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  • Universidade de So Paulo Instituto de Psicologia

    MARIA BEATRIZ VIDIGAL BARBOSA DE ALMEIDA

    Paternidade e subjetividade masculina em transformao: crise, crescimento e individuao.

    Uma abordagem junguiana.

    So Paulo 2007

  • MARIA BEATRIZ VIDIGAL BARBOSA DE ALMEIDA

    Paternidade e subjetividade masculina em transformao: crise, crescimento e individuao.

    Uma abordagem junguiana.

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano Orientadora: Prof Dr Laura Villares de Freitas

    So Paulo

    2007

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Almeida, Maria Beatriz Vidigal Barbosa de.

    Paternidade e subjetividade masculina em transformao: crise, crescimento e individuao. Uma abordagem junguiana / Maria Beatriz Vidigal Barbosa de Almeida; orientadora Laura Villares de Freitas. -- So Paulo, 2007.

    269 p. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Paternidade 2. Individuao (Psicologia) 3. Alteridade 4.

    Fatores psicossociais 5. Psicologia junguiana 6. Entrevistas I. Ttulo.

    HQ756

  • FOLHA DE APROVAO Maria Beatriz Vidigal Barbosa de Almeida Paternidade e subjetividade masculina em transformao: crise, crescimento e individuao. Uma abordagem junguiana.

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano Orientadora: Prof Dr Laura Villares de Freitas

    Aprovado em: __ / __ / ____

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. _____________________________________________________

    Instituio:_______________Assinatura_________________________

    Prof. _____________________________________________________

    Instituio:_______________Assinatura_________________________

    Prof. _____________________________________________________

    Instituio:_______________Assinatura_________________________

  • minha me, com quem aprendi a amar.

    Ao meu pai, com quem aprendi a pensar.

    Ao Heitor, com quem meu amor e meu

    pensamento se exercitam interligados.

    Ao Tiago e Marina, com quem descobri

    as maiores alegrias.

  • AGRADECIMENTOS Dentre os vrios frutos que se colhe ao final de uma longa jornada, acho que

    um dos mais saborosos o sentimento de gratido. Ter a quem agradecer

    reconhecer a generosidade das pessoas que participam da nossa vida, e ao mesmo

    tempo admitir que no se faz nada efetivamente sozinho (ou nada que valha a

    pena). Estamos sempre tecendo com os outros, ou com o que os outros nos

    forneceram, mesmo quando eles no esto mais aqui.

    Isso me faz pensar no meu av Joaquim e na minha av Maria, os mais

    afetuosos representantes dos idosos, que acreditaram em mim quando eu ainda era

    pequena. Esto comigo nessa realizao, como em muitas outras, e a eles agradeo

    pela semente que plantaram.

    Voltando ao presente, se as dissertaes e teses so, como se costuma

    dizer, um trabalho solitrio (pelo menos a autoria de um s), no se pode esquecer

    quanta gente h nos bastidores.

    Sou muito grata, em primeiro lugar, aos doze homens que se dispuseram a

    confiar em mim, sem me conhecer. Como representantes que so dos homens da

    nossa cultura, ao me deixarem conhecer um pouco de suas histrias de vida e de

    como as elaboram, permitiram-me fazer esse trabalho de reflexo. A cada um deles

    o meu mais sincero muito obrigada. Teria que escrever muitas teses para tentar dar

    conta da riqueza de informaes que me ofereceram. Humildemente aproveito aqui

    alguns dados.

    Cabe aqui tambm agradecer aos meus pacientes, embora no tenham

    participao direta nesse trabalho, mas por fazerem parte da motivao inicial para

    esta pesquisa e, acima de tudo, porque devo a eles grande parte do que sei sobre o

    ser humano.

    Pensando na equipe de produo, muita gente participou, pontual ou

    longamente, da confeco desse trabalho. Acompanhando todo o percurso,

    agradeo a presena firme da Laura Villares de Freitas, orientadora e amiga, que

    soube temperar carinho com pacincia, competncia com no-diretividade,

    sabedoria com alteridade, ajudando-me a descobrir o prprio caminho, mas

  • deixando inteiramente na minha mo a difcil mescla entre disciplina e criatividade.

    Agradeo tambm a confiana.

    Aos professores Alberto Lima e Leny Sato, agradeo a leitura cuidadosa, as

    crticas e as sugestes importantes feitas no exame de qualificao, que sustentam

    boa parte das melhorias que pude realizar.

    Irany, que participou comigo da coleta de dados na situao em grupo,

    auxiliando-me no registro e compartilhando impresses sobre a dinmica grupal,

    agradeo a colaborao amiga e generosa.

    Agradeo s profissionais Ceclia Breim, Carmela Romano e Valria Pantuffi,

    pelo apoio concreto ao projeto de pesquisa, empenhando-se em indicar pessoas

    para participarem como sujeitos. A elas se juntaram as amigas Cris Cruz e Mirian

    Taubkin, gentilmente.

    Agradeo aos mais jovens colaboradores da equipe que, em parceria com

    seus pais e mes, me emprestaram suas mos, ps e barriga para ilustrar, com

    fotos, o trabalho to cheio de letras, trazendo um toque de graa e leveza:

    Guilherme e seu pai, Antonio; Misty e Gustavo com a esperada Aurora; Alexandre e

    os gmeos Pedro e Rodrigo.

    Ao bloco que se formou em torno das interminveis transcries das fitas

    um verdadeiro mutiro entre profissionais, amigos e familiares, todos cmplices,

    meus sinceros agradecimentos pelas horas de sono roubadas: Cris, Rasc, Celina,

    Vera Sonia, Siomara, e tambm Marina, Tiago e mais Heitor nas revises.

    Aos amigos e colegas do LEP Laboratrio de Estudos da Personalidade

    pela relao fraterna que estabelecemos, com a ajuda da coordenadora Laura,

    tambm orientadora de todos ns. Em nossas valiosas trocas ao longo do ano

    compartilhamos nossos projetos e somos crticos e colaboradores uns dos outros,

    num clima solidrio e acolhedor que deixa um gosto de quero mais. A cada um de

    vocs, Andr, Guilherme, Santina, Rinaldo, Elenice, Iara, Gustavo, Mrcia e Sandra,

    e mais a sempre disponvel Tnia, meu carinhoso agradecimento. Elenice, alm de

    tudo, colaborou tambm na traduo.

    Aos colegas do consultrio, novos e velhos amigos, pela convivncia

    cotidiana, diversificando na forma de se fazerem presentes, agradaram-me com

    suas perguntas interessadas, com a disposio de ler as produes incompletas,

    com as dicas de leituras, com a torcida e o apoio quando eu desanimava, enfim,

    uma espcie de manos: Yanina, Paulo, Ana Paula, Denise, Claudia e Rita.

  • A participao da famlia chega a ser difcil de descrever: o incansvel Duda,

    presente em tudo o que se refere informtica, irmo e amigo muito solidrio, pronto

    para qualquer madrugada; a Bel, mana com quem mais brinquei, paciente e precisa

    na reviso do texto e no cuidado com os detalhes; tambm na reviso e traduo, o

    grande Andr, sobrinho sempre solidrio nessas horas; a Cleisa, pela

    disponibilidade de sempre, e pelo emprstimo do computador nas horas de aperto.

    Ao restante dessa imensa famlia, pelo carinho e pela torcida.

    Em casa, Marina, Tiago e Heitor fizeram de tudo para me ajudar:

    transcries, supermercados e feiras, massagens, fotos, lanchinhos. Mas o maior

    mrito dos trs foi terem me agentado carinhosamente por tanto tempo nessa

    estranha condio de presena-ausente, quando a gente permanece em casa,

    mas absolutamente indisponvel para os outros, absorta num trabalho que parece

    ser eterno. Eterna, sim, a minha gratido por essas pessoas to queridas.

    Um agradecimento especial Marlcia, a quem confiei a minha casa, e que

    cuidou bem de mim e da minha famlia por todo esse tempo, permitindo-me

    desocupar inteiramente desse lado concreto e me dedicar ao trabalho.

    Ao Heitor, grata mais uma vez pela sua pacincia absoluta com o meu

    processo e instabilidades.

    Pai e me, no h como retribuir o que me deram ao longo da vida. Tudo

    converge para o aqui e agora. Hoje sou grata aos meus pais, acima de tudo, por

    existirem e serem quem so! Nenhum presente melhor que esse poderiam me dar.

    A lista pareceria no terminar nunca se eu fosse citar todos os que em algum

    momento participaram com algum estmulo, sugerindo leitura ou emprestando livro,

    ajudando na traduo, apoiando em congresso ou lendo meus rascunhos. Apenas

    alguns nomes: Eliana Magalhes, Silvana Parisi, Durval Faria, Paula Magalhes,

    Iara Feder e Vera Rita minha amiga mais antiga.

    Ainda na retaguarda, no posso deixar de citar a Vanda Di Iorio, com quem

    estudei e fiz superviso por seis anos, sempre muito generosa, pelo seu grande

    estmulo que foi decisivo, tendo tomado forma de empurro inicial. E a Clia

    Brando, que soube me acolher e me compreender, nos meus melhores e piores

    momentos, com firmeza, afeto e competncia.

    Agradeo, ainda, a compreenso e o afeto das pessoas queridas amigos e

    familiares que literalmente abandonei por um perodo bem maior do que eu

    pretendia. A eles devo (de corao) todas as visitas que desejei fazer e no fiz, os

  • telefonemas de Parabns nos aniversrios que esqueci... Sinto-me, enfim, feliz por

    ter feito o que fiz, e feliz por estar de volta a um mundo com mais gente e menos

    computador.

    Resta ainda um agradecimento que pode soar mais impessoal, mas no

    menor: agradeo PUC Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    responsvel por grande parte da minha formao profissional e cenrio de tantas e

    intensas vivncias desde a adolescncia, como aluna e depois como professora, e

    USP Universidade de So Paulo presena mais recente na minha vida,

    conquistada com orgulho, por ter me propiciado o conhecimento atravs de timos

    professores, alm dos amigos que levo para sempre.

  • ALMEIDA, M. B. V. B. de. Paternidade e subjetividade masculina em transformao: crise, crescimento e individuao. Uma abordagem Junguiana. 2007, 263f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007. RESUMO O objetivo desta pesquisa , a partir do referencial junguiano, ampliar a compreenso de como est se dando a experincia de paternidade atualmente, com foco na subjetividade masculina: qual o impacto que a experincia de se tornar pai vem causando no processo de desenvolvimento do homem seu processo de individuao. Em busca de maior compreenso do significado atual da paternidade para os prprios homens na condio de pais, procura-se observar como o arqutipo paterno est se constelando na sociedade atual, de acordo com os novos modos de sentir e de se comportar, tendo em vista uma atitude mais favorvel alteridade e s relaes democrticas. A partir de uma contextualizao histrico-social, reconstitui-se um cenrio marcado pelas reformulaes nas concepes de masculino e feminino que vm ocorrendo nas ltimas dcadas, e que interferem coletivamente nas identidades de gnero, portanto na subjetividade masculina, com desdobramentos nas expectativas que recaem sobre a figura do pai. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como principal instrumento a entrevista individual, com base em um roteiro de temas e questes abordados de forma semi-dirigida. A partir dos depoimentos, observa-se a representao e a vivncia de paternidade em transformao atravs de manifestaes da paternidade distintas do padro patriarcal dominante, caracterizado pelo afastamento afetivo no comportamento masculino. Verifica-se uma crescente expectativa por parte dos homens de maior participao na gravidez, parto e cuidados junto ao filho, acompanhada de envolvimento emocional expresso. Destacam-se na anlise os temas do desejo de ser pai e modelos de pai, que se articulam em torno da afetividade masculina e paterna em transformao. Constata-se a coexistncia de mltiplas referncias e a valorizao dessa pluralidade expressa em comportamentos e valores, o que contrasta com antigos modelos at ento tidos como hegemnicos. Trabalha-se com a hiptese de que a crise vivenciada nesse mbito, em funo da instabilidade gerada pelo perodo de transio que desorganiza tanto a estrutura emocional quanto as estruturas familiares, promove, a mdio e longo prazo, crescimento tanto para o indivduo como para a sociedade. Palavras-chave: Paternidade Individuao (Psicologia) Alteridade Fatores Psicossociais Psicologia Junguiana Entrevistas.

  • Fatherhood and male subjectivity in transformation: crisis, growth and individuation ABSTRACT The purpose of this research is to broaden the understanding of how the experience of fatherhood is taking place at the present time, using a Jungian perspective: to find out what the impact of the experience of becoming a father is causing on mens developmental process and process of individuation. As a better understanding about the meaning of fatherhood nowadays for men themselves as fathers is searched, we analyse how the paternal archetype is being constellated in contemporary society, according to new modes of feeling and behaviour, aiming at a more favorable approach towards alterity and democratic relationships. After a socio-historic contextualization, emerges a scenario marked by reformulation in the conceptions of masculine and feminine over the last decades, which interferes on the aggregate level in gender identities and, therefore, on male subjectivity as well, with consequences for the expectations towards the father figure. This is a qualitative research based on individual interviews supported by a semi-directed script of issues and questions. Based on these statements, we observe the representation and the experience of fatherhood in transformation throughout manifestations of fatherhood that differ from the dominant pattern (patriarchal) and characterized by emotional aloofness as a common male trait. Mens growing expectation towards greater participation over pregnancy, childbirth and day-to-day care has been identified, as well as explicit emotional involvement. Willingness to be a father and models of father were emphasized issues, involving male and paternal affection in transformation. The coexistence of multiple frames of reference along with such diversity, as expressed in behaviours and values, have been demonstrated. This contrasts with old models considered, until now, to be hegemonic. We worked with the hypothesis that the crisis in this area, due to instability generated by this transitory period that disorganizes both emotional and family structures, generates, over medium and long range, development for the individual as well as for society.

    Keywords: Fatherhood Individuation (Psychology) Alterity Psycosocial Factors Jungian Psychology - Interviews.

  • SUMRIO

    ABERTURA .....................................................................................13 1. INTRODUO:

    CENRIO SCIO-CULTURAL E O TEMA DA PATERNIDADE ...17 2. O TEMA DA PATERNIDADE NA PSICOLOGIA ........................41

    3. REFERENCIAL TERICO:

    A PSICOLOGIA ANALTICA DE JUNG E A PATERNIDADE .......69

    4. MTODO: a) OBJETIVO .................................................................................108

    b) PESQUISA DE CAMPO ............................................................116

    c) TRATAMENTO DOS DADOS ...................................................122

    5. RESULTADOS a) CARACTERIZAO DOS SUJEITOS: PERFIL COLETIVO ....128

    b) AS ENTREVISTAS: PRINCIPAIS TEMAS ................................139

    c) O GRUPO: PRINCIPAIS TEMAS ..............................................143

    6. ANLISE: CATEGORIAS .........................................................151 a) CIRO .........................................................................................156

    b) EDUARDO .................................................................................170

    c) GUSTAVO ..................................................................................183

    d) MARCELO .................................................................................204

    e) HELIO ........................................................................................224

  • f) CARLOS .....................................................................................232

    COMENTRIOS SOBRE A AFETIVIDADE MASCULINA..............235

    CONSIDERAES FINAIS ...........................................................243 REFERNCIAS .............................................................................248 APNDICE

    a) TERMO DE CONSENTIMENTO ...............................................255

    b) ROTEIRO PARA ENTREVISTA INDIVIDUAL ...........................256

    c) ROTEIRO PARA GRUPO DE PAIS ..........................................259

  • 13

    ABERTURA

    antigo meu interesse pelo tema da individuao, tendo me focado

    pontualmente, ao longo da minha trajetria de estudos e prtica clnica, sobre

    diferentes momentos da vida em que, a meu ver, esse processo de desenvolvimento

    psicolgico costuma revelar-se ou acentuar-se. So momentos marcados por

    mudanas profundas ou tomadas de deciso, onde a vulnerabilidade do ser humano

    se revela atravs da sua abertura para mudanas, sua plasticidade, capacidade de

    transformao das rupturas s snteses , o que invariavelmente instiga nosso

    fascnio e mesmo perplexidade diante do potencial e riqueza da nossa espcie,

    sempre a nos surpreender. So processos vivenciados individualmente, mas que,

    em certas situaes, dizem respeito a experincias coletivas, como ritos de

    passagem.

    Na dcada de 80, meu olhar se concentrou sobre as mulheres,

    particularmente sobre um momento de suas vidas em que a rpida transformao

    corporal denuncia a existncia, no mnimo, de uma revoluo. Refiro-me s

    grvidas, cuja capacidade de se transformar vai inexoravelmente muito alm da

    disponibilidade emocional e/ou consciente para ter um filho, por tangenciar o

    involuntrio e o inconsciente, mesmo quando a gestao decorrente de uma

    escolha. Trata-se de uma experincia corporal acompanhada de intensa mobilizao

    psquica, que freqentemente promove uma reviso de sua identidade e de seu

    papel no mundo.

    Na poca pensei e repensei sobre o assunto, aproximei-me delas e

    concentrei minha observao na produo do seu imaginrio, tendo coletado em

  • 14

    torno de 150 sonhos de gestantes, com a inteno de que eles revelassem

    como estaria se dando o processo de individuao durante o perodo

    gestacional. Foi uma convivncia rica que propiciou muita aprendizagem e interferiu

    em meu trabalho clnico, principalmente por ter aguado minha percepo, mas tal

    investimento no chegou a ser publicado ou traduzido de forma conclusiva em

    produo acadmica.

    Nos anos 90, a adolescncia conquistou minha ateno, em especial o

    sofrimento e ansiedade dos jovens diante da presso para fazer escolhas

    profissionais supostamente para o resto de suas vidas, em meio vaga sensao

    de precocidade, ante a falta de informaes e mesmo de maturidade. A busca de

    suas competncias, o olhar cheio de curiosidade voltado para o futuro e uma grande

    falta de prontido para ser objetivo e atuar de forma estvel e coerente (o que

    significaria ter que responder amanh pelas decises tomadas hoje) so alguns dos

    elementos que nos ajudam a compreender, ainda que de forma parcial, a angstia

    que vem pesando sobre os ombros desses meninos e meninas, rapazes e moas do

    Ensino Mdio, quando so levados a enfrentar a fatdica escolha profissional na hora

    da inscrio para o vestibular. Mobilizada por essa intensa fase da vida, repleta de

    transformaes, investi numa especializao em orientao profissional, onde

    desenvolvi algumas reflexes sobre a forma que toma o processo de

    individuao nesse momento, quando o principal desafio fazer escolhas, o

    que invariavelmente implica em perdas, sem, contudo, mutilar-se. Isto engloba

    diferenciao e desidealizao como sofridas conquistas que se convertem em pr-

    requisitos para uma realizao pessoal, iniciando-se no mundo adulto. Saber ser

    apenas um, mas inteiro, favorecendo integrao.

  • 15

    Um terceiro deslocamento de interesse verificou-se j no fim dos anos 90,

    dessa vez assentando meu olhar sobre os homens, rapidamente capturado pela

    maneira como enfrentam a relao com a prpria afetividade, em meio s

    profundas transformaes culturais, constituindo-se para alguns, ao que

    parece, em um verdadeiro desafio frente a uma sobreposio de expectativas

    sociais diversas e ambivalentes. Isso tende a gerar, com freqncia, sentimentos

    de inadequao e fracasso, podendo comprometer a auto-estima de um significativo

    grupo de pessoas que faz parte de uma gerao que foi educada, em sua maioria,

    ainda com nfase nos padres e valores de uma cultura patriarcal. At onde pude

    observar em minha prtica clnica, onde se verifica um expressivo crescimento por

    parte dos homens na busca de psicoterapia, e tambm nas relaes sociais de um

    modo geral, atrao e despreparo para as questes do afeto parecem resumir, de

    forma um tanto simplificada, os conflitos e inquietaes masculinos que se

    desdobram em conseqncias mltiplas dentro dos relacionamentos amorosos. No

    raro encontr-los confrontando suas posies de homem, marido, profissional e

    pai, em busca de uma sntese possvel, em meio a tantas contradies. Esse tema

    me mobilizou para mais um investimento profissional, e dediquei-me a uma

    formao em terapia de casal.

    Tornei-me terapeuta de casal, e o convvio com esses casais tem me posto em

    contato direto com os pais e as mes que vivem dentro deles, como entidades que

    muitas vezes prevalecem, fazendo sombra ao prprio relacionamento conjugal.

    Percebi que no poderia cuidar do casal, nem daquele homem e daquela mulher, se

    no me dispusesse a cuidar do pai e da me que ali tambm se apresentavam.

    Tenho aprendido muito com esses pais, porque das mes eu j sabia um pouco,

    inclusive pela prpria vivncia. Mas, como sempre aprendemos perguntando, enchi-

  • 16

    me de perguntas. E precisei pesquisar. Sendo assim, o foco vai agora para o pai,

    mais especificamente para o homem que est se tornando pai, pois pouco se

    sabe ainda sobre o mundo interno masculino e o que a experincia de paternidade

    evoca.

    Se, em meu percurso profissional, o interesse foi sendo deslocado de um

    sujeito para outro, em gnero e faixa etria, j a inquietao parece ter se mantido a

    mesma, buscando sempre a compreenso do que que viabiliza, em termos

    psquicos, a realizao de si mesmo.

    Tambm o referencial terico se manteve estvel, como se fosse

    engrossando o tronco por onde se veicula e se constri um determinado saber. A

    abordagem junguiana, particularmente os aspectos tericos em torno do processo

    de individuao, vem me acompanhando nas minhas diferentes curiosidades e

    inquietaes, revelando-se de fato um referencial, enquanto eu, cigana, viajo e, de

    vez em quando, me encontro em terras desconhecidas, mas sem desamparo. A

    leitura do novo vem se associando s construes anteriores, provocando dilogos

    nem sempre confortveis e afinados, pois, s vezes, as contradies salpicam,

    gerando mais questionamentos que certezas, deixando no ar a sensao de que

    transformaes esto por vir. Tem prevalecido, no entanto, a confiana numa

    evoluo sobre um alicerce ainda no pronto, mas j capaz de sustentar o edifcio,

    em permanente construo...

  • 17

    I. INTRODUO: CENRIO SCIO-CULTURAL E O TEMA DA PATERNIDADE

    Tm se observado, h pelo menos quatro dcadas, significativas mudanas

    scio-culturais no que diz respeito s concepes de masculinidade e feminilidade, e

    seus respectivos desdobramentos no desempenho das funes de homem e mulher

    na sociedade e no interior da famlia. Esse perodo vem sendo marcado por

    profundas mudanas nos papis de ambos e, conseqentemente, tambm nas

    relaes de conjugalidade, que se expressam na multiplicao de modelos de

    famlia, como se v atualmente, com novas expectativas em relao aos papis de

    pai e me. Transformaes culturais em grande escala decorreram das novas

    concepes de masculino e feminino, em um movimento de mo dupla, interferindo

    em todos os nveis do processo educativo, passando pela famlia, escola e meios de

    comunicao de massa.

    Tais mudanas, tendo se manifestado coletivamente a partir dos anos 50 e

    60, fazem parte de um cenrio muito mais amplo de transformaes em todos os

    nveis da sociedade ocidental, tanto no plano macro quanto microestrutural.

    Transformaes de tal monta, quando chegam a ocorrer com tamanha profundidade,

    j estariam em gestao desde muito antes de serem coletivamente reconhecidas

    como um fenmeno social. Para uma elucidao dessa histria precedente, seria

    necessrio remontar alguns sculos, repassando momentos como a Revoluo

    Francesa, o Iluminismo e a Revoluo Industrial, com foco na histria da vida

    privada, a fim de se conferir em que medida os mesmos valores, ora manifestos, j

    estariam sendo semeados atravs de questionamentos da estrutura de poder que

  • 18

    dava suporte s relaes sociais em vrios planos, do poltico ao familiar, passando

    pelo econmico e pela hierarquia social. 1

    Sendo assim, voltando s manifestaes ocorridas a partir dos anos 60, cito,

    apenas para ilustrar, alguns dos fatores que interagiram fortemente nesse processo

    a partir de meados do sculo XX. Destaco elementos como mudanas na base

    econmica, sobretudo na estrutura ocupacional, com novas demandas por maior

    participao da mulher no mercado de trabalho, concomitantemente (para no

    reduzir a uma leitura linear de causa e efeito) aos anseios por emancipao da

    mulher e igualdade entre os sexos, que se organizaram em torno do movimento

    feminista. Paralelo a isso ocorreu o desenvolvimento cientfico que trouxe o

    surgimento da plula anticoncepcional e outros mtodos contraceptivos, que, por sua

    vez, influram no fenmeno social conhecido como revoluo sexual. A isto se aliou

    ainda a emergncia de movimentos estudantis e o engajamento poltico-ideolgico

    que estimularam e deram voz contestao juvenil. Esse conjunto de fatores trouxe

    grandes transformaes no plano dos valores e dos comportamentos,

    particularmente no que diz respeito s relaes de gnero, modelos de famlia e

    novos perfis de pai e me, assim como a aplicao do conceito de autoridade nas

    relaes familiares. Abalando as tradies e enfrentando tabus, propunha-se algo

    bem menos estratificado do que os modelos da sociedade patriarcal que vigoravam

    de forma hegemnica at ento.

    Ali surgiram, por exemplo, as chamadas roupas unissex como um signo para

    representar a proposta de igualdade entre os sexos, interferindo diretamente no

    comportamento das pessoas. A mdio e longo prazo, a prtica que emergiu dessas

    novas concepes de masculino e feminino, bem menos polarizadas, influenciou 1 O presente trabalho no se prope a explorar tais bases histricas. Para um maior aprofundamento dessa anlise, ler a tese de doutorado publicada sob o ttulo O Pai Possvel: conflitos da paternidade contempornea, de Durval Luiz de Faria (2003, p.60-75).

  • 19

    nos processos educativos e de socializao de um modo geral, interferindo, em

    ltima instncia, na formao da identidade no que concerne definio de

    gnero.

    Entretanto, mesmo passados mais de 40 anos, no h como arriscar uma

    previso de quando esse processo atingiria algum ponto de estabilidade, pois o que

    se observa que estamos, ainda hoje, em plena transio de valores, concepes,

    papis e padres de comportamento. Alm das dificuldades esperadas frente

    adaptao s mudanas j ocorridas, pode-se observar, nesse caso, a permanente

    emergncia do novo. No se trata, pois, de enfrentar apenas os desafios propostos

    pela modernidade que no so poucos , mas incluem-se, no cenrio atual, outros

    elementos como a fluidez dos laos ou mesmo uma nova forma de relao com o

    tempo, caractersticas estas mais prximas da concepo terica que identifica

    nossa poca como ps-moderna. 2 Temos como outro exemplo, a interferncia da

    informtica no plano dos relacionamentos atuais, incluindo elementos como a

    virtualidade e a fragmentao, diluindo brutalmente os efeitos da distncia

    geogrfica e trazendo novos contornos para a sociabilidade em geral. Isso atinge

    tambm, como no poderia deixar de ser, as relaes intrafamiliares como, por

    2 Esta abordagem, em contraposio ao moderno, entendido a partir de uma viso universal cartesiana da razo, define-se com base em noes como a fragmentao, o relativismo e a pluralidade de identidades. Esta postura terica no ser desenvolvida aqui, nem adotada como referencial de anlise, sendo apenas mencionada, com base na conceituao de Baudrillard (1985), que a desenvolveu, junto com outros autores, a partir dos anos 70 e 80. H, no entanto, muitas controvrsias sobre essa concepo epistemolgica. Seidler, por exemplo, questiona que essa viso de fragmentao e pluralidade seja to nova, e contribui com inmeros exemplos histricos, principalmente destacando minorias, para demonstrar que a pluralidade de identidades e a fragmentao estiveram tambm l presentes, representando uma contraposio frente aos valores hegemnicos da poca e relativizando a verdade. Sugere que, por exemplo, a mulher tem vivido h muito tempo essa fragmentao, frente necessidade de validar sua experincia em uma cultura patriarcal (SEIDLER, 2000, p.94). Segundo ele, o feminismo desafia uma modernidade que privilegia a razo como nica fonte de conhecimento (SEIDLER, 2000, p.93). Este se alia a outros movimentos culturais, artsticos e cientficos que questionam o conceito de objetividade defendido pelo positivismo. Cresce o reconhecimento de diferentes formas de conhecimento, que pode ser validado, por exemplo, tambm pela experincia, levando-se em conta a emoo e a intuio, e no exclusivamente pela razo.

  • 20

    exemplo, a relao pai-filho, 3 e mesmo passando pelas mltiplas formas de

    interao homem-mulher. 4 Estas podem ser consideradas mudanas recentes e

    bastante significativas, que requerem um permanente processo adaptativo, mesmo

    que faltem ainda elementos para se afirmar sobre diferenas qualitativas nessas

    novas relaes.

    Todo processo de crescimento traz dentro de si o desafio inerente

    mudana, o incmodo da desestabilizao, o confronto entre o velho e o novo. Mas,

    neste caso, acrescenta-se aqui a prolongada incerteza quanto ao que

    esperado, aonde se pode ou deve chegar. Padres de relao pai-filho e marido-

    mulher esto sendo constantemente recriados, sob a forma de experimentao e

    ensaio e sob cada teto, na tentativa de, em famlia sem cartilha e sem manual de

    instruo , acertar, apostar, investir nos relacionamentos afetivos para

    construir uma sociedade mais feliz, mais justa, que respeite mais os

    sentimentos e a subjetividade de cada um.

    Fazendo frente a um possvel sentimento de despreparo e solido diante

    dessa situao, verifica-se no mercado o surgimento de inmeros livros na nova

    categoria denominada de auto-ajuda, assim como artigos em revistas semanais de

    acesso popular, com a pretenso de orientar e aconselhar as pessoas que se

    sentem perdidas diante dos mais corriqueiros sentimentos como cimes, atrao

    sexual, frustraes amorosas, inseguranas na educao dos filhos. Tal produo

    constituiu-se, de fato, num novo mercado, focando-se preponderantemente em dois

    3 Depoimentos obtidos em atendimento clnico revelaram uma nova forma de acompanhamento das lies e atividades dos filhos por parte dos pais, atravs das redes de Internet s quais esto ambas as partes diariamente conectadas. Segundo alguns pais, isso facilita a comunicao entre eles, uma vez que os horrios no favorecem os encontros. 4 Tambm nesse caso h vrios exemplos clnicos, baseados nas terapias de casais, onde fazem meno aos e-mails que trocam entre si, seja para organizar o cotidiano, convidar para sair ou continuar a briga da vspera.

  • 21

    grandes temas: relao entre pais e filhos e relacionamento amoroso e sexual. No

    entanto, a tentativa de vender um novo modelo, como, por exemplo, o do novo

    homem, que, de pronto, venha a substituir os antigos padres que foram e

    continuam sendo colocados em xeque, pode oferecer um psedo-conforto ante a

    sensao de se estar perdido, mas efetivamente no pode preencher o que toda

    essa movimentao veio, num sentido mais profundo, buscar: uma maior

    intimidade e convivncia com a prpria subjetividade, assim como maior

    permisso para o reconhecimento e expresso da afetividade nos

    relacionamentos. Enfim, tornar-se mais pessoal, indo alm de um desempenho de

    papis, no algo que se adquira lendo e seguindo conselhos elaborados pelos

    tcnicos em relaes humanas. Sendo assim, em qu tal produo tem podido

    efetivamente contribuir , a meu ver, na ampliao da conscincia de que os novos

    sentimentos e dvidas vivenciados individualmente e na privacidade constituem-se

    j numa experincia coletiva e podem, portanto, ser compartilhados.

    Muitos valores esto em jogo na busca desses novos padres de relao. E o

    que se verifica, com freqncia, um sentimento de incerteza quanto ao que se

    pode esperar, por exemplo, de um pai. No fcil ser pai hoje em dia. No parece

    fcil ser homem. Talvez nunca tenha sido no seu sentido mais profundo. Mas,

    enquanto desempenho de papis, houve pocas em que a estabilidade social e as

    tradies garantiam sem a atual ambigidade e sem a mesma contradio um rol

    de atividades a desempenhar e de expectativas viveis de serem cumpridas. A

    subjetividade individual no era levada em conta, mas o processo educativo tambm

    tratava de sombre-la para o prprio sujeito, atravs do foco preponderantemente no

    coletivo. E, at onde se tem acesso, na histria do cotidiano dos homens, possvel

    supor que a sociedade patriarcal tenha propiciado, por muito tempo, uma vivncia

  • 22

    desses papis aparentemente sem grandes conflitos, ou pelo menos no a ponto de

    serem assumidos, compartilhados e registrados pela historia oficial.

    Cabe aqui complementar que a subjetividade, enquanto elemento intrnseco e

    essencial do ser humano, no pode ser completamente subjugada, mas passvel

    de ser disciplinada ou ofuscada no processo de socializao, a depender dos

    valores vigentes. E pode-se entender que, por no ter sido valorizada, no ganhou

    expresso na sociedade orientada pelos valores e padres patriarcais, a no ser nos

    canais considerados apropriados como, por exemplo, o campo das artes. Mesmo ali

    ganhou contornos especficos. Nas relaes cotidianas esteve (e ainda hoje est

    muitas vezes) identificada, assim como o sentimento e a afetividade de um modo

    geral, como um trao mais caracteristicamente feminino.

    Nas ltimas dcadas, as mudanas no interior das famlias tm atingido os

    mais diferentes planos, alterando desde padres de cuidados com as crianas at a

    definio de a quem cabe cuidar delas. O antigo afastamento afetivo, outrora

    proposto ao gnero masculino como um padro hegemnico, deixa agora de fazer

    sentido para ambos os sexos, especialmente no discurso consciente. Entretanto, as

    tradies deixam seus rastros, imprimindo um tom de conflito e ambigidade s

    relaes atuais. Nossa cultura, ao mesmo tempo cambiante e conservadora, tende a

    mesclar expectativas novas e antigas de maneiras nada harmnicas.

    At certo ponto, no necessrio fazer pesquisa para se observar alguns

    desses aspectos no cotidiano, e comentrios no mesmo sentido so encontrados,

    por exemplo, na literatura ou ainda, como se diz, na boca do povo. Transcrevo,

    para ilustrar, um pequeno trecho de Lya Luft:

  • 23

    Nas ltimas dcadas quebraram-se padres estabelecidos durante

    longo tempo. Ainda no se firmaram outros que possam servir de

    referncia; tudo muito recente, estamos mergulhados no olho do

    furaco. No temos certeza das oportunidades que nos so oferecidas

    em cada esquina. Estamos fazendo bom uso delas ou ainda nos

    assustam demais? E esse medo: infundado ou razovel? (LUFT,

    1996, p.62).

    Esse tema tem despertado interesse de pesquisadores em diferentes reas

    do conhecimento, a fim de se compreender mais profundamente as dinmicas e as

    conseqncias envolvidas. A historiadora norte-americana Stephanie Coontz 5

    pesquisa o processo de formao das famlias ao longo da histria, e sua

    especialidade a histria do casamento. Segundo ela, at meados do sculo XX o

    casamento era uma instituio rgida na qual o papel dos gneros era estritamente

    definido... Isso acabou... (e) transformou-se naquilo que hoje vemos com freqncia:

    parcerias (COONTZ, 14/06/2005). A tese central do seu mais recente livro

    (COONTZ, 2005) 6 a de que o casamento mudou mais nos ltimos 30 anos do

    que nos 3.000 anos anteriores. Isso aconteceu em grande parte devido ao fato de as

    mulheres terem mudado to dramaticamente (COONTZ, 14/06/2005).

    Coontz comenta, em entrevista concedida Dreifus e publicada no New York

    Times, e posteriormente divulgada na Internet, que as mulheres conquistaram

    independncia econmica e em trs dcadas se livraram das exigncias legais e

    5 Stephanie Coontz professora de Estudos sobre a Famlia na Faculdade Estadual Evergreen, em Olympia, Washington. 6 Declaraes extradas de entrevista concedida ao New York Times por ocasio do lanamento do livro Uma Histria do Casamento: da Obedincia Intimidade, ou Como o Amor Conquistou o Casamento. Traduo do ttulo do livro e da entrevista publicada no New York Times para o site feita por Danilo Fonseca.

  • 24

    polticas que as subordinavam aos seus maridos. Mas recorda que j no sculo

    XVIII:

    fez parte do Iluminismo a demanda pelo casamento por amor. Os

    defensores daquilo que poca era um casamento tradicional, um

    casamento arranjado, ficaram horrorizados. Eles disseram: Se as

    unies com base no amor se tornarem a norma, teremos pessoas

    vivendo juntas sem casamento, parcerias homossexuais, divrcios e

    ilegitimidade. Eles estavam certos. A unio por amor era

    desestabilizadora. Mas as implicaes radicais da revoluo do amor

    no seriam colocadas em prtica at que as mulheres contassem com

    mtodos confiveis de contracepo e fontes de renda independentes.

    E isso demorou mais 200 anos para ocorrer (COONTZ, 14/06/2005).

    Frente pergunta sobre qual o aspecto mais positivo da revoluo do

    casamento, respondeu enfaticamente:

    O quanto os homens mudaram nesses ltimos 30 anos. Nunca se

    via homens com os filhos... Eles esto realizando algo de fato.

    Quando vejo os relacionamentos maravilhosos e respeitosos que o

    meu filho (de 24 anos) e seus amigos tm com as mulheres em suas

    vidas, enxergo algo realmente novo (COONTZ, 14/06/2005).

    Ao que tudo indica, quem naquela poca previu o caos que decorreria de

    casamentos feitos com base no amor, no previu os ganhos... A base daquela

    leitura parece estar assentada na prioridade dada razo, como organizadora do

    mundo social e responsvel pelas conquistas feitas pela civilizao frente ao que de

  • 25

    mais primitivo nos oferece a natureza, entendido o primitivo como os aspectos mais

    relacionados ao corpo, aos impulsos e aos sentimentos. Na poca (e ainda hoje) a

    razo era, portanto, eleita como parmetro para se avaliar a qualidade de vida, num

    nvel superior.

    Na mesma direo temos as colocaes de Seidler, 7 quando afirma que a

    modernidade havia apresentado a razo como um campo do domnio

    masculino (SEIDLER, 2003, p.205). E que, justamente contrapondo-se a esse

    princpio, uma das demandas do feminismo foi a de assegurar uma viso das

    mulheres como igualmente racionais. Antes eram vistas como mais prximas da

    natureza, mais influenciveis devido a suas emoes, sentimentos e desejos

    (SEIDLER, 2003, p.206). Com isso o feminismo veio propor a superao da diviso

    entre o espao pblico identificado com o lugar destinado ao exerccio racional e do

    poder, e o privado como o espao de amor, intimidade e emoes.

    At ento aos homens era proposto ser independentes e auto-suficientes, e

    a no mostrar em pblico debilidades derivadas do medo, j que isso poderia ser

    usado contra eles por outros homens numa competio por masculinidade. Os

    homens s podem sentir-se bem consigo mesmos sabendo que esto fazendo

    melhor que os outros (SEIDLER, 2003, p.206).

    Segundo Seidler (2000, 2003), a identificao da masculinidade com a

    razo tem infludo de maneira determinante nos conceitos caractersticos da

    modernidade e nas teorias sociais dominantes no Ocidente. Concebidas por

    oposio razo e emoo, mente e corpo, assim como cultura e natureza, essas

    tendncias evidenciam o diferenciado peso conotativo atribudo aos plos,

    priorizando os primeiros, com a conseqente desvalorizao da natureza e das

    7 Victor J. Seidler professor de Teoria Social em Goldsmiths College da Universidade de Londres e autor de diversas obras sobre masculinidade e teoria social.

  • 26

    emoes, essas ltimas entendidas como pueris, como um trao de dependncia

    infantil que superamos medida que aprendemos a avanar para a independncia e

    a autonomia. Essa viso de autonomia, portanto, se coloca em termos racionalistas

    (SEIDLER, 2000, p.58).

    O feminismo desafiou a modernidade provocando reflexes acerca das

    conexes entre modernidade e masculinidade (SEIDLER, 2000, p.147). E os

    homens tiveram que investigar a natureza e o carter de suas formas herdadas de

    masculinidade (SEIDLER, 2000, p.150). Aqueles que, tendo-se deixado afetar pelas

    demandas do feminismo, dispuseram-se a mudar a si prprios, tiveram que enfrentar

    um desafio pessoal e prtico, e no apenas terico: quem somos? Como nos

    relacionamos conosco e com os outros? Nos anos 70 e 80 formaram-se alguns

    grupos de tomada de conscincia, mas foi difcil porque estavam muito acostumados

    a racionalizar a experincia, e nada acostumados a compartilhar j que tratavam

    os outros homens como competidores (SEIDLER, 2000, p.150).

    Historiando reaes masculinas frente ao movimento feminista, Seidler

    identifica um primeiro momento, nos anos 70, quando alguns simpatizantes

    manifestaram uma fcil adeso s crticas e propostas, e possvel que tenham

    buscado modelar suas condutas de acordo com as demandas dessas mulheres,

    sustentando que isso viria em benefcio dos homens (SEIDLER, 2000, p.170), uma

    vez que os ajudaria a entrar em contato com os prprios sentimentos

    tradicionalmente rejeitados. O autor v nisso algo de positivo, mas tambm uma

    maneira defensiva de evitar seus sentimentos de ira frente a tantas condenaes.

    J nos anos 80 destaca a crescente necessidade por parte de muitos homens de

    tomar certa distncia do feminismo como se necessitassem dessa distncia para

    aprender de algum modo a definir sua prpria experincia. Ao priorizar a

  • 27

    necessidade de explorar sua prpria masculinidade e descobrir o que ela lhe

    revela (SEIDLER, 2000, p.175), so colocadas em dvida as formas dominantes de

    explicaes sociais que no deixam espao para nenhuma explorao da

    masculinidade no sentido de que cada homem explore seu sentido do ser

    (SEIDLER, 2000, p.176).

    A esse respeito, Seidler enfatiza a importncia de se distinguir o que

    caracterstico da natureza da paternidade que relaes os homens podem ter

    como pais com seus filhos do que chamado de maternagem ou pater-

    maternidade, que simplesmente uma questo de dividir tarefas e

    responsabilidades de ateno e cuidado com os filhos. Segundo ele, cabe aos

    homens definir qualidades e responsabilidades particulares da paternidade

    (SEIDLER, 2000, p.172). E alerta para o perigo do feminismo reforar uma espcie

    de moralismo, ao ditar a forma como deveriam ser os homens (SEIDLER, 2000,

    p.173).

    Em sintonia com os pressupostos da presente pesquisa aqui desenvolvida, o

    autor defende que se deve explorar a diversidade da prpria experincia dos

    homens, por exemplo, atravs de tenses e dificuldades especficas que s

    podem ser acessadas se os homens as expressarem. Importante tambm

    reconhecer as diferenas entre os homens procedentes de distintas culturas de

    classe, raciais e tnicas (SEIDLER, 2000, p.172), diz ele, assim como as diferentes

    necessidades, levando em conta os aspectos pessoais e individuais em funo dos

    prprios antecedentes e das relaes com seus pais, uma vez que tudo isso deve

    interferir significativamente na forma de assumir as responsabilidades da

    paternidade. Finalizando esse assunto, acrescenta que alguns tipos de psicoterapia

    tm contribudo no sentido de validar essa investigao das necessidades

  • 28

    emocionais, valores e desejos: Essas formas de psicoterapia reconhecem at que

    ponto a cultura racionalista se interpe no caminho da individuao e da auto-

    definio dos homens (SEIDLER, 2000, p.176).

    Acompanhando o pensamento de Seidler e as informaes por ele trazidas,

    alguns paradoxos se destacam. Ao tecer consideraes sobre o respeito nas

    relaes pessoais, comenta que o respeito se baseia na unio do pensamento

    com o sentimento. Nesse sentido, levar a srio a si mesmo ou ao outro implica

    prestar ateno tanto nos pensamentos quanto nos sentimentos Entretanto, uma

    tradio racionalista nos faz pensar que temos que ter razes para nossos

    sentimentos, ou se tornam irracionais. Isso compromete o contato com os

    sentimentos que, filtrados, j no se expressam (SEIDLER, 2000, p.99).

    Considerando irracionais as prprias necessidades e emoes, o homem se

    faz surdo para as expresses tambm dos outros (SEIDLER, 2000, p.79). Assim se

    constri uma identidade masculina, definida primordialmente a partir de sua posio

    no mundo pblico do trabalho, o que o torna, em graus variveis, ausente na vida

    cotidiana dos filhos, e insensvel com relao a si mesmo. Aprendendo a falar

    com a voz imparcial da razo... a voz de um homem adquire um tom de

    objetividade e de imparcialidade medida que se converte em uma voz

    impessoalizada, uma voz que tem autoridade porque no pertence a ningum em

    particular, enquanto ao mesmo tempo pretende respeitar a todos (SEIDLER, 2000,

    p.167).

    Estamos, pois, diante de um paradoxo: a imparcialidade est a favor do

    respeito a todos; entretanto, como foi dito anteriormente, respeitar o ser humano

    consider-lo em seus pensamentos e sentimentos, portanto, no se harmoniza

    com a impessoalidade.

  • 29

    Geralmente os homens no fazem relatos pessoais de sua prpria

    experincia. Tradicionalmente tm confiado na mulher para que lhe proporcione

    uma verso e um entendimento do que experimenta em sua vida emocional

    (SEIDLER, 2000, p.167). Este mais um paradoxo: Em busca de tanta autonomia,

    e investindo no auto-controle que deve torn-los invulnerveis, sem perceber

    se tornam neste aspecto dependentes das mulheres, via de regra consideradas

    inferiores justamente por serem mais emocionais.

    tambm um paradoxo que os homens aprendam a assumir

    responsabilidade pelos outros como provedores antes de aprenderem a

    assumir a responsabilidade emocional de sua vida pessoal (SEIDLER, 2000,

    p.170). S pode ser uma responsabilidade impessoal. Pois os homens aprendem a

    objetivar-se e fazem o mesmo com os outros (SEIDLER, 2000, p.203). Esse controle

    das emoes os conduz a um isolamento de certa forma escolhido, na medida em

    que se orgulham de ser capazes de anular suas prprias necessidades,

    especialmente as emocionais, j que elas so signos de debilidade (SEIDLER,

    2000, p.206).

    Seidler conclui que a opresso da modernidade est na impessoalizao da

    vida pessoal e emocional, silenciadas (SEIDLER, 2000, p.298). E entende o

    feminismo, a psicoterapia e a ecologia como movimentos sociais que puseram em

    dvida o discurso da modernidade, para mostrar o irrazovel que pode ser uma

    razo separada da natureza (SEIDLER, 2000, p.303).

    Voltando para os dias de hoje, observa-se que a subjetividade masculina veio

    tona e, quando no vem, cobrada. A nova expectativa que recai sobre o homem,

    enquanto companheiro e como pai, transcende a um mero desempenho de papis

  • 30

    no cenrio das relaes concretas, medida que o qualifica como uma pessoa, com

    personalidade prpria, com sentimentos e desejos que no esto a apenas para

    serem disciplinados e, fundamentalmente, com uma afetividade que o move para

    dentro de uma relao com uma mulher e com seus filhos. Espera-se do homem

    que ele seja mais sensvel e humanizado, mas permanece o desafio de

    delinear de si para consigo, e no apenas como quem atende s novas

    demandas do feminino o homem que ele quer ser e o quanto se sente

    preparado para isso, em meio a tantos paradoxos.

    Segundo Callirgos, 8 historicamente, a masculinidade requer a represso de

    uma ampla gama de necessidades, sentimentos e formas de expresso humanas

    (CALLIRGOS, 2003, p.213). De fato, as barreiras que foram impostas aos homens,

    somadas s que eles mesmos seguem se impondo, cerceiam a manifestao de

    carinho entre pai e filhos, da tristeza atravs do choro, e mesmo de qualquer forma

    de intimidade entre homens, exemplos estes lembrados pelo autor. Mas, segundo

    ele, no se trata de problemas individuais e nem de encarar os homens como

    simples vtimas de um sistema que os oprime e os desumaniza, pois o sistema

    patriarcal deteriora a qualidade de nossas relaes humanas em geral, onerando

    significativamente tambm, ou mais, as mulheres, com todas as desvantagens e a

    opresso de que hoje se tem conhecimento devido, por exemplo, s denncias

    feitas pelo feminismo e, depois, pelos estudos de gneros que a partir de ento se

    desenvolveram. Ou seja, um sistema que compromete em todos os nveis a

    qualidade das relaes, consigo mesmo e com os outros, enquanto pretende

    oferecer vantagens aos homens sobre as mulheres. 8 Juan Carlos Callirgos antroplogo e professor da Universidade Catlica do Peru. Estuda a identidade masculina e escreveu Sobre heres y batallas. Los caminos de la identidad masculina Lima, Escuela para el Desarrollo, 1996.

  • 31

    Procurando reforar uma atitude ativa por parte dos homens no sentido de

    transformar essas condies tradicionais que aliceram nossa socializao, Callirgos

    recomenda, na mesma direo que Seidler, que, alm de conhecer as demandas

    elaboradas pelas mulheres a partir dos movimentos feministas e os estudos que se

    seguiram sobre as relaes entre os gneros, necessitamos conhecer as

    necessidades e as realidades dos homens, sugerindo que a tarefa de fazer um

    mundo mais humano, mais justo e mais igualitrio compete a ambos os gneros. E

    anuncia que as conquistas de um gnero podero ser conquistas de todos

    (CALLIRGOS, 2003, p.214).

    Fazendo meno a um trabalho de Elisabeth Badinter sobre a identidade

    masculina, o autor concorda com ela que dos anos 70 para c a definio do

    homem est em questo, mais do que nunca (BADINTER, 1994, citada por

    CALLIRGOS, 2003, p.214). E acrescenta:

    Muitos homens se questionam sobre sua identidade, os papis

    tradicionais que lhes foram destinados. Trata-se de um perodo de

    incerteza, carregado de angstia. Questiona-se tambm a unicidade

    do que constitui sua essncia: a virilidade. Comea-se a falar em

    masculinidade no plural, no no singular (BADINTER, 1994, citada

    por CALLIRGOS, 2003, p.215).

    Entretanto, admite a dificuldade de se fazer um balano das mudanas

    ocorridas nas ltimas dcadas, pois frente a uma reviso das representaes

    simblicas da masculinidade e feminilidade no mundo de hoje constata que, em

    meio a algumas mudanas, h tambm muitas permanncias (CALLIRGOS, 2003,

    p.215).

  • 32

    Em seu artigo, Callirgos dialoga brevemente com alguns pesquisadores que,

    tendo se detido em temas como masculinidade e paternidade, contribuem para a

    compreenso desse momento marcado pela transitoriedade de padres.

    Wernick (citado por CALLIRGOS, 2003, p.215) pesquisa as representaes

    masculinas na publicidade norte-americana nos anos 80 e constata uma maior

    ambigidade em relao a dcadas anteriores, pois surgem novas representaes

    de masculinidade que coexistem com as verses antigas: homens doces, ternos,

    preocupados com os trabalhos domsticos ou com suas relaes interpessoais

    (CALLIRGOS, 2003, p.216), ao lado de esposos e pais patriarcas, aos quais se

    associam autoridade, competncia, racionalidade e tambm violncia. Verifica-se,

    assim, uma constante tenso entre novos e velhos papis de gnero, assim como a

    indita apresentao de comportamentos similares entre homens e mulheres, o que,

    na opinio do autor, sugere que se encare o masculino e o feminino como categorias

    fluidas e no mais como opostas.

    H controvrsias quanto aos reais ganhos: seriam as atuais mudanas de

    comportamento verdadeiras conquistas com vistas a profundas melhorias na

    qualidade das relaes entre os gneros? Hawke (citado por CALLIRGOS, 2003,

    p.217) se pergunta se as expresses simblicas do novo ethos da paternidade no

    podem significar uma rearticulao da masculinidade hegemnica, que aceita fazer

    adaptaes menores s condies sociais contemporneas, e at mesmo a fim de

    satisfazer s demandas de expanso de mercado, com a inteno de reassegurar a

    autoridade patriarcal. Discursos de igualdade vo sendo adotados como oficiais,

    sem que isso implique obrigatoriamente numa ruptura das tradicionais barreiras que

    separam os gneros (CALLIRGOS, 2003, p.217).

  • 33

    Seja como for, a posio de Callirgos a de que algo, de fato, est mudado, e

    o domnio do patriarca mostra fissuras que podem significar um passo adiante na

    direo de uma maior democratizao das relaes humanas. Observa que h

    cada vez mais homens dispostos a questionar as bases em que foram socializados

    e a se desvencilhar da obrigao de ser competitivo, agentar tudo e nunca mostrar

    fragilidade (CALLIRGOS, 2003, p.218). Mas no v essa crise como um processo

    sem contradies. E refora essa idia citando Donald Bell (1987), que estudou as

    mudanas ocorridas no significado da masculinidade entre homens de classe mdia

    nos Estados Unidos e, aps confrontar-se com os mais receptivos, assim como com

    os mais resistentes idia de igualdade entre os gneros, afirma que as vidas

    desses homens esto marcadas por ambigidade: tm recebido mensagens

    contraditrias e incoerentes sobre como se deve ser homem (BELL, 1987, citado

    por CALLIRGOS, 2003, p.218).

    Em tempo, Callirgos nos lembra que, alm dos condicionamentos sociais e de

    sermos construdos historicamente, tambm temos alguma liberdade para

    construirmos a ns mesmos (CALLIRGOS, 2003, p.219). No se podem negar as

    conquistas j feitas em direo igualdade, que favorecem a reconquista de parte

    da nossa humanidade: no caso dos homens, a reconquista de traos suprimidos por

    serem considerados femininos. Mas, para que ningum se iluda com aquelas feitas

    apenas nos planos institucionais, cabe aqui lembrar que as conquistas alcanadas

    no nvel macro-estrutural tm que se dar tambm no mbito da micro-estrutura. E o

    que se percebe que, muitas vezes, ainda se aguarda por uma verdadeira

    assimilao no plano das relaes humanas, onde a experincia efetivamente se d

    seja de opresso ou de libertao. Embora j seja possvel encontrar, por

    exemplo, um homem lutando pelo direito a poder mostrar sua fragilidade e

  • 34

    ternura, e que esses traos deixem de ser considerados femininos

    (CALLIRGOS, 2003, p.219), tambm seria indispensvel, complementarmente,

    que coletivamente lutassem contra o poder e o privilgio recebidos, que

    constelam sua heroicidade. S assim, acredita Callirgos, se pode construir

    uma nova paternidade.

    Dando seqncia inteno de conferir o quanto este fenmeno social se

    generalizou e tem marcado praticamente todos os cantos do mundo ocidental,

    focando de modo especial a maneira como as transformaes concernentes s

    relaes de gneros tm afetado particularmente as prticas, representaes e

    significados em torno da paternidade, apresento agora brevemente os resultados de

    algumas pesquisas realizadas na Amrica Latina, especialmente no campo da

    sociologia.

    Maria Alejandra Velzquez 9 desenvolveu uma pesquisa com o intuito de

    analisar o significado da paternidade em homens mexicanos de classe mdia, e que

    lugar essa experincia ocupa em sua trajetria de vida. Para tanto, levou em conta,

    nas entrevistas realizadas com esses pais, desde os esteretipos de masculinidade

    e paternidade presentes, at as expectativas e vivncias que constroem sua

    subjetividade.

    Velzquez considera as representaes e significados em torno da

    paternidade como um processo sociocultural cujas importantes mudanas, que se

    desenrolaram a partir da dcada de 70, tm levado a questionar o exerccio da

    paternidade na sociedade, atingindo o mbito da intimidade e da subjetividade, tanto

    na relao do casal como no desempenho da funo paterna.

    9 Maria Alejandra Velzquez doutora em sociologia, professora titular na Faculdade de Estudos Superiores Iztacala, na Universidade Nacional Autnoma do Mxico.

  • 35

    O espao da famlia, como campo de socializao, , assim, diretamente

    afetado por isto. Muitos autores tm analisado, desde ento, os processos de

    mudana nos significados das estruturas familiares, onde a referncia quanto

    maternidade e paternidade est sujeita a variaes e transies histricas que a

    sociedade vai imprimindo, em contraposio ao determinismo biolgico a partir do

    qual se universalizam as diferenas.

    De acordo com a autora, esses temas tm sido abordados por estudiosos do

    mundo todo, mas ainda se centra muito o interesse na figura materna e se deixa de

    lado a paterna. necessrio analisar a importncia social da paternidade na

    vida dos homens, na subjetividade masculina, visualizando-os como atores

    sociais em seu processo de construo como homens e como pais

    (VELZQUES, 2004, p.3).

    A meu ver, ela relativiza os condicionamentos ao dizer que h discursos

    normativos e institucionais que conformam as representaes sociais sobre como

    ou deve ser um homem, e um pai, mas h tambm as diferentes formas de assumi-

    los ou no, e as contradies que enfrentam em suas trajetrias de vida. E ilustra,

    com um depoimento corajoso e pleno de contradio frente ao modelo de

    masculinidade hegemnica que promove apenas o desenvolvimento racional

    do homem, induzindo-o a deixar em segundo plano sua vida emocional e

    experincia corporal, consideradas mais femininas: ... sou muito racional, mas

    voc no sabe como me di no poder falar de meus sentimentos... minhas dvidas,

    meus temores, minhas angstias, minhas inseguranas... (VELZQUES, 2004, p.4).

    A experincia da paternidade tende a acentuar conflitos internos nesse

    sentido, por favorecer a emergncia de sentimentos positivos em relao, por

    exemplo, ao ato de cuidar, cujo prazer e desejo nele envolvidos emergem por

  • 36

    estarem estreitamente relacionados com o exerccio da paternidade. Entretanto,

    geralmente os homens no aprenderam a compartilhar seus sentimentos, nem

    mesmo com as pessoas mais prximas, como a companheira, e acabam, com

    freqncia, se protegendo na impessoalidade, contra a vulnerabilidade.

    Ao incorporar a perspectiva de gnero, a autora visualiza todos esses

    processos como parte de uma realidade compartilhada a partir da qual

    maternidade e paternidade se delineiam e se constroem, assim como tambm o

    papel dos filhos, formando parte dessa realidade social multirrelacionada

    (VELZQUES, 2004, p.6).

    Velzquez apresenta inmeras pesquisas feitas na ltima dcada sobre

    paternidade, todas na Amrica Latina, sendo a maioria no Mxico, mas tambm no

    Brasil, Peru e Colmbia. No cabe aqui detalh-las, mas apenas delas extrair, em

    conjunto, uma convico reforada sobre a necessidade de se pesquisar este tema,

    sendo em todos os casos a paternidade apresentada como uma experincia em

    transio, que vem sendo remodelada no enfrentamento de contradies entre as

    novas demandas, por um lado reformatadas em novos discursos de alguma maneira

    assumidos pela coletividade, e as subjetividades possveis, por outro. Destaca-se,

    de um modo geral, a crescente participao dos homens, desde o processo

    reprodutivo onde se inclui, em graus variveis, o desejo por filhos e a maneira

    como so inseridos em seus projetos de vida, at a proximidade no processo

    educativo onde se mesclam os papis de provedor e protetor com o de oferecer

    apoio emocional e afetivo. A paternidade tambm apontada como um

    acontecimento irreversvel que marca a passagem para a vida adulta,

    notadamente pelas responsabilidades que implica, mas tambm pela renncia

    autonomia individual e a necessidade de estabelecer vnculos, sendo essa

  • 37

    experincia apontada como uma realizao pessoal e da qual desfrutam

    emocionalmente. Tudo isso, no se deve esquecer, em meio a imensas

    contradies e conflitos no confronto com os valores tradicionais,

    internalizados como referncias de masculinidade.

    A autora conclui que, para a maioria dos entrevistados, ser pai promove uma

    ressignificao de vida, que vai alm do exerccio do poder, na medida em que lhes

    permite contatar sua companheira e filhos, e tambm suas prprias necessidades

    afetivas como homens, incorporando a parte historicamente negada a partir dos

    esteretipos sociais masculinos. Para encerrar sua contribuio:

    Se a paternidade participa do processo de transio e

    amadurecimento em direo fase adulta como parte da identidade

    nos homens, tambm a paternidade se incorpora na sua

    subjetividade como parte do projeto de vida que dar sentido e

    significado s atividades que desenvolve. Diferente do que a

    literatura tem dito a respeito dos homens, assinalando que

    geralmente no contemplam o desejo de ter filhos e participar de

    maneira prxima no processo de criao e desenvolvimento, pelo

    contrrio, encontramos que a maioria lhe d um lugar importante e

    significativo em seu projeto de vida (Velzquez, 2004, p.10).

    Para encerrar este captulo sobre o cenrio social em que se inscreve hoje a

    experincia da paternidade, quero fazer uma breve meno crescente produo

    que se encontra atualmente sobre o tema nos setores no acadmicos: filmes,

    revistas, blogs e dirios de pais que desejam compartilhar e sugerir a outros pais

    que se abram para a mesma oportunidade. Pais encantados com a prpria

  • 38

    experincia de paternidade se dedicam a registrar (como antigamente muitas vezes

    faziam as mulheres, na privacidade) e divulgar suas experincias, em tom coloquial,

    de leigo para leigo, motivados, ao que tudo indica, pela radicalidade do prazer que

    tal experincia tem lhes proporcionado, e, acima de tudo, por se orgulharem

    dela. Divulgam como uma oportunidade para compartilhar, mas tambm como quem

    espera despertar em outros homens a disponibilidade para uma experincia

    igualmente gratificante e intensa.

    Dentre vrios livros recm lanados destaco dois. Em Pai pai. Dirio de um

    aprendiz o jornalista Luiz Rivoiro, sob a forma de um dirio, narra sua experincia

    cotidiana, desde a notcia da gravidez, acompanhada passo a passo, at o primeiro

    aniversrio de seu filho, acrescido de alguns fatos no segundo ano, que ele chama

    de bnus. Segundo o apresentador do livro, Ricardo Villela, Ser pai , a um s

    tempo, a experincia mais pessoal e mais coletiva que se pode viver, alm de

    ser a melhor parte da sua vida (VILLELA, in: RIVOIRO, 2005). Decises, emoes

    e aprendizagens de um homem, enquanto descobre, com humildade como ele

    mesmo diz para enfrentar a sua ignorncia, como ser pai de primeira viagem,

    acompanhando desde o primeiro ultra-som at as primeiras palavras, destinam-se a

    ser compartilhadas com outros homens em situaes semelhantes, mas tambm

    servem, de acordo com o autor, para ajudar as mulheres a entender melhor o que

    passa na cabea dos homens naquele que o autor qualifica como o momento mais

    importante de suas vidas (RIVOIRO, 2005, p.10).

    O segundo livro a destacar O manual do grvido. Um guia completo e bem

    humorado para voc curtir sua gravidez e sua grvida, escrito por dois jornalistas,

    Cludio Csillag e Humberto Saccomandi. Com finalidade distinta do primeiro, um

    livro mais informativo e educativo, embora tambm inteiramente baseado na

  • 39

    experincia desses autores-pais, tomando o formato de depoimento.

    Assumidamente mais diretivo, tem a explcita finalidade de estimular outros pais a

    serem cada vez mais e mais participativos, comportamento para o qual, segundo os

    autores, os homens no foram at ento preparados. Estimulando a paternidade

    responsvel, nas palavras dos autores, a boa gravidez masculina... tem tudo para

    se transformar em uma das mais agradveis fases de sua vida (CSILLAG, 1999,

    p.9). A deciso desses autores em publicar um livro focado num relato da

    experincia da gravidez do ponto de vista masculino, esteve baseada tambm na

    constatao de que o mercado editorial brasileiro era pobre no assunto, ao contrrio

    de pases europeus e dos Estados Unidos, que abordam mais a gravidez masculina.

    Recentemente foi lanada na Internet uma revista masculina

    www.levingsdivorcemagazine.com inteiramente dedicada aos homens divorciados,

    cuja finalidade , segundo seus editores, abordar os assuntos que mais preocupam

    esse grupo, sem que isso signifique tomar atitudes negativas contra as mulheres.

    Trata de assuntos como relao entre pais e filhos, como otimizar as visitas, os

    esteretipos da famlia tradicional e tambm de aspectos legais. Seu criador

    Jeffery M. Leving, advogado de Chicago em assuntos de direito de famlia, que

    pretende veicular informaes sobre os direitos nessa rea. Diz o editor-chefe Joe

    Englert: Queremos nos conectar com o modo de pensar e as emoes do homem

    divorciado e conclui, com base na boa receptividade da revista, que os homens

    divorciados deste pas no querem ser meros visitantes de seus filhos alguns

    dias por semana ou por ms, mas sim participar da criao de seus filhos (MARTIN,

    29/10/2005).

  • 40

    Como se nota, o fenmeno das transformaes que vm atingindo o papel de

    pai, em consonncia com as reformulaes sobre o significado da paternidade,

    reverbera tanto na dimenso coletiva, como no mbito privado da vida cotidiana.

    Tendo atingido tal dimenso, vejamos como a psicologia o tem abordado.

  • 41

    2. O TEMA DA PATERNIDADE NA PSICOLOGIA

    A psicologia, em sua histria por mais de um sculo, desenvolveu pesquisas

    e produziu um grande nmero de captulos sobre a importncia da me no

    desenvolvimento psicolgico da criana, enquanto o pai recebia relativamente pouca

    ateno por parte dos pesquisadores. Recentemente, eu diria que pelo menos das

    dcadas de 80, e, com maior expressividade, de 90 para c, o pai tem despertado

    maior interesse e suscitado vrios estudos que esto fornecendo j alguma

    bibliografia significativa sobre o tema.

    Nas produes tericas desenvolvidas ao longo desse sculo, onde se

    destacou a abordagem psicanaltica, o espao reservado ao pai, no que tange ao

    processo do filho, foi e tem sido definido basicamente em duas funes: em primeiro

    lugar, a de interditar o vnculo com a me, impedindo que se prolongue

    indefinidamente a natureza simbitica dessa relao dual, que visa

    preponderantemente a obteno do prazer com a satisfao das necessidades do

    filho; e, em segundo lugar, concomitante com a primeira funo, a de introduzir o

    filho no mundo da Lei, desenvolvendo com isso a linguagem, a noo de limites

    e o recurso da discriminao, trs elementos preponderantes para sua

    insero na cultura.

    Essa foi uma grande contribuio da psicanlise para a nossa compreenso

    do lugar do pai na famlia e na sociedade. E tornou-se praticamente um consenso

    considerar o pai (entendido aqui no apenas como pai biolgico, mas como funo

    paterna) como uma figura tambm determinante no crescimento do filho, ao lado da

    me, por desempenhar principalmente o papel de inseri-lo no mundo mais amplo e

    promover sua adaptao social, sendo essa viso inclusive compartilhada por outras

  • 42

    escolas em psicologia. Cabe aqui esclarecer que no pretendo, com isso, sugerir

    que a psicanlise tenha reduzido a funo paterna a um desempenho de papis no

    plano da exterioridade, pois essa teoria, pelo contrrio, pretende demonstrar que o

    substrato psquico dessa interao pai-filho diz respeito estruturao do superego,

    que adentra outras esferas mais complexas como a dos dinamismos psquicos e a

    da constituio do sujeito. Entretanto, o lugar reservado ao pai, nessa concepo,

    parece equivaler, de certa forma, ao que, na conceituao junguiana, seria apontado

    como um desempenho de funes arquetpicas, e, mais especificamente, aquelas

    relativas ao chamado dinamismo patriarcal. 10

    A prtica clnica tem me permitido observar e levantar questes sobre o

    quanto e o modo como o pai interfere na estruturao geral da psique do filho, na

    construo da identidade e da estabilidade emocional, positiva ou negativamente. E,

    nesse sentido, o que parece se destacar nos depoimentos que tenho presenciado

    em atendimento, mais do que a relao do filho com o pai em seu papel patriarcal,

    so os momentos em que o filho tem acesso ao seu pai apresentado de maneira

    pessoal e humanizada, com direito aos prprios sentimentos. O modo subjetivo

    como o pai se expe ao filho e exerce seus papis, sejam eles desenvolvidos dentro

    de um padro patriarcal ou no, o que parece marcar a subjetividade do filho. E

    tambm a maneira como o pai percebe o filho em sua subjetividade, lhe d

    retorno e o confirma seja de forma positiva ou no faz significativa

    diferena na experincia desse relacionamento, interferindo tanto na constituio

    da subjetividade do filho, quanto na permanente reconstruo da subjetividade

    paterna.

    10 Alguns conceitos desenvolvidos pela teoria junguiana so neste capitulo brevemente mencionados, mas sero retomados e apresentados no captulo Referencial Terico. o caso, aqui, de funes arquetpicas e dinamismo patriarcal.

  • 43

    Tais observaes se constituem, por ora, nas bases a partir das quais se

    delineiam as hipteses e perguntas que do suporte elaborao da pesquisa aqui

    desenvolvida. Tem sido grande a satisfao de encontrar interlocuo entre esse

    posicionamento decorrente de uma leitura, ainda em construo, das novas

    configuraes sociais e familiares que vm ressignificando a figura do pai, e estudos

    mais recentes, junguianos ou no, acerca do pai na nossa cultura. Para exemplificar,

    apresento brevemente alguns autores, sendo que um pequeno nmero deles ser

    retomado mais adiante, e suas idias, desenvolvidas.

    Para iniciar, menciono a coletnea The Father, organizada pelo junguiano

    Samuels (1986), que apresenta uma srie de artigos, em sua maioria de analistas

    junguianos, mas que, em alguns momentos, fazem aproximaes com a psicanlise,

    explorando temticas relativas ao pai, quase todos numa abordagem clnica. O livro

    fecha com a retomada do captulo de Jung dedicado ao pai, A importncia do pai no

    destino do indivduo, escrito em 1909 e revisto por ele em 1949.

    Ao levar em conta a presena da imagem do pai na anlise, a coletnea

    contribui para reflexes em torno do pai, num sentido mais amplo. Detendo-se

    particularmente no processo analtico, onde imagens do pai so projetadas pelos

    pacientes sobre os analistas, Samuels sugere que o analista desempenha a

    funo de humanizar tais imagens. Se recebe projees do pai arquetpico

    interno, deve entrar na famlia interna do paciente para, atravs do relacionamento

    teraputico, mediar a relao com o seu imaginrio (SAMUELS, 1986, p.41).

    O conjunto dos artigos levanta um vasto material clnico a partir do qual

    Samuels lista, em pares, as principais polaridades de imagens do pai que se

    revelam, na transferncia ou contratransferncia, e que certamente no estaro

    ativas na anlise ao mesmo tempo. A saber: ter um pai / ser um pai; pai arquetpico /

  • 44

    pai pessoal; pai interno / pai externo; pai castrador / pai facilitador; pai forte / pai

    fraco; pai ertico / pai inibido; pai espiritual / pai incestuoso (SAMUELS, 1986, p.42).

    Desse livro quero destacar o artigo do psicanalista W. Ralph Layland, que

    examina o conceito de pai amoroso baseado em material clnico. Reflexes ao

    longo do trabalho desenvolvido com dois pacientes homens, com medo de serem

    homossexuais, levaram-no a compreender que ambos procuravam por um pai

    amoroso. Sugere que o papel do pai amoroso est na capacidade de aceitar que

    o filho demonstre seus desejos, necessidades, fantasias e sentimentos,

    mesmo sem esperar que a criana lide com suas prprias necessidades

    inconscientes (LAYLAND, in: SAMUELS, 1986, p.168). Define esta como uma das

    qualidades do pai pr-edpico, o suficientemente bom, em dilogo com o conceito

    de me boa o suficiente de Winnicott (1960) 11 (LAYLAND, in: SAMUELS, 1986,

    p.154-157).

    Layland enfatiza que importante no pensar o pai como um substituto

    da me, pois seria negar-lhe o direito ao seu prprio papel, e tambm negar

    criana a capacidade de experienci-lo como algo diferente da me. Esse artigo

    pretende ainda demonstrar o quanto problemas psicolgicos no resolvidos com

    o prprio pai interferem no desempenho desse papel como pai amoroso

    (LAYLAND, in: SAMUELS, 1986, p.167).

    Um paralelo pode ser feito entre a postura de pai que Layland quer destacar

    como saudvel e aquela que corresponderia, na abordagem junguiana

    complementada pela perspectiva de desenvolvimento de Byington (1986), ao

    dinamismo da alteridade, favorecendo a manifestao de outros aspectos do

    11 Esta idia do pai amoroso ou suficientemente bom identificada como uma das qualidades do pai pr-edpico, dever ser retomada no captulo Referencial Terico, quando a compreenso de Carlos Byington sobre desenvolvimento for apresentada, com a finalidade de enfatizar, comparativamente, o carter no regressivo que isso adquire na perspectiva de Byington.

  • 45

    arqutipo paterno alm do tradicional papel patriarcal, enfatizado na cultura

    ocidental. 12

    Na mesma direo, pesquisas acadmicas vm sendo desenvolvidas na rea

    de psicologia clnica, em So Paulo, nos ltimos anos Donha (1998), Faria (2001)

    e Lima F (2002) focalizando justamente a paternidade em transformao, tendo

    em conta a constelao de uma nova subjetividade masculina. Enquanto a

    dissertao de mestrado de Marcus Cezar Donha (1998) estuda a relao pai-filho e

    seus reflexos na subjetividade do homem atual, na tese de doutorado de Durval Luiz

    de Faria (2001), publicada sob o ttulo O Pai Possvel. Conflitos da paternidade

    contempornea (2003), o interesse se centra no processo de individuao

    masculino vivenciado a partir do enfrentamento e elaborao de conflitos que

    envolvem a paternidade tema abordado pela pesquisa aqui desenvolvida. J

    Alberto Pereira Lima Filho, em sua tese de doutorado publicada no livro O Pai e a

    Psique (2002), questiona o restrito papel atribudo ao pai como transmissor da

    tradio e da lei e se prope a verificar as contribuies e o significado do pai, ao

    lado da me, para a constituio do homem e da mulher, em duas esferas: como

    uma das bases do inconsciente, e na estruturao da conscincia.

    Foi de grande valor para a minha pesquisa a leitura da cuidadosa retomada

    que Lima F faz das contribuies, particularmente de Carlos Byington, e tambm de

    Erich Neumann, dentro da perspectiva do desenvolvimento, onde investiga a funo

    arquetpica do pai na vida psquica, discernindo-a do pai pessoal.

    Sobre essa perspectiva de desenvolvimento descrita por Carlos Byington

    (1986) como perspectiva evolutivo-estrutural, Lima expe de forma precisa e

    sinttica, sem perder em profundidade, conceitos que sero por mim retomados no

    12 Tais conceitos, especficos da teoria adotada neste trabalho, como o dinamismo da alteridade e arqutipo paterno sero no prximo captulo melhor explicados.

  • 46

    prximo captulo, onde me comprometo de forma mais explcita com a abordagem

    terica que embasa a presente pesquisa.

    Focando seus estudos prioritariamente no ciclo patriarcal, o autor aponta a

    fundamental importncia do dinamismo paterno, no desempenho de suas funes

    de interditar e fiscalizar a lei, como estruturante da psique dos filhos, a ponto de

    consider-lo responsvel por grande parte do processo de humanizao (LIMA F,

    2002, p.18). Mas cuida tambm de discernir o efeito lesivo de seus excessos, no

    sentido de abusar do poder, manipular ou enrijecer a lei, prolongando mais do que o

    necessrio o controle centralizador da figura paterna, assim como de suas omisses,

    quando se abstm do exerccio de interditar e orientar, trazendo conseqncias para

    o processo de amadurecimento psicolgico, como indiscriminao, infantilizao,

    perverso e outras condies que comprometem a individuao. Mesmo

    considerando os perigos includos como possibilidades no exerccio e nos

    descaminhos do dinamismo paterno, em meio aos benefcios, afirma que o

    passaporte para a alteridade carimbado com as marcas positivas da funo

    paterna (LIMA F, 2002, p.18).

    O psicanalista Bernard This (1987), um dos pioneiros na psicoprofilaxia e

    psicoterapia obsttricas, j em 1980 argumentava a favor do papel essencial do pai,

    desde a gravidez e o parto at sua participao e presena protetora e amorosa no

    desenvolvimento do filho. Seu trabalho segue na contramo da tradicional excluso

    do pai, at ento, dos assuntos relativos gravidez que, segundo ele, costumavam

    ser (mais naquela poca do que agora, mas ainda hoje, em graus variveis,

    conforme o contexto scio-cultural) um assunto exclusivo da mulher com seu

    mdico, sendo o pai eliminado do processo e tratado como um estorvo.

  • 47

    Como se v, j h mudanas significativas dos anos 80 para c, mas o

    sentimento de excluso ainda se faz presente, de forma algumas vezes bastante

    ressentida por parte dos homens. Isto tem levado, mais recentemente, alguns casais

    a fazerem a opo pelo parto domiciliar, por ser considerada esta uma alternativa

    que favorece a busca da participao total por parte do pai no momento do

    parto.

    Motivada pelas mesmas preocupaes, a psicloga Maria Tereza Maldonado

    j vinha desde os anos 70 trabalhando com a psicologia da gravidez, parto e

    puerprio, visando desenvolver um atendimento ao casal que espera um filho, numa

    abordagem que, indo alm do aspecto somtico, cuide tambm do emocional.

    Procurando fazer frente crescente dissociao que se verifica entre o somtico e o

    emocional no atendimento clnico, decorrente da evoluo tecnolgica e valorizao

    das especializaes muito em voga na poca, publica o livro Psicologia da gravidez,

    parto e puerprio (1976, 1 ed.), onde apresenta uma caracterizao dos principais

    aspectos psicolgicos da gravidez, a fim de sensibilizar os profissionais de sade

    ligados a essa temtica. Faz tambm uma reviso crtica dos estudos sobre os

    aspectos psicossomticos da gravidez e parto, bem como dos principais mtodos de

    preparao para o parto utilizados na poca, para em seguida propor o que ela

    chama de preparao psicolgico-educacional (IPE). Desenvolve esse trabalho

    com pequenos grupos de casais ou s de gestantes, cuja nfase est menos nas

    informaes racionais e mais na elaborao das vivncias emocionais, visando

    garantir um reasseguramento com relao s ambivalncias afetivas expressas.

    Esse trabalho, cujos objetivos bsicos so a preparao para a maternidade

    e paternidade, a reduo do nvel de ansiedade no ciclo grvido-puerperal e o

    alcance de novos nveis de integrao e amadurecimento da personalidade

  • 48

    (MALDONADO, 1977, p.101), embora inclua o homem e faa referncia ao impacto

    da gravidez na estrutura familiar, parece ser ainda bastante focado na gestante, uma

    vez que, numa perspectiva de preveno primria, visa o fortalecimento e a sade

    do vnculo me-beb. A partir da concepo de que a maternidade um momento

    existencial extremamente importante no ciclo vital feminino que pode dar mulher a

    oportunidade de atingir novos nveis de integrao e desenvolvimento da

    personalidade (MALDONADO, 1977, p.9), a autora prioriza a gravidez como um

    momento de formao do vnculo materno-filial e reestruturao da rede de

    intercomunicao da famlia ponto de partida de um novo equilbrio dinmico da

    unidade familiar (MALDONADO, 1977, p.9).

    Em seguida, Maldonado se alia ao obstetra Jean Claude Nahoum e ao

    pediatra Julio Dickstein e juntos publicam o livro Ns estamos grvidos (1985, 5

    ed.), com a inteno de, efetivamente, incluir o pai. Numa linguagem dirigida ao

    leigo, o livro se prope a informar, acolher e orientar homens e mulheres, ajudando-

    os a compreender a complexidade e a riqueza das mudanas que os

    transformam em pais e mes (MALDONADO, NAHOUM e DICKSTEIN, 1985, p.5).

    Para esse fim, os autores cuidam de veicular as informaes de forma nada tcnica,

    visando integrao desses contedos com as reverberaes emocionais que eles

    evocam.

    Ao tratar dos complexos processos que se desenrolam na mulher e no

    homem que esperam um filho, ao mesmo tempo procuram lembr-los que, na

    verdade, o relacionamento entre pais e beb comeou na prpria infncia e

    adolescncia dos adultos, quando, atravs das fantasias, j potencializavam a

    ligao com o filho (MALDONADO, NAHOUM e DICKSTEIN, 1985, p.9).

  • 49

    O livro aborda temas at ento pouco cuidados, como o homem no ps-

    parto, e o contato direto do pai com o filho bastante valorizado, indo bem

    alm de estimular o homem a dar apoio sua mulher. Alm disso, o texto cria um

    clima favorvel para a compreenso das ambivalncias afetivas de ambos os

    pais em relao ao filho, bem como para o acolhimento das dificuldades

    emocionais, particularmente as dos homens, numa iniciativa mpar, se pensarmos

    que ela se deu h quase 30 anos (a 1 edio de 1978). Encarando com

    naturalidade os grandes conflitos que so vivenciados ante s to freqentes

    quebras das idealizaes e mesmo decepes que ocorrem nesse perodo de vida,

    seja com relao ao filho, seja referente ao prprio relacionamento conjugal, que

    inclui agora os papis de pai e me, o livro consegue, com seu sucesso de venda,

    mesmo dirigindo-se aos pais, semear entre os profissionais da rea a necessidade

    de multiplicar a oferta de servios nesse sentido.

    Com relao a esse tema dos papis de pai e me, tenho encontrado na rea

    da psicologia social algumas pesquisas que, indo a campo, enfrentam certos mitos

    com relao s to enfatizadas mudanas que estariam em curso, como se elas

    estivessem destronando os modelos da cultura patriarcal.

    Alguns pesquisadores em psicologia social tm observado que, se na vida

    pblica os papis de homem e mulher na sociedade ocidental efetivamente se

    assemelharam, no interior das famlias ainda encontramos atribuies de

    papis parentais claramente distintos. Benedito Medrado (1998), em sua

    pesquisa sobre as imagens dos homens veiculadas pela mdia particularmente na

    arena do cuidado infantil, demonstra isso explorando figuras de linguagem muito

    expressivas da nossa cultura popular, como levo papai no bolso e mame no

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    corao (MEDRADO, 1998, p.152), herdadas e ainda presentes, que preservam a

    imagem tradicional de ambos como representantes de suportes bastante distintos:

    cabendo ao pai o material e me o emocional.

    Seu levantamento de material publicitrio revela profundas ambigidades

    presentes nas mensagens: de um lado, essa concepo de participao mais

    efetiva dos homens no cotidiano familiar (MEDRADO, 1998, p.154) vem sendo

    veiculada j h pelo menos trs dcadas como um valor em nome da chamada

    nova paternidade; de outro, a publicidade transmite e refora o que h de mais

    trad