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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489. O RAMBO RUSSO: A DESMONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI AMERICANO E A MONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI SOVIÉTICO ATRAVÉS DO CINEMA 1 Moisés Wagner Franciscon 2 Resumo: O sucesso internacional da série Rambo e sua gritante mensagem antissoviética possibilitou à URSS a oportunidade de produzir um filme de ação nos mesmos moldes, desconstruindo o discurso americano e enaltecendo a autoimagem do país. Nesse processo, os soviéticos construíram e reafirmaram a representação que faziam dos Estados Unidos. Misto de propaganda oficial e de exigência do sistema de produção cinematográfico, como seu similar ocidental, Odinochnoye Plavaniye permite uma maior aproximação com a complexidade da sociedade soviética, geralmente ocultada pelas teorias do totalitarismo. Para sua análise foi empregada a história social do cinema de Marc Ferro, juntamente com os conceitos de monumentalização e desmonumentalização de Marcos Napolitano. Palavras-chaves: Cinema. Monumentalização. Desmonumentalização. União Soviética. Abstract: The international success of the Rambo series and its blatant anti-Soviet message has enabled the USSR the opportunity to produce an action movie in the same way, deconstructing the American discourse and praising the self-image of the country. In this process, the Soviets built and reaffirmed the representation made over the United States. Mixed official propaganda and requirement of cinematic production system similar to its western, Odinochnoye Plavaniye allows a closer relationship with the complexity of Soviet society, usually hidden by the theories of totalitarianism. For their analysis was employed the social history of 1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 23/11/2013. 2 Mestre em História Política e Movimentos Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected].

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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489.

O RAMBO RUSSO: A DESMONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI AMERICANO E A

MONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI SOVIÉTICO ATRAVÉS DO CINEMA1

Moisés Wagner Franciscon2

Resumo: O sucesso internacional da série Rambo e sua gritante mensagem

antissoviética possibilitou à URSS a oportunidade de produzir um filme de ação

nos mesmos moldes, desconstruindo o discurso americano e enaltecendo a

autoimagem do país. Nesse processo, os soviéticos construíram e reafirmaram a

representação que faziam dos Estados Unidos. Misto de propaganda oficial e de

exigência do sistema de produção cinematográfico, como seu similar ocidental,

Odinochnoye Plavaniye permite uma maior aproximação com a complexidade da

sociedade soviética, geralmente ocultada pelas teorias do totalitarismo. Para sua

análise foi empregada a história social do cinema de Marc Ferro, juntamente com

os conceitos de monumentalização e desmonumentalização de Marcos Napolitano.

Palavras-chaves: Cinema. Monumentalização. Desmonumentalização. União

Soviética.

Abstract: The international success of the Rambo series and its blatant anti-Soviet

message has enabled the USSR the opportunity to produce an action movie in the

same way, deconstructing the American discourse and praising the self-image of

the country. In this process, the Soviets built and reaffirmed the representation

made over the United States. Mixed official propaganda and requirement of

cinematic production system similar to its western, Odinochnoye Plavaniye allows a

closer relationship with the complexity of Soviet society, usually hidden by the

theories of totalitarianism. For their analysis was employed the social history of

1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 23/11/2013.

2 Mestre em História Política e Movimentos Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail:

[email protected].

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film by Marc Ferro, along with the concepts of monumentalization and

demonumentalization of Marcos Napolitano.

Keywords: Cine. Monumentalization. Demonumentalization. Soviet Union.

INTRODUÇÃO

Odinochnoye Plavaniye recebeu diferentes nomes, até mais de dois, segundo

o país em que foi exibido: The russian hero, The detache dmission, Solo Voyage:

the revange, Le soviet, Sovit: la respuesta. A melhor tradução seria “Viagem

solitária”. É um filme soviético de fins de 1985, dirigido pelo georgiano Mikhail

Tumanishvili e é considerado como a versão russa de Rambo. Quando os

distribuidores internacionais passaram a acrescentar o subtítulo de “revanche”,

puderam descrever bem ao filme. A obra se insere como mais um capítulo da

rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética no período conhecido como

Segunda Guerra Fria (HALLIDAY, 1983). Promove a desconstrução da imagem do

herói americano (bem como da imagem que os soviéticos faziam do americano

típico) a partir da própria visão tradicional soviética de heroísmo. Como gênero, se

assemelha a uma forma híbrida entre o realismo socialista praticado na URSS e o

filme de ação americano. A rivalidade em sua composição impôs a absorção de

elementos do cinema do inimigo ideológico.

O discurso embutido no filme é melhor percebido com o uso dos conceitos

de monumentalização e de desmonumentalização na escrita fílmica, de Marcos

Napolitano. Como produto social e também um olhar de uma sociedade sobre

outra, a teoria da história social do cinema de Marc Ferro, possui um papel

importante e necessário para a análise do filme.

Odinochnoye Plavaniye não trata de eventos históricos passados, mas de

eventos ficcionais baseados no presente, que procuram prender e dar a dimensão

ao expectador da tensão política existente na primeira metade dos anos 1980, bem

como do alegado pacifismo soviético e do belicismo americano. Pode ser

considerado, portanto, obra de propaganda? O cinema ocidental costuma não ser

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visto como obra de propaganda política. Seus criadores, estúdios, orçamento,

dependem da iniciativa e de recursos privados. O avesso do sistema de produção

soviético, em que os diversos estúdios de cinema são empresas estatais, geridos

por agências centrais encarregadas da burocracia e da censura, dependentes do

crédito e das encomendas governamentais. A filiação entre cinema e regime é

muito mais palpável na URSS que nos Estados Unidos. Como ponto final,

argumenta-se que a indústria cinematográfica ocidental curva-se ao mercado – os

estúdios produzem o que o consumidor quer ver. Se Rambo foi um sucesso, isso se

deve unicamente às massas de expectadores americanos ávidos por violência e

mensagens conservadoras e nacionalistas. Justifica-se que o cinema soviético seja

percebido apenas como propaganda porque o regime utilizava agências

declaradamente de propaganda para seu fomento ou que era um regime que a tudo

politizou (TAYLOR, 1998), pelo uso confesso pelos líderes (PEREIRA, 2012) ou

ainda pela extensão econômica do Estado (OVERY, 2009). O termo traz um aspecto

vazio e artificial, como se nada no cinema fizesse parte também do imaginário

social, das massas que participaram da luta armada ou da construção do socialismo

e se identificassem com o que foi produzido3. Ou então como algo que penetra no

indivíduo, com uma transmissão plena, sem releituras, interpretações ou negações.

Maria Helena Capelato entende a propaganda do Estado no cinema como a

tentativa de causar emoções por meio da narrativa fílmica, não para transmitir

uma mensagem clara, mas para produzir determinados efeitos pretendidos sobre

as massas, como seu apoio. O sucesso da propaganda política não consiste na

lavagem cerebral, mas sim em sua vinculação e em sua capacidade de apreensão

do momento, em seu apelo junto às massas. O sucesso desse tipo de campanha

pode ser de tal ordem que a propaganda possa fazer parte dos pilares de

sustentação do regime. Mas ela não nasce nem se sustenta do nada, da pura

retórica (CAPELATO, 1999, p.170; 178). Mas o uso dos sentimentos não foi

monopólio do cinema dito totalitário. Basta lembrar-se do próprio material sobre o

3 Isso fica bem claro com a definição dada por Taylor: “‘Propapanda’ é concernente com a transmissão de idéias e/ou valores deuma pessoa, ou grupo de pessoas, para outro. Onde a ‘propagação’ é a ação, a ‘propaganda’ é a atividade. seria, portanto, sensato, em vez de analisá-la em um plano mais abstrato para uma definição mais satisfatória, começar com as particularidades eexaminar mais de pertoas várias fases do processo de transmissão” (TAYLOR, 1998, p.7).

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qual Odinochnoye Plavaniye foi elaborado: Rambo presencia seus compatriotas em

inanição serem espancados por soldados vietnamitas bem armados, uma jovem ser

assassinada e,o menino-soldado que luta contra os ocupantes soviéticos. Enredos

que não possuem diferença profunda com filmes como o stalinista Padeniye Berlina

ou o nazista: O jovem hitlerista Quex. Inimigos demonizados, ideais defendidos pelo

regime enaltecidos. Qual é, portanto, a diferença entre alguns produtos do cinema

das democracias liberais e o dos regimes que se afirma serem totalitários?

Os interesses do Estado podem se expressar no cinema de diferentes

formas, sem ser necessária uma ligação umbilical com o mesmo. Principalmente se

o considerarmos como instituição controlada por facções pertencentes à classe

dominante, da mesma forma que esta pode controlar os estúdios – propriedade

sua, e o trabalho dos diretores – em última instância, seus empregados. A

propaganda de bens de consumo, uma necessidade no modelo americano de

cinema, principalmente com o surgimento como blockbusters e suas exigências de

financiamento, também continham em seu âmago mensagens do sistema

econômico. O que Capelato (1999, p.177) afirma para o Estado Novo e os

fascismos, de que ideias e mercadorias eram vendidas concomitantemente,

também vale para a produção cinematográfica americana. Silva (2009), amparado

nos referenciais gramscianos, aponta para a propagação dos ideais conservadores

já existentes em amplos segmentos da sociedade e do meio político americanos

para outros campos dessa mesma sociedade e para outros países. O mesmo se

pode afirmar da produção soviética. Ela não era algo aéreo, com mensagens

deslocadas de sua sociedade, o que o tornariam uma voz oca e contrária aos

interesses do regime. Por essa visão, o cinema no ocidente ou no leste mais se

assemelha do que se distancia como afirma Marc Ferro:

Desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferenças se situam ao nível da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As autoridades, sejam as representantes do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autônomo, agindo como contra-poder [...]. Esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a serviço de uma causa, de

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uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias ideias (FERRO, 1992a, p. 13-14).

O argumento do mercado todo poderoso para a produção ocidental e da

plena liberdade do diretor tem falhas essenciais. Não explicam, por exemplo,

decepções com o público pagante ou com as pressões que retiraram dos diretores

poder real sobre a produção desde o surgimento dos executivos de Hollywood4.

Tampouco os soviéticos não enfrentavam qualquer desafio similar. Como o Plano

Quinquenal estipulava, além do orçamento dos filmes, fornecedores, preços dos

ingressos, também estimativas para a audiência nas salas de exibição (KENEZ,

2008). Esse mercado imposto na prática obrigava os estúdios a rodar filmes com

algum apelo popular. Essa pressão aumentou a partir dos anos 1960, quando o

financiamento da indústria cinematográfica passou a enfrentar a ameaça

representada pela diminuição de público pagante e os estúdios das repúblicas

soviéticas aumentaram sua produção mas majoraram seus prejuízos. O cinema de

entretenimento, sempre o mais apreciado pelas massas soviéticas, teve um

incremento nas comédias – que costumavam ter o maior público – e no até então

menos frequente gênero de filmes de aventuras. Concomitantemente, os cineastas

e produtores discutiam se o cinema deveria ser comercial ou autoral, refinado ou

destinado às massas (BEUMERS, 2009, p.146-149). O desenvolvimento dos filmes

de ação soviéticos, como um gênero destacado do cinema bélico, ou, como prefere

Troncale, kinovoeniana (LAWTON, 1992, p.192), demonstra a maior força da

última corrente.

Napolitano, pensa no filme político ou filme de propaganda dentro de

limites bem mais estreitos. Para ele, o filme político caracterizado por ser

propagandístico e apoteótico não é algo tão comum quanto se pode imaginar. É

difícil conceituar um filme assim porque todos trazem uma visão ideológica,

4 Antes da concepção do cinema como indústria e linha de montagem, o diretor poderia decidir desde o orçamento – sempre alongando mais e mais as filmagens e gerando novas necessidades, quanto a duração da obra ou toda e qualquer alteração no roteiro. Os empresários recorreram à industrialização e aos executivos como forma de tomar o controle dos diretores, assegurando assim seu lucro e impondo tudo o que julgassem necessário para a preservação deste (PEREIRA, 2012).

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declarada, latente ou secund|ria. Filmes políticos devem ser aqueles “nos quais o

tema da política é o eixo do roteiro e da narrativa” (NAPOLITANO, 2011, p.83).

TRAMA, MONUMENTALIZAÇÃO E DESMONUMENTALIZAÇÃO

Odinochnoye Plavaniye inicia-se com uma introdução às operações

secretas da CIA. Explica que elas são atividades dirigidas contra nações

estrangeiras, orquestradas de tal forma que jamais a culpa dessas ações recaem

sobre os Estados Unidos. Seguem-se imagens do porta-aviões nuclear Nimitz. Um

reportar da fictícia rede de TV ASB, na ponte do porta-aviões, diz que exercícios

militares na junção dos oceanos pacífico e índico reuniram os países membros da

OTAN, sob a batuta americana. Simultaneamente, os soviéticos realizariam seus

próprios exercícios militares com a esquadra do pacífico. Os dois lados vigiam-se e

o clima é tenso. Um incidente poderia desencadear uma guerra. Ao mesmo tempo

as lideranças das superpotências planejam um encontro para tratar do

desarmamento.

A cena seguinte passa-se na Flórida. O major Jack Hessalt (interpretado

pelo ator letão Arnis Licitis) tem um encontro com o alto escalão da CIA,

encabeçado por Frank Crowder (o também letão Janis Melderis). Hessalt e seu

braço direito, o sargento Eddie Griffith (Nikolay Lavrov), são mercenários que são

periodicamente usados pela CIA em suas operações secretas. Hessalt é

atormentado pelas lembranças de sua última ação no Vietnã, onde comandava

missões punitivas que incendiavam aldeias e matavam os camponeses. Crowder

oferece uma última missão. Enquanto entretém os mercenários com dançarinas

cubanas exiladas, revela a existência de um arquipélago não mapeado próximo do

local de realização dos exercícios militares das esquadras da OTAN e da URSS. Foi

construída uma base militar no local, controlando todo o tráfego marítimo entre os

dois oceanos. Era guarnecida por um submarino e dois barcos lança-mísseis.

Continha silos atômicos equipados com míssil Cruise de longo alcance. Um míssil

com carga convencional deveria ser empregado contra um navio de passageiros da

rota San Diego-Cingapura. Após dispensá-los, em reunião com outro agente, revela

seus planos de eliminá-los para manter a operação em segredo absoluto: “De que

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você tem pena, Michael? O maldito é um sádico. Incendiou toda uma aldeia perto

de Saigon, cheia desses amarelos”.

A cena seguinte ocorre num campo de golfe. Grandes magnatas do

complexo industrial-militar americano, em meio a seu jogo, comentam e defendem

a operação planejada pela CIA. Como maiores interessados e patronos da operação,

temem o fim dos contratos governamentais com suas empresas, o fim das

pesquisas com o sistema de defesa estratégico, ou Guerra nas Estrelas, bem como

outros programas como; mísseis intercontinentais, a ampliação da frota, os

bombardeiros B1 e F-117 Stealth. O preço da amizade entre os povos seria de 460

bilhões de dólares e o trabalho de 1/5 dos americanos. Tendo em mãos a manchete

dos jornais para os próximos dias, preveem que o ataque ao cruzeiro de Cingapura

colocaria a opinião pública mundial contra os soviéticos e contra os encontros

diplomáticos pelo desarmamento.

O expectador é apresentado ao major Shatokhin (Mikhail Nozhkin) e ao

seu pelotão da infantaria naval, “marines” soviéticos apelidados de cassacos negros

devido aos seus uniformes. Após meses em alto-mar, numa viagem solitária, sua

fragata toma parte nos exercícios militares antes de regressar à União Soviética.

Seu regresso é adiado quando são chamados pelo Alto Comando para resgatarem

um casal de americanos naufragados no arquipélago. Seu barco foi destruído pelo

míssil lançado pelos homens de Hessalt numa tentativa frustrada de atingir o

cruzeiro. Os almirantes soviéticos sabem que a explicação para o disparo do míssil

está nessa ilha, que ela é de importância geoestratégica para a URSS por controlar

as rotas marítimas essenciais para o país5 e para lá enviam os fuzileiros de

Shatokhin.

Após tentar eliminar os náufragos americanos, Hessalt desenvolve um

plano contra Crowder. Ele sabe o verdadeiro significado de sua última missão para

a CIA e confidencia a Griffith que serão eliminados assim que a operação for

realizada. Tomam de assalto a base, metralhando os soldados pertencentes à força

aérea americana. Instalam uma carga atômica num míssil cruise e decidem

5 Em uma época em que a passagem nordeste do Ártico ainda era impraticável pelo gelo, a URSS dependia da navegação de circunavegação da África e da Ásia para ligar seus portos europeus aos do extremo oriente asiático.

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bombardear a esquadra soviética, iniciando uma guerra no Pacífico. A CIA e as

forças armadas decidem varrer o pequeno arquipélago do mapa com um

bombardeio feito por um B2, que levará horas para chegar. Shatokhin derrota os

homens de Hessalt nos arredores da base para em seguida adentrá-la. Impedem o

lançamento, e com a ajuda de sua fragata, derrotam o submarino e os dois barcos

lança mísseis.

Após uma década de arrefecimento nas relações entre as superpotências,

marcada pelos encontros entre seus líderes e a assinatura de acordos

desarmamentistas, de limite territoriais, de direitos humanos ou que punham

limites à corrida militar estratégica, entre 1969 e 1979 (como os acordos SALT I, II

e o Tratado de Helsinque), os revesses dos Estados Unidos na política externa –

sempre explicados pelos setores conservadores americanos como obra de Moscou

– a eleição de Reagan e a expansão do campo formado por países socialistas no

Terceiro Mundo levaram ao fim do período da Détente e ao início da Segunda

Guerra Fria (HALLYDAY, 1993). A tensão chegou ao limite entre os anos de 1982 e

1983. Em 1982 EUA e URSS, utilizando respectivamente a OTAN e o Pacto de

Varsóvia, empreenderam grandes exercícios militares junto à Cortina de Ferro sem

prévio aviso, gerando a apreensão em cada um dos lados de uma invasão iminente.

Em 1983, o voo 007 da Korean Airlines invadiu o espaço aéreo soviético e

sobrevoou importantes bases militares secretas na península da Kamchatka.

Abordado por caças soviéticos, a tripulação não respondeu à exigência de mudar

sua rota. O avião foi derrubado, causando a morte de 269 pessoas. Ronald Reagan

logo em seguida ao incidente acusou a URSS de ser o império do mal, em seu

célebre discurso. Os soviéticos alegaram imaginar que se tratasse de um avião

espião e não de um Boeing 747. Em seguida, afirmaram que o voo de nome

sugestivo tratava-se de uma missão secreta promovida pelos EUA e pela ditadura

sul-coreana que empregava os passageiros como escudo humano. A crise dos

euromísseis levou centenas de milhares de cidadãos dos Estados Unidos e da

Europa Ocidental às ruas, insatisfeitos por verem a OTAN implantar silos nucleares

nos países europeus membros ou por verem os impostos cobrados por Reagan

terem esse destino. Ainda no mesmo ano, a garotinha americana Samantha Smith,

que virara um ícone dos movimentos pacifistas após escrever uma carta para o

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secretário-geral do PCUS Yuri Andropov, morreu em um acidente aéreo em solo

americano. Esses acontecimentos formam o argumento do filme.

Para Rosenstone, o cineasta que produz filmes do gênero de época, filmes

históricos, faz o mesmo trabalho que o historiador. Com o diferencial de possuir

uma narrativa mais rica e interessante que a escrita, a qual o historiador está

preso.

Todos [historiadores e cineastas] parecem obcecados e oprimidos pelo passado. Todos continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como uma fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).

Desse modo, para ele, o historiador seria:

Alguém que dedica uma parte significativa da sua carreira a criar significado a partir do passado, independentemente da mídia/linguagem. Ao fazer isso, os diretores tornam o passado significativo, no mínimo, de três maneiras diferentes – criam obras que visualizam, contestam e revisam a história (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).

A necessária continuidade dessa linha de pensamento levaria a conclusão

de que diretores que produzem filmes que abordam cenários políticos

contemporâneos fazem o mesmo trabalho que cientistas políticos. Ambas as

afirmações parecem injustificadas.

Napolitano toma o conceito de monumentalização criado por Eduardo

Morettin para analisar dois filmes de ambientação histórica. Um monumentaliza,

enaltece fatos e personagens, o outro os desconstrói. Para esse processo de

desconstrução por meio da narrativa fílmica Napolitano cunhou o termo

desmonumentalização. Todo monumento é uma busca de sentido no passado – de

eventos e personagens. Podemos afirmar o mesmo para o presente. Ao ser

descontruído, permite perceber camadas de historicidades, o discurso de poder, e

o cinema é um dos campos mais propícios a essa tarefa:

Como parte das estratégias de representação que dão sentido político aos filmes históricos, a questão de monumentalização de eventos e personagens (ou sua desconstrução enquanto

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“monumentos”) tem um papel central na escrita fílmica da história. A monumentalização, por sua vez, encontra no cinema – linguagem espetacular por excelência – um grande potencial de realização (NAPOLITANO, 2011, p.65).

A monumentalização pode ser igualmente a exaltação de características

tidas como nacionais ou ligadas ao regime por meio de um personagem real ou

fictício. As estratégias de monumentalização e os limites a esse mesmo processo

dependem,tanto do nível técnico6 da indústria cinematográfica quanto da memória

social que se quer trabalhar, sobre o qual atua o “específico fílmico” que com sua

linguagem própria tenta moldar ou trabalhar a memória histórica(MORETTIN,

2011). Além da memória social, pode ser elencada a percepção que essa sociedade

faz de algo além de seu passado – como outras sociedades e regimes de sua mesma

época. Um passo necessário é a reconstrução e silenciamento do passado (ou do

presente, no caso de Odinochnoye Plavaniye) dissonante da narrativa. O

monumento histórico é embelezado e não é real. Mais ainda: é construído sobre

tensões e contradições.

A desmonumentalização é a inversão da narrativa tradicional louvatória. É

criar um enredo ácido que nega as características heroicas ou monumentais de

personagens e processos. As antigas certezas tornam-se fluídas e vagas. A

dicotomia construída entre bem e mal, com o monumento sempre representando o

bem, é rompida, dissolvida ou tornada o contrário do costumeiro. É uma tentativa

de desmontar mitos e discursos estabelecidos, ou de se arranhar a imagem de

quem se pretende criticar. Invés da visão heroicizada, sobre-humana de

personagens, mostra corrupção, vileza, interesse onde antes existia apenas o

idealismo. Ou as fraquezas humanas naturais onde antes estas não apareciam,

mostrando homens no lugar de semi-deuses:

Procuramos destacar uma operação central em filmes históricos que é o da monumentalização ou da demolição de monumentos

6 Os filmes soviéticos costumam ser bem apurados quanto ao armamento empregado, como os tanques tiger que foram retirados de museus para as filmagens de Osvobozhdenye. Este não foi o caso de OdinochnoyePlavaniye. A única arma de fabricação americana em cena é a carabina M1, alimentada com balas de pistola. A outra arma ocidental é o fuzil G3, de fabricação alemã ocidental. As outras armas são armas soviéticas ou do Leste Europeu, como a tchecoslovaca ZB26 (imitando uma BAR?). Até o histórico rifle de assalto STG-44, da Alemanha nazista, aparece disfarçado, para se assemelhar ao M16 americano.

O Rambo russo

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(desmonumentalização). Nesse processo, ocorre um diálogo específico entre obras cinematográficas, tradições historiográficas e memoria social. Não e trata, portanto, de decidir se a história é ciência ou ficção literária (ou cinematográfica). Não se trata de avaliar o filme pelo seu grau de fidelidade aos eventos representados. Não se trata de proferir juízos de valores, opondo filmes “manipuladores”, a filmes “críticos”, diretores alienados e diretores críticos, mas também na tensão entre expectativa geral e produto final. Analisar a relação entre cinema e história é tentar entender o sentido que esses monumentos e ruínas adquirem nas telas, como parte da batalha pela representação do passado. Trata-se de refletir acerca da capacidade de refletir acerca da capacidade de reflexão histórica proposta pelo cinema, a partir de sua linguagem própria, sem cobrar dos filmes uma encenação fidedigna dos eventos ocorridos. É como material fragmentado, parcial e muitas vezes anacrônico em relação aos eventos representados, que o filme pode se revelar como documento histórico da época e da sociedade que o produziu (NAPOLITANO, 2011, p.83-84).

Jack Hessalt é a desconstrução do próprio John Rambo. Frank Crowder

ocupa o papel do coronel Sam Trautman. O agente do governo americano não vai

até ele. Ele é que é chamado e se apresenta. Não é um soldado valoroso, defensor

de jovens vietnamitas, mas um sanguinário cheio de sequelas, usado para o serviço

sujo e descartado logo em seguida. Rambo troca sua libertação da prisão com

trabalhos forçados pela missão de reconhecimento e resgate na Indochina. Hessalt

o faz pela promessa de retorno à sua pátria. Não é a imagem da correção, pelo

contrário, pode-se insinuar que os “unguentos tibetanos” que utiliza são drogas

injetáveis (mais um sinal da decadência ocidental, segundo a retórica soviética).

Ele não é um exército de um homem só. Apenas dá ordens aos seus subordinados.

Ele não possui um coração bondoso que o faz desrespeitar ordens diretas para não

se engajar na luta pelo bem de outrem. Pelo contrário, fuzila à traição, de surpresa

e pelas costas, os soldados ainda leais à CIA e à força aérea. Ele não se afasta de

tudo para obter paz interna, mas adora a guerra. Ele não salva os americanos

perdidos em alto-mar. Estes são abandonados à própria sorte. Essa tarefa cabe aos

soviéticos. Ele não protege, ele mata americanos perdidos num naufrágio na calada

da noite. Não há fidelidade entre os oficiais, mas sim desconfiança e perfídia.

Não é apenas o ideal individualista americano presente na figura de John

Rambo que é desfeito pela narrativa fílmica. O olhar soviético incide também sobre

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outras auto-representações de sua sociedade. O casal Harrison considera as ilhas

inabitadas, “terra de ninguém”, como sua propriedade privada (a ponto de serem

reprovados pela marine soviético como sendo “capitalistas”). Pertencentes à classe

média, esperam encontrar não só a fortuna como também sem a necessidade de

trabalho árduo, por meio da descoberta de um navio que naufragou na

região7.típicos capitalistas predatórios. O serviço secreto e as forças armadas

trabalham para as corporações do complexo industrial-militar e não para a

segurança da pátria. O próprio sistema democrático liberal norte-americano é

desmontado pela acusação de não ser de fato uma democracia. É o que expressa a

metonímia de uns dos empresários que jogam golfe enquanto discutem como

forçar a retirada dos Estados Unidos da mesa de negociação desarmamentista:

“Afinal, a democracia não é apenas o direito de votar a favor ou contra, mas

também o de abster-se”. O regime guia-se não pela vontade das massas expressa

por seus representantes, mas por seus interesses. Além da narrativa, outros

elementos da linguagem fílmica contribuíram para a desconstrução do inimigo

ideológico. A trilha sonora nas cenas em que os americanos aparecem é preenchida

por um rock agudo, frenético e cacofônico, quase uma caricatura do gênero. A

trilha sonora executada nas cenas com os soviéticos é composta por melodiosos

acordeões, evocando as raízes russas. O contraste é acentuado por uma fala do

major Shatokhin, de que nos Estados Unidos não existem rouxinóis, que não estão

acostumados ao seu canto. As representações soviéticas acerca da vida nos Estados

Unidos não podem ser generalizadas (ENGLISH, 2000). Como tudo na URSS, eram

marcadas por um dualismo gritante. Havia a ideologia oficial propagada pelo

regime nas campanhas oficiais e uma autonomia da sociedade soviética, que

poderia reproduzir assimilar, confrontar ou negar ao todo essa mesma

representação, substituindo-a por outras. Diferentes camadas e grupos possuíam

visões igualmente diferentes, passando da percepção negativa dos EUA, como

imperialista, belicista, etc., até o de sociedade desejável.

7 O argumento pode ser fruto da descoberta feita pela família Fisher do galeão espanhol Nuestra Señora de Atocha, em Key West, Flórida, carregado com 40 toneladas de outro e prata, no mesmo ano de 1985 e que se converteu num fenômeno na mídia americana e em fonte de motivação para caçadores de tesouro.

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Fig. 1. À direita, o Major Shatokhin com seu RPG-2. À esquerda, boina verde

americano ferido pelos marines soviéticos.

Do outro lado, presenciamos a monumentalização dos princípios e ideais

presentes na sociedade soviética e em sua ideologia oficial. O major Shatokhin é a

imagem do herói positivo defendido pelo realismo socialista. Essa corrente do

cinema soviético, imposta aos cineastas e estúdios por Stalin, Zhdanov, os

ministérios e as agências cinematográficas nos anos 1930, já estava em refluxo

fazia décadas. Após a morte de Yosip Stalin e a desestalinização promovida por seu

sucessor, Nikita Kruschev, uma sucessão de ondas rejuvenescedoras atingiram a

produção fílmica soviética. Entre outras, sentiu-se uma forte influência do realismo

italiano e do cinema francês nos anos 1950 e 19608. As diretrizes do regime foram

negadas, os diretores puderam ter maior liberdade (LABARRÉRE, 2009), testando

os limites da nova autonomia obtida e da leniência das autoridades. Os 20 anos da

imposição do realismo socialista deixaram marcas profundas. Foi um gênero que

8 O experimentalismo, tão marcante até o fim dos anos 1920, voltou com a criação de um estúdio dirigido por Chukhrai dentro dos da Mosfilm. Uma nova geração de cineastas desmantelava o realismo socialista peça por peça. Houve espaço até para uma Segunda Onda (1974-78) ou Nova Onda (1986-91) (LABARRÉRE, 2009, p.311; 341).

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se arraigou nos estúdios e que subsistiu, em meio às novas correntes presentes no

cinema, com o apoio governamental, dos setores que se sentiam confortáveis com

sua mensagem e dos cineastas que esperavam fazer carreira dentro da máquina

estatal atendendo a essas demandas. Como mostra o trabalho do cineasta Alexei

German (LAWTON, 1992, p.273), mesmo aqueles que se utilizavam da

desmonumentalização para criticar o próprio regime, encontravam emprego nos

estúdios e, aos solavancos, conseguiam levar a maior parte de sua obra aos

cinemas9. O limite do aceitável parece ter sido a politização da fala dos cineastas,

como Andrei Tarkovsky que, após criticar publicamente o governo, acabou sendo

exilado quando se encontrava em viagem pela Europa Ocidental, perdeu a

cidadania soviética e foi impedido de retornar.

Kenez (2008, p.57; 5) aponta como características do realismo socialista a

presença da coletividade ou de forças correlatas a ela, com “trabalhadores heroicos

cujo maior objetivo de vida é a construção do socialismo”. As diferentes

apresentações da arte (uma vez que o realismo socialista atingiu a literatura,

arquitetura, escultura, pintura e cinema) deveriam ser claras, abertamente

didáticas, otimistas, relativamente simples, com uma história linear – o avesso da

arte dos anos 1920, com suas dificuldades de atingir e prender a atenção das

massas, bem como de transmitir alguma mensagem que fosse considerada valiosa

ou interessante pelo regime (LAWTON, 1992). O herói como homem do povo

9 “Na realidade, o filme não se afastava dos grandes temas (Guerra Civil, Segunda Guerra Mundial), porém eram tratados de maneira mais íntima, sem ênfase excessivo e evitando, na medida do possível, os clichês impostos habitualmente: o indivíduo antes que a massa, os sentimentos pessoais antes que as regras coletivas, o amor antes do heroísmo”, revitalizando o cinema autoral, que existia mesmo sob Stalin. No cinema bélico foi marcante a obra de TarkovskyIvanovodetsvo, de 1962, que “rompeu com a tem|tica e, sobretudo, com a estética prevalecente até então de forma radical: rechaço da narrativa tradicional, retorno { interioridade, lirismo e espiritualidade”, no desinteresse pelos temas sociais, instaurando uma nova fotografia, uma nova forma de filmar em que havia espaço para a crítica (LABARRÉRE, 2009, p.431; 343) – inclusive a da atuação do país na Segunda Guerra, como as acusações de privilégios em Quando voam as cegonhas. O realismo socialista, com seus temas tabus e sua pressão por seguir um manual para o cinema foi tachado de malokartinnyi, tempo das limitações. A Nova Onda era “a escola poética do cinema que se assemelha a escola de Pudovkin, Eisenstein, Vertov e Dovzhenko, que foram, de uma forma ou de outra, poetas. A nova escola foi chamada de escola “arcaica” porque lidava principalmente com eventos e épocas passadas, folclore abrangente, contos de fadas, religião e poesia” (LAWTON, 1992, p.173; 174). As montagens, ao estilo de Vertov, retornaram com Fascismo Ordinário, de Romm (BEUMERS, 2009, p.129). Apesar da força da Nova Onda, o realismo socialista, com heróis positivos e temas ideológicos, subsistia.

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também gerava empatia entre a plateia composta de operários e camponeses com

o personagem e sua mensagem edificante e pró-regime.

Essa empatia tem início com a apresentação dos soldados do pelotão. São

homens simples do campo e da cidade, com um histórico familiar de luta pela

Rússia desde os tempos de Napoleão ou que conheceram as forças armadas como

fonte regeneradora. Shatokhin possuí um único desejo: retornar para sua aldeia

natal na região de Vladimirov após sete anos de ausência, para apreciar a

primavera da região, caçar e ajudar seu pai já idoso com a carpintaria na pequena

casa. Mas se diferencia de seus homens por sua função e capacidades de

organização, decisão, experiência. Sabe a importância do trabalho coletivo e se

mostra um líder nato. Treina seus homens para os momentos de necessidade.

Consegue passar comandos e tirá-los das situações mais complicadas, como se

desvencilhar após serem rendidos pelos mercenários da CIA. O major Shatokhin é

um exemplo não só para seus homens, como também para o casal de náufragos

americanos, ganhando sua confiança e adesão. Tumanishvili pretendeu criar heróis

de carne e osso. Após Shatokhin disparar seu lança-rojão, ao estilo de Rambo, e

afundar um dos barcos americanos, não o faz lançando uma frase de efeito. Ele e

seus soldados precisam se ajudar mutuamente para conseguir que suas mãos

trêmulas pudessem acender seus cigarros.

CONCLUSÃO

Após os anos de criticismo social no cinema da URSS, demonstrado acima de

tudo pela comédia (FRANCISCON, 2013), um filme nacionalista como Odinochnoye

Plavaniye representava a força dos setores conservadores na sociedade soviética.

As visões negativas do país são deixadas de lado por uma que endossa sua

contribuição para a paz mundial e a importância de suas forças armadas. Não foi a

primeira obra do gênero que se opunha ao cinema autoral e crítico feito pelo

diretor Tumanishvili. Em 1984 produziu Sluchay v kvadrate 36-80, em que os

soviéticos impedem a explosão de um submarino americano com problemas em

seu motor nuclear. Uma quase inversão dos fatos. O apoio de Tumanishvili aos

setores conservadores parece ser condicional. Ou sua filiação muda conforme o

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ambiente. Em 1993, com o governo Yeltsin e a restauração capitalista, a moda era a

visão do passado do país como totalitarista, segundo as concepções dos autores

mais profundamente antissoviéticos do Ocidente. Nesse ano dirigiu Zaveshchaniye

Stalina, em que retrata o significado de Stalin para o país apenas sob viés negativo.

A filiação pró-ideologia oficial de Odinochnoye Plavaniye não é completa,

entretanto, como demonstra o momento da troça entre o major Shatokhin e um

marine soviético sobre a terminologia do materialismo histórico. Ao lembrar que

não h| rouxinóis nos Estados Unidos, conclui afirmando que é um “fato histórico”.

A resposta do marine é que não atingiram as condições materiais necessárias.O

nacionalismo presente no filme mais se assemelha ao pan-russo do que em outros

filmes patrióticos, especialmente sobre a Segunda Guerra Mundial. Nestes é

frequente a aparição de soldados das várias nacionalidades da URSS, como

caucasianos, túrquicos e mongólicos. Em Odinochnoye Plavaniye a diversidade

étnica aparece com um dos marines do pelotão, Parshin (Nartai Begalin),

aparentemente da Ásia Central. O padrão nacionalista também pode ser arrolado

como pan-russo tradicionalista, pela referência a Deus. “Que Deus te ouça”, como

fiz o major Shatokhin. Expressões comuns mencionando Deus, gestos religiosos e

mesmo críticas ao ateísmo do partido comunista da União Soviética (PCUS)

deixaram de ser exceção nos anos 1970 com a disseminação dessa vertente

tradicionalista do nacionalismo eslavo, que via no cristianismo ortodoxo uma de

suas características mais importantes (LAWTON, 1992, p.229). É também

expressão do renascimento religioso acontecido no país sob o secretário-geral do

PCUS Leonid Brejnev, após o período de ateísmo militante de Nikita Kruschev10.

Como monumentalização, Odinochnoye Plavaniye oculta fatos e distorce a

realidade, para dar ao seu discurso o aspecto da realidade palpável. Busca impedir

a identificação de o aparelho militar soviético com a mesma lógica e o mesmo

complexo industrial-militar criticado aos americanos. Os volumosos gastos com as

forças armadas, na ordem de 18% do PNB nos anos 1970-80 (SEGRILLO, 2000,

p.124) são mostrados para o público interno e externo como uma imposição, vital

10 Entre 1959 e 1964 ¾ das igrejas cristãs foram fechadas no país, bem como quase todas as mesquitas e sinagogas (BROWN, 2010, p.259). Esse período de tendência antirreligiosa, que se sucedeu ao de relativa tolerância religiosa da época de Stalin após a concordata com a Igreja Ortodoxa, preparou o caminho para a impulsão na direção oposta na década seguinte.

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para a sobrevivência do país diante do assédio americano, e com ótimos

resultados, como a moderna e poderosa marinha soviética construída sob Brejnev,

rompendo o isolamento que a preponderância dos Estados Unidos nos mares havia

imposto à URSS até meados do século XX.

Para Ferro, “as grandes obras fílmicas da contra-história [...] provém

naturalmente das sociedades onde o regime político não deixa à história sua

liberdade e onde, para se exprimir, ela toma uma forma cinematogr|fica” (FERRO,

1976, p.204). O cinema das minorias é um complemento à história escrita, uma vez

que possibilita uma outra versão histórica que não cabe ou é rejeitada e ocultada

pela história oficial. Outra possibilidade de contra-história é aquela feita por

classes sociais e grupos antagônicos, ou regimes rivais, como é o caso do filme

analisado.

Como Capelato (1998) demonstra no caso do varguismo e do peronismo,

dever-se-ia procurar averiguar mais a representação que um regime pretende

encorajar ou fazer de si mesmo do que rotulá-lo como totalitário. O que é

importante para o quadro do cinema soviético. Por fim, o regime, tido por

monolítico no exterior, mostrou-se plural, com várias facções, como pacifistas,

belicistas, ocidentalistas, eslavófilos, marxistas-leninistas, socialdemocratas,

liberais, etc.(BROWN, 2010, p.415), condenando filmes como Odinochnoye

Plavaniye (e correntes políticas soviéticas com posições similares) ao ostracismo

quando as negociações desarmamentistas deslancharam após a reunião de cúpula

de Reykjavík, de 1986.

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