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Introdução Monteiro Lobato: um olhar sobre o Brasil Não há melhor atestado de tudo o que separa a escrita literária da escrita científica do que esta capacidade, que ela possui exclusivamente, de concentrar e de condensar na singularidade concreta de uma figura sensível e de uma aventura individual, funcionando ao mesmo tempo como metáfora e metonímia, toda a complexidade de uma estrutura e de uma história que a análise científica precisa desdobrar e estender laboriosamente. Pierre Bordieu 1 Algumas personagens infantis de Monteiro Lobato parecem possuir a capacidade referida por Pierre Bordieu na epígrafe deste texto: condensam e concentram, em sua “singularidade de figura sensível” e na natureza de suas aventuras, “toda a complexidade de uma estrutura e de uma história que a análise científica precisa desdobrar e estender laboriosamente”. Esta dissertação compara as personagens infantis de alguns contos lobatianos para adultos e as personagens infantis do Sítio do Picapau Amarelo, a obra para crianças que consagrou o escritor. Procurou-se desdobrar, 1 BORDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário . Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.39. 8

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Monteiro Lobato: um olhar sobre o Brasil

Introduo

Monteiro Lobato: um olhar sobre o Brasil

No h melhor atestado de tudo o que separa a escrita literria da escrita cientfica do que esta capacidade, que ela possui exclusivamente, de concentrar e de condensar na singularidade concreta de uma figura sensvel e de uma aventura individual, funcionando ao mesmo tempo como metfora e metonmia, toda a complexidade de uma estrutura e de uma histria que a anlise cientfica precisa desdobrar e estender laboriosamente.

Pierre Bordieu

Algumas personagens infantis de Monteiro Lobato parecem possuir a capacidade referida por Pierre Bordieu na epgrafe deste texto: condensam e concentram, em sua singularidade de figura sensvel e na natureza de suas aventuras, toda a complexidade de uma estrutura e de uma histria que a anlise cientfica precisa desdobrar e estender laboriosamente. Esta dissertao compara as personagens infantis de alguns contos lobatianos para adultos e as personagens infantis do Stio do Picapau Amarelo, a obra para crianas que consagrou o escritor. Procurou-se desdobrar, estender e entender as singularidades, as semelhanas e os contrastes das crianas que Lobato retratou em fices dirigidas a pblicos to distintos o infantil e o adulto.

Assim, a anlise da histria da personagem Negrinha, do conto homnimo (Negrinha, 1920 ), por exemplo, permite iluminar complexidades sociais de uma poca o perodo imediatamente posterior abolio da escravatura que poderiam permanecer obscuros em anlises histricas que tratem do tema de forma mais ampla e geral.

A descrio da personagem Dona Incia, rica senhora que cria a rf Negrinha, talvez possibilite figurar melhor esta idia:

A excelente dona Incia era mestra na arte de judiar de crianas. Vinha da escravido, fora senhora de escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo essa indecncia de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polcia! Qualquer coisinha: uma mucama assada ao forno porque se engraou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: Como ruim, a sinh!...

Segundo o narrador, Dona Incia considerada excelente por seus amigos fazendeiros, e dama de grandes virtudes apostlicas, esteio da religio e da moral na opinio do reverendo. O fato de torturar mucamas e crianas no a torna menos excelente para seus iguais, porque so mucamas e crianas negras. Seu comportamento com as sobrinhas brancas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas bem diferente. O 13 de maio, afinal, no tivera o poder de transformar a viso de mundo de alguns membros do grupo social dos ex-senhores grupo condensado na personagem da fazendeira e as relaes entre proprietrios e empregados, as novas formas de vida privada, ficariam, por muito tempo ainda, tributrias da ordem privada escravista que tinha vigorado por trs sculos e meio em nosso territrio.

A ordem privada escravista, concentrada em Dona Incia, tem alguns de seus aspectos mais cruis revelados por meio dos atos da personagem. Assim, a forma como se do as relaes privadas entre membros do clero, da aristocracia e dos escravos libertos na casa de Dona Incia seriam como que instantneos, ricas miniaturas do sistema de relaes privadas vigente naquela complexa fase da histria nacional. Instantneos cheios de matizes, de intrigantes perspectivas no cenrio por trs da personagem focalizada, de objetos e signos que a circundam e caracterizam. A observao atenta desses instantneos, ou a anlise das personagens, de seu espao e de suas relaes, pode ajudar a desdobrar algumas das estruturas da ordem que as rege e a entender melhor aspectos dessa mesma ordem.

O narrador das histrias, que descreve as personagens e comenta seus atos, parece ser um bom ponto de partida para a anlise textual . ele que focaliza determinados acontecimentos, qualidades, comportamentos, em detrimento de outros. O narrador de Negrinha deixa as outras personagens em segundo plano, para tratar da relao entre a menina e sua senhora. Emoldurando esse recorte, esto os conflitos, as relaes, o modo de vida das outras personagens enfim, o plano da ao do conto que caracterizam o universo onde as protagonistas se movem.

Tanto o recorte como sua moldura revelam que o autor do conto selecionou, dentre infinitas possibilidades de abordar temas da poca, um determinado aspecto de um determinado grupo social: a relao entre uma criana negra liberta e uma ex-senhora de escravos. Tambm escolheu um tipo de narrador que, alm de onisciente e onipresente, faz digresses sobre o interior das personagens e sobre o mundo que as cerca. Em vista dessa escolha, a anlise das caractersticas do narrador torna-se complementar ao estudo das caractersticas das personagens.

A forma como Monteiro Lobato construiu narrador e personagens, e contou a histria, revela muito sobre como enxergava, apreendia, entendia o tema tratado. Os ngulos que seu olhar procura j que estamos usando a metfora da fotografia o foco que escolhe, os detalhes que ilumina, o recorte que faz, podem revelar um pouco da idia que fazia de seus objetos. So sinais que podem levar identificao de uma maneira de pensar a maneira de pensar de um observador privilegiado daquela Repblica que comeava. Privilegiado porque Lobato participou ativamente, como intelectual e empresrio, de sua poca. Tentar reconstruir esse olhar pode nos ajudar a compreender melhor as representaes sociais daquele momento histrico, principalmente com relao infncia e aumentar a abrangncia de nosso prprio olhar sobre ele.

Para tentar analisar de forma mais sistemtica a maneira como Lobato enxergava as questes referentes infncia, recorremos ao auxlio de informaes que permitam uma viso mais panormica da poca que compreende a Repblica Velha ltimo decnio do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX. Foi da sociedade brasileira deste perodo que Lobato tirou seus instantneos ou melhor, foi a partir de elementos dela que criou as histrias estudadas nesta dissertao. Assim, o captulo 1 apresenta um panorama em que se destacam os aspectos relativos infncia no Brasil da Repblica Velha, que permitem uma anlise mais refinada da maneira como Lobato representou famlias e crianas em seus textos.

No captulo dois, h um levantamento das personagens infantis presentes na obra lobatiana para adultos. Um estudo sobre os objetivos de Lobato como escritor e sua produo ficcional para peridicos, principalmente a Revista do Brasil, antecede e justifica a seleo dos contos Buclica, A vingana da Peroba (Urups, 1918), Pedro Pichorra (Cidades Mortas, 1919), Negrinha, O Fisco e Duas Cavalgaduras (Negrinha, 1920), cujas personagens infantis apresentam caractersticas que possibilitaram o trabalho de anlise. Ainda nesse captulo, desdobram-se, a partir do estabelecimento de categorias para o estudo das personagens, alguns aspectos das complexidades sociais do Brasil republicano.

A obra lobatiana para crianas discutida no captulo 3. Depois de arroladas as narrativas infantis produzidas pelo escritor, so selecionadas as histrias A menina do narizinho arrebitado (1920) e O Sacy (1921) como objeto de estudo. Como essas histrias foram profundamente modificadas por Monteiro Lobato, at serem publicadas em edies definitivas, elas so analisadas juntamente com as verses finais, Reinaes de Narizinho (1934) e O Saci (1946). O estabelecimento de categorias para analisar as protagonistas infantis abrange reflexes sobre o gnero literatura infantil, o modo como desenvolveu-se no Brasil e algumas das caractersticas inovadoras da produo literria de Monteiro Lobato para crianas.

Finalmente, no captulo 4, as personagens infantis dos contos para adultos so comparadas s personagens infantis da obra para crianas. A estrutura das histrias do Stio do Picapau Amarelo, semelhante a dos contos de fadas, levou utilizao da classificao feita por Vladimir Propp das funes do conto maravilhoso para nortear a anlise da trajetria das personagens da obra para crianas. As invariantes de Propp tambm terminaram por ajudar a iluminar as convergncias e divergncias entre as histrias dirigidas ao pblico infantil e os contos produzidos para o pblico adulto.

Autofotografia no espelho com mquina Rolleyflex

Captulo 1

A Infncia na Repblica Velha

No sei que noo prematura de sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experincia da minha primeira infncia. O que no pude esquecer, e minha recordao mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, algum, no sei mais quem, uma voz masculina falando: Voc ficou um homem, assim. Ora, eu tinha trs anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de j ter ficado homem daquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.

Mrio de Andrade

Monteiro Lobato (1882-1948) pode ser includo entre aqueles que Gilberto Freyre chamou de sobreviventes de uma especfica poca psicossociocultural brasileira: a de transio da Monarquia para a Repblica e do trabalho escravo para o livre . Transio que traria para o pas, que at ento tinha sua estrutura social baseada no meio rural e sua estrutura econmica dependente da mo-de-obra escrava , inmeras transformaes, principalmente a industrializao, o grande fluxo de imigrantes no-ibricos e a urbanizao. Mas essas transformaes foram percebidas e vividas de modos distintos pelos diversos grupos sociais brasileiros, como comentou Gilberto Freyre:

O tempo de Antnio Conselheiro e o do Conselheiro Rodrigues Alves, por exemplo, foram contraditrios e diversos, embora ambos vivessem na mesma poca e cada um fosse ao seu modo conselheiro e importante, tendo o de Canudos alcanado um renome internacional retrato no Almanaque Hachette, por exemplo de modo algum atingido pelo de Guaratinguet.

Esses ritmos e tempos diferentes esto ligados aos diferentes modos de vida e de formao cultural dos brasileiros que compunham a novssima Repblica Federativa do Brasil. Para entender melhor essas diversidades, preciso recuar um pouco, para abranger quem eram esses brasileiros, que o primeiro censo, de 1872, fixava em 9.930.478 habitantes mais do que o dobro da populao calculada em 1819, de cerca de 4, 6 milhes de pessoas. De acordo com este primeiro censo, do ponto de vista racial, os mulatos constituam cerca de 42% da populao, os brancos 38% e os negros 20% . A chegada de imigrantes europeus (em torno de 300 mil, entre 1846 e 1875) aumentou a porcentagem de brancos, que constituam menos de 30% do total de habitantes em 1819.

A populao brasileira era, em sua maioria, analfabeta:

Os primeiros dados sobre instruo mostram enormes carncias nessa rea. Em 1872, entre os escravos, o ndice de analfabetos atingia 99,9% e entre a populao livre aproximadamente 80%, subindo para mais de 86% quando considerarmos s as mulheres. Mesmo descontando-se o fato de que os percentuais se referem populao total, sem excluir crianas nos primeiros anos de vida, eles so bastante elevados. Apurou-se ainda que somente 16,85% da populao entre seis e quinze anos freqentavam escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colgios secundrios. Entretanto, calcula-se que chegava a 8 mil o nmero de pessoas com educao superior no pas. Um abismo separava, pois, a elite letrada da grande massa de analfabetos e gente com educao rudimentar.

Em 1871 havia sido decretada a Lei do Ventre Livre, que no produzira grandes efeitos. Apesar de escravos terem lutado ao lado de homens livres, na Guerra do Paraguai (1864-1870), e conquistado o respeito de muitos desses homens, somente a partir da dcada de 80 o movimento abolicionista ganharia fora, culminando com a lei de libertao dos escravos de 1888. Mas a populao negra no encontraria muitas oportunidades de trabalho, j que havia a opo de se contratar imigrantes europeus. O profundo preconceito da sociedade escravocrata perduraria por muito tempo ainda, de forma que a maioria da populao infantil no branca, por causa de sua cor e pobreza, ficaria fora das escolas.

Em 1882, Monteiro Lobato nascia no casaro da fazenda de seu av, Jos Francisco Monteiro, o Visconde de Trememb, dono de escravos e plantaes de caf na regio de Taubat, em So Paulo. No mesmo ano, em uma outra fazenda paulista, na regio de Santa Brbara DOeste, a educadora alem Ina von Binzer, que viveu no Brasil entre 1881 e 1885 e deu aulas a filhos de fazendeiros, refletia, em uma carta, sobre a futura convivncia dos filhos dos senhores com os filhos de seus escravos :

A lei de emancipao de 28 de setembro de 1871 determina entre outras coisas aos senhores de escravos que mandem ensinar a ler e a escrever a todas essas crianas. Em todo o Imprio, porm, no existem talvez nem dez casas onde essa imposio seja atendida. (...) ...o fato que ningum aqui faz coisa alguma, de maneira que as crianas nascem livres, mas crescem sem instruo e no futuro estaro no mesmo nvel dos selvagens sem gozar nem mesmo das vantagens dos escravos, que aprendem este ou aquele trabalho material. Se j esto livres, por que fazer despesa com eles, desperdiar dinheiro com o que no d lucro?

Parece estranho que o Sr. de Souza e D. Maria Lusa, sempre to humanos e inteligentes, pensem dessa mesma forma. No estaro percebendo que, agindo assim, esto preparando a pior gerao que se possa imaginar para conviver mais tarde com seus prprios filhos?

A elite dirigente parece ter compartilhado o modo de pensar dos patres da jovem Ina; de modo geral, no foram tomadas providncias para que os escravos nascidos livres recebessem a educao necessria para que pudessem sobreviver dignamente. Essa postura no mudou com a abolio da escravatura, em 1888, nem com a proclamao da Repblica, em 1889:

Costuma-se alegar que aos libertos nada foi concedido alm da liberdade. Nem terras, nem instruo, nem qualquer reparao ou compensao pelos anos de cativeiro. Eles foram entregues prpria sorte, o que podia ser especialmente dramtico para idosos e rfos (...). No contexto da poca, (...) a legislao que se esperava tinha por base a idia de tutela do Estado sobre o liberto, forando-o a continuar na propriedade em condies cujos termos deviam ser definidos pelo ex-senhor.

O ex-senhor, no entanto, poderia definir condies de vida to difceis quanto as adotadas pela personagem D. Incia, sobre quem o narrador de Negrinha afirma: o 13 de Maio tirou-lhe das mos o azorrague, mas no lhe tirou da alma a gana. Costumes seculares no so abolidos por leis, de maneira que a instruo, entre outras reparaes e preparaes que poderiam realmente conferir s crianas filhas dos escravos libertos o status de cidads no novo Brasil que a Repblica proclamara, no foi concedida pela classe dirigente que mudou o regime do pas. E as geraes que se seguiram sentiram - e sentem ainda - o peso da omisso daquela elite.

A herana do trabalho escravo e as disparidades sociais que gerou, aliada s enormes diversidades regionais, intensificadas por distncias geogrficas imensas e pela falta de uma rede de comunicaes que s a industrializao poderia trazer, contribuiu para que a populao que formava a Repblica fosse desigual, indefinida, um amlgama de passado e futuro em que coexistiam diferentes tempos e diferentes costumes:

No era uma sociedade, a massa plstica em que o governo tinha de trabalhar, mas um agregado de sociedades mltiplas, umas, do litoral e do planalto, sob as influncias mais diretas da civilizao ocidental, e outras, vivendo durante quase trs sculos, por assim dizer de sua prpria substncia, perdidas nos sertes e amuradas num isolamento quase completo.

Adultos em Miniatura

Essas diferentes sociedades tinham diferentes noes de infncia, muitas vezes contrastantes. Para os grupos sociais intermedirios entre a aristocracia rural e a alta burguesia que comeava a firmar-se nos crescentes cenrios urbanos, a infncia passava a ser concebida de acordo com padres europeus surgidos na esteira das mudanas de costumes e de organizao social trazidas pelas revolues burguesa e industrial:

A preservao da infncia impe-se como valor e meta de vida (...). A criana passa a deter um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da cincia (a psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela destinatria. Todavia, a funo que lhe cabe desempenhar apenas de natureza simblica, pois se trata antes de assumir uma imagem perante a sociedade, a de alvo de ateno e interesse dos adultos, que de exercer uma atividade econmica ou comunitariamente produtiva, da qual adviesse alguma importncia poltica e reivindicatria.

A natureza simblica da infncia que os adultos desses grupos sociais pretendiam preservar parece ter assumido contornos de inocncia e felicidade inerente quase mticas, talvez provocados por qualidades atribudas criana como a fragilidade, a inocncia e a dependncia. A infncia parece ter se assemelhado, no imaginrio dessas classes, a uma risonha manh, a uma poca caracterizada pela alegria e pela ternura, que os versos romnticos de Casimiro de Abreu (1839-1860) podem ter auxiliado a popularizar :

Como so belos os dias

Do despontar da existncia!

Respira a alma inocncia,

Como perfumes a flor;

O mar lago sereno,

O cu um manto azulado,

O mundo um sonho dourado,

A vida um hino damor!

(...)

Oh! dias de minha infncia!

Oh! meu cu de primavera!

Que doce a vida no era

Nessa risonha manh!

Entretanto, a mesma elite que aclamava os versos de Casimiro de Abreu e a doura do mundo infantil que retratam proporcionava a seus filhos prticas culturais e escolares cujo resultado era a criao de uma infncia macambzia. com esses termos que outro poeta, Olavo Bilac (1865-1918), intitula uma crnica de 1908, em que recorda seus tempos de criana:

(...) nunca fui verdadeiramente menino e nunca fui verdadeiramente moo.

A cousa no teria importncia, se fosse uma desgraa acontecida a mim somente: mas foi uma desgraa que aconteceu a toda uma gerao. Toda a gente do Rio, que tem hoje a minha idade, deve estar sentindo, ao ler estas linhas, a mesma tristeza.

Fomos todos criados para gente macambzia, e no para gente alegre.

Nunca nos deixaram gozar essas duas quadras deliciosas da vida que em que o existir um favor divino. Os nossos avs e os nossos pais davam-nos a mesma educao que haviam recebido: cara amarrada, palmatria dura, estudo forado, e escravizao prematura estupidez das frmulas, das regras e das hipocrisias. (...)

preciso estar quieto! preciso ser srio, preciso ser homem!.

Tanto nos recomendaram isso, que ficamos homens. E que homens! Cticos, tristes, de um romantismo doentio... (...)

Olavo Bilac aos nove anos.

Os avs e pais dos homens que formavam a elite brasileira, na poca em que Bilac publicou seu desabafo, provavelmente haviam recebido uma educao que, segundo Nelson Werneck Sodr, associava a idia de instruo idia de castigo e tendia a ser, nas poucas escolas existentes, universalista e enciclopdica . Durante o Imprio, as crianas das classes altas recebiam, em casa ou nos poucos colgios existentes, uma educao de tipo aristocrtico, destinada antes preparao de uma elite do que educao do povo ; uma educao que, de acordo com a descrio de Fernando de Azevedo, fornece tintas sombrias idealizada imagem de sonho dourado que caracterizava, para os adultos, o mundo infantil:

Nesse regime de educao domstica e escolar, prprio para fabricar uma cultura antidemocrtica, de privilegiados, a distncia social entre os adultos e as crianas, o rigor da autoridade, a ausncia de colaborao da mulher, a grande diferena na educao dos dois sexos e o predomnio quase absoluto das atividades puramente intelectuais sobre as de base manual e mecnica, mostram em que medida influiu na evoluo de nosso tipo educacional a civilizao baseada na escravido. O menino tratado de resto ou como um demnio, passada a fase de ser considerado como um anjo, que era at cinco ou seis anos, nas expresses de Gilberto Freyre, quando no usa batina, nos colgios, veste-se de sobrecasaca preta ou com todo o rigor de gente grande, com a diferena apenas das dimenses, para se desforrar, j rapazes, na indisciplina das escolas superiores, do regime de autoridade em que pais e mestres haviam asfixiado a sua natureza de meninos... esse aspecto triste e sombrio, com que se apresentam meninos e meninas, todos com ares de adultos, essa precoce maturidade exterior, nos trajes e nas maneiras, que levou um viajante estrangeiro do Brasil desse tempo um pas sem crianas.

A recluso das meninas e a aparncia grave dos meninos das classes altas brasileiras impressionou os missionrios norte-americanos Daryl P. Kidder e James C. Fletcher, que visitaram o pas nas dcadas de 1830 e 1840. No livro O Brasil e os Brasileiros , editado em 1845, Kidder relata a idia que o Dr. Manuel Pacheco da Silva, diretor do tradicional colgio carioca Dom Pedro II, fazia sobre a educao feminina nas escolas:

O Dr. P. da S. cavalheiro que toma um profundo interesse por todos os assuntos de educao e cujas idias aplica com sucesso a seus prprios filhos (...) disse-me uma vez: Desejo de todo meu corao ver o dia em que as nossas escolas para meninas sejam de tal natureza que uma jovem brasileira nelas se possa preparar, por sua educao intelectual e moral, a tornar-se uma digna me, capaz de ensinar a seus prprios filhos os elementos da educao e os seus deveres para com Deus e os homens: para esse objetivo, Sr., que estou me esforando.

Escolas como essa esto aparecendo, e algumas excelentes; mas, em oito em dez casos, os pais brasileiros pensam ter cumprido o seu dever mandando sua filha cursar, durante alguns anos, uma escola de moda, dirigida por estrangeiro: - quando completam treze ou quatorze anos, so da retiradas, acreditando o pai que sua educao est completa. Se rica, est desde logo preparada para a vida, e pouco depois disso o pai apresenta-lhe alguns dos seus amigos, com a consoladora observao: Minha filha, este o teu futuro esposo.

J a educao do menino brasileiro, segundo Kidder, melhor do que a de sua irm. Para o missionrio, no entanto, h nessa educao uma grande dose de superficialidade, pois o jovem transformado num pequenino velho antes de ter doze anos de idade, com seu chapu duro de seda preta, colarinho em p e bengala; e na cidade, anda como se todos estivessem olhando para ele, e como se o houvessem enfiado num colete. (...) mandado na mais tenra idade para um colgio onde cedo adquire o conhecimento da lngua francesa, e os rudimentos comuns da educao em portugus. Embora os pais residam na cidade, fica interno no colgio e somente em certas ocasies visitado.

O modo de educar as crianas no mudou muito nos primeiros anos logo aps a proclamao da Repblica; o modelo social republicano, caracterizado pela valorizao do saber e por campanhas pela alfabetizao e pela escola, s comearia a se impor a partir da dcada de 1920. At o final do sculo XIX, e durante as primeiras dcadas do sculo XX, a criana brasileira parece ter continuado a ser vista e tratada como um projeto de adulto.

Essa viso aparece em crnica de Joo Vieira de Almeida publicada pelo jornal feminista A Mensageira, de 15 de dezembro de 1897. Almeida, ento professor de portugus da Escola Normal de So Paulo, convoca as crianas leitoras para uma entrada precoce na vida adulta, em nome da Ptria:

Este o mez das creanas!

Ainda bem no deixaram ellas os livros e se voltam j para as gulodices!

Frias e arvores do Natal!...

* * *

Felizes vs, pequeninos seres, que vos no tendes de preocupar com a baixa do cambio, nem com as difficuldades da venda do caf.

Bem sabeis que o pap, mourejando noite e dia, sempre vos dar o vosso livro novo de classe; ou vos sorprehender, na madrugada de Natal, com o presente do... velho da montanha!...

No podeis comprehender, e bem hajais por isso, as amarguras que traga o vosso progenitor, ao ter de vos dar o necessario, para a vossa educao! (...)

Entretanto, taes no devem ser as aspiraes da mocidade...

A eterna distraco, a sde insacivel de divertimentos, a partilha dos espiritos futeis e da incapacidade doirada...

Outras devem ser as ideias, pelas quaes deveis luctar!... (...)

Em vs, moos, unicamente em vs, que confia esta patria, pobre me amargurada!...

Dae tregoas s futilidades que vos preocupam e attendei aos seus rogos sentidos!

Quando a nossa me padece, no justo, no decente que nos entreguemos ao prazer.

E a patria sofre e a patria reclama o concurso de todos os seus filhos!...

Accostumai-vos, desde j, a encarar o lado serio da existencia.

Atacae firmes e resolutos o problema da vida!...

Comeae a ser homens!...

E os meninos comeavam bem cedo, se no a ser, a aparentar ser homens:

A partir dos doze anos, o menino j no podia mais vestir roupa de criana - blusa marinheiro, branca ou vermelha, e calas azuis, por exemplo. Passava a usar trajes de homem, comprados no Bon Diable ou na Ville de Paris. Quanto menina, basta dizer que o maior elogio que recebia era o de ser uma verdadeira mocinha. Suas saias, que at os dez anos andavam pelo meio das canelas, passavam progressivamente a se encompridar. Mantendo mais contato ntimo com as amas e governantas do que com os pais, as crianas dirigiam-se a estes como Vossa Merc, Senhor Pai e Senhora Me, pedindo-lhes a bno com a cabea reclinada e as mos entrelaadas. Eram adultos em miniatura .

As representaes de crianas reproduzidas a seguir, que aparecem em anncios do perodo assim como os retratos infantis parecem confirmar a idia de que eram miniaturas de adultos:

Anncio da Revista da Semana, de 19/03/1918, que mostra uma criana

vestida como se fosse um adulto em miniatura, inclusive fumando.

Fotografia de sala de aula feminina que ilustra o livro Histrias da nossa terra, de Julia Lopes de Almeida, publicado em 1907.

Meninos de terno enfeitam a capa do livro Poesias Infantis,

de Olavo Bilac (1904)

A roupa que Monteiro Lobato (com as irms Judite e Ester) veste, em foto da dcada de 1880 ,

muito parecida com o costume da criana do anncio abaixo...

... extrado de jornais brasileiros do fim do sculo XIX e do comeo do XX . Por sua vez,

esse costume muito semelhante ao da personagem exibida na pgina seguinte...

...que ilustra o conto Um homem, de Olavo Bilac. (Contos Ptrios, 1904).

O menino da ilustrao considerado um homem no conto porque assume

a liderana da famlia aps a morte do pai.

So, pois, dados de diferentes linguagens, que confirmam o que diz Gilberto Freyre, para quem

Menino ou menina (...) trajava-se europia. Havia vestidos e roupas para crianas, importados da Europa ou copiados de figurinos europeus, que eram verdadeiras torturas para os prvulos, obrigados a ostentar golas de pelcia e casacas de veludo, sob o sol forte do trpico brasileiro. Para o menino, proclamada a Repblica, tornou-se trajo comum, entre a burguesia, o uniforme de Marinheiro Nacional: branco e gola azul, gorro, tambm azul, apito no bolso. Alguns colgios da poca comearam a exigir dos alunos uniforme e bon de algum modo militares: homenagem indireta ao exrcito que estabelecera o novo regime, depois de ter vencido a guerra com o Paraguai. No poucos pais faziam o cabeleireiro cortar o cabelo dos filhos escovinha.

Essa por assim dizer precoce maturidade para a qual as crianas so empurradas manifesta-se tambm no registro de Edgard Cavalheiro, quando ele conta que Monteiro Lobato, ao procurar lembrar-se dos fatos que mais o impressionaram entre os seus 12 e 15 anos, destacou dois, dos quais guardara ntida imagem .

O primeiro referia-se enorme vergonha que sentiu, aos 12 anos, quando foi obrigado a usar a primeira cala comprida. O segundo foi a revelao, feita por um amigo mais velho, de como nascem as crianas revelao que, por sinal, no o convenceu de todo, tamanha a surpresa. As crianas era vestidas como adultas, mas procurava-se mant-las inocentes com relao a assuntos considerados de adultos, como o sexo.

Aos 12 anos, Lobato j era fotografado de terno :

Monteiro Lobato comeou a sentir-se gente grande quando ficou decidido que iria prestar os exames em So Paulo. Estava com treze anos. Na capital, vive como estudante interno no Instituto de Estudos e Letras, onde se afirma como um dos bons alunos e funda com colegas o jornalzinho O Guarani. Em uma das edies, registra as principais ocorrncias da vida colegial, entre as quais avulta a narrao das brincadeiras da poca:

No ptio, leitores, andamos regularmente, e os jogos preferidos tm sido a bolinha e o bilboqu. Alm desses tm andado em voga alguns outros: a malha, o pio, e o que-pau--este?

Neste resgate do mundo dos jogos infantis encontramos outra via de acesso s convergncias e divergncias das vrias construes de infncia vigentes na poca, a propsito da qual Gilberto Freyre relata a convergncia ao registrar, por exemplo, que os brinquedos das crianas deste perodo foram quase os mesmos, do Norte ao Sul do Pas:

Para as meninas, as bonecas, que para as meninas de famlias ricas ou remediadas, eram importadas da Europa e em geral louras. Criavam s vezes nestas meninas, tantas delas morenas ou de famlias morenas, desgosto ou insatisfao com sua condio de trigueiras; o desejo de terem filhos ou filhas louras como as suas bonecas e como a maioria dos santos e anjos das capelas (...) Sobre os meninos do mil e novecentos brasileiro exerceria influncia semelhante (...) o Chiquinho dO Tico-Tico, menino louro e subeuropeu, que era idealizado um tanto em contraste com o muleque [sic] que o acompanhava: muleque [sic] muitas vezes posto pelo caricaturista em situaes cmicas.

Menos europeizantes foram, entre ns (...), os brinquedos e os jogos predominantes entre os meninos: pio, papagaio, peteca, barra, manja, queda-de-brao, imitao de circos, de batalhas (...). Isto antes de se ter verificado a invaso do Brasil civilizado, do Norte a Sul do Pas, pelo velocpede e pela bicicleta brinquedos de meninos ricos; e tambm pelo futebol (...).

Chiquinho e Benjamin, personagens da revista infantil O Tico-Tico . Inaugurada em 1905, a publicao contou com a colaborao de grandes artistas, como Angelo Agostini e J. Carlos, e influenciou, durante sua longa permanncia no mercado editorial, a construo do imaginrio infantil nacional .

Ao registrar o contraste entre a imagem loira do Chiquinho de O Tico-Tico, e o moleque Benjamim, que era seu coadjuvante, Gilberto Freyre abre espao para a indagao: Mas como era a vida do muleque brasileiro, retratado nO Tico-Tico como o contraste do menino louro e subeuropeu? Parece que longe de ser cmica, a vida das crianas brasileiras das classes baixas era muito dura. A sobrevivncia de brancos pobres, de mestios e de negros libertos foi caracterizada, nesta poca de transio, pelas constantes migraes pelo interior do pas e rumo s grandes cidades:

(...) eram as transumncias que lhes davam maleabilidade necessria para escapar da penria e da fome, da violncia que se entrelaava ao mandonismo local e aos recrutamentos forados, que permitiam que fosse contornada a posse desigual das terras, dos latifndios, fugir das intempries que invibializavam o sobreviver. Eixo sobre o qual se estruturava o modo de vida de largos contingentes, a mobilidade transparecia na posse exgua de bens, na concepo das roas, na prpria maneira de construir as casas (...)

Casas construdas nos limites das grandes propriedades, cuja qualidade maior era a possibilidade de ser abandonadas . Seus moradores viviam de servios espordicos e da produo de pequenas roas; como a personagem tio Barnab, de Monteiro Lobato, ex-escravo que mora em um rancho de sap localizado em um dos limites do Stio do Picapau Amarelo. Parece que tio Barnab, contador de histrias que inicia os netos de Dona Benta na cultura popular, condensa e concentra em sua figura secundria as caractersticas de uma extensa camada social da populao brasileira:

Os estudos realizados sobre essa camada social que se espraiava por vastas extenses geogrficas, composta de tipos regionais distintos e de graduaes sociais que iam de pequenos proprietrios e arrendatrios a simples ocupantes das terras, agregados, meeiros e parceiros, trabalhadores ocasionais e diaristas, tem indicado uma certa regularidade nos padres de sua organizao. Costuma-se dizer que viviam em torno de mnimos vitais: uma economia voltada para a produo dos gneros necessrios para o consumo e para a formao de pequenos excedentes, obtida basicamente por meio do trabalho familiar; uma sociabilidade que se estendia das clulas familiares s relaes de vizinhana e aos grupos condensados em torno de unidades sociais um pouco mais amplas, pequenas vilas, arraiais, bairros rurais, no geral de populao rala; relaes de dominao marcadas por padres personalistas que se substanciavam em direitos e obrigaes, freqentemente o uso da terra outorgada pelo proprietrio em troca de servios, do pertencimento a clientelas que formavam a base dos apoios polticos e eleitorais dos poderes locais; e, finalmente, uma vida religiosa e uma cultura popular cadenciada por ritos do catolicismo rstico, por festas e comemoraes dos santos de sua devoo, por uma forte tradio oral expressa nas modas de viola, nos sambas e batuques rurais, nos caterets, cururus, cocos, etc.

Essa populao, de forte tradio oral, vivia, portanto, sob conceitos muito distintos daqueles pretendidos para o pas pela elite brasileira. A foto abaixo , tirada por Monteiro Lobato em 1913, no interior de So Paulo, bastante sugestiva do estilo de vida da gente pobre na zona rural. A casa de pau-a-pique, a pequena roa e a exigidade de pertences parecem representar, com poucas variaes regionais, as condies de sobrevivncia do brasileiro pobre das primeiras dcadas do sculo XX.

Mas, se at o final do sculo XIX a maioria da populao brasileira vivia no campo, a partir das primeiras dcadas do sculo XX a equao passou a se inverter. Levas de migrantes e imigrantes chegavam s grandes cidades, que no tinham infra-estrutura para acomodar e empregar os novos moradores:

Estreitadas ainda nos seus cenrios coloniais, vivendo fases de uma industrializao incipiente, numa economia aferrada mais aos setores de servios e aos negcios da exportao do que s atividades produtivas propriamente ditas, passando por crises cclicas de carestia e aumento dos preos de gneros, de moradias e de aluguis, as cidades cresceram na multiplicao da pobreza, das precrias condies de vida e principalmente na diversidade de tipos tnicos e sociais que compunham as camadas populares. Mais do que isso, as transformaes se deram no contexto de uma urbanizao abrupta que se cimentava em formas improvisadas, levando o viver nas cidades a ser marcado pelas contingncias de um provisrio que muitas vezes se convertia em estrutura perene .

Parece que exatamente a essa urbanizao degradada e degradante que Lobato estava se referindo no conto O Fisco (Negrinha, 1920), quando alude s casinhas que surgiam como cogumelagem , tamanha a rapidez com que eram erguidas na periferia de So Paulo:

Quando l no Oeste a terra roxa se revelou mina de ouro das que pagam duzentos por um, a Itlia vazou para c a espuma da sua transbordante taa de vida. E So Paulo, no bastando ao abrigo da nova gente, assistiu, atnito, ao surto do Brs.

Drenos sangraram em todos os rumos o brejal turfoso; a gua escorreu; os espavoridos sapos sumiram-se aos poucos para as baixadas do Tiet; r comestvel no ficou uma para memria da raa; e, em breve, em substituio aos guembs, ressurtiu a cogumelagem de centenas e centenas de casinhas tpicas porta, duas janelas e platibanda. (...) Casotas provisrias, desbravadoras da lama e vencedoras do p, fora do preo mdico.

Nessas casotas provisrias, a vida da criana pobre no era muito diferente da vida da populao infantil da zona rural. As crianas da periferia trabalhavam para ajudar a famlia, como engraxates, entregadores de leite ou de jornal; eram tarefeiros sem vnculo empregatcio, como os pais. Muitas delas trabalhavam em fbricas, principalmente na poca da Primeira Guerra Mundial.

A foto seguinte mostra meninos que viviam da indstria de trapos, reaproveitamento de resduos deixados pela urbanizao .

Essa foto um bom exemplo do contraste entre os dois Brasis, que Euclides da Cunha havia focalizado em seu livro Os Sertes, de 1902. O Brasil do litoral, segundo Euclides, era moderno e urbanizado, enquanto o do interior seria arcaico, estagnado. Parece, no entanto, que esses dois Brasis no se opunham sempre pela sua localizao geogrfica: ambos existiam nas grandes cidades, onde uma parte da populao sobrevivia de modo arcaico, utilizando como meio de vida at mesmo o lixo da modernidade. E coexistiam na zona rural, onde uma populao queimava de modo arcaico a mata vizinha de fazendas e cidades modernizadas para sobreviver.

Apesar de por vezes conviverem to prximos geograficamente, esses grupos sociais pareciam estar irremediavelmente segregados por razes culturais, como constatou Monteiro Lobato:

Este nosso pas um assombro. Nascemos aqui, vivemos e morremos aqui e no o conhecemos. Conhecemo-lo to pouco que quando apareceu o primeiro retrato daprs nature do jca foi um espanto geral, e uma celeuma que durou anos e ainda debatida. que ningum sabia como era o jca - e sabem quantos jcas h neste pas? Milhes. Talvez 15 milhes, isto , a terceira parte da nao! Mas esses milhes de nacionais vivem de tal modo segregados da civilizao das cidades grandes e pequenas, to alheios cultura geral, que somos etnograficamente um balde com dois teros de gua e um de azeite coisas imisturveis.

Como resolver os problemas do Brasil arcaico, que impediam a entrada completa do pas na modernidade? Sobre essa pergunta se debruavam intelectuais desde os primeiros anos do sculo, procurando conhecer o Brasil e compreender seus contrastes. A resposta educao , que j aparecia estampada em livros infantis e artigos de jornais na dcada de 1910, comearia a circular de forma mais ampla e promover transformaes no decorrer da dcada de 1920.

O entusiasmo pela educao

Entre 1920 e 1929, o pas viveu um clima de efervescncia ideolgica e de inquietao social , marcado por revolues e incurses armadas, perturbaes nas campanhas presidenciais, reivindicaes operrias, manifestos feministas, anarquistas e socialistas, presses da burguesia empresarial, a Semana de Arte Moderna, o tenentismo, o desencadeamento do movimento revolucionrio que em 1930 levaria Getlio Vargas ao poder. Foi tambm um perodo de frtil desenvolvimento e estruturao de idias nacionalistas no Brasil , que se multiplicariam nas direes mais variadas a comear pela educao:

As primeiras manifestaes nacionalistas apareceram, de maneira mais sistemtica e mais influenciadora, no campo da educao escolar, com a ampla divulgao de livros didticos de contedo moral e cvico, ou melhor, de acentuada nota patritica. So obras que pretendem fornecer criana e ao adolescente uma imagem do Pas adquirida por via sentimental; de modo algum isso significa desprezar muitas afirmaes nacionalistas de vrios intelectuais brasileiros. Ocorre que a doutrinao iniciada no campo da educao escolar repercutiu, na poca, muito mais do que quaisquer outras, alm do que teve maior continuidade; e com a situao criada com as colnias de imigrantes, principalmente no sul do Pas, e cuja consequncia mais significativa foi o desencadeamento do processo de nacionalizao da escola primria, aparece outro foco desses sentimentos nacionalistas.

O projeto educativo e ideolgico que via no texto infantil e na escola (...) aliados imprescindveis para a formao de cidados surgira na Europa, onde apareceram vrias obras que inspirariam autores brasileiros. Entre elas, o livro italiano Cuore, de Edmond de Amicis (1886) e Le tour de la France par deux garons, de G. Bruno (1877). A obra de Amicis foi traduzida para o portugus e teve grande aceitao no Brasil . J o livro francs foi objeto de uma adaptao mais requintada: inspirou, em 1910, o famosssimo Atravs do Brasil que, escrito por Olavo Bilac e Manuel Bonfim, constituiu-se na leitura apaixonada e obrigatria de muitas geraes de brasileiros .

Desde 1886, porm, com os Contos Infantis de Jlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira, j se tentava fazer da leitura infantil instrumento de difuso do civismo e do patriotismo. Em 1889 surgia Ptria, de Joo Vieira de Almeida; em 1901, Por que me ufano de meu pas, de Afonso Celso; em 1904, Contos Ptrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto; em 1907, Histrias da Nossa Terra, de Jlia Lopes de Almeida. Estes livros, porm, eram destinados a escolares, crianas alfabetizadas uma parcela nfima da populao:

A dcada de vinte herdou, do decnio anterior, a bandeira de luta contra o analfabetismo. Os dados levantados pelo recenseamento de 1920, as discusses e os estudos resultantes da conferncia sobre o ensino primrio de 1921 e o constrangimento que dominou o ambiente espiritual em 1922, quando ao mesmo tempo que se procurava comemorar o primeiro centenrio da independncia, pesava sobre a Nao uma cota de 80% de analfabetos conforme os clculos da poca transformaram o analfabetismo na grande vergonha do sculo, no mximo ultraje de um povo que vive a querer entrar na rota da moderna civilizao .

Os entusiastas da educao presentes nas organizaes partidrias, nos grupos intelectuais, nas esferas do governo, sem falar nos colgios acreditavam que a escolarizao era o problema vital do pas. Solucionado o problema da educao, estariam resolvidos os problemas polticos, econmicos e sociais. O brasileiro alfabetizado poderia votar e, segundo a expectativa de vrias organizaes polticas, faria com que o pas deixasse de ser governado por oligarquias. O brasileiro educado poderia contribuir, como trabalhador qualificado, para a modernizao industrial. Por fim, os contrastes sociais desapareceriam, porque a escolarizao acabaria com a ignorncia popular, considerada responsvel pela pobreza de grande parte dos brasileiros. Os ideais republicanos e democrticos poderiam ser cumpridos; todos os homens, por terem passado pela escola, viveriam como iguais.

Acreditava-se que a escola primria seria capaz de regenerar o homem brasileiro, e por conseqncia, a prpria sociedade:

Aqui, o modelo pedaggico se transforma no instrumento da felicidade social; o pedaggico importa mais que o educacional, no sentido de que o aspecto doutrinrio sobreleva o aspecto meramente informativo, a comear pelo sentido que aquele fornece a este. De um modo geral, o modelo inclui, basicamente, novos modos de formulao do programa escolar e nova instrumentao para tornar mais eficaz o trabalho docente; e, tambm, diversificam-se as atividades escolares e introduzem-se novos rgos e novas prticas.

Mas a realidade social exigia ainda mais do modelo pedaggico, segundo os entusiastas da educao. Da necessidade da escola alfabetizante passa-se exigncia da escola primria integral, considerada a principal instituio formadora do carter nacional. To importante quanto a escola primria seria a escola tcnico-profissionalizante, porque transformaria o homem em elemento de produo, necessrio vida econmica do pas. Estabelece-se a relao entre a capacidade produtiva e a cultura tcnica comea a ser criticado o ensino livresco e abstrato, na forma de ensino acadmico, secundrio e superior .

O ensino livresco e abstrato, fornecido a Olavo Bilac, seus pais e avs, tambm formou Monteiro Lobato. No incio da dcada de 1910, o estudante de Direito Lobato criticaria, em um de seus primeiros artigos, a distncia que esse ensino criava entre os moos das classes mdia e alta e as atividades econmicas:

Somos um anacronismo vestido pelo derradeiro figurino. Na mentalidade: pouco mais de 1888; nos costumes: quase 1909. Continuamos a abarrotar academias; o ideal da classe mdia continua a ser o funcionalismo; a tal dignidade das classes baixas, to cmica, continua a subsistir.

Enquanto isso o estrangeiro toma todas as posies e assedia-nos economicamente. (...)

E ns os nacionais? Ns ficamos com a carrapatosa vaca do Estado e a legio dos doutores de 20 anos. E o pas orgulha-se disso: desse platonismo cientfico! Temos doutores em leis, doutores em comrcio, doutores em farmcias, doutores em dentaduras, doutores em engenharias, doutores em medicina. E academias sobre academias se fundam c e l, de Comrcio, de Letras, de Poucas Letras, de Nenhumas Letras, de Costura.

Em 1919, Lobato, ento famoso como criador do Jeca Tatu e escritor de Urups, entusiasma-se com as possibilidades do ensino tcnico, ao ler Em redor da Escola Profissional Masculina, de Aprnio Gonzaga, professor desse estabelecimento de ensino. Visita a escola e escreve sobre ela elogiosa resenha:

A sensao que aquilo d de entusiasmo e f no futuro. Aqueles meninos que batem o ferro, aplainam a madeira, modelam o barro, traam desenhos ornamentais meninos arrancados vadiagem das ruas so obreiros em germem da grande ptria futura. Vo eles breve constituir a melhor fora propulsora da nossa civilizao. (...) Nosso mal, concordam-no todos, o absoluto desaparelhamento tcnico. Existe a massa imensa dos Jecas em baixo e o bacharelismo por cima. No meio, essa classe operosa de mecnicos, marceneiros, decoradores, eletricistas, gravadores, etc., as formigas do progresso industrial faltam-nos por completo. Da a necessidade de import-las. Se em So Paulo a indstria pde alar-se ao nvel em que est, deve-o ao tcnico estrangeiro importado. Mas import-los no a soluo completa, e no soluo nacional. mister faz-los aqui, educando para isso as nossas crianas.

Mas a instituio que mantinha separados os bacharis e os jecas, a escola secundria, conservava os padres tradicionais de ensino e cultura, limitando os efeitos do otimismo pedaggico:

Quaisquer traos que as outras instituies escolares, de nvel primrio ou mdio, pudessem apresentar de novo, o julgamento dos resultados estava sempre limitado s possibilidades de articulao e acesso ao secundrio. Ora, o ensino secundrio manteve-se inalterado durante a dcada dos vinte; com isso, frustraram-se muitas conseqncias das novas orientaes.

A frustrao do projeto de que a educao patrocinasse a capacitao profissional e, com esta, a ascenso social dos educados deve-se ao fato de que o Estado ocupou-se, principalmente, em traar normas, mas no em implantar reformas, concretizar alteraes no que se denomina atualmente aparelho educacional. Isso quer dizer que

Se houve algumas alteraes na qualidade do ensino, a Unio no colaborou para que se ampliasse a rede escolar e aumentasse o contingente da populao com a possibilidade de participar dela. Para que se tenha melhor idia da situao, bastam os seguintes dados sobre o nmero de escolas da administrao federal, no ano de 1929: ensino superior geral (jurdico, mdico-cirrgico e farmacutico, politcnico, etc.): 10; ensino especializado superior (agronomia e veterinrio, artstico, etc): 20; ensino especializado elementar e mdio: (agrcola, industrial etc): 58; instruo secundria: 6; ensino pedaggico: - ; instruo primria: 318. Esses dados definem melhor a poltica abstencionista da Unio, que se limita a presenciar o que se passa, em vez de estimular o desenvolvimento do ensino no seu aspecto mais importante, que o da expanso da rede e da clientela escolar.

Se a poltica da Unio com relao escolarizao foi praticamente ausente, segundo Nagle, os Estados e o Distrito Federal tomaram medidas, reformando e remodelando seus sistemas escolares. Sem, porm, forar o Governo Federal no sentido de alterar os padres de ensino e cultura da escola secundria e superior, quando os Estados mais progressistas, do ponto de vista educacional, eram os mesmos que sustentavam a poltica dos governadores . As reformas estaduais, entretanto, influenciadas pela doutrina da Escola Nova, foram de grande importncia, porque reorganizaram o ensino primrio de acordo com uma nova concepo de infncia.

Sala de aula da Escola Caetano de Campos, colgio freqentado pelas crianas da elite paulistana.

A Influncia da Escola Nova

O primeiro estado brasileiro a promover uma reforma do ensino primrio foi So Paulo, por meio de Antonio de Sampaio Dria, diretor da Instruo Pblica, em 1920. Em 1924, Loureno filho remodela a escola elementar no Cear; Carneiro Leo, no Rio de Janeiro, e Lismaco da Costa, no Paran, tambm estabelecem reformulaes pedaggicas. Em 1925, Ansio Teixeira, Inspetor Geral da Instruo Pblica da Bahia, elabora os estatutos bsicos de ensino, que vigorariam por 32 anos. Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, e Francisco Campos, em Minas Gerais, tambm empreendem atividades reformadoras nos anos de 1927 a 1930.

Em 1924, fundada, por iniciativa de Heitor Lira, a Associao Brasileira de Educao A.B.E., que desempenharia a funo de institucionalizar a discusso dos problemas da escolarizao, em mbito nacional:

(...) em torno dela se reuniram as figuras mais expressivas, entre os educadores, polticos, intelectuais e jornalistas, e sua ao se desdobrou na programao de cursos, palestras, reunies, inquritos, semanas de educao e conferncias, especialmente as conferncias nacionais de educao. Ser por meio de tais iniciativas que a preocupao com os problemas educacionais se alastra e se sistematizam as discusses. Com isso, procurava realizar a sua divisa, proposta nos seguintes termos: Ao cabo de um sculo de independncia, sente-se que h apenas habitantes no Brasil. Transformar estes habitantes em povo o programa da Associao Brasileira de Educao .

Os lderes das reformas estaduais, assim como os tcnicos em educao, que comeavam a surgir ento, e que foram estimulados pela A .B.E., eram influenciados pelas teorias da Escola Nova, que j circulavam na Europa e na Amrica do Norte desde o final do sculo XIX. Estas teorias propunham uma reviso crtica da problemtica educacional, baseada em uma nova forma de entender a infncia:

Em confronto com a escola tradicional, em relao qual se colocou em termos antitticos, a Escola Nova se fundamenta em nova concepo sobre a infncia. Esta considerada contrariamente tradio como estado de finalidade intrnseca, de valor positivo, e no mais como condio transitria e inferior, negativa, de preparo para a vida do adulto. Com esse novo fundamento se erigir o edifcio escolanovista: a institucionalizao do respeito criana, sua atividade pessoal, aos seus interesses e necessidades, tais como se manifestam nos estgios de seu desenvolvimento natural. Parte-se da afirmao de que o fim da infncia se encontra na prpria infncia; com isso, a educao centraliza-se na criana e ser esta nova polarizao que ser chamada de revoluo copernicana no domnio educacional.

Uma outra revoluo copernicana estava acontecendo nesse perodo: a partir de 1920, com A menina do narizinho arrebitado, Monteiro Lobato comea a publicar a srie de histrias da turma do Stio do Picapau Amarelo histrias que traziam tantas inovaes literatura infantil brasileira que terminariam por conquistar para o autor o status de fundador do gnero no pas. Entre as inovaes, uma maneira de tratar e retratar a criana que se aproxima muito do que pretendia o Escolanovismo.

No livro Mundo da Lua, publicado em 1923, que rene fragmentos de um dirio que Lobato havia escrito nos primeiros anos do sculo, pode-se observar um ideal de educao bastante semelhante quele que os entusiastas da Escola Nova tentavam pr em prtica:

Recordando minha vida colegial vejo quo pouco os mestres contriburam para a formao do meu esprito. No entanto, a Julio Verne todo um mundo de coisas eu devo! E a Robinson? [Robinson Cruso, C. B.] Falaram-me imaginao, despertaram-me a curiosidade e o resto se fez por si.

(...)

A inteligncia s entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginao lhe serve de guia. A bagagem de Julio Verne, amontoada na memria, faz nascer o desejo do estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato s quando j existe material concreto na memria. Mas pegar de uma pobre criana e p-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermdio da imaginao, chega a ser criminoso. no entanto o que se faz!... A arte abrindo caminho cincia: quando compreendero os professores que o segredo de tudo est aqui?

Os professores, segundo doutrinas da Escola Nova, na viso que desta nova pedagogia fornece Jorge Nagle, deveriam exatamente estimular a imaginao da criana, numa irresistvel aproximao do depoimento anterior de Lobato:

O novo papel do educador ser o de simples agente fornecedor de meios para que a criana se desenvolva por si. Nada de constrang-la ou de tentar enquadr-la a partir de situaes antecipadamente programadas do ponto de vista do adulto. O que importa que a criana se desenvolva por meio da prpria experincia. preciso, portanto, que ela experimente. (...) A incluso do trabalho livre, da atividade ldica, dos trabalhos manuais, enfim, a adoo do princpio da educao pela ao e no mais pelo imobilismo so algumas das consequncias da nova concepo. (...) Reage-se contra o didatismo deformador, pois o que importa no aprender coisas, mas aprender a observar, a pesquisar, a pensar, enfim, aprender a aprender.

Assim, anos antes das novas teorias aparecerem com maior vigor no cenrio nacional, Monteiro Lobato exprimia uma idia de ensino que parece assemelhar-se ao que propunha o escolanovismo. Em 1927, ele teria a oportunidade de conhecer melhor estas teorias atravs da amizade de Ansio Teixeira. Ambos estavam nos Estados Unidos: Lobato como adido comercial e Teixeira como estudante do departamento de educao da Universidade de Colmbia. Tornaram-se amigos; quando o estudante voltou para o Brasil, Lobato escreveu uma carta apresentando-o para Fernando de Azevedo, outro lder do movimento da renovao educacional no Brasil, que na poca dirigia o ensino no Distrito Federal:

Fernando: ao receberes esta, pra. (...) Solta o pessoal da sala e d toda a ateno ao apresentado, pois ele o nosso grande Ansio Teixeira, a inteligncia mais brilhante e o maior corao que encontrei nestes ltimos anos de minha vida.

Monteiro Lobato e Ansio Teixeira trocariam cartas ao longo dos anos seguintes, em que comentam, entre outros assuntos, idias sobre educao, infncia e literatura. Em 1931, quando Lobato remodela e rene em um nico volume As Reinaes de Narizinho vrias histrias da turma do stio do Picapau Amarelo publicadas anteriormente, Teixeira elogia a nova verso:

Leio Reinaes de Narizinho com um prazer sem nome. Voc um Kipling feito medida do Brasil. Um pouquinho frouxo. O Brasil um pouco grande!... Mas como voc j cresceu de alguns dos seus outros livros de criana. Comea voc a sentir-se vontade, entre as crianas... E isso, voc sabe bem como grande.

No ano seguinte, a vez de Lobato manifestar sua admirao pelo trabalho do amigo:

Voc me deu um grande prazer hoje neste estpido e arrepiado domingo de chuvisco insistente. Imagine que ontem o Fernando deu-me aquele volume do manifesto ao povo e ao governo sobre a educao para que o lesse e sobre ele falasse num artigo. E essa intimao do Fernando arrancou-me faina petrolfera em que vivo mergulhado at as orelhas. Resolvi dedicar este domingo educao.

Comecei a ler o manifesto. Comecei a no entender, a no ver ali o que desejava ver. Larguei-o . Pus-me a pensar quem sabe est nalgum livro do Ansio o que no acho aqui e lembrei-me de um livro sobre a educao progressista que me mandaste e que se extraviou no caos que a minha mesa. Pus-me a procur-lo, achei-o. E c estou, Ansio, depois de lidas algumas pginas apenas, a procurar dar berros de entusiasmo por essa coisa maravilhosa que a tua inteligncia lapidada pelos Deweys e Kilpatricks.

Eureca! Eureca! Voc o lder, Ansio! Voc que h de moldar o plano educacional brasileiro! (...)

O entusiasmo que Lobato demonstra pelas teorias de Ansio esbarra, algumas linhas depois, naquele que vinha sendo obstculo para tantos outros entusiastas da educao: o Estado. Mas Lobato estava to confiante nos resultados de sua campanha petrolfera que imagina um centro educacional financiado por ele e com Ansio frente; uma escola modelo que no precisaria submeter-se programas de ensino ditados pelo governo ou por qualquer outra instituio:

Vou ler o teu livro como nunca li nenhum. Degustando, penetrando, deslumbrando-me em ver expressas nele idias que me vieram por gestao, intuitivamente. E depois te escreverei.

Meu petrleo est uma pura maravilha. A vitria est assegurada e, a no ser que me veja espoliado por leis do Juarez, nacionalizadoras do petrleo e que tais, que venham matar o surto da futura indstria e privar-me do que com ela eu possa vir a ganhar, terei meios de realizar vrias grandes coisas que me fervem na cabea. Uma delas diz com voc. E criar luxuosamente um aparelho educativo com voc testa, como nunca existiu no mundo. Um gnglio novo, librrimo, autonomssimo, fora de governo, de religio, de tudo quanto restringe e peia. Um gnglio que v se irradiando at fazer-se um formidvel organismo moldador de homens educador no mais elevado sentido. Com escolas especializadas, com jornais e revistas, com casa editora, com livrarias, com cinema, com estao de rdio prpria, com estao tele-emissora de imagens...

Qualquer coisa como a Radio City do Rockefeller, mas educativa. O governo que ensine ao povo o que quiser; a religio, idem. Ns, do alto da nossa Education-City, servida por todas as mquinas existentes e as que ho de vir, pairaremos sobre o pas qual uma nuvem de luz. Um corpo de crebros, dirigido por voc. Prepara: a mquina multiplicadora, dissemina. Iremos fazer com um pugilo de auxiliares o que o Estado essa besta do Apocalipse no faz com milhares e milhares de infeces chamadas escolas e de cgados chamados professores. A nossa educao cair como chuva de neve sobre o pas, sem saber e sem querer saber aonde os frocos iro pousar. (...)

Nessa transcrio, pode-se observar a adeso de Lobato ao projeto da Escola Nova que Ansio Teixeira chamava de Escola Progressista . Projeto que expressava a teorizao de idias que j tinham ocorrido ao escritor, por gestao, intuitivamente e que, talvez por isso mesmo, teriam conquistado seu apoio. Essa adeso nova concepo de ensino no era incondicional, entretanto; Lobato demonstra claramente seu repdio pelo modo como o Estado e os pedagogos avalizados por ele vinha conduzindo a reforma educacional pretendida pelo escolanovismo.

Enquanto o petrleo no rebentava, porm, a escola modelo sonhada por Lobato permanecia no papel. Papel que se transformaria, no final das contas, na mquina multiplicadora , disseminadora da librrima pedagogia de um aparelho educacional chamado Stio do Picapau Amarelo. O modo como Monteiro Lobato utilizou modernas idias pedaggicas em sua obra infantil analisado no ltimo captulo.

A nova concepo de infncia, importada de pases industrialmente mais desenvolvidos, como os Estados Unidos ou a Inglaterra, penetrou lenta e irregularmente pelo Brasil da Repblica Velha, que ainda se debatia em contradies provocadas pelas heranas do passado colonial, ainda recente, e pelas incertezas do futuro republicano, democrtico e liberal. A nova idia de criana apareceu primeiro em teorias de educao, como as da Escola Nova, em leis de proteo ao menor, em histrias como as de Monteiro Lobato ou seja, num Brasil de papel para depois, aos poucos, tomar lugar na cultura nacional. Ou, melhor dizendo, em alguns segmentos culturais brasileiros, nas classes sociais dirigentes.

Mas, talvez, os diversos grupos sociais de um pas, por mais contrastantes que sejam suas prticas culturais, no vivam segregados, como imaginou Lobato; pelo contrrio, parecem misturar-se e compartilhar idias das mais diferentes maneiras, sendo a literatura um poderoso plo de irradiao de novos conceitos:

Enquanto formadora de imagens, a literatura mergulha no imaginrio coletivo e simultaneamente o fecunda, construindo e desconstruindo perfis de crianas que parecem combinar bem com as imagens de infncia formuladas e postas em circulao a partir de outras esferas, sejam estas cientficas, polticas, econmicas ou artsticas. Em conjunto, artes e cincias vo favorecendo que a infncia seja o que dizem que ela ... e simultaneamente, vo se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos modos de ser da infncia.

Monteiro Lobato fez mergulhos no imaginrio coletivo e simultaneamente o fecundou; taquigrafou novas idias sobre infncia, que circulavam nas vrias esferas culturais de seu tempo como, por exemplo, as teorias da Escola Nova e as transps para sua obra literria. Da mesma forma, percebeu e registrou de modo bastante peculiar as idias sobre infncia que existiam naqueles segmentos sociais que constituam o Brasil arcaico : as comunidades caboclas, os grupos de camponeses caipiras do interior de So Paulo, a gente pobre da periferia que comeava a se formar na capital do estado.

Sondar o universo lobatiano tentar recuperar um pouco desses mergulhos do escritor no caldeiro de idias e mudanas que era o Brasil, e especialmente So Paulo, no comeo do sculo vinte. Para iniciar a anlise das noes e concepes sobre infncia que ele trouxe tona em suas obras, o melhor caminho parece ser aquele que leva at a redao d O Estado de S. Paulo, onde o escritor passa a trabalhar como colaborador com mais freqncia, a partir de 1917, quando se muda com a famlia para a capital do estado. entre os jornalistas do Estado e, posteriormente, entre os articulistas e escritores da Revista do Brasil, peridico da mesma empresa, que Monteiro Lobato lapida seu estilo, antes de publicar seu primeiro livro.

Monteiro Lobato na redao da Revista do Brasil, incio dos anos 20.

Captulo 2

As personagens infantis dos contos para adultos

de Monteiro Lobato

No se pode escrever sem pblico e sem mito sem um determinado pblico criado pelas circunstncias histricas, sem um determinado mito do que seja a literatura, que depende, em larga medida, das exigncias desse pblico.

Jean-Paul Sartre

O estudo da considerada Obra completa de Monteiro Lobato, organizada por ele para a editora Brasiliense, revela vrios textos literrios dirigidos a adultos que, por terem como tema ou por enfocarem de alguma maneira a infncia brasileira, incluem crianas como personagens e, muitas vezes, como protagonistas. Esta obra, porm, no to completa assim; h uma srie de contos que o autor no incluiu, ao organiz-la. Alguns destes contos so histrias que foram publicadas por peridicos como as revistas paulistas A Vida Moderna e A Cigarra e jornais como o santista A Tribuna e o paulistano O Pirralho :

nas pginas destas publicaes que Monteiro Lobato , instalado em So Paulo desde o final de 1917, com o capital da venda da Buquira rendendo juros no banco, exerce prazerosamente o ofcio de escritor-jornalista.

Capa da revista A Vida Moderna, n 205, de 22 de janeiro de 1914.

Os anos que antecedem a publicao de A Menina do Narizinho Arrebitado, em 1920, so particularmente importantes, j que foi depois do grande xito alcanado pelos contos escritos nesta poca que Lobato se voltou para a literatura infantil, gnero que o consagraria. Parece de todo interesse, portanto, verificar o papel dado criana em textos destinados ao pblico adulto escritos nesse perodo. Muitos contos que circularam nas publicaes mencionadas acima, porm, perderam-se no esquecimento provocado pela extino dos peridicos e gradual desaparecimento dos antigos exemplares.

Dentre os contos destas revistas que foram preservados, alguns poucos tm protagonistas infantis; o caso, por exemplo, de As seis decepes, publicado n A Vida Moderna em 1915, de onde se transcreve o excerto abaixo:

Puzeram-se a rumo da cidade os tres irmozinhos. Moravam longe, na chacara; mas uma meia hora de estrada barrenta, empoada dagua grossa, cor de cafe com leite, que ladeavam pela beirinha na ponta dos ps, e um tijuco meio molle, meio duro, empelotado pela pata dos bois, eram fracos empecilhos delcia semanal de ir cidade. A cidade vivia-lhes no esprito como alvo de todos os desejos e fim supremo de suas vidinhas trefegas. L moravam os parentes, a tia Salom, as Franas, os amigalhotes; era l a igreja, a quitanda, o circo de cavallinhos, a gente...

A leveza presente na descrio do caminho para a cidade e das delcias que l se encontram permeia toda a histria, que trata das divertidas brigas entre os irmos para decidir que passeio fazer: ir ao circo, visitar um prespio ou danar em um bailinho? O conto, que Lobato assinou com o pseudnimo de Hlio Bruma, possui elementos que sero encontrados com freqncia na literatura do autor o circo de cavalinhos como sinnimo de encanto infantil, o cenrio rural, a narrao pontilhada de registros que lembram a oralidade dos casos contados na roa.

O conto O Potinho, tambm publicado por A Vida Moderna, em 1916, j comea com uma frase que remete narrativa oral:

- Ouve c. (...) tempo de viver do passado, de recordar (...) E h de ser a histria do potinho. (...) Pois o potinho era um potinho de barro, da altura desse tinteiro, em tudo semelhante aos grandes, afora o tamanho. Fabricara-o algum oleiro da roa, um Z Pichorra, um Geca-paneleiro qualquer. Um dia o seu Geca o trouxe para a cidade acompanhado de um sortimento de panellas de barro. (...) Vinham juntos, elle, umas pichorrinhas, umas panellinhas, umas moringuinhas coisas de tentar as creanas.

Neste primeiro pargrafo podem ser encontrados nomes que, mais tarde, seriam atribudos a personagens que se tornariam famosas - Pedro Pichorra, do conto homnimo, da obra Cidades Mortas e Jeca Tatu . Este ltimo se tornaria popular a ponto de ser incorporado pelo Dicionrio Aurlio:

jeca-tatu. [De Jeca tatu, personagem de Monteiro Lobato, do conto Urups, da obra homnima.]. S.m.Bras. Nome e smbolo do caboclo do interior do Brasil. [Pl. jecas-tatus. F. red.: jeca (q. v.).]

Outro aspecto que tambm j se esboa neste conto de 1916, e que vai ser enfatizado em obras posteriores, a maneira como a imaginao infantil se apropria de objetos banais do cotidiano e os transforma em brinquedo. O narrador recorda como sua mulher, nos tempos de noivado, impedia que a irm, de quatro anos, falasse impropriedades na frente do parceiro distraindo-a com o senhor potinho:

Luizita no demorava, apparecia tambm, trazendo na mo um potinho, o potinho...Nada me encantou mais na vida de noivo que este episdio repetido a miudo. Ver o potinho na mo da menina era saber que havia coisas... coisas irrevelveis... Luizita, porm, breve se enjoava do potinho e o punha para um canto esquecida delle e da coisa que tinha para contar. (...) Esse potinho, onde andar elle?

A infncia vista nesses contos com lentes que focalizam detalhes delicados, divertidos, ternos.

Essas lentes talvez combinassem bem com aquelas do atelier photographico da revista A Vida Moderna, que tinha como subttulo Illustrao Paulista e que se definia da seguinte forma em anncios:

A Vida Moderna, fornece aos seus leitores uma copiosa reportagem photographica, em que se resumem, em frma de instantaneos, os principaes acontecimentos da semana. Ella se recomenda egualmente pela excellencia do seu texto literario, pela collaborao escolhida, pela graa das suas anedoctas e pelo ineditismo das suas notas humoristicas.

elegante e mundana.

V-se, pois, que ao menos nos anncios, as notas humorsticas e os contos literrios tinham pesos semelhantes para os editores d A Vida Moderna. importante observar ainda a linha editorial dessa publicao, para se ter uma noo do tipo de texto literrio admitido em suas pginas. A princpio, uma revista que se pretendia elegante e mundana no poderia publicar contos em que a infncia se mostrasse de maneira dramtica, triste ou, no caso, deselegante.

Ao se analisarem os objetivos da revista, pode-se, por hiptese, tentar uma aproximao do tipo de pblico para o qual ela se dirigia.

Retomando a epgrafe deste texto, preciso como ensina Sartre tentar conhecer um pouco o determinado pblico para o qual Monteiro Lobato dirigiu suas obras para melhor compreend-las. Um meio de se aproximar deste pblico investigando o modo como revistas e jornais da poca o enxergavam, e a partir do que montavam as publicaes. Ao escolher os assuntos a serem impressos, o espao que teriam e at a maneira como seriam abordados, os editores podem ter tido como norte as preferncias do leitor, ou o que entendiam por elas. Afinal, dificilmente uma publicao sobrevive sem a aprovao dos leitores.

A produo de Monteiro Lobato parece ter sofrido adaptaes, em vrios peridicos, para no destoar de linhas editoriais. Em vrias cartas dirigidas ao amigo Godofredo Rangel, ele reclama dos cortes feitos em seus contos por algumas publicaes:

O Estado cauteloso. Poda-me os pedaos mais atrevidos e portanto melhores. Baixa o tom das minhas violncias. Em compensao, vingo-me nO Queixoso, revista quinzenal de pau no lombo. L no me cortam coisa nenhuma. (...) Uma curiosa empresa, o Estado. Emite galhos, ou rizomas, como certas gramneas. Depois corta-os e deixa que os galhos vivam sozinhos. A Revista do Brasil um galho do Estado que acabar autnomo. Talvez acontea o mesmo com o Estadinho, o galho travesso e autnomo do Estado. E o mesmo com O Queixoso, a revista onde agora me expando.

Uma mesma empresa, O Estado de S. Paulo, possua publicaes que eram editadas de modos diferentes. A cautela dos editores do jornal Estado e a autonomia dos editores do Estadinho talvez pudessem coexistir em funo dos diferentes pblicos a que se dirigiam. Os textos poderiam ser reorganizados em funo dos leitores que se pensava ou desejava alcanar. Mas, quanto desta prtica editorial teria contagiado o escritor Lobato, j que os leitores parecem ter sido levados em alta conta por ele, durante o processo de produo de seus textos, como se pode inferir por alguns comentrios seus?

Proponho-te escrevermos com mais assiduidade no Minarete. Coisas leves, com dilogos o dilogo areja. Coisas que interessem aos leitores, coitados, sempre tontos com isto de escrevermos s para ns mesmos, sem a mnima considerao para com eles, os sustentadores do jornal.

(Carta a Godofredo Rangel, de 15/07/1905 )

Segue o meu conto n 1. Est pronto, s faltando a brunidura final. Quero que dele digas com a mais absoluta iseno. Meu fito principal criar uma impresso fortssima no esprito do leitor coisa de que ele no se esquea nunca. Te-lo-ia conseguido?

(Carta a Godofredo Rangel, de 20/05/1909 )

J compreendi o nosso pblico. Para interess-lo, preciso vir com bombas na mo e explodi-las nas ventas de algum, ou meter a riso qualquer coisa, farpear um grande paredro da poltica (...) ou ento falar do caboclo. Em havendo caboclo em cena, o pblico lambe-se todo.

(Carta a Godofredo Rangel, de 07/02/1916 )

Lobato, portanto, parece ter bastante conscincia do determinado pblico criado pelas circunstncias histricas, de que fala Sartre, sem o qual no se pode escrever, tornando-se o leitor, por conseqncia, parcela importante na fatura de sua produo ficcional. To importante era sua imagem de pblico que parece nortear sua idia sobre qual deve ser o objetivo de um escritor, como se pode observar no trecho abaixo, extrado de uma crtica feita ao livro Os Condenados, de Oswald de Andrade:

Se o objetivo de um escritor transmitir idias e sensaes, essa transmisso ser tanto mais perfeita quanto mais respeitar a psicologia mdia dos leitores. Quando, ao invs disso, arrastado por preocupaes de escola, vai contra ela, na v tentativa de inovar, em vez de causar a impresso visada causa uma impresso defeituosa, incompleta, empastelada, muito diferente da que pretendeu. Tenha isto em vista o jovem romancista, faa experincias in anima nobile, abandone teorias, escolas, corrilhos [sic], ache seu trilho e sua obra corresponder na aceitao pblica ao muito que se espera do seu magnfico talento.

Assim, parece que aquilo que Sartre denomina mito de literatura, no caso de Lobato inclua o pblico leitor, seus interesses, sua psicologia mdia o que pe Lobato tanto em sintonia com o mito de literatura de um Sartre engajado no ps-guerra europeu como com alguns pressupostos de teorias da Esttica da Recepo, que a partir dos anos 60 deste sculo estuda a participao do leitor no processo de produo literria .

, inclusive, esta preocupao com o pblico que diminui o valor da literatura de Monteiro Lobato para um crtico do perfil de Silviano Santiago,:

Rebaixado o valor literrio do prprio conto, interessa mais a Lobato o provvel consumidor do produto. Interessa-lhe uma outra circunstncia exterior e imprevisvel o dilogo do livro com o leitor.

Livros existem para ser lidos, eis a pequena grande descoberta de Lobato num pas de analfabetos.

A circunstncia que Santiago responsabiliza pelo que considera rebaixamento do valor literrio ocupa, no entanto, papel hegemnico na produo literria lobatiana e viabiliza o recorte terico metodolgico desta pesquisa. O dilogo com o leitor parece ter funcionado como uma bssola para Lobato: apontou horizontes novos para a literatura infantil brasileira, que ele renovou, e tambm educou seus leitores, como indica recente pesquisa de Jos Roberto Whitaker Penteado, sem jamais cercear o caminho. Sartre, no livro de que se extraiu a epgrafe deste captulo, tambm afirma: o mau romance aquele que visa a agradar, adulando, enquanto o bom uma exigncia e um ato de f.

Divergindo de Silviano Santiago, a maneira como Lobato atendeu s expectativas de seu pblico nos livros de contos para adultos para Wilson Martins marco na histria da fico brasileira:

So de sua pena os primeiros documentos contra o passadismo. Palavra por palavra, o famoso artigo Urups (1915) poderia ter sido, deveria ter sido, o primeiro manifesto modernista (...) Criando, nesse artigo, a figura do Jeca tatu, Monteiro Lobato lanava o primeiro tipo de heri literrio, contraposto a Peri, na literatura moderna (...)

O debate sobre o valor esttico da obra lobatiana para adultos antigo e parece estar longe de se esgotar; o que denota, no limite, a fora da produo literria de Lobato, como props Cassiano Nunes em 1982:

O que foi esboado com brilho em Velha Praga retomado com genial mestria num novo artigo Urups (...) O tipo foi ento fixado de maneira definitiva e comeou logo a sua carreira sensacional, triunfal, que afinal ficou at hoje mpar em nossa histria literria. Esses dois trabalhos, de estilo modelar, mereceram os mais altos elogios e os mais acerbos ataques. Ainda hoje formam um convite reflexo, ao debate, e talvez at polmica, sobretudo no seu aspecto estritamente literrio. Tudo isso prova que o dedo foi posto na ferida, como ningum antes o fizera. Prova ainda mais: que a fora demirgica do escritor perenizou a sua criatura.

Assim, se as necessidades do pblico podem ter sinalizado em parte o modo como Lobato arquitetou sua obra, no parecem ter diminudo seu grande valor literrio. As opes que o escritor faz durante o processo de produo artstica, tendo em vista o leitor, no resultam necessariamente em perda de liberdade de criao ou empobrecimento esttico. No caso da prosa lobatiana, parece ser possvel afirmar ao menos como hiptese que resultou antes em engrandecimento, e no em rebaixamento literrio.

A anlise desta prosa, por isso mesmo, no pode deixar de levar em conta a preocupao do autor com seus leitores. O estudo deste aspecto da obra de Lobato ser realizado sob o prisma de uma das vertentes da Esttica da Recepo, para a qual

... irrelevante se a literatura, mesmo a mais programaticamente realista, reproduziu fielmente o universo circundante, perspectiva que, no fundo, tem razes platnicas. Importa antes recuperar o modo como a realidade foi transferida para a fico, pois a explicitao deste processo permite definir a resposta do artista s necessidades e solicitaes de seu pblico. E, como, ao retomar aquelas expectativas e nvel de experincia, ele pode se sujeitar a elas, alter-las, projetar novos comportamentos, o confronto tambm o posiciona na poca, esclarecendo suas opes, da mais submissa mais revolucionria.

Para verificar como Monteiro Lobato se posicionou com relao ao seu pblico, e analisar as opes feitas por ele para atingir o que pensava ser o objetivo do escritor exprimir idias e sensaes, portanto, necessrio conhecer as propostas editoriais e a viso sobre os leitores assumidas por algumas das publicaes para as quais ele produziu textos literrios. A Vida Moderna, como foi visto, pretendia transferir a realidade para seu pblico de forma elegante e mundana. Forma com a qual Lobato no se identificava:

Na Vida Moderna um Saul Maia faz filosofia para moas. O Oswald de Andrade d uns palminhos de futurismo e o Guilherme e o Incio Ferreira criam uma lngua mista de portugus e francs muito engraada. Aquelas coisas lisas de cimento, por onde andvamos e pensvamos que eram caladas so trotoirs. Aquelas pequenas do Belenzinho que passam rumo s fbricas, com a garrafa de caf com leite pendurada no dedo, so agora, midinettes. E na primeira coluna oficiam sentenciosamente, em itlico, um Bergsostrom e o Julio Cesar da Silva, inevitveis futuros acadmicos. (...) Sinto-me muito s entre tanta gente diversa de mim.

O tom irnico com que Lobato alfineta seus colegas da revista e critica o modo como os acontecimentos so relatados em suas pginas sugere que as respostas que ele gostaria de dar ao seu pblico eram bem outras. O homem que pensava que

O caipira estilizado das palhaadas teatrais fez que o Brasil nunca pusesse tento nos milhes de pobres criaturas humanas residuais e sub-raciais que abarrotam o interior (...)

...no poderia mesmo se conformar com a estilizao das operrias em midinettes.

A chance de expressar suas idias sem a poda de editores, porm, veio com a Revista do Brasil, que acabaria tornando-se galho autnomo do Estado por intermdio do prprio Lobato, que veio a compr-la. O peridico, cuja proposta editorial de cunho nacionalista cativara-o desde o primeiro instante , iria abrigar o melhor de sua produo aquela que, posteriormente, ele selecionaria para suas Obras Completas.

Por esta razo, descarta-se, neste trabalho, a hiptese de recorrer aos textos escritos para outros peridicos e no includos nas referidas Obras Completas.

A Revista do Brasil

Capa da Revista do Brasil, n 3, de maro de 1916, que apresenta

o conto A Vingana da Peroba, de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato aparece como colaborador da Revista do Brasil j no terceiro nmero, com o conto A Vingana da Peroba, que depois seria includo no livro Urups. A proposta editorial da revista, que o cativara, era expressa da seguinte maneira no editorial do nmero de estria:

O que ha por traz do titulo desta Revista e dos nomes que a patrocinam uma coisa simples e immensa: o desejo, a deliberao, a vontade firme de constituir um ncleo de propaganda nacionalista. (...) O seu nacionalismo no um grito de guerra contra o estrangeiro: um toque de reunir em torno da mesma bandeira, conclamando, para um pacto de amor e de gloria, os filhos da mesma terra nascidos sob a claridade do mesmo co. (...)

S a escripta e a palavra podem, neste momento, estabelecer entre as populaes que as vastides do territorio e as dificuldades de communicaes trazem afastadas e ignoradas umas das outras, a mesma corrente de idas e de sentimentos que desgraadamente ainda se no estabeleceu entre ns e sem a qual uma nao nunca chega a formar-se ou, quando de forma, nunca adquire este esprito de solidariedade, essa coheso perfeita que lhe d aos olhos alheios a apparencia de um bloco macisso e aos seus proprios a impressao de um poder invencivel.

A corrente de idias sobre o pas que a revista se propunha estabelecer, porm, j teria sua fragilidade criticada por Lobato pouco tempo depois:

A Revista est se afastando do seu programa. Neste nmero s falamos de coisas nossas, o Medeiros e eu. Tudo mais coisa forasteira. Anda a nossa gente to viciada em s dar ateno s coisas exticas que mesmo uma revista do Brasil vira logo revista de Paris ou da China. Nascida para espelho de coisas desta terra, insensivelmente vai refletindo s coisas l de fora.

Outro aspecto do "mito de literatura" lobatiano consiste nos assuntos que tratou em sua obra, em sua maioria referentes a aspectos sociais do Brasil de sua poca. Aspectos que forneciam combustvel suficiente para realizar o que ele havia intudo ser necessrio para interessar o pblico: vir com bombas na mo e explodi-las nas ventas de algum, ou meter a riso qualquer coisa, farpear um grande paredro da poltica. Ou ento, falar do caboclo. Mas as idias que ele tinha sobre o caboclo eram bem diferentes, por exemplo, das de Cornlio Pires, que vinha fazendo apresentaes humorsticas sobre o assunto no final da dcada de 1920:

O caboclo do Cornlio uma bonita estilizao sentimental, potica, ultra-romntica, fulgurante de piadas e rendosa. O Cornlio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibies do seu caboclo. D caboclo em conferncias a 5 mil ris a cadeira e o pblico mija de tanto rir. (...) Ora, o meu Urups veio estragar o caboclo do Cornlio estragar o caboclismo.

Lobato simpatizara com a Revista do Brasil porque esta tratava das coisas desta terra ou seja, encontrara um veculo onde exprimir idias que eram de seu interesse. Percebera no pblico idntico interesse por coisas brasileiras, como histrias sobre o caboclo e crticas poltica nacional mas no concordava com o modo estilizado de outro escritor, Cornlio Pires, de transmitir impresses sobre esses assuntos. Queria dar respostas s expectativas dos leitores de forma a alterar seus horizontes de expectativas. Projeto, poltico no limite, que no podia ser feito em publicaes como A Vida Moderna, que, em funo de sua elegncia e mundanismo, retrataria de forma estilizada as operrias de So Paulo.

A proposta editorial da Revista do Brasil, assim, dava espao para que Lobato exercitasse seu objetivo de escritor, que era transmitir idias e sensaes sobre os milhes de pobres criaturas humanas residuais e sub-raciais que abarrotam o interior. E permitia que ele inclusse nessas idias boas doses de crtica social e poltica o que tambm, segundo acreditava ele, agradava seu pblico. As maneiras que escolheu para representar a realidade dos caboclos e caipiras em sua fico articula-se, desta maneira, com as impresses que procurou suscitar nos leitores ao construir suas personagens.

A identidade entre Monteiro Lobato e a Revista do Brasil estreita-se mais ainda em junho de 1918, quando ele compra a revista:

Nesse mesmo ms, atravs de texto do seu presidente, Ricardo Severo, a Revista do Brasil informa aos leitores sobre a transferncia: Monteiro Lobato ser um continuador leal, com f e entusiasmo, tomando o encargo com a obstinao quixotesca de prosseguir um ideal, assim como ns outros.

O que talvez Severo no soubesse que, alguns anos antes, em 1915, Lobato confessara ao amigo Rangel:

No tenho voltado ao Estado porque me enfada aquele tom casacal. At dos jornaisinhos amigos fugi, porque no me suportam o tom. Est me ganhando um azedume que s ter exgotos em jornal prprio. Acabo montando um, ou uma revista na qual s eu mande e desmande.

Talvez, ento, no seja por acaso que os textos produzidos para a Revista do Brasil , e no os de outros peridicos, como A Vida Moderna, tenham sido posteriormente selecionados para integrar seus livros de contos e, mais tarde, suas Obras Completas.

esta fidelidade de Lobato a eles que os elege como corpus do qual foram selecionados os contos analisados nesta dissertao. No somente por terem permanecido em circulao, enquanto os outros foram esquecidos com a extino das publicaes que os abrigaram; mas, fundamentalmente, por refletirem coisas da terra como o autor as entendia, sem a interferncia de podes de editores ou de linhas editoriais diversas aos seus interesses.

Portanto, so estudados nesta dissertao os contos para adultos que Monteiro Lobato publicou nos livros Urups (1918) , Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920) . Como foi antecipado na introduo, dentre estes contos foram escolhidos seis que apresentam personagens infantis protagonistas ou de importncia fundamental no enredo, o que permite que se possa fazer um estudo comparando-as com Pedrinho e Narizinho, as principais personagens infantis da obra de Lobato para crianas.

Os contos desses livros para adultos que apresentam personagens infantis em papel mais relevante so A vingana da Peroba, Buclica (Urups), Pedro Pichorra (Cidades Mortas), Negrinha, O Fisco e Duas cavalgaduras (Negrinha). Apenas o conto Negrinha no foi publicado pela primeira vez na Revista do Brasil. O textos que serviram de base s anlises so aqueles que integram as Obras Completas do autor .

As categorias para anlise das personagens

As personagens dos contos A vingana da peroba e Buclica, de Urups; Pedro Pichorra, de Cidades Mortas; e Negrinha, Duas Cavalgaduras e O Fisco, de Negrinha, so construdas com abundncia de traos identitrios, o que as torna, por hiptese, ideais para a comparao com Pedrinho e Narizinho: o autor informa suas idades, suas condies familiares, sociais e econmicas, o lugar em que vivem e o modo como so criadas. Essas caractersticas so tambm sugestivas por possibilitarem identificar os grupos sociais aos quais pertencem.

Ainda nesses contos so excepcionalmente importantes as passagens nas quais se materializam atividades sociais que envolvem adultos e crianas. Tais passagens dos contos podem auxiliar em uma cartografia cultural, cujo traado aponte a natureza dos valores culturais das personagens e de seu grupo e a importncia deles na formao do horizonte intelectual de seus portadores. Esse mapeamento da cultura em que as personagens esto imersas mostra-se fundamental para compreender suas aes, como se ver a seguir.

O estudo das atividades sociais das personagens de Monteiro Lobato pode, por hiptese, iluminar aspectos relativos aos valores, motivaes, sentimentos e conceitos intelectuais das personagens que, interagindo no papel, representam interaes possveis na vida real. A anlise dos significados sociais destas atividades e comportamentos pode revelar as idias que Lobato pretendeu transmitir ao incorpor-los em suas criaes ficcionais.

Antes de investigar os traos culturais das personagens, porm, preciso analisar o lugar em que ocorrem suas atividades.

O espao da ao

Ilustrao de Monteiro Lobato para o conto Buclica,

extrada da 1 edio de Urups.

O conto Buclica, do livro Urups, inicia com observaes do narrador, que passeia pelo campo, sobre a beleza da natureza orvalhada, dos pssaros e das flores que encontra pelo caminho. Conforme a leitura avana, ele vai passando do mato para os terrenos dos sitiantes da vizinhana, e os elogios sabedoria da natureza vo transformando-se em crtica ignorncia dos homens que utilizam mal os recursos naturais. Um caboclo corta uma paineira, porque mais fcil derrub-la do que colher a paina com varas, o que horroriza o narrador:

Fujo dali com este horrvel som a azoinar-me a cabea. Aquela maleita ambulante dona da rvore. O Urunduva [nome da personagem lenhadora c.b.] est classificado no gnero homo. Goza de direitos. rei da criao e dizem que feito imagem e semelhana de Deus.

A comparao do homem, rei da criao, com uma doena que ataca e fere o equilbrio natural prossegue medida que o narrador vai adentrando mais terrenos, e lamentando a terra calcinada, os restos de queimadas feitas por caboclos para plantar suas roas. A analogia caboclo/doena j havia surgido em Velha Praga, artigo que o fazendeiro Lobato escreveu para a seo de reclamaes do jornal O Estado de S. Paulo em 1914 e que admitira ser a verdadeira me dos Urups. Nesse artigo, que viria a integrar o livro Urups, ele fazia sua profisso de f, justificando-se dos caminhos seguidos na composio dos contos .

Este funesto parasita da terra o CABOCLO, espcie de homem baldio, semi-nmade, inadaptvel civilizao mas que vive beira dela, na penumbra das zonas fronteirias. medida que o progresso vem chegando com a via frrea, o italiano, o arado, a valorizao da propriedade, vai ele refugindo em silncio, com o seu cachorro, o seu pilo, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteirio, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para no adaptar-se.

Assim o escritor via o caboclo; essa era a contrapartida que ele queria apresentar para a figura estilizada que Cornlio Pires vinha apresentando ao pblico paulistano no final da dcada de 1920. Nos contos estudados nesta pesquisa, essa imagem do caboclo revestida dos diversos antropnimos, que identificando o Jeca, se identificam a partir de seus pertences: o Jeca ora chama-se Urunduva (Buclica), ora Nunes (A vingana da Peroba), ora Chico Vira (Pedro Pichorra); para reconhec-lo, basta olhar para seus pertences: a picapau, o cachorro, o isqueiro, bem como para o cenrio que cria em torno de si.

O cenrio de Buclica, assim como o de P