande maioria defende que o lixoduto trazia mais

benefícios, porque a comunidade sofre com o problema do lixo, e reclama de não ter sido

consultada antes da realização das obras.

Compartilhando da crença de que os moradores não sabem do que precisam, os

agentes responsáveis pela frente social “tem uma série de projetos de instrução, de educação,

da população de como ensinar a ser melhores cidadãos” (Representante do PAC 3, Favela da

zona Sul). E assumem que suas ações não são planejadas com a participação dos moradores,

porque são predeterminadas pelas diretrizes já estabelecidas pelo Ministério das Cidades.

Tive a oportunidade de acompanhar algumas das reuniões de integração da frente

social, que tem o propósito de “ensinar” aos moradores como eles devem morar nos prédios.

A linguagem infantilizada, as histórias sobre animais da fazenda que por serem egoístas no

fim se dão mal, a insistência aos moradores de que eles devem ter plantas em casa, ignorando

suas sugestões em prol da cana de açúcar (que serve para chupar) – a crença de que os

Page 141: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

140

presentes não sabiam o que é bom e que, como crianças, precisavam ser ensinados, gritava

aos olhos e ouvidos de todos os presentes. E o tratamento infantilizado não se restringia às

reuniões de integração, a ponto de um morador que sentava ao meu lado, em uma reunião

sobre as obras, sussurrar ao meu ouvido, em uma mistura de revolta e vergonha: “eles acham

que a gente é analfabeto! Aqui todo mundo tem pós, MBA,...” (Notas de campo, 24/04/2013).

Os representantes do PAC, com vistas a sua legitimação, assim como os representantes

da UPP, também se pautam em estratégias argumentativas de presença, como forma de

sustentar seus argumentos com base em elementos vívidos. Alguns exemplos deste tipo de

argumento, identificados por meio da análise retórica, podem ser observados na Tabela 9 a

seguir:

Tabela 9. Estratégias de Legitimação – PAC - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez

“[O PAC] Funciona. Porque uma intervenção tão grande, de tantos milhões, tem que funcionar” (Representante do PAC 1, Favela da zona Sul) “(...) por mais que o morador tenha essa visão de que “Ah, é o transtorno da obra”, mas é porque ainda não tá finalizada, depois que finalizar a obra, que eles vão ter as vias de acesso, vão ter uma locomoção melhor, ou até ter uma ter uma locomoção propriamente, que nem tem, e a parte de saneamento, e aí eles vão ver que realmente [melhora]” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul) “Quem é o maior interessado? É quem mora na favela, é o cara que vai conseguir comprar uma televisão e não ter que subir a pé lá do ponto do ônibus até o morro, porque o caminhão das Casas Bahia vai chegar lá em cima. É o cara que quebrou a perna e vai conseguir chegar de carro ou em uma ambulância, ou

Dado: Foram investidos muitos milhões no PAC (Portanto) Proposição: O PAC funciona Garantia: Uma grande quantia de dinheiro é suficiente para garantir o sucesso de um programa como o PAC Dado: Os moradores estão insatisfeitos com os transtornos das obras do PAC (Portanto) Proposição: Eles ainda não conseguiram perceber os seus benefícios, com as obras incompletas Garantia: O resultado das obras do PAC é bom para a comunidade Dado: Com as obras do PAC o acesso à comunidade será mais fácil (Portanto) Proposição: O PAC melhora muito a comunidade Garantia: O aumento da facilidade de acesso é uma grande melhoria para a comunidade

Page 142: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

141

sair com uma ambulância para o hospital. Então melhora muito, muito!” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul)

O PAC tem a seu favor o fato de apresentar resultados materiais e, portanto, visíveis.

Esta característica do programa é aproveitada por seus representantes como estratégia de

legitimação. Foram muitos milhões investidos, que serão transformados em “vias

carroçáveis”, facilitando o acesso de todos e melhorando a circulação pela favela. Se os

moradores ainda estão insatisfeito com o programa, na visão de seus agentes, é apenas porque

os seus produtos ainda não estão prontos e, portanto, ainda não estão visíveis.

Partindo de dados como “Foram investidos milhões no PAC” ou “Com as obras do

PAC o acesso à comunidade será mais fácil”, sustentam as suas proposições de que “o PAC

funciona” ou de que “o PAC melhora muito a comunidade”. As premissas por trás destes

argumentos mostram que, para os agentes, um investimento de milhões ou a visível facilidade

de acesso com a abertura de vias são garantias suficientes de que o programa é bem sucedido

e traz melhorias para a favela. Aqui, assim como no caso dos representantes da UPP, temos

uma aproximação à noção de capital espacial que será trabalhada mais adiante neste capítulo.

A análise retórica também revelou o uso de estratégias de Ethos, baseada em valores,

pelos representantes do PAC, mais uma vez aproximando-se dos tipos de argumentação

utilizados pelos representantes da UPP. Tais argumentos são apresentados na Tabela 10 a

seguir:

Tabela 10. Estratégias de Legitimação – PAC – Ethos – Argumentos Baseados em Valores

Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento Ethos: Argumento baseado em valores

“[Com o PAC] Ela deixa de ser favela para virar comunidade e daqui a pouco ela vira um bairro. Então ela vai subindo o seu padrão de vida e ela vai gostando disto. Então ela vai parar de jogar lixo na rua, ela vai parar de roubar, de matar, de brigar, de tacar uma faca na cabeça do outro, porque ela já vai aprender que não é tão assim...Caramba, dá para ser do bem, é legal ser do bem, é bom ser do bem!”( Representante do PAC 3, Favela da zona Sul) “[com o PAC] a filosofia deles

Dado: O PAC vai melhorar o padrão de vida da favela (Portanto) Proposição: A favela vai aprender a ser do “bem” Garantia: Pessoas com padrão de vida baixo, como os moradores de favela antes das ações do PAC, não são pessoas do bem (roubam, matam,...) Dado: Hoje você tem

Page 143: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

142

melhorou porque começaram a consumir mais e começaram a querer mais, viram que têm direito a mais coisas. Hoje já tem gente que fala muito bem na comunidade, nem todo mundo fala ‘para mim fazer’, tem pessoas que escrevem bem, que pensam, que trabalham, que funcionam numa boa. Lógico que tem um pessoal ruim ainda” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul)

pessoas na favela que funcionam bem (Portanto) Proposição: Com o PAC a filosofia dos moradores melhorou Garantia: Antes do PAC não existiam moradores na favela que funcionavam bem

A dicotomia entre “bem” e “mal” também aparece aqui, posicionando o PAC como

um programa capaz de levar o “bem” para a comunidade, de salvá-los de uma passado em que

as pessoas não sabiam que podiam ser “do bem”, e por isso matavam, roubavam, tacavam

facas uns nos outros e falavam um português ruim. Desqualificar a favela e seus moradores é

uma forma encontrada pelo PAC para sua legitimação. Afinal, dentro desta lógica, se hoje há

pessoas “de bem” dentro da favela, que sabem falar português, e que até “funcionam numa

boa”, é porque o PAC as salvou e, portanto, é um programa bem sucedido.

Dado que “hoje você tem pessoas na favela que funcionam bem”, pode-se sustentar a

proposição de que “com o PAC a filosofia dos moradores melhorou”. A garantia deste

argumento revela a premissa de que “antes do PAC não existiam moradores na favela que

funcionavam bem”, garantindo ao programa o papel de salvador desta população.

Aparece também aqui argumentos que tem a sua persuasão garantida pelo apelo às

emoções, tradicionalmente conhecidos como Pathos (BAUER e GASKELL, 2012), conforme

os exemplos da Tabela 7 a seguir:

Tabela 11. Estratégias de Legitimação – PAC - Pathos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Pathos: Argumento baseado em emoção

“Eu gosto muito das reuniões, os Encontros de Integração. É difícil, né, porque a gente não consegue agradar a todos, mas a gente sabe que tá fazendo uma coisa boa pra eles” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul) “Conversar e convencer que aquela obra, que vai estar passando ali na casa dela né, daquele morador, mas que é pelo

Dado: Sabe-se que está fazendo uma coisa boa para os moradores (Portanto) Proposição: Gosta-se das reuniões, ainda que não se consiga agradar a todos Garantia: Nem todos os moradores sabem o que é bom para eles. Dado: As obras do PAC são para o bem da comunidade (Portanto) Proposição: o morador deve

Page 144: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

143

bem da comunidade como um todo, né, porque quem vai se beneficiar é toda a comunidade, abrir mão né, daquele espaço dela por um outro pra poder beneficiar toda a comunidade e ela também vai ser beneficiada, porque a obra vai beneficiar no tempo que ela continuará morando naquela comunidade, né” (Representante do PAC 2, Favela da zona Sul)

abrir mão de seu espaço para as obras do PAC Garantia: Os representantes do PAC sabem o que é bom para a comunidade

Os argumentos que apelam para as emoções para legitimar as ações do programa,

enfatizam os sentimentos dos próprios representantes do PAC de apreço pelo programa,

porque se sabe, afinal, que é para o bem de todos. Ainda que alguns moradores tenham que

ceder as suas casas, estes estarão realizando uma ação altruísta, pensando no bem da

comunidade acima do seu próprio bem.

Tem-se como dado “as obras do PAC são para o bem da comunidade” ou que “se sabe

que se está fazendo uma coisa boa para os moradores”, assim, “gosta-se das reuniões, ainda

que não consiga agradar a todos”, e “o morador deve abrir mão de seu espaço para as obras do

PAC”. Tem-se como garantia que “nem todos os moradores sabem o que é bom para eles”,

afinal, estão insatisfeitos, mesmo diante do dado de que as obras são para o bem; ainda, “os

representantes do PAC sabem o que é bom para a comunidade”, e isso serve como uma

garantia para sustentar o argumento de que, ao deixar as suas casas, os moradores estarão

contribuindo para o bem comum.

Aqui os representantes do PAC se justificam enquanto merecedores de uma posição

dominante no campo burocrático do Estado, posição esta detentora do direito de falar em

nome do público, de determinar o que é o bem público, conforme marcou Bourdieu (2014).

Pautam-se na premissa de que sabem, melhor do que os próprios moradores, o que é o bem

público. Nesse sentido, as estratégias de legitimação enraízam-se no próprio jogo do Estado: a

disputa por falar em nome do bem comum.

Também identifica-se no PAC semelhanças à lógica civilizatória presente na UPP. O

conjunto de premissas no qual os representantes do PAC parecem se pautar diz respeito, aqui

também, a uma crença na existência do “bem” e do “mal”, e o programa é também

posicionado como um representante do bem a “salvar” a favela, resgatando-a de um passado

de violência e outras atrocidades. Ainda, a lógica civilizatória aqui aparece como premissas de

que os representantes do programa estão em melhores condições de dizer o que é bom para os

moradores acima deles mesmos. Acredita-se que os sacrifícios que alguns moradores tiveram

Page 145: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

144

que fazer para que as obras se realizassem, trarão um bem para todos, pois se sabe definir o

que é bem e o que não é. Não se quer dizer aqui que as obras do PAC não trazem melhorias

para a favela, mostra-se apenas que a definição do que é uma “melhoria” não está nas mãos

dos moradores.

Com a entrada das UPPs nas favelas, como forma de atender à demanda por segurança

pública nestes espaços, o programa da UPP Social se propõe a acompanha-la neste processo,

porém voltada para o atendimento das demandas sociais. O objetivo da UPP Social é, então,

levantar demandas e encaminhá-las aos órgãos responsáveis por atende-las, fortalecendo a

articulação entre os moradores e o poder público: “Então, oferecer e constituir um canal que

catalisa a criação dessa interlocução e que compreende o conjunto que eu estou falando aqui

como fundamental para criar as bases para uma relação de outra natureza dessas áreas com o

poder público” (Representante UPP Social 7, Geral).

Os representantes da UPP Social fazem questão de reforçar que não são eles os

responsáveis diretos pelo atendimento das demandas. Eles apenas as encaminham, para que

estas possam ser atendidas por quem tem este dever. Para desfazer a confusão, que parecia ser

frequente, um dos representantes do programa explicou:

Simplesmente não somos nós que atendemos. Nós encaminhamos, nós somos aqueles que

estão no território ouvindo, encaminhando, nós não atendemos. Não trazemos o secretário

aqui. Não trazemos a; não temos esse poder. Nós chamamos e ele vem se ele quiser. Então,

né, não somos nós que atendemos essa demanda. Somos nós que apontamos essa demanda

(Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte).

O encaminhamento de demandas realizado pela UPP Social também tem uma

preocupação de fundo de gerar registros, produzir informações a respeito das favelas,

territórios pouco conhecidos pelo Estado. Nesse sentido, os representantes da UPP Social

levantam as demandas nas comunidades, e as registram em seus sistemas – seja por meio de

mapas georeferenciados, de relatórios ou até mesmo em seus blogs – para que seja criada uma

memória deste trabalho: “eu vejo que os programas anteriores, em áreas de favela foram

pouquíssimo documentados. É difícil você ter acesso às informações. Então eu acho que é o

grande diferencial do programa também” (Representante da UPP Social 1, Geral).

A UPP Social também se diferencia em sua forma de fazer as coisas, em sua

preocupação central de ouvir os moradores e tentar preservar sua visão a respeito de como os

problemas deveriam ser resolvidos. Referem-se a uma inversão na lógica das políticas

públicas, que em geral já chegam prontas aos moradores. A respeito desta noção de

“inversão”, um representante do programa explicou:

Page 146: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

145

Sabe uma coisa assim? Eu vou fazer de trás para frente. Eu acho que é o seguinte: a maioria

das decisões públicas que existe na cidade é de cima para baixo. O gestor público vê que ali

tem um problema e fala o seguinte. “Olha, gente.” Chega para a equipe dele e fala o

seguinte. “Olha, gente, tem esse problema aqui, como é que a gente vai resolver?”. Só que

quem participa da decisão raramente é a pessoa que está ali convivendo com tudo aquilo. E

quando o cara decide aqui, ele não quer saber o que o dali acha. (...). A gente identificou o

problema ali e a gente conversou com os moradores a melhor forma de resolver aquele

problema. E foi feito esse grande estudo, sabe. (...) Por exemplo, eu posso chegar aqui e

falar que isso aqui está errado. Isso aí é hierarquia mesmo, entendeu. Só que com a visão da

UPP Social já era diferente, a gente conversava, quem estava, com quem estava sendo

afetado a gente fazia um estudo e apresentava (...) (Representante da UPP Social 3, favela

da zona Sul).

Um exemplo desta forma de funcionamento é o projeto “Vamos Combinar”, realizado

pela UPP Social para lidar com o problema do lixo, comum a muitas favelas. Com o auxílio

de moradores, os gestores da UPP Social mapearam os melhores pontos de coleta de lixo

dentro da favela e montaram um relatório a ser entregue para a Comlurb. Os moradores

lembram satisfeitos do projeto, porém decepcionados com o fato deste nunca ter ido para

frente: a Comlurb não levou adiante a implementação. Outro exemplo foi o mapeamento de

logradouros realizado pela UPP Social. Para formalização do nome das ruas, sem que estes

fossem impostos aos moradores, a UPP Social fez um levantamento do nome de ruas e

regiões da favela informalmente adotados pelos moradores, para que estes pudessem ser

formalizados na prefeitura.

Embora inicialmente a UPP Social organizasse alguns fóruns próprios, com o objetivo

de apresentar o programa aos moradores, na época da pesquisa de campo sua atuação voltava-

se mais ao acompanhamento de eventos e reuniões organizados pelos próprios moradores, e

eram principalmente nestas ocasiões que eu os encontrava em campo. E mesmo em reuniões

comunitárias, preocupavam-se em respeitar a visão dos moradores: “Talvez você tenha

percebido nas reuniões às vezes, assim, a gente, eu pelo menos evito dar muita opinião e me

colocar muito porque as questões são comunitárias” (Representante da UPP Social 4, favela

da zona Sul).

Ainda que mantenham esta forma de funcionamento, os representantes da UPP Social

se posicionam enquanto prefeitura dentro da favela, e lembram que têm um papel institucional

a cumprir. Criticam o programa Territórios da Paz, discutido a seguir, justamente por sua

postura de “defender os moradores”, esquecendo, em suas visões, que são representantes do

Estado na favela:

Page 147: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

146

Mas de maneira geral, eu acho que uma grande diferença assim é que eles têm uma, têm

uma identificação maior com os moradores, no sentido, da forma como funciona, assim, em

campo. Acho que isso dá um pouco mais de capilaridade, mas é, em alguns momentos a

gente vê que traz um pouco de ruído, assim de como os moradores veem mesmo, assim.

Qual é, qual é o papel que eles têm, assim.(...) Acho que é importante para o trabalho, para

que as coisas fiquem claras, mesmo, assim, para os moradores e tal. Quem é o quê, assim

(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).

Como o trabalho da UPP Social baseia-se na proposta dos moradores para a solução

dos problemas, estes também procuram deixar de lado uma preocupação com os méritos

daquilo que fazem ou deixam de fazer em campo, reconhecendo que às vezes é até difícil

diferenciar o que é deles: “mas a gente não corre atrás de mérito não, a gente está ali para

fazer o nosso. Para ‘ah, eu fiz isso’. Não. Tanto que a gente tem uma porrada de, a gente tem

um monte de coisa que a gente fez assim” (Representante da UPP Social 3, favela da zona

Sul).

As estratégias de legitimação da UPP Social revelam, primeiramente, um

reconhecimento de que o programa não conseguiu se legitimar como gostaria, e por isso seus

agentes, muitas vezes, utilizam argumentos que estão muito mais voltados para justificar a sua

falta de legitimidade. A partir de argumentos pautados na razão (Logos), alguns

representantes do programa explicam que não é possível afirmar com certeza se o programa

funciona ou não, na falta de uma avaliação formal. Exemplos de argumentos de Logos podem

ser vistos na Tabela 12 a seguir:

Tabela 12. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Logos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Logos: Argumentos racionais pautados na impossibilidade de avaliação formal

“Defina funciona, né? Porque até naquele momento você, está num momento de fundamentalmente de implantação, né, quer dizer acho que do ponto de vista da acolhida, da receptividade, da proximidade formal, do ambiente que se formou etc. e tal, eu acho que a relação é completamente positiva. Agora daí pra frente as hipóteses todas que estão por trás disso não têm como ser testadas em seis meses. Então eu diria, respondendo à sua pergunta é aquilo que eu testemunhei e acompanhei, e estive envolvido, não tem tempo hábil para avaliar isso, né” (Representante UPP Social 7, Geral)

Dado: Não é possível avaliar o programa em pouco tempo (Portanto) Proposição: Não é possível dizer se o programa da UPP Social funciona Garantia: É necessária a realização de uma avaliação de longo prazo para poder responder se o programa da UPP Social funciona

Page 148: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

147

“É muito difícil dizer [se o programa traz mudanças para a favela]. É tão difícil de medir o impacto no trabalho (...) Eu tenho dificuldade de dizer(...)” (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).

Dado: É difícil medir o impacto do programa (Portanto) Proposição: É difícil dizer se ele traz mudanças para a favela Garantia: Para dizer se o programa traz mudanças para a favela é preciso medir o seu impacto

Partindo do dado de que “Não é possível avaliar o programa em pouco tempo” ou de

que “É difícil medir o impacto do programa”, os representantes da UPP Social propõem que

portanto “Não é possível dizer se o programa da UPP Social funciona” ou que “é difícil dizer

se ele traz mudanças para a favela”. A partir de argumentos racionais, os agentes reconhecem

a possibilidade de haver problemas, não tentam, a todo custo, sustentar o bom funcionamento

do programa, mas também lembram que não é possível ainda dizer que o programa não

funciona ou não traz mudanças para a favela. A premissa é clara: “É necessária a realização

de uma avaliação de longo prazo para poder responder se o programa da UPP Social

funciona” ou, dito de outra forma, “Para dizer se o programa traz mudanças para a favela é

preciso medir o seu impacto”.

A inversão de lógicas, que busca muito mais justificar a falta de legitimidade à forçar

estratégias de legitimação, também se mostrou presente em argumentos de presença. Os

exemplos podem ser vistos na Tabela 13 a seguir:

Tabela 13. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez

“É, como nós não somos finalistas, eu não diria que o nosso efeito de trabalho é físico, o que muitas vezes dificulta até a gente explicar o que que é a UPP Social. ‘Mas o que vocês fazem, né? Qual é a proposta? E aí, o que vocês já fizeram?’ Está tudo documentado. Está tudo produzido, mas é informação. Informação não se mede, né?” (Representante da UPP Social 1, Geral) “Então, muitas vezes, parece que não funciona, isso é histórico, por

Dado: O efeito do trabalho da UPP Social não é físico (Portanto) Proposição: É difícil explicar o que é a UPP Social. Garantia: Efeitos físicos facilitam a explicação dos programas Dado: Às vezes, os moradores não conseguem

Page 149: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

148

conta disso. Porque, às vezes, são medidas pontuais. E eles mesmos não se identificam como pertencentes àquele complexo. Quando é igual à Formiga, já é melhor. Porque a Formiga é só a Formiga. É a UPP Formiga. Então, qualquer coisa que você leve é perceptivo pra toda a comunidade. Quando é um complexo, já é uma questão um pouco mais difícil” (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte) “Principalmente eu acho que para, hoje para quem ela mais funcionaria, deveria ser para a própria Prefeitura e Secretarias. Mas o problema é que a Prefeitura e Secretarias ainda não enxergou isso. (...) porque para a Prefeitura em si eles ainda não enxergaram o quão bom é a UPP Social para eles. Eles ainda não entenderam, entendeu? Mas para quem paga o programa, que é a própria Prefeitura, eles não entenderam a potência e quão bom é ter um programa desse na comunidade. Então para quem mais deveria funcionar, não funciona” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte)

perceber as coisas que a UPP Social leva para a favela (Portanto) Proposição: Muitas vezes, parece que o programa da UPP Social não funciona Garantia: Só se acredita que o programa da UPP Social funciona quando as coisas que eles levam são perceptíveis na favela Dado: A prefeitura ainda não conseguiu enxergar o quão bom é a UPP Social (Portanto) Proposição: O programa da UPP Social não funciona para a prefeitura Garantia: É preciso enxergar os benefícios do programa para que se considere que ele funciona

Percebe-se nos argumentos de presença, que os representantes da UPP Social veem na

falta de resultados físicos, mais vívidos do programa, a sua falta de legitimidade (aqui

diretamente assumida). Parte-se do dado de que “o efeito do trabalho da UPP Social não é

físico” para sustentar a proposição de que portanto “é difícil explicar o que é a UPP Social”.

Diante dos questionamentos que o programa recebe neste sentido, é importante reforçar que a

falta de um efeito físico e, portanto, mais visível, dificulta a explicação. Parte-se, então, da

premissa de que efeitos físicos facilitam a explicação dos programas. Ainda, o dado de que

“Às vezes, os moradores não conseguem perceber as coisas que a UPP Social leva para a

favela” sustenta a proposição de que “Muitas vezes, parece que o programa da UPP Social

não funciona”. O reconhecimento de que o funcionamento do programa é questionado é

justificado com base na premissa de que “só se acredita que o programa da UPP Social

funciona quando as coisas que eles levam são perceptíveis na favela”. Vê-se uma reflexão dos

Page 150: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

149

gestores em torno dos questionamentos direcionados à UPP Social, mas também uma

tentativa de justifica-las sem que se entenda como certa a ideia de que o programa não

funciona ou é mau definido. Aqui não se parte para uma desqualificação daqueles que

criticam o programa como forma de legitimação, mas sim para uma apresentação de

justificativa para a fala daqueles que o questionam, que não necessariamente correspondam a

uma veracidade de suas falas.

Argumentos pautados na emoção também fazem parte do repertório de estratégias de

legitimação dos representantes da UPP Social. Alguns exemplos são apresentados na Tabela

14 a seguir:

Tabela 14. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Pathos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento

Pathos: Argumento baseado em emoção

“Você para começar é um tiro no pé. É um, estamos dentro da Prefeitura apontando para a Prefeitura todos os erros que ela está fazendo. Pô, você está fazendo, desculpe o termo, está fazendo besteira aqui, meu filho, vai che/não vai funcionar nunca. E cada área diz aí, eu vou continuar a fazer assim. Não tem, isso é complicado. Você fica lá, você tem um sistema que você alimenta dizendo para o prefeito as besteiras que ele está fazendo. Complicado isso” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte) “(...) eu acho que ele [o programa] vai, ele, ele ele toca numa ferida da cidade, né? Eu acho, assim, coisa das favelas no Rio é muito, é uma, para muita gente eu acho que é uma realidade muito incômoda, assim, é uma coisa que não queriam que existisse, e você ficar o tempo todo chamando atenção, 'olha, a favela está ali e tal'. Eu acho que é, constrange muito as pessoas. Muito, eu acho que muita gente fica meio perturbada assim de ficar sendo lembrada que a favela está ali porque preferia esquecer, assim. Então eu acho que, eu não falo só dentro do poder público, eu falo para para para a opinião pública mesmo, que também

Dado: A UPP Social está dentro da prefeitura apontando para a prefeitura todos os erros que ela está fazendo (Portanto) Proposição: É difícil que o programa funcione Garantia: A prefeitura se incomoda com o fato de que o programa aponte os seus erros. Dado: A UPP Social toca em uma ferida da cidade e gera incômodo (Portanto) Proposição: Ela acaba tendo problemas na sua projeção política Garantia: A projeção política de um programa depende do sentimento que ele gera

Page 151: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

150

seria, que também faz diferença, né, na na projeção política, digamos assim, a mídia é muito forte para promover ou deslegitimar programas e tal, então eu acho que tem esse incômodo mesmo” (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul) “Mas a gente tem uns trabalhos assim bem gratificantes. Algumas mudanças de percepção que, sabe, de tirar o chapéu. A gente sente isso no campo, assim. Só pelo fato da gente ser bem-aceito. A gente não fez muita coisa no campo, mas você percebeu que todo mundo para para escutar a gente, todo mundo recebe muito bem a gente, entendeu. Se fosse outro órgão a gente não ia ser ( ), não ia ser convidado para nada, entendeu. Mas a gente é chamado ainda” (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).

Dado: Os gestores da UPP Social são bem aceitos no campo (Portanto) Proposição: Os trabalhos que eles realizam são gratificantes Garantia: Ser bem aceito em campo é um retorno positivo do trabalho que realizam

Também como forma de justificar a fraca legitimidade do programa (aqui também

abertamente reconhecida), os representantes da UPP Social apontam para as emoções

daqueles que, de alguma forma, não dão o valor devido ao programa. Se a prefeitura ou a

opinião pública em geral não reconhecem o valor do programa e o deslegitimam de alguma

forma, é porque a UPP Social gera neles um incômodo, por tocar em uma questão delicada

como as favelas.

É um dado para os agentes que “A UPP Social está dentro da prefeitura apontando

para a prefeitura todos os erros que ela está fazendo” e, portanto, “É difícil que o programa

funcione”. Parte-se da premissa de que “a prefeitura se incomoda com o fato de que o

programa aponte os seus erros”, e por isso não dá ao programa o devido suporte para que ele

possa funcionar. Afinal, a UPP Social baseia-se em um encaminhamento de demandas. Para

que seu trabalho ganhe a “visibilidade” que os argumentos de presença mostram que não tem,

é preciso que as demandas que encaminham sejam minimamente atendidas. Ainda, partindo

do dado de que “A UPP Social toca em uma ferida da cidade e gera incômodo”, propõe-se

que por isso “Ela acaba tendo problemas na sua projeção política”. Pois, como garantia, tem-

se que “A projeção política de um programa depende do sentimento que ele gera”. Como a

Page 152: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

151

UPP Social incomoda, é deslegitimada, não só pela prefeitura, mas pela opinião pública em

geral.

O conjunto de premissas que guiam as ações da UPP Social distanciam-se daqueles

observados na UPP e no PAC. Para alcançar seu objetivo, o programa busca “inverter” as

políticas públicas, e tentar formulá-las de baixo para cima, a partir da realidade dos moradores

e dos gestores de campo que buscam compreender esta realidade. Mais ainda, com o

reconhecimento de que as suas visões não são aquelas que definem o que é o “bem” ou o

“mal”, ou o “certo” e o “errado”, os representantes da UPP Social em parte aceitam que na

visão dos moradores ou daqueles que criticam o programa tal crítica pode fazer sentido,

afinal, se eles não conseguem enxergar os resultados do programa, como podem acreditar que

funciona? A esta nova lógica que aqui aparece denomino de lógica de inversão, como o

conjunto de premissas pautadas na crença de que os valores e a realidade dos moradores

também é válida e deve ser considerada nas tomadas de decisões a respeito das ações do

Estado em favelas.

Próximo à UPP Social, especialmente em seu ponto de origem, o programa Territórios

da Paz também surge com um objetivo de levantar e acolher demandas. Partindo da lógica de

que o programa não pode e não deve ficar na favela para sempre (questão que a UPP Social

também reconhece), o Territórios da Paz hoje assume um papel de articulador: “O papel do

Territórios da Paz é muito esse, de articular rede, a gente não tem poder de execução para

nada, sabe” (Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul).

Partilhando aqui também da ideia de que as soluções para os problemas da

comunidade devem vir de baixo para cima, os representantes do Territórios da Paz

identificavam as demandas mais sensíveis, entretanto, não apenas as encaminhavam aos

órgãos responsáveis, mas também se propunham a mostrar aos moradores como este

encaminhamento deveria ser feito, envolvendo-os neste processo. Conforme explicou um

representante do programa:

A ideia era do Territórios da Paz era fortalecer reuniões locais e grupos locais, não criar

uma reunião própria, um grupo próprio para discutir problemas locais, como trajetória de

analisar uma política pública em cima de redes como solução para questões de serviços

públicos locais também. Formou uma espécie de construção de política pública por baixo.

Como assim? Tem o problema do lixo? Tá. Não vou te dar solução, mas vou ajudar você a

construir um relatório em relação a isso e você poder reivindicar à prefeitura de forma

organizada quais os problemas e onde ocorre no morro, ocorre, tira foto do lugar, não-sei-o-

quê, informa a prefeitura com relação a isso. Tem um problema com água? Vamos fazer um

mapeamento da rede de água aqui do Salgueiro, que é um caso emblemático que a gente

Page 153: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

152

levantou mais informações que a própria CEDAE tinha. Que os moradores todos se

engajaram e conseguiram fazer um levantamento muito grande sobre o problema de água

no Salgueiro (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)

Nesse sentido, o programa preocupa-se em garantir que os moradores estejam aptos a

correr atrás de suas demandas sozinhos. Por isso, a preocupação maior do programa acabou se

tornando o fortalecimento de redes, capazes de realizar suas próprias reivindicações: “a gente

começou a perceber que o tema principal do nosso programa era fortalecer as redes

comunitárias” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral).

Para que esta forma de funcionamento fosse possível, e considerando as fortes

diferenças que existem entre cada uma das favelas, o programa também tinha como meio de

funcionamento a grande autonomia das equipes, que eram livres para identificar a melhor

forma de trabalho e as questões mais relevantes para cada favela. A este respeito, uma gestora

explicou:

Só que a gente sabe que que que, por exemplo, você entra na Cidade de Deus, as redes

estão articuladas. Então como é que é articular, como é que articular rede vai ser o objetivo

na Cidade de Deus? Não. O nosso objetivo é apoiar as redes, é fomentar o que existe, é

isso. Não é mais ajudar a formar, entendeu? (Representante do Territórios da Paz 1, Favela

da zona Sul).

Conforme será discutido no próximo capítulo, esta característica do programa também

faz com que o trabalho do Territórios da Paz se diferencie muito de acordo com cada

território, de acordo com as características do local e às vezes, também, de cada gestor.

Outro ponto importante do Territórios da Paz, que aqui também se assemelha à UPP

Social, é a sua ideia de que as ações do programa, como são construídas de baixo para cima,

com a participação intensa dos moradores, não devem ser assinadas - não se deve colocar o

nome do programa em destaque naquilo que ele faz de forma conjunta com a comunidade - e

chegaram a mandar refazer notas de comunicação em que o nome do programa aparecia como

seu promotor: “a gente queria de fato que quem fizesse, que quem assinasse fosse instituições

locais, projetos locais, e que a gente fosse só no máximo apoiador, organizador. Os

realizadores sempre de lá” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral).

Aqui também a análise retórica revela um reconhecimento explícito ou implícito de

que o programa tem tido dificuldades para se legitimar. Entre as estratégias de legitimação

apresentadas pelos representantes do Territórios da Paz também predominam argumentos

voltados para justificar os problemas de legitimidade em detrimentos de argumentos de

legitimação direta. Predominaram, dentre as estratégias, argumentos com base em Logos e em

Presença. Exemplos do primeiro tipo podem ser observados na Tabela 15 a seguir:

Page 154: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

153

Tabela 15. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Logos

Os representantes do Territórios da Paz apresentam argumentos racionais (Logos)

para argumentar, primeiro, que como não é possível realizar uma avaliação quantitativa de

longo prazo do programa, não é possível avaliar se o programa é efetivo ou não. Aqui, como

no caso da UPP Social, também se assume, com este argumento, a possibilidade de que o

programa não seja efetivo. Entretanto, também se aponta para o fato de que ainda não é

possível colocar por terra definitivamente a efetividade do programa, afinal, nenhuma

avaliação quantitativa de longo prazo foi ainda realizada. Nesse sentido, ao se assumir a

Estratégias de Legitimação

Exemplos Estrutura do Argumento

Logos: Argumentos racionais

“A quantificação disso em termos de política pública é muito difícil porque tem que avaliar isso a longo prazo com grupos de controle. Você não tem como avaliar um programa, por exemplo, de trabalho em territórios pacificados que trabalham com programa com territórios que receberam o programa e territórios que não receberam para poder avaliar de fato a efetividade da política. Isso a gente não tem como fazer” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) “A gente não tem veículo oficial realmente que demonstrasse o quão complexo, o quão rico é o nosso trabalho, fornecendo uma programação de utilidade que a gente constrói, que a gente elabora, que a gente finaliza. A gente não tem isto! (...) Então tem muito isto. E o próprio governo do Estado não sabe muito bem quem somos, não sabe muito bem...a própria secretaria não sabe, quem dirá o resto do Estado. Esta é a verdade! (...) Tem tudo isto, a gente paga muito mico neste sentido de tentar encontrar legitimidade dentro do nosso trabalho e a gente encarar essas aberrações (...)” (Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul).

Dado: É difícil realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo do programa Territórios da Paz (Portanto) Proposição: Não tem como avaliar a efetividade do programa Garantia: Para avaliar a efetividade de uma política é preciso realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo Dado: O Territórios da Paz não possui um veículo oficial que demonstre a complexidade do programa e suas ações (Portanto) Proposição: O programa é desconhecido pelo próprio governo do Estado Garantia: Veículos oficiais de divulgação são necessários para que o programa torne-se conhecido

Page 155: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

154

possibilidade de falha, a garantia de que “Para avaliar a efetividade de uma política é preciso

realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo” salva o programa de uma deslegitimação

definitiva. Pode-se questionar, porém não é possível afirmar com certeza.

O desconhecimento do programa, um aspecto que também afeta a sua legitimidade,

também é justificado com base em argumentos de Logos. É um dado que “o Territórios da Paz

não possui um veículo oficial que demonstre a complexidade do programa e suas ações”,

portanto “o programa é desconhecido pelo próprio governo do Estado”. Esta forma de

argumentação ajuda a legitimar o programa na medida em que aponta para uma outra causa

para o fato de o programa ser desconhecido: não é a falta de efetividade do programa que leva

a seu desconhecimento, mas sim o fato de que suas ações efetivas não são devidamente

divulgadas.

Os argumentos de Presença, por sua vez, são apresentados na Tabela 16 a seguir:

Tabela 16. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Presença

Os argumentos de Presença também seguiram, em alguns casos, a estratégia de

justificar a falta de legitimidade, mostrando aqui também um certo reconhecimento de que ela

Estratégias de Legitimação

Exemplos Estrutura do Argumento

Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez

“E por isso mesmo, a gente teve um problema de visibilidade porque a gente, enquanto outros projetos e propostas botavam, assinavam o nome X, Y, a gente não assinava. Isso prejudicou um pouco nossa visibilidade” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) “Se não funcionasse, ele não estaria existindo até hoje, ele seria facilmente extinto como outros, por exemplo, ... Nenhum produto elaborado aqui pelo Territórios da Paz ele foi sumariamente extinto por ineficiência” (Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul)

Dado: O programa Territórios da Paz não assinava os projetos e propostas (Portanto) Proposição: O programa teve um problema de visibilidade Garantia: A assinatura de projetos e propostas ajuda a dar visibilidade aos programas Dado: O programa Territórios da Paz não foi extinto (Portanto) Proposição: O programa funciona Garantia: Quando um programa não funciona ele é extinto

Page 156: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

155

existe. O dado de que o programa não assinava os projetos e propostas serve para justificar

seus problemas de visibilidade. Aqui, mais uma vez, reconhece-se que o problema existe, mas

propõe-se outra justificativa em prol de não o deslegitimizar: a falta de visibilidade não se dá

porque o programa não realiza ações, mas sim porque não coloca a sua marca nelas.

Mas dentre os argumentos de Presença também é possível encontrar aqueles que

defendem a proposição de que o programa funciona. No exemplo acima justifica-se o seu

funcionamento a partir do dado de que até hoje o programa não foi extinto. Ele ainda existe,

logo funciona.

Assim como os representantes da UPP e do PAC apelam para argumentos de presença

para reforçar a sua legitimidade, afirmando-se legítimos porque seus resultados são visíveis,

os representantes da UPP Social e Territórios da Paz apelam para esta mesma forma de

argumento para justificar a sua falta de legitimação, afirmando-se injustamente

deslegitimados, porque seus resultados, embora importantes, não são tão fáceis de se

visualizar ou de serem associados ao nome do programa, porque estes não colocam a sua

marca.

Em suas similaridades com o programa UPP Social, o Territórios da Paz também

parece se pautar em premissas que remetem à lógica da inversão, aqui talvez levadas a um

ponto ainda mais extremo. Embora tenham partido de um objetivo semelhante ao da UPP

Social de encaminhamento de demandas, o Territórios da Paz percebe que é preciso fortalecer

as redes comunitárias para que estas realizem suas próprias demandas, não apenas invertendo

a lógica das políticas públicas, mas também tentando fazer de si mesmos um intermediário

desnecessário. Fomentam as ações dos moradores e deixam que eles assinem as ações

conjuntas. Mas os efeitos adversos dessa lógica de inversão na legitimidade do programa

podem ser observados por meio da análise retórica.

O CRAS, por sua vez, apresenta uma proposta que se diferencia de todas as anteriores.

Com o objetivo de proporcionar à população acesso aos seus direitos, fortalecendo os

vínculos familiares, e buscando atender às necessidades dos territórios em que atuam, o

CRAS tem um papel muito mais voltado para a prevenção:

Para atender esse território, para atender às necessidades desse território, para visualizar

questões das, né, quais são as demandas apresentadas nesse território, que que o CRAS

pode entrar com uma questão da prevenção porque o CRAS trabalha mais com a questão da

prevenção, né? O CRAS ele trabalha, todo enfoque do CRAS é trabalhado em cima das

prevenções. De prevenir e fazer algum tipo de trabalho (Representante do CRAS 8, Favela

da zona Norte).

Page 157: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

156

Em termos mais concretos, o órgão é responsável por dar acesso às famílias aos

serviços prestados pela prefeitura, dar acesso ao Bolsa Família, principal programa de

transferência de renda, realizar o Cadastro Único, que dá acesso a benefícios como tarifa

social ou isenção de taxas em concursos públicos, e informações sobre os direitos da

população em geral. Além disso, são realizados grupos de convivência que dão suporte às

famílias.

Como uma programa de prevenção, muitas vezes os moradores não procuram

diretamente pelos serviços do CRAS, e muitas vezes desconhecem todas as suas ações. Para

lidar com isso, os representantes do CRAS procuram circular pelo território e divulgar

informações sobre os direitos dos moradores, como propostas de cursos ou possíveis

benefícios, nas associações de moradores.

Além disso, preocupam-se em acompanhar eventos dos moradores das favelas, e

participar de reuniões como as organizadas pela UPP, por exemplo, como forma de tentar

antecipar necessidades que possam ser prevenidas por meio de ações futuras do CRAS.

Conforme explicou uma funcionária: “Que tipo de população é essa que a gente atende? A

gente sempre tenta estar dentro dos eventos que acontecem. Então sempre quando tem uma

reunião ou acessar alguma coisa, a gente tenta estar junto, estar vendo qual é a necessidade”

(Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte).

As estratégias de legitimação utilizadas pelo CRAS revelam que a atuação do

programa voltada para a prevenção também pode trazer problemas de legitimidade. Assim

como os programas UPP Social e Territórios da Paz, que perdem legitimidade porque não

apresentam resultados visíveis e dividem os créditos de suas ações com os moradores, o

CRAS, ao trabalhar na prevenção, também tem dificuldades de apontar seus resultados

concretos e, portanto, visíveis. Assim, também partem para estratégias voltadas para justificar

a falta de legitimidade, ou tentam apontar aspectos mais subjetivos e emocionais como

indicativos do sucesso do programa. Os principais argumentos utilizados pelos representantes

do CRAS foram classificados como de Presença ou Pathos. Exemplos do primeiro tipo

podem ser vistos na Tabela 17 a seguir:

Tabela 17. Estratégias de Legitimação – CRAS – Presença

Estratégias de Legitimação

Exemplos Estrutura do Argumento

Presença:

“uma fala bem antiga, o pessoal fala ‘ah, enxugando gelo’. ‘Enxugando gelo, não-sei-o-

Dado: O CRAS não consegue ver os resultados de suas ações (Portanto) Proposição: Seus funcionários ficam

Page 158: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

157

Para justificar uma possível perda de legitimidade, os representantes do CRAS partem

para argumentos de presença e defendem que diante do dado de que “O CRAS não consegue

ver os resultados de suas ações”, acaba que “seus funcionários ficam com a sensação de que

nada foi feito”. Com base na premissa de que “Enxergar os resultados das ações é importante

para a sensação de que se fez algo” justificam-se pela falta de resultados concretos a serem

apresentados como meio de provar que o órgão realmente funciona, que este é realmente bem

sucedido em suas ações.

Mas também partem para a prova mais concreta que possuem, advinda de seu

principal produto: os números do bolsa família. Como um programa de prevenção, que não

tem como avaliar quantitativamente as suas ações (afinal, como contar quantas famílias

qu’".(...), eu acho que por a gente não ver a questão do que a gente produz, da questão do resultado, né, de pesquisa. A mesma coisa, você está fazendo a sua pesquisa. Se você não vir esse resultado depois dá uma sensação esquisita porque parece que você fez, fez, fez e não conseguiu nada. Eu acho que essa questão da Secretaria, de você não ver o que você constrói, isso é muito complicado porque você, te dá a sensação de que você, de que não foi feito” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte). (...) Por exemplo, do grupo que a gente atendeu, a gente tem referenciados aqui na comunidade, é, eu não lembro de cabeça mas a gente tinha sei lá 4 mil pessoas incluídas no Bolsa Família, né, porque as comunidades aqui não são tão grandes, né Porque aqui por área de território, [dessa região da zona Norte] são 38 mil famílias, famílias, não, a gente chama de pessoas para o IBGE. Mas 38 mil pegando tudo, (...). Então se a gente pegar nesse todo, a gente não tem esse retorno, mas que ele dá certo, dá, né, que ele consegue atender àquelas famílias vulneráveis. (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte)

com a sensação de que nada foi feito (“enxugar gelo”) Garantia: Enxergar os resultados das ações é importante para a sensação de que se fez algo Dado: Na região de atuação do CRAS existem 4 mil pessoas incluídas no Bolsa Família (Portanto) Proposição: O CRAS dá certo Garantia: A efetividade do CRAS pode ser avaliada pelo número de famílias atendidas pelo Bolsa Família

Page 159: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

158

deixaram de morrer de fome em decorrência das ações do CRAS), os agentes apontam para os

números que têm: “Na região de atuação do CRAS existem 4 mil pessoas incluídas no Bolsa

Família”. Portanto, “O CRAS dá certo”.

Mas este parece ser o único elemento mais concreto que pode ser apontado. Na

ausência de outras alternativas, em suas estratégias de legitimação, os representantes do

CRAS partem para argumentos de Pathos, e com base em respostas afetivas dos moradores

sustentam a legitimidade do programa. Alguns exemplos são apresentados na Tabela 18 a

seguir:

Tabela 18. Estratégias de Legitimação – CRAS – Pathos

Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento Pathos: Argumentos baseados em emoção

“Algumas mães desses jovens vieram agradecer muito o Pró-Jovem. ‘O que que vocês fizeram pelo meu filho. Como ele mudou com esse trabalho', que a gente tem o professor de jiu-jitsu, que ele trabalha junto com os outros. Então, assim, eu acho que isso é uma coisa positiva como uma comunidade reconhece um equipamento público, que faz um trabalho, sabe qual o trabalho desse equipamento. Quando a gente vai para as comunidades, que não são todas que a gente consegue fazer, eu acho que é uma visão da própria comunidade também, mas quando a gente vai lá na comunidade e a gente atende aquela comunidade, a gente vê o retorno dessas pessoas, eu acho que isso é muito positivo. Eu acho que isso a gente ganhou aqui no CRAS, a gente teve muita visibilidade” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte). “Sabe como eu vejo como funciona? Quando você cancela uma atividade e aparece criança. Agora o grupo de 10 a 17 anos parou de funcionar, e a dinamizadora recebeu vários questionamentos no Facebook sobre porque o grupo não ia voltar” (Representante do CRAS 1, favela da zona Sul)

Dado: Os moradores das comunidades reconhecem o trabalho do CRAS (Portanto) Proposição: O CRAS tem visibilidade Garantia: A visibilidade do programa é definida pelo reconhecimento dos moradores Dado: As crianças da comunidade demandam a continuidade das atividades do CRAS (Portanto) Proposição: O CRAS funciona Garantia: A efetividade do programa é definida pela demanda que os moradores fazem de suas atividades

Page 160: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

159

Os agentes apontam para o fato de que “Os moradores das comunidades reconhecem o

trabalho do CRAS” ou de que “As crianças da comunidade demandam a continuidade das

atividades do CRAS” para sustentar as suas proposições de que, portanto, “O CRAS tem

visibilidade” ou de que “o CRAS funciona”. Para isso, partem das premissas de que “A

visibilidade do programa é definida pelo reconhecimento dos moradores” ou de que “A

efetividade do programa é definida pela demanda que os moradores fazem de suas

atividades”, como alternativa às premissas mais frequentes de que são resultados concretos e,

portanto, visíveis que garantem o bom funcionamento de um programa. Foram as alternativas

que encontraram diante do reconhecimento de que “O trabalho do CRAS não é valorizado”

dado que “o CRAS trabalha com prevenção”.

Ao conjunto de premissas nas quais pautam-se os representantes do CRAS chamarei

aqui de Lógica de Prevenção. Seguindo esta lógica, o programa procura antecipar demandas e

informar à população a respeito de seus direitos, além de oferecer benefícios, como o Bolsa

Família, que previnem possíveis dificuldades futuras. Como os efeitos da prevenção não

podem ser mensurados, a falta de resultados mais visíveis afeta a legitimidade do programa, e

Mas ainda assim, o olhar que se tem, principalmente para a Assistência é uma coisa como se fosse uma coisa secundária. (...) Por que você quer o quê? Que o sujeito não chegue lá, lá naquela zona de vulnerabilidade que é impossível de alcançar, que ele já está na rua, que ele rompeu os laços. Você quer o quê? Trabalhar essa família para que ele nunca chegue lá. É muito mais vantajoso para o Estado e menos oneroso também, trabalhar antes de acontecer. Você está trabalhando na prevenção. Mas não é isso. Não tem assim uma valorização do profissional que trabalha na ponta e isso que eu acho estranhíssimo, porque a gente está trabalhando com coisas, cargas negativas, cargas emocionais tão negativas por que que a gente não é tão valorizada quanto os cargos que a gente carrega no trabalho? E isso não existe. (Representante do CRAS 3, favela da zona Sul)

Dado: O CRAS trabalha com prevenção (Portanto) Proposição: O trabalho do CRAS não é valorizado Garantia: Trabalhos de prevenção não são valorizados

Page 161: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

160

por isso usam estratégias de legitimação para contornar o problema, como justificativas

alternativas para a possível deslegitimação e o reconhecimento dos moradores como um

resultado significativo.

As diversas lógicas apontadas até aqui, bem como suas principais características, estão

sintetizadas na Tabela 19 a seguir:

Tabela 19. Lógicas institucionais em ação

Lógica

Civilizatória

Lógica de

Confronto

Lógica da

Inversão

Lógica da

Prevenção

Objetivos

Perseguidos

Transformar a

favela para o bem

Retomada do

Território

Encaminhamento

de demandas;

Fortalecimento de

redes locais

Antecipação de

demandas; Acesso

a benefícios.

Práticas

Transferência de

valores

Planejamento sem

participação dos

moradores

Ostensividade

Participação dos

moradores e

gestores de campo

nas tomadas de

decisões;

Fortalecimento das

redes para que os

moradores façam

suas próprias

demandas;

Produtos assinados

pelos moradores

Divulgação dos

direitos da

população;

Participação em

eventos da

comunidade. E a

Bolsa família?

Estratégias de

Legitimação

Ethos: argumento

baseado em

valores;

Ethos: argumento

baseado na

superioridade;

Pathos:

argumento

baseado em

emoção

Logos:

argumentos

racionais com

base em índices

de criminalidade;

Presença:

Argumento

baseado em uma

evidência de

movimento ou

vivacidade

Presença:

Argumento

baseado em uma

evidência de

movimento ou

vivacidade

Presença:

Argumento

baseado em uma

evidência de

movimento ou

vivacidade;

Pathos:

Argumento

baseado em

emoção

Agentes

UPP

PAC

UPP UPP Social

Territórios da Paz CRAS

Page 162: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

161

Aponta-se aqui para lógicas diferentes por trás da ação de agentes que, além de

jogarem o mesmo jogo no campo do Estado, o fazem restritos a um mesmo espaço

geográfico. Ainda que compartilhem um ideal maior em comum, aqui apontado como a ideia

de integração, têm objetivos diferentes, formas de fazer diferentes e, pautados em premissas

diferentes, não concordam em muitas coisas, dificultando cooperações e intensificando

disputas.

Ainda, por meio da análise retórica, pode-se perceber que os agentes tentam se

legitimar por meio do discurso e, seguindo as suas lógicas próprias, utilizam estratégias

distintas para tal. Mais do que isso, as estratégias de legitimação já ajudam a antecipar as

posições dos agentes neste campo. Enquanto a UPP e PAC reforçam sua legitimidade, CRAS,

UPP Social e Territórios da Paz também se preocupam em justificar a sua falta de

legitimidade, que é assumida no discurso que a tenta justificar. Entretanto, dentro de uma

configuração de relações de poder que constitui o campo, a posição dos agentes, e aqueles que

marcam os polos de dominantes e dominados, pode ser acessada em termos do perfil distinto

de capital associado a ele (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008). É nesse sentido que uma

análise das acumulações de capitais pelos agentes será apresentada a seguir.

5.3 A Dinâmica dos Capitais: Marcando Posições

Voltando à audiência pública, com a qual abri o capítulo anterior, foi também ali,

quando pela primeira vez, quase todos os agentes do meu campo apareciam juntos em um

mesmo lugar, que pude perceber de forma mais clara uma diferença na legitimidade dos

agentes. Embora aquele fosse um evento “neutro”, que não levava o nome de nenhum dos

meus agentes, a figura pública que o organizava (uma renomada política) não hesitou em

destacar a UPP como um ator que “ajudou muito a tornar esse, essa reunião em realidade”

(Audiência Pública gravada, 19/06/2013), e como tal ocupava um lugar central em cima do

palco. Um representante do PAC também foi chamado ao palco e anunciado como uma figura

que todos ali conheciam bem, e ao longo da audiência foi alvo de algumas críticas dos

moradores, as quais teve oportunidade de responder. A gestora da UPP Social, que tinha

acabado de voltar ao campo, após a fase de reformulação do programa, foi chamada ao palco

em improviso, e o nome do IPP foi enfatizado. Depois, a gestora me confessou que ficou

bastante embaraçada com a situação para a qual não havia se preparado. Mas não teve grandes

problemas, pois pode permanecer calada durante toda a audiência, sentada em um canto do

Page 163: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

162

palco, quase esquecida. Já o Territórios da Paz não foi mencionado em nenhum momento, e

também não subiu ao palco – assistia à audiência da plateia, junto aos moradores.

Era claro que o grau de legitimidade dos programas não era homogêneo, e como a

análise retórica pode revelar, alguns dos agentes reconhecem suas dificuldades de

legitimação. Percebi que esta diferença podia ser explicada pelas dinâmicas de capitais.

Pautando-me na ideia de Bourdieu (2011b) de que é a partir da análise da acumulação de

capital que podemos compreender as posições dos agentes no campo, passei a me atentar aos

recursos acumulados pelos agentes, bem como às diferenças de valorização de tais recursos.

5.3.1 O Capital da Força Física

Em novembro de 2013, uma moradora que habitava uma região mais baixa da favela

da zona Norte, veio me contar, assustada, que havia visto traficantes armados em uma parte

alta do morro. Confessou que já havia ouvido relatos do domínio do tráfico nestes territórios,

mas que se recusava a acreditar até aquele dia, quando viu com os próprios olhos aquilo que

tentava ignorar. A minha surpresa, ao ouvir o relato, se dava muito mais devido ao espanto da

moradora do que por conta da informação que ela me passava. Eu já havia ouvido relatos, em

ambas as favelas, a respeito de traficantes “bancando” armados, e em algumas regiões mais

altas do morro, isso parecia ser muito frequente. Até mesmo os policiais me falavam sobre

isso, muitos deles revoltados por receberem recomendações do comandante para que

evitassem circular por essas regiões, evitando, assim, conflitos armados – nunca positivos

para a reputação das UPPs. Em ambas as favelas, todos sabiam da existência de regiões onde

o tráfico ainda exercia algum domínio. Embora as bocas fossem transitórias, o que dificultava

a circulação pelo morro, áreas, em geral mais altas, eram reconhecidamente “perigosas”,

porque ali havia um risco de haver traficantes “bancando” armados.

É inevitável perceber, portanto, que a disputa em torno do capital da força física entre

os policiais e os traficantes ainda se faz presente nos territórios de favelas. Embora as UPPs

tenham entrado para reaver o monopólio do uso legítimo da violência nestes espaços, e ainda

que atualmente veja-se nas favelas muito mais armas de policiais do que de traficantes (estas

em geral restritas às regiões mais altas), a disputa ainda se faz presente, e os traficantes ainda

lançam mão do poder que tinham no passado, e da constante ameaça de que o seu domínio

possa retornar, para continuar a impor aos moradores certas regras.

A coexistência entre as leis do tráfico e da UPP serão analisadas em mais detalhes no

último capítulo desta tese. Entretanto, cabe aqui ressaltar uma importante espécie de capital,

Page 164: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

163

valorizada no campo burocrático do Estado, a qual as UPPs vieram resgatar, apresentando-se

como os principais representantes do Estado nessa missão: o capital da força física.

Bourdieu, Wacquant e Farage (1994) apontam como necessária para a consolidação do

Estado uma espécie de capital a qual os autores denominam de capital da força física, que está

associada à concentração das forças de coerção (exército e polícia) e de armamentos. Segundo

Bourdieu (2014), o processo de concentração da força física no campo burocrático do Estado

desenvolve-se para uma força pública, que significa a retirada do uso da força daqueles que

não estão ao lado do Estado. O processo de concentração do capital da força física é

acompanhado de uma desmobilização da violência ordinária, ou seja, “o Estado retira dos

agentes individuais o direito de exercer a violência física” (BOURDIEU, 2014, p. 268).

Bourdieu (2014) chama atenção para o fato de que é preciso pensar o Estado em

relação a um duplo contexto: por um lado, em relação a sua concorrência com outros Estados,

sendo necessário concentrar capital da força física para lutar externamente pelo seu território;

por outro lado, em relação a um contexto interno, a contrapoderes internos, que demandam a

criação de forças policiais destinadas à manutenção desta ordem interna. Este último viés

parece retratar o caso aqui analisado, no qual uma força policial foi criada para tentar reaver o

capital da força física da mão de traficantes nos territórios de favelas.

Bourdieu (2014) explica que a concentração de capital da força física pelo Estado, ou

seja, o monopólio da violência legítima, implica que a violência física só possa ser exercida

por “um grupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim, claramente

identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um grupamento simbólico,

centralizado e disciplinado”. As UPPs, no caso descrito, tentam se impor nos espaços de

favelas como os únicos detentores do monopólio da violência legítima, e por isso não apenas

impõem a sua presença armada dentro destes territórios (como a Polícia Militar do Rio de

Janeiro vinha fazendo a anos sem sucesso), mas também apelam para a execução de projetos

sociais, para a noção de polícia de proximidade, e para a tentativa de estabelecer vínculos de

confiança com os moradores, em busca de sua legitimidade. Reconhecendo a influência do

passado conflituoso e “fracassado”, a PM optou, ainda, por adotar um uniforme diferenciado

nas UPPs: ao invés de usarem o mugue, ou o 3º B como é oficialmente chamado o uniforme

de combate da PM, os policiais da UPP se vestem com o 5º B ou o uniforme social da PM.

Esta medida foi deliberadamente adotada com o propósito de desvincular a imagem das UPPs

de uma polícia de combate.

Page 165: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

164

Vale ressaltar que os demais agentes do campo burocrático do Estado também podem

recorrer ao capital da força física, mas permanece o recurso a este grupamento simbólico,

UPP, por meio do suporte dos policiais em suas atividades. Em minha pesquisa de campo, o

único agente que parecia lançar mão deste recurso era o PAC, que, em algumas situações,

recorria aos policiais da UPP para auxiliá-los nas remoções, quando as negociações não

avançavam.

Os meninos do tráfico, ainda presentes na favela, ainda pareciam possuir capital da

força física dentro destes territórios. A posse deste capital revela-se não apenas pelo porte de

armas, mas também pela legitimidade que em certa medida os moradores ainda atribuíam a

eles – revelada, por exemplo, pela expressão “meninos” por meio da qual os moradores

referiam-se aos traficantes ou pelas frequentes afirmações de que os traficantes os tratavam

com respeito, conforme discutido no início deste capítulo.

Ainda detentores do capital da força física, os traficantes tinham as suas formas de

retaliação aos moradores, mesmo com a presença da UPP. Com o tempo comecei a ouvir

relatos de moradoras que foram expulsas do morro por traficantes porque mantinham relações

amorosas com policiais. Ouvia-se casos de moradores punidos por conversarem com policiais,

como um morador da favela da zona Norte que teve a porta do seu estabelecimento marcada

com um símbolo da UPP. Ou comerciantes que recebiam os policiais que foram proibidos de

assim fazê-lo:

Tem uma senhora que ela morava bem em frente a estes prédios aqui da UPP, ela fazia

comida na casa dela, até o Major almoçava a comida na casa dela, era uma delícia e a gente

come a vontade. Ela faz e coloca uma garrafa de coca-cola na mesa, pode beber à vontade,

então era uma delícia a comida dela, sendo que ela saiu daqui porque a cozinha dela estava

ficando pequena, era cozinha de casa. Ela alugou uma lojinha lá embaixo e a gente ía para

lá comer...aí agora a pouco tempo ela veio dizer que estava proibida de vender para a gente,

porque foram lá e a ameaçaram. Mas ela já vendia há muito tempo para a gente, não sei se

foi por conta destes últimos acontecimentos, ela veio até falar direto com o comandante. E

o comandante: “A única coisa que eu posso fazer por você é pedir para eles não irem mais

almoçar lá, infelizmente ! Que a senhora está sendo ameaçada...” Ela tratava a gente como

uma mãe, todo mundo chamava ela de tia, vamos almoçar lá na tia, vamos almoçar lá na

tia ! Ela tem 2 filhos e uma netinha que também adora a gente (Representante da UPP 8,

Favela da zona Sul).

Mas se por um lado ainda impõem as suas leis, por outro os traficantes são com

frequência denunciados, de forma anônimo para evitar retaliações, aos policiais das UPPs, o

que aponta para uma perda de sua legitimidade.

Page 166: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

165

Por outro lado, também expressava-se em alguns momentos uma falta de legitimidade

da UPP em seu monopólio do uso legítimo da violência. Quando os policiais recorriam ao

capital da força física, para realizar prisões e apreensões, os moradores, muitas vezes,

praticavam atos de agressão aos policiais, estimulados por conflitos decorrentes de

abordagens policiais, tentativas de prisões, interrupções de festas. Foram incontáveis os

relatos de policiais que receberam pedradas e até gavetadas de moradores revoltados. Na

favela da zona Norte, um policial retornou à base com a cabeça aberta atingida pelas pedras.

Na favela da zona Sul, até crianças se engajavam nas ações: “Eu fiquei muito surpreso, para

não dizer bem apavorado, no dia que eu vi um policial fazendo uma prisão por tráfico de

drogas, e crianças jogando pedras no policial que estava na ocorrência.” (Representante da

UPP 3, Favela da zona Sul).

É claro que, em alguma medida, as UPPs já foram conseguindo readquiri o monopólio

do uso legítimo da violência nas favelas, e não é à toa que os policiais das UPPs circulam

armados por aqueles espaço diariamente, e ainda assim muitos moradores refiram-se à favela

atual como uma “favela sem armas” – a legitimidade também parece levar a uma

invisibilidade do armamento. Entretanto, também é preciso reconhecer, que este monopólio

do uso legítimo da violência ainda vem sendo disputado com os traficantes, que hoje ainda

expõem armas em certas regiões do morro, e ainda encontram alguma obediência nos

moradores de favelas.

A forma como parti dos dados para chegar ao capital da força física é sintetizada na

Figura 4 abaixo:

Page 167: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

166

Capital da Força Física

Armamentos

Contingente de forças de coerção presentes do território

Legitimidade no uso da força

- Agressão de moradores aos policiais

- Invisibilidade do armamento policial

- Obediência dos moradores ao tráfico

- Denúncias das atividades do tráfico à UPP

- Presença de policiais nas favelas- Presença de traficantes nas favelas

- Exposição de armas policiais nas favelas

- Exposição de armas do tráfico em regiões mais altas da favela

Figura 4. Capital da força física

Conforme retrata a Figura 4 anterior, o capital da força física nas favelas é disputado

entre policiais da UPP e traficantes. Ambos expõem armas dentro das favelas, embora os

primeiros mais do que os segundos. Ainda, ambos apresentam o seu contingente de forças de

coerção nas favelas. A legitimidade do uso da violência parece não estar plenamente

estabelecida para nenhum dos polos desta disputa. Tento os policiais das UPPs quanto os

traficantes parecem ser questionadas em alguns momentos, os primeiros quando são agredidos

e os segundos quando são denunciados pelos moradores. Mas, em alguns momentos, ambos

encontram obediência nos moradores, o que implica a ambiguidade de leis que marca a favela

“pacificada”, conforme será discutido no último capítulo.

5.3.2 O Capital Social

Eu, alguns moradores e dois representantes do Territórios da Paz nos dirigíamos para

um chope após um dia de trabalho na favela, quando uma moradora lembrou com saudades da

última gestora da UPP Social que havia deixado o campo, da qual se tornara tão próxima. A

Page 168: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

167

gestora do Territórios da Paz reagiu de imediato: afirmou que a antiga gestora da UPP Social

não fazia nada, e que a moradora apenas sentia sua falta porque tinha ficado amiga dela. A

moradora, por sua vez, respondeu que a gestora do Territórios da Paz não ligava muito para

ela, e apontou um outro grupo de moradores como os seus melhores amigos e, portanto, alvo

de mais atenção.

Depois de muitos chopes no bar e cafés em casas da favela, os quais envolviam

momentos informais de socialização entre representantes do Estado e moradores, àquela

altura já estava claro para mim que agentes do Estado também estabeleciam laços de amizade

e outras relações pessoais com os moradores da favela. E as frequentes crises de ciúmes

envolvendo, principalmente, representantes do Territórios da Paz e da UPP Social,

apontavam-me para uma disputa destas relações.

A disputa por relações sociais e as redes de relações que os agentes do campo

burocrático do Estado desenvolviam nas favelas aproximavam-me de uma outra espécie de

capital retratada por Bourdieu: o capital social. Bourdieu (2012) refere-se ao capital social

como sinônimo de uma força social que possibilita que os agentes entrem nas lutas pelo

monopólio de poder. Como um capital de relações (BOURDIEU, 2014), pode ser definido

como: “the aggregate of the actual or potential resources which are linked to possession of a

durable network of more or less institutionalized relationships of mutual acquaintance and

recognition – or in other words, to membership in a group20” (BOURDIEU, 1986, p. 244).

Segundo Bourdieu (1986), esta rede de relações que constitui o capital social é produto

de estratégias de investimento, que podem se dar de forma individual ou coletiva, de forma

consciente ou inconsciente, voltadas para o estabelecimento de relações sociais que sejam

úteis para os agentes do campo. Nos espaços de favelas, os seus habitantes apresentam-se

como recursos extremamente úteis para os agentes do campo burocrático do Estado, na

medida em que são importantes fontes de informação, e por possibilitarem acessos dentro das

favelas que podem facilitar o trabalho dos agentes do Estado. Além disso, são estes mesmos

habitantes importante fonte de legitimidade, por meio de seu reconhecimento. É nesse sentido

que o capital social, especialmente na sua forma de redes de relações duráveis com os

moradores, estava em disputa no campo burocrático do Estado que eu observava na favela, e

era fácil perceber as diferenças em seu volume entre os agentes.

20 Tradução Livre: o agregado de recursos reais ou potenciais que estão ligadas à posse de uma rede durável de relações de conhecimento mútuo e reconhecimento mais ou menos institucionalizadas - ou em outras palavras, a participação em um grupo

Page 169: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

168

O contato direto com a associação de moradores é realizado por todos os agentes do

campo burocrático do Estado, que entendem que encontram ali as lideranças da comunidade,

os principais agentes com que devem se relacionar e estabelecer vínculos duradouros. Em

geral, esta primeira relação é estabelecida com sucesso, afinal os moradores também tem

interesses em criar relações com os agentes do Estado, por meio dos quais podem conseguir

benefícios para a favela. Há um reconhecimento, em ambas as favelas, de que a associação de

moradores é, de forma geral, o principal canal de comunicação com os agentes do Estado.

Entretanto, uma penetração para além da relação com a associação não é atingida por todos os

agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas.

Os representantes da UPP declaram abertamente o seu interesse em realizar estratégias

para se aproximar da comunidade, especialmente no momento da implementação. Os policiais

que permaneceram na UPP da favela da zona Sul desde o seu período inicial contam que seu

primeiro comandante usava estratégias para se aproximar, como a circulação mais intensa

pela comunidade, a realização de projetos sociais, e a simples simpatia. Não é à toa que os

moradores lembram dele com saudade, e defendem que foi o melhor comandante que já

tiveram até hoje.

No momento da pesquisa, os policiais de ambas as favelas apontavam como as suas

principais relações a associação de moradores e os idosos das comunidades, que os recebiam

muito bem. As relações de verdadeira amizade, mais duráveis, eram pontuais, e muitas vezes

estavam relacionadas com o papel social assumido pelo policial. Na favela da zona Norte

pude presenciar dois importantes momentos de relações afetivas mais fortes entre policiais e

moradores: o primeiro ocorreu quando um policial que realizava um projeto de boxe com as

crianças da favela foi transferido para outra UPP. Alguns moradores, principalmente as

crianças e as mães das crianças, que já haviam estabelecido com ele vínculos mais duráveis,

se manifestaram contra sua transferência, e conseguiram a permanência daquele policial ali.

Situação semelhante aconteceu quando a policial responsável pela P5, relações públicas da

UPP, foi convidada pelo comandante que acabava de ser transferido, a acompanha-lo para a

nova UPP. Ela me relatou que embora gostasse muito do comandante, ficou comovida com o

apelo de alguns moradores, que demandaram de forma carinhosa a sua permanência. Por

conta de sua função de relações públicas da UPP, esta policial em particular já havia

conseguido criar uma rede de relações com moradores que participavam dos eventos, como

festas ou passeios, organizados por ela. Cedendo aos apelos, acabou ficando.

Page 170: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

169

Também me foram relatadas outras relações de amizade entre policiais e algum

morador específico, como o caso de um policial que às vezes assistia televisão na casa de uma

senhora. Casos de relacionamentos amorosos entre policiais e moradoras também se

apresentaram em ambas as favelas. Conforme me relatou um policial:

Tem policial, tem o cara aqui que tinha namorada, esposa, tia e dormia. (...) tinha colegas que davam ideia mesmo. Tinha um monte que casou com mulheres da favela, largam filhos e esposa e casam, não veio morar aqui, mas no final de semana eu vejo e pergunto: “O que você está fazendo aqui”? O cara de bermuda e camiseta... “Estou visitando a minha sogra”. Tem para tudo. Aqui é danado para fazer isto (Representante da UPP 19, Favela da zona Norte).

Entretanto, as situações narradas são exceções. É perceptível entre os moradores um

certo temor em relação à UPP, e um afastamento forçado. Depois de um longo histórico de

relações mais do que conturbadas entre moradores e policiais, o estabelecimento de relações

de proximidade entre ambos não é natural.

As relações passadas entre polícia e favela ainda assombram os moradores, e a

histórica falta de confiança no Estado também faz crer que as UPPs não vão durar para

sempre e que o poder do tráfico voltará pronto para punir aqueles que tiverem apoiado as

UPPs. Esta é uma narrativa frequente entre os moradores, que com medo de possíveis

retaliações, preferem se manter afastados. De acordo com uma moradora:

Ninguém quer contato com eles. Porque também tem aquele lado de ser reprimido pelo

outro lado, né. Porque quem fica de muito papo com a polícia sabe que a pessoa vai achar,

‘ah, tá dando, quem mora no morro, não sei o quê’. Vai chamar de X-9, ninguém quer o

contato com a polícia porque sabe que polícia não presta (Morador 18, Favela da zona Sul).

O temor de receber o rótulo de X-9, que muito tem a contribuir para futuras punições

do tráfico, leva os moradores a evitarem até mesmo um “bom dia” aos policiais. Quando

caminhava com moradores pelas vielas das comunidades, percebia que muitos deles passavam

pelos policiais como se ali não tivesse ninguém – postura que eu imitava, também com temor

de punições. O medo de retaliações também se refletia em uma resistência à entrada na UPP:

Você sabe que isso aqui era um morro que era ocupado pelo poder paralelo. Aí vieram as

UPPs, que estão entrando em todas as favelas. Então o morador ainda tem muito receio de

ir à UPP, porque está dentro da UPP. A pessoa ainda tem aquele receio, ainda existe aquele

medo, aquele receio (Morador 25, favela da zona Norte).

Como consequência, frequentei reuniões da UPP extremamente vazias, que chegavam

a gerar embaraço no comandante presente. A festa de debutantes organizada pela UPP da

favela da zona Norte também refletiu esta questão. Pouquíssimas jovens participaram da festa,

e mesmo as que assim o fizeram mostravam resistência de ir à UPP. Relatos frustrados dos

policiais também narravam situações de distanciamento da população:

Page 171: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

170

Teve um dia que eu tava subindo com a viatura e vinha uma senhora subindo essa rua daqui

e não tem como, é de cortar o coração. Tem que chegar pra pessoa... Às vezes é uma coisa

complicada pra gente, mas até pra própria senhora, que ela não aceitou, que eu ia levar ela

até o lugar. Porque se fosse a minha mãe, a minha avó, uma coisa desse tipo... Só que ela

não vai aceitar, porque ela entrou na viatura do policial. Então lá em cima, quem tá vendo

tá achando que ela é informante do tráfico, que tá informando a gente aqui de alguma coisa

do tráfico (Representante da UPP 20, Favela da zona Norte).

A lógica era clara: “Então você fecha com o que é lei do morro e você fica tranquila a

vida toda ou você esperar uma ajuda do Estado que pode ser que sim, uma ajuda mais ou

menos, coisa e tal, entendeu” (Morador 20, Favela da zona Sul).

Dentre as muitas coisas que eu aprendi com os moradores, esta foi uma delas, e

rapidamente este temor me contagiou e começou a afetar a minha pesquisa. Diferentemente

dos moradores, eu precisava ter contato com os policiais, pois estes eram agentes importantes

do campo que eu me propus a analisar. Tive que agir com muito cuidado, e a relação com os

policiais acabou por se tornar uma fonte constante de tensão. Sentada em um bar com um

grupo de moradores, percebi que na mesa ao lado havia um grupo de policiais dentre os quais

eu conhecia alguns. Meu temor de que eles se aproximassem e me cumprimentassem com

intimidade, me levou a usar uma desculpa de horário, para deixa-los naquela noite. Quando

cruzava com um policial conhecido evitava o olhar para não demonstrar o contato. Quando

saia tarde da UPP e os policiais me ofereciam carona na viatura para descer o morro, eu

negava enfaticamente, e creio que entendendo o motivo da minha posição, eles não insistiam

mais.

Com a ampla troca de comando em outubro de 2013, a situação de ambas as favelas,

ambas sujeitas a um novo comandante, começou a se agravar. Na favela da zona Sul, onde o

tráfico já tinha força, a troca de tiros virou rotina, e como consequência, no prédio da UPP,

que já recebia poucas visitas, agora quase não se via morador. Eu, pesquisadora, não podia

romper o contato, e tentava, disfarçadamente, continuar a frequentar a UPP. Quando pegava

um mototaxi para me dirigir à UPP, indicava a direção de outro destino próximo, tentando

esconder meu verdadeiro paradeiro. Conforme as situações de conflito se agravavam, recebi

conselhos dos representantes da UPP Social, com os quais às vezes desabafava meu estado de

tensão, para deixar de frequentar a UPP naquele período. Cheguei a desmarcar algumas visitas

por esta razão. Mas ao perceber que minha pesquisa poderia ser afetada, decidi conversar com

um morador que eu sabia ter contato com os meninos do tráfico. Expliquei a ele o meu temor,

e perguntei se eu sofreria retaliação por entrar com tanta frequência no prédio da UPP. Ele me

disse: “Fica tranquila. Os meninos já sabem quem você é, e você já está autorizada no morro.

Page 172: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

171

Eles sabem o que você faz na UPP” (Notas de campo, 04/11/2013). Com esse respaldo,

consegui relaxar e seguir, ainda com cuidado, minha pesquisa na UPP.

As retaliações àqueles que estabeleciam relações com os policiais, narradas na seção

anterior, eram conhecidas e surtiam o efeito desejado: um afastamento entre a comunidade e

os policiais. Isto não significa que alguns moradores não frequentassem reuniões da UPP, não

entrassem em seu prédio, ou não os dessem “bom dia” – até algumas relações pontuais de

amizade ainda existiam. Entretanto, conforme o clima de conflito com o tráfico esquentava, as

relações entre UPP e moradores esfriavam na mesma proporção.

A agressão de moradores aos policiais, em casos mais extremos, conforme retratado na

seção anterior, também evidenciam o baixo volume de capital social acumulado pela UPP.

Para além de um “bom dia” não dito, as pedradas deixavam clara a insatisfação de alguns

moradores com a presença da UPP. Em termos de capital social, a UPP não saia na frente. E

os policiais reconheciam que a clara oposição presente na favela entre traficantes e policiais

contribuía para o afastamento dos moradores. Identificavam uma competição entre eles e os

traficantes, também pelo capital social da favela: “O traficante ele chega com a figura bem

paternalista, né? De dar o remédio, a cesta básica, dá o bujão de gás, dá a roupa e o lanchinho

da criança, pipa, bola, o refrigerante. O Estado não faz esse papel, o traficante faz, conquista

essas pessoas e domina o território, né” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).

O PAC, que no momento de minha pesquisa encontrava-se em sua segunda fase,

também era assombrado por um passado ruim. Moradores e agentes do programa lembravam

os problemas da primeira fase: obras não concluídas, cronograma não cumprido, atrasos no

aluguel social – tudo contribuía para uma falta de confiança dos moradores no PAC. Para se

livrar das sombras do passado, os agentes cuidavam de sua postura e tentavam recuperar a

confiança “sendo transparentes com o nosso trabalho. Mostrando como era o trabalho, as

atividades que a gente ia desenvolver, entendeu?” (Representante do PAC 1, Favela da zona

Sul).

Sem interferência do tráfico nesta relação, os moradores frequentavam as reuniões do

PAC, que em geral eram bem cheias e agitadas, e iam ao chamado “canteiro social”, onde a

equipe da frente social do PAC realizava plantões para atendimentos dos moradores,

encaminhar suas questões quando necessário. Mas as relações não passavam disso, eram em

geral formais e restringiam-se ao canteiro social e às reuniões, e as principais demandas eram

encaminhadas via associação de moradores.

Page 173: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

172

Mas a lógica do PAC de impor obras prontas e o tratamento infantilizado que às vezes

davam aos moradores em reuniões, fazia com que as relações fossem às vezes conflituosas:

“Se é pra fazer, vamos fazer direito, eles não tão sabendo.... Não tão respeitando, mas uma

vez, veio de fora, querendo impor o que eles acham, acham que ninguém vai reclamar”

(Morador 10, Favela da zona Sul). Embora eu tenha frequentado diversas reuniões do PAC,

nunca pude gravá-las, tamanho o grau de tensão – nunca cheguei nem a pedir autorização para

fazer gravações, porque o clima era de tanta revolta, que temia que as agressões se voltassem

para mim e para o meu gravador. Assistia às reuniões calada, com o meu caderno em mãos. E

em muitas ocasiões pude registrar por escrito os diálogos agressivos que se passavam nas

reuniões: “meu pai me ensinou que quando um burro fala o outro abaixa a orelha” (Notas de

Campo, 25/06/2013), assim um representante do PAC pediu silêncio aos moradores, em uma

das reuniões.

Os motivos por trás da mútua agressividade, que pude presenciar em muitas reuniões,

diziam respeito a atrasos nas obras, e à revolta dos moradores em terem que deixar suas casas

para viver de aluguel social, antes que os apartamentos estivessem prontos. Mas eram nas

negociações que antecediam as remoções que os conflitos se tornavam mais intensos.

Pressões e ameaças aos moradores para que estes deixassem suas casas eram sempre

relatados. E os representantes do PAC, por sua vez, descreviam a agressividade da parte dos

moradores nos processos de negociação: muitos se recusavam a recebe-los, outros os

expulsavam com xingamentos, e outros, ainda mais extremos, jogavam neles coco, xixi e

ratos. As relações eram longe de harmoniosas, e quando mais tranquilas, não passavam de

uma relação formal.

Para um programa como a UPP Social, que tem como propósito o encaminhamento de

demandas, a articulação entre poder público e moradores, o acesso à comunidade é central, e

o estabelecimento de boas relações, um meio necessário para o sucesso do trabalho. Para tal, a

primeira barreira a ser transposta era o nome do programa, que denunciava uma suposta

associação entre a UPP Social e a polícia.

Mesmo antes de entrar em campo, quando a UPP Social abriu processo seletivo para

agentes comunitários, moradores que pudessem trabalhar para o programa, os rumores já

começaram: alguns moradores deixaram de se candidatar para a vaga porque seus familiares

acharam imprudente que se estivesse associado a um programa chamado “UPP Social”.

Page 174: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

173

Com a entrada dos agentes em campo, começaram os questionamentos. Os moradores

queriam esclarecimentos a respeito da suposta relação da UPP Social com a polícia, para

garantir sua segurança. Conforme me relatou um morador:

porque o nome da UPP Social para a gente, entendeu, é muito taxante, entendeu. Assim, eu

não. Mas como eu moro num local de área de risco, comunidade, fica um pouco difícil você

lidar com pessoas que estão com crachá escrito UPP Social, entendeu.(...). Eles mesmos me

explicavam e eu mesmo fazia várias perguntas. “Cara, vocês são policiais, vocês são

infiltrados e tudo? Porque se vocês forem o que eu falo para vocês eu vou morrer, poxa, é

sério porque é gravíssimo, pô, dentro da comunidade se o cara vir que você está, entendeu,

só sentir que você está ( ), pode acontecer uma coisa gravíssima com você, entendeu”

(Morador 20, Favela da zona Sul).

Os representantes da UPP Social rapidamente se deram conta dos problemas que o

nome os trazia, e fizeram um esforço para deixar claro que não tinham nenhuma relação com

a polícia além do nome. Passaram a se identificar como representantes da prefeitura, IPP ou

ONU Habitat, evitando ao máximo o nome UPP Social. Não usavam nenhum tipo de

identificação que revelasse o nome oficial do programa, pois sabiam de suas implicações e

das barreiras que podiam criar entre eles e os moradores. De tanto serem questionados a

respeito do nome do programa, já esclareciam de cara:

O nome, não sei se você vai chegar a perguntar, mas eu já vou adiantando, a questão do

nome, às vezes, é muito problemática, muitas das vezes, pra gente. Por que muito, não é um

nem dois, às vezes, 90%, a gente tem que ficar repetindo que nós não somos da polícia.

Porque a UPP Social... mas aí.. “mas, vocês não são policiais?” “Não, nós não somos

policiais”. E aí, quando eles, de fato, têm essa relação que nós não somos policiais, eles

conseguem se desarmar (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).

Para esclarecer a questão, evitavam também estabelecer contatos mais próximos com

os policiais da UPP, e sua relação com eles, em geral, se resumia a participações em reuniões

entre policiais e a comunidade. O grau de complicação da questão variava de acordo com a

favela, e com a força que o tráfico ainda tinha em cada território. Em meu campo, a diferença

era clara: na favela da zona Sul era muito difícil ter uma relação mais próxima aos policiais –

questão que os representantes da UPP Social local reforçaram em sua fala; na favela da zona

Norte, era um pouco mais fácil.

As relações, no início, eram complicadas. Além do nome, a UPP Social realizava

atividades em campo que poderiam ser mal interpretadas, e levantavam suspeitas. Como

inicialmente cumpriam tarefas de mapeamento, algumas vezes foram interpelados pelo

tráfico, que queria checar quem eram aqueles sujeitos que andavam com um mapa pela favela.

Um agente me narrou a tensão que viveu quando foi incumbido de entregar um mapa do IPP

Page 175: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

174

para a UPP local. Explicou que cumpriu sua tarefa em uma noite de chuva, buscando a

máxima discrição, para que não fosse flagrado entregando um mapa aos policiais.

Mas com o tempo o programa foi se consolidando em campo, e desfeitos os primeiros

mal entendidos, a relação com os moradores começaram a melhorar. Participavam ativamente

das reuniões comunitárias, e por diversas vezes pude presenciar os moradores recorrendo a

eles com demandas ou pedidos de ajuda. E até mesmo traficantes, depois de bem esclarecida a

questão, chegaram a levar demandas a representantes da UPP Social, conforme narrado por

um agente:

Mas depois que isso passou, o cara chegou até a me procurar para me dar demanda,

entendeu, já via como coisa útil ali. Por exemplo, uma vez (...) ele me viu chegando com o

pessoal da Rio Luz e tal. Aí foi fazer reclamação que a Polícia estava quebrando a luz lá em

cima. (risos) Quebrando a luz lá em cima do morro para pegar eles ( Representante da UPP

Social 3, favela da zona Sul).

Com a conquista da confiança dos moradores, e em alguns casos até do tráfico, os

representantes da UPP Social passaram a tomar um novo cuidado: em não tornar as suas

relações em campo muito pessoais. Procuravam sempre se posicionar enquanto prefeitura e

marcar sua posição institucional. Criticavam os representantes do Territórios da Paz , no que

apontavam como uma importante diferença entre os programas, em sua postura de

“identificação” com os moradores, uma proximidade muito maior: “eles se posicionam em

coisas muito, quase como sociedade civil, assim” (Representante da UPP Social 4, favela da

zona Sul). Reconhecem que embora isso possa lhes dar mais capilaridade, também traz ruídos

e faz com os moradores confundam seu papel de representante do Estado com um papel de

morador da favela, conforme explicitado anteriormente. Os representantes da UPP Social

preferem evitar a confusão e deixam bem claro que estão ali como prefeitura.

A visão da UPP Social a respeito do Territórios da Paz não me pareceu ser sem

fundamento. Era inegável a capilaridade que o programa Territórios da Paz tinha na favela, e

os fortes vínculos que eles conseguiam estabelecer com os moradores. Andando com os

agentes pelo morro, o fato se evidenciava, na medida em que muitos já os conheciam, e

paravam para cumprimenta-los com intimidade.

Os representantes do Territórios da Paz relatam que desde o início foram muito bem

recebidos pelos moradores, que aguardavam ansiosos por uma contrapartida social à UPP. E

embora os agentes do programa relatassem um cuidado em não ter uma inserção no campo

que passasse para o nível pessoal, reconheciam que a separação era muito difícil, e que

relação de amizades com moradores eram inevitáveis.

Page 176: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

175

Para além de sua grande inserção nas comunidades, os representantes do Territórios da

Paz em ambas as favelas criavam claros laços de amizade com alguns moradores.

Conversavam com eles como se conversa com um amigo, dando conselhos, compartilhando

intimidades, brincadeiras e risadas. Presenciei inclusive situações em que um morador se

ofereceu a emprestar dinheiro para um agente que estava com o seu salário atrasado. E, como

bons amigos, também tinham suas desavenças, que até podiam resultar em troca de insultos e

xingamentos. Mas também como bons amigos, rapidamente deixavam o desentendimento

para trás.

Tinham cuidado, ainda, em manter uma boa imagem perante o tráfico. Quando

passávamos pela boca, disfarçada mas sabida, um morador que nos acompanhava reparou que

os meninos do tráfico olhavam muito para mim e para a gestora do Territórios da Paz. Em um

instinto protetor, o morador, que caminhava na frente, parou para nos esperar e falou: “Tô

esperando porque se alguém fizer alguma gracinha eu mato!” (Notas de campo, 18/11/2013).

Depois de nos afastarmos da região a agente reclamou: “Isso, queima meu filme mesmo!”

(Notas de campos, 18/11/2013), preocupada com sua reputação perante o tráfico.

Como consequência da proximidade, era comum que os representantes do Territórios

da Paz posicionassem-se de forma favorável aos moradores, tentando ajuda-los em diversas

situações. Mesmo em situações mais pessoais, que fugiam à sua alçada, comovidos, acabavam

ajudando: “Geralmente eu tenho que me policiar. Senão passa. Passa mesmo. Passa da função.

Mas se eu estou aqui, eu estou vendo, estou sabendo que tem problema, então eu não acho

coerente eu deixar passar, entendeu” (Representante do Territórios da Paz 5, Favela da zona

Norte). Com uma compreensão mais clara das relações sociais nas favelas, que em geral são

complexas e marcadas por grupos em conflitos, os representantes do Territórios da Paz , em

ambas as favelas, me surpreendiam com a destreza com que lidavam com os moradores:

sabiam o que falar, com quem podiam falar, o que não podiam falar. Observando-os aprendi

muito sobre as relações sociais nas favelas.

Mas foi também observando-os que compreendi que o capital social tem dois lados:

se por um lado os acessos sociais ajudam na legitimidade dos agentes, o estabelecimento de

relações tão próximas acaba por proporcionar um acúmulo de capital social para o próprio

indivíduo em sua esfera pessoal, e não mais para a instituição a qual ele representa. Em

entrevistas com moradores bastante próximos dos representantes do Territórios da Paz,

percebi que estes não mencionavam o programa como um representante do Estado na favela,

e quando faziam menção a algum contato com o programa, referiam-se ao nome da pessoa

Page 177: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

176

com a qual estabeleciam suas relações. Além disso, os moradores muitas vezes os tratavam

como iguais, como moradores que também lutavam, sem muitos recursos, em prol da

comunidade.

Os representantes do CRAS parecem reconhecer a ambiguidade do capital social. Em

sua proximidade com os moradores, reclamavam de uma percepção de que os moradores às

vezes esquecem que estão ali como representantes do Estado: os chamam de “tia”, levam a

eles problemas pessoais que vão muito além do seu papel ali. Os agentes referem-se a essas

relações como relações de vizinhança ou domésticas, as quais atribuem ao fato de estarem

compartilhando um mesmo espaço físico. Uma representante do CRAS explicou a situação:

Aqui o CRAS está dentro da comunidade. Então aqui nós somos vizinhos. Então, assim, é

muito comum, a gente teve um caso que, assim, ( ) onde, de ter um problema na família, ela

vem aqui. Ela vem buscar o apoio da equipe, vem querer, sabe, "eu preciso de ajuda”. E ela

não chama você de "ah, Doutora, senhora, não. Tia, eu preciso da sua ajuda, a minha mãe

está lá, não-sei-o-quê" (Representante do CRAS 3, Favela da zona Norte).

Às relações estreitas que possuem com a comunidade, os agentes atribuem um lado

positivo, porque os aproxima e gera confiança, mas também reconhecem o seu lado negativo:

os papeis se confundem – não se sabe se são Estado ou se são morador. “Essa coisa, esse

exemplo que ela falou, é como se a gente fosse um vizinho, né, eles não veem como setor

público, entendeu” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte), reclama uma

representante do CRAS. Reforçam que precisam estar o tempo todo lembrando aos

moradores quem eles são ali:

Mais no sentido de pontuar, de mostrar qual é o papel nosso aqui, que não é mais um

vizinho, é é, assim, é muito sútil isso, assim porque falar disso parece que é é é está

esvaziando, mas assim é sútil. Você saber dizer para ele. Olha só, eu estou aqui para te

ouvir, mas eu sou a psicóloga do CRAS, eu estou representando o CRAS aqui. Eu não sou

sua vizinha, eu não sou sua tia, mas não no sentido negativo, você chamar uma pessoa de

tia dentro da comunidade é uma forma carinhosa e até de proximidade (Representante do

CRAS 3, Favela da zona Norte).

E como toda relação estreita tem suas desavenças, com o CRAS não é diferente. Eles

explicam que quando alguns moradores não tem suas demandas atendidas, apelam para

retaliações. Relataram situações em que quebraram os vidros do prédio e jogaram ratos: “essa

relação meio doméstica é meio assim, ‘vizinho, dá um copo de açúcar?’. Não, então eu vou te

retaliar” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte).

A forma como a partir de elementos empíricos cheguei à categoria de capital social é

ilustrada na Figura 5 a seguir:

Page 178: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

177

Capital Social

Relações de Amizade

Relações Harmoniosas

Conflitos

- Agressões físicas;- Xingamentos;- Retaliações;- Diálogos agressivos.

- Encaminhamento de demandas;- Pedidos de ajuda formal;- Presença em reuniões;- Acesso à base do programa.

- Confraternizações;- Conselhos pessoais;- Confidências pessoais

Afastamentos Forçados

- Evitação de acesso à base do programa;

- Ausência de cumprimentos;- Ausência em reuniões.

Figura 5. Capital Social Conforme anteriormente explicitado, o capital social se apresentou nas formas

principais de relações de conflito, relações de afastamento, indicadores de dificuldades na

acumulação desta espécie de capital, relações harmoniosas, estas mais neutras, e relações de

amizade, com laços mais estreitos, indicadores de sucesso no acúmulo de capital social. As

quatro formas principais aparecem em combinações diferentes e não são exclusivas. Seus

efeitos para a legitimidade dos agentes também não são óbvios, e apontou-se para uma

ambiguidade, em que as relações de amizades, além de também levarem a relações de

conflito, podem gerar perda de legitimidade da instituição, se levadas a seu extremo.

5.3.3 O Capital Informacional

Foi em fevereiro de 2013, quando eu estava um pouco mais de um mês em campo, que

eu assisti à primeira reunião entre UPP e moradores. A sala no interior do prédio da UPP era

ocupada por poucos moradores, dentre os quais alguns eu já conhecia. O comandante chegou

um pouco atrasado e foi logo se dirigindo à frente da sala. Deu boa noite e se apresentou, para

os que ainda não o conheciam, como o novo comandante da UPP daquela comunidade. A

comunidade à qual o comandante se referia era apenas uma das duas comunidades que

ocupavam aquele morro, e a reação dos moradores à sua fala foi imediata: gritavam que

aquela era a UPP da outra comunidade também. O comandante ficou constrangido diante da

gafe. Pediu desculpas e, depois de se recuperar do constrangimento, deu prosseguimento à

Page 179: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

178

reunião.

Embora eu estivesse há tão pouco tempo em campo, eu já tinha conhecimento a

respeito das disputas acirradas entre as duas comunidades que dividiam o morro.

Historicamente, as duas comunidades não tinham uma boa relação e moradores de uma das

comunidades evitavam ir ao território da outra. Apreendi esta informação por meio do meu

convívio (até ali recente) com os moradores, e logo a identifiquei como uma questão delicada,

com a qual tinha que ter cuidado para não criar desavenças em campo. O comandante da UPP

ainda não tinha aquela informação, e ocorridos como este começaram a me sinalizar para uma

interdependência entre o capital social e o acúmulo de informações a respeito da favela pelos

agentes.

Ao tratar do campo burocrático do Estado, Bourdieu, Wacquant e Farage (1994)

refere-se à acumulação, neste campo, de um capital informacional. Explicam que esta espécie

de capital dá ao Estado a vantagem de pensar a sociedade em sua totalidade, e pode ser

acumulada por meio de censos, de estatísticas, de contabilidade nacional, de objetivação,

cartografia, arquivos ou codificações, que lhe dão condições de concentrar uma variedade de

informações a respeito do território que domina. Na visão de Bourdieu (2014) é inegável o

vínculo que se estabelece entre o Estado e as estatísticas, pois somos, desde a origem do

Estado, quantificados e codificados por ele, e temos uma identidade de Estado definida.

Percebi, nos agentes do meu campo, um esforço para a concentração de informações

sobre a favela, cada um à sua maneira. Para os representantes da UPP o mais importante era o

acumulo de informações a respeito do tráfico e dos crimes em geral. Reconheciam que para

ter acesso a este tipo de informação, precisavam do auxílio dos moradores. E era

principalmente com este propósito que se esforçavam para manter boas relações com os

moradores da favela: “Você trata o morador bem para que ele possa te tratar bem. Trazer até

alguma informação que seja útil, né, para o policiamento” (Representante da UPP 2, Favela da

zona Sul).

Neste caso a estratégia parecia funcionar, porque eles contam aqui com a questão do

sigilo. Para realizar denúncias à UPP os principais canais que os moradores podem utilizar são

o telefone da base da UPP, que é intensamente distribuído pela comunidade, o contato direto

com os policiais nas ruas, o Disque Denúncia, e o tradicional 190. Com a garantia do sigilo, e

portanto a garantia de que não sofrerão retaliação, os moradores realizam denúncias

frequentes. Quando eu observava os policiais, com muita frequência estes recebiam um aviso

por rádio, de policiais encaminhando denúncias de moradores, que em geral indicavam um

Page 180: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

179

local de venda de drogas, ou a localização de um indivíduo com porte de arma. A UPP

contava, ainda, com um serviço de inteligência, responsável por organizar as informações

recebidas e coletar novas informações por meio do uso de câmeras, gravadores ou outras

estratégias. Eles também criavam um vínculo com alguns moradores aos quais denominavam

de informantes, que passavam informações constantemente para o serviço de inteligência da

UPP.

Com uma estratégia bem estabelecida, os policiais tinham de cor estatísticas de crimes

nas favelas, e faziam análises para obter mais informações. Conforme me explicou um

policial orgulhoso de seu trabalho:

Você tem número de prisões, dando um exemplo, foram 19 prisões ou apreensão de

menores por tráfico de drogas em junho, aí eu tento analisar, vamos lá, aumentou o número

de prisões, vamos fazer um gráfico de correlação com o desacato e resistências à prisão,

vamos dizer assim, se aumenta também, se o policial para fazer essas prisões, se aumenta o

número de desacato também, então vamos ver o que está correlacionado. Então tudo eu

tento planejar em cima de números e estatísticas (Representante da UPP 3, Favela da zona

Sul).

Tomando por base as informações registradas, criavam também os mapas de manchas

criminais, mapas que apontavam as regiões mais sensíveis aos crimes, ou seja, aqueles regiões

com os maiores índices de ocorrências criminais. Era com base neste tipo de mapa que

planejavam a distribuição dos policiais pelo espaço da favela.

Organizando e analisando com cuidado todas as informações, os policiais tinham um

conhecimento bastante profundo a respeito dos crimes na favela. Conforme me afirmaram

diversas vezes em nossas conversas, os policiais sabiam exatamente quem eram traficantes

dentro da favela, mas explicavam com pesar que só podiam prendê-los se fossem pegos em

flagrante: “a gente sabe quem são os principais chefes do tráfico, que ficam ali tomando

cerveja aqui nessa birosca aí do lado aí o dia inteiro” (Representante da UPP 3, Favela da

zona Sul). Mas quando o crime ocorre, sabem onde podem encontrar o responsável:

Uma coisa interessante que aconteceu aqui esses dias foi o seguinte: um turista, não me

lembro se era turista ou não, foi à delegacia registrar uma ocorrência de um roubo, e falou

que viu o elemento fugindo na direção da comunidade, ligou pra cá. "Pô, fulano me roubou

aqui tal" "Tá bom, como que ele é?" "Ele é assim, assim, tal tal." "Tá bom, peraí. Pô,

conhece?" "Pô, deve ser fulano! Vamo lá na casa dele?" "Vamo lá!" Chegou lá, estava o

camarada lá com a bicicleta, tudo lá na casa dele. Entendeu a diferença? Tipo assim, num

policiamento amplo, como que eu vou identificar? No meio de um..., como que eu vou

identificar um elemento que roubou? Aqui não, a gente tem esse contato, a gente tem esse

convívio. Ao montar meu banco de dados de informações (Representante da UPP 1, Favela

Page 181: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

180

da zona Sul).

Aqui também a disputa direta com o tráfico aparece. Assim como os policiais recebem

denúncias de tráfico de drogas ou de porte de armas, eles também recebem trotes, denúncias

falsas, que servem para ajudar os traficantes em suas manobras, ao movimentar os

grupamentos policiais. E os traficantes também possuem seus informantes, que os mantém

sempre cientes a respeito da movimentação da UPP. É uma disputa por informação para

montarem suas estratégias.

Embora os policias reconheçam que para obterem informações, ou acumularem o

capital informacional, precisam manter boas relações com a comunidade, ou ter capital social,

eles não parecem perceber a retroalimentação que existe entre as duas formas de capital: para

o acúmulo de capital social também é necessário informação sobre a favela, mas estas

informações precisam se estender para além de índices criminais.

A gafe cometida pelo comandante da UPP na minha primeira reunião em campo,

repetiu-se diversas vezes durante a minha pesquisa. Os policiais não adotavam a sigla que os

moradores usavam para se referir à favela, que abreviava o nome das duas comunidades,

evitando desavenças: argumentavam que aquela era uma sigla cunhada pelo tráfico. Mas

como era muito longo referir-se à favela pelos dois nomes, referiam-se a ela restringindo-se a

uma das comunidades, o que gerava reclamações dos moradores da outra. Os policiais

atendiam o telefone da base com a saudação “UPP [comunidade da zona Sul], bom dia”.

Como se aquela favela se resumisse a uma única. Outra gafe comum era se referir ao principal

prédio da comunidade pelo nome de um único projeto, odiado pela comunidade, que ocupava

o prédio em questão junto com diversos outros projetos. Não podia entender como os policiais

nunca tinham ouvido os moradores explicarem que o prédio era da comunidade, e que aquele

projeto não merecia dar nome ao prédio como se fosse seu. Diversos exemplos me mostravam

que, embora estivessem ali há mais de quatro anos, os representantes da UPP ainda não

tinham muitas informações sobre o cotidiano da comunidade, e rompiam com regras básicas

de convivência, que eu aprendi logo, em minhas primeiras semanas em campo, e que

reconheci como extremamente necessárias para o estabelecimento de relações sociais com os

moradores.

Como se restringem a manter apenas um relacionamento formal com os moradores,

que se dava por meio das reuniões ou do acesso ao canteiro social, os representantes do PAC

recebem apenas informações específicas a respeito de problemas nas obras ou de demandas

referentes às ações do PAC. Assim como no caso da UPP, os representantes do PAC não

acessam informações gerais referentes ao convívio na comunidade, aos hábitos dos

Page 182: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

181

moradores, ou questões do gênero, que também auxiliam no estabelecimento de vínculos

sociais. Um reflexo disso se dá, por exemplo, no tratamento que direcionam aos moradores,

que muitas vezes gera irritação: desconhecendo o real nível de instrução dos moradores da

favela, o PAC trata-os com uma linguagem mais simples e infantil, e procuram passar para

eles apenas mapas e informações simplificadas, que trazem como retorno comentários

irônicos dos moradores “até a gente que é burro consegue entender” (Notas de Campo,

24/04/2013). Além disso, equivocam-se ao marcar reuniões em horário comercial, em que os

moradores estão trabalhando. Seguindo a lógica da retroalimentação entre capital

informacional e capital social, aqui o acúmulo de ambos fica prejudicado.

No caso da UPP Social, o acúmulo de capital informacional é central, tendo em vista

que o programa tem como um de seus propósitos gerar informações que auxiliem as ações dos

demais órgãos públicos em favelas. Como pretendem auxiliar órgãos das mais diversas áreas,

o escopo de atuação da UPP Social é grande, e precisam levantar e registrar informações dos

mais diversos tipos.

Para ter acesso a informações de demandas dos moradores, a UPP Social possui um

canal formal de comunicação, o Fale Conosco, e também tem um convívio frequente com os

moradores das favelas aos quais dão acesso aos seus números de telefone celular. Além disso,

em sua etapa inicial, a UPP Social voltou-se para o mapeamento da favela. Foi realizado um

mapeamento de logradouros, e um Mapa Rápido Participativo (MRP), que consiste na divisão

da favela em regiões, que recebem cores diferentes de acordo com o seu grau de

desenvolvimento. Os mapas fornecem informações gerais que podem ser úteis aos mais

diversos órgãos.

Uma característica importante da UPP Social, que contribui para o acúmulo de

informação pelo programa, é a figura dos agentes comunitários: moradores de favelas que são

contratados para trabalhar no programa, que ficam responsáveis pelos seus territórios de

origem. Conforme explicou um agente:

O agente de campo, ele obrigatoriamente tem que ser do território, tem que ser morador

daquela comunidade, e ele foi iniciado no ano, no ano passado, quando eu entrei,

justamente por essa dificuldade de se entender o território, saber que tinha que ser alguém

que conhece, ( ) além das lideranças locais, saber onde pode, e o que não pode, onde pode

chegar, quais são as partes mais difíceis, os acessos, os logradouros, que é algo muito

complicado na comunidade são os logradouros, vamos combinar, né?( Representante da

UPP Social 2, Favela da zona Norte).

As informações coletadas através destas vias é devidamente registrada e armazenada

no IPP. Os gestores da UPP Social possuem agendas de campo, alimentam Blogs com

Page 183: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

182

informações sobre as favelas, e relatórios são produzidos para o restrito da informação.

Tendo a informação como um fim em si mesmo, os representantes da UPP Social

parecem conseguir acumular não apenas informações formais sobre demandas, mas também

informações sobre os princípios de convívio, sobre o cotidiano da favela, na qual possuem um

convívio frequente com os moradores. As regras informais básicas de convivência que podem

gerar conflitos já foram apreendidas pelos representantes da UPP Social, e aqui o capital

informacional e o capital social se retroalimentam sem grandes impedimentos.

Os representantes do Territórios da Paz também têm o levantamento de demandas, ou

a identificação das temáticas sensíveis às comunidades, como parte do escopo de suas ações.

Nesse sentido, o capital informacional aqui também é fundamental para a plena realização do

trabalho. A forma como os agentes acessam estas informações se dá, na maior parte das

vezes, por meio de conversas informais com moradores, enquanto circulam pelam favela.

Conforme explicou uma gestora:

também a gente faz uma, a gente faz assim: umas rondas assim. É engraçado. Ronda, de

vez em quando a gente circula por todas as comunidades, aí passa nas principais lideranças

para ‘e aí, o que que está acontecendo e tal, não-sei-o-quê’ para meio que fazer essa, essa

atualização, entendeu. E de maneira geral a gente tem isso (Representante do Territórios da

Paz 3, Favela da zona Norte).

E para registrar informações sobre demandas específicas identificadas, também partem

para a elaboração de relatórios formais.

A destreza dos representantes do Territórios da Paz em lidar com os diversos grupos

de conflito da favela, relatada anteriormente, também é decorrente do acúmulo de capital

informacional a respeito de regras de convivência, linguagem adequada, tudo isso adquirido

por meio de seus fortes laços sociais. Assim, aqui também os dois tipos de capital se

retroalimentam de forma continua, propiciando um maior acúmulo de ambos os tipos.

O CRAS, por sua vez, experiencia situação semelhante, ao estabelecer relação tão

próximas com a comunidade. O relato de uma agente retrata a situação:

Se acontecer alguma coisa tanto para o bem quanto para o mal, você sabe mesmo sem

saber. Sem querer saber, mesmo que você não vá lá, o assunto vem para cá ou pela própria

criança ou por alguém da comunidade, o assunto aparece. E às vezes isso de um lado é bom

porque você trabalha esse assunto, essa situação conflituosa, ou, enfim problema, você

consegue trabalhar. Mas por outro lado traz essa coisa, essa mistura, né (Representante do

CRAS 3, Favela da zona Norte).

O relato mostra que as relações “domésticas” estabelecidas com o CRAS também

levam a um compartilhamento de informações, mais uma vez como se os agentes fossem

Page 184: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

183

parte da comunidade. Neste aspecto, pode ser positivo, tendo em vista que as informações são

úteis para o trabalho de prevenção do CRAS.

A forma como se chegou à categoria teórica do capital informacional a partir dos

dados é sintetizada na Figura 6 a seguir:

Capital Informacional

Informações sobre princípios básicos de

convivência na comunidade

Informações formais, vinculadas ao objetivo do programa

- Regras informais de convivência;

- Nível de instrução dos moradores;

- Horários mais adequados para as reuniões.

- Índices criminais;- Problemas nas obras;- Demandas em geral;

Figura 6. Capital Informacional

No campo burocrático do Estado em ação nas favelas, o capital informacional se

apresenta em duas formas principais: como informações formais, que dizem respeito ao

objetivo do programa ou órgão, e como informações sobre princípios básicos de convivência

a respeito da realidade da favela. De forma geral, pode-se afirmar, que aqueles programas que

possuem um volume menor de capital social, parecem ter acesso apenas ou principalmente ao

capital informacional na sua forma de informações formais, o que, por sua vez, dificulta o

acesso ao capital social. Já os programas que possuem um acúmulo maior de capital social,

como os casos da UPP Social, Territórios da Paz e CRAS, conseguem ter acesso ao capital

informacional nas suas duas dimensões, e assim capital social e capital informacional parecem

se retroalimentar, lembrando a afirmação de Bourdieu (2011) de que as espécies de capital

podem ser conversíveis umas nas outras. Esta relação entre as duas formas de capital aqui

descritas é ilustrada na Figura 7 a seguir:

Page 185: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

184

Capital Social Capital Informacional

Figura 7. Relação entre capital social e capital informacional

5.3.4 O Capital Econômico

A primeira vez que entrei na UPP da favela da Zona Norte no início de 2013, fui

surpreendida diante da incompatibilidade entre as minhas expectativas e a realidade do local.

Como sempre ouvira falar, especialmente através da mídia, dos grandes investimentos

financeiros depositados nas UPPs, imaginava que uma boa infraestrutura era oferecida para o

trabalho policial. Entretanto, naquele dia deparei-me com um prédio velho, decorado em seu

interior por mesas e cadeiras ainda mais velhas, sujas e sem encosto. Poucas salas abrigavam

os policiais em suas atividades administrativas, e em uma dela, que parecia ser usada para

aulas, havia um colchão velho jogado ao chão. Parecia haver ali falta de investimentos

financeiros.

Ao longo de minha pesquisa, em conversas com os policiais, estes me narravam

histórias semelhantes às que eu lia nos jornais: contavam sobre os grandes investimentos

financeiros do governo nas UPPs, que se refletia em um aumento desenfreado do número de

policiais formados a cada ano do programa. A explicação para a incoerência que prendia

minha atenção se revelou em conversa com um representante do programa: “Investiu-se muito

em quantidade e se esqueceu da qualidade. O projeto é quantitativo. O secretário se tornou

refém de um número: 40 UPPs até 2014” (Representante da UPP 21, Geral).

O investimento era realmente muito grande, mas se diluía entre muitas UPPs. Com o

programa, e uma tentativa de mudança nas políticas de segurança pública, os salários policiais

foram aumentados e mais ainda no caso de policiais de UPP, que ganham uma gratificação de

R$750 oferecida pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Os aumentos salariais exigiam

um investimento ainda maior diante do aumento de número de policiais formados. Conforme

explicou um policial:

Quando eu entrei na polícia éramos 37 mil homens. Hoje somos 48 mil policiais e com um

Page 186: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

185

projeto pra estender até 60 mil homens. Então, por mês, saem do CFAP mil policiais. Por

mês. A cada quinze dias forma uma turma de 500. Sai do CFAP, sai do CFAP, igual uma

fábrica. Porra, de botar inveja em qualquer Ford da vida. Fábrica de polícia. A cada quinze

dias saem 500 de lá prontos. Então é muita gente! (Representante da UPP 1, Favela da zona

Sul).

Nesse mesmo sentido, os policiais costumavam brincar que daqui a pouco teríamos

mais policiais no Rio do que cidadãos comuns. Não obstante a grande produtividade da

“fábrica de policiais”, alguns policiais reclamavam do baixo número do efetivo da UPP –

número este que eu vi diminuir ao longo da minha pesquisa de campo, com a abertura de

novas UPPs.

Mas para acompanhar o crescimento acelerado no número de policiais era também

necessário um acompanhamento do investimento em recursos, o qual parecia não existir na

mesma proporção. Os policiais se queixavam da má qualidade dos armamentos, e me

mostravam a ferrugem da pistola que não era limpa. E no fim de 2013, quando o clima de

confronto começou a aumentar, ouvi relatos de policiais que foram atirar durante um

confronto, mas não foram capazes de concluir a ação porque sua arma falhou. Além disso,

neste mesmo período, aumentou a demanda por armamentos letais, especialmente o fuzil.

Entretanto, conforme me relataram alguns policiais, não havia fuzil para todos aqueles que o

demandavam. Ainda assim, não se pode negar que o investimento era alto: as UPPs tinham

computadores, rádios Nextel para todos os policiais, viaturas, motos, GPS, armamentos não

letais. Diluídos entre um número crescente de UPPs, os recursos financeiros pareciam

diminuir.

Os rumores a respeito da necessidade de mais recursos financeiros nas UPPs

começaram a aumentar quando veio à tona a notícia de que o Eike Batisita havia retirado

grande parte do seu suporte financeiro ao programa, levando até a rumores sobre o possível

fim do programa:

o EIKE Batista andou cortando algumas verbas, ele ia investir nas UPP’s, 20 milhões

parece, ele suspendeu, uma grana legal, então pode ser que lá depois de 2016 para lá e que

o EIKE Batista não tem tanto interesse em investir, porque ele quer investir agora para ele

ter retorno, 2014 e 2016, como isto é tudo uma politicagem e tudo isto envolve muito

dinheiro, pode ser que lá na frente acabe por conta disto, ah não tem verba ( Representante

da UPP 8, Favela da zona Sul).

Entretanto, como eu também pude aos poucos perceber, os agentes do Estado também

conseguem investimentos financeiros por meio de doações, e os recursos a eles destinados,

tanto pelo repasse direto do Estado quanto pelas doações indiretas, dependem do grau de

Page 187: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

186

legitimidade de cada agente, conforme será demonstrado mais a frente.

Com as UPPs não foi diferente. Para suprir a escassez de recursos e avançar em

projetos mais ambiciosos, recebiam doações. Na favela da zona Norte um projeto de boxe

com crianças da comunidade foi todo montado a partir de recursos de doações. O policial

responsável pelo projeto me explicou em entrevista:

Não, não, a polícia não me deu nada, a polícia não me deu nada. O, que que aconteceu? Eu

pensei, quando eu comecei aqui não tinha nada, era tudo no chão. Imaginei que um dia eu

tinha que fazer alguma coisa para ganhar material e então eu fiz um projeto montadinho,

direitinho, com diretrizes, linhas gerais, objeto do projeto, tudo montadinho, e comecei a

apresentar para um, apresentar para outro, apresentar para outro, e eu fui apresentando com

alguns parceiros de luta, que treinavam comigo, que arbitravam comigo, e aí eu fui

conseguindo material de pouquinho em pouquinho, em pouquinho em pouquinho, até que

eu fui montei isso daí. Já estou montando a segunda parte do projeto agora (Representante

da UPP 17, Favela da zona Norte).

O mesmo ocorreu na festa de debutantes oferecida pela UPP. Eu pude acompanhar a

organização da festa, e as estratégias para conseguir doações. Com o nome da UPP, no fim

tudo se resolveu: bolo, doces, salgadinhos, garçons, salão de festa, tratamentos de cabelo e até

os vestidos das meninas vieram de doações.

Na favela da zona Sul a UPP recebia apoio de algumas empresas privadas, que

doavam pessoal e material para fazer atividades com as crianças no projeto da UPP Mirim. E

aos poucos fui descobrindo que muitos dos móveis velhos que preenchiam os espaços dos

prédios também eram fruto de doações.

Havia assim mais um capital importante pelo qual os agentes do campo precisavam

lutar para acumular: o capital econômico, retratado por Bourdieu (2004) como uma das

formas mais óbvias de capital. O capital econômico, como parece ser evidente, apresenta-se

na forma de riqueza material, como dinheiro, ações, bens patrimônios (THIRY-CHERQUES,

2006). Entre os agentes do Estado, esta forma de capital é disputada, principalmente, por meio

das transferências diretas do governo.

Mas as disputas não se dão apenas entre os diferentes agentes apontados aqui. Tais

agentes, apresentam disputas internas, na medida em que algumas favelas tendem a receber

mais atenção. No caso das UPPs as diferenças são claras. A UPP da zona Sul apresenta uma

infraestrutura bastante superior: “hoje é uma das melhores UPPs, das 34 existentes. Ninguém

tem uma estrutura tão boa quanto essa” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). A

Page 188: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

187

infraestrutura da UPP da zona Sul era superior também pela presença de uma RUMBE21

própria, evitando que os policiais tivessem que se deslocar, todos os dias, para o batalhão de

referência, para retirar e devolver o armamento. O mesmo não acontecia na favela da zona

Norte, onde os policiais tinham que se deslocar aos batalhões, e às vezes acabavam optando

por utilizar armamentos próprios. As diferenças também se apresentam na distribuição de

armamentos: enquanto os policiais da zona Norte diziam nunca terem visto um Teaser22, os

policiais da zona Sul iam para as reuniões comunitárias com a Teaser na cintura.

Mas as diferenças na distribuição de capital econômico entre os agentes, de acordo

com a favela, não se refletiam apenas nas UPPs. Em alguns casos a desigualdade era até

maior. O PAC, por exemplo, existia apenas na favela da zona Sul, não obstante a incessante

demanda dos moradores da zona Norte pelo programa.

É dispensável comentar o enorme montante de recursos financeiros investidos em um

programa de infraestrutura das proporções do PAC - R$ 52.000.000 é o valor declarado total

das obras. A disponibilidade de recursos financeiros do programa é evidenciada pelas

proporções das obras realizadas no território, que envolvem aberturas de vias e construções de

prédios, e contam com equipamentos pesados: “Usamos todo o maquinário pesado, guindaste,

trator, retroescavadeira, bate-estaca, monta-carga, guincho, uma porção de coisas, um

ferramentário pesado, além da enxada, pá, picareta e estas coisas todas” (Representante do

PAC 3, Favela da zona Sul).

Além da frente de obra, o PAC também investe em uma frente social, que também

evidencia uma abundância de recursos: estão sempre bem equipados, com laptops e

Datashows, oferecem lanches ao fim das atividades, e parecem contar com todo o

equipamento necessário para a plena realização de suas atividades. Embora um de seus

representantes reclame que a parte social recebe apenas 2,5% do valor da obra em recursos,

uma das agentes reconhece que eles estão muito a frente, em termos de recursos financeiros,

dos demais programas sociais:

Nós temos uma renda dentro dos nossos projetos e a gente vai tentar incubar alguns

projetos para que eles possam dentro do PAC, o PAC vai ser o financiador inicial, para que

incube e eles tenham depois tenha desenvolvimento por si e se consolidem (...). É, nenhum

órgão do Estado tem essa possibilidade, nenhum órgão, mas nenhum projeto. Você vê UPP

Social, Territórios da Paz, nenhum deles tem essa possibilidade que nós temos porque esse

dinheiro vem do PAC, vem da Caixa Econômica, a gente executa as atividades, gera

trabalho e renda, faz todo o trabalho de desenvolvimento territorial e auxilia a incubar. Essa

21 Local onde os policiais retiram suas armas para o serviço. 22 Tipo de armamento não letal que imobiliza por meio de choques.

Page 189: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

188

é a ideia (Representante do PAC 5, favela da zona Sul).

Como se pode perceber, o PAC não precisa demandar recursos por meio de doações.

O alto volume de capital econômico acumulado pelo programa advém diretamente do

governo, e parece dar conta do necessário, claro, sem excessos.

A UPP Social, com seus investimentos iniciais, contratou uma grande equipe de

gestores, assistentes e agentes de campo, as quais foram providas de equipamentos que

facilitassem sua circulação em campo: notebooks, máquinas fotográficas, aparelhos celulares,

e quando necessário tinham acesso à carro. Entretanto, com o contingente de funcionários da

UPP Social, não foi possível ter uma equipe exclusiva para cada território. Em geral, cada

equipe assume mais de uma favela, de acordo com as suas distribuições geográficas: “É, hoje

são 33 UPPs, já instituídas, né, enquanto a UPP Polícia, são 14 equipes de campo, nessas 14

equipes de campo, elas muitas vezes dividem, uma equipe ela se divide para mais de um

território” (Representante da UPP Social 1, Geral).

Com o passar do tempo, e com os problemas de legitimidade do programa por conta

da impossibilidade de atender às demandas que encaminhavam, o programa passou por uma

reformulação, e os recursos pareceram gradativamente diminuir. Um reflexo bastante evidente

se deu no tamanho das equipes de campo: “Nós éramos 11: éramos sete agentes de campo,

três assistentes e um gestor. Caiu para dois. Um gestor e um assistente para 15 comunidades.

É complicado” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte), desabafou um

representante da UPP Social. Além disso, os agentes também reclamavam a respeito da falta

de reposição de equipamentos, que quando se quebravam estavam perdidos. Não havia

reposição. No caso do programa, a queda na legitimidade parece ser acompanhada por uma

queda no capital econômico.

No Territórios da Paz trabalhava-se com o básico: cada equipe, composta por um

gestor e um assistente, era responsável por um território; cada equipe tinha um laptop, que

chegou após um ano de trabalho, depois de muita reclamação, conforme os relatos, e um

modem de 3G. Os celulares eram escassos, o que também era fonte de reclamações.

Os vínculos de trabalho entre os representantes do Territórios da Paz e a SEADH eram

precários, assim como os benefícios que recebiam: “a gente não tem transporte, a gente não

tem vínculo, trabalho extra garantido pela constituição, a gente tem um PJ e nem sequer um

cargo comissionado, a gente é agente governamental por período determinado”

(Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul). Além disso, os salários pareciam

atrasar com frequência – pelo menos as reclamações dos atrasos eram frequentes entre os

agentes no campo.

Page 190: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

189

Em decorrência das condições ruins de trabalho muitos agentes foram deixando o

programa, e ao longo do tempo alguns territórios ficaram descobertos, outros tinham apenas

um gestor, sem assistente, outros apenas assistente, sem o gestor, que embora acabasse por

assumir todas as funções de um gestor e de um assistente conjuntamente, continuava a ganhar

o salário mais baixo de assistente que originalmente lhe foi atribuído. “A secretaria se

esvaziou e não tem como sustentar mais o programa. Todo começo de ano é a mesma coisa. A

cada ano vai saindo mais gente, mais comunidade descoberta...” (Representante do Territórios

da Paz 5, Favela da zona Norte), relatou uma agente do programa.

Os recursos financeiros disponíveis para os trabalhos em campo eram nulos: “cara, a

gente trabalha sem um real, Vanessa, sem um real. Você imagina se a gente tem dinheiro?”

(Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul). A falta de recursos dificultava as

ações do programa, que reduziam sua legitimidade, reduzindo as chances de atrair capital

econômico. Conforme explicou um agente:

O que falta basicamente nisto aqui é investimento, investimento em melhores condições de

salários, investimento em plano de carreira, em infra-estrutura. O programa é bom, ele é

elaborado por pessoas técnicas e acadêmicas brilhantes, têm pessoas brilhantes aqui, fora

que você fala, caraca...e muitas já saíram também. Mas o problema é sempre esta execução

final, como é que isto é trabalhado, gera estas ansiedades (Representante do Territórios da

Paz 4, Favela da zona Sul).

Diante da falta de recursos, restava o improviso. Os agentes foram aprendendo a

realizar ações com pouquíssimos recursos que, em geral, conseguiam ser bem sucedidas.

Faziam também parcerias com agentes mais bem providos. Apelavam para as doações, como

a equipe da favela da zona Norte, que encaminhou memorandos aos supermercardos da região

e conseguiu doação de macarrão para um evento. Conforme relatou um representante do

programa: “Poucas vezes a gente de fato entrou com o dinheiro do Estado. Muito poucas

vezes. Para eventos, projetos, ações; a gente conseguiu formar coletivas de rede que

conseguiu se autofinanciar com uma espécie de economia solidária local” (Representante do

Territórios da Paz 2, Geral). As estratégias para apresentar resultados sem recursos variavam

com a equipe ou gestor, mas as dificuldades não passavam despercebidas pelos moradores,

que os consideravam com boa vontade, mas sem recursos.

Os CRAS parecem possuir os recursos necessários para se manter funcionando.

Possuem um prédio dentro das favelas, e equipamentos como computadores, impressoras,

escâneres, dentre outros. Mas aqui também aparece uma diferença entre os equipamentos

inseridos nas favelas da zona Norte e da zona Sul. A diferença já se observa pelo tamanho do

Page 191: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

190

prédio: ainda que compartilhado com a Clínica da Família, o espaço disponível para o CRAS

na zona Sul é muito maior.

O mesmo se reflete no número de funcionários. Na zona Sul os agentes relataram

contar com 27 funcionários, e embora reconheçam que este é o número correto, ainda assim

acham que é pouco pela quantidade de demandas do território. Na zona Norte, relatam

trabalhar com um número reduzido de funcionários, o que aumenta a carga de trabalho de

cada um. Contam que a escassez de funcionários, atrelada a exigência de metas, faz com que

o trabalho se torne muito difícil por ali. Enquanto na favela da zona Sul relatam promessas de

instalação de ar condicionado nas salas, na favela da zona Norte contam que precisam

improvisar muito no trabalho, porque faltam recursos. Mas, de forma geral, os equipamentos

funcionam em ambas as comunidades e, mesmo com poucos recursos, conseguem cumprir

suas funções.

A forma como os dados empíricos levaram à categoria teórica do capital econômico

são retratados na Figura 8 a seguir:

Capital Econômico

Equipamentos

Efetivo de Funcionários

Recursos disponíveis para as realizações das atividades

- Recursos financeiros;- Lanches;- Disponibilidade de

espaço.

- Número de policiais;- Número de agentes de campo;- Tamanho das equipes;- Número de territórios por equipes.

- Computadores;- Celulares;- Armamentos;- Veículos

Salários

- Aumento de salários;- Gratificações;- Benefícios;- Atrasos salariais.

Figura 8. Capital econômico Conforme o exposto, o capital econômico acumulado pelos agentes parece se

apresentar em quatro formas principais: nos equipamentos disponíveis, no efetivo de

funcionários, nos salários recebidos e nos recursos disponíveis para a realização das

atividades. Para acumular o capital econômico, os agentes podem conseguir transferências

Page 192: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

191

diretas de recursos via governo, ou podem conseguir doações, que em geral dependem da sua

legitimidade.

5.3.5 O Capital Espacial

Em uma terça feira bem cedo fui à base da Comlurb em um bairro da zona Norte,

conversar com o gerente responsável pela região que incluía a favela onde eu vinha realizando

a minha pesquisa. Após uma longa conversa em que expliquei os meus interesses de pesquisa

e fiz perguntas a respeito das ações da Comlurb na favela da zona Norte, o gerente me

questionou animado “quer ver com os seus próprios olhos o que é o Estado entrando em uma

favela?” (Notas de campo, 08/10/2013). A UPP tinha ocupado no domingo anterior uma nova

favela da zona Norte, e como é habitual nos processos de “ocupação”, a Comlurb entrara

junto para limpar a comunidade, dando-a uma “cara nova”. O gerente estava se dirigindo para

lá, para acompanhar o trabalho dos garis que por sua vez acompanhavam o BOPE. O convite

para visitar uma favela em “processo de pacificação” me pareceu tentador, e também um

pouco arriscado. Mas minha curiosidade de pesquisadora falou mais alto do que qualquer

receio e, bastante eufórica, eu aceitei ao convite.

Entramos em um micro-ônibus da Comlurb e seguimos para o local. Na entrada do

morro havia um sofá velho coberto com um toldo, com uma placa que indicava o ponto dos

mototaxis. A movimentação parecia fraca naquele dia, e sem nenhum cliente no local, poucos

mototaxistas jogavam conversa fora sentados ao sofá. Passamos por eles e começamos a subir

a principal rua da comunidade até o topo do morro, onde o gerente da Comlurb me convidou a

descer do ônibus. A favela estava deserta. Nas ruas não se via nenhum morador. Enormes

carros do BOPE estavam espalhados pela favela, e policiais do BOPE armados com fuzis

ficavam parados próximos aos carros. Os garis da Comlurb trabalhavam sem parar em vários

pontos da favela, e nos dirigimos até alguns deles para checar como andava o trabalho. O

gerente me explicou que a Comlurb sempre acompanha o BOPE nos processos de

“pacificação”. Explicou que suas primeiras ações voltam-se para o corte das gramas, e a

retirada do “lixo branco”, termo usado pela Comlurb para se referir àquele lixo mais visível,

que em geral se apresenta na forma de plásticos ou papéis – ação que tem o rápido efeito de

dar uma “cara nova” à favela. Orgulhoso do trabalho dos garis, o gerente pegou uma câmera

fotográfica, e começou a registrar a limpeza do local.

Não pude deixar de comparar a favela em transição que ali observava com as favelas

“pacificadas” com as quais estava acostumada. Percebi ali uma forte materialização do tráfico

no espaço, que embora não mais estivesse presente, especialmente naquele momento de

Page 193: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

192

processo de “pacificação”, deixou sua marca por vários cantos da favela. Percebi que em

mesas, bancos e muros espalhados pela favela havia pichação com a sigla do Comando

Vermelho – CV, com uma frequência muitíssimo maior do que nas favelas onde realizava a

minha pesquisa. O gerente da Comlurb parecia conhecer bem o funcionamento daquela favela

antes da entrada do BOPE. Mostrou-me um local da favela onde o tráfico costumava ficar, por

ser o melhor ponto de visibilidade da favela vizinha, dominada por uma facção rival. Este

local era na frente da casa de uma senhora, que havia construído um desajeitado muro de

concreto protegendo o seu portão, tendo em vista que aquele local recebia tiros constantes da

favela dominada pela facção rival. Em frente ao muro de concreto, lia-se um aviso

importante: “Risco de bala” (Notas de campo, 08/10/2013), com assinatura do Comando

Vermelho.

Quando retornei às minhas favelas, depois desta experiência curiosa, comecei a

procurar com mais cuidado as marcas do tráfico pelo espaço. Encontrei alguns símbolos do

Comando Vermelho, principalmente marcados na calçada, e em poucos muros. Bem no topo

da favela da zona Norte, onde antes era o principal local de concentração do tráfico, ainda lia-

se “CV” em um muro bastante visível. Mas o que mais me aparecia ali eram as marcas da

UPP.

Não é preciso visitar uma favela “pacificada” para saber que ali existe uma UPP:

circulando pelo Rio de Janeiro nos deparamos por acaso com placas, que indicam, bem antes

de se chegar à favela, a direção da UPP local. Na entrada da favela, as placas começam a ser

acompanhadas da presença dos policiais, devidamente uniformizados e armados, e em geral

suas viaturas marcam a entrada da rua principal. É fato que eles estão por toda a parte, e no

percurso guiado pelas placas da UPP é possível que se cruze com vários policiais. Quando

finalmente se chega ao destino, encontra-se uma sinalização maior, para garantir que se

reconheça no prédio, em geral imponente e bem centralizado, a base da UPP. Não dá para se

ter dúvidas. Assim como eu não tive dúvidas, ao entrar na favela em “processo de

pacificação”, que ali, bem recentemente, era dominado pelo tráfico.

Como pioneira no processo de “ocupação” das favelas e principal oponente na disputa

pelo capital da força física, a UPP apresenta-se como um rival direto do tráfico, e ambos

lutam por dominar um recurso escasso e exclusivo: o espaço das favelas. A oposição direta ao

tráfico é revelada na fala dos policiais: “A UPP veio mesmo para tirar o território, os

traficantes do controle desse território, né?” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul),

assume um representante da UPP. Não é à toa que os moradores enxergam as UPPs como a

Page 194: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

193

oposição ao tráfico, e se pensam em uma retirada das UPPs do território, já a associam

diretamente ao retorno do poder do tráfico.

Como oposição ao tráfico, quando conseguem o domínio do território, as UPPs

tendem a assumir o lugar de seu rival: tornam-se, a seu modo, os novos donos do morro.

Passam a controlar os espaços das favelas como se os pertencessem, e os moradores,

assumindo este controle, pedem permissão à UPP para utilização dos espaços. Os policiais

tornam-se os responsáveis por autorizar festas na quadra da favela, o uso de salas para a

atividades de ONGs, áreas de estacionamento, e até o espaço da associação de moradores da

favela da zona Norte foi apropriado pela UPP:

eu fui lá pedi a chave da associação, porque a associação ela era dos moradores [da favela

da zona Norte] e a UPP estava aqui pra ajudar, não pra prejudicar. Aí ele falou assim, “olha

só, mas isso aí é do tráfico”. Aí eu falei “olha só, a associação não é do tráfico não, a pessoa

que estava à frente da associação era envolvida com o tráfico, mas a associação é da

comunidade e ela tem que ficar aberta, porque as pessoas precisam do serviço dela. Aí ele

virou pra mim e “olha só, eu to te entregando a chave, de hoje, o que acontecer de hoje em

diante você é o responsável”. Eu falei “olha só, tenente, eu sou o responsável a partir do dia

10 de junho pra frente, do dia 10 de junho pra trás o senhor não tem como me

responsabilizar por atos de outras pessoas. Ele “não, não, tudo bem”. Aí ele me deu a chave

e a gente começou a trabalhar. (Morador 11, Favela da zona Norte)

Ao ocupar os espaços das favelas, os policiais da UPP facilitam para que outros

agentes do Estado façam o mesmo. Mais uma vez reforço aqui, que isto não significa que já

não houvesse agentes do Estado dentro das favelas antes das UPPs. Entretanto, como

reconhecem os agentes, a entrada da UPP facilitou a atuação dos demais agentes nas favelas, e

agora joga-se o jogo seguindo as regras do Estado. Mesmo os agentes que já estavam nas

favelas antes das UPPs, agora mudam as suas relações, e a ocupação dos espaços é facilitada

com a garantia da livre circulação.

Com o direito a circular livremente, os mais diversos agentes empenham-se em ocupar

o espaço das favelas. Pensam nas estratégias para melhor fazê-lo e entendem que a percepção

dos moradores de que os agentes conseguem se materializar dentro das favelas ajuda a

legitimá-los.

As UPPs parecem ser bastante eficazes em suas estratégias de ocupação. Além de uma

base física, em geral imponente, adquirida por meio da incorporação de algum prédio já

existente na favela – o que em alguns casos gera revolta nos moradores – e containeres

espalhados por outras regiões da favela, o grande efetivo de policiais possibilita que a UPP se

faça presente pelo território. Os policiais que se espalham pelas ruas das favelas, podem fazer

Page 195: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

194

parte de dois tipos diferentes de grupamentos, seguindo as ordens do comandante: os policiais

do GPP (Grupamento de Polícia Pacificadora) ficam baseados, o que significa que devem

ficar parados em um setor determinado, marcando ali a sua presença e fazendo abordagens

quando necessário; outra opção é que se faça parte do GTPP, o grupamento tático, no qual os

policiais podem circular livremente pela favela. E eles traçam as melhores estratégias de

ocupação:

antes de eu chegar aqui o policiamento, era um policiamento fixo, cada determinado setor

parava, dava presença e eu já tentei botar um policiamento mais dinâmico. Então a partir do

momento que eu coloco um policiamento mais dinâmico eu tenho um número de

ocorrências maiores, porque o policial possui mais liberdade para executar as prisões,

cercar mesmo vamos dizer assim para quem está relacionado ao tráfico de drogas, mas

também não é a nossa meta aqui, mas é um número que a gente tem que olhar. Em

contrapartida quando você coloca um policiamento dinâmico, o tráfico de drogas migra,

sempre vendia aqui na porta da casa de fulano de tal, então quem via eram os vizinhos de

fulano de tal, só que como ele está migrando, ele está vendendo aqui, amanhã está

vendendo aqui, amanhã está vendendo aqui, amanhã está vendendo aqui. Então as pessoas

acham que o tráfico aumentou, mais pessoas estão vendo o tráfico de drogas porque cada

dia ele está vendendo em um lugar diferente, então você no policiamento dinâmico, você

também dependendo do local, a pessoa que sempre passa naquele horário voltando do

trabalho e vai para a sua casa, ela via o policial ali, de dia ela não vê mais os policiais ali,

ele pode estar aqui, pode estar lá. Então ela sente assim também que o policial e o

policiamento diminuiu. Aí, você tem que colocar alguns pontos estratégicos, no horário de

volta do trabalho, coloca o policial aqui para o morador se sentir seguro, chegar na sua casa

e tal e no horário de incidência de tráfico de drogas ou qualquer outro tipo de delito a gente

tenta migrar (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).

Conforme fica claro na fala do policial, embora seja mais eficiente, em termos de

números de prisões e apreensões, a opção pelo GTPP, com a livre circulação, o GPP é

importante para se fazer visível, para que os moradores tenham a percepção de que o espaço

está sendo ocupado por policiais.

O PAC também conta com bases na favela: o Canteiro Social, para a equipe da frente

social, que consiste em um apartamento em um dos seus prédios, e uma base para a frente de

obras,

onde tinha a sala de fiscalização, a sala da engenharia, a sala de reunião, cozinha,

refeitório, sala administrativa, sala de serviço médico, RH, tudo isso pronto e preparado em

um canteiro, com ar-condicionado, telhado, acesso, iluminação, alarme, computador, rede,

wifi, tudo numa boa (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).

Page 196: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

195

Suas estratégias de ocupação do espaço também se dão por meio das remoções,

negociando com os moradores a sua retirada para passagem das obras.

Os programas da UPP Social e do Territórios da Paz optaram, depois de algumas

discussões, por não terem bases físicas dentro dos territórios de favela. O dilema era

complicado: embora a base física ajude a dar visibilidade ao programa, pode inibir a

circulação dos agentes pelo espaço, estratégia que se considera importantíssima para que o

programa se faça presente nas favelas. Este dilema aparecia no discursos dos agentes:

Eu fico pensando, às vezes assim, viajando mesmo, nunca elaborei muito isso, mas é

porque às vezes era muito difícil para as pessoas entenderem que a gente trabalha bastante

pelo fato da gente não ter um espaço físico. Às vezes eu fico pensando se não daria, não

daria mais segurança no sentido de dar mais materialidade ao trabalho. Mas ao mesmo

tempo, eu acho que a forma da gente trabalhar circulando, eu acho que é vantajosa, assim,

por várias coisas, inclusive porque de fato a gente anda muito, nem ia dar para ficar a

semana inteira [na favela da zona Sul], né (Representante da UPP Social 4, favela da zona

Sul)

Outro ponto importante notado aqui, com base nas informações levantadas pelos

agentes, que contam com alto volume de capital informacional, é que as favelas, em geral, são

divididas em subterritórios, e a localização da base física do programa em um destes

territórios pode afastar os moradores dos demais, contribuindo para reduzir o capital social,

tão caro a ambos os programas.

O CRAS possuía uma base física em ambas as favelas pesquisadas, o que se

considerava positivo no sentido de ter um espaço para realizar as ações. Entretanto, os efeitos

adversos que os representantes da UPP Social e do Territórios da Paz conseguiam prever, aqui

se tornavam reais: a localização em um território específico afastava os moradores dos

demais. Diante disso, os representantes do CRAS começaram a usar como alternativa o

chamado “CRAS itinerante”: “Mas assim, existe uma programação. O CRAS itinerante, de

quinze em quinze dias, aí a gente faz esse atendimento em determinados locais na

comunidade” (Representante do CRAS 7, Favela da zona Norte). Assim se faziam presentes

em todo o espaço da favela, e a legitimidade do programa pareceu aumentar: “Então a

comunidade começou a olhar o CRAS com um outro olhar. Um olhar do que o CRAS está

aqui para atender” (Representante do CRAS 3, Favela da zona Norte).

Seja por meio de sedes físicas ou por meio da circulação pelo território, os agentes

parecem considerar de extrema importância que se façam presentes nos espaços da favela, que

possuam uma territorialidade. E a combinação entre a existência de sede física e a circulação

Page 197: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

196

pelo território parece ser a estratégia mais bem sucedida nesse sentido, embora nem todos os

agentes consigam lançar mão de ambas as estratégias.

Para além de uma preocupação com a ocupação do espaço, os agentes também tentam

se fazer visíveis por meio da apresentação de resultados materiais ou de transformações

materiais no espaço. A propriedade de visibilidade da matéria faz dela um meio valorizado de

se apresentar resultados. E os agentes que não conseguem fazê-lo reconhecem o prejuízo

disso para a legitimidade do programa.

No caso das UPPs isto se torna claro pela quase homologia entre objetivo de

“pacificação” e o propósito de esconder as armas e as drogas e, portanto, o tráfico dentro das

favelas. Os policiais reconhecem que o tráfico sempre existirá, em qualquer lugar do mundo, e

que portanto a permanência do tráfico na favela não é um problema, desde que se faça de uma

forma discreta. Os moradores reconhecem a mudança: “o que mudou foi só que, o armamento

era visível, a ostentação do armamento, era visível, eles andavam armados aqui dentro direto”

(Morador 12, Favela da zona Norte).

Outro elemento material eliminado pelas UPPs, e apresentado como um importante

indicativo do sucesso do programa, é o fim dos tiros, que também tem a vantagem de facilitar

a circulação pelo território, agora não mais interrompida por inesperados tiroteios. A ausência,

ou ao menos redução, dos tiros na favela “pacificada” é também sempre apontada pelos

moradores como uma mudança bastante positiva trazida pelas UPPs, que torna quase

inquestionável a melhoria da vida na favelas: a conquista do direito de entrar e sair a hora que

se quer, de trazer seus familiares para visita, e até de ficar parado à janela de sua casa, sempre

servia de referência para explicar porque a favela, pelo menos por um lado, melhorou com as

UPPs.

Entretanto, estes foco em “esconder” elementos materiais do espaço acaba tendo um

efeito ambíguo para a legitimidade das UPPs. Conforme explicou um policial, hoje, um tiro

em uma favela pacificada, é considerado uma denúncia de falência do programa:

Então, pragmaticamente, o ato de um tiro, e como a mídia ainda vai potencializar isso, se

transforma em ataque, todo o projeto está sob dúvida, sob suspeita, mas ali é uma ação –

em alguns momentos, não estou falando de todas – bem pontual. Diz muito mais respeito a

uma coisa daquele local. Pode ser uma liderança mal intencionada ou pode ser uma

inabilidade, uma falta de percepção dos policiais, pode ser medo dos policiais e pode ser, às

vezes, um conflito porque ali tem atividades em jogo (Representante da UPP 21, Geral).

Ao mesmo tempo, para evitar os tiros, e a consequente deslegitimação daquela UPP,

os policiais acabam perdendo regiões da favela para o tráfico, que passa a se concentrar, em

Page 198: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

197

geral em regiões altas do morro, onde escondem seus armamentos e drogas. Quando isto

acontece, alguns comandantes ordenam que se evite circular na região, pois a chagada de um

policial no local pode resultar em uma troca de tiros, digna de capa de jornal, que a qualifica

como falha no programa. A situação foi explicada por um policial da UPP da zona Norte:

Ontem foram dois. Baleados, entendeu? Por que? Porque querem fazer o serviço, querem

fazer a patrulha e eles não vão deixar. Porque ali o terreno agora é deles, a figura do terreno

agora é deles. Porque tipo assim, a polícia que deixou. Porque não deixa patrulhar em

certos lugares e não toma certo local. Não adianta você vir tomar com 300 homens que

você não vai conseguir (Representante da UPP 20, Favela da zona Norte).

Os resultados do PAC não poderiam ser mais materiais e concretos, e portanto visíveis

nos espaços das favelas: o programa realiza obras, abre ruas, levanta prédios. Todos os

moradores sabem o que o PAC faz ali e, não obstante os conflitos constantes por conta das

remoções, reconhecem que o programa tem um papel ativo. Entretanto, a frente social do

PAC sofre do problema de não conseguir fazer visíveis as suas ações, e reconhecem um

esforço para a apresentação de resultados mais concretos:

Não só esse [da favela da zona Sul], mas também de todos os outros que a gente fazia era

uma combinação de urbanista sendo um pouco porque o trabalho nessa parte social ele é

muito abstrato. Então acabou sendo um pouco porque essa parte do social é muito abstrata

e eu acho que, por ser urbanista, muita coisa que a gente fazia tentava revelar a forma

física. (...) Então hoje, os nossos diagnósticos físico e social que se recomenda no trabalho

de desenvolvimento territorial considera tanto as questões físicas que precisam ser

melhoradas, como a questão social (Representante do PAC 1, Favela da zona Sul).

A UPP Social e o Territórios da Paz enfrentem, mais um vez aqui, uma dificuldade. Os

programas não tem um papel de executores no território, mas apenas de encaminhadores de

demandas ou de fortalecedores de redes comunitárias. Diante disso, os próprios agentes

reconhecem um problema de visibilidade nas ações dos programas por conta da ausência de

apresentação de resultados concretos.

Para lidar com a questão, uma representante do Territórios da Paz reconheceu que,

para além de suas funções, busca entregar produtos para a comunidade:

Eu acho que hoje o nosso papel lá é fomentar novas lideranças, tá, é articular rede, formar

rede, fortalecer rede. Eu acho que o papel é esse. Mas a gente tem que apresentar produto.

Isso eu não estou falando nem institucionalmente não, para a própria comunidade, assim

(Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul)

O CRAS, embora voltado para a prevenção, vê no bolsa família a sua salvação: “Que

que o CRAS, a nossa sorte é o bolsa família” (Representante do CRAS 3, Favela da zona

Norte). Resultado mais concreto do programa, o bolsa família serve para abrir portas para que

Page 199: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

198

os moradores acessem outros serviços do CRAS: “Muitas vezes as pessoas chegam aqui com

a perspectiva de que o bolsa família é, quando você abre um leque de benefícios”

(Representante do CRAS 7, Favela da zona Norte), explica uma agente que aponta o bolsa

família como o produto mais reconhecido, e as vezes o único conhecido do CRAS.

É nesse sentido que falamos aqui em um capital espacial como um capital valorizado

no campo burocrático do Estado em ação nas favelas. Conforme explicou Bourdieu (2011b),

para além dos espécies de capitais fundamentais, em geral presentes em todos os campos,

como o capital econômico ou o capital social, as espécies de capital são definidas de acordo

com a lógica específica de cada campo e, portanto, novos tipos de capital podem aparecer em

campos distintos. No campo burocrático do Estado em ação nas favelas pode-se identificar o

capital espacial como uma nova espécie de capital em jogo, que se apresenta em suas duas

formas principais: em uma dimensão de territorialidade, que se dá por meio da ocupação do

território pelos agentes do campo burocrático do Estado, e uma dimensão de materialidade,

que se dá por meio da apresentação de resultados materiais ou de transformações materiais no

espaço. A forma como se chegou ao conceito proposto de capital espacial, a partir dos dados,

é ilustrada na Figura 9 a seguir:

Capital Espacial

Dimensão de Territorialidade (Ocupação

do território)

Dimensão de Materialidade (Apresentação de resultados materiais ou transformações

materiais no espaço)

- Base física dos agentes;- Circulação dos agentes pelo

espaço;- Baseamento no território.

- Invisibilidade de tiros, armas e drogas;

- Obras;- Bolsa família.

Figura 9. Capital Espacial

A disputa pelo capital espacial, que se dá no campo burocrático do Estado em ação nas

favelas, também se evidencia pela disputa dos agentes por espaços mais visíveis, propriedade

Page 200: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

199

que valoriza o capital espacial. Em outras palavras, a propriedade de visibilidade de um

espaço ou da matéria parece ser aquilo que os torna valorizados enquanto capital espacial, e

por isso, quanto mais visível maior é o seu valor enquanto recurso de poder. É reconhecido

que as favelas vem centralizando as discussões a respeito de desigualdade social na cidade do

Rio de Janeiro, e alguns agentes e moradores apontaram inclusive para o fato de que falar de

favela “está na moda”. Nesse sentido, também se reconhece que uma ação realizada em uma

favela ganha muito mais visibilidade do que uma ação em um outro território pobre qualquer

da cidade, o que leva a uma concentração de ações em territórios de favelas em detrimento de

outros espaços – não é à toa que o processo de “pacificação” restringe-se às favelas. Uma

agente discutiu a questão, e apontou os aspectos positivos e negativos desta tendência:

Então o que eu percebo de uma, eu acho que o que tem de maneira geral é que essa coisa

que a gente fala, né. Que favelas, se tornou uma coisa meio “cult”. Todo mundo quer falar

de favela, todo mundo quer falar de favela, todo mundo quer, e eu acho que isso acaba, isso

criou um lugar para as favelas diferenciado, assim. E que eu acho que é justo e é injusto.

Injusto na medida em que você tem outras áreas da cidade, que são às vezes muito mais

empobrecidas do que as favelas, mas por não ter essa identificação como favela, que é uma

coisa também um pouco abstrata porque onde é favela onde não é.(...). Mas ao mesmo

tempo eu também acho legal esse lugar, assim, de você ter, de você ser foco de política

pública, você ser foco porque realmente você teve, são lugares que são desprivilegiados,

assim, de ações do Estado, de benefícios, de maneira geral. Então acho legal que seja esse

foco, mas não acho legal que seja somente esse foco, entendeu. (...) Então eu acho então, e

eu acho que isso essa visibilidade que as favelas alcançaram. Então eu acho que é legal essa

visibilidade, mas também não pode se achar que ‘ah coitadas das favelas são um lixo da

pobreza’...não, eu não acho que seja. Mas eu acho que é isso (Representante do Territórios

da Paz 3, Favela da zona Norte).

Os equipamentos do CRAS, por exemplo, tem a responsabilidade de atender a um

território muito maior do que as favelas nas quais estão inseridos. Estão voltados para

população de baixa renda, esteja ela em favelas ou não. Entretanto, sua base está localizada

dentro da principal favela da região pela qual é responsável, e mesmo suas ações de “CRAS

itinerante” privilegiam os espaços de favela.

Mas as diferenças de valorização também se dão entre diferentes favelas, e talvez seja

este o elemento que melhor explica as diferenças que encontrei na relação entre Estado e

favelas entre a favela da zona Sul e a favela da zona Norte. Todos reconhecem que existem

favelas mais “populares”, que recebem maior atenção. Por aparecem na mídia com

frequência, o que muitas vezes relaciona-se ao fato de estarem localizadas em regiões mais

ricas da cidade, o território e a matéria destas favelas ganham mais visibilidade e, portanto,

Page 201: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

200

são mais valorizados enquanto capital espacial. Tornam-se, assim, mais disputado, o que gera

um sentimento de esquecimento nas demais favelas. Nas UPPs, os policiais reconhecem esta

diferença:

Facilidade aqui é porque eles são observados. De mais investimento por ser Zona Sul.

Então, facilidade para eles é essa, de morar pessoas aqui no entorno que são da elite

influente, né? Então é ruim para eles que aqui seja uma bagunça. Eles querem ver que tenha

um mínimo de organização para eles terem paz lá embaixo, entendeu (Representante da

UPP 2, Favela da zona Sul).

As diferenças em termos de valorização do capital espacial nas favelas aqui

pesquisadas foi, desde o início, bastante gritante. A quantidade de agentes do Estado em cada

uma das favelas era perceptivelmente desigual: enquanto a favela da zona Sul contava com a

ação da UPP, UPP Social, Territórios da Paz, CRAS, PAC, Clínica da Família, CIEP, dente

outros, a favela da zona Norte contava apenas com uma UPP, as equipes da UPP Social e do

Territórios da Paz, CRAS, e o programa Cimento Social. As reclamações dos moradores a

respeito, principalmente, da ausência do PAC e de uma Clínica da Família eram constantes,

mas não ajudavam a resolver a questão: “O PAC passou de helicóptero [pela favela da zona

Norte]”. (Morador 12, Favela da zona Norte). Escolas também não havia ali. E os próprios

policiais se referiam à favela da zona Sul como “a menina dos olhos do Estado”

(Representante da UPP 14, Favela da zona Sul). O mesmo acontecia em termos de ONGs:

enquanto a favela da zona Sul contava com mais de 60 ONGs em seu espaço, a favela da zona

Norte, tinha no máximo duas, conforme explicou um representante da UPP Social:

“Pouquíssimas. Pouquíssimas, raras. Você pode colocar abrangendo porque se for da

comunidade, do morro, que é fixo no morro, que pertence ao morro, são duas, no máximo”

(Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte).

Vale ressaltar, ainda, o importante papel desempenhado pela mídia, e sua influência na

dinâmica de capitais. As favelas que mais aparecem na mídia são aquela que recebem mais

intervenções públicas. Este é um fato relatado por moradores, que brincam em arrumar algum

escândalo para tornar a sua favela “famosa”.

Assim como o capital espacial de algumas favelas é mais valorizado pelo Estado, este

também se torna mais valorizado pelo tráfico de drogas, porque em geral as favelas com mais

visibilidade também são aquelas que dão um retorno maior ao tráfico, em termos de venda de

drogas. Portanto, as disputas por espaço entre tráfico e Estado nestas favelas são mais

acirradas. Os policiais reconhecem esta diferença, e apontam a existência de favelas mais

Page 202: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

201

tranquilas e mais violentas, deixando clara a sua preferência, embora não tenham esta

autonomia de escolha, por trabalhar em favelas onde os conflitos são menos frequentes:

Assim, como eu te falei, nessa experiência de quatro anos, é importante salientar que cada

comunidade tem a sua particularidade, né. Umas são muito tranquilas no relacionamento,

como Dona Marta, o Tabajaras, bem tranquilo. Algumas UPPs o clima ainda é tenso, né,

como hoje no Complexo do Alemão, se não me engano, o Macacos, da Tijuca ainda tem

um pouco de de de resistência (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).

Este fato também se mostrou visível ao longo de minha pesquisa de campo. Desde o

início a favela da zona Sul destacou-se como um território onde as disputas entre tráfico e

UPP eram mais acirradas, e o meu convívio com o tráfico nesta favela foi bem mais intenso.

No fim de 2013, quando as disputas se acirraram em ambas as favelas, foi na favela da zona

Sul onde vive os momentos de maior tensão, e presenciei alguns tiroteios. Na favela da zona

Norte, os confrontos diretos entre UPP e traficantes eram bem mais escassos, e os policiais

afirmavam que os traficantes locais eram traficantes “pé de chinelo”. Com um capital espacial

mais valorizado, as disputas pelo território na favela da zona Sul mostravam-se, naturalmente,

mais intensas. Embora reconheça-se que não é este o único fator explicativo para disputas

mais acirradas com o tráfico, a valorização do capital espacial revelou-se como um fator

explicativo importante nesta pesquisa, e ajudou a esclarecer as diferenças entre as duas

favelas.

Bourdieu (2014) explica que, por meio da redistribuição de recursos o Estado produz

um efeito simbólico, ou seja, quando seus agentes redistribuem o capital econômico que

possuem para a população transformam-no, segundo Bourdieu (2014), em capital simbólico.

Nas palavras do autor:

Hoje se sabe que coisas que apareceriam como desperdício – o fato de redistribuir

cobertores ou inhames – são, na verdade, uma forma de acumulação. A alquimia simbólica

consiste justamente na redistribuição: eu recebo dinheiro e, ao dá-lo de novo, o transfiguro

em doação criadora de reconhecimento – podendo a palavra ‘reconhecimento’ ser tomada

nos dois sentidos do termo, no de gratidão e no de reconhecimento de legitimidade. A

lógica da centralização leva assim, através da redistribuição, a uma nova forma de

acumulação: uma acumulação de capital simbólico, de legitimidade (BOURDIEU, 2014, p.

360).

Nesse sentido, para Bourdieu (2014) a redistribuição produz legitimidade. Segundo o

autor, este processo se apresenta como algo ambíguo, pois é um processo em que o capital vai

ao capital: “mesmo quando redistribui o rei não para de acumular. Até a redistribuição é uma

das formas por excelência de acumulação, pela transmutação do capital econômico em capital

simbólico.” (BOURDIEU, 2014, p. 361). É por meio do capital econômico que o Estado

Page 203: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

202

consegue também acumular o capital simbólico que, segundo Bourdieu (2014), situa-se na

ordem do conhecimento e do reconhecimento e se apresenta também na forma de um acúmulo

de legitimidade.

Indo ao encontro de Bourdieu (2014), o que aqui se pretende mostrar é que quando o

processo de redistribuição se dá por meio de um acúmulo intermediário do capital espacial,

aumenta-se o potencial de transformação de capital econômico em capital simbólico. No

campo burocrático do Estado em ação nas favelas, os agentes capazes de transformar o seu

capital econômico em capital espacial, ou, dito de outra forma, aqueles que redistribuíram o

capital econômico por meio da ocupação do território ou de transformações na materialidade

do espaço, foram aqueles que também apresentaram maior acúmulo de capital simbólico,

observado pela maior legitimidade que estes agentes possuíam perante a população.

O capital espacial parece ser especialmente valorizado, e ampliado em seu potencial de

transformação em capital simbólico, quando se trata de sua interface com campos como as

favelas. Conforme retratado no capítulo anterior, as favelas, com suas lógicas de “lutas”, são

ainda marcadas por uma série de necessidades básicas não atendidas, o que as impõe um

senso de urgência, um imediatismo. Dentro deste contexto, compreende-se que a apresentação

de resultados concretos, mais imediatamente visíveis, seja mais valorizada do que, por

exemplo, as redes de relações sociais duráveis que acabam por estabelecer no longo prazo

com outros agentes que acumulam capital social.

Assim, não obstante o baixo volume de capital social acumulado pela UPP, o

reconhecimento deste agente diante dos moradores era inquestionável, mesmo por parte

daqueles que apresentavam as mais diversas críticas, que iam desde a antipatia dos policiais

ao controle da vida cultural da favela. A legitimidade do programa era revelada nas falas dos

moradores que sempre apontavam a UPP como “o Estado” na favela e reconheciam,

invariavelmente, que o programa trouxe melhorias importantes. “Mas o fato de você ter o

Estado aqui, a UPP, eu acho que é importantíssimo. UPP está aqui. (...) Mas tem o Estado

representando, sendo representando aqui dentro. Eu acho que é importante” (Morador 8,

Favela da zona Sul), declarou uma moradora. Outro morador assim descreveu as mudanças

trazidas pela UPP: “Imagina uma nuvem que tem preta em cima da comunidade e você vai e

limpa ela. É isso, foi isso que a UPP fez” (Morador 19, Favela da zona Sul).

Após apresentar as suas mais diversas críticas ao programa, os moradores sempre me

lembravam que agora podiam circular pelo espaço, que não havia mais tiros, e que hoje seus

filhos podiam viver em uma favela “sem armas” e sem drogas – estes aspectos eram

Page 204: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

203

reconhecidos, de uma forma ou de outro, por quase todos os moradores com os quais

conversei. Conforme explicitado anteriormente, a invisibilidade da arma policial também

aponta para alguma legitimidade das UPPs nas favelas.

Os policiais atribuíam a aparente legitimidade do programa à sua presença física no

território e as inegáveis transformações materiais que este trouxe para a favela:

O que acontece, foi aquilo que falei, quem tem estrutura física dentro do território, é a UPP

que está aqui pintada de azul e branco e todo mundo tem como referência. Quem está

fardado na rua com a bandeira do Estado no ombro? É o policial, então ele acaba sendo

referência, enquanto que de repente a UPP Social e o Território da Paz vêm e executam o

trabalho deles, mas não acabam se tornando referência, porque não estão aqui presentes 24

horas (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).

Como consequência do reconhecimento das UPPs como “o Estado” na favela, as UPPs

e os moradores adquiriram o hábito de demandar dela aos mais diversas funções, mesmo

aquelas que eram claramente atribuições de outros agentes do Estado. Quando questionado a

respeito das funções que assume enquanto representante da UPP, um policial respondeu:

Várias, várias! Presidente da Light, da Cedae, da Comlurb... (risos). São várias né, porque a

referência que os moradores têm do Estado, é esse prédio físico da UPP. Então a procura,

cadê o Estado?! Está lá azul e branco pintado lá e firme, porque a CEDAE não está aqui

fisicamente ou a Comlurb não está aqui, então você acaba sendo a referência, (...) então

aqui se acaba fazendo todas estas e mais relacionamento com o público, instrução,

procedimentos operatórios, procedimentos administrativos, mas o principal é você acabar

sendo referência para os outros segmentos públicos que você não esperava ser, você como

Major da PM não esperava que ninguém um dia fosse te procurar porque está faltando água

ou porque a Comlurb não limpou a caçamba de lixo. (Representante da UPP 3, Favela da

zona Sul).

Os representantes do PAC, como visto anteriormente, também não conseguiram um

grande acúmulo do capital social, principalmente em decorrência dos constantes conflitos

com os moradores, devido às tentativas de remoção. Entretanto, o programa era reconhecido

mesmo por aqueles que brigavam nas reuniões: “O PAC em si ele veio, fez uma melhora. Fez

ou não fez? Fez uma melhora. Né, como eu falei, estou sentado em cima do antigo trilho que

levava o bondinho para cima do morro (...) esses olhos aqui viram, não foi ninguém que

contou, eu estava aqui. É, eu vi. Está mudando” (Morador 9, Favela da zona Sul).

UPP Social e Territórios da Paz, não obstante sua relação de proximidade e amizade

com os moradores das favelas, já não tinham o mesmo reconhecimento. Os moradores eram

unânimes em afirmar que não conseguiam enxergar o que os dois programas traziam para

eles: “a UPP Social, a muito tempo se fala de levantamento de dados, que ela tá dando

Page 205: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

204

encaminhamento, isso e aquilo, mas eu não vi nada de concreto.” (Morador 10, Favela da

zona Sul). E o mesmo se afirmava do programa Territórios da Paz: “Eu vejo a [Valéria]

também, um pouquinho, como a UPP Social. (...) A UPP Social é município e a [Valéria] é do

Estado. Mas, não vejo grandes acontecimentos não” (Morador 10, Favela da zona Sul).

Embora o convívio fosse constante, não sabiam nem mesmo precisar o que aqueles

agentes do Estado faziam ali:

Eu gostaria de saber qual o trabalho dela aqui dentro. Porque todas as agentes de campo que

chegou aqui, pra mim, (...), eu não vi nada de útil. “Ah, vou trazer isso aqui pra você que

vai ser um legado da UPP Social”, eu não vi isso. Então não sei que tipo de relação ela tem

aqui dentro da comunidade, com quem, aonde. Não sei (Morador 24, favela da zona Sul)

O mesmo desconhecimento se via em relação ao programa Territórios da Paz: “O

Territórios da Paz aqui não tem muito, eu não vejo muita coisa deles, não. Não sei nem na

realidade o que eles estão fazendo. O que eles fazem” (Morador 16, favela da zona Sul).

O CRAS, por sua vez, tinha grande parte do seu reconhecimento decorrente do Bolsa

Família: “Até na divulgação do CRAS, reconhecimento das coisas, porque assim, quase

ninguém sabe o que é o CRAS, né? A pessoa sabe assim, onde faz o bolsa família. Aí onde

faz o bolsa família, todo mundo sabe” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte).

Como seus agentes conseguiam antecipar, o Bolsa Família os “salvava”. Mas para os

moradores este agente se resumia a um provedor do Bolsa Família dentro da favela: “O CRAS

é igual ao bolsa família” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte).

Mas aqui também, no que diz respeito às relações entre as espécies de capital, a

conversão do capital econômico em capital simbólico, por meio do acúmulo de capital

espacial, parece se dar de uma forma cíclica. O fechamento do ciclo se dá ne medida em que a

legitimidade dos programas também leva ao acúmulo do capital econômico, tendo em vista

que programas com maior legitimação recebem mais recursos públicos, e conseguem atrair

doações, como é o caso do financiamento que o Eike Batista deu às UPPs. Os representantes

da UPP fazem uma ligação quase direta entre a legitimidade do programa e os recursos nele

investido: “porque eu vejo que isso aqui é o, é a Menina-dos-olhos da polícia, né. Nada é mais

importante para a polícia hoje do que as UPPs. Então é bom você trabalhar um projeto que

você tem investimentos” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). É em parte porque

obra traz reconhecimento e porque as UPPs tornaram-se o grande representante do Estado nas

favelas, que são estes os programas que recebem mais investimentos, ou que conseguem

acumular grande volume de capital econômico. A relação cíclica entre as espécies de capital é

ilustrada na Figura 10 a seguir:

Page 206: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

205

Capital Simbólico Capital Econômico

Capital Espacial

Figura 10. Relação entre capital econômico, capital espacial e capital simbólico

Portanto, o que se observou foi que os programas com maior concentração de capital

econômico tem mais facilidade para redistribui-lo por meio do acúmulo do capital espacial,

que pode se apresentar na forma de ocupação do espaço pelos agentes ou da apresentação de

resultados materiais e transformações materiais do espaço. Quando esta é a via de

redistribuição privilegiada, amplia-se o potencial de transformação do capital econômico em

capital simbólico, o que corresponde a uma maior legitimidade dos agentes. Por sua vez, a

legitimidade serve como um atrativo para maiores investimentos financeiros nos agentes,

contribuindo para um maior acúmulo de capital econômico. Assim, fecha-se um ciclo de

legitimidade dos agentes.

A UPP é o agente do campo que parece apresentar maior legitimidade perante os

moradores (embora ainda seja questionada em alguns momentos), tendo em vista que acabou

por se tornar “o Estado” na favela e que é apontada pelos moradores como o agente que

trouxe mais transformações “visíveis” para as favelas, tanto que é apontado como um “divisor

de águas” na história das favelas. De acordo com o descrito, apresenta-se também como o

agente que mais diretamente ameaça o poder do tráfico, em sua busca pelo acúmulo do capital

da força física. Como forma de confrontá-la, o tráfico apela para a principal via sob a qual

ainda tem algum controle, e tenta restringir o seu acesso ao capital social, por meio de

ameaças e retaliações a moradores que, de alguma forma, estabeleçam contato com a polícia.

Entretanto, conforme mostrado, embora o capital social seja importante para dar acesso ao

Page 207: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

206

capital informacional, com o qual estabelece uma relação de retroalimentação, o seu baixo

volume não restringe o acesso ao capital espacial, que lhe dá legitimidade, tendo em vista que

este compõe um outro ciclo de capitais – aquele no qual capital econômico, capital espacial e

capital simbólico são convertidos nesta ordem.

A partir das análises de distribuição de capitais, é possível aproximar-se do

posicionamento dos agentes do campo em um continuum que tem como extremos as posições

de incumbentes e desafiadores. Os incumbentes, conforme Fligstein e McAdam (2012),

ocupam as posições dominantes no campo, e os desafiadores, em posições inferiores,

aguardam oportunidades para tentar reverter a ordem do campo. Embora se reconheça que as

estruturas do campo são extremamente mais complexas do que a simples dicotomia

incumbentes/desafiadores, o posicionamento dos agentes neste continuum, de acordo com o

volume de capital que possuem, já nos antecipa muito sobre esta estrutura e nos indica uma

das suas características mais importante: quem são aqueles que mais se aproximam de uma

posição de dominantes neste campo. O posicionamento aproximado dos agentes pode ser

observado na Figura 11 a seguir:

Incumbentes Desafiadores

UPP PAC CRAS UPP Social

Territórios da Paz

Capital Simbólico

Capital Econômico

Capital Espacial

Capital Social

Capital Informacional

Figura 11. Posição aproximada dos agentes no campo burocrático do Estado

Na fala dos agentes a respeito de programas que sucederam a entrada das UPPs, como a

UPP Social e o Territórios da Paz, está presente o reconhecimento da necessidade de se

apresentar como um contraponto à figura do capitão, alguém que tivesse recursos de poder e

conseguisse projetar uma ascendência similar à do capitão dentro do espaço das favelas. No

entanto, com base na análise que apresentei aqui, tais programas parecem não estar sendo bem

sucedidos em conseguir se apresentar como uma oposição legítima à UPP, porque não

conseguem concentrar as espécies de capital capazes de ser convertidas em capital simbólico.

Estão, isto sim, aguardando um momento propício para tentar reverter a ordem do campo.

Page 208: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

207

5.4 Conclusão

Este capítulo teve por objetivo analisar como os agentes do campo burocrático do

Estado se fazem presentes no espaço social de falas, no contexto do programa das UPPS. Para

tal, foram analisadas as lógicas institucionais por trás das ações dos agentes, bem como a

concentração de capitais entre os diversos agentes.

Nesse sentido, foram analisados os conjuntos de premissas nas quais se pautam as

ações dos agentes, e pode-se perceber que cada um desses agentes pauta-se em lógicas

institucionais diferentes, e muitas vezes conflitivas, ao desempenhar suas ações. Lógicas

distintas podem servir para inibir relações de cooperações entre os agentes e parecem tornar

as disputas mais acirradas. Da mesma forma, agentes que se pautam em lógicas semelhantes

ou não conflitivas, como é o caso da UPP e do PAC, encontram a possibilidade de atuarem de

forma conjunta. Entretanto, mesmo agentes com lógicas semelhantes, como UPP Social e

Territórios da Paz, disputam entre si. Este fator parece ser explicado pela semelhança dos

programas em seus objetivos finais, e por recorrerem a uma mesma espécie de capital, qual

seja, o capital social, para tentarem galgar posições no campo.

Além disso, as estratégias de legitimação utilizadas pelos agentes, e aqui analisadas

por meio da análise retórica, já antecipam a posição dos agentes, na medida em que mostram

que enquanto alguns agentes apenas reforçam sua legitimidade (como a UPP ou o PAC)

outros preocupam-se em justificar a falta dela (como a UPP Social, o Territórios da Paz e o

CRAS).

Mas só foi possível uma maior aproximação das posições dos agentes no campo, por

meio da análise da distribuição de capitais. Com base nesta análise, pode-se perceber que os

agentes dominantes no campo, como a UPP e o PAC, parecem ser mais ricos em capital

econômico, espacial e, como consequência, simbólico, e que os agentes desafiadores, como

CRAS, UPP Social e Territórios da Paz, possuem um acúmulo maior dos capitais social e

informacional. Há uma dificuldade particular, por parte dos agentes que se aproximam das

posições de dominantes no campo, em acumularem o capital social, devido às retaliações do

tráfico, que os enxerga como ameaças, em suas posições de legitimidade. Já os agentes

desafiadores, tem dificuldades em alcançar a posição de dominantes pois, sem legitimidade, é

difícil acumular o capital econômico, o capital espacial, que só é possível com recursos

financeiros e, assim, o capital simbólico. Por isso, acabam disputando entre eles a posse do

capital social, que está ao seu alcance, o que explica as disputas mais acirradas entre

programas como o Territórios da Paz e a UPP Social.

Page 209: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

208

A análise da dinâmica de capitais vai ao encontro das estratégias de legitimação

utilizadas pelos agentes. Os argumentos de presença, reforçados pela maior parte dos agentes,

fosse para justificar a sua legitimidade ou a falta dela, vão ao encontro da valorização do

capital espacial, tendo em vista que apontam para resultados concretos dos programas ou para

a possibilidade de mobilidade no espaço, como forma de buscar sua legitimação por meio da

retórica. Já os agentes que recorrem ao capital social, que lhes é acessível, buscam lançar mão

de argumentos pautados no Pathos, ou seja, em afetos e emoções, para ressaltar um vínculo

afetivo com os moradores, por exemplo, como estratégia de legitimação. Nesse sentido, as

análises das estratégias de legitimação dos agentes e da dinâmica de capitais parecem se

complementar e apontam para uma mesma direção. A Tabela 20 a seguir apresenta uma

consolidação e síntese dos resultados encontrados em ambas as análises apresentadas neste

capítulo:

Tabela 20. Síntese dos agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas

Lócus Objetivo Ações Estratégias

de Legitimação

Capitais Lógicas

UPP Estadual Retomada do

Território

Transferência de valores e

ostensividade

Logos, Presença e Ethos

Espacial, Econômico e

Simbólico

Lógicas civilizatória

e de confronto

PAC Federal Ampliar a

infraestrutura das favelas

Transferência de valores

Planejamento sem

participação dos moradores

Presença, Pathos e Ethos

Espacial, Econômico e

simbólico

Lógica civilizatória

UPP Social Municipal Encaminhamento

de demandas

Participação dos moradores e gestores de campo nas tomadas de decisões; Produtos

assinados pelos moradores

Logos , Presença e

Pathos.

Social e Informacional

Lógica da inversão

Territórios da Paz

Estadual Fortalecimento de

Redes

Participação dos moradores e gestores de campo nas tomadas de decisões;

Fortalecimento das redes para

que os moradores façam suas

próprias demandas;

Logos e Presença

Social e Informacional

Lógica da Inversão

Page 210: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

209

Produtos assinados pelos

moradores

CRAS Municipal Antecipação de

demandas; Acesso a benefícios.

Divulgação dos direitos da população;

Participação em eventos da

comunidade.

Presença e Pathos

Capital Social e

Informacional

Lógica da Prevenção

Outro ponto de destaque é a diferença de valor do capital espacial de diferentes

favelas. As duas favelas aqui pesquisadas tem, ao que tudo indica, discrepâncias em seu

capital espacial: a favela da zona Sul parece ser mais valorizada. Neste sentido, não apenas a

favela da zona Norte atrai menos agentes do campo, como também aqui as disputas tornam-se

menos acirradas, tanto entre os agentes e o tráfico, quanto entre os agentes em si, sendo

possível até que se formem parcerias entre programas que competem, como a UPP e o

Territórios da Paz. Tem-se, assim, que o valor do capital espacial também ajuda a intensificar

ou não as disputas do campo, influenciando a intensidade das lutas.

Em síntese, os agentes, com lógicas distintas, tendem a disputar entre si. Suas posições

no campo, já apontadas pelas estratégias de legitimação, dependem da espécie e do volume de

capital que conseguem acumular. Nas favelas, as disputas e diferenças de posição aqui

descritas não passam despercebidas, e produzem os seus efeitos sobre o espaço social. E o

intermediário nesta dinâmica são os processos de organizar, que serão discutidos no próximo

capítulo.

Page 211: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

210

6 DISPERSÕES, LENTIDÃO, DESCONTINUIDADES E (DES)MATERIALIZAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE O CAMPO BUROCR ÁTICO DO ESTADO E OS PROCESSOS DE ORGANIZAR

Foi naquela mesma audiência pública, narrada em capítulo anterior, que eu comecei a

refletir com mais afinco a respeito da aparente contradição com a qual me deparara: o Estado

está, definitivamente presente na favela, mas os moradores ainda apresentam demandas

básicas de condições de vida. Saí daquele teatro intrigada com a questão: o Estado está

presente, mas o que ele faz aqui afinal? Por que não é entregue aos moradores ao menos o

básico do que eles necessitam? Era preciso olhar para as ações daqueles agentes na favela,

tarefa que não se mostrou nada simples diante da minha tentativa inicial de analisar cada uma

das “organizações” que estavam ali.

Em meus esforços para acompanhar os agentes em campo, os quais naquele momento

para mim ainda eram sinônimos de “organizações”, percebi que assim como era impossível

enxergar “o Estado” como uma entidade bem definida também era impossível enxergar “a

organização”. O que era o PAC, afinal? A SEOBRAS, a EMOP? A empresa privada

contratada para realizar as atividades da frente social e a construtora contratada para realizar a

obra estão dentro ou fora desta “organização” chamada PAC? E a organização dos moradores

contratada pela frente social para fazer mutirões de limpeza? Conforme lembrou Czarniawska

(2010), as fronteiras das “organizações” não são claras e bem definidas como nos fazia crer a

abordagem sistêmica, assim faz mais sentido falar em processos de organizar, opção que vem

sendo adotada por muitos pesquisadores em estudos organizacionais, dentro de uma

perspectiva processual.

Embora a relação entre a noção de campo e de processos de organizar pareça fazer

sentido, há uma escassez de trabalhos que busquem analisar a relação entre os dois conceitos.

Buscando preencher esta lacuna teórica que se apresenta como uma alternativa promissora

para melhor atender ao meu problema de pesquisa inicial, e buscando passar de um nível

macro para o micro, direcionando meu olhar para as ações dos burocratas de rua, me

proponho aqui a responder a uma segunda pergunta de pesquisa, como um desdobramento da

pergunta inicial: qual é a relação entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e

os processos de organizar dos agentes do campo?

Para isso, apresentarei brevemente a noção de processos de organizar, e a perspectiva

processual da qual provem o conceito. Com base neste conceito, apresentarei os resultados da

minha pesquisa no que dizem respeito à forma como as regras do campo conduzem a

Page 212: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

211

processos de organizar lentos e descontínuos, à influência das lógicas dos agentes na

produção de processos de organizar dispersos e à incorporação de determinados processos de

organizar pelos agentes em decorrência das espécies de capital que pretendem acumular.

Termino mostrando como a posição privilegiada de um agente no campo pode levar a um

acúmulo de processos de organizar. Em termos metodológicos, busquei trabalhar aqui com as

notas de campos e entrevistas com moradores e agentes do Estado gravadas e transcritas, as

quais foram analisadas com base em teoria fundamentada.

6.1 Onde estão as Organizações? Assumindo o Conceito de Processos de Organizar

Era uma segunda-feira à noite, e uma das reuniões de integração do PAC tinha

acabado de se encerrar. Como de costume, eu ajudava os representantes do PAC que

coordenavam a reunião a guardar o material e recolher o lixo do lanche, para que pudéssemos

descer o morro. Como naquele dia o trabalho era pouco, uma das representantes da frente

social me convidou para acompanha-la até a porta da sala, pois ela ia fumar um cigarro e

queria conversar. Não a conhecia há muito tempo, e aproveitei para pergunta-la sobre sua

trajetória profissional, sobre o seu histórico anterior ao PAC, agora em um contexto mais

íntimo, afastada dos demais. Depois de me narrar brevemente a sua história, me interrompeu

antes que eu emendasse mais uma das minhas perguntas e, bastante fora de contexto,

esclareceu que não concordava com a forma como aquelas reuniões eram conduzidas, que não

concordava em “ensinar” aos moradores como eles deveriam viver: “se eles querem botar

varal para fora, quem sou eu pra dizer que fica feio?” (Notas de Campo, 23/09/2013). Embora

tenha evitado me posicionar diante do comentário, deixei escapar a minha concordância em

um riso aliviado.

O fato é que as “organizações” que eu tentava analisar, por assumi-las como agentes

do campo, tinham elas mesmas suas próprias disputas inerentes, que iam desde de simples

discordância a respeito de como agir à criação de subgrupos informais, muitas vezes

conflitivos. Quando eu passava de um nível macro de análise, que dizia respeito ao campo,

para um nível micro, para olhar para as ações desempenhadas pelos burocratas de rua, o

denominador comum entre eles apontado no capítulo anterior para retratar as lógicas

institucionais dos programas e a forma como cada um deles se diferencia, com base em suas

características principais, perdia-se de vista. A visão das organizações que a abordagem

sistêmica ajudou a cunhar, pautada no “biologismo” inerente à perspectiva, nos leva a pensar

as organizações sem suas contradições internas e como objetos bastante previsíveis. Mas não

Page 213: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

212

foi este tipo de previsibilidade e uniformidade que eu encontrei em cada uma das assumidas

“organizações” que eu observava ali.

O dinamismo do campo retrato no capítulo anterior também parecia se refletir nas

ações dos burocratas de rua. A presença de subgrupos que disputavam ou ao menos

discordavam a respeito da forma como deveriam agir era comum. Nas UPPs, os moradores

logo me apontaram a diferença entre o “bom policial” e o “policial violento”. Sabiam quem

era quem, e os horários dos plantões nos quais tinham que se preocupar: “já conseguem fazer

essa diferenciação, discernir, né, que esse aqui dá para conversar, aquele lá não dá, hoje é o

plantão do fulano de tal, não dá para brincar no tatame, entendeu” (Morador 27, favela da

zona Norte). Mas a minha surpresa veio quando percebi que este mesmo reconhecimento era

compartilhado pelos policiais. Ao encerrar uma entrevista com um policial, este pediu que eu

desligasse o gravador e comentou: “então, eu pedi pra você desligar o gravador pra te dizer

que eu acho que você também deveria entrevistar policiais mais truculentos. Pesquisa é

pesquisa. Você tem que ver como é que é” (Notas de Campo, 27/09/2013). Comecei a

observar que a categoria do “policial truculento” fazia parte do vocabulário dos mais diversos

policiais, que sabiam me apontar quem a ela se enquadrava. Outro subgrupo importante, alvo

de muitas críticas, é o subgrupo das “FEMs”, a policial feminina. Vistas pelos demais como

uma policial que não consegue “bancar”, ou seja, que “não vai sustentar, não vai aguentar o

serviço” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul), as mulheres nas UPPs usam das

mais diversas estratégias para reafirmar o seu valor, desde a adoção de ações mais violentes,

até a união para se fortalecerem enquanto um grupo. Não é à toa que foi este subgrupo unido

que denunciou o “caso Amarildo23”, o que só serviu para aumentar as críticas às “FEMs” nas

UPPs onde eu pesquisava. Isso para não mencionar as disputas entre policiais dos batalhões e

policiais das UPPs (tratada com mais detalhes no próximo capítulo), tendo em vista que os

primeiros consideram os segundos “mariquinhas”, policiais mais “frouxos”, e apresentam

uma grande resistência ao programa das UPPs. Embora de início possa-se defender que estes

não compõem a mesma “organização” – ao se estabelecer uma separação entre batalhão e

UPP – pude perceber que eles se misturam na mesma unidade em muitos momentos, desde o

estágio inicial dos policiais da UPP em batalhões até a transferência de policiais antigos dos

batalhões para a UPP.

Mas a disputa entre subgrupos não é exclusiva das UPPs. No CRAS, há uma disputa

interna entre “contratados” e “concursados”, e na medida em que os primeiros sentem-se 23 Caso de um morador da favela da Rocinha cujo desaparecimento foi atribuído a policiais da UPP local, de grande destaque na mídia no ano de 2013.

Page 214: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

213

desvalorizados, passam algumas vezes a descontar o seu descontentamento nos segundos que,

por sua vez, tendem a responder tratando-os como inferiores porque terceirizados. Os

conflitos foram retratados pelas diretoras das duas unidades pesquisadas. A respeito desta

questão, uma funcionária explicou:

Você tem que estar, compreender e sair do contexto para você entender que não é, é um

sistema perverso que está fazendo isso com os profissionais. Não é a minha colega que está

do meu lado que está me sacaneando. É o sistema. É ele que está sendo sacana comigo,

entende, e às vezes as pessoas não se dão conta disso (Representante do CRAS 3, Favela da

zona Norte).

Na UPP Social, a disputa entre subgrupos que discordam entre si fica evidente na fala

de um dos representantes do programa, que se refere, especialmente, ao período de troca da

presidência da UPP Social:

O Ricardo Henriques que foi o presidente do IPP e também um dos idealizadores do

programa, lembra que eu te contei que a Silvia Ramos tinha uma plataforma e o Jaílson,

outra? O Jaílson, Ricardo, todo mundo da patotinha que era ligado também ao grupo do

Adilson Pires. (...) Quando o Adilson Pires veio como vice, vice-prefeito, é, viu aquela,

voltou, surgiu novamente da UPP Social e do, para dentro mesmo da Secretaria. Então veio

novamente aquela coisa do Jaílson mudar, chegar e pegar a plataforma (...) da UPP Social.

Ficou aquele bafafá, se vai acontecer ou não, aquela coisa meio louca, e um grande mal-

estar dentro, que não sabe se isso mesmo ia acontecer, o Ricardo Henriques viu que ele não

conseguiria acompanhar essa briga e então a Eduarda La Rocque que foi Secretária de

Fazenda, assumiu a UPP Social (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte)

Também foram comuns relatos a respeito de disputas com os próprios dirigentes, ao

ditarem ordens de cima com as quais os demais grupos não concordavam. Os policiais das

UPPs em diversas ocasiões desabafaram suas discordâncias em relação à forma como a

unidade estava sendo conduzida ou às ordens ditadas pelo comandante. Em algumas,

chegaram a desobedece-las. No Territórios da Paz os agentes chegavam a falar em um

movimento de resistência a ordens com as quais não concordavam:

Então a gente tem os movimentos de resistência, quando a gente acha que que o grupo que

chegou, não é um grupo, assim porque mudança de grupo mesmo só teve essa, né. Mas

assim quando existe alguma demanda política que chega para a gente, a gente fala ‘não

vamos fazer’, entendeu. Às vezes a gente consegue, às vezes não. Mas a gente tem os

movimentos de resistência que permitem que a gente mantenha mais ou menos as nossas

características fundamentais, entendeu (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da

zona Norte).

Embora tenha-se identificado no capítulo anterior as lógicas institucionais

predominantes que guiam cada um dos agentes sociais, quando se olha para as ações

Page 215: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

214

desempenhadas pelos burocratas de rua perde-se de vista esse denominador comum, e as

divergências saltam aos olhos, mesmo entre burocratas vinculados a um mesmo programa.

Os agentes que disputam no campo burocrático do Estado não são exclusivos de um

único campo, e é preciso considerar que em certa medida suas ações também estão pautadas

em lógicas difundidas em outros campos de poder. Os burocratas da UPP Social e do

Territórios da Paz, por exemplo, são, antes disso, parte do campo acadêmico, e foi com eles,

talvez, que eu pude mais facilmente me identificar, tendo em vista que as lógicas

predominantes nos campos acadêmicos dos quais fazemos parte nos impregnavam e

moldavam nosso agir, para além das lógicas dos programas em questão. Diversos programas

analisados contavam com moradores de favelas como parte de suas equipes de trabalho,

função em geral denominada de “agente comunitário” ou “agente de campo”. As UPPs,

embora não tivessem nenhum tipo de contratação especial de moradores de favela, contava

em sua equipe com diversos policiais nascidos e criados nas mais diversas favelas da cidade.

Era difícil distinguir o que os influenciava mais: a lógica da favela ou a lógica do campo

burocrático do Estado que compunham. Mais ainda, agentes dos próprio campo em questão

circulavam entre um programa e outro (e, portanto, mudavam de lógica?): representantes do

Territórios da Paz se demitiram do programa e ingressaram na UPP; a UPP Social tentava

contratar funcionários do Territórios da Paz para compor a sua equipe.

O próprio Bourdieu (2014, p. 429) reconhece a questão ao afirmar que “os diferentes

agentes são, portanto, ambíguos e divididos em relação a si mesmos”. Para ilustrar isto que

Bourdieu (2014) chama de “uma divisão em si e entre si”, o autor relata o exemplo dos

professores por ele entrevistados para a realização de sua pesquisa a respeito das

transformações nas universidades por consequência de maio de 1968. Segundo o autor,

dependendo da pergunta que fazia, os professores respondiam segundo princípios ou lógicas

diferentes: “Eles podiam responder como pais de alunos e eram, nesse momento, muito

severos diante do ensino; podiam responder como professores, e então eram muito

indulgentes; podiam responder também como cidadãos e podiam até assumir uma terceira

posição” (BOURDIEU, 2014, p. 423). Bourdieu (2014) explica que isto ocorre porque os

professores são, ao mesmo tempo, usuários do sistema de ensino, pais de alunos, e agentes

deste sistema, como professores. O mesmo é observado no campo burocrático do Estado, em

que aqueles que compõem o campo podem ser também moradores de favela, podem ser

também pesquisadores, que às vezes estudam o próprio campo, e podem ser, ainda, cidadãos

Page 216: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

215

que suportam ou não o “Estado”, muitas vezes engajando-se em manifestações contra o

próprio campo do qual fazem parte.

Além disso, cabe ressaltar, que a maior parte dos agentes do campo burocrático do

Estado em ação nas favelas eram recentes, nascidos há pouco, e por isso é difícil dizer em que

medida a lógica do campo já envolve os mais diversos burocratas, que não lhe são exclusivos.

Em um contexto de disputas, fronteiras mal definidas, circulação dos burocratas entre

campos e programas diferentes, sobreposição de campos, não existe, portanto, esta entidade

homogênea, previsível e bem definida a qual aprendemos a chamar de organização.

Czarniawska (2010) lembra que quando a teoria dos sistemas foi trazida para a administração

algumas mudanças e redefinições foram demandadas. A aplicação da perspectiva sistêmica

em administração exigiu que fossem criadas unidades independentes (entendidas como

sistemas abertos) separadas por fronteiras bem definidas de seu ambiente externo e

relacionada com ele por meio da adaptação (CZARNIAWSKA, 2010). Estas unidades foram

chamadas de “organizações”, um termo genérico derivado da expressão “organizações

formais” (CZARNIAWSKA, 2010). Surge, assim, uma tendência a acreditar que é impossível

pensar sem o conceito de “organização”, pois o mundo se faz perceber como organizado ou,

pelo menos, como organizável (TSOUKAS, 2013).

Nesse sentido, “(…) the insistence on studying ‘organizations’ can obscure key

instances of organizing: organizing without organizations; organizing among organizations;

and organizing in spite of organization”24 (CZARNIAWSKA, 2010, p. 144). Czarniawska

(2010) lembra que muitos processos de organizar acontecem entre organizações, seja na

forma de alianças ou esforços cooperativos, seja na forma de redes, ou de fusões e aquisições,

ou a cooperação entre várias partes de diferentes organizações formais, com o propósito de

desempenhar uma ação conjunta. Muitas destas formas, ou quase todas, se mostraram

presentes no campo aqui analisado, conforme apresentado no capítulo anterior. Processos de

organizar, lembra Czarniawska (2010), podem ocorrer dentro de organizações formais, mas

raramente estão contidos em seus limites, e impor esta moldura ao cenário exclui muitos

fenômenos novos que estão relacionados aos processos de organizar. A liberação dos

processos de organizar desta moldura artificial imposta pelo limite virtual de uma organização

formal, na visão da autora, pode ajudar os pesquisadores a examinar processos de organizar

que acabam escondidos quando se tem um foco nas organizações. Parafraseando o

24 Tradução Livre: a insistência em estudar as “organizações” pode obscurecer instâncias fundamentais dos processos de organizar: o organizar sem organizações; o organizar entre as organizações; e o organizar, apesar da organização.

Page 217: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

216

pensamento de Bruno Latour a respeito do estudo das sociedades, Czarniawska (2014) reforça

que os pesquisadores organizacionais precisam olhar para o performático ao invés de olhar

para as organizações; devem olhar para como as organizações são realizadas, como elas

acontecem, e não para como elas aparecem.

Guiados por uma lógica semelhante, vários pesquisadores em estudos organizacionais

vêm se pautando em uma perspectiva processual. Tem-se na perspectiva de Weick a respeito

do “organizing” e do importante papel do “sensemaking” a perspectiva processual mais

difundida, responsável por inspirar vários teóricos em estudos organizacionais. Mudando a

atenção das organizações como entidades acabadas para processos de organizar, Weick

(2010) ressalta os processos nos quais ações interdependentes são reunidas em sequências

sensíveis que geram resultados sensíveis.

Conforme explicam Langley e Tsoukas (2010), a noção de processo na qual se pautam

alguns estudiosos organizacionais, se define pela visão de mundo que vê o processo, muito

mais do que a substância, como a forma básica do universo. A orientação processual prioriza

a atividade em detrimento do produto, mudança em detrimento da persistência, novidade em

detrimento da continuidade, e prioriza temas como mudança, fluxo, ou rompimento

(LANGLEY e TSOUKAS, 2010). Assumindo o processo como fundamental, esta abordagem,

conforme Langley e Tsoukas (2010), não nega a existência de eventos, estados, ou entidades,

mas insiste em desempacotá-los para revelar a complexidade das atividades e transações que

se dão e que contribuem para a sua constituição. Em outras palavras, segundo Shotter (2010,

p. 71),

To adopt a process orientation is, we might say, to adopt a worldview – (…) – in which

instead of substance (stuff) we see processes; instead of already existing things we see

things in the making; instead of a succession of instant configurations of matter we see a

unitary, holistic, continuous flow of events, we see becoming rather than merely being.25

Bakken e Hernes (2006) explicam, com base no trabalho de Chia e Langley, a

contraposição existente entre uma abordagem que enfatiza o processo (uma visão “forte” de

processo) e uma abordagem que enfatiza a entidade (uma visão “fraca” de processo). Quando

a organização é vista como uma entidade, de acordo com os autores, o processo passa a ser

entendido como a interação entre entidades estáveis, previamente dadas, que embora

interajam de formas diversas, permanecem intactas. Já a perspectiva “forte” de processos

25 Tradução Livre: Adotar uma orientação de processo é, poderíamos dizer, adotar uma visão de mundo - (...) - em que, em vez de substância (coisas), vemos processos; em vez de coisas já existentes, vemos coisas na sua fabricação; em vez de uma sucessão de configurações instantâneas de matéria, vemos um fluxo de eventos unitário, holístico e contínuo; vemos o tornar-se, em vez de apenas ser.

Page 218: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

217

pensa as entidades como produtos dos processos, aqui assumidos como categoria central, e

não como anteriores a ele.

Conforme Langley e Tsoukas (2010), a noção de processos de organizar pauta-se em

uma ontologia relacional, a qual reconhece que nada do que existe possui uma existente

separada de suas relações com outras coisas e, assim, supera-se os dualismos entre mente e

corpo, razão e emoção, individual e coletivo, agência e estrutura. Conforme defende Peci

(2004), as perspectivas que superam tais dicotomias avançam ao deixar de considerar as

organizações como produtos dados, e abrem espaço para a inclusão de dimensões espaciais ou

relacionais na compreensão das organizações.

“A process point of view invites us to acknowledge, rather than reduce, the complexity

of the world” 26(LANGLEY e TSOUKAS, 2010, p. 3), e é, portanto, por meio dela que se

pretende aqui dar conta de analisar a complexidade do campo em questão, que colocou por

terra a tentativa inicial de se trabalhar com o conceito tradicional de “organização”. Conforme

lembra Shotter (2010), quando se passa a enxergar o mundo por meio da perspectiva do

processo, começa-se a ver uma realidade cada vez mais difícil de compreender, cada vez mais

distante do que se esperava. Ou, como reconhece o próprio Weick (2010, p. 102), “thinking

processually tends to be hard to articulate, hard to disseminate, hard to aply. Hard, but not

impossible”. É em uma tentativa de reconhecer a complexidade dos objetos de análise, mais

do que tentar reduzi-los a objetos simples os quais a ideia de “organização” daria conta de

explicar, que se parte aqui para a noção de processos de organizar.

Dentro de uma perspectiva processual, a organização é constituída pelos processos de

interação entre os seus membros, e o que chamamos “organização” é apenas uma abstração

(LANGLEY e TSOUKAS, 2010, p. 4). Conforme explica Alcadipani (2008, p. 20), “to talk of

organising is to consider that organisations are an active course of action, a continuous result

of a precarious and partial process”27. Ao abandonar a noção de organização, Czarniawska

(2010, p. 154) defende que os pesquisadores organizacionais deveriam estudar processos de

organizar (“organizing”), enquanto conexões entre ações:

My plea is to study organizing as the connection, re-connection, and disconnection of

various collective actions to each other, either according to patterns dictated by a given

26 Tradução Livre: Um ponto de vista processual nos convida a reconhecer, em vez de reduzir, a complexidade do mundo. 27 Tradução Livre: Falar em processos de organizar é reconhecer que as organizações são um curso de ação ativo, um resultado contínuo de processos precários e parciais.

Page 219: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

218

institutional order or in an innovative way. Such collective action need not be performed

within the bounds of a formal organization.28

A autora assume a noção de processos de organizar enquanto uma cadeia de ações,

enquanto conexões não lineares entre eventos que possuem um propósito (Czarniawska,

2014). Lindberg e Czarniawska (2006) explicam que o conceito de redes de ações tem como

pressuposto a ideia de que os processos de organizar demandam que diferentes ações coletivas

estejam ligadas entre si seguindo um padrão institucionalizado.

Segundo Gergen (2010), todas as ações requerem ações suplementares, e são, ao

mesmo tempo, suplementos de uma ação anterior, e é nesse sentido que o processo se dá. As

ações suplementares, segundo o autor, possuem duas funções: primeiro, a de conceder

significado ao que a precedeu, e segundo a de também demandar uma ação suplementar. O

significado que ela atribui permanece suspenso até que ela também receba o seu suplemento.

Em outras palavras:

More broadly, we may say that in daily life there are no acts in themselves, that is, actions

that are not simultaneously supplements to what has preceded. Whatever we do or say takes

place within a temporal context that gives meaning to what has preceded, while

simultaneously forming an invitation to further supplementation (GERGEN, 2010, p. 62)29.

Gergen (2010) lembra que as ações também impõem restrições ao tipo de

sumplementação que se dá, e estas restrições existem porque as ações já estão embebidas em

uma tradição de ações e suplementos. Nesse sentido, para o autor, nossas palavras e ações

funcionam de forma a impor restrições às palavras e ações dos outros, e vice e versa. Essas

restrições possuem a sua origem em uma história de co-ações precedentes (GERGEN, 2010).

Mas o autor lembra que palavras e ações funcionam apenas como restrições e não como

determinantes, porque as condições sob as quais se coordena as ações são raramente

constantes.

É importante lembrar, entretanto, que uma visão de mundo processual é apenas uma

orientação, e por isso pode ser desenvolvida em várias direções diferentes, explorando uma

grande variedade de temas em pesquisas organizacionais (LANGLEY e TSOUKAS, 2010).

Na visão Langley e Tsoukas (2010, p. 11), está faltando o “como” em estudos

28 Tradução Livre: O meu apelo é para estudar a organização como a conexão, re-conexão, e desconexão de várias ações coletivas umas com as outras, quer de acordo com os padrões ditados por uma determinada ordem institucional ou de uma forma inovadora. Tal ação coletiva não precisa ser realizada dentro dos limites de uma organização formal 29 Tradução Livre: De forma mais ampla, podemos dizer que na vida diária não há atos em si, ou seja, ações que não são simultaneamente suplementos para o que o precedeu. Tudo o que fazemos ou dizemos ocorre dentro de um contexto temporal que dá sentido ao que o precedeu, enquanto formando simultaneamente um convite para mais suplementação

Page 220: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

219

organizacionais: “In other words, more process organization studies are needed not simply to

satisfy academic curiosity about the nature of the world, but to better understand how to act

whithin it”. E são as pesquisas que enfatizam as atividades das pessoas, ou como estas

atividades contribuem para a criação de categorias estáveis, que se aproximam mais desta

perspectiva processual (LANGLEY e TSOUKAS, 2010).

Ainda, olhar para os processos de organizar dos agentes do campo burocrático do

Estado em ação nas favelas significa também olhar para aqueles indivíduos que são chamados

de burocratas de rua (street level bureaucrats). Burocracias ao nível de rua (street level

bureaucracies) são organizações hierarquizadas nas quais um alto grau de discricionariedade é

dado aos agentes que atuam em sua linha de frente, na base da hierarquia, por sua vez

denominados de burocratas ao nível de rua (street level bureaucrats) (PIORE, 2011).

Os burocratas ao nível de rua são compreendidos, na literatura que trata do tema, como

funcionários do setor público que lidam diretamente com os cidadãos em suas rotinas de

trabalho (LOYENS e MAESSCHALCK, 2010). São considerados agentes públicos que

representam a autoridade do Estado, são os intérpretes das políticas públicas, a interface entre

o governo e os indivíduos (BRODKIN, 2012). Exemplos de burocratas ao nível de rua são

professores, policiais, profissionais de saúde e de segurança em geral, para mencionar alguns

(LOYENS e MAESSCHALCK, 2010).

Brodkin (2012) lembra, entretanto, que no contexto atual, esta interface entre governo

e indivíduos não é feita apenas por burocratas ao nível de rua que fazem parte diretamente da

burocracia do Estado, mas também por representantes de ONGs ou de PPPs, por exemplo.

Este é o caso aqui, por exemplo, da empresa privada que atua na frente social das ações do

PAC ou da construtora licitada para realizar as obras do PAC.

São os burocratas ao nível de rua que estão no núcleo operacional do Estado, pois são

estes funcionários que mediam a formação das políticas e toda a dinâmica política e social de

forma mais ampla (BRODKIN, 2012). Portanto, estes são também os principais intérpretes de

processos de organizar em nome do Estado, aqueles que interagem diretamente com o espaço.

São estes agentes que desempenham os processos de organizar capazes de produzir o espaço

social, os quais serão analisados a seguir.

Page 221: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

220

6.2 Descontinuidades e Lentidão em Processos de Organizar

Naquela sexta-feira à noite em que me reuni aos moradores para participar da reunião

referente ao programa Cimento Social na favela da zona Norte, voltei para casa um pouco

abalada, refletindo a respeito da interrupção das ações do programa. Não se tratava

simplesmente do encerramento de ações que traziam melhorias superficiais; tratava-se de

ações voltadas para a construção de moradias, e enquanto o programa não fosse retomado

(isto se ele fosse um dia retomado) várias famílias não tinham onde morar e viviam de forma

improvisada com o auxílio do aluguel social. Não era a primeira vez que eu via um programa

público ou uma frente de um programa ser interrompido, mas o desconforto intenso que me

marcou naquela noite me fez refletir com mais cuidado a respeito das descontinuidades.

Como a esta altura já havia concluído, era preciso olhar para as ações, ou mais

precisamente para as conexões entre ações, conforme apontado por Czarniawska (2010), para

compreender os processos de organizar que davam os contornos do campo em análise, já que

era inviável enxergar ali as organizações bem definidas as quais eu fora procurar.

Mas conforme lembrou Czarniawska (2010), as redes de ações muitas vezes seguem

padrões, e eu começava a perceber em meu campo, que os processos de organizar que ali se

davam tendiam a seguir alguns padrões, se davam de maneira repetida em diferentes ocasiões

e por diferentes agentes do campo. Segundo Czarniawska (2014), é quando as ações são

repetidas que elas se tornam percebidas como padrões de ação, e é por isso que a repetição de

ações torna-se tão importante. Há, na literatura de estudos organizacionais processuais, uma

demanda por análises processuais que tragam contribuições a respeito de padrões repetitivos

entre atividades e eventos (LANGLEY e TSOUKAS, 2010). Guiada pelos processos de

organizar que seguiam padrões repetitivos em meu campo, e agora apoiada na literatura de

estudos processuais, passei, então, a tentar identificar quais eram estes padrões de ação que

marcavam os processos de organizar dos burocratas de rua.

Em poucos meses de pesquisa já me saltava aos olhos as descontinuidades e

interrupções em processos de organizar. Estas descontinuidades começaram a aparecer em

processos mais simples, como cursos oferecidos aos moradores que não eram finalizados,

como o programa “Vamos Combinar” iniciado pela UPP Social em parceria com a Comlurb

que foi interrompido, ou como o encerramento de alguns projetos sociais oferecidos pelas

UPPs. Com o tempo, passei a presenciar interrupções com consequências mais drásticas, e

não foi apenas o encerramento do Cimento Social que me deixou abalada. Também na favela

da Zona Sul o principal programa de reurbanização, o PAC, interrompeu as suas obras, e

Page 222: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

221

alterou o seu planejamento inicial, chegando a remover casas desnecessariamente. As

descontinuidades nos processos de organizar pareciam ser um padrão.

Mas conforme lembram Langley e Tsoukas (2010), as ações não existem de forma

separada de suas relações com outras coisas, e as descontinuidades como padrões nos

processos de organizar que eu observava ali também só existiam de forma relacional. Pautada

no pressuposto de Gergen (2010) de que toda ação é simultaneamente um suplemento do que

a precedeu, passei a investigar o que aqueles processos de organizar suplementavam e davam

sentido.

A interrupção no programa Cimento Social que tanto me instigou era decorrente de

uma causa clara: os acordos políticos que faziam parte das regras políticas do campo. Os

acordos ou falta de apoio político, exemplos da influência do campo político no campo

burocrático apontada em capítulo anterior, também se mostraram antecedentes dos padrões de

descontinuidade em outras situações. A UPP Social, por exemplo, teve seus processos de

organizar voltados para a resolução do problema do lixo das comunidades interrompidos

devido à falta de apoio político da Comlurb, responsável por dar continuidade às ações. O

PAC manteve por diversas vezes obras paradas porque dependiam das ações de outros, como

da CEDAE ou da CEG, e ao serem questionados a respeito da inação destes órgãos

apontavam para uma possível falta de apoio político entre eles. A noção de processos de

organizar aqui nos ajuda a perceber que o organizar ocorre para além de pensáveis limites, na

forma de alianças ou esforços cooperativos, conforme Czarniawska (2010).

A existência de cargos políticos, também apontados em capítulo anterior como

consequências da influência do campo político no campo burocrático, são também

responsáveis pelos padrões de descontinuidades. Os relatos de que a troca de secretário levou

à troca de diversos funcionários e a mudanças nas diretrizes que guiam os processos de

organizar foram destacados por agentes dos diversos programas. Durante o meu período em

campo, o programa Territórios da Paz trocou de superintendente 3 vezes, e cada um deles

ditava novas diretrizes que produziam descontinuidades nos processos de organizar. A

principal mudança foi sentida com a saída de um superintendente que os gestores

qualificavam como um técnico, um acadêmico, para um superintendente que, segundo os

relatos, ocupava um cargo político. Neste processo de transição, os funcionários do programa

relatavam mudanças em seus processos de organizar: o primeiro superintendente demanda um

maior esforço intelectual, na forma de produção de artigos e relatórios pormenorizados a

respeito das favelas. Mas foi na segunda mudança de superintendência que presenciei um caso

Page 223: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

222

mais emblemático de descontinuidade. Os representantes do programa distribuíram aos

moradores das favelas um documento a ser preenchido para se candidatarem a participar de

um edital que selecionaria 99 projetos de 13 favelas para receber um financiamento no valor

de 12 mil reais. Eu vivenciei a correria dos gestores em campo para que os moradores

preenchessem os documentos em tempo hábil e estivessem aptos a participar. Acontece que o

edital nunca aconteceu, pois se deu em uma transição de superintendência, A este respeito, um

representante explicou:

Eu acho que como mudaram tudo, como toda esta costura política entre o PT e o PMDB vai

encerrar em março, então tudo pode acontecer. (...) Se este edital de fato existiu, se estava

na intenção de ser uma coisa de fato, eu não sei! Pode ter sido uma articulação política dado

que a secretaria de Direitos Humanos sobre os auspícios do PT tivesse penetração nas

comunidades enquanto mais uma troca de secretário?! Pode ser também. Alguém vai

chegar para você e 6 meses vamos sair e vai enrolando aí porque é o que a gente tem para

agora! Ninguém vai fazer isto, enquanto a gente estiver aqui, eles vão fazer com que as

engrenagens de uma certa forma acabem se maquinando. (...) Mas se estão funcionando de

fato, aí é uma história completamente diferente, então acaba gerando este mal estar. Cadê o

edital? Não vim aqui e preenchi três páginas de ficha de inscrição, encheu o saco, eu não

poderia estar almoçando, aí a gente vai lá para a ONG que fica lá em cima, aí a gente desce

para a ONG que fica aqui embaixo... preenche, por favor, vai ser legal..olha vai vir mais

investimentos para vocês, mas reze que você pode ser sorteado ou não, porque são 99

projetos. São 99 projetos pertencentes às 13 comunidades com UPP, mas e aí? Aí fica nisso

e como é que vai explicar depois? “E o edital?!” O edital...tá saindo (Representante do

Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul).

Da mesma forma, a UPP Social teve descontinuidades em seus processos de organizar

devido à alteração do presidente do IPP: enquanto o primeiro presidente propunha que o

programa desempenhasse ações voltadas para o levantamento de demandas e para a

articulação dos moradores com os órgãos públicos, a nova presidente deu essas ações por

encerradas e propunha ações voltadas para o empreendedorismo e para a parceria com o setor

privado. Alguns funcionários, insatisfeitos com as mudanças, chegaram a deixar o programa,

intensificando as descontinuidades.

No CRJ, um representante referiu-se a este padrão como uma “dança das cadeiras”: “É

sempre a troca de governo que tem a dança das cadeiras e aí você fica ali, pô vai continuar o

trabalho, será que vai continuar ou não o trabalho que você está realizando?” (Representante

do CRJ 1, Favela da zona Sul). Em decorrência dessa “dança das cadeiras”, os processos de

organizar tornam-se descontínuos: os cursos oferecidos pelo CRJ são alterados conforme se

alteram os superintendentes dos programas – seja como uma forma de eliminar cursos mais

Page 224: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

223

caros, como foi o caso do curso de fotografia, ou seja por uma mudanças de diretrizes.

Conforme me explicou um representante do CRJ, a adesão dos moradores aos cursos leva um

tempo, e muitas vezes eles não conseguem sustentar um mesmo curso por tempo suficiente a

ponto dos moradores aderirem a ele. Como consequência, muitos cursos ficam vazios.

Na UPP a troca de comando – e, como consequência, a troca de policiais de confiança

(os “peixes”30) – era constante, e também dependia das decisões do coordenador geral das

UPPs (cargo que também se alternava). Na favela da zona Sul o comando mudou 3 vezes ao

longo de minha pesquisa de campo, e, na favela da zona Norte, 4 vezes. As implicações destas

mudanças de comando para os processos de organizar eram perceptíveis. Alguns comandantes

autorizavam eventos com mais facilidade, demandavam uma postura menos agressiva dos

policiais, e incentivavam o desenvolvimento de projetos sociais na UPP. Outros, proibiam

eventos, demandavam uma postura mais repressiva, e chegavam a encerrar os projetos sociais

que estavam em curso naquela UPP. Os comandantes também, em geral, alteravam a

distribuição dos policiais por cargos, o número e tipos de grupamentos policiais, e a

obrigatoriedade ou não de policiais “FEM” em cada grupamento. Conforme explica um

policial: “o Comando é o espelho da tropa. Se o Comandante é mais voltado para a

pacificação, eu vejo a tropa mais tranquila. Se o Comandante está mais disposto a combater o

crime, a tropa vai ‘dançar conforme a música’ dele” (Representante da UPP 14, Favela da

zona Sul).

Os moradores também reconheciam estas mudanças, e pareciam perceber uma

alteração na postura dos policiais de acordo com o comando:

Depois que ele saiu, aí o negócio melhorou mais um pouco. Era moto-táxi sendo agredido,

era moto-táxi que tinha que dar dinheiro, (...). E assim ficou. Então ele foi embora. E aí

veio um outro. Tudo bem ficou. Não ficou nem um mês também. Coitado. E esse daí está

tentando impor a ordem. Mas assim, até com os policiais que estão com eles, estão super

mais calmos. Vamos ver até quando. Apesar que já diz que ele já sai agora. Só ficou um

mês porque ele é comandante do Choque, ele é comandante do Choque. Então aí ele está

aqui. Mas já vai trocar. E aí a gente vai ver o que que vai dar. A gente fica assim (Morador

28, favela da zona Norte).

Nas duas favelas, a situação de violência começou a piorar no fim de 2013, em um

momento em que várias UPPs sofreram alterações em seus comandos. Os moradores

pareciam estabelecer uma relação direta entre a mudança de comando e o aumento da

violência, e diziam que os traficantes estavam “testando” o novo comandante.

30 A expressão “peixes” é utilizada pelos policiais das UPPs como referência aos policiais que são de confiança dos comandantes, e que costumam acompanha-los quando eles são designados para outra UPP.

Page 225: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

224

Os padrões de descontinuidades eram tão frequentes, que existia inclusive uma

insegurança constante em relação à continuidade dos programas como um todo. Pude

acompanhar em diversas ocasiões a insegurança dos representantes do Territórios da Paz

diante dos rumores de encerramento do programa. A cada troca de superintendência,

espalhava-se uma tensão:

(...) e com esta onda de boatos de que o PT vai sair da secretaria, e com isso eles desta

superintendência vão embora juntos, o que vai restar para a gente? (...)Eles vão falar:

“deixa eles trabalhando” e quando chegar o momento final vamos receber a notícia, talvez

como um tapa nas costas pelos serviços bem prestados e tal, mas enfim... (Representante do

Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul)

A UPP Social funcionava com base em contratos temporários, e no meio de 2013 foi

interrompida por tempo indefinido para se reestruturar, levantando rumores a respeito do fim

do programa. Com prazo para encerramento ou possível renovação, o clima entre os

funcionários do programa também era de insegurança. Ao ser questionada a respeito da

continuidade do programa, uma representante me respondeu: “isso é tão nebuloso, porque a

gente tem o contrato é até julho, né, esse é o dado de realidade, mas ele pode ser renovado de

novo. Eu sinceramente não sei porque ano que vem é ano de eleição e aí só Deus sabe”

(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).

Também a UPP provocava rumores a respeito de seu encerramento, sendo este

especialmente vinculado ao fim das Olimpíadas em 2016. O temor em torno do ano de 2016

parecia pairar sobre as favelas. E mesmo os policiais, que em geral eram confiantes a respeito

do sucesso do programa, consideravam a possibilidade de encerramento. Este temor está

pautado na crença de que o objetivo do programa das UPPs é apenas político, ajudar a ganhar

votos. Como as Olimpíadas marcam um momento crítico para a cidade do Rio de Janeiro, em

que todos os olhares estarão voltados para ela, passado este momento as UPPs não serão mais

importantes pois não terão mais tanta visibilidade.

Neste caso, a insegurança em relação à continuidade dos programas parecia estar mais

vinculada à busca por acúmulo de votos, ou por tirar votos de seus opositores. Moradores e

representantes do Estado me relatavam que os programas eram políticas de governo e não de

Estado, o que significa dizer que a mudança de governo ameaça o fim do programa, pois a sua

continuidade seria uma forma indesejada de angariar votos ao seu oponente que o criou. E os

comentários a respeito da continuidade dos programas vinham sempre acompanhados de um

desabafo final “tudo depende do resultado das próximas eleições”. Conforme relatou uma

representante do PAC:

Page 226: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

225

Infelizmente não se pensa essa política pública, se pensa em política de governo. Política

pública de Estado, sabe? Isso de alguma forma tinha que estar amarrado. Não sei se existe

uma lei, uma instituição que, sabe. Mas. Porque o que mais a gente vê aí é isso. Tinha que

ter política pública do Estado. Isso. Não do Governo. Isso é o que eu acho (Representante

do PAC 5, favela da zona Sul).

Tem-se, assim, que os processos de organizar observados no campo burocrático do

Estado tendem a seguir um padrão, enquanto repetição de ações (CZARNIAWSKA, 2010),

marcado por descontinuidades, e é nesse sentido que se fala aqui em processos de organizar

descontínuos. A categoria descrita e a forma como, a partir dos dados, cheguei a ela, está

representada na Figura 10 a seguir:

Processos de Organizar Descontínuos

Descontinuidades decorrentes de trocas de

cargos políticos

Falta de Apoio Político gerando descontinuidades

Associação da continuidade dos programas ao contexto político

- Troca de superintendência levando a boatos de encerramento do Territórios da Paz;

- Fim das Olimpíadas levando à insegurança em relação à continuidade das UPPs;

- Crença de que o que se tem são “políticas de governo”

- Ausência de força política do IPP levando ao encerramento do “Vamos Combinar”;

- Falta de apoio político no PAC levando à paralização de obras que necessitavam das ações de outros órgãos públicos.

- Troca de superintendentes alterando cursos oferecidos pelo CRJ;

- Troca de presidência do IPP tornando a UPP Social mais voltada para o setor privado;

- Troca de comando da UPP encerrando projetos sociais.

Figura 12. Processos de Organizar Descontínuos

Pode-se observar aqui que a conexão entre ações que compõem os processos de

organizar dos agentes do Estado sofrem restrições da influência do campo político no campo

burocrático, que a impõe um padrão de descontinuidades – seja a partir da troca de cargos

Page 227: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

226

políticos, da falta de apoio político, ou da crença de que a continuidade dos programas

depende do contexto político. Isto demonstra um imbricamento entre a dinâmica dos campos

e os processos de organizar.

Outro padrão de ação dos processos de organizar decorrentes do campo burocrático do

Estado em ação nas favelas é a lentidão que os marca. Os padrões de lentidão tornam-se

especialmente visíveis quando dizem respeito a uma interface entre o campo burocrático e o

campo das favelas. O imediatismo que marca as favelas requer processos de organizar mais

ágeis, e o campo burocrático do Estado se percebe em um novo território a respeito do qual

não possui muito conhecimento, e no qual ainda está aprendendo a estabelecer novas rotinas.

As obras do PAC pareciam infindáveis, e as reclamações dos moradores nas mais

diversas reuniões que pude acompanhar iam em geral no sentido de cobrança de prazos que já

estavam esgotados: as obras nunca finalizavam no prazo previsto. Os programas Territórios

da Paz e UPP Social iniciavam suas ações, mas demoravam tanto para mostrar os poucos

resultados mais concretos que podiam apresentar, como livros produzidos a partir de eventos,

ou mapas decorrentes do levantamento de informações, que os moradores davam aqueles

projetos por encerrado e inacabados. A Comlurb, por sua vez, não parecia acompanhar o

ritmo de produção de lixo dos moradores da favela. Demorava para atender suas demandas e

gerava insatisfações diante de caçambas lotadas.

Aqui, mais uma vez partindo da ideia de que as ações só existem de forma relacional

(LANGLEY e TSOUKAS, 2010), e que os padrões dos processos de organizar se dão em

relação à dinâmica do campo, é possível notar que é em função das restrições impostas pela

lógica burocrática que os padrões de lentidão marcam os processos de organizar.

As regras e normas formais e o formalismo, apontados em capítulo anterior como

exemplos da lógica burocrática, impõem exigências aos processos de organizar dos agentes do

campo burocrático do Estado em ação nas favelas, que os tornam muito mais lentos, em um

espaço no qual não estão habituados a agir, diante da necessidade de criação de novas rotinas

em espaços para eles complexos. O programa Territórios da Paz elaborou um plano de

memórias a partir de um projeto desenvolvido pelo programa que visava ajudar a recuperar a

memória de algumas comunidades. Entretanto, os moradores reclamam que não viram o

resultado. O livro, decorrente do projeto, estava há muitos meses para ser publicado, mas

algumas normas dificultaram o processo: “e agora está no Jurídico aqui da Secretaria. Aí já

está pronto mas tem que autorizar não-sei-o-quê e a UERJ que tem que publicar porque a

Page 228: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

227

editora é de lá e tem que respeitar os prazos da editora de lá, não-sei-o-quê, não-sei-o-que-lá”

(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).

Como uma exigência do PAC, o ITERJ atuou na favela da zona Sul com vistas a

regularizar a situação fundiária dos moradores. Entretanto, as exigências legais em termos de

produção de documentos e seguimentos de regras são tantas, que o ITERJ demora anos para

finalizar o processo. Conforme explicou um de seus representantes:

Para uma regularização fundiária, precede um levantamento topográfico, você tem que

contratar, tem que medir todos os lotes, fazer uma planta adequada, fazer um cadastro

socioeconômico de todas essas famílias, discutir esse projeto de parcelamento, se é o

melhor para a comunidade ou se necessita de algumas intervenções urbanísticas, onde é

necessário reassentar uma família, recolocar, porque, às vezes, ali ficaria melhor passar

uma rua, como está acontecendo na [favela da zona Sul]. Isso tudo traz trauma para a

comunidade. (...) Em cima disso, nós temos que ir para a prefeitura pegar os habite-se

dessas casas também – é até uma dificuldade. Às vezes essas casas não têm ventilação

própria, não têm uma ventilação adequada (Representante do ITERJ 2, Favela da zona Sul).

O PAC, por sua vez, atrasou uma de suas obras porque não tinha a licença adequada

para realizar a poda das árvores que estavam impedindo a obra. E eu mesma tive a minha

pesquisa prejudicada por este padrão de lentidão: levei quase seis meses para conseguir

autorização do programa da UPP Social para realizar a minha pesquisa, pois precisei

preencher relatórios, que foram encaminhados a um setor de pesquisa e tive que realizar

reuniões internas até que minha pesquisa fosse liberada.

A impessoalidade e a meritocracia também são responsáveis pelo padrão de lentidão.

As obras do PAC, interrompidas pela retirada da construtora, ficaram paralisadas durante

meses porque era necessário abrir um novo processo de licitação para que uma nova

construtora pudesse assumir as obras. Conforme explicou um representante do PAC:

A [construtora] pediu para sair, quando eles pediram para rescindir o contrato, foi legal,

foram chamar a 2ª colocada. A 2ª colocada por logística não pôde aceitar, aí a lei manda

que a gente faça uma nova licitação e aí agora estamos trabalhando com uma nova

licitação, para chamar uma nova empresa, voltar tudo para trás, preparar tudo de novo para

continuar as obras e aí é isto que está rolando lá (Representante do PAC 3, Favela da zona

Sul).

É também prezando a impessoalidade e a meritocracia que os programas levam tanto

tempo para a contratação de novos funcionários, o que torna os seus processos de organizar

mais lentos, em decorrência do baixo efetivo que tem que dar conta de muito trabalho. Uma

representante do Territórios da Paz explica que é por conta de questões burocráticas que um

novo concurso público para contratação de novos funcionários para o programa ainda não

Page 229: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

228

aconteceu: “Ah, sempre, 'ah porque foi para não sei quem’. Aí volta, mandou alterar alguma

coisa. Vai e volta. E nesse período está indo, entendeu” (Representante do Territórios da Paz

3, Favela da zona Norte).

Os agentes reconhecem que o tempo do campo do Estado é muito mais lento, e que

este padrão também é responsável por gerar insatisfação nos moradores: “e os tempos do

Poder Público são tempos bem diferentes das comunidades, a gente também entende isso (...).

Então, assim, é, essa diferença de tempos, eu consideraria como um dos desafios a serem

cumpridos” (Representante da UPP Social 1, Geral).

Conforme lembram Langley e Tsoukas (2010), a busca por padrões de ação também

inclui uma busca por padrões temporais, e no campo burocrático do Estado em ação nas

favelas um padrão temporal torna-se perceptível: a lentidão que marca os seus processos de

organizar. A categoria aqui denominada de processos de organizar lentos e os elementos

empíricos que levaram a ela podem ser observados na Figura 13 a seguir:

Lentidão decorrente de regras, normas e

formalismos

Lentidão decorrente da impessoalidade e da

meritocracia

- Exigência de licença para podar árvore atrasando obras do PAC;

- Exigência de documentações atrasando o processo de regularização fundiária do ITERJ;

- Exigência de documentações e reuniões no IPP atrasando a minha pesquisa.

- Novo processo de licitação para contratação de construtora atrasando obras do PAC;

- Abertura de concurso público atrasando a contratação de novos funcionários no Territórios da Paz.

Processos de Organizar Lentos

Figura 13. Processos de Organizar Lentos

Page 230: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

229

Os processos de organizar realizados pelos burocratas de rua sofrem também

restrições da lógica burocrática do campo, e como decorrência apresentam padrões de

lentidão. Regras, normas e o formalismo, bem como a impessoalidade e a meritocracia,

marcas da lógica burocrática levam a processos de organizar lentos, gerando uma

incompatibilidade entre o “tempo do Estado” e o tempo no qual os moradores das favelas

necessitam que suas demandas sejam satisfeitas.

6.3 Dispersões e Sobreposições em Processos de Organizar

Conversava com um morador da favela da zona Sul – favela que recebe

particularmente muitos recursos públicos – e, no ápice de seu relato a respeito de sua relação

com o Estado ao longo de sua vida enquanto morador de favela, ele desabafou em um tom de

indignação: onde está todo esse investimento público aqui dentro? Depois do seu desabafo,

confiou-me o que chamou de sua “teoria”, a qual um dia pretendia estudar formalmente em

um trabalho de mestrado: se pegarmos todos os recursos públicos investidos na favela desde a

década de 1980, incluindo aí investimentos em obras, projetos sociais, e até mesmo o salário

de todos os gestores públicos que já haviam passado por lá, e distribuíssemos este dinheiro

para pagar ensino superior de pelo menos dois membros de cada família da comunidade, a

favela estaria muito melhor. Sua “teoria” me fez pensar. Ela tinha por trás a premissa de que

as ações dos agentes do Estado na favela deveriam ter relação entre elas, estar direcionadas

para um mesmo objetivo, seguir uma mesma direção, que, na visão dele, girava em torna da

questão da educação.

De fato, a lógica deste morador estava muito longe de estar sendo seguida pelos

agentes do campo burocrático do Estado que eu observava em minha pesquisa. Suas ações

não se guiavam por um mesmo objetivo, não seguiam uma mesma direção, e poucas vezes

estavam relacionadas. Acontece que o conjunto de ações que compõem os processos de

organizar são moldadas por instituições (LINDBERG e CZARNIAWSKA, 2006), e conforme

demonstrado no capítulo anterior, cada uma daquelas “organizações” que se apresentavam

enquanto agentes do campo burocrático do Estado seguiam, em alguma medida, as suas

lógicas próprias. Embora reconheça-se as limitações das lógicas institucionais de cada agente

para produzir uma homogeneidade entre as ações dos burocratas de rua, e ainda que a lógica

burocrática do campo burocrático do Estado e a influência do campo político ajudem a

estabelecer padrões de ações comuns aos agentes, tais agentes também apresentam, em certa

medida, padrões próprios de ação, moldados pelas lógicas institucionais.

Page 231: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

230

A lógica de confronto que predomina nas UPPs condicionam, embora não

determinem, uma série de ações que se voltam para o combate de um “inimigo” nas favelas,

conforme demonstrado no capítulo anterior, e aqui discutido em mais detalhes com o suporte

do conceito de processos de organizar. Com o objetivo de retomar o território, os processos de

organizar dos policiais das UPPs são marcados, em sua maioria, por esta lógica de confronto,

que os faz abordar e revistar moradores, realizar prisões e apreensões de armas e drogas,

barreiras policiais nas entradas das favelas, para que nenhum inimigo possa escapar. As ações

que compõe os seus processos de organizar guiados pela lógica do confronto parecem estar

conectadas: há um planejamento da distribuição dos policiais pelo território com base em

índices criminais ou de informações do serviço de inteligência, que controla a favela por meio

de estratégias de disfarce como o uso de microcâmeras; a identificação do criminoso a partir

da “fundada suspeita” (exemplifica como o uso de casaco em um tempo quente, a reunião de

um grupo de jovens ou uma postura tensa diante da presença do policial) está associada à

abordagem e revista; prende-se se for o caso; apreende-se suas drogas e armas, caso

encontradas.

Esta primeira rede de ações parece ser complementada por processos de organizar

moldados pela lógica civilizatória, também apontada no capítulo anterior como característica

das UPPs. As duas redes de ações parecem estar conectadas entre si, na medida em a segunda

ajuda a “orientar” potenciais criminosos para que estes não ingressem na vida do crime,

evitando assim que a primeira rede de ações tenha que ocorrer ou que seja finalizada com

prisões e apreensões. É nesse sentido que os policiais da UPP realizam atividades sociais com

crianças, buscando transmitir, por meio destas ações, valores considerados “superiores” a

crianças que não têm de onde tirá-los: “Se você começar a incentivar os esportes... ah mas não

é um trabalho da polícia? É sim, poxa. Se eu estou tirando aqui os jovens que estariam

ingressando no mundo do crime através do esporte, é um trabalho da polícia sim. E é dessa

transformação que a gente quer participar” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul). E é

também guiados por esta lógica, que os policiais assumiram um novo processo de organizar: a

autorização dos eventos da comunidade. Para melhor regulamentar esta questão foi criada a

resolução 013, que se tornou famosa nas comunidades por produzir indignação. Os bailes

funks são proibidos e, às vezes, até mesmo o som do funk em rádios ou celulares são

reprimidos pelos policiais. Em uma reunião para tentar estabelecer regras a respeito da

realização de eventos na favela da zona Sul, um representante da UPP chegou a discutir com

os donos dos estabelecimentos o tipo de música que eles poderiam tocar ou passar nas TVs:

Page 232: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

231

“Ah não, tem o DVD ali e a televisão, vai botar o UFC? Beleza. Jornal da Globo? Beleza.

(...). Po, quadradinho de oito, quadradinho de nove, sei lá, po, acabou, acabou, acabou tudo.

Não tem como, é seis por meia dúzia” (Reunião Gravada, 05/06/2013). A crença é que o funk

está relacionado com o tráfico e incentiva a violência, e a sua proibição ajuda a afastar os

moradores da criminalidade.

Mas a lógica civilizatória não é exclusiva das UPPs. Conforme mostrado no capítulo

anterior, também no PAC é esta a lógica predominante. No caso do PAC, os processos de

organizar de ambas as suas frentes de ação (frente social e frente de obra) parecem ser

moldados por esta mesma lógica. Na frente de obras, parte-se da lógica civilizatória para se

fazer crer que é possível determinar por si mesmos aquilo que é melhor para os moradores,

ainda que estes não concordem. E nesse sentido, forma-se uma rede de ações bastante

embasada: negocia-se com os moradores a sua remoção, e é legítimo partir para ameaças,

porque no fim ser removido será melhor para o morador; depois, remove-se as casas, ainda

que contra vontade; e as obras, baseadas em um projeto pronto desenvolvido por quem sabe o

que é o “melhor”, são, finalmente, postas em ação.

A frente social, por sua vez, pautando-se na mesma lógica, realiza a gestão de impacto,

auxiliando no cadastro dos moradores para os fins de remoção, e posteriormente ensinando-os

a habitar os novos prédios, guiados pelos valores da “civilização” e seguindo a melhor forma

de habitar. As reuniões de integração contam com ações como explicações a respeito da

importância de que tudo seja padronizado nos apartamentos, por questões estéticas, até a

explicações a respeito de como funciona uma gestão condominial e a eleição do síndico do

novo prédio, com a intermediação dos representantes do PAC. A gestão territorial se propõe a

capacitar os moradores para trabalhos que lhes são dignos, como os serviços de garçons ou de

cabeleireiros, ou a educar ambientalmente os moradores daquela comunidade.

A UPP Social, guiada pela chamada lógica da inversão, conforme proposta no capítulo

anterior, tem os seus processos de organizar guiados por outros propósitos e direcionados para

outro lugar. Inicialmente com o objetivo de encaminhar demandas, estabelecendo um vínculo

entre o poder público e os moradores, os representantes da UPP Social desempenhavam

processos de organizar que, conforme indicam a sua lógica, estão direcionados de baixo para

cima, por meio de uma rede de ações que começa na favela até chegar aos órgãos que

convém: começa-se por realizar ações que possibilitem compreender as demandas da

comunidade, como a participação de reuniões organizadas pelos próprios moradores, ou por

outros agentes, ou até mesmo em mutirões de limpeza, levantamentos de informações sobre a

Page 233: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

232

favela por meio de observação e conversas informais com moradores; organizam as demandas

e informações levantadas em relatórios ou mapas, o que funciona como uma ação

intermediária que busca “traduzir” aquilo que lhes diz a favela e os moradores em uma

“linguagem” que os agentes do Estado estejam mais habituados a compreender; relatórios e

mapas são encaminhados aos órgãos responsáveis por atender as demandas neles apontadas.

Esta “tradução” também se apresenta como uma “formalização do informal”, por meio da

qual os agentes tentam formalizar aquilo que já existe de forma informal na favela, como foi o

caso dos nomes das ruas ou regiões. Em período posterior, quando a UPP Social tentava se

desvencilhar do levantamento de demandas, suas ações passaram a girar em torno,

principalmente, da participação em eventos e reuniões da comunidade, o que também

auxiliava em um levantamento de informações, e no estabelecimento de vínculos entre os

moradores e organizações privadas que pudessem auxiliá-los em suas demandas não

atendidas. Assim, por meio de uma rede de ações “de baixo para cima” os burocratas da UPP

Social invertem os processos de organizar.

O programa Territórios da Paz, como guiado pela mesma lógica da inversão, parece

apresentar processos de organizar bastante semelhantes, e a inversão da rede de ações também

ocorre aqui. Aqui também vão do levantamento de demandas e informações em campo, para a

sua tradução e o seu encaminhamento. Porém, acrescenta-se, talvez como consequência de

uma lógica de inversão ainda mais impregnada, o fortalecimento das redes de moradores, o

que acabou tornando-se o objetivo principal do programa. Nesse sentido, essa preocupação

com o fortalecimento também se estende para processos de organizar que vão além de

encaminhamentos e levantamentos de demandas e que passam para ações voltadas, por

exemplo, para o “fortalecimento” de jovens, o “fortalecimento” de mulheres, por meio de

eventos e atividades voltados especialmente para eles, a criação de uma rede de comerciantes,

ou o incentivo à troca de experiências entre moradores de diferentes favelas, para que estes

possam, juntos, se fortalecer. Ainda, a partir da ideia de que cada favela tem as suas demandas

específicas, os representantes do Territórios da Paz possuem uma grande autonomia de ação,

e costumam construir as suas agendas e decidir a respeito de seus processos de organizar de

acordo com o que acontece em cada favela, o que faz com que mesmo as ações dos agentes

deste mesmo programa possam ser bastante desconectadas.

Pautado em sua lógica de prevenção, o CRAS apresenta processos de organizar que

tendem a se antecipar a problemas mais graves. Realizam uma rede de ações que parte da

participação em eventos da comunidade, com o propósito de identificação de moradores ou

Page 234: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

233

famílias mais “frágeis”, para o cadastro destes moradores, seja no cadastro único ou no banco

de dados do CRAS, e culmina na oferta de benefícios que tendem a evitar problemas futuros,

como o bolsa família, a tarifa social da Light, o desconto em inscrições em concursos

públicos, a participação em grupos de convivência, o acesso a cursos gratuitos ou o acesso a

atividades culturais diversas. Conforme explicou uma representante do programa:

O CRAS é a porta de entrada para as famílias que querem acessar os serviços e benefícios

prestados pela prefeitura; ter acesso ao programa de transferência de renda, que é o Bolsa

Família; os serviços de convivência, que são os grupos, e que também são as diretrizes do

Ministério; e informações sobre os direitos da população (Representpate do CRAS 2, favela

da zona Sul).

Vale ressaltar que os processos de organizar descritos não seguem uma sequência

rígida, e por isso se fala em redes e não em cadeias de ação. Os processos estão conectados,

mas podem acontecer em ordens diversas.

Conforme lembram Lindberg e Czarniawska (2006), para que haja processos de

organizar entre organizações, é necessário que as ações separadas no tempo e no espaço sejam

de alguma forma conectadas, formando uma cadeia ou rede destes processos de organizar.

Entretanto, no campo burocrático do Estado em ação nas favelas os agentes possuem lógicas

próprias que, conforme mostrado anteriormente, intensificam as disputas no campo de poder.

Como decorrência das disputas do campo, muitas vezes os processos de organizar dos

diferentes agentes são impedidos, ou ao menos inibidos, de estabelecer conexões entre si, e,

como resultado, deparamo-nos com processos de organizar dispersos, que estão direcionados

para objetivos diferentes e para aspectos diferentes da vida na favela. O conceito de processos

de organizar dispersos e os elementos empíricos que conduziram a ele podem ser observados

na Figura 14 a seguir:

Page 235: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

234

Ausência de conexão entre processos de

organizar

- Lógicas próprias de cada agente gerando disputas que inibem a conexão entre processos de organizar de diferentes agentes;

- Lógicas próprias de cada agente levando a processos de organizar distintos.

Processos de Organizar Dispersos

Figura 14. Processos de Organizar Dispersos

As lógicas próprias de cada agente incentivam disputas que, por sua vez, inibem as

conexões entre os processos de organizar. Os processos de organizar dispersos tornam ainda

mais difícil enxergar o que faz “o Estado” na favela, e conduz à indignação do morador que se

questionou a respeito de onde está o investimento de tantos anos que o Estado direcionou à

favela. Ainda que “o Estado” não exista enquanto uma entidade homogênea a qual de alguma

forma eu fui procurar, nem mesmo os seus processos de organizar são homogêneos ou

conectados entre si, justificando a minha sensação inicial de que “o Estado” está por toda a

parte, e age em várias direções - o que se tornou uma angústia e fez da minha pesquisa de

campo algo muito mais complexo.

Como os processos de organizar dos diferentes agentes raramente estão conectados,

eles também acabam, muitas vezes, por se sobrepor, como ações semelhantes, porém

separadas. Isto significa dizer que mesmo quando os agentes se voltam para o mesmo aspecto

da vida na favela, ou apresentam algum objetivo em comum, suas ações são realizadas de

forma isolada umas das outras. A sobreposição de ações é reconhecida pelos próprios agentes:

Page 236: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

235

(...) a quantidade de coisas acontecendo ao mesmo tempo e assim o tanto que uma atropela,

vai por cima da outra, então a gente tenta. É, assim ver o que tem de recurso disponível e

usar ele da melhor forma possível porque eu acho que quando tem a sobreposição assim

tem o desperdício enorme e o desperdício é uma coisa que frustra as pessoas demais, assim,

né (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).

Este é o caso, por exemplo, da oferta de cursos na comunidade. Como diferentes

agentes levantam demandas, e às vezes identificam a capacitação como uma delas, cursos são

levados aos mesmos moradores por caminhos diferentes, gerando uma certa confusão.

Conforme relatou um morador: “Você trouxe um curso de inglês. A UPP Social traz também.

UPP Social traz um curso de elaboração de projetos, você traz também. Qual que eu vou

fazer? Qual que é o melhor?” (Morador 20, Favela da zona Sul).

Outro exemplo da sobreposição é o caso dos projetos voltados para a questões

ambientais e do lixo, importante demanda em ambas as favelas. Diferentes agentes

desempenhavam esforços nesta direção: o PAC, por meio de mutirões realizados em parceria

com uma ONG formada por moradores da favela; a UPP Social, tentando mapear os melhores

pontos de coleta; o Territórios da Paz, que tentou organizar uma semana do meio ambiente; e

a própria Secretaria do Meio Ambiente, que realizava ações de conscientização isoladas. Mas

como partem de lógicas diferentes, seus processos de organizar não estabelecem conexões e

acabam se sobrepondo sem se conectar. E mesmo quando estão pautados em lógicas

semelhantes, como é o caso da UPP Social e do Territórios da Paz, mínimas diferenças em

torno destas lógicas já parecem ser suficientes para manter suas ações desconectadas.

Os processos de organizar sobrepostos, conforme aqui estão sendo chamados, bem

como os elementos empíricos que conduziram a esta categoria, podem ser observados na

Figura 15 a seguir:

Page 237: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

236

Processos de organizar semelhantes, mas

desconectados

- Oferta de cursos semelhantes por agentes diferentes;

- Diferentes ações de conscientização ambiental, realizadas por agentes diferentes.

Processos de Organizar Sobrepostos

Figura 15. Processos de organizar sobrepostos

A escassez de conexões entre os processos de organizar dos diferentes agentes leva a

processos de organizar dispersos e, às vezes, sobrepostos. E este padrão de ações também

aponta para um imbricamento entre processos de organizar e campos de poder, mostrando que

as disputas do campo podem inibir conexões de ações de agentes que divergem.

6.4 Organizando para o Acúmulo de Capital: A (Des)Materialização dos Processos de Organizar

Parecia que os meses de trabalho intenso para a organização da festa de debutantes da

UPP da zona Norte tinham valido a pena. O salão estava lindo, e contava com uma pista de

dança e mesas com doces. As meninas ainda terminavam de se arrumar ansiosas no banheiro

no momento em que eu cheguei. Estavam todas muito bonitas e transpareciam felicidade. A

representante do Territórios da Paz, que trabalhara intensamente nos preparativos da festa, me

chamou a atenção para a presença do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, que ao

lado de sua assessora conversava com representantes da UPP em um canto do salão. Todos

olhavam de longe e apontavam a sua presença, que provocou entusiasmo, como uma

celebridade que se encontra por acaso.

Page 238: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

237

Depois de observar de longe a presença do secretário, também bastante entusiasmada

com o comparecimento de uma figura tão ilustre, voltei ao banheiro para ajudar as meninas

nos preparativos finais. Eu ajudava a fechar o vestido de uma das debutantes, quando a

assessora do secretário de segurança aproximou-se da porta do banheiro e comunicou às

representantes do Territórios da Paz que o Beltrame tinha outro compromisso, e já precisava ir

embora, mas que não poderia fazê-lo antes de registrar a sua presença na festa por meio de

fotografias com as debutantes.

Agora com mais pressa, as meninas terminaram de organizar o banheiro e saíram para

as fotos. A sessão de fotos começou no corredor em frente ao banheiro: o secretário de

segurança posicionava-se entre as jovens, e o fotógrafo registrava o momento. Depois,

seguimos para a mesa com o bolo no grande salão de festas e a cena se repetiu. Finalizado o

registro fotográfico, o Beltrame se despediu e partiu para o seu outro compromisso.

Conforme lembra Czarniawska (2014), a noção de redes de ações diferencia-se de

“cadeia de eventos” porque, além de não seguir uma linearidade, às ações é possível atribuir

um propósito ou intenção. Em campos de poder, às redes de ações que compõem os processos

de organizar dos diversos agentes também se voltam para a mobilização de capital, necessário

para se manter ou para se buscar alcançar uma posição dominante no campo.

Pode-se dizer que UPP Social, Territórios da Paz e CRAS tinham, como consequência

direta de seus processos de organizar mais centrais, o acúmulo de capital social e

informacional. O capital social destes agentes era mobilizado por meio de suas participações

nas mais diversas reuniões comunitárias, no apoio que davam a eventos dos moradores, ou

nas conversas informais que compunham suas tarefas diárias de trabalho: “E é uma coisa que

a gente fez também foi conversar com os moradores mais antigos, (...) Me conta que que é [a

favela da zona Norte]. Quais os maiores principais problemas, como é que foi, o que começou

e tal, não-sei-o-quê” (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte). O

levantamento de informação era central para seus objetivos principais, e mesmo suas

atividades diárias costumam ser registradas e armazenadas como informação. Na UPP Social,

por exemplo, tem-se o hábito de alimentar um blog:

E para além disso a gente tem as questões que eu te falei de documentar isso. Gerar

relatório, gerar blog, toda agenda nossa promove um blog. Então, a gente tem todo um

histórico de qual foi a agenda, com quem foi, qual foi a perspectiva, qual o desdobramento

(Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).

UPP Social e Territórios da Paz produziam relatórios com base nas demandas

levantadas, criavam mapas que representassem o grau de desenvolvimento da comunidade

Page 239: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

238

(MRP), ou mapas geo-referenciados. O CRAS levantava informações para fins de prevenção,

e ao cadastrar os moradores montava uma base de dados com as informações necessárias.

UPP e PAC, entretanto, tinham, em seus processos de organizar centrais, ações que

inibiam, mais do que o contrário, o acúmulo do capital social e, consequentemente, do

informacional. A UPP patrulhava ostensivamente a comunidade, abordava e revistava

moradores, gerando conflitos constantes. Além disso, ao se apresentar como uma oposição

direta ao tráfico, sofria retaliações do mesmo por meio de ameaças aos moradores que com

ela estabelecesse contatos mais próximos. O PAC, principalmente em decorrência das

remoções, também tinha dificuldades de criar laços sociais com moradores, e as mudanças nas

obras, os prazos não cumpridos, ajudavam a criar um clima de conflito. Como decorrência,

para estes agentes foi preciso desenvolver processos de organizar secundários, como um

esforço a parte para o acúmulo dos capitais social e informacional.

Na UPP foi criado o setor denominado P5, responsável pelas relações públicas.

Conforme explicou um policial: “Nós temos aqui um que chama de P5, né, que é

comunicação social, é uma policial que ela fica mais encarregada de fazer o contato com os

moradores mais relativos a eventos, né, festas, reuniões” (Representante da UPP 2, Favela da

zona Sul).

As UPPs passaram a contar também com um serviço de mediação de conflitos por

meio do qual, ao serem demandados, enviam um policial treinado que intermedia os mais

diversos conflitos na comunidade. Além disso, passou-se à incorporar às funções dos policiais

a realização de projetos sociais, como a organização de campeonatos de futebol, aulas de

música, e oferta de passeios para as crianças, além de emprestar a sua van com frequência

para locomover os moradores para os mais diversos eventos – serviço do qual eu mesma pude

usufruir diversas vezes. Na favela da zona Sul existia o programa UPP Mirim, que consistia

em um projeto semanal para a realização de diversas atividades recreativas e passeios com as

crianças da comunidade. Na favela da zona Norte, um dos policiais iniciou um projeto de luta,

no qual ensinava boxe para as crianças da favela. Como complemento, alguns comandantes

tinham o hábito de realizar reuniões periódicas entre UPP e moradores, com vistas a se

aproximar da comunidade, geralmente chamadas de “Café Comunitário”. Realizam, ainda,

eventos com a comunidade, como festas para as crianças ou a festa de debutantes.

Deparando-se com a dificuldade de ainda assim acumular capital social, na favela da

zona Norte o GPP sofreu uma diferenciação, e passou a realizar pesquisa de satisfação com os

moradores. Conforme explicou um policial a respeito do trabalho do “novo” GPP:

Page 240: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

239

“[Perguntamos] se você está satisfeito com a UPP, se tem algum ponto que você acha que

deveria ter um policiamento e não tem, o cabeçalho normal, total, se você acha que a UPP vai

aca... é se você acha que a UPP veio para ficar e algumas apreciações finais” (Representante

da UPP 11, Favela da zona Sul).

O PAC contava com a frente social para ajudá-lo no acúmulo do capital social. Além

dos cursos e mutirões de limpeza oferecidos pelos moradores, eles ajudavam a organizar

reuniões com os moradores, contando que a transparência do programa poderia ajudar na

aproximação.

Como os capitais social e informacional se retroalimentam, conforme mostrado no

capítulo anterior, UPP e PAC, na dificuldade de acumular o primeiro, também sofriam uma

escassez do segundo, e precisaram criar processos de organizar que os auxiliassem também no

acúmulo do capital informacional.

A UPP aqui também criou um setor a parte: a P2 responsável pelo serviço de

inteligência - “E hoje eu estou no serviço reservado. P2, serviço reservado, (...) onde eu

trabalho com a inteligência, com denúncia, até mesmo contra abusos de policiais dentro da

comunidade” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). No início do programa das UPPs

estas utilizavam o serviço de inteligência dos batalhões, mas logo sentiram necessidade de

criar o seu próprio. Conforme explicou um representante:

O que que acontecia, cada Unidade de Polícia Pacificadora eram subordinadas aos

batalhões de área, no caso aqui era o 19. Então, o serviço reservado, de inteligência,

funcionava no batalhão 19, de Copacabana. Aí criaram o serviço de inteligência, criaram o

CPP, uma Coordenadoria de Polícia Pacificadora, onde todas as UPPs ficavam

subordinadas, estão subordinadas até hoje, à Coordenadoria. Essa Coordenadoria criou a

agência de inteligência central das UPPs que, por sua vez, criou os núcleos de inteligência,

como esse aqui. Aqui é um núcleo de inteligência, onde criamos, colhemos dados e provas

e enviamos a agência maior, que é no CPP, para que dali eles enviem para a agência central

que vai ao Ministério Público, que vai à delegacia, que vai à vara de execuções penais, para

serem expedidos mandados de prisões, e consigam fazer uma investigação maior,

centralizando as informações lá para que possa haver uma operação ou uma coisa desse tipo

(Representante da UPP 4, Favela da zona Sul).

As UPPs contam, assim, com um telefone próprio, distribuído aos moradores para que

estes façam denúncias. E desempenham estratégias como o uso de microcâmeras ou de

policiais à paisana, para levantar informações que não os chegam de outra forma. As

informações a respeito das ocorrências da comunidade obtidas por meio de denúncias ou

serviço de inteligência são registradas: “temos mapeamento aqui, ali pela nossa maquete que

Page 241: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

240

ainda está em montagem, mas tinha um quadro ali com os locais de tráfico, um dos nossos

maiores problemas era a incidência de tráfico, o som alto das biroscas que incomoda os

moradores daqui e de baixo também” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).

O PAC baseia-se principalmente nas reuniões com os moradores e na criação de uma

comissão mais restrita, composta pelos moradores, para o acúmulo de informações. E, estão

disponíveis para ouvi-los, durante os horários de funcionamento do canteiro social.

Quando se trata do acúmulo de capital econômico, para além das transferências

governamentais diretas de recursos públicos, os processos de organizar desempenhados neste

sentido, dizem respeito à demanda por doações. Os representantes do Territórios da Paz , sem

muitos recursos, entregavam ofícios em supermercados, e visitavam outros órgãos como a

subprefeitura em busca de recursos, quando necessário para a realização de algum evento. Nas

UPPs o recebimento de doações era mais fácil, o que parece estar vinculado à maior

legitimidade do programa, conforme mostrado no capítulo anterior.

Mas a atração de recursos econômicos depende também do acúmulo de capital

espacial. Conforme discutido na seção a respeito das dinâmicas de capital, a redistribuição do

capital econômico por meio de sua transformação em capital espacial, potencializa o acúmulo

de capital simbólico, trazendo mais legitimidade que, por sua vez, de forma cíclica, ajuda na

atração de mais capital econômico. Em uma tentativa de manter este ciclo, e com isso se

manter ou alcançar legitimidade, pode-se perceber que os agentes do campo buscam

materializar ou desmaterializar seus processos de organizar. Os processos de organizar dos

agentes precisam se tornar visíveis no espaço, para que levem ao reconhecimento ou à

legitimidade que buscam. Para isso, é preciso que eles sejam materializados ou que levem a

alguma desmaterialização, tornando invisíveis elementos visíveis, mas em certa medida

inconvenientes, o que nem todos os agentes conseguem fazer.

Em sua pesquisa a respeito da coordenação entre unidades de cuidado em três

organizações de um setor de assistência médica sueco, Lindberg e Czarniawska (2006)

mostraram que a rede de ações que se estabeleceu ali era capaz de apresentar produtos

tangíveis, tendo sido materializada na forma de objetos e procedimentos padronizados,

contribuindo para a estabilidade e durabilidade da rede. Aqui também foi possível observar a

materialização ou desmaterialização de redes de ação enquanto processos de organizar, por

meio da apresentação de produtos tangíveis ou pela eliminação de objetos indesejados, neste

caso contribuindo para o acúmulo do capital espacial, valorizado no campo, e, portanto, para a

legitimidade dos agentes.

Page 242: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

241

No campo da “pacificação” os agentes mais bem sucedidos nesta (des)materialização

dos processos de organizar parecem ser a UPP e o PAC. Os representantes da UPP,

materializam suas ações de patrulhamento ostensivo por meio da materialização de seus

representantes, devidamente uniformizados, no espaço das favelas, espalhando viaturas e

cabinas. E desmaterializam seus processos de organizar quando, por meio do policiamento e

das abordagens policiais, são bem sucedidos em manter escondidas as armas e drogas, e

consequentemente as bocas, dentro das favelas:

A gente já sabe, normalmente, a GTTP já sabe quais são os setores que têm problemas,

então a gente busca ficar mais nesses lugares, evitando a venda, evitando o tráfico. Inibindo

o tráfico e quando tem pessoa diferente também no morro, a gente está sempre abordando,

buscando documento, averiguando mesmo. Essa é a nossa função, é o tempo todo assim

(Representante da UPP 14, Favela da zona Sul).

No caso do PAC, a materialização de seus processos de organizar é também bastante

óbvia. Sua rede de ações que tem início nas negociações e cadastros dos moradores, finaliza-

se na realização de obras de pequeno ou grande porte, e a abertura de uma nova via carroçável

na favela torna material o processo de organizar que seus agentes desempenharam ali. Os

representantes do PAC exibem com orgulho o resultado material de suas ações: “Você viu

como está, não viu como era! Agora está lindo! Antes era um caos. Eu vou ver se acho uma

foto qualquer do casarão aqui. Era caótico, era um caos, realmente muito ruim”

(Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).

A materialização também ocorre por meio de suplementos que, como explicou Gergen

(2010), servem para dar sentido a uma ação anterior. O registro fotográfico pode ser

percebido como um dos mais importantes suplementos que compõem os processos de

organizar de alguns agentes, e que ajuda a materializá-los, como uma concretização final.

O uso de fotografias para registro das ações dos agentes e, com isso, materialização de

seus processos de organizar, pode ser observado nas favelas em diversas situações. Diversas

vezes presenciei policiais da UPP registrando a visita de importantes órgãos como a ONU por

meio de uma fotografia no mural principal no hall do prédio, onde se via acima de uma foto

da UPP, o nome oficial daquela unidade. As reuniões de integração do PAC também foram

registradas em fotos, e no último dia tirou-se uma fotografia do conselho condominial

escolhido por meio de votos naquela reunião. Os registros fotográficos da festa de debutantes

da UPP não se restringiram ao dia da festa e à companhia do Beltrame, narrados no início

desta seção. Os cursos de salgadinhos oferecidos por uma ONG que doou os salgados para a

festa também foram registrados em fotos, e contou até mesmo com a presença de uma

Page 243: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

242

jornalista que registrou um dos dias do curso. O evento também foi materializado em um

objeto importante: o convite da festa, com a foto das debutantes e o nome da UPP.

A noção de (des)materialização dos processos de organizar pode ser observada na

figura 16 a seguir:

Resultados Materiais de Processos de Organizar

Omissão de elementos materiais indesejados como resultado de

processos de organizar

- Abertura de vias carroçáveis;- Reformas de prédios; - Presença de policiais

uniformizados nas favelas;- Viaturas e cabinas da UPP

espalhadas pela favela.

- Invisibilidade de drogas na favela;

- Invisibilidade de armas na favela;

- Invisibilidade das bocas.

(Des)Materialização de Processos de Organizar

Figura 16. (Des)materialização de processos de organizar

A busca por tornar os seus processos de organizar visíveis, seja por meio da sua

materialização ou da desmaterialização, leva ao acúmulo de capital espacial e,

consequentemente, simbólico. UPP e PAC, aparentemente bem sucedidos na

(des)materialização de seus processos de organizar, parecem acumular capital espacial e

simbólico e, conforme apontado no capítulo anterior, parecem se aproximar mais da posição

de incumbentes do campo.

Como consequência de sua capacidade de (des)materialização dos processos de

organizar, e conforme mostrado no capítulo anterior, a UPP parece se destacar como a

principal incumbente do campo e observa-se que, como tal, ela acaba por acumular processos

de organizar de outros agentes do campo do Estado. As ações de mediação de conflitos,

assumidas por alguns policiais da UPP, são realizadas em parceria com o Tribunal de Justiça,

Page 244: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

243

que treina alguns policiais devidamente selecionados para o cargo a realizar este tipo de

função. Conforme explicou um policial: “nós temos aqui um policial, que faz a mediação de

conflito, fizeram curso no Tribunal de Justiça junto com o policial assina uma promotora,

então dá uma formalidade nessa mediação” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).

Além disso, os policias também se tornaram responsáveis por dar cursos de moto-frete

aos moradores. Em parceria com o DETRAN, eles receberam um treinamento apropriado, que

os torna aptos a agir em nome do DETRAN fornecendo os treinamentos necessários. A este

respeito, um representante da UPP explicou:

Para todos os moto-frentistas. Por quê? Porque o DETRAN ele, o DETRAN, ele

determinou esse curso especializado para a gente porque eles não têm pessoal para dar aula.

Então ele fez um convênio com a PMERJ, deu a instrução para alguns policiais, a instrução

deles, para a gente estar podendo ministrar aulas pros moto-frentistas (Representante da

UPP 6, Favela da zona Norte)

Ao reconhecerem a UPP como “o Estado na favela”, os moradores também levam a

ela as mais diversas demandas, ainda que estas não estejam contidas em suas atribuições.

Como consequência, os policiais chegam a atuar levando crianças deficientes à escola,

levando doentes ao hospital, como se fossem uma ambulância na favela, e encaminhando

demandas a outros órgãos público, quando eles mesmos não conseguem atende-las. Conforme

reconhece um morador:

Aqui tem esse problema com o Estado. A Polícia reclama que eles são chamados para

certos casos que não são da área deles, mas eles têm que entender que não está claro qual é

a área deles na comunidade, que uma vez que faltam outras coisas eles são os únicos

representantes que podem ouvir, além da associação. Então se falta uma água lá em cima,

infelizmente, às vezes um policial é chamado, mas é chamado para quê se ele tem não tem

como colocar a água? Mas quem é que vem botar a água? Se não atende telefone, se passa

para ao ramal não-sei-o-quê, passa para lá (Morador 27, favela da zona Norte).

Os policiais reconhecem esse acúmulo de processos de organizar e desabafam:

Aí muitos dos policiais, o policial de uma UPP a gente costuma dizer que ele é juiz, que ele

é eletricista, que ele é bombeiro, que ele é tudo. Muitas vezes a pessoa chega aqui e fala “ó,

entrou uma cobra na minha casa”. Lá na UPP. Aí da UPP a gente tem que tirar a cobra de

casa. "Ah, a pedra está rolando, vai cair em cima da minha casa." Aí a Defesa Civil. Chama

a polícia. A UPP vai lá para tirar aquela pedra de lá. "Ah, minha mulher está passando mal,

vai ter um filho". Aí a UPP que vai lá pegar o carro e vai levar ela ao hospital, Então,

muitas das vezes a polícia não tem aquela, o serviço em si que era dela, de ficar parada ali,

fazendo a segurança, evitando que o tráfico volte. Você vê a UPP hoje fazendo funções

assistencialistas. Entre elas, ajudar enfermo, tirar cobra de dentro de casa, trocar gás de

senhora idosa que não consegue trocar, trocava, essas coisas assim, entendeu, que já não é

Page 245: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

244

função da polícia. Mas o policial faz por estar aqui na UPP, para ajudar, entendeu

(Representante da UPP 17, Favela da zona Norte).

A noção de acúmulo de processos de organizar, bem como os elementos empíricos que

conduziram a ela, podem ser observados na Figura 17 a seguir:

Transferência de Processos de Organizar de

outros agentes para os incumbentes do campo

Demandas dos moradores por Processos de Organizar de

outros agentes aos incumbentes do campo

- Parceria entre UPP e DETRAN para a oferta de cursos de moto-frete por policiais;

- Parceria entre UPP e Tribunal de Justiça para realização de mediação de conflitos por policiais.

- Demandas dos moradores aos policiais por serviços de água;

- Demandas de moradores aos policiais por funções assistencialistas.

Acúmulo de Processos de Organizar

Figura 17. Acúmulo de processos de organizar

No campo burocrático do Estado em ação nas favelas, assumir a posição de dominante

do campo parece significar também assumir processos de organizar de outros agentes, que ao

invés de ingressarem por eles mesmos nas favelas, transferem seus processos de organizar aos

incumbentes. Além disso, a posição de incumbente parece intensificar as demandas que os

moradores direcionam ao agente.

Mais uma vez, parece haver aqui uma relação de imbricamento entre os processos de

organizar e o campo de poder. As espécies de capital específicas do campo tendem a

influenciar os processos de organizar dos agentes, que podem ajudar a mobilizá-las, e a

mobilização das diferentes espécies de capital, por meio de processos de organizar, influencia

a posição dos agentes no campo. Além disso, no caso em questão o sucesso no acúmulo das

espécies valorizadas de capital, levando à aproximação de uma posição dominante, parece

Page 246: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

245

também ser responsável por atrair processos de organizar, por meio da transferência de

responsabilidade de outros agentes.

6.5 Conclusão

A partir da conclusão de que o Estado na favela configura-se enquanto um campo de

poder, ao qual passei a me referir como um campo burocrático do Estado em ação nas favelas,

este capítulo teve por objetivo responder a seguinte pergunta de pesquisa: qual é a relação

entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e os processos de organizar dos dos

agentes do campo?

Diante da dificuldade de se observar em campo aquilo que estamos habituados a

chamar de organizações, enquanto entidades homogêneas, com fronteiras bem definidas,

passei a adotar aqui a noção de processos de organizar, enquanto diferentes ações coletivas

que estão conectadas de acordo com um padrão que é institucionalizado em um tempo e local

determinado (LINDBERG E CZARNIAWSKA, 2006), respondendo às lógicas institucionais

em ação.

A análise do campo da “pacificação” com base na noção de processos de organizar

revelou que os processos de organizar dos agentes do campo seguem alguns padrões, tendo

em vista que ações sofrem restrições de uma ordem institucional maior, conforme já revelara

Czarniawska (2010). A lógica burocrática do campo e a influência do campo político no

campo burocrático, conforme apontado em capítulo anterior, moldam os processos de

organizar dos agentes, produzindo padrões aqui denominados de descontinuidades e lentidão.

Mas os processos de organizar também sofrem restrições das lógicas próprias de cada

agente, o que pode levar a condição de que agentes guiados por lógicas distintas

desempenham ações em direções diferentes. Além disso, as lógicas próprias de cada agente

estão por trás das disputas entre os agentes, e por isso inibem o estabelecimento de conexões

entre as diversas redes de ações. É nesse sentido que falei aqui em processos de organizar

dispersos e sobrepostos.

Lembrei, ainda, que as redes de ação apresentam um propósito (CZARNIAWSKA,

2014), que no caso dos campos de poder também estão voltados para a mobilização dos

capitais valorizados no campo. Conforme proposto no capítulo anterior, é por meio da

redistribuição de capital econômico por meio do acúmulo de capital espacial, que é possível

angariar capital simbólico e, portanto, legitimidade no campo. Nesse sentido, os agentes aqui

tendem a (des)materializar os seus processos de organizar, seja por meio da apresentação de

resultados materiais ou por meio da omissão de elementos materiais, com o propósito de

Page 247: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

246

acúmulo do capital espacial. Quando são bem sucedidos neste processo, e se aproximam de

uma posição de dominantes no campo, os agentes passam a sofrer um acúmulo de processos

de organizar, seja por meio da transferência de processos de organizar de outros agentes ou

pela demanda dos moradores por processos de organizar de outros agentes aos incumbentes

em questão.

É nesse sentido que defendemos aqui que os processos de organizar dos agentes de um

campo estão imbricados à dinâmica do campo, e moldados por suas lógicas próprias

apresentam padrões de ação. Mais ainda, as disputas inibem conexões entre ações de agentes

que se opõem, e a busca de capital também é produtora de padrões. Processos de organizar

com padrões específicos, moldados pela dinâmica do campo, refletem-se em seus efeitos no

espaço social de favelas, e é finalmente a eles que me voltarei no capítulo que se segue.

Page 248: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

247

7 (DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL: HIBRIDISMOS, AMBI GUIDADES E A FAVELA MAQUIADA

Era uma sexta-feira do mês de outubro, e aquela não era a primeira reunião entre UPP

e moradores à qual eu me dirigia. Depois de 10 meses de pesquisa de campo, já estava

habituada a participar de tais reuniões, embora agora não fossem mais tão frequentes quanto

eram no passado, conforme me relatavam os moradores. Desta vez, a reunião seria em

conjunto com o SEBRAE e, diferentemente das anteriores, não aconteceria na base da UPP,

mas sim em uma instituição filantrópica voltada para educação formal, localizada na rua

principal da favela da zona Sul.

Ao entrar no prédio da organização perguntei onde seria a reunião, e pediram que eu

aguardasse na biblioteca, para onde me dirigi. No centro da sala havia algumas poltronas que

contornavam um tapete redondo. Sentei-me em uma delas, acompanhando duas mulheres que

já estavam ali. Cheguei à reunião pontualmente às 15h, e após tantas horas aguardando atrasos

ao longo dos meses que ficaram para trás, não me parecia estranho que ainda não houvesse

quase ninguém ali. Depois de longas conversas sobre faculdades, filhos e medicina oriental,

uma hora após o horário marcado, começou a me bater um estranhamento em relação à quase

completa ausência de moradores na reunião. Ainda erámos apenas três. Uma das mulheres era

uma moradora do “asfalto” que estava hospedada em uma pensão na favela, e estava ali à

pedido da dona do estabelecimento, para levantar informações a respeito do SEBRAE. A

segunda, uma moradora da favela, que também atuava como funcionária do CRAS, respondeu

à verbalização do meu estranhamento firmando o seu crachá de representante do CRAS no

peito, e virando-o para mim. Enfatizou que estava ali apenas como representante do CRAS,

porque enquanto moradora da favela de forma alguma frequentaria uma reunião da UPP.

Questionei o porquê, e ela me respondeu, em um tom de revolta: “porque isso aqui é muita

fantasia! É uma fantasia que não corresponde à realidade...” (Notas de Campo, 18/10/2013).

Não entendi muito bem, pelo menos naquele momento, à que fantasia a moradora se

referia - e também não tive oportunidade de questioná-la, pois fomos interrompidas ali para o

início da reunião. Mas àquela altura já me parecia claro que a ideia de “favela pacificada”

propagada para o “asfalto”, especialmente por propagandas políticas e pela mídia em geral,

não correspondia à “favela pacificada” vivenciada pelos moradores. Compreendia que as

transformações na favela decorrentes da chamada “pacificação” não eram experimentadas

pelos moradores de favela da forma como vinha sendo divulgado. Um bom indício para a

minha compreensão vinha da minha própria vivência das favelas: o morro que eu subi havia

Page 249: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

248

10 meses não era mais o mesmo que eu subia naquele momento – a “favela pacificada” que eu

experimentava em minha pesquisa era bem diferente da que construí enquanto moradora do

asfalto, que apenas a lia no jornal.

Minhas vivências e reflexões me levavam à pergunta que faltava para fechar o meu

questionamento inicial: o que mudou na vida na favela, na forma como os moradores viviam

aquele espaço, a partir da intensificação de ações do Estado ali? Ou, em termos teóricos,

conceitualmente mais corretos: qual é a relação entre os processos de organizar dos agentes

do campo burocrático em ação nas favelas e o espaço social? É a esta questão que me

proponho a responder no presente capítulo.

Para tal, iniciarei apontando como cheguei ao conceito de espaço social para tratar das

favelas, e discutirei o conceito teoricamente. Depois mostrarei como o choque entre campos

guiados por lógicas distintas tende a se materializar no espaço em formas híbridas. Discutirei

também a capacidade da matéria de (des)organizar o espaço social de favelas, e como as

transformações materiais trazidas pelos agentes do Estado levam a tal (des)organização. Por

fim, proponho que se pense a “favela pacificada” como uma “favela maquiada”, partindo de

uma expressão cunhada pelos próprios moradores de favelas para melhor compreensão de sua

situação atual. Em termos metodológicos, mais uma vez parti aqui das notas de campos,

reuniões e entrevistas, tanto com moradores quanto com representantes do Estado, gravadas e

transcritas, e as analisei com base na teoria fundamentada. Além disso, também me pautei

aqui em uma análise de metáforas, parte da análise retórica, conforme explicitado no método

de pesquisa.

7.1 As Favelas enquanto Espaços Sociais

Não foi à toa que naquela biblioteca, aguardando o início da reunião da UPP, a

moradora, que era também uma representante do CRAS, usou o seu crachá para me mostrar

de forma concreta, mais efetiva do que por palavras, que ela ali se apresentava apenas

enquanto funcionária do CRAS. A importância da matéria para a organização da vida na

favela, à primeira vista talvez bastante desorganizada, também foi apontada em trabalhos

anteriores. Grillo (2013) em sua pesquisa a respeito da vida no mundo do crime, mostrou

como objetos como armas, telefones celulares e carros possuem também capacidade de ação

na criminalidade que se passa nas favelas. Ao retratar a forma como os moradores de favelas

(e posteriormente ela mesma) buscavam diagnosticar o “clima” da favela, Cavalcanti (2007)

aponta para a importância dos tiros: sua quantidade, de onde vem, se possuem ou não

resposta, são indicadores deste “clima” que se pretende analisar. E ainda muito antes, Zaluar

Page 250: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

249

(2010) demonstrou, em sua pesquisa na Cidade de Deus, na década de 1980, que um elemento

importante para diferenciar trabalhadores e bandidos é a posse de armas (ponto corroborado

pela pesquisa de Grillo (2013) anos depois).

As pesquisas que eu lia reforçavam um importante aspecto observado em campo: a

matéria também parece possuir capacidade de ação. E o meu olhar de pesquisadora de estudos

organizacionais me levava a priorizar, de forma ainda mais específica, a capacidade de

organização dos elementos materiais: crachás e uniformes serviam para deixar claro quem é

quem; prédios e suas grandes dimensões serviam para demonstrar quem tinha mais poder; e a

ausência de tiros e armas se pretendia a demonstrar que se tratava ali de uma “favela

pacificada”.

É este imbricamento entre o social e o material que Lefebvre (2007) e outros autores

por ele influenciados assumem como premissa ao propor o seu conceito de espaço social31.

“O espaço (social) é um produto (social)” – assim pode ser sintetizada a principal proposição

apresentada por Lefebvre (2007) em sua obra The production of Space. O termo “social” é

posto entre parênteses pelo autor para ressaltar a aparente obviedade de seu enunciado. O

espaço é produzido por meio de práticas, é formado por um conjunto de relações

(LEFEBVRE, 2007) e, portanto, o social lhe é inerente.

Com vistas a superar o incômodo abismo entre social e material, em busca de uma

“teoria unitária do espaço”, Lefebvre (2007) apresenta o seu conceito de espaço social. A

partir de suas críticas, Lefebvre (2007) defende que o espaço social seja pensado, não como

sujeito nem como objeto, mas como uma realidade social, um conjunto de relações e formas.

A importância das relações sociais para se pensar em um espaço social, que é muito mais do

que um espaço físico, é reforçada por Lefebvre (2007, p. 83): “any space implies, contains

and dissimulates social relationships – and this despite the fact that a space is not a thing but

rather a set of relations between things”32. Portanto, segundo Lefebvre (2007), o espaço social

31 Considera-se, entre os geógrafos, que os conceitos de espaço e território estão estreitamente relacionados e fala-se em uma inseparabilidade entre eles. Em termos gerais, o espaço é assumido como um conceito de maior amplitude e anterior ao território (RAFFESTIN, 1993; GEIGER, 2002; CORRÊA, 2002; HAESBERT e LIMONAD, 2007). Para Raffestin (1993, p. 143), “o território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível”. Por meio do trabalho os indivíduos apropriam-se do espaço e o territorializam, sendo o território, assim, uma produção a partir do espaço (RAFFESTIN, 1993). Entretanto, conforme lembra Haesbaert (2014), embora Lefebvre refira-se sempre a espaço e não a território, o autor o compreende enquanto um espaço-processo, enquanto um espaço socialmente produzido, e não a este espaço físico-natural, antecessor ao território. Por isso neste caso não se faz necessária uma diferenciação entre os conceitos. 32 Tradução Livre: qualquer espaço implica, contém e dissimula relações sociais - e isso apesar do fato de que um espaço não é uma coisa, mas sim um conjunto de relações entre coisas.

Page 251: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

250

não é simplesmente uma coisa ou um produto dentre outros, mas contém coisas produzidas e

engloba suas inter-relações.

Esta concepção também se reflete no trabalho de outros autores que o seguiram, como

Milton Santos, Soja ou Raffestin, para mencionar alguns. Fortemente influenciado pela obra

de Lefebvre, Milton Santos, exímio geógrafo brasileiro, propõe uma noção de espaço

condizente e similar. Para o autor, “o espaço é formado por um conjunto indissociável,

solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não

considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS,

2009a, p. 63). A partir de sua definição, Santos (2009a) reforça a ideia de que os sistemas de

objetos e os sistemas de ações não podem ser pensados um sem o outro. Os sistemas de

objetos dão forma às ações, e os sistemas de ações criam novos objetos. Eles interagem e, por

meio desta interação, o espaço se transforma. Diante dessa indistinguibilidade, o autor propõe

que a interação entre os dois sistemas seja tratada, ao mesmo tempo, como processo e como

resultado. O espaço é, então, dinâmico e unitário, contendo materialidade e ação humana

(SANTOS, 2008).

Para Soja (1993), Lefebvre pode ser considerado como o autor que deu origem à

geografia humana crítica pós-moderna, e ele próprio sofre influência da obra de Lefebvre.

Soja (1993) entende o espaço como uma construção social, uma estrutura criada, “comparável

a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes

ao estar vivo” (SOJA, 1993, p. 101).

Também indo ao encontro de Lefebvre (2007), Raffestin (2012) defende que o espaço

é uma construção, é um instrumento que se transforma de acordo com as necessidades.

Portanto, explica o autor, o espaço não pode ser definido de forma absoluta ou permanente, “it

is a concept that permits positing or inventing a means to go beyond, in order to express both

material and immaterial realities33” (RAFFESTIN, 2012, p. 123).

Com vistas a clarificar o conceito, Raffestin (2012) estabelece uma comparação entre

o espaço e o “livro de areia”, de autoria de Jorge Luis Borges. Na referida obra, Borges

explica que o livro recebeu este nome porque, assim como a areia, também não tem início e

nem fim. Segundo Borges, seu livro tem infinitas páginas, dentre as quais nenhuma é a

primeira ou a última. Para Raffestin (2012), o livro de areia é uma boa metáfora para o

problema do espaço, entendido como um espaço socialmente produzido, cujas origens

33 Tradução Livre: é um conceito que permite a postulação ou a invenção de um meio de ir além, a fim de expressar tanto realidades materiais como imateriais.

Page 252: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

251

perdem-se de vista, assim como o fim. Para Raffestin (2012, p. 122), “space is the book, and

vice versa34”.

Outra implicação importante dessa perspective, está relacionada com a concepção do

espaço social como meio de produção, como produtor social, material e imaginário, e não

apenas como um produto a ser usado e consumido (LEFEBVRE, 1991; DALE e BURRELL

2008). Como consequência, “places and spaces shape our actions, interactions and sense of

meaning, emotions and identity35” (DALE e BURRELL, 2008, p. 43). Assumindo o espaço

como produto social, Lefebvre (2007) propõe que o interesse de estudo não deve estar voltado

para “as coisas no espaço”, mas, isto sim, para “a produção do espaço”. As coisas que se

localizam no espaço e o discurso sobre ele são capazes de fornecer pistas sobre seu processo

de produção (LEFEBVRE, 2007).

Daí a relevância de avançar na discussão das consequências da proposição “(social)

space is a (social) product”36 (LEFEBVRE 1991 p. 26). De fato, o espaço social, produzido e

reproduzido em conexão com as forças de produção, não é produto apenas de atividades

econômicas e técnicas, é também, e principalmente, um produto político (LEFEBVRE, 2007).

Seguindo sua sentença, Lefebvre (2007) explica que, como produto social, o espaço acaba por

assumir uma realidade própria e, além de ser um meio de produção, também se torna um meio

de controle, de dominação, de poder. Portanto, ao se investigar “a produção do espaço”,

também cabe investigar as relações de poder que o espaço revela, e no caso das favelas, aqui

analisadas, este espaço é produzido por meio de um choque entre campos de poder, no

encontro das lógicas do campo burocrático do Estado e do campo das favelas.

Com base no pensamento de Lefebvre (2007), que propõe que a produção do espaço

seja entendida a partir de uma interação de aspectos materiais e sociais combinados

(LEFEBVRE, 2007), Dale (2005, p. 651) propõe a noção de materialidade social como um

conceito “whereby social processes and structures and material processes and structures are

seen as mutually enacting37”.

Ao propor o conceito de materialidade social, Dale (2005) esclarece que a

materialidade não pode ser reduzida simplesmente a coisas. Para a autora, a materialidade

contém cultura, linguagem, imaginação, memória, e por isso é muito mais do que um simples

34 Tradução Livre: espaço é o livro, e vice-versa. 35 Tradução Livre: lugares e espaços moldar nossas ações, interações e senso de significado, emoções e identidade. 36 Tradução Livre: “O espaço (social) é um produto (social)” 37 Tradução Livre: em que os processos e as estruturas sociais e processos e estruturas materiais são vistos como mutuamente determinantes

Page 253: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

252

objeto. A autora lembra, ainda, que não é apenas a materialidade que assume significados

sociais, mas a própria materialidade também molda a natureza da agência social, tendo em

vista que os seres humanos são parte do mundo material, e por isso não são capazes de

manipulá-lo sem que sejam incorporados ou mudados por ele. Portanto, para Dale (2005), é

preciso romper com a ideia de que o material configura-se como algo fixo e inerte, enquanto o

social, como algo dinâmico e ativo.

Para ilustrar a noção de materialidade social e esclarecer sua proposta, Dale (2005)

compara o conceito a uma metáfora do rio e suas margens. A autora lembra que a visão mais

comum que se tem de um rio é a de que este atua como uma força ativa em movimento, capaz

de mudar a paisagem por onde passa. As margens, por outro lado, são vistas como estruturas

fixas, determinadas pelo movimento do rio. Ideia semelhante, lembra a autora, tem-se do

social e do material. Entretanto, Dale (2005) argumenta que um olhar mais próximo e

cuidadoso pode perceber as falhas inerentes a esta visão. A formação do rio também é

determinada pela configuração das margens, e as margens também atuam como forças ativas.

Mais ainda, o rio carrega pedras e areia das margens, e os dois tornam-se quase

indistinguíveis, assim como o são o material e o social.

Carlile et al (2013) explicam que a noção de materialidade social aponta para a

performance da matéria e para o imbricamento entre o social e o material. Para os autores é

irônica a limitada atenção dada à materialidade como tópico de interesse de pesquisa, tendo

em vista que grande parte da vida humana tem sido mediada por objetos e artefatos. Também

defendem que a visão passiva da materialidade abre espaço para que se assuma uma

neutralidade entre seres humanos e não-humanos e, assim como Dale (2005), assumem que a

matéria é importante, pois objetos materiais também possuem um papel ativo na vida social.

Indo ao encontram de autores como Dale (2005) e Carlile et al (2013) que buscam

ampliar a atenção à materialidade em estudos organizacionais, assume-se aqui que o conceito

também amplia as possibilidades de compreensão dos processos de organizar. Dale e Burrell

(2008) chamam atenção para o fato de que as organizações têm sido afastadas de elementos

do mundo material e social, e por isso precisam ser rematerializadas. Crítica semelhante é

apresentada por Clegg e Kornberger (2006), que defendem que as organizações não estão

atentas para o espaço que ocupam, nem mesmo para a razão ou modo como o ocupam.

Assumindo a centralidade das organizações na sociedade contemporânea, Dale e

Burrell (2008) argumentam que elas atuam como mediadoras das práticas sócio-espaciais e,

portanto, assumem um papel primordial na construção do espaço social. A partir de uma

Page 254: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

253

noção da organização como uma forma social que facilita a ação coletiva ou como um

processo ordenador, Dale e Burrell (2008) explicam que a entendem como uma entidade

embebida no mundo material e social. Defendem, a partir daí, que o espaço e a materialidade

constroem a organização assim como a organização os constrói.

Nesse sentido, Dale e Burrell (2008, p. 33) propõem uma análise das organizações

mais consciente do espaço e da materialidade, e se propõem, assim, a seguir uma abordagem

“which takes organisation out into the world, rather than seeking to bring the world to

‘organisation’38”. No mesmo sentido, para Goulart (2006), a aproximação com o referencial

que trata do espaço geográfico, possibilita que estudos organizacionais ampliem seu nível de

análise, sem que se perca, entretanto, o foco nas organizações e em suas interações.

Mas para se pensar as organizações como produtoras e produto do espaço social e de

sua materialidade, conforme demandam Dale e Burrell (2008), não se pode perder de vista o

caráter dinâmico, contínuo e reflexivo da relação que se estabelece entre as organizações e os

espaços nos quais estão inseridas. Portanto, a centralidade das organizações no processo de

produção do espaço social, e como mediadoras das práticas sócio-espaciais, só poderá ser

assumida quando as organizações forem concebidas a partir de uma perspectiva processual,

enquanto acontecem (SCHATZKI, 2006), como entidades inacabadas ou como um contexto

para ação e interação humana (HERNES, 2004).

Para se pensar em uma relação entre organizações e espaço social, é preciso

compreender que a natureza reflexiva inerente a esta relação implica um processo de

produção contínuo, em que os dois são, simultaneamente, produto e produtor e, portanto,

inacabados. Assim, faz-se mais uma vez necessária uma aproximação da noção de processos

de organizar.

Conforme ressaltou Orlikowski (2007, p. 1435), para que se compreenda os processos

de organizar, é importante considerer “the ways in which organizing is bound up with the

material forms and spaces through which humans act and interact39”. Como lembra o autor, a

materialidade molda os contornos e possibilidades dos processos de organizar, assim como os

processos de organizar moldam a materialidade. E este imbricamento entre os conceitos

mostrou-se presente no espaço social de favelas, conforme será demonstrado a seguir.

38 Tradução Livre: que leva a organização para o mundo, em vez de tentar trazer o mundo para a "organização”. 39 Tradução Livre: as maneiras pelas quais a organização está vinculada com as formas materiais e os espaços através dos quais os seres humanos agem e interagem.

Page 255: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

254

7.2 Quando Campos se Chocam: Hibridismos e Ambiguidades no Espaço Social

Foi assistindo a uma palestra do Mário Brum em uma disciplina sobre favelas

cariocas, na Fundação Getulio Vargas, que voltei minha atenção para os hibridismos que se

materializavam nos espaços de favelas, e a partir daí comecei a observá-los com mais cuidado

em meu campo. Ao apresentar os principais resultados de sua tese40 a respeito da Cidade

Alta, na Cidade de Deus, Mário Brum projetou algumas fotos do que havia se tornado a

Cidade Alta, inicialmente construída como um complexo habitacional para receber os

desabrigados após o incêndio na Praia do Pinto (BRUM, 2011). As fotos eram alarmantes: os

prédios padrão, todos iguais, construídos em blocos que em conjunto formavam o complexo

habitacional, tinham sido alterados pelos moradores do local das mais diversas maneiras.

Muitos construíram “puxadinhos”, formando uma estrutura retangular que se projetava para

fora das paredes, que antes determinavam os limites do prédio. Para manter a estrutura

sustentada, alguns construíram uma pilastra entre ela e a calçada externa ao prédio. Com o

tempo, foram sendo construídos barracos ao redor dos prédios, e alguns até mesmo entre duas

fileiras de prédios, ligando-as. Era um hibridismo de construções “padronizadas” do Estado e

não padronizadas dos moradores que se materializava no espaço em formatos nada

convencionais.

Como os processos de organizar desempenhados por agentes de um campo estão

imbricados à lógica própria de cada campo, agentes do campo burocrático do Estado e agentes

do campo da favela tinham suas maneiras próprias de organizar, e o choque entre elas, por

meio do qual se produz o espaço social de favelas, parecia se materializar em formas híbridas,

como as observadas por Brum (2011) na Cidade Alta.

Guiados pela lógica de “lutas”, marca do campo da favela, conforme descrito em

capítulo anterior, os moradores das favelas desempenhavam processos de organizar que

pareciam seguir um padrão marcado pela agilidade e funcionalidade, que o apelo para a

informalidade, também marca do campo, os possibilitava alcançar. Marcados por um histórico

de escassez de ações do Estado e, consequentemente, de escassez de elementos básicos para a

sua sobrevivência, como água, luz ou saneamento básico, os moradores foram aprendendo a

sobreviver por eles mesmos, a suprir com seus próprios processos de organizar a falta de

processos de organizar do Estado ali.

40 BRUM, Mario Sergio. Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História Social/PPGH-UFF. Niterói, 2011.

Page 256: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

255

Com o “processo de pacificação” e com a intensificação de ações do Estado nas

favelas, os moradores vivenciaram um período inicial de euforia, e muitos deles retrataram

para mim os sentimentos de esperança e expectativa que marcaram este momento de entrada

das UPPs. A descrição de uma moradora a respeito deste período inicial que apresento a

seguir me foi narrada de forma bastante semelhante, embora com palavras e entonações

diferentes, por muitos moradores em entrevistas ou conversas informais:

(..) quando na entrada da UPP, teve aquele período de recepção, né, de conhecer, de

conhecer, a comunidade conhecer, conhecer o projeto, e o pessoal, né, o secretário, o

comandante, conhecer a comunidade. Eu achei até bacana, a comunidade compareceu, a

comunidade compareceu porque era algo novo, era algo que a comunidade estava vendo na

televisão que estava dando certo nas comunidades da Zona Sul, então a comunidade criou

aquela expectativa, sabe, achando que ia ter diálogo, que ia ser possível ter discussões em

torno da necessidade da comunidade, que ali o projeto. Aí a comunidade foi. Mas hoje a

comunidade já não está mais na credibilidade da UPP, entendeu, em torno do projeto UPP.

Não está mais. E eu vou te falar em nome da comunidade até, até ousar e falar em nome da

comunidade, a comunidade está muito cansada porque eu converso com todo mundo, toda

hora, todo dia (Morador 23, Favela da zona Norte).

O sentimento generalizado parece poder assim ser resumido: “eles criaram na gente

muita expectativa para nada” (Morador 22, Favela da zona Norte).

Acontece que as UPPs também parecem trazer um agravante para a reputação do

Estado entre os moradores: se antes da “pacificação” a justificativa dada pelos agentes do

Estado era a de que não conseguiam atuar nas favelas por problemas de segurança, agora essa

justificativa não se fazia mais válida, a não ser que o próprio Estado colocasse em xeque o

programa das UPPs. A ausência de uma justificativa plausível para a permanência de

necessidades básicas não atendidas nas favelas, serviu para reforçar (e talvez consolidar de

vez) a falta de confiança dos moradores no Estado, e a frase que provavelmente eu mais ouvi

dos moradores ao longo da minha pesquisa parecia caracterizar de forma unânime a visão que

eles tinham acerca do poder público: “não fazem porque não querem”. Conforme explicou um

morador:

Porque a desculpa do Estado e da prefeitura é que não atuavam dentro da comunidade

porque não havia segurança. Ponto. Quando a UPP foi instalada, todo mundo pensou que as

demandas de esgoto, falta de água, coleta de lixo, iluminação pública... Todas as demandas

do poder público, projetos sociais, iam vir junto com a UPP. Todo mundo abraçou a UPP

aqui dentro da comunidade da [favela da zona Norte]. (Morador 11, Favela da zona Norte).

Passada a fase inicial, os moradores parecem hoje vivenciar uma certa decepção com o

Estado. Depois de um longo histórico de falsas promessas e de atenção apenas em períodos

Page 257: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

256

eleitorais, os moradores desenvolveram uma relação de falta de confiança em relação ao

Estado, e este sentimento só foi reforçado após mais uma decepção: a entrada das UPPs gerou

uma série de expectativas que, na visão dos moradores, não foram atendidas, e o Estado agora

não conta mais com uma boa justificativa para tal. A crença de que a entrada da UPP seria

acompanhada por uma série de outros programas e ações do Estado, que resolveriam de vez

os problemas das favelas, não foi confirmada. O sentimento de falta de confiança era expresso

pelos moradores em frases como: “tudo que vem do governo o pessoal fala ‘olha, tá dando

com uma mão, vai puxar com as duas’” (Morador 24, favela da zona Sul) ou “o morador não

acredita mais” (Morador 23, Favela da zona Norte).

Quando os questionava a respeito desta falta de confiança em relação ao Estado, os

moradores não apenas me narravam um passado repleto de decepções, promessas não

cumpridas, ou programas públicos que foram iniciados, mas nunca finalizados (como o caso

do programa “cada família um lote” ao qual os moradores apelidaram de “cada família um

calote”), mas também se remetiam a uma desconfiança em relação aos reais interesses por trás

do programa das UPPs e os demais programas públicos que a seguiram nas favelas.

A associação das intervenções públicas atuais nas favelas com a Copa do Mundo e as

Olimpíadas a serem sediadas no Rio de Janeiro parecia ser, para quase todos, pelo menos uma

hipótese a ser considerada, e até mesmo muitos policiais estabeleceram relação entre os

eventos esportivos e o programa das UPP. Como consequência, o ano de 2016, ano em que

aconteceram as Olimpíadas na cidade, parecia assombrar o imaginário dos moradores, que se

referiam com temor ao período pós-2016: “Depois que passar Copa do Mundo, que passar

essas coisas todas, será que a gente vai ter a paz ainda? Mesmo que seja falsa, mas será que....

Momentânea, entendeu? Será?” (Morador 13, favela da zona Sul).

Os processos de organizar lentos e descontínuos, característicos do campo burocrático

do Estado em ação nas favelas, não parecem ser capazes de atender às expectativas dos

moradores, especialmente quando se trata de um espaço novo e complexo para os agentes do

Estado, nos quais eles ainda não conseguiram criar plenamente as suas novas rotinas. Diante

da perda de esperança e da desconfiança em relação ao Estado, os moradores de favelas hoje

acabam tendo que realizar, ainda, esforços para que suas necessidades sejam atendidas – seja

por meio de um esforço excessivo para conseguir que os agentes do Estado atendam às suas

demandas, seja fazendo eles mesmos. De uma forma ou de outra, os moradores de favela

ainda precisam “lutar”.

Page 258: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

257

Agentes do Estado referem-se a uma diferença que marca o “tempo do Estado” e o

“tempo da favela”, reflexo das diferenças de lógicas, levando a uma inquietação dos

moradores, que acabam por resolver os seus próprios problemas. Acontece que os processos

de organizar de moradores de favela, marcados pelo imediatismo, assumiram padrões de

maior rapidez e funcionalidade, em um campo em que pode se apelar para a informalidade. Já

os processos de organizar do campo burocrático do Estado em ação nas favelas assumem

padrões de lentidão, decorrentes do encontro entre a lógica burocrática do campo e a novidade

de um espaço, para eles, complexo, que os exige novas rotinas.

A incompatibilidade de tempos sobre a qual me falavam alguns agentes do Estado

ganhou forma para mim, especialmente, em uma das reuniões de integração do PAC. Na

ocasião, uma representante do programa “ensinava” aos moradores que eles não podiam

deixar móveis e sofás velhos nas dependências do prédio. Era preciso ligar para a Comlurb

buscar. E completou: “A Comlurb é muito rápida!” (Notas de Campo, 23/09/2013). Ao seu

comentário, uma moradora respondeu: “Ela é muito rápida quando é ali na Vieira Souto!”

(Notas de Campo, 23/09/2013). E daí desencadeou-se uma discussão a respeito da agilidade

da Comlurb. Em voz baixa, a senhora que sentava atrás de mim comentou: “Mas que

discussão idiota! Tem um monte de bêbado aqui, é só dá um trocado para o bêbado que ele se

livra do sofá na hora!” (Notas de Campo, 23/09/2013).

Diante da incapacidade, demora ou excessivas exigências burocráticas dos agentes do

Estado na resolução dos problemas dos moradores de favelas, muitos dos quais dizem respeito

a demandas urgentes, mesmo em um contexto de uma presença mais intensa dos agentes do

Estado nas favelas, dá-se perpetuidade à lógica de “lutas”, e os moradores fazem por eles

mesmos. Este é o caso, por exemplo, dos gatos, que ainda são adotado por alguns moradores,

mesmo com uma atuação mais intensa da Light nas favelas:

eu tentei normalizar quando eu fiz a minha casa, quando eu comprei um relógio quando

eles chegaram lá eles falaram que não era aquele relógio. Tinha que ser um outro e botou

mil e um empecilho. Eu continuei com o gato porque eu tinha acabado de gastar num

relógio que eu pedi para eles colocar, fiz caixinha dentro, fora da minha casa, tudo para

encaixar, eles disseram que não era nada daquilo, que eu tinha que comprar um outro e não-

sei-o-quê, não-sei-o-quê, quebrar de novo a casa, eu continuei no gato (Morador 6, Favela

da zona Norte).

É por meio do choque entre campos com lógicas distintas, e consequentemente entre

processos de organizar ágeis e lentos, transitando entre informalidade e formalidade, que o

espaço social de favelas parece ser produzido. E este choque reflete-se no espaço social,

expressando-se como hibridismos e ambiguidades.

Page 259: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

258

7.2.1 Hibridismos

Ao retornar, meses depois, ao local do mutirão de limpeza do qual participei na favela

da zona Norte, me deparei, com muito pesar e com lágrimas nos olhos, com os sacos de lixo

que enchemos durante os mutirões decompondo-se no local onde os posicionamos para que a

Comlurb os retirasse. O lixo ensacado já estava ficando exposto, e os moradores começavam

a jogar mais lixo em cima dos sacos. A Comlurb não estava conseguindo retirar o lixo com

tanta rapidez quanto conseguimos ensacá-lo, e a diferença de tempos entre os processos de

organizar da favela e do Estado materializava-se no espaço naqueles sacos decompostos que

voltavam a se tornar um grande bloco de lixo. Ao lembrar dos longos sábados quebrando lixo

com a enxada e ensacando-os com uma pá, tive vontade de chorar.

Embora o mais comovente, este não foi o único exemplo em que pude enxergar no

espaço os efeitos dos choques entre processos de organizar imbricados a campos com lógicas

distintas, produzindo hibridismos espaciais. Logo após a interrupção das obras do PAC na

favela da zona Sul, que deixou várias obras inacabadas no espaço da favela, pude observar a

rápida ocupação que os moradores faziam deste espaços temporariamente abandonados pelo

PAC. Conforme mostrei anteriormente, o capital espacial é valorizado tanto no campo da

favela quanto no campo do Estado e é, no primeiro caso, justamente o que define um agente

enquanto agente daquele campo. Portanto, além de ser disputado dentro de cada campo, o

capital espacial também é disputado entre os agentes de ambos os campos, quando estes se

apresentam dentro de um mesmo espaço geográfico. Mas a maior agilidade dos processos de

organizar do campo da favela permite que os moradores apropriem-se com rapidez de espaços

em que o Estado deixa de atuar, mesmo que temporariamente.

Por isso, vi as ruas semi-abertas pelo PAC serem ocupadas por mesas de pingue-

pongue, onde os moradores jogavam em cima do asfalto. Vi apartamentos serem ocupados

por moradores, que depois impediam a retomada da obra, e logo davam a “sua cara” ao

espaço ocupado. Ouvi relato de degraus de cimento que foram construídos para dar

sustentação a um parque infantil serem ocupados por casas construídas rapidamente pelos

moradores. E mesmo quando as obras eram finalizadas, mas não agradavam aos moradores,

dava-se um jeito: vi uma praça com mesas e bancos de cimentos ser ocupada com uma

poltrona velha, que embora não “combinasse” muito com a decoração da praça, era muito

mais confortável para se sentar.

Os hibridismos espaciais também apareciam como consequência do choque entre a

informalidade do campo da favela e a formalidade do campo burocrático do Estado. Um bom

Page 260: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

259

exemplo são os moto-taxis. Conforme lembrou Misse (2013) as favelas nunca contaram com

transporte público, e por isso desenvolveram seus próprios meios de locomoção, tendo em

vista que a inclinação dos morros dificulta que se suba-os a pé. Em ambas as favelas

pesquisadas, as opções de transporte para subir o morro se davam com o uso de kombis ou

moto-taxis, ambos no valor de R$2,50, à época da pesquisa. Com a entrada da UPP, que veio

acompanhada de um discurso de que as leis da favela agora teriam que seguir as leis do

“asfalto”, a questão do transporte informal teve que ser repensada. Entretanto, conforme

explicou Misse (2013), a profissão de moto-taxista não é reconhecida pela prefeitura. Com a

“pacificação” estes meios de transporte não foram formalizados pela prefeitura, e continuam

atuando de forma irregular, tendo em vista que são indispensáveis à vida na favela, e que o

Estado não apresentou nenhuma outra alternativa formal.

Entretanto, como pude perceber ao longo de minha pesquisa de campo e conforme

reforçado também por Misse (2013), os comandantes das UPPs, embora tenham mantido os

meios de transportes informais, impuseram uma série de regras para o seu funcionamento,

como o uso obrigatório de capacetes e de coletes, e a determinação do local dos pontos.

Diante da incapacidade do Estado de prover transporte público, os moradores resolveram o

problema a sua própria maneira, marcada pela informalidade. Com o choque de campos, que

se intensifica com a entrada das UPPs, a formalidade do campo do Estado produz na favela

um hibridismo: um meio de transporte ilegal com regras formais de atuação.

Entretanto, os agentes campo burocrático do Estado em ação na favela também

começam se apropriar pela lógica da própria favela, principalmente, no que diz respeito à

funcionalidade. De fato, muitos agentes do Estado passaram a incorporar em suas próprias

estruturas organizacionais, formas organizacionais advindas do campo da favela, produzindo

estruturas híbridas. Conforme mostrou Silva (2013), os mutirões de limpeza, por exemplo,

que costumam ser realizados pelos moradores, passam a ser remunerados pelo Estado. Um

exemplo emblemático em minha pesquisa é o caso do PAC, que firmou contrato com uma

organização dos moradores da favela da zona Sul que trabalha com a questão do lixo, para

que estes realizem mutirões de limpeza periódicos, conscientizando os moradores a respeito

da questão do lixo. De forma ainda mais ampla, como mostrou Silva (2013), surge

recentemente nas favelas a figura do agente comunitário: morador da favela que passa a atuar

para um determinado órgão público. Diversos agentes do campo burocrático do Estado em

ação nas favelas analisadas contavam com este cargo: UPP Social, PAC, Clínica da Família,

CRAS, são alguns deles. A Comlurb incorporou como parte de suas funções o estímulo aos

Page 261: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

260

mutirões em favelas – realizados pelos moradores, para os quais a Comlurb cedia o material.

Conforme me explicou um gerente da Comlurb em entrevista:

V – E como é que funcionam esses mutirões?

K – Tem moradores voluntários, a gente cede no caso a luva e o equipamento necessário e

eles marcam um dia e entra a Comlurb e o material da Comlurb e os moradores voluntários,

né. Então eles vão lá e limpam as canaletas, ... Geralmente as encostas.

V – Entendi. É... E aí essas encostas são limpas no mutirão porque no trabalho do dia a dia

da Comlurb vocês não têm acesso a esse tipo de...?

K – Essas encostas... Quando acontece isso são encostas que... A Comlurb tem a rotina

dela, mas não de ficar limpando dia a dia o que o morador faz de errado. Então tem

algumas áreas que a Comlurb não tem mão de obra suficiente, então, a medida que passa o

tempo a Comlurb limpa alguma coisa e... Mas não coisas assim excessivas. Aí combinam

“Vamos fazer uma limpeza ali e vamos orientar os moradores”. Aí alguns aceitam, outros

continuam jogando no terreno lá, tem má vontade de carregar o seu lixinho até um

container mais próximo. Sai jogando, infelizmente...

V – E esses mutirões eles acontecem por iniciativa dos moradores ou é a própria Comlurb

que propõe, que chega lá e “ah, vamos fazer um mutirão”.

K – Não, quando tem assim necessidade,... Isso aí depende muito da visão técnica, quando

precisa a gente convoca e vê se eles podem colaborar... Porque também, é um mutirão, não

é obrigado, né... É voluntário, é uma coisa bem espontânea. Mas aqui eu ainda não fiz. Lá

no Borel acontecia sempre porque já virou uma rotina.

V – uhum. Entendi. Aí vocês chegam, propõem, veem ...

K – Vai na associação de moradores, convocar os líderes daí, indicados por eles, aí vamos

convocar o pessoal no dia tal.

V – E fora das comunidades tem esse tipo de trabalho também?

K – De mutirão não. Da Comlurb não (Representante da Comlurb 1, Favela da zona Norte).

Como se pode perceber no trecho acima, a Comlurb reconhece sua incapacidade de

responder à urgência imposta pela lógica da favela, concretamente, de fazer uma limpeza

completa das favelas, e por isso contam com os próprios moradores para ajuda-los nesta

função, muito embora não possam obriga-los a tal. Em algumas favelas, como é o caso do

Borel, relatado pelo gerente da Comlurb, os moradores são quase “incorporados” à estrutura

da organização, e já se conta com o trabalho deles para que a função da Comlurb seja

cumprida, com auxílio destes mutirões que passam a ocorrer periodicamente. Já no asfalto

isso não acontece, uma vez que a rotinização já está estabelecida.

Os hibridismos retratados anteriormente e os elementos empíricos que me conduziram

a esta categoria são sintetizados na Figura a seguir:

Page 262: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

261

Hibridismos

Choque entre campo burocrático do Estado e

campo das favelas produzindo hibridismos

- Espaços semi-construídos pelo Estado e ocupados por moradores;

- Meios de transportes informais, seguindo regras formais;

- Estruturas organizacionais híbridas

Figura 18. Hibridismos Em síntese, o que aqui me propus a demonstrar é que a lógica de “lutas” do campo da

favela levou os moradores historicamente a desenvolverem formas mais funcionais e ágeis de

organizar, possíveis em um campo marcado pela informalidade e pela urgência imposta pelos

problemas enfrentados. Já no campo burocrático do Estado, que busca “penetrar” o espaço da

favela, os processos de organizar são marcados pela formalidade, e parecem ser “lentos” e

demorados aos olhos dos moradores. Quando os campos se encontram, em uma período de

“pacificação”, este choque produz efeitos no espaço, exemplificado discursivamente pela

metáfora da luta e materializado em hibridismos espaciais, seja em construções, em serviços

informais semi-formalizados ou mesmo nas próprias estruturas organizacionais dos agentes

que atuam naquele espaço.

7.2.2 Que Lei Seguir? A Ambiguidade entre Leis do Tráfico e das UPPs na Favela “Pacificada”

O clima no pé do morro estava bem diferente naquela manhã de quinta-feira. Uma

grande aglomeração de pessoas concentrava-se em uma das principais entradas da favela, e a

concentração de gente contava com alguns repórteres - alguns arrumando suas câmeras,

outros gravando. A movimentação acompanhada da presença de muitos policiais armados,

Page 263: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

262

tanto policiais dos batalhões quanto policiais da UPP, me apontava claramente que alguma

coisa incomum havia acontecido. Subi um pouco a rua principal e perguntei a um morador,

que me explicou que houve confronto entre a UPP e os traficantes naquela madrugada, e um

morador havia morrido. Ele me informou que o conflito já estava encerrado. Assim, peguei

um moto-taxi e subi o morro. Eu me dirigia à Associação de Moradores, e o moto-taxi, agora

proibido de circular pelas vielas, teve que me deixar ainda na rua principal para que eu

andasse por ruas mais estreitas até o meu destino final. Desci da moto e, insegura, perguntei

ao motorista: “agora já tá tranquilo, né? Eu posso entrar aí sem problemas, né?” (Notas de

Campo, 24/10/2013). Para aumento da minha insegurança, o motorista respondeu: “olha, não

posso te garantir nada não. Não posso te dizer que está tranquilo não...” (Notas de Campo,

24/10/2013). Pensei na possibilidade de recuar, mas aquela era a minha chance de observar

uma favela após confronto, seguido de morte. Guiada pela curiosidade, segui em frente.

As ruas da favela estavam absolutamente desertas, com todo o comércio fechado, e um

silêncio que antes eu acreditava ser impossível. Andando por vielas desertas, comecei a me

sentir cada vez mais tensa, e conforme meu nervosismo aumentava, acelerava os meus passos.

A minha sensação era de que a Associação de Moradores estava mais longe aquele dia.

Quando finalmente cheguei à Associação, deparei-me com a presidente sentada à mesa de

recepção. O seu simpático “bom dia” habitual foi substituído por uma expressão de espanto:

“Você subiu? Você é maluca?!” (Notas de Campo, 24/10/2013). Expliquei a ela que eu tinha

entendido que as coisas já estavam normalizadas. Ela me explicou que o tráfico havia

determinado o fechamento de todo o comércio, incluindo creches e escolas, e que em

situações como essa não era prudente circular pela favela. Sugeriu fortemente que eu descesse

o morro de imediato, pois os policiais da UPP ainda rondavam a favela de fuzis em punho, e

outro confronto poderia acontecer a qualquer momento. Pediu que um morador me

acompanhasse até o pé do morro. Eu obedeci e desci com ele, bastante abalada.

Os traficantes não apenas ainda estavam presentes na favela “pacificada”, como

também ainda impunham as suas “leis”, e um pedido de fechamento do comércio era

obedecido por todos, sem sinais de hesitação. Não obstante sua imprecisão, conforme descrito

por Grillo (2013), as “leis do tráfico” ainda estavam presentes na favela “pacificada” e foram

logo de início aparecendo para mim.

Em meus primeiros meses em campo, uma jornalista “gringa” subiu o morro para

fazer uma reportagem a respeito das tão faladas favelas “pacificadas”. Após conversar com

alguns moradores, a jornalista começou a descer o morro a pé, e até recusou a companhia de

Page 264: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

263

moradores que haviam se oferecido para acompanha-la. No percurso, parou para tirar algumas

fotos, que ilustrariam a reportagem. Acontece que ainda existe no morro uma importante “lei

do tráfico”: a proibição de fotos por pessoas de fora. Assim a “gringa” foi interpelada por um

“bandido”, que pegou a sua câmera, apagou as suas fotos e a conduziu ao elevador, com um

aviso claro de que ela nunca mais poderia voltar ali. Ouvi este relato de diferentes fontes, que

talvez estivessem tentando me alertar para a permanência de “leis” as quais eu precisava

seguir. Isto foi suficiente para me fazer desistir de minha ideia inicial de trabalhar com

fotografias como forma de coleta de dados para a minha pesquisa de tese.

Além da imposição de punições àqueles que criavam vínculos com os policiais das

UPPs, conforme relatado em capítulo anterior, os traficantes ainda mantinham a prática dos

conhecidos “tribunais do tráfico”, e a necessidade de “desenrolar” com o dono do morro ainda

se fazia presente em algumas situações, e contrapunha-se às novas leis da UPP. Alguns

moradores até mesmo defendem que maneira certa de se resolver as questões em alguns casos

consiste em pedir autorização para o tráfico para levar alguma questão à UPP, conforme

revela o diálogo abaixo:

Vanessa: Mas hoje as pessoas ainda levam questões para o Dono do Morro resolver assim,

esse tipo de briga, ainda levam para o Dono do Morro resolver?

Entrevistado: Tem que levar. Por que o pessoal vai levar para quem? Vai levar para o

comandante?

Vanessa: É, nesse caso...

Entrevistado: Você dentro da comunidade, onde é uma lei que não tem limite, onde se o

cara do nada eles podem pintar e fuzilar esse prédio, ir na UPP e jogar uma bomba se eles

quiserem, e o problema todo não é esse que você está na comunidade. Você tem um lugar

fixo que tem essa casa. Você vai apostar toda a sua vida lá na UPP? Talvez, vá ficar só ali o

problema. Mas até isso você pode falar para o bandido: "olha só, algum problema eu posso

resolver na polícia, coisa e tal?" Até isso você tem que desenrolar. Ou então "não, teu

problema vai ficar aqui mesmo"

Vanessa: Entendi

Entrevistado: “Vamos desenrolar” (Morador 20, Favela da zona Sul)

Partindo da ideia de que as favelas cariocas configuraram-se como “terras sem lei”, a

UPP entra nas favelas tentando trazer a sua própria lei, que em geral contrapõe-se às “leis do

tráfico”. O objetivo é “salvar” as favelas, aplicando a elas as mesmas leis do “asfalto”:

A maior mudança na vida de um morador é porque o morador que estava sem UPP

acostumado a viver sem leis, sem regras, ele começa a ter os seus direitos e também os seus

deveres também. Ele começa a ver que agora tem regras, tem horários para se colocar um

som na laje dele para não incomodar as pessoas, começa a entender que tem coleta de lixo

Page 265: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

264

regular e que ele tem que jogar o lixo na caçamba de lixo. Passa a ver mesmo que tem

regras que tem que ser cumpridas, acho que a maior mudança aí com o morador é esta,

porque morador de comunidade não estava acostumado a ouvir NÃO do Estado

(Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).

Dentre as “novas regras”, uma das mais “problemáticas”, que se destacava pelas

constantes reclamações dos moradores, eram aquelas que diziam respeito aos eventos da

comunidade, ou mais especificamente, à proibição dos famosos bailes funks. A proibição de

bailes impõe-se como uma das principais fontes de conflito entre UPPs e moradores, e estes

últimos alegam uma forte interferência das UPPs na cultura da favela, a partir de suas novas

regras. Grillo (2013) explica que os bailes funks são, ao mesmo tempo, manifestações

culturais da comunidade, e servem para produção identitária, mas são também festas

marcadas pelo controle do tráfico, cuja realização depende do seu financiamento pelos

mesmos, os quais se apresentam como anfitriões e protagonistas das festas. Com base no

argumento de que o baile funk é uma festa de traficantes, os policiais as proíbem, ainda que

reconhecem a interferência na cultura local. A este respeito, os moradores reclamavam

constantemente: “Como assim, cara? Se a comunidade sempre existiu, se a trajetória da

comunidade é essa, (...), como que ele vai querer mudar uma tradição de uma comunidade?

Não tem como mudar! Tradição é tradição!” (Morador 17, Favela da zona Norte).

Diante de duas leis, em geral, antagônicas, decorrente do choque entre campos em um

mesmo espaço, os moradores não sabem que lei seguir, ou a quem recorrer no momento em

que conflitos precisam da interferência de uma “entidade superior”. Os conflitos acabavam se

desenrolando de forma ainda mais confusa em uma favela com duas “leis”. Dois moradores

que compunham juntos uma organização que trabalhava com a lixo da comunidade tiveram

um desentendimento e se separaram. Um deles acusou o outro de lhe ter roubado dinheiro, e o

segundo negava veementemente a acusação. Em uma primeira tentativa de resolver o conflito,

o primeiro morador dirigiu-se à UPP, que os encaminhou à delegacia, onde registraram uma

queixa, sem nenhum resultado. Insatisfeito, o mesmo morador resolveu então dirigir-se ao

“dono do morro”. Ambos foram chamados para um “desenrolo”. O segundo morador, que me

relatou esta história, disse ter ido “desenrolar” temendo um desfecho ruim. Mas viu a situação

ser resolvida quando veio à tona, durante o “desenrolo”, a informação de que o primeiro

morador havia recorrido antes à UPP e, na ausência de solução, decidiu levar a questão à

boca. Segundo o relato do segundo morador:

O bandido ficou bolado: “vem cá, eu não preciso falar para você que a lei do morro, como é

que se direciona? (...) Eu preciso te ensinar que você não tem que chamar primeiro a

Page 266: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

265

polícia, depois os bandidos? Se tu chama a polícia, fica por lá mesmo. Ou tu chama

bandido. Não tem que chamar a polícia, depois bandido não! E o cara está falando que tu

encheu a casa dele de polícia. Agora está chamado nós aqui. Olha só, vou só te falar uma

coisa: a próxima vez que você for pedir ajuda à polícia e depois a nossa... Quem é que

comanda aqui? Nós pode ser limitado lá embaixo, mas nós fazemos a lei aqui em cima, a

gente não tem limite, você sabe disso. Vai passar pela lei do morro. Qual a lei do morro?

Não vou te explicar, você sabe qual é” (Morador 20, Favela da zona Sul).

Em outra ocasião, uma organização filantrópica voltada para a educação, em geral

bastante respeitada dentro da comunidade, convocou uma reunião com os moradores para que

eles “pensassem juntos” a melhor maneira de resolver um problema: a quadra esportiva da

organização estava sendo invadida nas madrugadas por moradores. Após a reunião,

acompanhei discussões acaloradas entre moradores e agentes do Estado, nas quais os

primeiros defendiam que aquela reunião não tinha cabimento, pois todos sabiam que os

“moradores” que estavam realizando as invasões eram “meninos do tráfico”. Argumentavam

que a diretora da organização estava encurralada: não podia mais falar diretamente com o

tráfico, conforme fazia antigamente, pois podia parecer estar “passando por cima” da UPP;

mas também não podia levar a questão à UPP (não obstante a presença de policiais na reunião

convocada), porque iria “se queimar” com os meninos do tráfico. A solução encontrada foi o

que os moradores descreveram como uma transferência de responsabilidade para eles. Na

visão dos moradores, aquela reunião consistia em uma tentativa de fazer com que eles fossem

falar com os meninos do tráfico no lugar da diretora. Depois, um morador confidenciou que o

tráfico já estava ciente da situação e havia feito a sua própria reunião sobre o assunto ao

mesmo tempo em que acontecia a reunião oficial. Rapidamente, o problema foi resolvido.

Havia grande incerteza em torno de que leis seguir. Não havia um consenso entre os

moradores, no que dizia respeito a esta questão. Alguns moradores preferiam confiar na

polícia e a procuravam, pelo menos em primeiro lugar. Mas uma moradora que levou uma

briga de vizinhos à UPP relatou ter sido censurada por outros moradores: “porque eles têm

muito isso, que é o Tráfico que ainda manda. Eles te ameaçam, então na época eles falaram

que eu era louca de ter ido até a polícia. Não sou louca, eu tenho direitos” (Morador 22,

Favela da zona Norte). Outros moradores são mais taxativos em relação à falta de confiança

na UPP, e optam por apelar às antigas “leis do morro”: “Pra mim o órgão errado é procurar o

estado pra fazer qualquer tipo de reclamação” (Morador 24, favela da zona Sul). De uma

forma ou de outra, produz-se uma insegurança, diante do choque entre campos e da

coexistência de leis no espaço.

Page 267: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

266

7.2.3 A Materialidade Social e os Processos de (Des)organizar

“E a favela muda com o Tráfico. O objetivo, a visibilidade do tráfico local. Então,

assim, é muito complexo trabalhar em área de UPP, eu acho que é mais complexo do que

trabalhar em área do Tráfico” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) - A visão a

respeito do trabalho em uma “favela pacificada” expressa neste depoimento de um

representante do programa Territórios da Paz, me fez pensar a respeito da complexidade de

minha pesquisa de campo. A possibilidade de estudar favelas com UPPs apresentou-se para

mim como uma alternativa mais “segura” do que a pesquisa em favelas “não pacificadas”, e

embora não tenha sido este o motivo último da definição do meu campo de pesquisa,

considerava-me com sorte por ter esta opção “segura”.

Depois de alguns meses de pesquisa de campo em duas favelas “pacificadas”, a fala do

representante do Territórios da Paz parecia fazer bastante sentido. Com tudo mais velado, mas

ainda presente, as favelas com UPPs eram muito mais complexas do que pude antecipar, e a

minha expectativa de “segurança” desfez-se logo no primeiro mês em campo.

Com a valorização do capital espacial no campo burocrático do Estado em ação nas

favelas, e a consequente tendência a uma (des)materialização dos processos de organizar de

seus agentes, conforme demonstrado em capítulos anteriores, a relação entre o campo

burocrático do Estado e o espaço social de favelas faz-se notar, primordialmente, por

mudanças na matéria do espaço. Conforme reforçaram Carlile et al (2013, p. 3) a matéria

importa, especialmente porque produz consequências, e consequências materiais, como

lembram os autores, podem durar um longo tempo: “In the end, matter matters not only as an

intelectual effort, but also in an ontological and practical sense, i.e., it generates consequences

for how we experience and act in our world41”.

Para Carlile et al (2013) atentar-se para a materialidade social não significa apenas

atentar-se para a performance da matéria, mas também para as consequências duráveis de sua

performance. Indo ao encontro dos autores, como forma de melhor compreender a relação

entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e o espaço social, me proponho aqui

a analisar as transformações materiais produzidas pelos processos de organizar do Estado em

favelas, atentando-me para a performance da matéria e suas consequências duráveis. A partir

daí, proponho a noção de (des)organização do espaço, com um importante auxílio da matéria,

tendo em vista que as transformações materiais podem se apresentar de forma ambígua: se de

41 Tradução Livre: No fim, a matéria é importante não apenas como um esforço intelectual, mas também em um sentido ontológico e prático, isto é, ela gera consequências para como nós experimentamos e agimos em nosso mundo.

Page 268: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

267

um ponto de vista, essas transformações tendem a organizar as favelas, no sentido de que as

aproximam da forma de organização do “asfalto” - onde o Estado consegue impor as suas leis

-, de outro, tais transformações podem ser também desorganizadoras, tendo em vista que

rompem com a forma de organização que já existia nas favelas, a qual, embora não

correspondesse a forma de organização do asfalto - já que as favelas estavam “às margens do

Estado” (DAS e POOLE, 2004) - , configurou-se, ao longo dos anos, como a sua forma

própria de organizar, representando sua própria lógica do campo das favelas.

7.2.3.1 Sedes Físicas, Obras e Remoções: Suplantando Vínculos Afetivos e Fronteiras Espaciais

Foi preciso pouco tempo de pesquisa de campo para que eu me atentasse para as

divergências entre as comunidades que dividiam os morros. Tanto na zona Sul quanto na zona

Norte, as favelas que eu frequentava eram, na realidade, uma composição de comunidades,

que contavam com apenas uma UPP. Na zona Sul eram duas comunidades, e para se referir ao

morro incluindo ambas, os moradores costumavam usar uma sigla, economizando palavras,

que não foi incorporada pela UPP, por ser considerada como cunhada pelo tráfico. De forma

alternativa, a UPP referia-se apenas a uma das comunidades, gerando irritação nos moradores

da outra. Na zona Norte são sete comunidades que juntas compõem um “complexo” com

apenas uma UPP. As divergências entre as comunidades começam desde o nome, pois não

gostam de ser intituladas de “complexo”, tendo em vista que acabam sendo resumidas a

apenas uma das comunidades que dá nome ao conjunto como um todo. Também observei aqui

o que que retratou Misse (2013, p. 208) em sua pesquisa: a instalação das UPPs unem em um

grande Complexo territórios historicamente divididos pelo tráfico, “propondo uma nova

forma de identidade local, que tende a considerar o que havia antes como ruim”.

A rivalidade entre as comunidades, que às vezes culminavam em conflitos mais

diretos, não parece existir por acaso. As favelas do Rio de Janeiro, conforme me relataram

muitos moradores e conforme descrito em trabalhos anteriores (ex: GRILLO, 2013;

ZALUAR, 2000; CAVALCANTI, 2007), foram marcadas por uma fragmentação territorial

imposta pelo tráfico de drogas. Como às vezes facções diferentes dominavam territórios

diferentes das favelas, eram criadas fronteiras territoriais que não podiam ser ultrapassadas

por moradores das comunidades rivais, denominados de “alemãos”, sem o risco de punição.

Os moradores me contavam histórias a respeito deste período de separação territorial, algumas

das quais terminavam tragicamente – os “alemãos” sofriam desde de punições mais leves,

Page 269: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

268

como cabeças raspadas, até a morte queimados, no caso de líderes da facção rival que

dominavam o outro lado do morro.

Embora a entrada das UPPs tenha, em muitos casos, eliminado ou tornado mais

veladas estas disputas entre facções e, consequentemente, as fronteiras territoriais, os

moradores ainda não se sentem à vontade para circular por todo o território, e parece existir

um apego à sua própria comunidade, que vai muito além de uma simples imposição pelo

tráfico de drogas. Não consegui identificar com precisão se o ponto de origem desta disputa

resume-se ao domínio de facções rivais, mas pude perceber, com mais clareza, especialmente

em um contexto de redução de poder do tráfico, que a rivalidade entre as comunidades não se

reduz apenas a isso. Os moradores não parecem defender apenas os “bandidos” de sua

comunidade, como retratou Zaluar (2000), mas defendem, acima de tudo, a sua comunidade

como um todo, lutam para atrair para ela recursos públicos, e como tais recursos são restritos,

é preciso disputa-los com as demais comunidades. Consideram sempre que a sua favela

recebe menos recursos do que as demais, ou as “sobras” das comunidades vizinhas.

Presenciei, em muitas ocasiões, confrontos entre moradores de comunidades distintas,

especialmente em reuniões entre moradores e agentes do Estado, nas quais os primeiros

tentavam “puxar a sardinha” para a sua comunidade, disputando os escassos recursos aos

quais, por vezes, eles tinham acesso. Como as reuniões eram, em geral, conjuntas, entre todos

os habitantes sob o comando de uma mesma UPP, a rivalidade que os agentes do Estado

muitas vezes tendiam a ignorar revelava-se ali em longas discussões, algumas mais acaloradas

do que outras. E quando a reunião acabava mal, no dia seguinte havia o diagnóstico: a culpa

havia sido dos moradores da outra comunidade, que não tinham educação. Muitas vezes

exigiram dos agentes do Estado, raramente com sucesso, reuniões separadas, prevalecendo a

lógica homogeneizadora do Estado, traduzida em tratamento “igual para todos”.

Existia ainda na favela “pacificada” uma tendência a evitar a circulação por um

território que não fosse o seu, o que poderia ser entendido como um resquício da “época dos

meninos”. Alguns agentes do Estado me revelavam assustados que os moradores de uma

comunidade nunca haviam pisado na comunidade vizinha, e acreditavam que este era um

problema que precisava ser resolvido com urgência. Alguns, como os representantes do

Territórios da Paz, marcavam reuniões itinerantes entre as comunidades da favela, com a

finalidade de estimular a livre circulação. Defendiam que os moradores tinham que ocupar os

espaços da favela. Uma representante do Territórios da Paz me relatou, com orgulho, o

Page 270: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

269

resultado de uma reunião que marcou em uma comunidade pouco visitada pelos moradores

das demais:

Então, por exemplo, então primeiro você já tem a circulação que as pessoas não circulam,

não circulam muito entre as comunidades [da favela da zona Norte], até por causa das

heranças que você tem do Tráfico, bairristas e tudo o mais. E aí por exemplo, foi uma

pessoa que falou quando ela foi, ‘gente, eu nunca tinha ido [nesta comunidade]. Foi a

primeira vez que eu fui [a esta comunidade]’. Então eu acho isso interessante, né, na

questão do espaço físico. (...)Então eu acho que isso é o maior, é o maior benefício que a

gente pode levar, entendeu (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).

Milton Santos (2009a) mostra que o território deve ser compreendido como o chão

mais a sua população, ou seja, como uma identidade. O autor ressalta a importância do

sentimento de pertencimento àquele espaço, de pertencer àquilo que nos pertence. Indo ao

encontro de Milton Santos, Medeiros (2009) lembra como o território é um território de

identidade, que reúne indivíduos com um mesmo sentimento em relação a ele. Segundo a

autora, o território possui uma dimensão identitária e afetiva que não deve ser ignorada. E

ressalta a importância das fronteiras territoriais para os vínculos afetivos que se estabelecem

com o espaço: “A fronteira delimita o território, marca o espaço de sobrevivência, o espaço de

força. É este o espaço defendido, negociado, cobiçado, perdido, sonhado cuja força afetiva e

simbólica é forte’’ (MEDEIROS, 2009, P. 218). É nesse sentido que podemos compreender os

vínculos afetivos dos moradores de favelas com aqueles espaços que ajudaram a criar, os quais, por

meio de suas ‘‘lutas’’, muitas vezes produziram com as suas próprias mãos.

Mas as instalações das sedes físicas de representantes do Estado na favela, não

respeitavam as fronteiras territoriais historicamente produzidas pelos moradores. Para que

haja uma sede, os agentes precisam, necessariamente, optar entre um território ou outro,

gerando desconforto daqueles que não pertencem ao território escolhido.

As UPPs possuem em todas as favelas uma sede física central. Como muito moradores

já possuem uma resistência a entrar na base da UPP, independente de sua localização em uma

comunidade ou em outra, e como a ida à UPP não se faz fundamental, não é este o maior

problema que a instalação da sede física traz para a comunidade. Entretanto, conforme

mostrou Misse (2013), a falta de consideração com os anseios da comunidade no momento de

escolha das bases das UPPs costuma ser um problema que tem como consequência a revolta

da população. Este tipo de problema foi observado em minha pesquisa, no caso da favela da

zona Norte, na qual a UPP ocupou o principal prédio, utilizado pelos moradores para

realização de atividades culturais. Não foram poucas as reclamações que escutei neste sentido,

Page 271: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

270

e como forma de resistência alguns moradores continuam a se referir ao prédio pelo nome

antigo por eles escolhido, e não como “base da UPP”.

Outros órgãos públicos que precisam ser acessados pelos moradores com mais

frequência, tem o seu serviço prejudicado por conta da resistência que alguns moradores ainda

apresentam em circular pelas comunidades vizinhas. Este é o caso, por exemplo, do CRAS,

que em ambas as favelas, atendem a vários territórios, mas tem sua sede física apenas em um

deles.

Outros agentes do Estado, como o Territórios da Paz ou a UPP Social, optaram por

não possuir sede física na favela. Além de acreditarem que a ausência de sede estimularia uma

maior circulação pelo espaço das favelas, tais agentes também demonstraram um

reconhecimento em relação à rivalidade entre comunidades e aos vínculos afetivos dos

moradores com seus territórios que, neste caso, preferiram respeitar:

Eu posso estar enganadíssima. Mas eu acho que você ter um espaço no território pode te

limitar horrores (...). Então se eu tenho, por exemplo, se eu estou num, porque a maioria das

equipes passa por essa realidade. O território que eu trabalho são três territórios. Dois, na

prática. [Comunidade 1 e Comunidade 2]. Eu vou para onde? Eu vou para [a Comunidade

1] ou vou para [a Comunidade 2]? Onde é que fica a minha sala? Se eu fui começar lá [na

Comunidade 1], você pode esquecer, [a Comunidade 2] me vira as costas, você está me

entendendo? Então eu vejo como uma armadilha você ter um espaço no território fazendo o

trabalho que a gente faz (Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul).

Problema semelhante era vivenciado como consequência das obras e remoções. Em

ambas as favelas os programas de urbanização e infraestrutura não pareciam ter uma

compreensão clara a respeito do vínculo afetivo dos habitantes com o seu território, o que

pode decorrer inclusive de sua dificuldade na mobilização do capital informacional, e ao

necessitar realizar uma remoção para “abrir frente de obra”, começavam sempre as

negociações sugerindo a transferência daquele morador para um território externo às favelas,

alternativa à qual em sua maioria os moradores resistiam.

Talvez as situações mais emocionantes que vivenciei em campo, que mais vezes me

levaram a chorar junto com os moradores, foram aquelas que diziam respeito às remoções. O

desrespeito ao vínculo afetivo que os moradores estabeleceram com o espaço das favelas

provocavam fortes emoções que me contagiavam invariavelmente. Na favela da zona Sul, as

reuniões do PAC eram marcadas por fortes reações emocionais dos moradores, que

acompanhavam as suas queixas em relação ao programa. Em uma das maiores reuniões do

programa, uma moradora foi a frente do auditório, e berrou ao microfone que sua casa foi

demolida enquanto ela ainda estava tirando as suas coisas. Contou, bastante nervosa, que

Page 272: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

271

quando foi reclamar que a indenização que recebeu no valor de R$103 mil não era suficiente

para comprar uma casa no morro, foi questionada pelo representante do PAC a respeito do seu

desejo de continuar na zona Sul. Foi fortemente recomendada a procurar uma casa na zona

Norte da cidade. Para completar a situação, em meio a um choro agora intensificado, a

moradora contou revoltada que sua casa foi removida à toa, porque agora as obras do PAC

não passariam mais ali. Estava lá, seu terreno, vazio de casa e cheio de lixo: “vocês já

pararam pra pensar como a gente fica?” (Notas de Campo, 01/10/2013) – gritou e, assim,

fechou a sua fala.

Na favela da zona Norte, alguns moradores removidos pela Secretaria Municipal de

Habitação, por estarem morando em área de risco, estavam sendo transferidos para complexos

habitacionais fora da comunidade. Tive oportunidade de visitar pessoalmente um desses

complexos habitacionais, em visita a uma ex-moradora da favela da zona Norte, e pude

constatar com os meus próprios olhos o que os moradores me relatavam: como o complexo

passou a ser habitado por pessoas de várias favelas distintas, foram transferidos para um

mesmo território grupos de traficantes de facções rivais. Como consequência, os moradores

da favela da zona Norte, agora habituados à favela “pacificada”, voltaram a viver sob o

domínio do tráfico e entre guerras de facções, porém em uma situação, segundo eles, ainda

mais difícil, porque aqueles traficantes os eram estranhos, não se tratavam mais dos

“meninos” que “viram crescer” e com os quais estabeleciam uma relação de mais respeito.

Além de moradores removidos para áreas externas à favela, havia também casos de

remoções que desrespeitavam as fronteiras territoriais internas à favela, historicamente

construídas. Na favela da zona Sul, após longas negociações, um grupo de moradores foi

transferido para a comunidade vizinha, com a qual, a princípio, evitavam relações estreitas. O

prédio para o qual seriam inicialmente transferidos não ficou pronto. A solução foi passa-los

para o prédio da comunidade vizinha e também rival, contrariando o desejo dos moradores,

que queriam permanecer em sua própria comunidade.

A insatisfação diante das remoções eram recorrentes: os moradores não queriam

deixar as suas casas que, muitas vezes, construíram com as próprias mãos. Um dos moradores

mais avessos às remoções do PAC me explicou de forma mais clara o motivo de sua

resistência: quando, aos 14 anos, perdeu os seus pais, chefes do tráfico em seu morro, que

foram assassinados por traficantes de uma facção rival, canalizou todo o seu sofrimento no

objetivo de juntar dinheiro para construir a sua própria casa, que agora seria removida pelo

PAC. Até a Associação de Moradores da favela da zona Sul foi marcada para ser removida

Page 273: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

272

pelo PAC, porque estava em frente de obra. E a escassez de espaço para realocação dentro da

favela apresentava-se como um sério obstáculo a ser enfrentado. Os representantes do PAC

reconheciam o problema como um ponto negativo do programa:

O ponto negativo é realmente você retirar as pessoas que tão lá, que tão lá… as pessoas que

tão lá. Assim, tem tradição né, de família, sabe, que o avô veio pra cá, construiu essa casa,

“minha mãe morou, meu avô morou, minha mãe morou, eu moro”, e assim, não quer

desfazer. Né, porque subiram ali, independente desse acesso que não existe, com tijolo nas

costas, cimento nas costas, e construíram as casas. Então isso é ruim, né, você tentar

convencê-los de que por mais que a gente tá indo pra um apartamento no plano habitacional

ou a opção que ele tem de ter uma idealização ou uma conta assistida - porque ele tem três

opções, na hora que sai né - mesmo assim, você fazer, né, aquela coisa da hereditariedade,

da história, da vida dele dentro da comunidade, é difícil. Isso é um ponto negativo

(Representante do PAC 4, favela da zona Sul).

Percebe-se, na fala acima, que os agentes do Estado não são simplesmente insensíveis

ao problema dos moradores. Entretanto, a lógica homogeneizadora da ação burocrática do

Estado acaba por afastá-los de respostas individualizadas, na busca por “organizar” as favelas.

Mas as sedes físicas, obras e remoções apresentam-se também como uma

transformação material (des)organizadora dos espaços sociais de favelas. Se por um lado

fazem dos representantes do Estado uma presença mais permanente na favela, e melhoram o

acesso, oferecendo aos moradores novas moradias, por outro também suplantam as fronteiras

territórios, e negligenciam os vínculos afetivos dos moradores com o espaço, tão importantes

para a manutenção da identidade local, conforme sustentaram Santos (2009) e Medeiros

(2009), bagunçando afetos e emoções, produzindo reações comoventes, contagiantes.

7.2.3.2 A Favela sem Tiros, mas com “Estranhos”

Quando comecei a frequentar as favelas, os moradores se preocuparam em me explicar

alguns princípios básicos a respeito de como lidar com situações de tiroteios no morro:

explicaram-me em que comunidade os moradores abririam as portas de suas casas para eu

entrar e em que comunidade isso não aconteceria; explicaram-me que neste último caso eu

deveria procurar um lugar para me esconder; e, acima de tudo, nunca sair correndo em meio a

um tiroteio, embora seja este, em geral, o nosso primeiro impulso. Preocupei-me em aprender

estes princípios, mesmo achando que nunca precisaria coloca-los em prática, tendo em vista

que eu frequentava apenas favelas “pacificadas”. E foram realmente poucas as vezes em que

eu presenciei tiroteios nas favelas, e estes restringiram-se à favela da zona Sul.

Page 274: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

273

Os tiroteios que no passado faziam parte da rotina da favela, e com os quais os

moradores já sabiam como lidar - pois moldavam sua mobilidade e as construções na favela

(CAVALCANTI, 2007) -, eram agora um evento raro nas favelas “pacificadas”, o que se

destacava como um grande triunfo das UPPs. Os policiais apontavam com orgulho um dos

principais resultados da “pacificação”: não havia mais tiros nas favelas, e os moradores

haviam recuperado o seu “direito de ir e vir”. Os moradores reconheciam, de forma quase

unânime, este como o principal aspecto positivo das UPPs, e também se emocionavam ao

relatar a conquista: contavam-me a respeito do primeiro natal que puderam realizar com toda

a família em sua casa na favela, no qual o único barulho que se ouvia era o de fogos de

artifício; retratavam-me a sensação de segurança com que agora podiam deixar os seus filhos

brincado livres pela favela; diziam que agora traziam amigos e parentes a qualquer hora para

conhecer suas casas; e que saiam de suas casas todos os dias para trabalhar com a certeza de

que poderiam voltar para dormir.

Mas o “direito de ir e vir” conquistado pelos moradores com o fim dos tiros estendeu-

se também para os demais moradores ou frequentadores da cidade, e a favela que antes já se

destacava como ponto turístico (FEIRE-MEDEIROS, 2009), começou a atrair ainda mais

turistas. O turismo em favelas era apontado como uma conquista para os moradores, na

perspectiva dos agentes do Estado, que também reclamavam que os moradores de favelas não

sabiam explorar devidamente a atividade, com grande potencial de fonte de renda.

De fato, nem sempre eram os moradores de favelas que exploravam a atividade

turística. Tive a oportunidade de conhecer moradores do asfalto que abriram hostels ou

restaurantes na favela, para aproveitar o potencial turístico do local. E os próprios moradores

reconheciam: “é uma comunidade com potencial turístico muito grande, tá sendo explorada

por outras pessoas” (Morador 10, Favela da zona Sul).

Além daqueles que subiam o morro para fazer turismo ou obter renda com esta

atividade, existiam aqueles que subiam o morro para ali ficar. Não foram poucos os gringos

ou moradores do “asfalto” agora moradores de favelas, com os quais me deparei em minha

pesquisa de campo, especialmente na favela da zona Sul. Estes nem sempre eram vistos com

bons olhos por aqueles “nascidos e criados” na comunidade, e o temor da tão falada “remoção

branca” rondava a favela e dificultava as relações com os novos habitantes.

Para além de um considerável aumento do preço dos imóveis, como efeito da

“pacificação”, o fim dos tiros na “favela pacificada”, elemento que antes dificultava a

circulação dos moradores, mas também inibia a entrada de pessoas do “asfalto”, tem um

Page 275: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

274

efeito de “abertura da favela” e, seja para turismo ou para moradia permanente, o fluxo de

pessoas do “asfalto” ao morro pareceu aumentar consideravelmente.

Para os policiais, a entrada de pessoas de fora que passam a morar nas favelas é vista

como algo muito positivo, pois muda para melhor o perfil de moradores da favela: “Eu

acredito que até melhorou, mudou um pouco do perfil das pessoas que vieram morar aqui,

entendeu?” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). Os moradores também

reconheciam o benefício da “abertura da favela”, tendo em vista seu potencial de geração de

renda. Também a enxergavam como uma possibilidade de maior “integração” entre morro e

asfalto. Conforme afirmou um representante do CRJ, também cria da comunidade: “essa

integração é boa para quebrar o clima de antigamente de asfalto-comunidade” (Representante

do CRJ 1, Favela da zona Sul).

Entretanto, conforme mostrou Grillo (2013), não obstante as críticas à expressão,

pode-se reconhecer na favela um sentido para o termo “comunidade”, na medida em que os

moradores construíram densas redes sociais de interconhecimento. Com o aumento do fluxo

de pessoas “estranhas” na favela pacificada, os moradores relatam uma aparente perda neste

reconhecimento, e temem a presença de “estranhos” no morro: “são comunidades que estão

sendo invadidas por gringos, pessoas que a gente não sabe da onde veio, o que estão

trazendo” (Morador 10, Favela da zona Sul).

Os moradores referiam-se a mafiosos que foram encontrados escondendo-se em

favelas vizinhas, a estupradores que haviam sido encontrados dentro de sua própria

comunidade, para me explicar porque temiam a entrada de “estranhos”:

Agora, com a UPP dentro da comunidade, eu me sinto mais vulnerável. Eu vejo a

comunidade mais sensível nesse lado porque, assim, estão entrando pessoas que você não

conhece, que hoje em dia mora qualquer pessoa dentro da comunidade, você acha seguro, a

maioria, dentro desses estrangeiros, que vêm, tem estuprador, tem assassino, que vem de

país de fora. Porque não mostra as suas origens. Então ninguém sabe, tanto que aqui tinha

um estuprador morando na comunidade, um estrangeiro, que vieram, estavam procurando

ele há muito tempo, veio achar ele aqui. Você viu (Morador 18, Favela da zona Sul).

Além do fim dos tiros, outra transformação material que contribui para esta

(des)organização do espaço das favelas é a obrigatoriedade do uso de capacetes no moto-taxi,

pelos policiais da UPP. Cavalcanti (2007) mostrou em sua pesquisa em favelas em período

anterior às UPPs que os moto-taxistas e passageiros não podiam usar capacetes, porque eles

esconderiam a identificação dos passageiros e dos motoristas, deixando vulnerável o território

do tráfico. Na “favela pacificada” o uso de capacetes torna-se obrigatório, e a segurança de se

saber exatamente quem entra e quem sai não é mais garantida dentro das novas regras.

Page 276: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

275

A insegurança do moradores diante da presença de “estranhos” é agravada com a

entrada nas favelas de traficantes de outros territórios. O vínculo de confiança estabelecido

entre moradores e traficantes, revelado pela expressão “os meninos” por meio da qual os

primeiros referem-se aos segundos, apoia-se no fato de os traficantes de uma favela serem

“meninos” que a comunidade “viu crescer”, “cria da comunidade”, conforme anteriormente

exposto. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadoras em um determinado território tem

como primeira consequência, pelo menos inicial, a expulsão dos traficantes do morro, que

migram para outras regiões da cidade e, em muitos casos, para outras favelas sem UPPs ou

com UPPs já consolidadas. Grillo (2013) aponta em sua pesquisa a forma como a instalação

das UPPs muda a relação do traficante com seu território, pois muitos bandidos tornam-se

“sem morro” e passam a depender de serem acolhidos em morros aliados. Os moradores

temem estes traficantes “estranhos” e muitas vezes atribuem a eles a responsabilidade pelos

eventuais conflitos entre tráfico e UPPs ou uma exposição ocasional de armas. Aqui ainda

permanece a característica apontada por Zaluar (2000): os moradores tendem a proteger e a

ver de forma mais positiva os traficantes de sua própria comunidade. Aos traficantes

“estranhos”, os moradores não se referem como “meninos”, e os acusam de desrespeitar as

regras básicas de convivência do morro, “bancando” armados em qualquer lugar.

Transformações materiais como ausência de tiros, o uso de capacetes, e a própria

instalação de UPPs em outros territórios contribuem para a entrada de pessoas “estranhas” nas

favelas. O que por um lado pode ser enxergado como um benefício para a comunidade, tendo

em vista que pode gerar renda, como no caso das atividades turísticas, ou aumentar a

integração entre morro e “asfalto”, também é vivido pelos moradores de favela como produtor

de uma sensação de insegurança, diante de um enfraquecimento do sentido de “comunidade”,

com o mútuo conhecimento e consequente controle das pessoas da favela. Aqui a matéria

(des)organiza porque traz renda e “integração” acompanhadas de um temor dos “estranhos”.

7.2.3.3 O Fim da Ostensividade das Armas: Revisitando “Trabalhadores” e “Bandidos”

Aquele ainda era o meu primeiro mês de pesquisa de campo, e portanto a favela que

eu subia era para mim uma favela segura, sem traficantes ou tiros, construída com base nas

informações que recebia como moradora do asfalto. Como ainda não sabia como andar pelas

vielas da comunidade, subi a favela da zona Sul pelo elevador, e fiquei ali mesmo aguardando

duas crianças que viriam me buscar e me levar até à ONG que eu visitaria naquele dia. Ainda

bastante sujeita aos erros de uma pesquisadora principiante, enquanto aguardava peguei meu

caderno de campo e comecei a anotar minhas primeiras impressões. Um rapaz jovem,

Page 277: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

276

claramente morador da comunidade, parou a minha frente e começou a me encarar, não com

curiosidade, mas com um olhar cheio de “marra”. Incomodada, mas sem entender, tive como

primeiro impulso interromper as minhas anotações e guardar o meu caderno na mochila. Meu

gesto não pareceu ser suficiente. O olhar se manteve em minha direção. Comecei a ficar muito

nervosa, e as crianças não chegavam. Estávamos sozinhos ali, eu e o rapaz “marrento”.

Cogitava descer o morro, quando chegou uma senhora. Para meu conforto, a senhora conhecia

o rapaz, e os dois começaram a conversar, sem que o segundo desviasse o olhar de mim. Em

meio à conversa, o seguinte diálogo aconteceu:

“Senhora: Por que você não arruma um trabalho, não pede um emprego naquela obra ali?

Rapaz: Eu já trabalho, pô

Senhora: Aonde?

Rapaz: Tu sabe aonde!

Senhora: Eu não sei de nada não...” (Notas de Campo, 22/01/2013).

Os dois entraram no elevador, e eu anotei o diálogo. Pensei que o rapaz falava também

para mim, para quem ele olhou durante toda a conversa. Assustada e surpresa, inferi que ele

se referia a um trabalho no tráfico de drogas, o qual naquele momento eu ainda acreditava não

existir, pelo menos não de forma tão explícita ou disseminada, em uma favela “pacificada”.

Chegando à ONG, tive que perguntar: ainda existem traficantes aqui? Minha pergunta

parecia quase incompreensível: é claro que existem traficantes em uma favela “pacificada”. A

presença do tráfico não era surpresa para ninguém: moradores referiam-se a eles para me

explicar seu distanciamento da UPP; os policiais me diziam que inclusive sabiam quem eram

os traficantes, embora lamentassem não poder prendê-los assim; os demais agentes do Estado

também sabiam de sua presença, e procuravam caminhar com muito cuidado entre tráfico e

UPP dentro da favela. Parecia que eu era a última a saber que tráfico em favela “pacificada”

era normal e óbvio para todos.

As favelas sem UPPs, as quais eu conhecia, principalmente, por meio de outras

pesquisas e de conversas com moradores, apresentavam, de forma clara, a diferença entre

trabalhadores e bandidos. Em sua pesquisa na década de 1980, Zaluar (2000) mostra que

existe uma oposição importante entre “trabalhadores” e “bandidos” na favela, sendo a

identidade do trabalhador em parte construída por sua oposição àqueles que não trabalham:

“bandidos” ou “vagabundos”. Embora o trabalho seja um critério fundamental para esta

diferenciação, a autora também aponta a posse de armas como demarcadora da diferença:

bandidos andam armados e trabalhadores não. Nas palavras da autora:

Page 278: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

277

Ser bandido é pertencer a esta categoria de pessoas que carregam no seu corpo um estigma

e uma indiscutível fonte de poder: a arma de fogo. Mas não se trata apenas de uma oposição

lógica em um sistema classificatório. Colocar uma arma na cintura tem, entre eles, o sentido

de declarar publicamente uma opção de vida e de passar a ter com a população local

relações marcadas pela ambiguidade e abertas ao conflito (ZALUAR, p. 146).

Grillo (2013) também suporta esta ideia, ao apontar a posse de armas como um critério

importante nesta diferenciação. Conforme mostrou a autora, em sua pesquisa sobre a vida no

crime, mesmo aqueles que de alguma forma se envolvem em atividades ilegais, como por

exemplo com a venda de mercadorias roubadas, não são considerados “bandidos” pelo

simples fato de não carregarem uma arma.

Grillo (2013) explica que uma característica particular dos traficantes do Rio de

Janeiro (diferenciando-os, por exemplo, daqueles que exercem suas atividades na cidade de

São Paulo) é o fato deles ostentarem suas armas ao público de forma a tornar bastante

aparente a sua presença, potencializando seus efeitos opressivos. Segundo a autora, os

traficantes cariocas se arriscam, mas não deixam de exibir as suas armas, em uma crença de

que elas ajudam a protege-los.

Em minha pesquisa, pude observar também, a partir do relato dos moradores a respeito

deste período anterior às UPPs, que além da exposição de armas pelos “bandidos”, os

moradores em geral sabiam quem eram os “bandidos”, porque os conheciam desde criança,

foram criados ali. Usavam a expressão “são crias da comunidade” para me explicar que

aqueles “meninos” eles viram crescer.

Embora exista esta diferença, isso não significa dizer, conforme reforçou Zaluar

(2000), que existia uma separação completa e clara entre “bandidos” e “trabalhadores”, nem

que a oposição entre as duas categorias fosse absoluta. Ela lembra que a relação entre eles é

ambígua e complexa, tanto no que diz respeito a representação da atividade criminosa para os

trabalhadores, quanto em relação às práticas por eles desenvolvidas.

Mas a ambiguidade e complexidade em torno desta diferenciação parece ter se

intensificado bastante com a entrada das UPPs. A partir do processo de “pacificação”, e o

consequente fim da ostensividade das armas pelo tráfico de drogas, a diferença entre

“trabalhadores” e “bandidos” torna-se muito mais velada. A ostentação antes permitia a fácil

identificação do “bandido” por qualquer pessoa, e a sua inibição torna hoje quase impossível a

identificação imediata de um “bandido” por uma pessoa que não conhece bem a favela. Para

os moradores, esta identificação pode ser mais fácil, na medida em que conhecem melhor as

pessoas da comunidade e, em geral, sabem quem é quem. Mas com a entrada de traficantes

Page 279: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

278

“estranhos”, como consequência das UPPs, e com o ingresso de novos meninos no tráfico,

esta tarefa tornou-se mais difícil até mesmo para os moradores.

É claro que o fim da ostensividade de armas e drogas é visto como uma grande

conquista para a comunidade na perspectiva de todos. Os moradores comemoram o fato de

seus filhos crescerem sem a presença de traficantes armados pelas ruas da favela. E policiais

referem-se ao fato como um indicador do sucesso do programa das UPPs.

Entretanto, um efeito importante da maior obscuridade na diferenciação entre

“trabalhadores” e “bandidos” manifesta-se no espaço das favelas como um aumento na

insegurança, tendo em vista que agora é preciso mais cuidado com o que se fala, onde se fala,

para quem se fala, quando não se sabe quem é quem. Um morador subia o morro com um

saco de lixo para reciclar, e foi interpelado por outro morador que o ofereceu ajuda, em troca

de R$5,00. O primeiro morador respondeu que se o pagasse este valor, ele mesmo não

ganharia nada com o aproveitamento do lixo, e completou “você ganha mais do que eu!”.

Quando o primeiro morador me contou esta história, revelou-me que sabia que o cara era

bandido, pois já o conhecia da comunidade. Entendendo a acusação, o bandido revoltou-se,

temendo que algum policial pudesse estar ouvindo a conversa, e chamou o morador de X-9. O

morador, por sua vez, ficou revoltado: embora não tivesse em volta ninguém armado, sentiu-

se inseguro de algum outro bandido ter ouvido a acusação, e puni-lo por ser X-9. Iniciou-se aí

uma grande discussão. Os dois ficaram tensos com as acusações, pois não sabiam bem quem

eram aquelas pessoas que os estariam ouvindo.

Preocupação semelhante vivem agora os agentes do Estado, que em geral precisam se

relacionar com pessoas diferentes na favela, mas na ausência das armas nunca sabem muito

bem com quem estão falando. Um representante da Comlurb, me revelou o seu receio: “até

porque eu estou num local que eu sei que é um local que não é totalmente confiável, né, é

você, você lida com várias pessoas, mas você sempre tem que estar com um pé na frente e

outro atrás.” (Representante da Comlur 3, favela da zona Sul).

Depois de minha experiência inicial, vivenciei intensamente esta sensação de

insegurança. Não obstante a minha enorme curiosidade a respeito do funcionamento do tráfico

nas favelas, era preciso muito cuidado ao fazer os meus questionados, pois estes poderiam ser

mal interpretados, especialmente quando eu não sabia exatamente com quem eu estava

falando. Em algumas ocasiões conversei com “bandidos” sem saber que se classificavam

nesta categoria, fato que só me foi revelado depois. Em outra ocasião, quando conversava

com um grupo de moradores em um bar da favela da zona Norte, e aproveitei a descontração

Page 280: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

279

da conversar para questioná-los a respeito do tráfico, tive minha fala interrompida por gestos

discretos mas desesperados: um traficante acabava de entrar no bar e ouviu a minha pergunta.

Sem a arma, não pude reconhece-lo, e acabei cometendo uma grande gafe, que poderia até ser

sujeita à punição. Tentei consertar reforçando para todos no bar que eu era pesquisadora e,

após um tempo de conversa, acho que ganhei a simpatia do “bandido”, que se despediu de

mim sorrindo e beijando a minha mão.

Assim como os bandidos não são mais facilmente identificáveis, também não o são as

chamadas “bocas”. Grillo (2013, p. 82) descreveu em detalhes como eram as bocas nas

favelas sob domínio do tráfico, as quais frequentou durante sua pesquisa: nas favelas “não

pacificadas” as “bocas”, “lócus central do varejo de drogas”, são o local onde “bandidos,

armas e drogas se concentram”, e onde ocorrem as vendas e prestação de contas. Em termos

mais concretos, a autora descreve as “bocas” como um local onde as drogas podem estar

expostas em bancas ou em panos ao chão ou, alternativamente, podem estar guardadas nas

mochilas, mas são marcadas, principalmente, pela concentração de homens armados. Assim,

são extremamente fáceis de se identificar, mesmo por uma pessoa que entra na favela pela

primeira vez.

Com a entrada das UPPs, foi preciso pensar em alternativas às “bocas” tradicionais,

facilmente identificáveis, espacialmente em função das armas sempre aparentes. Nesse

sentido, as “bocas” agora passam a ser itinerantes, e a concentração de homens ostentando

armas e drogas, o que antes não deixava dúvidas a respeito da sua localização, agora foi

substituída apenas pela presença de poucos jovens parados em um mesmo local, que

costumava variar - caracterização nada óbvia. Conforme me explicou um policial da UPP:

Boca é o que eu falei para você. Boca, boca, boca não existe. Não existe aquilo, "ah, vamos

comprar ali comprar ali do lado da padaria na boca de fumo". Não tem. São itinerantes. Que

que acontece? Hoje ela pode estar na padaria, amanhã ela já não vai estar na padaria,

porque tem a presença da polícia ali. Aí ela já está lá no outro lado lá. Ah, vamos lá. Ela já

não está lá, está lá do lado de lá, entendeu. Então é, seria mais ou menos aquele jogo de cão

e gato. Quando vem para cá e chega aqui, eles estão aqui, depois vem para cá e fica naquela

perseguição, entendeu. Isso é contínuo. Sempre vai ter, sempre vai ter, enquanto existir

usuário sempre vai ter a pessoa para vender porque isso aí, enfim, sempre tem. Aí é bem

menor, não é às vistas como é, como era antigamente. Não tem o pessoal gritando, "aqui,

compra comigo". É bem, bem, bem às escuras mesmo, entendeu (Representante da UPP 17,

Favela da zona Norte).

Os moradores também eram bem cientes dessa nova estratégia do tráfico. De tempos

em tempos me apontavam um novo local onde agora era a “boca”, reforçando que eu evitasse

Page 281: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

280

passar por lá. Mas com a transição e agora descaracterizada, era difícil acompanhar a

movimentação das “bocas”, e às vezes os moradores reclamavam em relação a uma

insegurança a respeito de por onde poderiam circular. Se antes sabiam claramente onde ficava

a “boca” e evitavam frequentá-la, agora esbarravam com ela ao acaso pelas ruas da favela, e a

surpresa de se perceber em meio a uma “boca” nunca era muito agradável, como eu mesma

pude algumas vezes vivenciar.

De repente, pior porque quando você está armado, lá, na boca de fumo, seja onde for, você

tem uma missão, né, você tem uma comissão. Todos juntos em prol de alguma coisa que

não seja boa, mas estão juntos, têm uma administração. Só que não há administração, há

focos, né? Lá, cá, ali, acolá, entendeu. E essa desarticulação do Tráfico também

desarticulou a comunidade como defesa. Então antes você sabia que andar por ali não era

uma coisa bacana, agora você não sabe por onde andar (Morador 27, favela da zona Norte).

A dissimulação de “bandidos” e “bocas” nos espaços das favelas tem um objetivo

claro: esconder-se dos policiais das UPPs. Embora os policiais aleguem saber quem são os

principais traficantes do morro, diante da possibilidade do disfarce, passam a desconfiar de

todos: abordam crianças, homens e mulheres, e até mesmo outros agentes do Estado.

As frequentes abordagens policiais são fonte de grande insatisfação dos moradores

com a presença da UPP no morro. Reclamam do tratamento indistinto entre “trabalhadores” e

“bandidos” durante as abordagens. A estas queixas os policias respondem afirmando que nada

podem fazer, porque se não sabem quem é quem, todos podem ser culpados:

Porque o morador muitas das vezes ele é trabalhador, mas ele não quer ser abordado,

porque ele acha que ele é trabalhador e não tem cara de bandido. Mas não é assim, né? A

gente sabe que os traficantes às vezes usam as pessoas para fazer transporte de drogas.

Então esse relacionamento com a comunidade é bem complicado (Representante da UPP 2,

Favela da zona Sul).

O fim da ostensividade de armas e drogas por bandidos das favelas, importante

transformação material em seu contexto recente, de um ponto de vista, organiza estes espaços,

já que os tornam mais próximo da forma de organização que existe em outros espaços da

cidade, e geram uma inegável sensação de segurança a todos os que ali circulam. Entretanto,

de forma quase paradoxal, esta mudança material também é produtora de insegurança, na

medida em que torna velada a figura do “bandido” e a localização das “bocas”,

desorganizando, porque coisas óbvias, com as quais era preciso ser cuidadoso, tornam-se

obscuras, estendendo o cuidado, por via das dúvidas, a tudo e a todos.

Page 282: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

281

7.2.3.4 Quem Precisa de Uniformes e Crachás? Quem é Quem na Favela “Pacificada”?

No início de minha pesquisa de campo uma das grandes dificuldades que enfrentei foi

a de saber com quem eu estava falando, quem era quem na favela “pacificada”. Para além da

dificuldade de identificar “trabalhadores” e “bandidos”, a favela “pacificada” é complexa:

agentes do Estado podem morar nas favelas ou podem ser também pesquisadores, moradores

de favelas podem ser agentes do Estado, moradores do “asfalto” se mudam para as favelas,

mas às vezes não são reconhecidos como verdadeiros moradores, especialmente quando se

trata de “gringos” ou de pessoas com mais dinheiro que abrem os seus negócios, e estes

últimos são facilmente confundidos com agentes do Estado. A complexidade é intensificada

pelo aumento no fluxo de pessoas “novas” e “estranhas” na favela, sejam elas novos

moradores, novos investidores, ou novos agentes do Estado.

Conforme apontado em outro capítulo, mesmo em período anterior à entrada das

UPPs, alguns agentes do Estado já se faziam presentes na favela. E embora aí já houvesse

misturas entre algumas categorias (a figura do “agente comunitário” é, por exemplo, anterior

às UPPs), existia um elemento que se fazia obrigatório: o uso de uniformes e/ou crachás como

forma de identificação. Os relatos de agentes do Estado que circulavam pelas favelas antes

das UPPs eram bastante claros: só podia-se circular identificado e, de preferência, na

companhia de moradores. Conforme explicou um representante do PAC que já trabalhava na

favela da zona Sul antes das UPP: “[Na favela da zona Sul], quando a gente entrou lá existia o

tráfico, a gente entrava uniformizado, andava com moradores pra poder ser conhecido, com

crachá, tudo direitinho, tinha horários em que a gente não entrava” (Representante do PAC 1,

Favela da zona Sul).

Após a instalação das UPPs, e um consequente aumento da sensação de segurança

para a entrada de pessoas de fora nas favelas, o uso de uniformes e crachás tornou-se

dispensável. A lógica é clara: se antes se usava a identificação para que os traficantes

soubessem quem era quem, e os respeitassem enquanto agentes do Estado, agora não se devia

mais satisfação aos traficantes e, portanto, a identificação faz-se dispensável. Seguindo essa

lógica, dentre os vários agentes do Estado que adentraram as favelas, acompanhando às UPPs,

muitos não usam uniformes ou crachás, e circulam pela favela com roupas “comuns”. Este é o

caso, por exemplo, dos representantes do Territórios da Paz ou da UPP Social, que andam

sem nenhum tipo de identificação. E mesmo os representantes do PAC, reduziram o uso de

coletes após a entrada das UPPs, e agora o fazem apenas em ocasiões mais específicas,

quando precisam circular de forma mais intensa pela favela.

Page 283: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

282

É claro que mesmo sem uniformes, a confusão entre um agente do Estado e um

morador não é óbvia. Conforme mostrou Cavalcanti (2007), os moradores de favelas em geral

possuem um habitus comum. Entretanto, agora também é possível questionar quem é

morador. Com a entrada dos “estranhos” na favela, esse habitus ao qual se referia Cavalcanti

(2007) não é mais tão generalizável assim, tendo em vista que muitas pessoas do “asfalto” ou

“gringos” agora habitam as favelas, com seus próprios habitus. Assim, um agente do Estado

pode ser facilmente confundido com um morador, destes que se mudaram recentemente, mas

que não deixam de ser moradores. Outras vezes o agente do Estado é realmente também um

morador, e neste caso a separação de papéis é confusa até para eles mesmos. E, ainda, com a

intensificação da presença de agentes do Estado na favela, mesmo que estes sejam

reconhecidos como tais, é difícil saber quem é represente de que programa ou órgão público, e

a confusão se faz entre os próprios agentes do Estado.

Os representantes do Territórios da Paz , que além da ausência de uniformes, tendiam

a estabelecer fortes vínculos de amizades com os moradores, eram com frequência

confundidos com moradores, pelos próprios moradores, que a eles se referiam pelo nome, e

que tinham dificuldades de aponta-los como representantes do Estado quando eu os

questionava a respeito da presença do Estado na favela - ainda que passassem boa parte do

seu tempo com eles. A respeito desta confusão, uma agente do programa me relatou:

Eu acho que algumas pessoas percebem que a gente quase como se fosse uma liderança

local, entendeu. (...) Você é como se fosse mais uma pessoa, entendeu. Então assim até por

isso. Da gente ter convidado para esse negócio do Facebook. Foi por causa de um

presidente lá, de uma entidade, que falou assim ‘não, que eu fiz um Facebook para todas as

lideranças [da favela da zona Norte], então você tem que estar, né’. Peraí, não moro [na

favela da zona Norte]. Então isso é uma, eu acho que é confuso (Representante do

Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).

Para evitar este tipo de confusão, os representantes do CRAS, que também

estabelecem relações próximas com os moradores, preferem usar alguma forma de

identificação:

Usa o colete, usa o crachazinho também, que ajuda, né, porque assim quando você está

dentro da comunidade você é mais uma pessoa.(...). Até para ele saber quem é você, né?

Embora às vezes, muitas vezes você suba, a pessoa identifica como alguém estranho que é,

que é de estar levando um serviço, ou está, mas eles não sabem (Representante do CRAS 3,

Favela da zona Norte)

As misturas entre categorias, antes demarcadas por uniformes e crachás,

complexificam as relações sociais na favela “pacificada”. Conheci agentes do Estado que

Page 284: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

283

moravam nas favelas e também moradores de favelas que eram agentes do Estado, sem

entender muito bem o que veio primeiro. Conheci até mesmo um “gringo” que morava na

favela e trabalhava, sem o uso de identificação, para a Clínica da Família.

O fato de uniformes e crachás tornarem-se dispensáveis é um claro sinal de avanço e,

por um lado, maior organização da vida na favela, obtido com a pacificação: o aumento da

sensação de segurança dispensa a obrigatoriedade de se fazer identificar. Entretanto, também

desorganiza, na medida em que tem-se, mais uma vez, um enfraquecimento daquele sentido

de comunidade apontado por Grillo (2013), e as redes de interconhecimento descritas pela

autora tornam-se mais frágeis, gerando também insegurança.

7.2.3.5 Um Novo Uniforme e um Novo Policial: Os “UPPs” e suas Armas (Des)organizadoras

Um grupo de policiais da UPP da favela da zona Norte foi cedido, naquele dia, para

apoiar o batalhão da região. Vestiram o MUG, uniforme de combate da polícia militar, em

geral não utilizado pelos policiais da UPP, que vestem o uniforme social da PM, e foram

almoçar em um bar da comunidade. Os moradores, estranhando o uniforme, os questionaram:

“Ué? Vocês agora foram promovidos? Agora vocês são polícia?” (Representante da UPP 12,

Favela da zona Norte). Um policial me contou o ocorrido para me explicar que os moradores

de favelas não entendiam que eles, que serviam às UPPs, eram também policiais militares, e

os enxergavam como um novo tipo de policial.

Embora os policiais que servem às UPPs passem pelo mesmo concurso e mesma

formação de qualquer outro policial militar, e façam até em seus primeiros meses o que eles

chamam de “estágios” nos batalhões, eles usam, em seu dia a dia de trabalho na favela, um

uniforme diferente. Enquanto os policiais dos batalhões vestem-se com um uniforme cinza

escuro, chamado de MUG ou Quinto B, o qual passou a caracterizar a polícia de combate, que

subia os morros e desencadeava confrontos, os policiais da UPP, em uma tentativa de romper

com esta imagem de “polícia de combate” associada ao MUG, passaram a utilizar o uniforme

social ou de passeio da PM (Terceiro B), composto por uma camisa social azul clara e uma

calça social preta, acompanhados de uma boina azul escura na cabeça. Conforme me explicou

uma policial:

Esta daqui é uma farda de passeio da polícia, a polícia tem esta farda e sempre teve, sendo

que é farda de passeio. Eles colocaram a UPP com esta farda para ficar menos operacional,

menos tiro, porrada e bomba. O MUG é igual à do BOPE, mas sendo a do BOPE preta, o

MUG é mais claro, então quando ele entrava com aquela farda era mais para combater

(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).

Page 285: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

284

Acontece que o novo uniforme parece criar também uma nova categoria de policial:

aos policiais vestindo o uniforme social os moradores referem-se como “os UPPs”, e os

diferenciam do policial que veste o MUG, aos quais os moradores se referem como “os

polícias”. Entendem, inclusive, que existem formas diferentes de ingressar na PM ou de

ingressar nas UPPs: “Tanto é que eles perguntam como é que se faz para ser da UPP, para

fazer a prova para policial da UPP?” (Representante da UPP 19, Favela da zona Norte). Para

se referir aos novos policiais criam uma denominação diferente: “aqui os próprios moradores,

eles não chamam a gente de polícia, eles chamam a gente de UPP. ‘Olha os UPP’s aí’! Eles

mesmos já diferenciam. ‘Ô UPP! Não é ô policial, Ô UPP! Ô UPP! Os UPP chegou’!”

(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).

À nova categoria de policial, “os UPPs”, os moradores associam a imagem de um

policial mais “frouxo”, um policial “menor”, de “nível mais baixo”, e não foi à toa que os

moradores questionaram aos policiais no bar se eles haviam sido “promovidos” por conta da

mudança de uniforme: “eles acham mesmo que com esta farda aqui a gente não tem moral

nenhuma, eles acham que somos menos polícia” (Representante da UPP 8, Favela da zona

Sul). E acreditam que entre “os UPPs” e “os polícias” são os segundos que possuem mais

moral:

Já aconteceu de a gente tá vestido de UPP em outras determinadas ocorrências que

tomaram proporção maior e chegar apoio do batalhão. Eles ai “Fala alguma coisa agora, os

polícias tá ai”, a gente não é polícia, os outros são? Mais ou menos isso, entendeu? Chega a

ser engraçado (Representante da UPP 12, Favela da zona Norte).

Este tipo de diferenciação também se estende à própria Polícia Militar como um todo.

Dentro da corporação referem-se aos policiais dos batalhões como “policiais de verdade”, e

até mesmo os policiais da UPP adotam esta diferença. O seguinte diálogo é revelador desta

crença:

“Entrevistada: a maioria dos meninos que entram para a Polícia para realizar um sonho é o

sonho de ser um policial de verdade, de batalhão de verdade, não-sei-o-quê, entendeu? Eu

já entrei de gaiata. Então eu ainda caio nesse serviço aqui, é o que eu quero ficar, entendeu.

Vanessa: Ser um policial de verdade? Por que, ser policial da UPP não é ser policial de

verdade?

Entrevistada: É, o nosso trabalho é um trabalho com proximidade e facilitação. Não é um

trabalho operacional. Acho que policial de verdade é até muito feio, né, eu acho que são

policiais que trabalham com um jeito diferente. Mas eu não deixo de ser policial militar”

(Representante da UPP 16, Favela da zona Norte).

E outro policial completou este pensamento compartilhado dentro da Polícia Militar:

Page 286: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

285

Acha que aquele cara que tem 20 anos de polícia, que já anda com o fuzil arrastando, já sai

dando tapa “ih, esse aí é bravo, não mexe que é polícia de batalhão é ruim, UPP é tudo

frouxo”. Tem esse preconceito, entendeu. Dessas duas formas. Tanto internamente na

polícia quanto externamente, na favela (Representante da UPP 17, Favela da zona Norte).

Como consequência, há, entre alguns policiais das UPPs, um sentimento de vergonha

de dizer que trabalham em uma UPP, a ponto de me confessarem que inicialmente negavam o

seu verdadeiro local de trabalho e diziam trabalhar no batalhão da região.

Ainda que enquanto um policial “mais frouxo”, os moradores de favela tiveram que

aprender a lidar com esta nova figura circulando pelas ruas da favela. A relação com “os

polícias” era simples: quando estes subiam o morro, havia confronto com o tráfico, tiros eram

disparados, e a circulação pela favela era limitada. “Os policiais” saiam, e a favela voltava a

funcionar do seu jeito. Com os UPPs, a relação se complexifica, tendo em vista que estes

estão permanentemente na favela, armados.

Mas os moradores logo aprenderam que a arma atrelada a um “UPP” não é a mesma

arma atrelada a um “polícia”, e as armas dos “UPPs” parecem perder, em parte, a sua

capacidade de organização. Quando um “UPP” armado realiza a prisão de um morador em

meio à favela, há, com muita frequência, conforme já relatado, agressões de moradores aos

policiais, que jogam pedras e até objetos: “Tanto senhoras quanto senhores ninguém respeita a

UPP. (...) porque assim, quando a BOPE entra, é um respeito porque tem medo. A BOPE vai

entrar e vai fazer porque a BOPE é para matar(...)” (Morador 28, favela da zona Norte).

Os “UPPs” atribuem esta incapacidade de impor a ordem ao fraco poder de suas

armas, tendo em vista que os moradores sabem que eles não podem usá-las, salvo em raros

casos: “a gente não pode reagir, fazer, por exemplo, disparar uma arma de fogo só porque o

pessoal está gritando, entendeu, a gente não pode fazer isso, entendeu. Aí e muita gente faz

isso porque sabe que não pode” (Representante da UPP 13, Favela da zona Sul). E muitas

vezes o armamento não-letal tem uma capacidade de organização maior, porque estes os

moradores sabem que podem ser usados. Trata-se de uma “polícia pacificadora”, que perde a

sua credibilidade em função de um tiro, conforme discutiremos na sessão a seguir: “Eles

sabem que a gente não pode fazer nada. Não existe a possibilidade de você ser atacado com

pedras e responder com tiro. Não existe!” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul).

Embora mais fracas, as armas dos “UPPs” estão sempre presentes na favela, e os

moradores tiveram que aprender a conviver em sua rotina diária com a presença dos “UPPs” e

suas armas (des)organizadoras. Não obstante a redução na frequência de tiros de policiais

dentro das favelas, a possibilidade de um tiro é constante e, às vezes, inquieta os moradores

Page 287: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

286

locais. O histórico de relações conflituosas com “os polícias” ainda marca a relação dos

moradores com esta nova categoria de policiais. E ainda que “os UPPs” pareçam mais fracos,

estes ainda não são dignos de confiança, mas, mesmo assim, estão sempre por perto. Uma

moradora assim tentou retratar a sensação de insegurança advinda de um convívio diário e

ininterrupto com uma nova polícia na qual não confia:

(...) Hoje em dia a gente não sabe se vai ter uma bala perdida, se vai ter um confronto, de

uma hora para outra. Porque antes a gente só se preocupava com a operação, hoje em dia o

morador se preocupa 24 horas com a polícia dentro da comunidade, a gente não sabe qual é

a hora que a gente vai morrer. Qual é a hora que nosso vizinho vai morrer, qual é a hora que

uma criança vai ser baleada porque 24 horas nós convivemos com isso (Morador 18, Favela

da zona Sul).

Por muitos, é visto como um grande avanço essa nova categoria de policial, com

armas mais “fracas”, que possui armas, mas atira pouco. A favela com UPP parece muito

mais organizada do que a favela que sofre constantes e imprevisíveis incursões policiais, que

culminam em grande tumulto e impedem a circulação. Entretanto, tem-se agora uma polícia

constantemente presente, e embora sua arma tenha enfraquecida a sua capacidade de ação, ela

está a todo o tempo presente na favela. Embora mais rara, a iminência de um tiro é

permanente. Os moradores precisam aprender a estabelecer um novo tipo de relação com uma

nova polícia na qual ainda não confiam.

7.2.3.6 A Coexistência de Armas: Traficantes e “UPPs” como “Cães e Gatos”

Entrevistava uma “UPP” na favela da zona Sul quando ela foi chamada pelo rádio. O

policial ao outro lado da linha perguntava em que região da favela ela se encontrava, porque

ele havia recebido uma denúncia de que havia traficantes armados em certa região do morro.

Ela explicou que estava concedendo uma entrevista a mim, mas entrou em contato pelo rádio

com os policiais do seu grupamento para que eles fossem a região averiguar a informação.

Assim o fez. Um tempo depois, ainda em entrevista, a policial recebeu um rádio de um

companheiro de grupamento, que a informou que havia sido uma denúncia falsa. Ela não

parecia surpresa. Segunda a “UPP”, denúncias falsas a respeito de porte de armas eram

bastante comuns, pois funcionava como uma estratégia para desloca-los pelo espaço das

favelas.

Tráfico e “UPPs”, ambos com algum domínio sob aquele território, precisam aprender

a conviver, sem “manchar” a fama da favela “pacificada”. A lógica é evitar conflitos diretos,

que terminem em tiros e mortes. Conforme mostrou Grillo (2013, p. 206), a relação entre

policiais e traficantes em período anterior às UPPs se dava com base em descontinuidades

Page 288: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

287

“militares” entre morro e “asfalto”: “quando a polícia entra na favela há tiroteio. Quando

bandidos armados são avistados no asfalto pela polícia, também”.

Aqui também as armas exercem um papel importante na dinâmica entre “UPPs” e

traficantes, e o encontro de armas também culmina em tiros. Entretanto, diferentemente do

período retratado por Grillo (2013), aqui “UPPs” e traficantes convivem constantemente em

um mesmo espaço geográfico e, portanto, precisam adotar estratégias para evitar o encontro

de armas. Os traficantes escondem as suas armas e fogem dos “UPPs” pelo espaço, das mais

diversas formas, criando uma dinâmica de circulação retratada por moradores e policiais pelo

uso da expressão “igual a cão e gato”: “Então, mas é uma coisa bem escondida, tá igual cão e

gato, fica tipo num labirinto, né!? Correndo um atrás do outro” (Morador 13, favela da zona

Sul). A maioria dos policiais, sob ordem do comandante, evitam circular por espaços, em

geral em regiões altas dos morros, onde sabem que há maior chance de os traficantes

“bancarem armados” – só vão a estas regiões caso ocorra alguma denúncia.

Para que não se encontrem, as armas organizam a circulação pelo espaço. Traficantes

evitam passar por onde há policiais armados. E quando sua passagem é necessária, apela-se

para os telefones como suporte às armas na organização da circulação pelo espaço: traficantes

ou aqueles que os suportam fazem ligações para a base da UPP e realizam uma denúncia

“falsa”, informando que em uma determinada localidade da favela existem traficantes

expondo suas armas. Este tipo de denúncia não pode ser ignorado pelos policiais, e nestes

casos as armas dos “bandidos” também possuem a capacidade de atrair uma determinada

guarnição de policiais ao seu encontro. Tendo aquele grupamento sido deslocado, os

traficantes podem, agora, circular por aquele espaço.

As armas também são utilizadas como símbolo de poder nos espaços das favelas. O

fato de que hoje podemos circular pela favela sem nos depararmos com armas de traficantes –

embora passemos por muitas e muitas armas de “UPPs” – é evocado como o principal

símbolo de poder das UPPs e de uma consequente perda de poder do tráfico. Os moradores

passam a utilizar a expressão “bondes”, tradicionalmente usada para designar um grupo de

traficantes fortemente armados que desfilam se exibindo pela comunidade, para também se

referir aos grupamentos policiais, em geral do GTPP (de livre circulação pela favela e que

sempre portam fuzis) - também em geral àqueles mais agressivos e temidos pelos moradores:

“o bonde do SD X” refere-se à guarnição policial liderada, de maneira informal, pelo Soldado

X, provavelmente o mais “truculento”. Os moradores aprendiam as escalas, e sabiam os dias

em que o temido “bonde” estava “tirando serviço”. Nestas ocasiões, era preciso ser mais

Page 289: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

288

cuidadoso. Alguns policiais me contavam orgulhosos que suas guarnições eram chamadas de

“bondes”, o que para eles significava que eles faziam um “trabalho sério”. O que entendiam

por “trabalho sério” era o fato de que sua guarnição tendia a desobedecer às ordens do

comandante e circular por regiões do morro onde era sabido ter uma maior concentração de

traficantes armados, e por isso eram estas as guarnições com mais frequência envolvidas em

confrontos. Conforme explicou um policial:

Mas aí, aí tu recebe uma ordem desse jeito aqui: “Você vai rodar, mas você não pode ir lá”.

“Ah, não pode ir lá por que?”. “Não pode ir lá porque lá é perigoso”. Mas é lá que eu tenho

que ir. É lá que é perigoso? Então é lá que eu tenho que ir. Hoje tá perigoso porque eles tão

com uma pistola lá, ontem eu passei lá eu tomei tiro, tavam com uma pistola lá. Então tem

lá. Daqui a um mês tu vai lá aí tu não consegue nem entrar porque não tem só uma pistola,

tem 10 fuzis, 15 fuzis. Aí tu tem que fazer o que? (Representante da UPP 20, Favela da

zona Norte)

A ostentação de armas apresenta-se, assim, como um desafio ao poder da UPP. O

traficante que “banca armado” é considerado abusado, e se põe a mostrar que o tráfico ainda

tem poder. Quanto maior a arma exposta pelo traficante, e quanto mais baixa for a região do

morro em que ele a expõe, maior o desafio ao poder dos policiais. No fim de 2013, com uma

troca de comandos em várias UPPs, os moradores começaram a relatar, com certo temor, um

ganho de poder do tráfico em ambas as favelas, e o principal argumento usado para sustentar

tal afirmação eram os relatos cada vez mais frequentes de bandidos “bancando armados” pelas

ruas da favela, e eu mesma cheguei a presenciar um “bandido” com uma pistola em região

intermediária do morro, o que me passou uma sensação de enfraquecimento da UPP.

A ostentação de armas que desafia a polícia também a atrai, deslocando policiais em

sua direção. Quando é realizada uma denúncia “verdadeira”, e os “UPPs” efetivamente se

deparam com um bandido “bancando armado” o resultado não é outro senão a troca de tiros, e

a disputa de poderes materializa-se agora de forma ainda mais perigosa: “Quando algum

bandido, ou polícia, se encontram ai, tem que ser, tiro pra polícia se esconder e eles

conseguirem correr” (Morador 10, Favela da zona Sul). Esta foi a causa do confronto narrado

no início deste capítulo. Como decorrência de uma denúncia, policiais se depararam com

bandidos armados no alto de um dos morros, e assim iniciou-se uma intensa troca de tiros

naquela madrugada, resultando na morte de um morador.

Mas se a exposição de armas por “bandidos” no morro põe em xeque o poder das

UPPs internamente, o desfecho deste desafio que culmina em troca de tiros, põe em xeque o

poder das UPPs perante toda a sociedade, porque, com grande frequência, vão parar nas

páginas dos jornais, em uma daquelas célebres manchetes “tiroteios na favela impõe medo aos

Page 290: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

289

moradores da zona Sul”. Quando os tiros terminam em morte, como na situação que

vivenciei, é difícil escapar da mídia que logo se coloca ao pé do morro, e divulga a notícia em

tom de questionamento à eficácia do programa das UPPs. Representantes da UPP reconhecem

a relação estabelecida entre tiros e falência do programa: “Pragmaticamente, o ato de um tiro,

e como a mídia ainda vai potencializar isso, se transforma em ataque, todo o projeto está sob

dúvida, sob suspeita” (Representante da UPP 21, Geral).

As transformações materiais sofridas na favela “pacificada” que levam a uma

coexistência de armas, são, por um lado, organizadoras, porque se tem agora a quem recorrer

quando se depara com um traficante armado: as denúncias às UPPs podem ser uma saída.

Mas, movidos por esse denúncia, e atraído pelas armas dos “bandidos”, os UPPs podem

acabar atirando, e colando em xeque a nova forma de “organização” da favela “pacificada”.

Além disso, a coexistência de armas produz uma dinâmica de “cão e gato” entre “UPPs” e

traficantes, complexificando a dinâmica das favelas.

As ambiguidades decorrentes dos choques entre o campo burocrático do Estado e o

campo das favelas são sintetizadas na Figura 19 a seguir:

Page 291: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

290

Ambiguidades

Ambiguidades de Leis nas favelas “pacificadas”

(Des)organização do espaço de favelas com auxílio da matéria

- Permanência de “leis do tráfico”

- Permanência dos “tribunais do tráfico” e dos “desenrolos”

- Imposição de “novas leis” pela UPP.

- Rompimento com vínculos afetivos e fronteiras espaciais por meio de sedes físicas, obras e remoções

- Fim dos tiros levando a entrada de “estranhos”

- Fim da ostensividade de armas velando as diferenças entre trabalhadores e bandidos

- Redução do uso de uniformes e crachás dificultando a compreensão de quem é quem

- Surgimento da nova categoria de policiais: os “UPPs”

- (Des)organização a partir da coexistência de armas

Figura 19. Ambiguidades

7.3 A Maquiagem do Espaço

Comparando as favelas que subia em minhas primeiras visitas em campo àquelas que

eu subia em meus últimos meses de pesquisa, percebi como a minha noção de “favela

pacificada” foi se alterando ao longo do trabalho de campo. Não obstante a minha forte

sensação de insegurança típica de uma pesquisadora iniciante, que se põe a fazer observação

em um grupo desconhecido pela primeira vez, a favela que eu subia no início da pesquisa era,

para mim, uma favela sem tiros, sem armas e sem drogas, por onde eu poderia circular com

liberdade assim que eu me familiarizasse com seus tortuosos caminhos. Além disso, era uma

favela com um futuro próspero pela frente, que acabava de vivenciar o que naquele momento

ainda era para mim “a entrada do Estado” em seu território, e por isso era uma favela cheia de

esperança, com tudo para mudar para muito melhor. A favela que eu subi, com tanta tristeza e

pesar, pela última vez em abril de 2014, era, para mim, bem diferente. Era uma favela

Page 292: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

291

insegurança, com drogas e armas de bandidos, em geral, escondidas, e com muitas armas de

“UPPs”. Era uma favela que também podia ter tiros, resultantes do encontro de armas de

bandidos e de “UPPs”, mas os quais tentava-se velar, evitando-se falar neles, para que não

fossem parar na mídia. A circulação pelo seu espaço tinha que ser cuidadosa, porque além das

regiões que claramente precisavam ser evitadas, não se sabia muito bem onde se deveria

evitar transitar. Era uma favela extremamente mais complexa do que eu pude antecipar, com

relações conflituosas, figuras ambíguas, influências políticas e cheia de agentes do Estado,

com muita boa vontade, mas com pouco poder de ação. E com isso não quero dizer que a

favela tenha se alterado bruscamente em meus meses de pesquisa, mas que a minha

“realidade” a respeito da favela se alterou. Nestes últimos momentos eu já entendia bem a que

“fantasia” a moradora/representante do CRAS estava se referindo naquela reunião da UPP. A

“favela pacificada” para quem está de “fora”, para quem não participa de seu cotidiano (eu,

quando subia o morro pela primeira vez), é bem diferente da “favela pacificada” para quem a

enxerga “de dentro”, para quem vive como seus habitantes o cotidiano da favela (eu, ao final

de minha pesquisa, quando já havia conseguido acessar melhor a visão dos habitantes das

favelas).

Para além de uma ambiguidade dos processos de organizar dos diversos agentes do

Estado - que ao mesmo tempo que organizavam, desorganizavam -, desencadeada pelo

choque de campos que eu encontrei nas favelas –, também observei, o que foi corroborado

com relatos de moradores, que as descontinuidades e dispersões que marcam os processos de

organizar destes agentes, conforme mostrado no capítulo anterior, não permitem que as

favelas sejam efetivamente retiradas de sua condição de pobreza, tendo suas necessidades

básicas plenamente satisfeitas. O que se tem, isto sim, é o que os moradores denominam de

uma “administração da pobreza”, por meio da qual os agentes do Estado os mantem em uma

condição de “pobreza”, mas uma “pobreza organizada”, diante da qual seja possível viver ou

sobreviver: “Não existe a transformação, entende. O que existe é, é, não é questão de ser

pelego, não, é a sustentabilidade da miséria” (Morador 15, Favela da zona Sul). A respeito

desta noção de “administração da pobreza”, um morador explica:

Porque você entra com a polícia para administrar, administrar a pobreza, sabe? Para

administrar a falta de formação, para entrar na casa das pessoas e separar briga de marido e

mulher, para dar um corretivo num menino que não tem oportunidade (Morador 27, favela

da zona Norte)

Talvez o exemplo mais emblemático disso que os moradores chamam de

administração da pobreza seja a questão da educação. Existem, em ambas as favelas, uma

Page 293: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

292

grande oferta de cursos, e em geral os agentes reclamam de uma falta de interesse dos

moradores em relação a eles. Acontece que estes cursos, oferecidos pelos mais diversos

agentes do Estado, proporcionam aos moradores a oportunidade de se capacitarem em

profissões que os ajudariam a sobreviver, mas os proporcionariam baixa renda, como cursos

de garçom, ajudante de cozinha, manicure ou costura, enquanto os moradores demandam

cursos como o de petróleo e gás. Uma representante do PAC, um destes agentes que oferecem

este tipo de curso, explicou como não obtêm resultados muito positivos com esta forma de

capacitação:

Poucos moradores foram aproveitados. Não porque não foram capacitados, mas porque

houve falta de interesse, entendeu. Não se interessaram. Quando era oferecido o curso, o

emprego, desculpa, a pessoa dizia que não podia, ou dizia que não tinha feito o curso para

conseguir emprego era mais para consumo próprio, enfim, vinha assim com alguma... ou

que não podia trabalhar naquele período, até eu vi algumas situações relacionadas a bar.

Não me lembro, teve de garçom, de pizzaiolo, de salgados, enfim, acho que tinha algum

específico para bar. Não sei se auxiliar de cozinha, alguma coisa assim (Representante do

PAC 2, Favela da zona Sul).

Os moradores, por sua vez, contra-argumentam: “Veio com negócio de pizzaiolo,

ajudante de restaurante, auxiliar de serviços gerais. Não, a gente não quer isso não. A gente

quer coisa maior!” (Morador 15, Favela da zona Sul). É claro que tais profissões são dignas

como todos as outras, mas seria muito mais importante, para que os moradores nem mesmo

precisassem buscar auxílio do governo neste tipo de curso profissionalizante, que os recursos

fossem investidos em educação básica de qualidade. Na favela da zona Sul, o CIEP que existe

dentro da comunidade foi classificado com o pior Ideb do Rio de Janeiro em anos anteriores.

Na favela da zona Norte não há escolas.

Além do investimento deficiente em educação, a área da saúde também não teve

grandes avanços. Na favela da zona Norte, os moradores lutam por uma Clínica da Família,

que foi prometida há anos, mas até hoje não saiu do papel. Precisam se deslocar a hospitais

mais distantes, em casos de emergência, e especialmente os idosos da comunidade, que têm

dificuldades de locomoção, sofrem com a falta de opções. Já a favela da zona Sul, conta com

uma Clínica da Família, que atende às duas comunidades. Entretanto, os moradores não

parecem muito satisfeitos com ela. Embora tenham uma boa relação com os médicos e gostem

do atendimento local, com o baixo efetivo de funcionários, a Clínica não dá conta de atender a

todos os problemas de saúde que aparecem na comunidade, e em muitos casos encaminham

os pacientes para outros hospitais. Conforme desabafou uma moradora:

Page 294: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

293

Que que adianta, até as cinco horas aquele posto funciona. Até as cinco. Mas se chegar

alguém lá, num estado grave, que eles não podem socorrer, não tem uma ambulância. (...)

Então ali é só para atendimento assim, básico, uma gripezinha, uma injeçãozinha, tudo

inha, porque mesmo um atendimento que precisa, necessário, a pessoa tem uma parada

cardíaca, vai morrer porque ali não tem estrutura para isso (Morador 18, Favela da zona

Sul).

Os programas de urbanização e infraestrutura, como o PAC, na favela da zona Sul, ou

o Cimento Social, na favela da zona Norte, sofrem críticas constantes dos moradores que

questionam a qualidade e importância das obras. Os apartamentos oferecidos pelo PAC,

segundo os moradores, são de baixa qualidade: as infiltrações são constantes (como eu mesma

pude ver em visita a moradores dos prédios do PAC); os apartamentos são pequenos

comparado ao tamanho dos barracos que, em geral, possuíam mais de um andar; não é

possível ter instalação para ar condicionado; e os vidros das janelas são tão finos, que um

morador brincou que instruiu ao seu neto a falar baixo dentro do imóvel, porque um tom de

voz mais alto seria capaz de quebrar as janelas. Questionam, ainda, o fato de priorizarem a

abertura de vias carroçáveis, em detrimento da construção de escolas e creches, por exemplo.

Reclamam que, para o PAC, abrir via é sinônimo de progresso. O Cimento Social é descrito

pelos moradores como um programa que “dá uma pintura” em casas, prioritariamente as mais

visíveis. Os moradores reclamam que as obras feitas nas favelas possuem, em geral, um efeito

paliativo e não estruturais como deveriam: “O que precisa ser feito [na favela da zona Norte]

são obras estruturais, são obras que criem uma nova galeria de esgoto, que crie a galeria de

águas pluviais, que crie um novo abastecimento de água... Quer dizer, são obras estruturais,

não são obras paliativas” (Morador 12, Favela da zona Norte).

Esta noção de “administração da pobreza”, que parece se refletir nas mais diversas

áreas, é reconhecida por alguns agentes do Estado, que entendem que por mais que se

esforcem, suas ações não dão conta de levar grandes transformações para as favelas:

Essas demandas que são mais direcionadas e estão um pouco nesse mito, de tentar na

articulação ‘ah, não-sei-o-quê, da água, do lixo, não-sei-o-quê, não-sei-o-quê’, eu acho que

a gente de maneira geral não consegue atender. A gente pode tentar atender assim, em nível

local e tipo ‘ah, vamos tentar fazer uma melhoriazinha aqui’ (...). Uma melhoria local, uma

coisa bem pontual, você consegue. Mas promover uma transformação, não. Não consegue

(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).

A ideia de “administração da pobreza” me ajuda a suportar o meu argumento de que

há uma discrepância entre a “realidade” da favela divulgada e assumida por aqueles que lhe

são externos, e aquela vivenciada cotidianamente dentro das favelas. Se por um lado acredita-

Page 295: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

294

se em uma favela segura, rumo ao desenvolvimento e ao progresso, consequência da inédita

“entrada do Estado”, por outro tem-se a visão de que a vivência da favela ainda é produtora de

muita insegurança, e esta “entrada do Estado”, que nesta outra visão é, na verdade, apenas

uma intensificação de ações do Estado, leva apenas a mudanças paliativas, típicas de uma

“administração da pobreza”.

Zaluar (2010) observou em sua pesquisa que os moradores possuem uma consciência

de sua condição de oprimidos, explorados, esquecidos, quando afirmavam que “é tudo

ilusão”, referindo-se tanto ao carnaval e às promessas dos políticos, quanto aos serviços

oferecidos pelas religiões populares. De forma semelhante, em minha pesquisa os moradores

apresentaram uma consciência de sua realidade, e não pareciam se enganar com a

“administração da pobreza” que o Estado os oferecia para mantê-los satisfeitos. De maneira

similar, aqui usavam a expressão “maquiagem do espaço”, ou alternativamente “mascarar”, “é

só fachada”, “fantasia”, dentre outras: “Pra mim, é só, tipo, uma maquiagem, pra mim isso é

uma maquiagem” (Morador 13, favela da zona Sul). Usam a metáfora da maquiagem para

ilustrar o fato de que privilegiam-se ações superficiais capazes de transmitir uma boa imagem

externamente, ainda que esta imagem não corresponda à realidade interna da favela. Mais do

que uma maquiagem, é uma maquiagem malfeita que, como vimos, um único tiro é capaz de

revelar suas imperfeições: “eu digo maquiagem, mas maquiagem malfeita, que quando o

gesso cai, é sabe quando a gente põe aquela maquiagem no rosto, começa, né? É assim”

(Morador 18, favela da zona Sul)

As UPPs, talvez por serem o principal símbolo do Estado na favela e responsável pela

inauguração de uma nova fase na relação do Estado com a favela, eram os principais alvos

deste tipo de crítica. As expressões que remetiam à “maquiagem do espaço” para caracterizar

especificamente o trabalho das UPPs foi usada de forma quase unânime pelos moradores, que

às vezes a substituíam por expressões que revelavam um mesmo sentido: a ideia de que os

significados que as UPPs transmitem para uma população externa às favelas não corresponde

à realidade vivenciada pelos moradores em seu cotidiano. Nestes casos, as expressões

variavam para “pacificação de faz-de-contas”, “pacificação para inglês ver”, “UPP como uma

fantasia”, “pacificação entre aspas”, “UPP como um cosmético”, “UPP como um programa

pra gringo ver”. Um morador assim explicou esta discrepância de visões que este conjunto de

expressões revela:

Outro estranho, já vai ter o outro olhar. Porque o outro estranho está pensando que está tudo

bem, entende. Você está com esse pensamento agora porque você está vivendo aqui dentro,

você está, mas o outro estranho, entende, está, é um outro olhar. Porque o Governo já

Page 296: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

295

passou para ele que aquilo foi uma coisa isolada. Que foi um confronto, um trabalho da

UPP, que de repente confrontou com marginais armados e foi troca de tiro. Para a

sociedade passou isso, entendeu, que aqui continua tranquilo. Então quem vem de fora, não

sabe nada e continua a mesma tranquilidade (Morador 15, favela da zona Sul).

O sentido da “Maquiagem do espaço”, compartilhado entre os moradores, e às vezes

diretamente a própria expressão, também apareciam na fala dos mais diversos agentes do

Estado, que reconheciam que o trabalho em uma favela “pacificada” era bem distante do que

acreditavam os olhares externos – era muito mais complexo. Até mesmo os policiais da UPP,

principais “acusados” de contribuírem para a produção da “maquiagem”, reconheciam este

efeito no espaço e se expressavam, com muita frequência, por meio de um vocabulário bem

semelhante ao dos moradores:

os olhos de quem não está aqui na comunidade e mesmo dos policiais lá fora: “é uma

comunidade pacificada”, bonitinho. Mas aqui dentro tem esses confrontos, ainda tem o

tráfico, ainda tem tudo isso. O que as pessoas estão recebendo é a mensagem de que a

comunidade está pacificada. Mas, na verdade, nós que estamos aqui dentro sabemos que

isso aqui é um barril de pólvora. (...) Então, a maquiagem é essa, continua tendo e a gente

continua aqui brigando lutando realmente pela pacificação para evitar que os moradores

convivam com essa situação de arma e de venda de drogas, de roubo, e corre pra cá, enfim,

e lá fora para a população a parte, não acontece nada disso (Representante da UPP 14,

Favela da zona Sul).

O uso de metáforas, denominadas de tropos na análise retórica, tem a propriedade de

transferir significados de um objeto a outro (BAUER e GASKELL, 2012), conforme

discutido no método de pesquisa. A “maquiagem” e as metáforas equivalentes retratadas aqui

transferem à favela “pacificada” a capacidade de produção de uma estética falsa, e quando

associada ao adjetivo “malfeita” revela que é também fácil de ser desvelada. Por baixo da

“maquiagem”, na visão dos moradores, a favela “pacificada” não parece exibir a beleza que

sua “maquiagem” transmite aos olhares externos.

Conforme apontado nos capítulos anteriores, com a valorização do capital espacial no

campo burocrático do Estado em ação nas favelas, agentes do campo tendem a priorizar a

(des)materialização dos processos de organizar, e muitas mudanças na matéria do espaço das

favelas foram realizadas desde o início do “processo de pacificação”. Mas a matéria também

possui uma dimensão simbólica, e emite significados (YANOW, 2010). Para Yanow (2010),

também é preciso se atentar para o significado que as coisas emitem e reconhecer que o

espaço é um ator significante na criação e comunicação de significado. Ou, conforme lembrou

Santos (2009b, p. 59), “as coisas nascem já prenhes de simbolismos, de representatividade, de

uma intencionalidade destinados a impor a ideia de um conteúdo e de um valor que, em

Page 297: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

296

realidade, elas não tem. Seu significado é deformado pela sua aparência”. Assim, Santos

(2009b) nos lembra que os objetos espaciais se apresentam a nós de forma a nos enganar.

É nesse sentido que a metáfora da “maquiagem do espaço” com frequência evocada

pelos moradores com vistas a retratar a discrepância entre as “realidades” das favelas, interna

e externamente, são aqui reinterpretadas teoricamente como um conjunto de significados

emitidos por elementos materiais que não condiz com a realidade daquele espaço na

perspectiva de seus habitantes ou daqueles que vivem o seu cotidiano. Assim, embora a

presença de diversos agentes do Estado na favela e de várias obras simbolize uma ideia de

organização, progresso e desenvolvimento do espaço, na visão dos moradores tem-se também

uma desorganização e uma “administração da pobreza”; e embora a ausência de armas e tiros

e a presença de policiais simbolize um espaço seguro e organizado, na visão dos moradores

também está sendo produzida uma desorganização que gera insegurança. Ou, como afirmaram

os próprios policiais, a favela “pacificada” é, na verdade, “um barril de pólvoras”.

7.4 Conclusão

Neste capítulo me propus a responder a seguinte questão: qual é a relação entre os

processos de organizar dos agentes do campo burocrático em ação nas favelas e o espaço

social? Para tal, pautei-me nos conceitos de espaço social e de materialidade social, a partir da

observação de que, nas favelas, a matéria apresenta importante função organizadora. A

capacidade de ação da matéria é fundamental para a organização da vida na favela. Nesse

sentido, social e material estão imbricados.

Compreendendo o “processo de pacificação” como um choque entre o campo

burocrático do Estado e o campo das favelas, no qual o primeiro vem tentar impor suas leis ao

segundo, e retomar o monopólio do uso legítimo da violência dentro deste espaço geográfico,

mostrei como campos com dinâmicas diferentes possuem padrões de processos de organizar

também bastante distintos. Processos de organizar de agentes do Estado e da favela chocam-

se no espaço e expressam-se em hibridismos e ambiguidades.

Demonstrei, ainda, como os agentes do Estado, partindo da premissa de que as favelas

eram espaços desorganizados, tentam impor a sua forma de organização e, ao mesmo tempo,

as desorganizam. O imbricamento entre o campo e seus processos de organizar faz com que

os agentes do Estado, que procuram acumular o capital espacial, busquem (des)materializar os

seus processos de organizar e com isso transformem, de forma prioritária, a matéria do

espaço. Mas a matéria possui capacidade de ação e, especialmente nas favelas, importante

função organizadora. Foi nesse sentido que falei aqui em uma (des)organização a partir da

Page 298: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

297

matéria: se por um lado as mudanças materiais organizam o espaço, aproximando-os daquilo

que o Estado entende por organização, por outro, também o desorganizam, pois rompem com

a forma de organização estabelecida nas favelas em períodos anteriores.

A ambiguidade por trás da organização do espaço leva ao que os moradores intitulam

de uma “maquiagem do espaço”. A matéria emite significados (Yanow, 2010), e as

transformações materiais no espaço social de favelas, trazidas pelos agentes do campo

burocrático do Estado, emitem uma ideia de organização, segurança, desenvolvimento e

progresso, que não corresponde à realidade vivenciada pelos habitantes de favelas. Para estes,

a favela “pacificada” corresponde a um espaço que é também produtor de insegurança,

desorganizado em muitos aspectos, ao qual o Estado não tem conseguido levar ao

desenvolvimento ou ao progresso, mas, isto sim, a uma “administração da pobreza”.

Page 299: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

298

8 CONCLUSÃO: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAMPOS, PROCESSOS DE ORGANIZAR E ESPAÇO SOCIAL

Tive por objetivo, nesta tese, analisar a relação entre o campo burocrático do Estado

em ação e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”. Para atender ao meu

objetivo, busquei manter-me fiel aos meus dados, reunindo-os em alguns argumentos que

juntos pudessem compor uma linha argumentativa única, capaz de responder às questões de

pesquisa.

Comecei por mostrar como o “Estado”, que me propus a analisar nas favelas,

aproximava-se da noção de campo, conforme proposta por Bourdieu, e foi neste conceito que

me pautei ao longo de toda a tese. Além disso, também busquei mostrar, desde o início, que

embora estivesse tratando do campo burocrático do Estado, este não poderia ser abordado

livre da influência do campo político, e o primeiro passou a ser pensado também a partir de

sua interdependência com o segundo. Mais ainda, busquei discutir como as próprias favelas

podem ser aproximadas da noção de campo, tendo em vista que estas também parecem

possuir uma lógica própria, disputas e cooperações, e diferentes posições entre os agentes.

Em seguida, ao analisar como os agentes do campo burocrático do Estado se fazem

presentes nos espaços sociais de favelas, apontei para uma disputa entre lógicas institucionais

divergentes dentro do campo, como um elemento explicativo importante da competição entre

agentes e das dificuldades de cooperação. Indo ao encontro de Bourdieu (2014), reforcei a

forma como os agentes buscam galgar posições no campo, para que possam falar em nome do

bem comum e ditar a lógica predominante. Para tal, recorrem às diferentes espécies de capital.

Como forma de melhor me aproximar do posicionamento dos agentes no campo, analisei a

concentração de capitais pelos agentes, e busquei demonstrar uma aparente polaridade entre

as espécies de capital: por um lado, tem-se uma retroalimentação entre capital social e

informacional, acessados com mais facilidades por agentes como UPP Social, Territórios da

Paz e CRAS; por outro, tem-se um ciclo, onde capital econômico, capital espacial e capital

simbólico, convertem-se uns nos outros nesta ordem, acessados, com maior facilidade, por

agentes como UPP e PAC. Aqui destaca-se o capital espacial, valorizado no campo

burocrático do Estado em ação nas favelas, por sua capacidade de ser convertido em capital

simbólico, e como uma espécie de capital própria do campo burocrático do Estado no

contexto descrito.

Voltei-me, então, para a análise da relação entre o campo burocrático do Estado em

ação nas favelas e os processos de organizar desempenhados pelos agentes do campo.

Page 300: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

299

Busquei mostrar como a lógica burocrática do campo e a influência do campo político,

quando se chocam com a lógica própria da favela - e em um novo território no qual os agentes

do Estado precisam aprender a criar suas rotinas -, levam a processos de organizar lentos e

descontínuos. Ainda, como agentes disputam em torno de lógicas institucionais distintas, seus

processos de organizar tornam-se dispersos e sobrepostos, porque estes tem dificuldades em

estabelecer conexões entre suas redes de ações, mesmo quando elas estão direcionadas para

um mesmo objetivo. O capital espacial, valorizado no campo burocrático do Estado em ação

nas favelas, também influencia a criação de padrões nos processos de organizar, tendo em

vista que os agentes do campo buscam (des)materializar os seus processos de organizar,

apresentando resultados concretos e visíveis em suas ações.

Por meio desta análise inicial aponto para uma estreita relação entre o campo

burocrático do Estado e os processos de organizar. Sustento que há entre eles uma relação de

imbricamento, em que ambos se influenciam mutuamente. Se por um lado as lógicas do

campo impõem padrões aos processos de organizar, por outro, os processos de organizar

também auxiliam em uma concentração de capitais, possibilitando a manutenção ou alteração

da ordem do campo.

Por fim, voltei o meu olhar para o espaço social de favelas, e assumindo as favelas

também enquanto campos, busquei demonstrar como a produção do espaço social se dá a

partir de um choque entre campos com lógicas distintas. Quando o campo burocrático do

Estado e o campo das favelas se chocam, o espaço social é produzido a partir de hibridismos e

ambiguidades, que aparecem nas favelas nas formas de hibridismos espaciais, ambiguidades

entre regras do Estado e do tráfico, e ambiguidades advindas da própria noção de organizar, a

qual busquei descontruir propondo o conceito de processos de (des)organizar. Os agentes do

Estado, quando buscam o acúmulo do capital espacial, por meio da (des)materialização de

seus processos de organizar, também desorganizam a favela na perspectiva de seus

moradores, diante da capacidade de organização da matéria que assume papel central na vida

da favela.

Seguindo esta linha argumentativa, cheguei ao conceito de maquiagem do espaço,

expressão utilizada pelos próprios moradores para se referir à realidade das favelas

“pacificadas”. A metáfora da maquiagem serve para transferir à realidade da favela uma

propriedade dissimuladora, a capacidade de disfarçar e esconder uma realidade, que em geral

é mais “feia” do que a “beleza” que a maquiagem ajuda a produzir. A favela “maquiada”

apoia-se nas transformações materiais trazidas pelos agentes do Estado para se “embelezar”.

Page 301: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

300

Ausência de tiros, de armas e de drogas, presença constante de policiais, obras de

infraestrutura, ajudam a emitir um sentido, por meio da dimensão simbólica da matéria, de

que as favelas “pacificadas” são seguras e estão progredindo, desenvolvendo-se. Por baixo da

maquiagem, camada que busquei acessar por meio de minha pesquisa de campo, tem-se uma

realidade mais complexa, na qual segurança e insegurança se mesclam, e tem-se, isto sim,

uma “administração da pobreza”.

Busquei operacionalizar, portanto, a relação entre processos de organizar e espaços

sociais, atendendo à demanda na literatura de estudos organizacionais para um

(re)materialização das organizações (DALE e BURRELL, 2008). Conforme demonstrado, a

relação entre organizações e espaço social é melhor apreendida por meio de uma lógica

processual, segundo a qual entende-se ambos enquanto processos, imbricados em uma mútua

relação de produção contínua. Mais ainda, evidenciou-se que o espaço social é um produto

político, é produzido e reproduzido a partir de relações de poder. A relação entre poder e

espaço também foi aqui evocada ao se apontar para uma produção social dos espaços de

favelas a partir de um choque entre campos de poder, em meio a lógicas em disputa.

Foi um desafio estimulante e complexo encadear aquilo que analisava em argumentos

que, em sequência, se articulassem e fizessem sentido de forma a responder ao meu problema

de pesquisa. Evidente que a experiência que vivi nas favelas foi de uma complexidade muito

maior, e que a partir de meus dados cheguei a conclusões que não foram abordadas nesta

pesquisa, e que talvez nem sequer fossem de interesse acadêmico, mas que, sem dúvida,

contribuíram para diversas esferas da minha vida e fizeram de mim uma outra pessoa e uma

outra acadêmica, espero que melhor. A forte “cultura” policial, as linguagens próprias do

Estado e das favelas, as mudanças no mercado imobiliário da favela após a UPP, a ameaça de

gentrificação nas favelas, são exemplos de alguns dos temas que transpassam a minha

pesquisa, que tiveram destaque em meus dados, mas que não são abordados em profundidade,

por falta de tempo e espaço, e por minha insistência em tentar manter uma linha

argumentativa clara, na qual os diversos temas se articulem.

Uma outra limitação desta pesquisa diz respeito à minha incapacidade de olhar o

campo burocrático do Estado como um todo, ou de buscar traçar os seus limites. Um conceito

ideal como o de campo requer uma análise que o circunscreva a um recorte empírico, e foi

isto o que busquei fazer ao voltar o meu olhar, de forma mais específica, para o campo

burocrático do Estado em ação nas favelas, limitando as conclusões de minha pesquisa a este

contexto específico.

Page 302: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

301

Entendo também que minha pesquisa diz respeito a uma momento histórico muito

particular na cidade do Rio de Janeiro, e é, portanto, uma pesquisa circunscrita temporalmente

e geograficamente. Entretanto, considero que o contexto histórico e o espaço geográfico aos

quais minha investigação se circunscreve são de tamanha relevância para a cidade, e possuem

implicações de tão grande valor - especialmente para os que habitam as favelas -, que as

análises empíricas deste cenário se fazem não só necessárias como urgentes. Tais análises

podem, ainda, contribuir para contextos semelhantes em outras cidades do País ou do mundo,

algumas das quais buscam até mesmo “copiar” o modelo do programa das UPPs. Por diversas

vezes ouvi em congressos nacionais e internacionais relatos de pessoas que identificaram um

cenário muito semelhante em sua cidade de origem, apontando-me para uma outra relevância

do trabalho para a qual eu mesma ainda não estava tão atenta.

É preciso reconhecer também que minha pesquisa seria outra se realizada em mesmo

contexto e momento histórico por outro pesquisador. Reconheço, especialmente, a minha

tendência, provavelmente bem perceptível, de me posicionar ao lado dos moradores de

favelas, e de buscar, talvez com mais afinco, acessar a realidade para estes interlocutores

específicos. Para além dos meus ideais críticos e voltados para transformação social, que me

levam a buscar sempre uma posição em prol das “minorias”, a minha sensação de

estranhamento aguçava-se diante destes interlocutores tão próximos, mas tão distantes, e a

minha curiosidade de pesquisadora também me “puxava” nesta direção. Entretanto, também é

preciso ressaltar que busquei me proteger desta tendência enviesada e contei com ajuda da

minha orientadora (muito ciente da minha condição), que me chamava atenção,

incessantemente, do primeiro ao último dia de pesquisa, para que eu buscasse olhar também

pela perspectiva dos representantes do Estado.

Em meio a tantas temáticas que ficaram em aberto, a tantos contextos semelhantes ao

redor do mundo, e a tantos possíveis olhares diferentes do meu, reconheço que minha

pesquisa tem ainda muitos pontos a serem investigados futuramente. O uso do conceito de

lógicas institucionais como forma de complementar a perspectiva teórica de Bourdieu pode

ser explorado mais a fundo, tendo em vista que a literatura sobre lógicas institucionais está

longe de se esgotar nos aspectos que foram utilizados nesta pesquisa. A própria natureza do

capital espacial e sua aplicabilidade a outros campos ou ao próprio campo burocrático do

Estado em outros contextos merece ser tema de pesquisas futuras. A capacidade de

organização da matéria, que me saltou aos olhos no cotidiano da favela, não apenas em meu

campo, mas também em campos descritos em pesquisas passadas, constitui-se em um aspecto

Page 303: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

302

de extrema relevância que tende a ser negligenciado. Assim como nas favelas, a matéria

(des)organiza em contextos diversos e merece atenção.

Mas as minhas conclusões não se restringem a contribuições teóricas ou a implicações

para pesquisas futuras. Concluí também sobre a importância de uma pesquisa de campo

profunda para o enriquecimento da área de estudos organizacionais, que tende a se guiar

muito mais por pontos do que por uma produção de conhecimento verdadeira. Concluí que o

conhecimento necessário à formação acadêmica não se encontra apenas em livros, e que

fechar os livros pode ser muito engrandecedor para a formação de um pesquisador que, como

eu, tem uma tendência à valorizar o conhecimento teórico acima de todas as outras coisas.

Concluí que a grande pilha de livros que há entre mim e meu campo não faz de mim melhor

ou superior, faz de mim uma pessoa com um conhecimento diferente, mas que também tem

muito a aprender com outras formas de conhecimento. Concluí, por fim, que se tornar um

pesquisador requer muito mais do que inteligência ou leitura; requer vivências e experiências

no mundo “real”, revelador de tantas realidades... E foi subindo e descendo o morro,

experimentando o cotidiano nas favelas, que pude acessar as múltiplas realidades, as

ambiguidades vividas pelos meus interlocutores, as favelas por baixo de sua maquiagem, a

(des)organização das favelas.

Page 304: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

303

9 REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Sérgio. Crime e violência na sociedade brasileira contemporânea. Psicologia-PSI,

São Paulo: CRP, 2002b, 132.7: 7-8.

AGAR, M.. On the Ethnographic Part of the Mix A Multi-Genre Tale of the Field.

Organizational Research Methods, v. 13, n. 2, p. 286-303, 2010.

ALCADIPANI, R. Practices of Organizing: enacting boundaries and performing production

in newspaper printing. Tese defendida na University of Manchester, Manchester Business

School, 2008.

ALVITO, M. Um bicho-de-sete-cabeças. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Orgs.). Um século

de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

ANGROSINO, M. V. Recontextualizing observation: ethnography, pedagogy, and the

prospects for a progressive political agenda. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.). The

Sage handbook of qualitative research. London: Sage, 2000.

ASAD, T. Where are the margins of the State? In: DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology

in the Margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.

BAKKEN, T.; HERNES, T.. Organizing is both a verb and a noun: Weick meets Whitehead.

Organization Studies, v. 27, n. 11, p. 1599-1616, 2006.

BANCO MUNDIAL. O retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: uma análise da

transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Rio de

Janeiro: Banco Mundial, 2012.

BAUER, M. W.; GASKEL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual

prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BIRMAN, Patrícia. Favela é comunidade?. In: MACHADO DA SILVA, L. A. Vida sob

cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 97-

114, 2008.

Bourdieu, P. (1986) The forms of capital. In J. Richardson (Ed.) Handbook of Theory and

Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood, p. 241-258.

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. 2. Ed. Ver. Porto Alegre, RS: Zouk,

2011b.

BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a.

BOURDIEU, P. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.

Page 305: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

304

BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico.

São Paulo: UNESP, 2004b.

BOURDIEU, P. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.

BOURDIEU, P. Sobre o Estado. Cursos no Collège de France. 1 ed. São Paulo: Companhia

das Letras, 2014.

BOURDIEU, P. Sur l`État: cours au college de France. Paris: Raisons dàgir/Éditions du Seuil,

janvier 2012.

BOURDIEU, P.. Outline of a Theory of Practice. UK: Cambridge, 1977.

BOURDIEU, P.; DARBEL, A.. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público.

São Paulo: Universidade de São Paulo. Porto Alegre: Zouk, 2007

BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires:

Siglo Veintiuno Editores, 2012.

BOURDIEU, P; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. C.. Ofício de sociólogo:

metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

BOURIDEU, P.; WACQUANT, L.; FARAGE, S. Rethinking the State: genesis and structure

of the bureaucratic field. Sociological Theory, v. 12, n. 1, p. 1-18, Mar., 1994.

BRODKIN, Evelyn Z. Reflections on Street-Level Bureaucracy: Past, Present, and Future.

Public Administration Review, v. 72, n. 6, p. 940-949, 2012.

BRUM, Mario. Cidade Alta: história, memórias e estigma de favela num conjunto

habitacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.

BURGOS, M. B. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas

do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Orgs.). Um século de favela. Rio de

Janeiro: FGV, 2006.

BURRELL, G. Ciência normal, paradigmas, metáforas, discursos e genealogia da análise. In:

CLEGG, S. R.; HARDY, C.; NORD, W. R. (org.) Handbook de Estudos Organizacionais:

modelos de análise e novas questões em estudos organizacionais. São Paulo: Atlas, 2007.

CANAVÊZ, Fernanda. As UPPs para além do dilema entre violência e paz. Revista EPOS,

Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, Jan.-jun., 2012.

CANO, Ignacio. Políticas de segurança pública no Brasil: tentativas de modernização e

democratização versus a guerra contra o crime. Sur. Revista Internacional de Direitos

Humanos, 2006, 3.5: 136-155.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R.. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. Revista

de Antropologia, p. 13-37, 1996.

Page 306: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

305

CARLILE, Paul R.; LANGLEY, Ann; TSOUKAS, Haridimos (Ed.). How matter matters:

Objects, artifacts, and materiality in organization studies. Oxford University Press, 2013.

CARVALHO, C. A.; VIEIRA, M. M. F. O poder nas organizações. São Paulo: Thomson

Learning, 2007.

CAVALCANTI, M.. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor (es) em uma favela

consolidada. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 69, p. 69-80, 2009.

CAVALCANTI, M.. Of shacks, houses, and fortresses: an ethnography of favela

consolidation in Rio de Janeiro. Tese de doutorado, Chicago, University of Chicago, 2007.

CLEGG, S. ; KORNBERGER, M. (Ed.). Space, organizations and management theory. Oslo:

Liber, 2006.

CUNHA, Neiva Vieira da; DA SILVA MELLO, Marco Antonio. Novos conflitos na cidade:

A UPP e o processo de urbanização na favela. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e

Controle Social, 2011, 4.3: 371-401.

CUNLIFFE, A. L. Retelling tales of the field in search of organizational ethnography 20 years

on. Organizational Research Methods, v. 13, n. 2, p. 224-239, 2010.

CZARNIAWSKA, B. Going back to go forward: on studying organizing in action nets. In:

HERNES, Tor; MAITLIS, Sally. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University

Press, 2010.

CZARNIAWSKA, Barbara. A theory of organizing. Edward Elgar Publishing, 2014.

DA MATTA, R..O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Museu nacional,

1978.

DALE, K.. Building a social materiality: spatial and embodied politics in organizational

control. Organization, v.12, n.5, p. 649 – 678, 2005.

DALE, K.; BURRELL, G. The spaces of organisation and the organisation of space: power,

identity & materiality at work. New York: University of Leicester, 2008.

DAS, V.; POOLE, D. State and its margins: comparative ethnographies. In: DAS, V.;

POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: School of American

Research Press, 2004.

DIMAGGIO, Paulo J.; POWELL, Walter W. A gaiola de ferro revisitada: isomorfismo

institucional e racionalidade coletiva nos campos organizacionais. RAE-Revista de

Administração de Empresas, v. 45, n. 2, p. 74-89, 2005.

DOBBIN, F. The poverty of organizational theory: comment on: “Bourdieu and

organizational analysis”. Theory and Society, v. 37, p. 53-63, 2008.

Page 307: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

306

DUARTE, M. F.; ALCADIPANI, R. Contribuições do organizar (organizing) para os estudos

organizacionais. XXXVII Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em

Administração, Rio de Janeiro, 2013.

EMERSON, R. M.; FRETZ, R. I.; SHAW, L. L. Writing ethnographic fieldnotes. Chicago:

University of Chicago Press, 1995.

EMIRBAYER, M.; JOHNSON, V. Bourdieu and organizational analysis. Theory and Society,

v. 37, p. 1-44, 2008.

EMIRBAYER, Mustafa; WILLIAMS, Eva M. Bourdieu and social work. Social Service

Review, v. 79, n. 4, p. 689-724, 2005.

EVERETT, J. Organizational research and the praxeology of Pierre Bourdieu. Organizational

Research Methods, v. 5, p. 56, 2002.

FLEURY, Sonia. Militarização do social como estratégia de integração - o caso da UPP do

Santa Marta. Sociologias, 2012, 14.30: 194-222.

FLIGSTEIN, Neil; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford University Press, 2012.

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela

turística. Editora FGV, 2009.

FREITAS, C.. A prática em Bourdieu. Educação e Realidade Contemporânea, p. 21, 2008.

FRIEDLAND, R. The endless fields of Pierre Bourdieu. Organization, v. 16, n. 6, p. 887-917,

2009.

GERGEN, K. J. Co-constitution, causality, and confluence: organizing in a world without

entities. In: HERNES, Tor; MAITLIS, Sally. Process, sensemaking, and organizing. Oxford

University Press, 2010.

GOLSORKHI, D.; LECA, B.; LOUNSBURY, M.; RAMIREZ, C. Analysing, accounting for

and unmasking domination: on our role as scholars of practice, practitioners of social science

and public intellectuals. Organization, v. 16, n. 6, p. 779-797, 2009.

GOULART, Sueli. Uma abordagem ao desenvolvimento local inspirada em Celso Furtado e

Milton Santos. Cadernos Ebape. BR, v. 4, n. 3, p. 01-15, 2006.

GRILLER, F. The return of the subject? The methodology of Pierre Bourdieu. Critical

Sociology, v. 22, n. 3, 1996.

GRILLO, C. Coisas da vida no crime: tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese de doutorado,

Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, 2013.

Page 308: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

307

HARMON, Derek J.; GREEN, Sandy E.; GOODNIGHT, G. Thomas. A model of rhetorical

legitimation: The structure of communication and cognition underlying institutional

maintenance and change. Academy of Management Review, v. 40, n. 1, p. 76-95, 2015.

HERNES, T. The spatial construction of organizations. Amsterdam: John Benjamins

Publishing Company, 2004.

HUMPHREYS, M.; BROWN, A. D.; HATCH, M. J.. Is ethnography jazz?. Organization, v.

10, n. 1, p. 5-31, 2003.

ISER. As Unidades de Polícia Pacificadora e a segurança pública no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: ISER, 2012.

JESSOP, B., BRENNER, N., JONES, M.. Theorizing sociospatial relations. Environment and

Planning D: Society and Space, 26(3), 389–401, 2008.

LANGLEY, A.; TSOUKAS, H. Introducing “perspectives on process organization studies”.

In: HERNES, Tor; MAITLIS, Sally. Process, sensemaking, and organizing. Oxford

University Press, 2010.

LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 2007.

LINDBERG, Kajsa; CZARNIAWSKA, Barbara. Knotting the action net, or organizing

between organizations. Scandinavian journal of Management, v. 22, n. 4, p. 292-306, 2006.

LOUREIRO, Maria Rita; OLIVIERI, Cecília; MARTES, Ana Cristina Braga. Burocratas,

partidos e grupos de interesse: o debate sobre política e burocracia no Brasil.I n: ABRUCIO,

M. LOUREIRO, & R. PACHECO, Burocracia e política no Brasil: desafios para o Estado

democrático no século XXI, 2010.

LOYENS, Kim; MAESSCHALCK, Jeroen. Toward a Theoretical Framework for Ethical

Decision Making of Street-Level Bureaucracy Existing Models Reconsidered. Administration

& Society, v. 42, n. 1, p. 66-100, 2010.

MACHADO DA SILVA, L. A. A política na favela. Dilemas: Revista de Estudo de Conflito

e Controle Social, v. 4, n. 4, p. 699-716, out./Nov./dez., 2011.

MACHADO DA SILVA, L. A. Introdução. In: MACHADO DA SILVA, L. A.. Vida sob

cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008a.

MACHADO DA SILVA, L. A. Violência urbana, sociabilidade violenta e agenda pública. In:

MACHADO DA SILVA, L. A.. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008b.

MACHADO DA SILVA, L. A.. Afinal, qual é a das UPPs. Observatório das Metrópoles, Rio

de Janeiro, mar, 2010.

Page 309: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

308

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio, et al. “VIOLÊNCIA URBANA”, SEGURANÇA

PÚBLICA E FAVELAS-O CASO DO RIO DE JANEIRO ATUAL.Caderno CRH, 2010,

23.59.

MARICATO, E. Favelas: um universo gigantesco e desconhecido. 2001. Disponível em:

<http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab >. Acesso em: 19 janeiro 2012.

MAZZA, Carmelo; PEDERSEN, Jesper Strandgaard. From press to e-media? The

transformation of an organizational field. Organization Studies, v. 25, n. 6, p. 875-896, 2004.

MEDEIROS, R. M. V. Território, espaço de identidade. In: SAQUET, Marcos Aurelio;

SPOSITO, Eliseu Savério. Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos.

Expressão Popular, 2009.

MISOCZKY, M. C. Leituras enamoradas de Marx, Bourdieu e Deleuze: indicações para o

primado das relações nos estudos organizacionais. In: VIEIRA, M. M. F.; ZOUAIN, D. M.

(Orgs.). Pesquisa qualitativa em administração. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

MISSE, Daniel Ganem. Políticas Sociais em Territórios Pacificados. Tese de Doutorado, Rio

de Janeiro, Programa de pós-graduação em sociologia e direito, Universidade Federal

Fluminense, 2013.

MORGAN, Gareth. Paradigms, metaphors, and puzzle solving in organization theory.

Administrative Science Quarterly, p. 605-622, 1980.

MORGAN, Glenn; EDWARDS, Tim; GOMES, Marcus Vinícius. Consolidating neo-

institutionalism in the field of organizations: Recent contributions. Organization, v. 21, n. 6,

p. 933-946, 2014.

NELSO, D. M. Anthropologist discovers legendary two-faced Indian! Margins, the State, and

duplicity in postwar Guatemala. In: DAS, V.; POOLE, D. (Ed.). Anthropology in the Margins

of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.

OBSERVATÓRIO DE FAVELAS. O que é favela afinal? In: SILVA, J. S. (Org.). O que é

favela, afinal? Rio de Janeiro: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, 2009.

OLSEN, B. Reclaiming things: an archaeology of matter. In: CARLILE, Paul R.; LANGLEY,

Ann; TSOUKAS, Haridimos (Ed.). How matter matters: Objects, artifacts, and materiality in

organization studies. Oxford University Press, 2013.

Orlikowski, W.J. (2007). Sociomaterial practices: Exploring technology at work.

Organization Studies, 28 (9), 1435–1448.

ÖZBILGIN, M.; TATLI, A. Mapping out the field of equality and diversity: rise of

individualism and voluntarism. Human Relations, v. 64, n. 9, p. 1229-1253, 2011.

Page 310: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

309

PECI, A. Estrutura e ação nas organizações: algumas perspectivas sociológicas. Revista de

Administração de Empresas, v.43, n.1, jan./fev./mar., 2003.

PECI, A. Estrutura e ação nas organizações: algumas perspectivas sociológicas. Revista de

Administração de Empresas, v.43, n.1, jan./fev./mar., 2003.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova

retórica. Martins Fontes, 2005.

PERLMAN, J. E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2002.

PETTIGREW, A. M. What is a processual analysis?. Scandinavian journal of management, v.

13, n. 4, p. 337-348, 1997.

PINTO, L. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

PIORE, Michael J. Beyond Markets: Sociology, street-level bureaucracy, and the

management of the public sector. Regulation & Governance, v. 5, n. 1, p. 145-164, 2011.

RAFFESTIN, C.. Space, territory, and territoriality. Environment and Planning D: Society

and Space, 30(1), 121–141, 2012.

RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e violência: tendências na cobertura de

criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.

SALLAZ, J. J.; ZAVISCA, J. Bourdieu in Amarican Sociology, 1980-2004. Annual Review of

Sociology, v. 33, p. 21-30, 2007.

SANDAY, P. R.. The ethnographic paradigm (s). Administrative Science Quarterly, v. 24, n.

4, p. 527-538, 1979.

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. Ed. São Paulo:

Universidade de São Paulo, 2009a.

SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009b.

SANTOS, M. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. 6. Ed.

São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.

SAPORI, L. F.. Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV,

2007.

SCHATZKI, Theodore R. On organizations as they happen. Organization Studies, v. 27, n.

12, p. 1863-1873, 2006.

SETTON, M. G. J.. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea.

Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro , n. 20, Aug. 2002.

Page 311: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

310

SHOTTER, J. Adopting a process orientation… in practice: chiasmic relations, language, and

embodiment in a living world. In: HERNES, Tor; MAITLIS, Sally. Process, sensemaking,

and organizing. Oxford University Press, 2010.

SILLINCE, John AA; BROWN, Andrew D. Multiple organizational identities and legitimacy:

The rhetoric of police websites. Human Relations, v. 62, n. 12, p. 1829-1856, 2009.

SILVA, Marcella Carvalho de Araújo. A transformação da política na favela: um estudo de

caso sobre os agentes comunitários. Dissertação de mestrado apresentada ao PPGSA/UFRJ,

2013.

SOARES, Luiz Eduardo. Segurança pública: presente e futuro. Estudos Avançados, 2006, 20,

56: 91-106.

SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio

de Janeiro: Zahar Editor, 1993.

STRAUSS, Anselm L.; CORBIN, Juliet. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para

o desenvolvimento de teoria fundamentada. Artmed, 2008.

STROZEMBERG, P. Alguém tem receio de ser multado na favela? SILVA, J. S. (Org.). O

que é favela, afinal? Rio de Janeiro: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, 2009.

SUDDABY, Roy; GREENWOOD, Royston. Rhetorical strategies of

legitimacy. Administrative science quarterly, v. 50, n. 1, p. 35-67, 2005.

SWARTZ, D. Bringing Bourdieu`s master concepts into organizational analysis. Theory and

Society, v. 37, p. 45-52, 2008.

TADAJEWSKI, Mark. The debate that won't die? Values incommensurability, antagonism

and theory choice. Organization, v. 16, n. 4, p. 467-485, 2009.

THIRY-CHERQUES, H. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração

Pública, v. 40, n. 1, p. 27-55, 2006.

THORNTON, Patricia H.; OCASIO, William. Institutional logics. The Sage handbook of

organizational institutionalism, v. 840, p. 99-128, 2008.

THORNTON, Patricia H.; OCASIO, William; LOUNSBURY, Michael. The institutional

logics perspective: A new approach to culture, structure, and process. Oxford University

Press, 2012.

TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2001.

TSOUKAS, H. Organization as chaosmos. In: ROBICHAUD, Daniel; COOREN, François

(Ed.).Organization and organizing: Materiality, agency and discourse. Routledge, 2013.

Page 312: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

311

UERJ e FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. (Coord. Ignacio Cano). Os

donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia

Pacificadoras (UPPs) do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ e Fórum Brasileiro de

Segurança Pública, 2012.

VALLADARES, L.. A invenção da favela: do mito de origem a favela. com. Rio de Janeiro:

FGV, 2005.

VALLADARES, L.; FIGUEIREDO, A.. Housing in Brazil: na introduction to recent

literature. Bulletin of Latin American Research, v. 2, n. 2, p. 69 – 91, may., 1983.

VAN MAANEN, J.. A Song for My Supper More Tales of the Field. Organizational

Research Methods, v. 13, n. 2, p. 240-255, 2010.

VAUGHAN, D. Bourdieu and organizations: the empirical challenge. Theory and Society, v.

37, p. 65-81, 2008.

VENTURA, Z.. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

VERGARA, S.C. Nota técnica: ciência normal, paradigmas, metáforas, discursos e

genealogia da análise. In: CLEGG, S. R.; HARDY, C.; NORD, W. R. (org.) Handbook de

Estudos Organizacionais: modelos de análise e novas questões em estudos organizacionais.

São Paulo: Atlas, 2007.

WACQUANT, L. Prefácio. In: BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la

sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.

WACQUANT, L. Prefácio. In: BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la

sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012.

WACQUANT, L. Towards a reflexive sociology: a workshop with Pierre Bourdieu.

Sociological Theory, v.7, n.1, p. 26-63, Spring, 1989

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Editora Cultrix, 1974.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:

Universidade de Brasília., 1999.

WEBER, Max; GERTH, Hans Heinrich; MILLS, Charles Wright. Ensaios de sociologia.

1982.

WEICK, K. E. The poetics of process: theorizing the ineffable in organization studies. In:

HERNES, Tor; MAITLIS, Sally. Process, sensemaking, and organizing. Oxford University

Press, 2010.

WHYTE, F. W. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e

degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

Page 313: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

312

YANOW, D. Giving voice to space: academic practices and the material world. In: VAN

MARREWIJK, Alfons; YANOW, Dvora (Ed.). Organizational spaces: Rematerializing the

workaday world. Edward Elgar Publishing, 2010.

ZALUAR, A.; ALVITO, M. Introdução. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Orgs.). Um século

de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 2000.

ZALUAR, Alba. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos

Avançados, 2007, 21.61: 31-49.

ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV

Editora, 2004.

ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São

Paulo em Perspectiva, 1999, 13.3: 3-17.

ZICKAR, M. J.; CARTER, N. T. Reconnecting With the Spirit of Workplace Ethnography A

Historical Review. Organizational Research Methods, v. 13, n. 2, p. 304-319, 2010.

Page 314: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

313

10 ANEXOS

Roteiro de Entrevista

Agentes do campo do Estado

Trajetória pessoal e profissional

1) Nome, Idade, Escolaridade.

2) Conte-me sobre sua carreira pessoal e profissional até chegar à sua posição atual.

3) Desde quando está nesta organização/programa? Que cargo ocupa aqui? Quais as favelas

em que já trabalhou?

4) Você já tinha algum outro contato, aproximação ou experiência de trabalho com favelas?

Isso influencia de alguma forma o seu trabalho hoje?

Atuação na Organização/Programa

1) Você saberia explicar como se deu o surgimento da Organização/Programa?

2) Qual é o papel da Organização/Programa na favela? Isso varia de acordo com a favela?

3) Você saberia apontar pontos positivos e negativos da Organização/Programa?

4) Na sua visão, quais são os papéis que você precisa desempenhar enquanto um funcionário

desta Organização/Programa?

5) Você realiza alguma atividade para qual não havia sido designado anteriormente? Quais?

Como percebe isto?

6) Conte-me sobre a sua rotina de trabalho.

7) Em seu trabalho você se envolve em alguma atividade de planejamento? Quais?

8) Aquilo que foi planejado corresponde ao que está sendo executado? Quais são os pontos

que precisaram ser readaptados no processo de execução?

9) Quais são as principais normas que regem o trabalho de vocês?

10) Como se dá a comunicação dos moradores com a Organização/Programa? Existe algum

canal de comunicação institucional ou uma ouvidoria dos moradores em relação à atuação da

Organização/Programa?

11) Qual é o efetivo na comunidade onde atua (quantitativo de pessoas e distribuição por

turno de trabalho)?

12) Quais são os equipamentos e tecnologias que permitem sua equipe trabalhar? Atendem as

necessidades da equipe?

Page 315: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

314

13) Existe algum treinamento especial para entrar na Organização/Programa? Como acontece

e o que aprendem?

Percepções sobre as comunidades

1) Qual a sua percepção sobre as favela em geral? E sobre as favelas onde você trabalha? Essa

percepção mudou depois que você começou a trabalhar em favelas?

2) Em sua percepção, o que mudou no dia-a-dia da comunidade a partir da entrada da

Organização/Programa?

3) Como é a sua relação com a comunidade e como ela está se construindo?

4) Existem conflitos com os moradores e porque? Quais os conflitos mais frequentes?

Como resolvem os conflitos com os moradores caso aconteçam?

5) Existem aproximações e demonstrações de apoio (sinergias) e porque?

6) Como se dá a relação com os moradores do entorno próximo as comunidades? Existem

conflitos e aproximações?

7) Em sua opinião, quais são as facilidades e dificuldades no território onde atua?

Mudanças na materialidade

1) Vocês têm mais alguma coisa em termos de estrutura física aqui dentro?

2) Na sua visão, como o trabalho desempenhado pela Organização/Programa afeta as favelas

(em termos físicos, sociais, culturais, econômicos,...)? Que transformações ele traz?

3) Que outros representantes do Estado você vê atuando dentro das favelas? E como o

trabalho desempenhado por outros gestores representantes do Estado afeta as favelas?

Relação com outros agentes

1) A Organização/Programa estabelece parcerias com organizações na comunidade para

facilitar a realização do seu trabalho? (Ex: associação de moradores, ONGs locais, fóruns e

etc) E fora da comunidade? Como se dão essas relações?

2) Existem outros projetos atrelados à Organização/Programa que atuam dentro das favelas?

Quais são e o que realizam?

Avaliação e perspectivas de futuro

1) O projeto funciona, para que? Para quem? Como se dá o atendimento de demandas da

população local?

Page 316: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

315

2) Você acredita que as manifestações que têm ocorrido nos últimos tempos afeta o trabalho

de vocês de alguma forma?

3) Qual é a sua percepção sobre continuidade Organização/Programa? Como vê a expansão

dessa Organização/Programa e sua manutenção?

4) Como pensa que será a favela daqui a 10 anos e as intervenções estatais em favelas?

Encerramento

- Você indica alguém que poderia conversar comigo?

Roteiro de Entrevistas

Moradores das favelas

Trajetória pessoal e profissional

1) Nome, Idade, Escolaridade.

2) Conte-me sobre sua trajetória de vida.

3) Você mora nesta favela/comunidade há quantos anos? Como chegou aqui

Relação com agentes organizacionais públicos

6) Quais são os representantes do Estado/órgãos públicos que atuam nesta favela?

7) Eles sempre estiveram aqui? Quando entraram?

8) Você percebeu alguma mudança na postura do Estado?

9) Qual é o papel destes representantes do Estado/órgãos públicos aqui? (Explorar cada um

deles)

10) Você saberia apontar pontos positivos e negativos da ação destes representantes do

Estado/órgãos públicos? (Explorar cada um deles)

11) Que tipo de atividade estes representantes do Estado/órgãos públicos realizam aqui na

favela? (Explorar cada um deles)

7) Você tem contato próximo com estes representantes do Estado/órgãos públicos? Como é a

sua relação com eles? (Explorar cada um deles)

8) Como se dá a comunicação dos moradores com os representantes do Estado/órgãos

públicos? Existe algum canal de comunicação institucional ou uma ouvidoria dos moradores

em relação à atuação deles?

Page 317: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

316

Percepções sobre as comunidades

1) Qual a sua percepção sobre a favela onde você mora?

2) Em sua percepção, o que mudou no dia-a-dia da comunidade a partir da entrada de

representantes do Estado/órgãos públicos?

3) Existem conflitos entre representantes do Estado/órgãos públicos e os moradores e porque?

Quais os conflitos mais frequentes?Como resolvem os conflitos com os moradores caso

aconteçam?

4) Existem aproximações e demonstrações de apoio (sinergias) e porque?

5) Em sua opinião, quais são as facilidades e dificuldades que estes representantes do

Estado/órgãos públicos encontram neste território?

Mudanças na materialidade

4) Na sua visão, como o trabalho desempenhado pelos representantes do Estado/órgãos

públicos afeta as favelas (em termos físicos, sociais, culturais, econômicos,...)? Que

transformações ele traz? (Explorar cada um deles)

5) O que tem mudado no dia a dia da favela/comunidade?

Relação com outros agentes

1) Você percebe algum tipo de relação entre os diferentes representantes do Estado/órgãos

públicos? Como se dão estas relações? (Explorar conflitos e apoios)

2) Estes representantes do Estado/órgãos públicos relacionam-se com outras organizações de

moradores da favela/comunidade?

Avaliação e perspectivas de futuro

1) Você acredita que a ação destes representantes do Estado/órgãos públicos nas

favelas/comunidades funcionam? Por que? Para quem? Eles atendem as demandas locais?

2) Você acredita que as manifestações que têm ocorrido nos últimos tempos afeta o trabalho

dos representantes do Estado/órgãos públicos?

3) Qual é a sua percepção sobre continuidade da ação destes representantes do Estado/órgãos

públicos? Como vê a entrada de novos representantes do Estado/órgãos públicos na

favela/comunidade?

4) Como pensa que será a favela daqui a 10 anos e as intervenções estatais em favelas?

Page 318: Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)

317

Encerramento

- Você indica alguém que poderia conversar comigo?