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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489.
O RAMBO RUSSO: A DESMONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI AMERICANO E A
MONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI SOVIÉTICO ATRAVÉS DO CINEMA1
Moisés Wagner Franciscon2
Resumo: O sucesso internacional da série Rambo e sua gritante mensagem
antissoviética possibilitou à URSS a oportunidade de produzir um filme de ação
nos mesmos moldes, desconstruindo o discurso americano e enaltecendo a
autoimagem do país. Nesse processo, os soviéticos construíram e reafirmaram a
representação que faziam dos Estados Unidos. Misto de propaganda oficial e de
exigência do sistema de produção cinematográfico, como seu similar ocidental,
Odinochnoye Plavaniye permite uma maior aproximação com a complexidade da
sociedade soviética, geralmente ocultada pelas teorias do totalitarismo. Para sua
análise foi empregada a história social do cinema de Marc Ferro, juntamente com
os conceitos de monumentalização e desmonumentalização de Marcos Napolitano.
Palavras-chaves: Cinema. Monumentalização. Desmonumentalização. União
Soviética.
Abstract: The international success of the Rambo series and its blatant anti-Soviet
message has enabled the USSR the opportunity to produce an action movie in the
same way, deconstructing the American discourse and praising the self-image of
the country. In this process, the Soviets built and reaffirmed the representation
made over the United States. Mixed official propaganda and requirement of
cinematic production system similar to its western, Odinochnoye Plavaniye allows a
closer relationship with the complexity of Soviet society, usually hidden by the
theories of totalitarianism. For their analysis was employed the social history of
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 23/11/2013.
2 Mestre em História Política e Movimentos Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail:
Moisés Wagner Franciscon
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film by Marc Ferro, along with the concepts of monumentalization and
demonumentalization of Marcos Napolitano.
Keywords: Cine. Monumentalization. Demonumentalization. Soviet Union.
INTRODUÇÃO
Odinochnoye Plavaniye recebeu diferentes nomes, até mais de dois, segundo
o país em que foi exibido: The russian hero, The detache dmission, Solo Voyage:
the revange, Le soviet, Sovit: la respuesta. A melhor tradução seria “Viagem
solitária”. É um filme soviético de fins de 1985, dirigido pelo georgiano Mikhail
Tumanishvili e é considerado como a versão russa de Rambo. Quando os
distribuidores internacionais passaram a acrescentar o subtítulo de “revanche”,
puderam descrever bem ao filme. A obra se insere como mais um capítulo da
rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética no período conhecido como
Segunda Guerra Fria (HALLIDAY, 1983). Promove a desconstrução da imagem do
herói americano (bem como da imagem que os soviéticos faziam do americano
típico) a partir da própria visão tradicional soviética de heroísmo. Como gênero, se
assemelha a uma forma híbrida entre o realismo socialista praticado na URSS e o
filme de ação americano. A rivalidade em sua composição impôs a absorção de
elementos do cinema do inimigo ideológico.
O discurso embutido no filme é melhor percebido com o uso dos conceitos
de monumentalização e de desmonumentalização na escrita fílmica, de Marcos
Napolitano. Como produto social e também um olhar de uma sociedade sobre
outra, a teoria da história social do cinema de Marc Ferro, possui um papel
importante e necessário para a análise do filme.
Odinochnoye Plavaniye não trata de eventos históricos passados, mas de
eventos ficcionais baseados no presente, que procuram prender e dar a dimensão
ao expectador da tensão política existente na primeira metade dos anos 1980, bem
como do alegado pacifismo soviético e do belicismo americano. Pode ser
considerado, portanto, obra de propaganda? O cinema ocidental costuma não ser
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visto como obra de propaganda política. Seus criadores, estúdios, orçamento,
dependem da iniciativa e de recursos privados. O avesso do sistema de produção
soviético, em que os diversos estúdios de cinema são empresas estatais, geridos
por agências centrais encarregadas da burocracia e da censura, dependentes do
crédito e das encomendas governamentais. A filiação entre cinema e regime é
muito mais palpável na URSS que nos Estados Unidos. Como ponto final,
argumenta-se que a indústria cinematográfica ocidental curva-se ao mercado – os
estúdios produzem o que o consumidor quer ver. Se Rambo foi um sucesso, isso se
deve unicamente às massas de expectadores americanos ávidos por violência e
mensagens conservadoras e nacionalistas. Justifica-se que o cinema soviético seja
percebido apenas como propaganda porque o regime utilizava agências
declaradamente de propaganda para seu fomento ou que era um regime que a tudo
politizou (TAYLOR, 1998), pelo uso confesso pelos líderes (PEREIRA, 2012) ou
ainda pela extensão econômica do Estado (OVERY, 2009). O termo traz um aspecto
vazio e artificial, como se nada no cinema fizesse parte também do imaginário
social, das massas que participaram da luta armada ou da construção do socialismo
e se identificassem com o que foi produzido3. Ou então como algo que penetra no
indivíduo, com uma transmissão plena, sem releituras, interpretações ou negações.
Maria Helena Capelato entende a propaganda do Estado no cinema como a
tentativa de causar emoções por meio da narrativa fílmica, não para transmitir
uma mensagem clara, mas para produzir determinados efeitos pretendidos sobre
as massas, como seu apoio. O sucesso da propaganda política não consiste na
lavagem cerebral, mas sim em sua vinculação e em sua capacidade de apreensão
do momento, em seu apelo junto às massas. O sucesso desse tipo de campanha
pode ser de tal ordem que a propaganda possa fazer parte dos pilares de
sustentação do regime. Mas ela não nasce nem se sustenta do nada, da pura
retórica (CAPELATO, 1999, p.170; 178). Mas o uso dos sentimentos não foi
monopólio do cinema dito totalitário. Basta lembrar-se do próprio material sobre o
3 Isso fica bem claro com a definição dada por Taylor: “‘Propapanda’ é concernente com a transmissão de idéias e/ou valores deuma pessoa, ou grupo de pessoas, para outro. Onde a ‘propagação’ é a ação, a ‘propaganda’ é a atividade. seria, portanto, sensato, em vez de analisá-la em um plano mais abstrato para uma definição mais satisfatória, começar com as particularidades eexaminar mais de pertoas várias fases do processo de transmissão” (TAYLOR, 1998, p.7).
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qual Odinochnoye Plavaniye foi elaborado: Rambo presencia seus compatriotas em
inanição serem espancados por soldados vietnamitas bem armados, uma jovem ser
assassinada e,o menino-soldado que luta contra os ocupantes soviéticos. Enredos
que não possuem diferença profunda com filmes como o stalinista Padeniye Berlina
ou o nazista: O jovem hitlerista Quex. Inimigos demonizados, ideais defendidos pelo
regime enaltecidos. Qual é, portanto, a diferença entre alguns produtos do cinema
das democracias liberais e o dos regimes que se afirma serem totalitários?
Os interesses do Estado podem se expressar no cinema de diferentes
formas, sem ser necessária uma ligação umbilical com o mesmo. Principalmente se
o considerarmos como instituição controlada por facções pertencentes à classe
dominante, da mesma forma que esta pode controlar os estúdios – propriedade
sua, e o trabalho dos diretores – em última instância, seus empregados. A
propaganda de bens de consumo, uma necessidade no modelo americano de
cinema, principalmente com o surgimento como blockbusters e suas exigências de
financiamento, também continham em seu âmago mensagens do sistema
econômico. O que Capelato (1999, p.177) afirma para o Estado Novo e os
fascismos, de que ideias e mercadorias eram vendidas concomitantemente,
também vale para a produção cinematográfica americana. Silva (2009), amparado
nos referenciais gramscianos, aponta para a propagação dos ideais conservadores
já existentes em amplos segmentos da sociedade e do meio político americanos
para outros campos dessa mesma sociedade e para outros países. O mesmo se
pode afirmar da produção soviética. Ela não era algo aéreo, com mensagens
deslocadas de sua sociedade, o que o tornariam uma voz oca e contrária aos
interesses do regime. Por essa visão, o cinema no ocidente ou no leste mais se
assemelha do que se distancia como afirma Marc Ferro:
Desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferenças se situam ao nível da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As autoridades, sejam as representantes do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autônomo, agindo como contra-poder [...]. Esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a serviço de uma causa, de
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uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias ideias (FERRO, 1992a, p. 13-14).
O argumento do mercado todo poderoso para a produção ocidental e da
plena liberdade do diretor tem falhas essenciais. Não explicam, por exemplo,
decepções com o público pagante ou com as pressões que retiraram dos diretores
poder real sobre a produção desde o surgimento dos executivos de Hollywood4.
Tampouco os soviéticos não enfrentavam qualquer desafio similar. Como o Plano
Quinquenal estipulava, além do orçamento dos filmes, fornecedores, preços dos
ingressos, também estimativas para a audiência nas salas de exibição (KENEZ,
2008). Esse mercado imposto na prática obrigava os estúdios a rodar filmes com
algum apelo popular. Essa pressão aumentou a partir dos anos 1960, quando o
financiamento da indústria cinematográfica passou a enfrentar a ameaça
representada pela diminuição de público pagante e os estúdios das repúblicas
soviéticas aumentaram sua produção mas majoraram seus prejuízos. O cinema de
entretenimento, sempre o mais apreciado pelas massas soviéticas, teve um
incremento nas comédias – que costumavam ter o maior público – e no até então
menos frequente gênero de filmes de aventuras. Concomitantemente, os cineastas
e produtores discutiam se o cinema deveria ser comercial ou autoral, refinado ou
destinado às massas (BEUMERS, 2009, p.146-149). O desenvolvimento dos filmes
de ação soviéticos, como um gênero destacado do cinema bélico, ou, como prefere
Troncale, kinovoeniana (LAWTON, 1992, p.192), demonstra a maior força da
última corrente.
Napolitano, pensa no filme político ou filme de propaganda dentro de
limites bem mais estreitos. Para ele, o filme político caracterizado por ser
propagandístico e apoteótico não é algo tão comum quanto se pode imaginar. É
difícil conceituar um filme assim porque todos trazem uma visão ideológica,
4 Antes da concepção do cinema como indústria e linha de montagem, o diretor poderia decidir desde o orçamento – sempre alongando mais e mais as filmagens e gerando novas necessidades, quanto a duração da obra ou toda e qualquer alteração no roteiro. Os empresários recorreram à industrialização e aos executivos como forma de tomar o controle dos diretores, assegurando assim seu lucro e impondo tudo o que julgassem necessário para a preservação deste (PEREIRA, 2012).
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declarada, latente ou secund|ria. Filmes políticos devem ser aqueles “nos quais o
tema da política é o eixo do roteiro e da narrativa” (NAPOLITANO, 2011, p.83).
TRAMA, MONUMENTALIZAÇÃO E DESMONUMENTALIZAÇÃO
Odinochnoye Plavaniye inicia-se com uma introdução às operações
secretas da CIA. Explica que elas são atividades dirigidas contra nações
estrangeiras, orquestradas de tal forma que jamais a culpa dessas ações recaem
sobre os Estados Unidos. Seguem-se imagens do porta-aviões nuclear Nimitz. Um
reportar da fictícia rede de TV ASB, na ponte do porta-aviões, diz que exercícios
militares na junção dos oceanos pacífico e índico reuniram os países membros da
OTAN, sob a batuta americana. Simultaneamente, os soviéticos realizariam seus
próprios exercícios militares com a esquadra do pacífico. Os dois lados vigiam-se e
o clima é tenso. Um incidente poderia desencadear uma guerra. Ao mesmo tempo
as lideranças das superpotências planejam um encontro para tratar do
desarmamento.
A cena seguinte passa-se na Flórida. O major Jack Hessalt (interpretado
pelo ator letão Arnis Licitis) tem um encontro com o alto escalão da CIA,
encabeçado por Frank Crowder (o também letão Janis Melderis). Hessalt e seu
braço direito, o sargento Eddie Griffith (Nikolay Lavrov), são mercenários que são
periodicamente usados pela CIA em suas operações secretas. Hessalt é
atormentado pelas lembranças de sua última ação no Vietnã, onde comandava
missões punitivas que incendiavam aldeias e matavam os camponeses. Crowder
oferece uma última missão. Enquanto entretém os mercenários com dançarinas
cubanas exiladas, revela a existência de um arquipélago não mapeado próximo do
local de realização dos exercícios militares das esquadras da OTAN e da URSS. Foi
construída uma base militar no local, controlando todo o tráfego marítimo entre os
dois oceanos. Era guarnecida por um submarino e dois barcos lança-mísseis.
Continha silos atômicos equipados com míssil Cruise de longo alcance. Um míssil
com carga convencional deveria ser empregado contra um navio de passageiros da
rota San Diego-Cingapura. Após dispensá-los, em reunião com outro agente, revela
seus planos de eliminá-los para manter a operação em segredo absoluto: “De que
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você tem pena, Michael? O maldito é um sádico. Incendiou toda uma aldeia perto
de Saigon, cheia desses amarelos”.
A cena seguinte ocorre num campo de golfe. Grandes magnatas do
complexo industrial-militar americano, em meio a seu jogo, comentam e defendem
a operação planejada pela CIA. Como maiores interessados e patronos da operação,
temem o fim dos contratos governamentais com suas empresas, o fim das
pesquisas com o sistema de defesa estratégico, ou Guerra nas Estrelas, bem como
outros programas como; mísseis intercontinentais, a ampliação da frota, os
bombardeiros B1 e F-117 Stealth. O preço da amizade entre os povos seria de 460
bilhões de dólares e o trabalho de 1/5 dos americanos. Tendo em mãos a manchete
dos jornais para os próximos dias, preveem que o ataque ao cruzeiro de Cingapura
colocaria a opinião pública mundial contra os soviéticos e contra os encontros
diplomáticos pelo desarmamento.
O expectador é apresentado ao major Shatokhin (Mikhail Nozhkin) e ao
seu pelotão da infantaria naval, “marines” soviéticos apelidados de cassacos negros
devido aos seus uniformes. Após meses em alto-mar, numa viagem solitária, sua
fragata toma parte nos exercícios militares antes de regressar à União Soviética.
Seu regresso é adiado quando são chamados pelo Alto Comando para resgatarem
um casal de americanos naufragados no arquipélago. Seu barco foi destruído pelo
míssil lançado pelos homens de Hessalt numa tentativa frustrada de atingir o
cruzeiro. Os almirantes soviéticos sabem que a explicação para o disparo do míssil
está nessa ilha, que ela é de importância geoestratégica para a URSS por controlar
as rotas marítimas essenciais para o país5 e para lá enviam os fuzileiros de
Shatokhin.
Após tentar eliminar os náufragos americanos, Hessalt desenvolve um
plano contra Crowder. Ele sabe o verdadeiro significado de sua última missão para
a CIA e confidencia a Griffith que serão eliminados assim que a operação for
realizada. Tomam de assalto a base, metralhando os soldados pertencentes à força
aérea americana. Instalam uma carga atômica num míssil cruise e decidem
5 Em uma época em que a passagem nordeste do Ártico ainda era impraticável pelo gelo, a URSS dependia da navegação de circunavegação da África e da Ásia para ligar seus portos europeus aos do extremo oriente asiático.
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bombardear a esquadra soviética, iniciando uma guerra no Pacífico. A CIA e as
forças armadas decidem varrer o pequeno arquipélago do mapa com um
bombardeio feito por um B2, que levará horas para chegar. Shatokhin derrota os
homens de Hessalt nos arredores da base para em seguida adentrá-la. Impedem o
lançamento, e com a ajuda de sua fragata, derrotam o submarino e os dois barcos
lança mísseis.
Após uma década de arrefecimento nas relações entre as superpotências,
marcada pelos encontros entre seus líderes e a assinatura de acordos
desarmamentistas, de limite territoriais, de direitos humanos ou que punham
limites à corrida militar estratégica, entre 1969 e 1979 (como os acordos SALT I, II
e o Tratado de Helsinque), os revesses dos Estados Unidos na política externa –
sempre explicados pelos setores conservadores americanos como obra de Moscou
– a eleição de Reagan e a expansão do campo formado por países socialistas no
Terceiro Mundo levaram ao fim do período da Détente e ao início da Segunda
Guerra Fria (HALLYDAY, 1993). A tensão chegou ao limite entre os anos de 1982 e
1983. Em 1982 EUA e URSS, utilizando respectivamente a OTAN e o Pacto de
Varsóvia, empreenderam grandes exercícios militares junto à Cortina de Ferro sem
prévio aviso, gerando a apreensão em cada um dos lados de uma invasão iminente.
Em 1983, o voo 007 da Korean Airlines invadiu o espaço aéreo soviético e
sobrevoou importantes bases militares secretas na península da Kamchatka.
Abordado por caças soviéticos, a tripulação não respondeu à exigência de mudar
sua rota. O avião foi derrubado, causando a morte de 269 pessoas. Ronald Reagan
logo em seguida ao incidente acusou a URSS de ser o império do mal, em seu
célebre discurso. Os soviéticos alegaram imaginar que se tratasse de um avião
espião e não de um Boeing 747. Em seguida, afirmaram que o voo de nome
sugestivo tratava-se de uma missão secreta promovida pelos EUA e pela ditadura
sul-coreana que empregava os passageiros como escudo humano. A crise dos
euromísseis levou centenas de milhares de cidadãos dos Estados Unidos e da
Europa Ocidental às ruas, insatisfeitos por verem a OTAN implantar silos nucleares
nos países europeus membros ou por verem os impostos cobrados por Reagan
terem esse destino. Ainda no mesmo ano, a garotinha americana Samantha Smith,
que virara um ícone dos movimentos pacifistas após escrever uma carta para o
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secretário-geral do PCUS Yuri Andropov, morreu em um acidente aéreo em solo
americano. Esses acontecimentos formam o argumento do filme.
Para Rosenstone, o cineasta que produz filmes do gênero de época, filmes
históricos, faz o mesmo trabalho que o historiador. Com o diferencial de possuir
uma narrativa mais rica e interessante que a escrita, a qual o historiador está
preso.
Todos [historiadores e cineastas] parecem obcecados e oprimidos pelo passado. Todos continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como uma fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).
Desse modo, para ele, o historiador seria:
Alguém que dedica uma parte significativa da sua carreira a criar significado a partir do passado, independentemente da mídia/linguagem. Ao fazer isso, os diretores tornam o passado significativo, no mínimo, de três maneiras diferentes – criam obras que visualizam, contestam e revisam a história (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).
A necessária continuidade dessa linha de pensamento levaria a conclusão
de que diretores que produzem filmes que abordam cenários políticos
contemporâneos fazem o mesmo trabalho que cientistas políticos. Ambas as
afirmações parecem injustificadas.
Napolitano toma o conceito de monumentalização criado por Eduardo
Morettin para analisar dois filmes de ambientação histórica. Um monumentaliza,
enaltece fatos e personagens, o outro os desconstrói. Para esse processo de
desconstrução por meio da narrativa fílmica Napolitano cunhou o termo
desmonumentalização. Todo monumento é uma busca de sentido no passado – de
eventos e personagens. Podemos afirmar o mesmo para o presente. Ao ser
descontruído, permite perceber camadas de historicidades, o discurso de poder, e
o cinema é um dos campos mais propícios a essa tarefa:
Como parte das estratégias de representação que dão sentido político aos filmes históricos, a questão de monumentalização de eventos e personagens (ou sua desconstrução enquanto
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“monumentos”) tem um papel central na escrita fílmica da história. A monumentalização, por sua vez, encontra no cinema – linguagem espetacular por excelência – um grande potencial de realização (NAPOLITANO, 2011, p.65).
A monumentalização pode ser igualmente a exaltação de características
tidas como nacionais ou ligadas ao regime por meio de um personagem real ou
fictício. As estratégias de monumentalização e os limites a esse mesmo processo
dependem,tanto do nível técnico6 da indústria cinematográfica quanto da memória
social que se quer trabalhar, sobre o qual atua o “específico fílmico” que com sua
linguagem própria tenta moldar ou trabalhar a memória histórica(MORETTIN,
2011). Além da memória social, pode ser elencada a percepção que essa sociedade
faz de algo além de seu passado – como outras sociedades e regimes de sua mesma
época. Um passo necessário é a reconstrução e silenciamento do passado (ou do
presente, no caso de Odinochnoye Plavaniye) dissonante da narrativa. O
monumento histórico é embelezado e não é real. Mais ainda: é construído sobre
tensões e contradições.
A desmonumentalização é a inversão da narrativa tradicional louvatória. É
criar um enredo ácido que nega as características heroicas ou monumentais de
personagens e processos. As antigas certezas tornam-se fluídas e vagas. A
dicotomia construída entre bem e mal, com o monumento sempre representando o
bem, é rompida, dissolvida ou tornada o contrário do costumeiro. É uma tentativa
de desmontar mitos e discursos estabelecidos, ou de se arranhar a imagem de
quem se pretende criticar. Invés da visão heroicizada, sobre-humana de
personagens, mostra corrupção, vileza, interesse onde antes existia apenas o
idealismo. Ou as fraquezas humanas naturais onde antes estas não apareciam,
mostrando homens no lugar de semi-deuses:
Procuramos destacar uma operação central em filmes históricos que é o da monumentalização ou da demolição de monumentos
6 Os filmes soviéticos costumam ser bem apurados quanto ao armamento empregado, como os tanques tiger que foram retirados de museus para as filmagens de Osvobozhdenye. Este não foi o caso de OdinochnoyePlavaniye. A única arma de fabricação americana em cena é a carabina M1, alimentada com balas de pistola. A outra arma ocidental é o fuzil G3, de fabricação alemã ocidental. As outras armas são armas soviéticas ou do Leste Europeu, como a tchecoslovaca ZB26 (imitando uma BAR?). Até o histórico rifle de assalto STG-44, da Alemanha nazista, aparece disfarçado, para se assemelhar ao M16 americano.
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(desmonumentalização). Nesse processo, ocorre um diálogo específico entre obras cinematográficas, tradições historiográficas e memoria social. Não e trata, portanto, de decidir se a história é ciência ou ficção literária (ou cinematográfica). Não se trata de avaliar o filme pelo seu grau de fidelidade aos eventos representados. Não se trata de proferir juízos de valores, opondo filmes “manipuladores”, a filmes “críticos”, diretores alienados e diretores críticos, mas também na tensão entre expectativa geral e produto final. Analisar a relação entre cinema e história é tentar entender o sentido que esses monumentos e ruínas adquirem nas telas, como parte da batalha pela representação do passado. Trata-se de refletir acerca da capacidade de refletir acerca da capacidade de reflexão histórica proposta pelo cinema, a partir de sua linguagem própria, sem cobrar dos filmes uma encenação fidedigna dos eventos ocorridos. É como material fragmentado, parcial e muitas vezes anacrônico em relação aos eventos representados, que o filme pode se revelar como documento histórico da época e da sociedade que o produziu (NAPOLITANO, 2011, p.83-84).
Jack Hessalt é a desconstrução do próprio John Rambo. Frank Crowder
ocupa o papel do coronel Sam Trautman. O agente do governo americano não vai
até ele. Ele é que é chamado e se apresenta. Não é um soldado valoroso, defensor
de jovens vietnamitas, mas um sanguinário cheio de sequelas, usado para o serviço
sujo e descartado logo em seguida. Rambo troca sua libertação da prisão com
trabalhos forçados pela missão de reconhecimento e resgate na Indochina. Hessalt
o faz pela promessa de retorno à sua pátria. Não é a imagem da correção, pelo
contrário, pode-se insinuar que os “unguentos tibetanos” que utiliza são drogas
injetáveis (mais um sinal da decadência ocidental, segundo a retórica soviética).
Ele não é um exército de um homem só. Apenas dá ordens aos seus subordinados.
Ele não possui um coração bondoso que o faz desrespeitar ordens diretas para não
se engajar na luta pelo bem de outrem. Pelo contrário, fuzila à traição, de surpresa
e pelas costas, os soldados ainda leais à CIA e à força aérea. Ele não se afasta de
tudo para obter paz interna, mas adora a guerra. Ele não salva os americanos
perdidos em alto-mar. Estes são abandonados à própria sorte. Essa tarefa cabe aos
soviéticos. Ele não protege, ele mata americanos perdidos num naufrágio na calada
da noite. Não há fidelidade entre os oficiais, mas sim desconfiança e perfídia.
Não é apenas o ideal individualista americano presente na figura de John
Rambo que é desfeito pela narrativa fílmica. O olhar soviético incide também sobre
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outras auto-representações de sua sociedade. O casal Harrison considera as ilhas
inabitadas, “terra de ninguém”, como sua propriedade privada (a ponto de serem
reprovados pela marine soviético como sendo “capitalistas”). Pertencentes à classe
média, esperam encontrar não só a fortuna como também sem a necessidade de
trabalho árduo, por meio da descoberta de um navio que naufragou na
região7.típicos capitalistas predatórios. O serviço secreto e as forças armadas
trabalham para as corporações do complexo industrial-militar e não para a
segurança da pátria. O próprio sistema democrático liberal norte-americano é
desmontado pela acusação de não ser de fato uma democracia. É o que expressa a
metonímia de uns dos empresários que jogam golfe enquanto discutem como
forçar a retirada dos Estados Unidos da mesa de negociação desarmamentista:
“Afinal, a democracia não é apenas o direito de votar a favor ou contra, mas
também o de abster-se”. O regime guia-se não pela vontade das massas expressa
por seus representantes, mas por seus interesses. Além da narrativa, outros
elementos da linguagem fílmica contribuíram para a desconstrução do inimigo
ideológico. A trilha sonora nas cenas em que os americanos aparecem é preenchida
por um rock agudo, frenético e cacofônico, quase uma caricatura do gênero. A
trilha sonora executada nas cenas com os soviéticos é composta por melodiosos
acordeões, evocando as raízes russas. O contraste é acentuado por uma fala do
major Shatokhin, de que nos Estados Unidos não existem rouxinóis, que não estão
acostumados ao seu canto. As representações soviéticas acerca da vida nos Estados
Unidos não podem ser generalizadas (ENGLISH, 2000). Como tudo na URSS, eram
marcadas por um dualismo gritante. Havia a ideologia oficial propagada pelo
regime nas campanhas oficiais e uma autonomia da sociedade soviética, que
poderia reproduzir assimilar, confrontar ou negar ao todo essa mesma
representação, substituindo-a por outras. Diferentes camadas e grupos possuíam
visões igualmente diferentes, passando da percepção negativa dos EUA, como
imperialista, belicista, etc., até o de sociedade desejável.
7 O argumento pode ser fruto da descoberta feita pela família Fisher do galeão espanhol Nuestra Señora de Atocha, em Key West, Flórida, carregado com 40 toneladas de outro e prata, no mesmo ano de 1985 e que se converteu num fenômeno na mídia americana e em fonte de motivação para caçadores de tesouro.
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Fig. 1. À direita, o Major Shatokhin com seu RPG-2. À esquerda, boina verde
americano ferido pelos marines soviéticos.
Do outro lado, presenciamos a monumentalização dos princípios e ideais
presentes na sociedade soviética e em sua ideologia oficial. O major Shatokhin é a
imagem do herói positivo defendido pelo realismo socialista. Essa corrente do
cinema soviético, imposta aos cineastas e estúdios por Stalin, Zhdanov, os
ministérios e as agências cinematográficas nos anos 1930, já estava em refluxo
fazia décadas. Após a morte de Yosip Stalin e a desestalinização promovida por seu
sucessor, Nikita Kruschev, uma sucessão de ondas rejuvenescedoras atingiram a
produção fílmica soviética. Entre outras, sentiu-se uma forte influência do realismo
italiano e do cinema francês nos anos 1950 e 19608. As diretrizes do regime foram
negadas, os diretores puderam ter maior liberdade (LABARRÉRE, 2009), testando
os limites da nova autonomia obtida e da leniência das autoridades. Os 20 anos da
imposição do realismo socialista deixaram marcas profundas. Foi um gênero que
8 O experimentalismo, tão marcante até o fim dos anos 1920, voltou com a criação de um estúdio dirigido por Chukhrai dentro dos da Mosfilm. Uma nova geração de cineastas desmantelava o realismo socialista peça por peça. Houve espaço até para uma Segunda Onda (1974-78) ou Nova Onda (1986-91) (LABARRÉRE, 2009, p.311; 341).
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se arraigou nos estúdios e que subsistiu, em meio às novas correntes presentes no
cinema, com o apoio governamental, dos setores que se sentiam confortáveis com
sua mensagem e dos cineastas que esperavam fazer carreira dentro da máquina
estatal atendendo a essas demandas. Como mostra o trabalho do cineasta Alexei
German (LAWTON, 1992, p.273), mesmo aqueles que se utilizavam da
desmonumentalização para criticar o próprio regime, encontravam emprego nos
estúdios e, aos solavancos, conseguiam levar a maior parte de sua obra aos
cinemas9. O limite do aceitável parece ter sido a politização da fala dos cineastas,
como Andrei Tarkovsky que, após criticar publicamente o governo, acabou sendo
exilado quando se encontrava em viagem pela Europa Ocidental, perdeu a
cidadania soviética e foi impedido de retornar.
Kenez (2008, p.57; 5) aponta como características do realismo socialista a
presença da coletividade ou de forças correlatas a ela, com “trabalhadores heroicos
cujo maior objetivo de vida é a construção do socialismo”. As diferentes
apresentações da arte (uma vez que o realismo socialista atingiu a literatura,
arquitetura, escultura, pintura e cinema) deveriam ser claras, abertamente
didáticas, otimistas, relativamente simples, com uma história linear – o avesso da
arte dos anos 1920, com suas dificuldades de atingir e prender a atenção das
massas, bem como de transmitir alguma mensagem que fosse considerada valiosa
ou interessante pelo regime (LAWTON, 1992). O herói como homem do povo
9 “Na realidade, o filme não se afastava dos grandes temas (Guerra Civil, Segunda Guerra Mundial), porém eram tratados de maneira mais íntima, sem ênfase excessivo e evitando, na medida do possível, os clichês impostos habitualmente: o indivíduo antes que a massa, os sentimentos pessoais antes que as regras coletivas, o amor antes do heroísmo”, revitalizando o cinema autoral, que existia mesmo sob Stalin. No cinema bélico foi marcante a obra de TarkovskyIvanovodetsvo, de 1962, que “rompeu com a tem|tica e, sobretudo, com a estética prevalecente até então de forma radical: rechaço da narrativa tradicional, retorno { interioridade, lirismo e espiritualidade”, no desinteresse pelos temas sociais, instaurando uma nova fotografia, uma nova forma de filmar em que havia espaço para a crítica (LABARRÉRE, 2009, p.431; 343) – inclusive a da atuação do país na Segunda Guerra, como as acusações de privilégios em Quando voam as cegonhas. O realismo socialista, com seus temas tabus e sua pressão por seguir um manual para o cinema foi tachado de malokartinnyi, tempo das limitações. A Nova Onda era “a escola poética do cinema que se assemelha a escola de Pudovkin, Eisenstein, Vertov e Dovzhenko, que foram, de uma forma ou de outra, poetas. A nova escola foi chamada de escola “arcaica” porque lidava principalmente com eventos e épocas passadas, folclore abrangente, contos de fadas, religião e poesia” (LAWTON, 1992, p.173; 174). As montagens, ao estilo de Vertov, retornaram com Fascismo Ordinário, de Romm (BEUMERS, 2009, p.129). Apesar da força da Nova Onda, o realismo socialista, com heróis positivos e temas ideológicos, subsistia.
O Rambo russo
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também gerava empatia entre a plateia composta de operários e camponeses com
o personagem e sua mensagem edificante e pró-regime.
Essa empatia tem início com a apresentação dos soldados do pelotão. São
homens simples do campo e da cidade, com um histórico familiar de luta pela
Rússia desde os tempos de Napoleão ou que conheceram as forças armadas como
fonte regeneradora. Shatokhin possuí um único desejo: retornar para sua aldeia
natal na região de Vladimirov após sete anos de ausência, para apreciar a
primavera da região, caçar e ajudar seu pai já idoso com a carpintaria na pequena
casa. Mas se diferencia de seus homens por sua função e capacidades de
organização, decisão, experiência. Sabe a importância do trabalho coletivo e se
mostra um líder nato. Treina seus homens para os momentos de necessidade.
Consegue passar comandos e tirá-los das situações mais complicadas, como se
desvencilhar após serem rendidos pelos mercenários da CIA. O major Shatokhin é
um exemplo não só para seus homens, como também para o casal de náufragos
americanos, ganhando sua confiança e adesão. Tumanishvili pretendeu criar heróis
de carne e osso. Após Shatokhin disparar seu lança-rojão, ao estilo de Rambo, e
afundar um dos barcos americanos, não o faz lançando uma frase de efeito. Ele e
seus soldados precisam se ajudar mutuamente para conseguir que suas mãos
trêmulas pudessem acender seus cigarros.
CONCLUSÃO
Após os anos de criticismo social no cinema da URSS, demonstrado acima de
tudo pela comédia (FRANCISCON, 2013), um filme nacionalista como Odinochnoye
Plavaniye representava a força dos setores conservadores na sociedade soviética.
As visões negativas do país são deixadas de lado por uma que endossa sua
contribuição para a paz mundial e a importância de suas forças armadas. Não foi a
primeira obra do gênero que se opunha ao cinema autoral e crítico feito pelo
diretor Tumanishvili. Em 1984 produziu Sluchay v kvadrate 36-80, em que os
soviéticos impedem a explosão de um submarino americano com problemas em
seu motor nuclear. Uma quase inversão dos fatos. O apoio de Tumanishvili aos
setores conservadores parece ser condicional. Ou sua filiação muda conforme o
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ambiente. Em 1993, com o governo Yeltsin e a restauração capitalista, a moda era a
visão do passado do país como totalitarista, segundo as concepções dos autores
mais profundamente antissoviéticos do Ocidente. Nesse ano dirigiu Zaveshchaniye
Stalina, em que retrata o significado de Stalin para o país apenas sob viés negativo.
A filiação pró-ideologia oficial de Odinochnoye Plavaniye não é completa,
entretanto, como demonstra o momento da troça entre o major Shatokhin e um
marine soviético sobre a terminologia do materialismo histórico. Ao lembrar que
não h| rouxinóis nos Estados Unidos, conclui afirmando que é um “fato histórico”.
A resposta do marine é que não atingiram as condições materiais necessárias.O
nacionalismo presente no filme mais se assemelha ao pan-russo do que em outros
filmes patrióticos, especialmente sobre a Segunda Guerra Mundial. Nestes é
frequente a aparição de soldados das várias nacionalidades da URSS, como
caucasianos, túrquicos e mongólicos. Em Odinochnoye Plavaniye a diversidade
étnica aparece com um dos marines do pelotão, Parshin (Nartai Begalin),
aparentemente da Ásia Central. O padrão nacionalista também pode ser arrolado
como pan-russo tradicionalista, pela referência a Deus. “Que Deus te ouça”, como
fiz o major Shatokhin. Expressões comuns mencionando Deus, gestos religiosos e
mesmo críticas ao ateísmo do partido comunista da União Soviética (PCUS)
deixaram de ser exceção nos anos 1970 com a disseminação dessa vertente
tradicionalista do nacionalismo eslavo, que via no cristianismo ortodoxo uma de
suas características mais importantes (LAWTON, 1992, p.229). É também
expressão do renascimento religioso acontecido no país sob o secretário-geral do
PCUS Leonid Brejnev, após o período de ateísmo militante de Nikita Kruschev10.
Como monumentalização, Odinochnoye Plavaniye oculta fatos e distorce a
realidade, para dar ao seu discurso o aspecto da realidade palpável. Busca impedir
a identificação de o aparelho militar soviético com a mesma lógica e o mesmo
complexo industrial-militar criticado aos americanos. Os volumosos gastos com as
forças armadas, na ordem de 18% do PNB nos anos 1970-80 (SEGRILLO, 2000,
p.124) são mostrados para o público interno e externo como uma imposição, vital
10 Entre 1959 e 1964 ¾ das igrejas cristãs foram fechadas no país, bem como quase todas as mesquitas e sinagogas (BROWN, 2010, p.259). Esse período de tendência antirreligiosa, que se sucedeu ao de relativa tolerância religiosa da época de Stalin após a concordata com a Igreja Ortodoxa, preparou o caminho para a impulsão na direção oposta na década seguinte.
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para a sobrevivência do país diante do assédio americano, e com ótimos
resultados, como a moderna e poderosa marinha soviética construída sob Brejnev,
rompendo o isolamento que a preponderância dos Estados Unidos nos mares havia
imposto à URSS até meados do século XX.
Para Ferro, “as grandes obras fílmicas da contra-história [...] provém
naturalmente das sociedades onde o regime político não deixa à história sua
liberdade e onde, para se exprimir, ela toma uma forma cinematogr|fica” (FERRO,
1976, p.204). O cinema das minorias é um complemento à história escrita, uma vez
que possibilita uma outra versão histórica que não cabe ou é rejeitada e ocultada
pela história oficial. Outra possibilidade de contra-história é aquela feita por
classes sociais e grupos antagônicos, ou regimes rivais, como é o caso do filme
analisado.
Como Capelato (1998) demonstra no caso do varguismo e do peronismo,
dever-se-ia procurar averiguar mais a representação que um regime pretende
encorajar ou fazer de si mesmo do que rotulá-lo como totalitário. O que é
importante para o quadro do cinema soviético. Por fim, o regime, tido por
monolítico no exterior, mostrou-se plural, com várias facções, como pacifistas,
belicistas, ocidentalistas, eslavófilos, marxistas-leninistas, socialdemocratas,
liberais, etc.(BROWN, 2010, p.415), condenando filmes como Odinochnoye
Plavaniye (e correntes políticas soviéticas com posições similares) ao ostracismo
quando as negociações desarmamentistas deslancharam após a reunião de cúpula
de Reykjavík, de 1986.
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