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1 Introdução “En un universo donde el éxito consiste en ganar tiempo, pensar no tiene más que un solo defecto, pero incorregible: hace perder tiempo, no es eficiente” (PÉREZ GÓMEZ, 1998: 119).

Texto da tese sem quadros - repositorium.sdum.uminho.ptrepositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/6009/4/Texto da tese sem... · O ponto dois mostrou-nos como é assim que se vence

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  • 1

    Introduo

    En un universo donde el xito consiste en ganar tiempo, pensar no tiene ms que un solo defecto, pero incorregible: hace perder tiempo, no es eficiente (PREZ GMEZ, 1998: 119).

  • 2

  • 3

    A tese de doutoramento que aqui apresentamos inscreve-se, pelo

    perodo a que se reporta, numa estrutura scio-econmica e cultural moderna;

    porm, o momento em que foi escrita remete j para um contexto ps-

    moderno, neoliberal. Assim, importa comear a sua apresentao pela

    caracterizao das racionalidades tensionais em que assenta.

    Partindo dos caminhos de sntese que Boaventura Sousa Santos

    identifica como necessrios para a construo de uma teoria crtica ps-

    moderna, esta tese tem como finalidade, no mbito de uma anlise da

    formao inicial de professores, defender o papel essencial que a educao

    deve reivindicar para, na tecedura econmica e social da actualidade, combinar

    cidadania, subjectividade e emancipao. Trata-se de uma proposta para

    ultrapassar os excessos de regulao modernos, os quais se jogaram em

    subsnteses de cidadania sem subjectividade nem emancipao, subjectividade

    sem cidadania nem emancipao, emancipao sem subjectividade nem cidadania,

    emancipao com cidadania e sem subjectividade e emancipao com

    subjectividade e sem cidadania (SANTOS, 1995: 232). Este propsito espelha-se

    na escolha das epgrafes que estruturam a investigao e atravs delas que

    faremos a primeira apresentao das pginas que se seguem.

    Aps o alerta sobre a tendncia para o adormecimento a que a

    sociedade nos parece incitar, no primeiro captulo, e inserindo claramente esta

    tese na especialidade de Desenvolvimento Curricular, procura-se a alternativa

    que apresentada por esta rea de estudos atravs do seu convite constante

    investigao, com base na avaliao de experincias, numa linha integradora

    de contributos de diferentes reas.

    Entrando pela porta que esta rea do saber nos abriu, o ponto um do

    primeiro captulo relaciona o posicionamento do curricularista com uma

    presena tica no mundo, imprescindvel para garantir a liberdade e a

    responsabilidade. O ponto dois deste mesmo captulo revela a necessidade de

    que o discurso curricular faa parte do quotidiano dos professores, caminho

    que at hoje tem sido difcil, a avaliar pela epgrafe que recolhemos no

    Professor Albano Estrela. Aqui se procura uma via que passe pelo

    entendimento entre o currculo e a didctica, assim se procurando combinar o

    pensamento e a aco dos professores, pois lugar ou no lugar, cabe

  • 4

    educao conseguir (ou no) construir a utopia que se deseja. o que

    abordaremos no ponto trs do primeiro captulo.

    Depois desta abordagem, destinada aos que comungam uma viso

    crtica da sociedade, sentimos necessidade de construir um segundo captulo,

    que equacionasse as razes do que exposto no primeiro. Tratou-se de uma

    insero numa rea de trabalho que no a nossa e que, por isso mesmo, foi

    reduzida em extenso e em profundidade. Na verdade, ao atrevermo-nos a

    utilizar ideias e conceitos prprios da Sociologia da Educao, da Filosofia da

    Educao e da Psicologia da Aprendizagem, foi clara a dificuldade que

    sentimos e foi cautelosa a sua apropriao.

    Na verdade, o captulo dois desta tese o nico que sai do mbito de

    especialidade que o nosso mais no pretende do que inserir a problemtica

    que estudamos no contexto scio-econmico e social em que se inscreve. Sem

    propsitos de inovao, nele identificamos nem sempre de maneira

    encadeada, mas, esperamos, de forma compreensiva as linhas de fora que

    so imprescindveis anlise do objecto por ns estudado a Formao Inicial

    de Professores no Ramo Educacional da FLUP. assim que, no captulo dois,

    se defender que a viso economicista no s com a educao que no

    combina, pois toda a estrutura social por ela afectada. Para o mostrar, o

    ponto um alerta para o vazio das palavras sempre que no assentam no

    conhecimento das coisas, isto , na investigao, neste caso, a investigao

    sobre polticas. Aprofundando esta ideia, o ponto dois mostra quais as

    condies de que o mercado necessita para se impor a desideologizao.

    Esta ideia desenvolvida no ponto trs, com a referncia s consequncias

    deste percurso: a embriaguez do consumo e do servio ao instante.

    Voltemos ento educao e, concretamente, vida nas escolas, de

    onde s aparentemente tnhamos sado. Voltemos ao espao privilegiado de

    aprendizagem da liberdade, a que se dedicar o captulo trs. Aqui, e seguindo

    os trs pilares identificados por Boaventura Sousa Santos para a ps-

    modernidade, a que j nos referimos, se mostrar em primeiro lugar, no ponto

    um, como a educao da liberdade e em liberdade a essncia do esqueleto

    que caracteriza a verticalidade do ser humano e a garantia da sua evoluo. A

    se tratar da associao entre os conceitos de cultura e de educao. No ponto

    dois entra na discusso a cidadania. Da sua relao com a educao

  • 5

    ressaltar, na linha do que tinha sido apresentado no ponto anterior, a

    recontextualizao das identidades. No ponto trs retommos a concluso

    principal a que tnhamos chegado quando elabormos a dissertao de

    mestrado: mais forte do que toda a formao, o ser de cada um que se

    manifesta.

    uma constatao que nos posiciona na defesa de subjectividades,

    mas tambm, no desenvolvimento que agora fazemos, na sua

    recontextualizao: como nos pontos anteriores se demonstra, quando no

    mundo exterior a arquitectura moral parece ruir, justamente no interior dos

    eus que as questes ticas do ser tm condies para eclodir, no em

    isolamento, mas em culturas de colaborao.

    Continuando o percurso lgico que estamos a seguir, foi necessrio, no

    captulo quatro, inserirmo-nos na problemtica que nos permitiu, no terreno,

    confirmar este caminho. Neste sentido, foi altura de pensarmos concretamente

    no professor principiante e na forma como a formao inicial de professores

    deve trabalhar com as caractersticas prprias de quem est no seu primeiro

    ano de docncia. Foi assim que, no ponto um, mostramos a necessidade de

    cada professor ser um sujeito interpretativo, em vez de um sujeito informativo.

    O ponto dois mostrou-nos como assim que se vence a poltica da avestruz, e

    o ponto trs como esta a forma de iniciarmos a construo de percursos

    singulares de desenvolvimento.

    O captulo cinco concretiza o percurso que esta tese prope. Trata-se da

    definio da metodologia que usamos para, no terreno educativo,

    concretamente na Formao Inicial de Professores de Francs da Faculdade

    de Letras da Universidade do Porto, entre 1988 e 2005, analisarmos fluxos e

    influxos de desenvolvimento. O primeiro ponto apresenta o cuidado que

    tivemos, e que se prendeu com a garantia de que no haveria contaminao na

    avaliao, quer pelas caractersticas prprias da mesma, quer pelo facto de

    nos situarmos num papel duplo de avaliador e avaliado. O segundo ponto

    abordou a questo das escolhas metodolgicas, no sentido em que sabemos

    que a forma como escolhessemos trabalhar a formao inicial de professores

    traduziria, ela prpria, a forma como a vemos, como vemos os professores,

    logo como nos vemos. Foi assim que usamos as tcnicas de recolha e de

    anlise de dados como meios para dar vez e voz a todos os que tiveram

  • 6

    interveno no desenvolvimento do Homem novo que toda a formao procura

    ajudar a construir. Isso foi mostrado no ponto trs.

    O ltimo captulo, o captulo seis, apresenta finalmente concluses, que

    se sintetizam na necessidade de assegurar a sobrevivncia institucional do

    esprito de universidade, enquanto eco da alma colectiva. No ponto um mostra-

    se como a concretizao desta vontade se traduziria na garantia de que a

    Europa se construiria nos valores. O ponto dois mostra que a residiria o mrito

    e o sucesso.

    A concluso a que chegamos reencontra a centralidade da vida no

    pensamento, tal como a epgrafe desta introduo sugere. No entanto, ao

    contrrio do que na introduo acontece, no nos focalizamos no crime que

    sabemos estar a cometer ao praticar o acto de pensar, mas na certeza de que

    nele que reside a nossa dignidade. assim que esta tese termina na

    abertura de uma via mais larga do que qualquer outra por ns antes encetada:

    o propsito de trabalhar para bem pensar.

    Mas recuemos e explicitemos como se chegar a esta concluso.

    A tese de doutoramento que aqui apresentamos enquadra-se no Ramo

    Educao, especialidade de Desenvolvimento Curricular, e foi orientada pelo

    Professor Doutor Jos Augusto Pacheco. Desenvolveu-se ao longo de quatro

    anos e teve como objecto de estudo o modelo de formao inicial (Francs) da

    Faculdade de Letras da Universidade do Porto (a partir daqui designada

    FLUP), em vigor entre 1988 e 20051.

    Trata-se de uma perspectiva de estudo que se iniciou com a dissertao

    de mestrado, a qual nos permitiu identificar as orientaes curriculares deste

    modelo e com base na qual tivemos oportunidade de intervir em reunies e de

    publicar textos de reflexo, dentro e fora da instituio, em que defendemos a

    reestruturao curricular do referido modelo. Porm, no estudo ento realizado

    dois aspectos ficaram por integrar: i) a compreenso das polticas educativas

    que enquadraram as opes tomadas pela FLUP ao definir o seu modelo; ii) a

    possibilidade de generalizao de concluses relacionadas com o trabalho de

    campo (ento estudo de caso) que realizara. justamente esta dupla lacuna

    que o presente projecto de investigao pretende colmatar. Sem abandonar 1 A Licenciatura no Ramo Educacional Francs da FLUP funcionou pela primeira vez no ano lectivo de 1988/89, para o primeiro ano. Os primeiros estgios decorreram no ano de 1992/93. A ltima vez que o 1 ano da licenciatura funcionou foi em 2000/01, tendo esses alunos desenvolvido o seu estgio em 2004/05.

  • 7

    nem o paradigma do pensamento do professor, nem a perspectiva curricular do

    estudo pretendemos, por um lado, proceder ao cruzamento de dados

    qualitativos, resultantes de entrevista e da investigao documental, e

    quantitativos, obtidos atravs de inqurito por questionrio a uma amostra da

    populao que obteve a sua licenciatura no Ramo Educacional da FLUP nestes

    anos de vigncia do modelo em estudo, assim como aos seus formadores e

    empregadores.

    So, tal como na dissertao de mestrado, as representaes que

    estudmos, isto , as imagens e as noes construdas no decurso de todos os dias e que configuram o patrimnio cognitivo partilhado pelos membros de um dado grupo (SANTOS SILVA, 1999a: 31), pois continuamos a crer que uma atitude que relegue o conhecimento prtico para o estatuto de conjunto de meras pr-noes, pr-conceitos, que a cincia deve ultrapassar e esquecer, bloqueia a anlise dos processos

    sociais simblicos (idem, ibidem). Partimos, nesta investigao, de um conjunto estruturado de interrogaes (...) devidamente especificadas sobre o lugar e as funes

    (ALMEIDA E PINTO, 1999: 56) do modelo de formao inicial da FLUP,

    patrimnio acumulado de interpretaes provisoriamente validadas (idem, ibidem)

    no estudo exploratrio realizado na dissertao de mestrado, o qual constituir

    o ponto de partida para a pesquisa.

    O objecto de estudo aparece assim definido por razes afectivas e

    institucionais: i) para completar um trabalho inacabado (iniciado, como foi j

    mencionado, na dissertao de mestrado); ii) para rentabilizar uma experincia

    profissional acumulada, uma vez que acompanhamos este modelo de

    formao desde o segundo ano de vigncia dos estgios profissionalizantes

    entre 1989/90 e 1993/94 como orientadora de estgio pedaggico numa escola

    secundria adstrita FLUP e entre 1994/95 e 2004/05 como acompanhante da

    prtica pedaggica ligada FLUP; iii) para dar resposta a necessidades

    profissionais de uma prtica reflectida em que apostmos.

    O problema de investigao para este estudo quantitativo, qualitativo,

    longitudinal e transversal2 surge, ento, definido da seguinte maneira:

    conhecer o grau de satisfao dos licenciados pelo Ramo Educacional FLUP relativamente ao cumprimento das metas da UP, remetendo-nos, desta maneira, para a anlise das variveis curriculares e organizacionais do 2 Longitudinal porque questionou o modelo em diferentes fases da sua evoluo; transversal porque inquiriu e entrevistou os diferentes intervenientes alunos, formadores, rgos decisores e empregadores.

  • 8

    modelo, de acordo com a questo estruturante em que o objecto foi traduzido:

    como se cruzam os Modelos de Formao de Professores com as Polticas Educativas, com as Polticas de Formao Inicial e com o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores formados pelo Ramo Educacional da FLUP?

    Avaliar como este modelo funcionou, curricular e organizacionalmente,

    implicou o estudo dos planos curriculares da instituio, dos aspectos

    organizacionais concretos, do modo como se efectuou a integrao entre as

    cincias da educao e as cincias da especialidade e do modo como a

    componente curricular do modelo do Ramo Educacional se integrou na

    organizao da Universidade. Implicou tambm o confronto desses dados com

    as polticas educativas dos anos 80 e 90 e as polticas de formao inicial de

    professores que, correspondendo respectivamente s definies econmica e

    organizacional da educao (CORREIA, 1999) na modernidade, tiveram

    desenvolvimentos neo-liberais que, com a aproximao do sculo XXI, foram,

    paulatina, mas firmemente, pondo em causa os princpios organizativos do

    modelo. Implicou ainda o estudo do impacto que o Ramo Educacional teve no

    desenvolvimento pessoal e profissional dos professores que realizaram a sua

    formao inicial da instituio estudada. Implicou conhecer como se processa o

    desenvolvimento dos professores em incio de carreira, assim como a forma

    como se gere a vida nas escolas bsicas e secundrias, em termos de culturas

    profissionais e escolares.

    Deste modo, num primeiro momento foram identificados os objectivos3

    desta investigao:

    Avaliar as variveis curriculares e organizacionais do Modelo de

    Formao Inicial da FLUP (Francs) na reestruturao curricular em vigor

    entre 1988/98 e 2004/05;

    Compreender essa estrutura luz:

    dos Modelos de Formao Inicial de Professores;

    das Polticas Educativas dos anos 80 e 90;

    das Polticas de Formao Inicial.

    3 O objectivo faz parte de uma interveno, clarificando as variveis ou indicadores metodolgicos e as problemticas tericas que permitiro ao investigador seguir num determinado caminho (PACHECO, 2005).

  • 9

    Avaliar as representaes dos professores formados pela FLUP, no que

    respeita ao desenvolvimento pessoal e profissional operado na formao,

    por aco do cumprimento das metas da UP que com esse

    desenvolvimento so consentneas.

    Analisar os pontos de vista dos formadores (docentes universitrios e

    orientadores de estgio) e dos empregadores (conselhos executivos das

    escolas bsicas e secundrias) acerca do cumprimento das referidas

    metas da UP.

    Logo de seguida foi identificada e desenvolvida uma linha investigativa

    que, em termos de fundamentao conceptual, garantisse a consecuo dos

    objectivos que nos propnhamos alcanar. Assim, a interpretao dos dados

    teve sempre por base, quer a fundamentao conceptual, quer outros estudos

    realizados na rea, quer ainda documentos de reflexo e anlise oriundos da

    Reitoria da UP que, de forma cclica foram sendo divulgados no Boletim oficial

    desta entidade.

    Ao longo de quatro anos, o trabalho de investigao desenvolveu-se da

    maneira que o quadro a seguir transcrito explicita. A preto esto indicadas as

    tarefas que, quando apresentmos o projecto de doutoramento, nos

    propusemos fazer; a azul o que efectivamente foi feito:

    ANO

    MS

    TRABALHO A REALIZAR/REALIZADO

    2001 Outubro

    Novembr

    o

    Dezembr

    o

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    2002 Janeiro

    Fevereiro

    Maro

    Abril

    Maio

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    Anlise de

    document

    os de

    arquivo

    Sntese das concluses

    obtidas no estudo

    exploratrio de caso

    realizado para

    elaborao da

    dissertao de mestrado.

    Elaborao dos

    questionrios Aplicao

    dos questionrios

    (Fevereiro, Maro, Abril e

    Maio)

    Junho

    Julho

    Agosto

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    [Elaborao das

    questes para as

    entrevistas]

    Recuperao dos

    questionrios

    Setembro

    Outubro

    Novembr

    o

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    [Realizao das

    entrevistas]

    Recuperao dos

    questionrios

  • 10

    Dezembr

    o

    2003 Janeiro

    Fevereiro

    Maro

    Abril

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    [Tratamento dos dados

    das entrevistas]

    Recuperao dos

    questionrios

    Redaco da 1

    parte da tese

    fundamentao

    terica e

    conceptual

    Maio

    Junho

    Julho

    Agosto

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    [Formulao de

    hipteses emergentes]

    Aplicao e recuperao

    dos questionrios (Maio)

    [Elaborao dos

    questionrios]

    Redaco da 1

    parte da tese

    fundamentao

    terica e

    conceptual

    Setembro

    Outubro

    Novembr

    o

    Dezembr

    o

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    Elaborao das questes

    para as entrevistas

    Realizao das

    entrevistas (Fevereiro e

    Maro)

    Tratamento dos dados

    parciais

    [Aplicao dos

    questionrios]

    2004 Janeiro

    Fevereiro

    Maro

    Abril

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    Tratamento dos dados

    das entrevistas

    [Tratamento dos dados

    dos questionrios]

    Maio

    Junho

    Julho

    Agosto

    Setembro

    Outubro

    Novembr

    o

    Dezembr

    o

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    Tratamento dos dados

    das entrevistas

    Aplicao e recuperao

    dos questionrios (Maio)

    Redaco dos

    dados relativos

    s entrevistas

    [Redaco final]

    2005 Janeiro

    Fevereiro

    Maro

    Abril

    Maio

    Junho

    Julho

    Agosto

    Setembro

    Reviso

    bibliogrfi

    ca

    Aplicao e recuperao

    dos questionrios

    (Janeiro)

    Tratamento dos dados

    dos questionrios

    Redaco dos

    dados relativos

    aos

    questionrios de

    opinio

    Redaco final

    Reviso

    [Reviso]

    O dado que se evidencia que a reviso de literatura acompanhou, tal

    como previamente estipulado, todo o trabalho de campo desenvolvido,

    esclarecendo, fundamentando-o ou fazendo evidenciar problemas e desafios.

  • 11

    Tambm o trabalho de arquivo foi o ponto despoletador de toda a problemtica,

    como havamos previamente pensado.

    A maior alterao relativamente ao projecto inicial residiu na inverso da

    ordem com que cruzmos os dados qualitativamente e quantitativamente

    recolhidos. Tendo originariamente sido nosso propsito fazer da entrevista o

    incio do trabalho de campo, reflexes ulteriores com o orientador desta tese

    conduziram-nos concluso que era das entrevistas j feitas na dissertao de

    mestrado que deveramos partir. Deste modo, transformmos as entrevistas

    num confronto final dos representantes dos respondentes com os resultados

    obtidos de forma quantitativa, atravs de inqurito por questionrio realizado

    aos seus pares, por um lado, e a outros grupos de informantes, por outro.

    Atendendo amplitude do trabalho, e no sentido de rentabilizar esforos e

    reflexes, sentimos necessidade de ir redigindo partes do texto, conforme a

    investigao se ia efectuando, para no final do tempo dedicado a esta tarefa

    fazermos apenas a sua redaco final.

    Depois do que foi enunciado altura de voltarmos a referir a estrutura

    desta investigao, no j de forma problematizadora como inicimos esta

    introduo, mas concretizando os propsitos ento apresentados. Esta tese

    tem duas partes distintas: uma primeira estruturante da perspectiva conceptual

    do estudo, constituda pelos quatro primeiros captulos; uma segunda,

    dedicada ao enquadramento metodolgico e composta por dois captulos.

    Assim, comearemos por, no primeiro captulo, esclarecer os aspectos

    organizativos e curriculares relacionados com a formao inicial de

    professores, enquadrada pelos desafios de Bolonha. De seguida, o segundo

    captulo apresentar uma reflexo sobre as polticas educativas e curriculares

    de formao de professores, a qual passar pela identificao de medidas neo-

    liberais que, actualmente, caracterizam o sistema educativo; ser esclarecida

    pelos conceitos de modernidade e ps-modernidade, leit-motives da

    actualidade.

    No movimento de afunilamento de interesses que, nesta investigao

    nos move, centrar-nos-emos, de seguida, na vida nas escolas, discutindo as

    questes da educao, da cidadania e do sujeito, que desembocaro,

    necessariamente, na dinmica das culturas escolares e profissionais. Ser

  • 12

    ento altura de nos centrarmos no professor em incio de carreira, e no muito

    que hoje se sabe j sobre as suas representaes e necessidades.

    Construdas e explicitadas as linhas de fora do trabalho de campo, o

    captulo cinco ser dedicado ao contexto metodolgico da investigao. Ao

    longo dessas pginas, justificaremos todas as decises tomadas, no sentido de

    garantir a eticidade da investigao realizada. Identificaremos a estratgia de

    recolha de dados, composta por metodologias no interferentes, por

    metodologia qualitativa e por metodologia quantitativa; esclareceremos os

    diferentes mtodos de anlise de dados: a estatstica descritiva e a anlise de

    contedo. Apresentaremos os dados e faremos, a partir deles, uma anlise

    crtica e interpretativa, atravs do confronto dos dados empricos com os dados

    tericos e contextuais. Deste ltimo captulo o sexto ressaltar a

    constatao que o Ramo Educacional FLUP foi um projecto com dfice de

    projecto (CASTRO, 2005), numa aposta que tinha condies para ter sucesso.

  • 13

    1 Parte

    Enquadramento Conceptual

    Reconheo a realidade. Reconheo os obstculos, mas recuso acomodar-me em silncio ou simplesmente ser eco vazio, tmido ou cnico perante o discurso dominante (FREIRE, 1997).

  • 14

  • 15

    Captulo I

    Organizao curricular nos cursos de formao inicial de professores

    As decises curriculares no podem ser analisadas na base da opinio pessoal e do mero consenso, (...) mas na base da investigao e avaliao das experincias (PACHECO, 2002a).

  • 16

  • 17

    1. Os Estudos Curriculares Somos seres de briga numa vocao de liberdade e responsabilidade. No fundo, tambm uma vocao de quem decide e opta, por isso mesmo uma vocao tica. Acredito que a nossa presena no mundo implica uma eticidade permanente (Paulo Freire)4.

    Do mesmo modo que o significado do termo currculo, o campo desta

    rea de estudos tem sofrido alteraes. As definies propostas por Bobbit

    (1918), Tyler (1949), Hilda Taba (1983) e Louis D'Hainaut (1980), entre outros,

    reduzem o currculo a uma inteno prescritiva a que correspondeu o que

    normalmente se designa como a idade da eficincia do currculo, marcada pela

    sua gesto cientfica. Nesta perspectiva tradicional e tcnica, o currculo -

    implementado com o propsito de cumprir intenes previamente previstas5 -

    pode ser definido como o conjunto de todas as experincias planificadas no

    mbito da escolarizao dos alunos (PACHECO, 2002a).

    As definies de Schwab (1969), Stenhouse (1987), Kemmis (1988),

    Gimeno Sacristn (1988) e Zabalza (1992) situam-se j numa perspectiva

    prtica, pelo que perspectivam o currculo como um projecto que resulta quer

    das intenes, quer da sua concretizao. Nesta linha anglo-saxnica, o

    currculo ser o conjunto das experincias educativas vividas pelos alunos

    dentro do contexto escolar (PACHECO, 2004b).

    Foi neste sentido que os documentos que regulamentaram as reformas

    educativas do final do sculo XX em Portugal foram construdos. A definio de

    currculo que aparece nesses documentos refere uma realidade socialmente

    construda com base na negociao e na tomada de decises.

    Nos seus desenvolvimentos mais completos, dentro desta perspectiva

    prtica, o currculo surge como uma construo social que resulta da

    necessidade de responder a aprendizagens que se consideram socialmente

    necessrias para um determinado grupo, numa determinada poca; corporiza-

    se atravs das decises dos responsveis e reflecte o poder dos campos

    cientficos (ROLDO, 2000). Currculo tudo o que aprendido dentro ou fora 4 Entrevista concedida agncia Lusa e publicada em 4 de Maio de 1997 no jornal O Pblico, pouco antes da sua morte. 5 Na tradio francfona, a ideia de currculo est prxima da de programa (DHainaut, 1980).

  • 18

    da escola, quer o que assumido (currculo explcito), quer o que no

    assumido, apesar de ser intencional (currculo oculto), como consequncia da

    interveno directa ou indirecta da prpria escola.

    Trata-se de um conceito amplo que alarga a linha anglo-saxnica, a qual

    restringe o currculo ao conjunto das actividades educativas planeadas; um

    conceito que revela a conscincia de que a antiga misso de divulgar a informao, que era uma das funes grandes da escola, hoje de facto no o j; no s a escola que o faz divulgar, passar informao. Mas fornecer quadros enquadradores do conhecimento e produzir instrumentos de construo do conhecimento, isso realmente s a escola, at agora, tem possibilidade de fazer

    (ROLDO, 2000: 14).

    Numa ltima perspectiva (APPLE, 1994; PINAR, 1975; GIROUX, 1986;

    TADEU DA SILVA, 1993), o currculo considerado uma construo social

    historicamente situada, dependente de inmeros condicionalismos e de

    conflituosos interesses, que os autores crticos se tm preocupado em

    identificar. Tratou-se, num primeiro momento (entre as dcadas de 70 e de 90),

    de analisar a dimenso poltica da educao e as relaes entre escola e

    sociedade, assim como entre os interesses individuais e os interesses de

    grupo. A partir dos anos 90 foram as questes de identidade e de diferena

    (cultural), que passaram a reunir a ateno dos estudos culturais.

    No fundo, trata-se de desenvolvimentos das anlises das relaes

    existentes entre cultura e poder que so um dos pontos de partida do

    pensamento que marca as abordagens estruturalistas. So anlises

    conceptuais que descrevem o problema da representao entre processos de

    produo e processos de reproduo, nos quais a escola desempenha, pela

    sua funo social, um lugar central. Numa perspectiva estruturalista, o

    conhecimento e os factos sociais so o resultado da natureza estrutural, isto ,

    relacional dos fenmenos. Esta perspectiva representada por Gaston

    Bachelard e Louis Althusser, na Filosofia, Mikhail Baktin e Noam Chomsky, na

    Literatura, Sigmund Freud e Jacques Lacan, na Psinanlise, Maurice Merleau-

    Ponty, na Fenomenologia, Pierre Bourdieu, na Sociologia, Roman Jakobson,

    na Lingustica, Claude Lvi-Strauss, na Antropologia, Fernand Braudel, na

    Histria e Basil Bernstein no Currculo. Da, o currculo de ordem estrutural tanto

    nas intenes quanto nas prticas (PACHECO, 2004b: s/p).

  • 19

    Contrariamente ao que referimos relativamente s reformas educativas,

    que marcaram o final do sculo XX portugus, na actualidade assiste-se ao

    recrudescer do eficientismo nas prticas curriculares, visvel nas perspectivas

    impostas pelo neoliberalismo educacional (LIMA E AFONSO, 2002),

    nomeadamente no controlo dos resultados e na pedagogia por competncias

    (PACHECO, 2002a),

    Mas a actualidade tambm marcada pela reconceptualizao do

    currculo que, assim, se inscreve de modo forte na agenda da ps-

    modernidade e do ps-estruturalismo. Nestas abordagens, e de forma no

    linear, a cultura ganha evidncia no campo do currculo, enquanto espao em

    que os significados se produzem; o currculo surge como uma prtica de

    significao que contribui para a produo de identidades6 sociais e se

    expressa atravs de conflitos e de relaes de poder (MOREIRA e MACEDO,

    2002), fazendo emergir as questes de identidade, e de diferena7 (TADEU da

    SILVA, 2000c):

    Se a identidade uma construo social que define os que, como ns, ficam dentro e os que, como eles, ficam de fora, analisar a formao de identidades exige que se compreendam os padres de incluso e excluso que fazem com que sempre que se forme um ns se fechem as portas para os eles (Gilroy, 1997). Exige que se compreendam os mecanismos, as disputas e as relaes de poder em cujo mbito se dividem os semelhantes dos diferentes, os ns dos outros. Exige que se compreenda o processo histrico em que se definem as categorias e as classificaes que demarcam os territrios e as fronteiras, o interior e o exterior. Da a preocupao, no currculo, em capacitar o aluno a analisar e a compreender esses processos (MOREIRA e MACEDO, 2002: 19/20).

    Nesta linha de redefinio do campo do currculo, a investigao tem-se

    debruado, na tradio anglo-americana, mas tambm em Espanha, no Brasil,

    e j em Portugal, sobre as polticas educativas (GIMENO SACRISTN, 1998;

    6 Desde os primrdios da modernidade que as questes de identidade so alvo de reflexo. Identificavam-se ento com as questes da subjectividade e acabavam por ser reduzidas identidade nacional. Recentemente, o fenmeno da globalizao, o desenvolvimento dos meios de comunicao e os fluxos migratrios fizeram com que as identidades nacionais passassem a ser menos relevantes para o processo de construo de identidades. A existncia de uma identidade unificada passa a ser vista como mera fantasia: no h um ncleo essencial do eu, estvel, que passe, do incio ao fim, sem mudana, por todas as vicissitudes da histria. O que se tem um sujeito fragmentado, descentrado, deslocado tanto do seu lugar no mundo social como de si mesmo, composto de vrias identidades, algumas contraditrias ou mesmo no resolvidas o sujeito ps-moderno (MOREIRA e MACEDO, 2002: 18). 7 Devemos distinguir diferena de distino ou diversidade. Enquanto a diferena pressupe uma relao que no est sujeita a categorizaes, apenas identificao de elementos de uma identidade, a diversidade decorre de categorizaes, isto , da distino com base em pontos externos de comparao e contraste.

  • 20

    TORRES SANTOM, 2001; PACHECO, 2000a; TADEU da SILVA, 1993,

    1994), abraando aspectos como educao e poder (APPLE, 1994), poltica

    curricular integrada e autonomia curricular (PACHECO, 2000c, 2000d; LEITE,

    2003; MORGADO, 2000a, 2000b); sobre questes de liderana (DAY, 2000;

    MORGADO, 2004b), de desenvolvimento profissional de professores (DAY,

    2002; FLORES, 2000a) e de profissionalidade e profissionalismo (ESTRELA,

    2001; HARGREAVES, 2000); sobre cultura popular e escola (GIROUX e

    SIMON, 1994); sobre cultura escolar (HARGREAVES, 1995; PREZ GMEZ,

    1998), cultura profissional (HARGREAVES, 1994, 1998) e interculturalismo

    (LEITE, 1996, 2002, 2003); sobre identidade social (TADEU da SILVA, 1995) e

    ainda sobre a reproduo social (GOODSON, 2001).

    uma linha recente de investigao, no que respeita ao trabalho que se

    vem fazendo em Portugal, como se constata na anlise sobre a produo

    cientfica ocorrida entre 1990 e 2001 (PACHECO, 2002b). De entre as

    temticas que nesse perodo foram objecto de estudos de investigao,

    destacam-se como sendo as mais valorizadas a organizao curricular, o

    currculo e a formao de professores, a avaliao, o currculo e a

    autonomia/reforma; as temticas sobre as quais existem registos pouco

    significativos, em termos de quantidade, so (por ordem decrescente) o

    currculo e o multiculturalismo, o currculo no ensino bsico, o currculo e a

    investigao, as estratgias pedaggicas, os programas, o currculo e a

    indisciplina, o currculo no ensino superior, polticas curriculares, teorizao

    curricular, programao/planificao, currculo e gnero, fundamentao

    epistemolgica para o currculo. As temticas menos valorizadas so os

    contedos, o currculo no ensino secundrio, os pressupostos curriculares, os

    manuais8 e os objectivos.

    A partir destes dados, constata-se a valorizao de temticas que esto na confluncia das decises curriculares, da dcada de 90, marcadas pela reforma e pelo

    processo de reorganizao e/ou reviso curricular (PACHECO, 2002b: 238)9.

    uma tendncia que s recentemente acompanha o

    8 Refira-se a propsito o livro de J. C. MORGADO (2004a). Manuais escolares contributo para uma anlise. Porto: Porto Editora. 9 Destes resultados uma segunda constatao identificada: a difcil tarefa de estabelecer as fronteiras entre Currculo e Didctica e entre Didctica Geral e Didctica Especfica. A ela nos referiremos algumas pginas frente, nesta tese.

  • 21

    aumento de interesse por problemas relacionados com a diversidade cultural, quer atravs de estudos sobre educao e diversidade, quer directamente sobre culturas e outros que tm a problemtica da diversidade na base das preocupaes tericas que estruturam o trabalho (...) num nmero cada vez mais alargado de reas de pesquisa (Sociologia, Educao, Antropologia, Lingustica, etc.) (...) [n]uma relao bastante clara da pesquisa com problemas que tm vindo a ter lugar, sucessivamente, na sociedade portuguesa (descolonizao, regresso de emigrantes, e a transformao de Portugal num pas de imigrao (CORTESO et al, 2002: 51).

    Neste contexto, a investigao que aqui apresentamos inscreve-se

    numa concepo curricular como projecto ideolgico, que analisa e descodifica

    o contexto, atravs de uma atitude de vigilncia epistemolgica (BOURDIEU,

    2004); uma construo cultural (GRUNDY, 1991) que define identidades

    contextualizadas no tempo e no espao, atravs de uma atitude emancipatria

    (GIROUX e FREIRE, 1987).

    Neste sentido, assumimos que no currculo se cruzam saber e poder,

    representao e domnio, discurso e regulao e que, ainda neste sentido, o

    currculo materializa relaes sociais em que poder e identidades sociais esto

    mutuamente implicados (TADEU DA SILVA, 1999) a poltica de identidade situa-se, pois, na interseco entre representao como forma de conhecimento e

    poder (TADEU DA SILVA, 2000a: 61). Se a representao a relao entre, por um lado, o real e a realidade e, por outro, as formas pelas quais esse real e essa

    realidade se tornam presentes para ns re-presentados (ibidem: 60),

    justamente na interseco entre representao e identidade, que o currculo adquire a

    sua importncia poltica (ibidem: 96).

    Sem entrarmos na distino entre representaes mentais e

    representaes objectais (BOURDIEU, 1998), consideraremos que promover

    um currculo coerente deve envolver uma explorao do modo como as

    pessoas percepcionam as suas experincias, pois construmos, a partir das

    nossas vivncias, esquemas de significados sobre ns prprios e sobre o

    mundo. Consideraremos ainda que estas leituras do real so condicionadas

    pela nossa cultura, pelo que emergem diferentes leituras em funo da raa, da

    etnia, da classe, do sexo, da provenincia geogrfica, da idade, dos padres

    familiares (BEANE, 2000).

    Por outro lado, mas no mesmo sentido, assumimos que, como as identidades so culturalmente construdas, o currculo uma prtica de identidades que, historicamente partilhadas e mediadas pelos sujeitos em funo de situaes

  • 22

    particulares, englobam valores, sentimentos, atitudes, expectativas, crenas e saberes (PACHECO, 2002a: 123).

    uma definio de currculo que coloca diferentes desafios formao

    inicial de professores o objecto desta investigao -, uma vez que exige que

    os profissionais da educao possuam competncias de trabalho em equipa

    para, integrados em comunidades crticas se trata de comunidades de personas com preocupaciones mutuas, que interactan directamente entre s (...) cuyas relaciones

    se caracterizan por la solidaridad y la preocupacin mutua (GRUNDY, 1991: 171) ,

    desenvolverem competncias de deciso.

    Os docentes tm que ser formados para actuarem curricularmente, para

    serem profissionais do currculo (ROLDO, 2000), executores, decisores; para

    serem obreiros do desafio actual dos sistemas educacionais: a passagem de

    currculo a projecto curricular, a operacionalizao do currculo enquanto

    escolha, orientao e organizao, pensado e decidido a diferentes nveis, num

    continuum do processo de desenvolvimento curricular, da mxima

    generalizao para a mxima concretizao (PACHECO, 2001).

    Um continuum que, no contexto poltico-administrativo, deveria permitir:

    i) proceder a uma organizao curricular pluri-disciplinar, em que vrias

    disciplinas afins entram em correlao sem que nenhuma perca a sua

    identidade10; ii) implementar um modelo integrado, que conduziria

    interdisciplinaridade e, concomitantemente, ao atendimento diferenciado por

    nveis de desenvolvimento e satisfao dos interesses dos educandos, em

    resposta aos diferentes ritmos de progresso dos alunos11; iii) fazer a

    abordagem curricular com base em contedos correlacionados e em

    reas/campos de saber.

    No que respeita s decises curriculares tomadas no contexto de gesto

    (nvel meso) e que no fazem parte da tradio portuguesa, devido ao peso do

    centralismo, a operacionalizao dos princpios atrs enunciados exigiria uma

    outra perspectivao da cultura docente e da formao de professores, em que

    a escola se assumisse como um territrio educativo, um espao institucional de

    gesto e adaptao do currculo, em autonomia curricular, educativa, cultural,

    10 esta a lgica que preside ao esprito da organizao curricular do 2 ciclo do E.B. em reas Disciplinares. 11 H que distinguir esta noo da de transdisciplinaridade, que pressupe a existncia de um axioma comum a vrias disciplinas, cujos contedos so da responsabilidade de vrios professores, em vrias disciplinas.

  • 23

    pedaggica e administrativa, consubstanciado no Projecto de Escola: projecto

    educativo (estabelecimento de fins educativos, em parceria entre a escola e a

    comunidade); projecto curricular (programao elaborada pelos professores no

    interior de um determinado grupo de docncia, com base nos planos

    curriculares e nos programas12 que ensinar? quando? como? o qu, quando

    e como avaliar?); projecto organizativo (identificao dos princpios e modelos

    de organizao, abarcando: i) organizao curricular horizontal decises

    tomadas a nvel da administrao regional e local e ao nvel de escolas, ii)

    organizao curricular vertical decises tomadas em agrupamentos de

    professores, de encarregados de educao, etc.).

    Finalmente, ao nvel do contexto de realizao, concretizado ao nvel da

    sala de aula (nvel micro), e consubstanciado em termos de decises relativas

    sequencializao e gesto dos contedos, assim como relativas

    organizao de situaes de aprendizagem, da utilizao de materiais e da

    implementao de procedimentos de avaliao, as alteraes resultariam no

    projecto didctico, em termos da actuao dos professores em equipas inter e

    pluridisciplinares.

    No momento que actualmente vivemos, urge que, aos rankings de

    escola, que hierarquizam os estabelecimentos de ensino em funo dos

    resultados abstractos, ditos objectivos, sem atender multiplicidade dos

    contextos locais, os professores consigam que o

    desenvolvimento curricular baseado na escola [funcione efectivamente] como unidade bsica da mudana, em funo do protagonismo dos actores, sobretudo dos professores e alunos, e da busca dos critrios de qualidade. (...). Nesta linha, e de acordo com o relatrio da OCDE (1992), a escola deve ser portadora de uma autonomia, estar imbuda de uma cultura organizacional e possuir uma identidade formativa (PACHECO, 2000b: 100).

    Uma identidade construda por professores cuja formao lhes permite

    serem profissionais do currculo que actuam de acordo com o contexto de

    deciso em que esto inseridos e a cada contexto fazem corresponder a

    respectiva fase de desenvolvimento do currculo: no contexto poltico- 12 Com Zabalza (1992) distinguimos programa e programao do seguinte modo: programa o documento oficial, emanado do poder central, que contm o conjunto de prescries relativamente ao ensino; programao a territorializao dos pressupostos gerais do programa, desenvolvida pelos professores para um grupo de alunos concreto, numa situao concreta.

  • 24

    administrativo, o currculo prescrito, oficial, explicitado atravs dos planos

    curriculares, dos programas e dos objectivos curriculares e torna-se currculo

    apresentado, pela via dos manuais escolares adoptados; torna-se currculo

    programado, moldado, percebido e institucionalizado no contexto de

    realizao, para ento ser planificado e se tornar o currculo real, no contexto

    de realizao, e ser depois avaliado.

    Estamos a falar de professores que equacionam o currculo oculto,

    implcito, latente, no ensinado; o conjunto de processos e efeitos ausentes

    dos programas oficiais, mas transmitidos de forma clara no sistema educativo.

    Professores, tambm, que vem o desenvolvimento curricular como um

    processo circular e integrado de execuo (planificar o currculo) e concepo

    (pensar o currculo), numa lgica dialctica entre inteno e aco, com base

    na elaborao, na implementao e na avaliao do processo de ensino e de

    aprendizagem.

    So profissionais que constantemente procuram resposta questo

    curricular fundamental: quais as aprendizagens que os professores precisam

    de fazer na actualidade?. Encontram as suas respostas atravs da leitura

    crtica do fenmeno educativo, a partir das diferentes correntes filosficas: os

    professores precisam de i) aprender os contedos estruturantes da sua rea de

    especialidade (essencialismo); ii) os contedos que permanecem atravs dos

    tempos (perenealismo); iii) os contedos que esto em debate, sujeitos a

    mudana (progressivismo); iv) os contedos que tm uma implicao directa na

    mudana da sociedade (reconstrucionismo).

    Encontram tambm as suas respostas nas diversas propostas

    relativamente s formas de teorizar o conceito de Currculo, enquadrando os

    conceitos de currculo e de desenvolvimento curricular nos seus pressupostos:

    aluno, cultura, sociedade e ideologia. Eisner e Vallance (1974) falam de cinco

    orientaes curriculares - currculo como desenvolvimento dos processos

    cognitivos, como tecnologia, como auto-realizao ou experincia

    consumatria, como reconstruo social, como racionalismo acadmico;

    Landsheere (1992) refere trs orientaes - Saber (que engloba as

    orientaes tecnolgica e racionalista de Eisner), Aluno (que abarca os

    processos cognitivos e a auto-realizao de Eisner), Sociedade (ou

    reconstruo social de Eisner). Meyer (apud Pacheco, 2001) fala de trs tipos

  • 25

    de legitimao do currculo: normativa, processual, discursiva; Schiro (1980)

    fala de ideologias curriculares: acadmica, eficincia social, centrada no

    aluno e reconstruo social; Holmes e McLean (1992) falam de modelos

    curriculares: essencialismo, enciclopedismo, politecnicismo (vertente tcnica

    da eficincia social), pragmatismo. McNeil (1977) fala de concepes

    curriculares - humanstica (Escola Nova), reconstruo social (Neo-

    marxismo), tecnolgica (Pedagogia por Objectivos), acadmica (Medieval);

    Gimeno Sacristn (1988) fala tambm de concepes curriculares:

    exigncias acadmicas, experincia, legado tecnolgico, configurao prtica;

    Lundgren (1992) fala da existncia de cinco cdigos13: clssico (at Idade

    Mdia), com uma estrutura dos discursos tradicionais; idealista - renovao

    pedaggica e adequao aos interesses, com Rousseau e Montssori; moral

    formao de atitudes e valores, preparao para a cidadania; racional

    contedos escolhidos na obedincia a propsitos econmicos e financeiros;

    oculto ou invisvel sntese de todos os cdigos, interaces no previstas a

    nvel oficial.

    So saberes prprios do discurso curricular (PACHECO, 1995a), que

    permitem proceder identificao do campo de interveno do currculo, tarefa

    tanto mais necessria quanto desde o surgimento da escola oficial, no sculo

    XIX, e a institucionalizao da formao de professores, no sculo XX, o

    conceito de currculo imps-se (NVOA, 1997: 14) e se tornou um conceito-

    chave em educao (PACHECO, 2004a).

    No entanto, numa fase em que o currculo constituye una de las reas ms importantes de la investigacin educativa (), sera de esperar que el campo de la teora curricular estuviera bien desarrollado, pero incluso un simple repaso a la literatura

    curricular revela que esto no es as (LUNDGREN, 1992: 71). Por um lado, a presso externa que sofre particularmente forte e (...) as condies internas da

    autonomia so muito difceis de instaurar (BOURDIEU, 2004: 121). Por outro, em

    educao h reas de saber que, para serem compreendidas, necessitam de

    uma compreenso mtua e complementar. o caso da relao entre currculo

    e didctica. Apesar de ser tcito que o currculo engloba os parmetros

    institucionais de deciso e justificao do projecto educativo, enquanto 13 Para Lundgren cdigos curriculares so "un conjunto de principios fundamentales segn los cuales se desarrolla el curriculum (...). Se debe considerar el curriculum como un texto pedaggico que aparece cuando los procesos de produccin y reproduccin de una sociedad estn separados uno del otro (Lundgreen, 1992: 67).

  • 26

    didctica diz respeito a planificao, realizao e avaliao do processo

    ensino/aprendizagem, competindo-lhe associar os mtodos aos contedos e a

    transformao pedaggica dos mesmos (PACHECO, 2004b), fazendo a

    reviso dos textos escritos em Portugal entre 1990 e 2001, constata-se uma difcil tarefa de estabelecer as fronteiras entre Currculo e Didctica e entre Didctica

    Geral e Didctica Especfica (PACHECO, 2002b: 238). o caso de trabalhos

    sobre objectivos, contedos e manuais que, sendo temas obrigatrios da

    Didctica Especfica, tambm o so, ainda que numa perspectiva mais geral,

    da Teoria e Desenvolvimento Curricular.

    Por um lado, possvel identificar a existncia de trs discursos

    educacionais: um ligado s cincias auxiliares da educao (Sociologia da

    Educao, Psicologia da Educao, Administrao Educacional, Filosofia da

    Educao); outro relacionado com as cincias da especialidade (englobando

    necessariamente o discurso da Didctica Especfica); outro ainda que se

    prende com o Currculo, e cujo objecto de estudo abrange os saberes gerais

    comuns s diferentes especialidades de ensino, sem qualquer dependncia de

    disciplinas acadmicas, pois trata de problemas especificamente educativos;

    um territrio prtico que exige discusso, investigao e interveno (ibidem:

    238).

    Por outro lado, se a origem dos Estudos Curriculares se situa, no sculo

    XIX, no Currculo e Instruo, passando nas dcadas de setenta e oitenta do

    sculo XX para as questes da ideologia e do poder, hoje em dia abarca

    essencialmente os Estudos Culturais. No faz sentido, por isso, discutir

    territrios especficos do currculo e da didctica, quando o trabalho curricular

    dos professores nas escolas profundamente cultural.

    Os Estudos Curriculares situam-se, porm, numa complexidade de

    perspectivas sobre currculo, a que correspondem diferentes conceitos e uma

    permanente conflitualidade de contextos/nveis de deciso e ainda de territrios

    epistemolgicos. E justamente neste sentido que diferentes orientaes,

    perspectivas e ideologias curriculares definem diferentes teorias curriculares,

    como veremos de seguida. Tambm a sua caracterizao importante para a

    anlise de dados que apresentaremos na segunda parte desta tese.

  • 27

    1.1. As teorias curriculares 1.1.1. Habermas e a teoria dos interesses constitutivos do conhecimento

    em Habermas14 que encontramos os fundamentos para as teorias

    curriculares, tal como nos aparecem definidas por KEMMIS (1988), tendncia

    que tem marcado a Teoria e o Desenvolvimento Curricular at actualidade. Aquele filsofo da segunda fase da Escola de Frankfurt considera que a

    delimitao dos campos de conhecimento das cincias influenciada pelos

    interesses15 constitutivos do conhecimento: o campo das cincias

    experimentais caracteriza-se por uma relao com a realidade marcada pelo

    agir tcnico-instrumental; o campo das cincias histrico-hermenuticas f-lo

    actuando sobre o mundo cultural atravs da aco comunicativa na vida social

    prtica; o campo das cincias crticas e da psicanlise relaciona-se com a

    realidade do interesse emancipatrio.

    Por um lado, a identificao do interesse crtico e emancipatrio com

    uma rea de interveno especfica a da psicanlise -, logo fora do mbito,

    quer das cincias experimentais, quer das cincias sociais, condicionou at

    actualidade o mbito de interveno do currculo. Por outro lado, para

    Habermas, a crtica apresenta um horizonte de sentido regulado pela ideia de

    consenso, numa linha de regulao kantiana. Foi neste quadro que se operou a

    delimitao do campo especfico do saber para a Teoria e Desenvolvimento

    Curricular e de afirmao desta disciplina como uma cincia, como

    evidenciaremos de seguida.

    Tomando como referncia a relao do homem com a natureza,

    Habermas considera que na base do conhecimento16 est o interesse. Afirma

    que o conhecimento um jogo de interesses e de necessidades, pelo que s

    conhecemos aquilo que nos interessa. Por um lado, o homem subjuga a

    natureza s suas necessidades, tentando obter o mximo sucesso com a

    mxima economia de meios ( o princpio da utilidade que o move). Trata-se da

    actividade instrumental ou teleolgica, realizada atravs do trabalho, que

    14 Habermas representante da 2 gerao da Escola de Frankfurt e a sua actividade intelectual tornou-o um dos mentores da revolta estudantil de Maio de 68 (embora tambm tenha sido um dos seus crticos). 15 O conceito de interesse remete para a unidade do conjunto vital no qual a cognio est inserida (SIEBENEICHLER, 1990: 81). 16 Habermas refere-se a qualquer tipo de conhecimento relacionado com a aco humana e no s ao conhecimento cientfico.

  • 28

    origina um conhecimento relacionado com a produo e a reproduo de

    tcnicas.

    Por outro lado, a apropriao da natureza pelo homem faz-se em

    sociedade com outros homens. Trata-se de um interesse intersubjectivo, social

    e comunicativo, que se realiza atravs da linguagem, isto , da aco

    comunicativa, que leva organizao social. o interesse prtico.

    Em ltimo lugar, Habermas identifica o interesse relacionado com a

    emancipao da conscincia relativamente aos poderes institudos

    ideolgicamente, e que traduz as ideias de liberdade, maioridade e de

    subjectividade (SIEBENEICHLER, 1990: 82). Segundo Habermas, a

    emancipao processa-se, com base em momentos emancipatrios presentes

    nos outros dois interesses que conduzem o conhecimento: o interesse tcnico,

    ao ter como propsito o domnio da natureza, pretende, atravs dele, conseguir

    a libertao do homem, do mesmo modo que o interesse prtico, ao procurar a

    compreenso do sentido da existncia, pretende a libertao do homem em

    relao fora das tradies culturais redutoras e opressivas.

    Esta omnipresena do interesse emancipatrio no desenvolvimento dos

    outros dois interesses no foi, porm, valorizada pelos curricularistas que tm

    marcado o desenvolvimento desta rea do conhecimento.

    Tratar-se-ia de considerar que a teoria tem sempre ligao com a praxis,

    com uma praxis emancipatria, que tem como metodologia a reflexo e a auto-

    reflexo. Explicitando: um trabalho de prtica terica que pretende levar

    consciencializao do enraizamento do conhecimento humano na praxis social,

    dirigindo, para isso, o acto de pensar para a complexidade contextual do agir

    humano. Tratar-se-ia, no fundo, de fundamentar a praxis emancipatria numa

    crtica dialctica, que, para Habermas e para a escola de Frankfurt, no deve

    ser dogmtica, impondo a sua viso teoria criticada para identificar a

    falsidade da mesma.

    Pelo contrrio, a crtica, que deve ser dialctica, debruando-se sobre a teoria a ser criticada e recebendo dela, no momento da crtica, impulsos de pensamento

    que nascem precisamente de suas brechas e contradies (SIEBENEICHLER, 1990:

    27), o que faz com que as contradies da teoria criticada no constituam

  • 29

    indcios de fraqueza de pensamento do autor tratado, mas indicadores de que um determinado problema ainda no foi resolvido definitivamente ou que est encoberto (ibidem: 27). Com Habermas abre-se a possibilidade de uma anlise

    interdisciplinar (crtica e dialctica) da sociedade, logo a de uma interveno

    crtica e emancipatria no mbito dos estudos curriculares.

    Na verdade, recorrendo teoria dos interesses constitutivos dos saberes

    (HABERMAS, 1987), possvel identificar trs grupos de Curricularistas:

    i) Os Tradicionalistas, que se situam no quadro do interesse tcnico

    caracterizado por Habermas, vem o currculo como uma instncia

    determinada por especialistas, um produto que, uma vez

    apresentado aos professores (tcnicos), ser por estes executado e

    transmitido aos alunos (seres passivos). O currculo focaliza os

    contedos, organizados disciplinarmente.

    ii) Os Empiristas (interesse prtico), perspectivam o currculo de acordo

    com o contexto de realizao; preconizam a autonomia dos

    professores e das escolas, focalizando as prticas.

    iii) Os Reconceptualistas (interesse emancipatrio ou crtico),

    consideram que o currculo um processo poltico que focaliza a

    reconstruo social, sendo definido a partir de comunidades

    constitudas atravs de uma praxis crtica, isto , teoricamente

    esclarecida.

    E assim que Kemmis (1988) define trs teorias curriculares, da forma

    que o quadro a seguir transcreve:

    Teorias Curriculares (vd. KEMMIS, 1988)

    TEORIA TCNICA TEORIA PRTICA TEORIA CRTICA

    Centrada no Ministrio da Educao

    Centrada na Escola/Sala de aula

    Centrada na Comunidade

    Legitimidade Normativa

    (legislao / especialistas)

    Legitimidade Processual (variveis contextuais do processo)

    Legitimidade Discursiva (currculo depende de quem o aplica e incrementa)

    Racionalidade Tcnica:

    Saber fazer

    Professor executante, implementador de decises

    Racionalidade Prtica: o que se faz resulta de um contexto

    = processo de deliberao que estabelece a relao entre a inteno e a realidade

    Racionalidade Comunicativa: resultante da interaco e da autonomia das comunidades educativas trabalho em colegialidade

  • 30

    (intersubjectividade)

    Ideologia Burocrtica Ideologia Pragmtica Ideologia Crtica

    Teoria Prtica Teoria Prtica Prtica Teoria Prtica

    Organizao Burocrtica Organizao Liberal Organizao Participativa, Democrtica, Comunitria

    Discurso Cientfico Discurso Humanista Discurso Dialctico

    Aco Tecnicista Aco Racional Aco Emancipatria

    TRADICIONALISTAS EMPIRISTAS CONCEPTUAIS

    (processos cognitivos)

    RECONCEPTUALISTAS

    (reconstruo social)

    1918 Bobitt 1949 Tyler 1962 Hilda Taba

    1969 Schawb 1987 Stenhouse

    1970 - Paulo Freire

    1975 M. Apple

    1981 - H. Giroux

    1975 W. Pinar

    Currculo = Plano, Programa Currculo = Texto, Hiptese, Projecto, Inteno

    Currculo = Praxis

    A teoria tcnica , por sua vez, categorizada, por Gimeno Sacristn,

    segundo trs concepes como smula das experincias acadmicas; como

    base da experincia dos alunos e como legado tecnolgico, de acordo com o

    seguinte quadro:

    Concepes Curriculares (vd. GIMENO SACRISTN, 1988)

    Currculo

    =

    Smula de Exigncias Acadmicas

    Organizao Disciplinar

    Currculo

    =

    Base da Experincia

    Auto-realizao dos Alunos

    Currculo

    =

    Legado Tecnolgico e Eficientista

    Plano/Planificao para a Aprendizagem dos Alunos

    Centrado nos Contedos Centrado nos Alunos Centrado nos Resultados

    Escolstica medieval Dewey (incio sc. XX)

    Escola Nova

    Tyler (1949)

    Johnson (1967)

    Privilegia a transmisso de contedos (f na imutabilidade dos contedos)

    Atender experincia, interesses e expectativas dos alunos (no entanto, o currculo mantm a organizao que parte das caractersticas da Teoria Tcnica)

    Pedagogia por objectivos = a aprendizagem antecipada e convertida em objectivos.

  • 31

    (eficincia)

    a concepo mais dominante que os professores tm de currculo

    Consequncias:

    i) Valorizao das condies ambientais da aprendizagem

    ii) Planificao aberta para as experincias (valorizao do currculo oculto)

    iii) Ateno aos factos psicolgicos que interferem (valorizao do processo de aprendizagem dos alunos)

    Consequncias:

    Prepara-se tcnica e rgida do professor na formulao de objectivos.

    J nos anos setenta Eisner e Vallance (1974) tinham identificado cinco

    principais linhas curriculares, que apresentaremos agrupadas segundo trs

    ordens conceptuais: teoria tcnica, teoria prtica e teoria crtica.

    i) No mbito da teoria tcnica, identificam uma primeira orientao - o

    racionalismo acadmico; uma orientao tradicionalista, segundo a qual a

    principal preocupao curricular tornar os jovens capazes de adquirirem os

    instrumentos que lhes permitam participar na tradio cultural ocidental. A

    escola tem como funo a transmisso cultural cultivar o intelecto das

    crianas, fornecendo-lhes oportunidades de adquirirem os produtos da

    inteligncia humana (contidos nas disciplinas). O Ser educado aquele que

    capaz de ler e perceber as obras produzidas pelas grandes disciplinas

    (herana que data dos primrdios da civilizao grega). Neste contexto, o

    currculo s pode basear-se no estudo de matrias organizadas

    disciplinarmente17.

    Uma segunda orientao aborda as questes da auto-realizao; trata-

    se de uma perspectiva relacionada com o humanismo e o existencialismo.

    Considera-se que preocupao do currculo a autonomia e o crescimento

    pessoal do aluno, conseguidos atravs da veiculao de valores. O currculo

    o conjunto de experincias de aprendizagem que satisfazem, de forma total,

    cada aluno; e funo da escola fornecer quer os contedos quer os

    instrumentos para uma melhor descoberta de si, uma vez que Educao

    17 Poderamos salientar que esta perspectiva assenta em duas falcias: a do contedo (valorizao do que e no do como) formao livresca e a do universalismo: Educao quer dizer ensino. Ensino quer dizer saber como verdade. A verdade a mesma em todo o lado. Portanto, a educao devia ser a mesma em todo o lado (Hutchins, apud McNEIL, 1977).

  • 32

    capacitao, fora libertadora (meio de ajudar os alunos a descobrir coisas por

    si prprio)18.

    Uma terceira orientao assume carcter tecnolgico; relacionada com

    os modelos cibernticos, os sistemas industriais e o behaviorismo, a

    abordagem tecnolgica considera que o currculo est margem do contedo

    e do aluno. A preocupao expressa no currculo o processo o COMO e

    no o QU, estruturado em fases: Input /output / feedback / estmulo e

    reforo. O Currculo baseia-se na procura de meios eficientes para um conjunto

    de fins pr-definidos e que no so problematizados. Um currculo adequado

    considerado um meio que permite produzir qualquer fim. Para isso, funo da

    escola procurar a tecnologia atravs da qual o conhecimento melhor

    comunicado e a aprendizagem facilitada, para ser possvel ensinar tudo a todos

    e produzir aprendizagem. O Ser educado aquele que capaz de desenvolver

    um sistema liberto de valores, marcado por uma linguagem concisa, rgida,

    esquematicamente lgica, clara e directa19.

    ii) Identificada com a teoria prtica, existe a perspectiva que v o

    currculo orientado para o desenvolvimento dos processos cognitivos. uma

    orientao que se relaciona com a psicologia cognitiva e com as teorias da

    informao. O currculo visa o aperfeioamento das operaes intelectuais,

    pelo que maior a preocupao com o COMO do que com o QU, no

    sentido de compreender os processos atravs dos quais a aprendizagem

    acontece (e no o contexto social em que ela ocorre). Assim, funo da

    escola identificar os processos intelectuais mais importantes e eficazes e

    fornecer o ambiente e a estrutura para o seu desenvolvimento, isto , fornecer

    ao aluno uma autonomia intelectual que o habilitar a fazer as suas prprias

    escolhas e interpretaes de situaes com que se depara para alm do

    contexto escolar. A educao vista como uma dinmica da aprendizagem,

    um mecanismo imparcial de capacitao. 18 H, no entanto, que ter em conta que o conhecimento de si no sempre uma experincia feliz e a mudana de auto-conceito precisa de ser apoiada. Esta perspectiva assenta em conceitos limitados de diferenciao, por um lado, e parece dar demasiada nfase no indivduo, por outro (McNEIL, 1977).

    19 A abordagem lgica do tecnlogo que tenta ajudar o aluno a conseguir o domnio de objectivos especficos, tem sido acusada de deixar de fora mais influncias potenciais nos resultados de aprendizagem do que as que inclui. So tambm criticadas a reduzida validade das hierarquias estabelecidas, a inadequao no que toca a situaes imprevistas e a limitao dos conceitos de individualizao que assume (McNEIL, 1977).

  • 33

    iii) Na rea da teoria crtica, o currculo orientado para a reconstruo

    social. Trata-se de uma orientao ligada com o modelo sociopsicolgico

    (preconiza a interdependncia entre o desenvolvimento individual e a qualidade

    do contexto social). O currculo uma experincia total de valores sociais e

    posies polticas, com prioridade das necessidades sociais sobre as

    individuais. Sendo preocupao do currculo desenvolver uma melhor

    conjuno entre o indivduo e a sociedade, funo da escola a interveno no

    contexto social, pois ela agente de mudana, ponte entre o que e o que

    devia ser. O Ser educado.

    Tomaz Tadeu da Silva acrescenta a esta categorizao de trs teorias

    curriculares a referncia s teorias ps-crticas20. Num contexto marcado pelo

    ps-modernismo, com os seus fulminantes ataques ao sujeito racional, livre,

    autnomo, centrado e soberano da Modernidade (TADEU DA SILVA, 2000b: 116),

    em que as grandes narrativas21, as meta-narrativas e a objectividade so

    substitudas pelo subjectivismo das interpretaes parciais e localizadas

    (ibidem:: 117), no s o currculo oficial que questionado; tambm a teoria

    crtica do currculo o : o ps-modernismo desconfia profundamente dos impulsos emancipadores e libertadores da pedagogia crtica [considerando que] em ltima anlise, na origem desses impulsos est a mesma vontade de domnio e controlo da

    epistemologia moderna (ibidem: 119).

    Quer as teorias crticas quer as teorias ps-crticas defendem que o

    currculo uma questo de saber, de identidade e de poder; ambas mostram a

    insuficincia de caracterizar o currculo atravs dos conceitos tcnicos de

    eficincia ou das categorias psicolgicas de aprendizagem e desenvolvimento.

    No entanto, elas distinguem-se da seguinte maneira: para as teorias crticas o

    currculo um territrio poltico, uma construo social, enquanto para as

    teorias ps-crticas o currculo no pode ser compreendido sem uma anlise das

    relaes de poder nas quais ele est envolvido (ibidem: 153) e o poder est em 20 O que certos autores, com destaque para Tomaz Tadeu da Silva (2000b), chamam teoria curricular ps-crtica tem origem nas abordagens ps-moderna e ps-estruturalista. Porm, o reconhecimento simultneo do crtico e do ps-crtico: ao questionar alguns dos pressupostos da teoria crtica do currculo, a teoria ps-crtica introduz um claro elemento de tenso no centro mesmo da teorizao crtica. Sendo ps, ela no , entretanto, simplesmente superao. Na teoria do currculo, assim como ocorre na teoria social mais geral, a teoria ps-crtica deve combinar-se com a teoria crtica para ajudar-nos a compreender os processos pelos quais, atravs das relaes de poder e controlo, nos tornamos naquilo que somos. Ambas nos ensinaram, de diferentes formas, que o currculo uma questo de saber, identidade e poder (TADEU DA SILVA, 2000b: 151-152). 21 Tomaz Tadeu da Silva considera haver, na actualidade, uma luta pelo significado e pela narrativa, mas que atravs das narrativas, identidades hegemnicas so fixadas, formadas e moldadas, mas tambm contestadas, questionadas e disputadas (TADEU DA SILVA, 1995: 205).

  • 34

    toda a rede social nomeadamente nos processos de dominao centrados na

    raa, na etnia, no gnero e na sexualidade -, sendo o conhecimento parte

    desse poder. Por isso,

    O currculo lugar, espao, territrio. O currculo uma relao de poder. O currculo trajectria, viagem, percurso. O currculo a autobiografia, a nossa vida, o curriculum vitae: no currculo forja-se a nossa identidade. O currculo texto, discurso, documento. O currculo documento de identidade (ibidem: 155).

    1.1.2. Max Horkheimer e a dialctica do esclarecimento

    No ponto anterior referimos que Habermas identificava o interesse

    emancipatrio com o campo das cincias crticas e da psicanlise e que,

    apesar de este filsofo cujas perspectivas tm definido os fundamentos para

    a Teoria e Desenvolvimento Curricular - explicitar que este mesmo interesse

    est presente, quer na relao tcnica que o homem estabelece com a

    natureza, quer no agir comunicacional que o relaciona com esta e com os

    outros homens, a Teoria e o Desenvolvimento Curricular tm-se debruado,

    essencialmente, nos dois primeiros interesses.

    Na verdade, a identificao das diferentes teorias, concepes e

    orientaes curriculares, feita no ponto anterior, mostra a dificuldade que em

    Portugal tem havido em definir, na Teoria e Desenvolvimento Curricular, uma

    linha crtica e emancipatria. Se a teoria crtica tem caracterizado o dizer dos

    discursos da Administrao Central desde os anos oitenta, o mesmo no tem

    acontecido, nem ao nvel das teorias de instruo que regulamentam a

    formao de professores, nem, bvia e consequentemente, ao nvel das

    prticas docentes.

    Em Portugal, em 1998, Cndido Varela de Freitas lanou, no Colquio

    sobre Questes Curriculares organizado pela U.M.22, um pungente desafio

    reconceptualizao curricular, contrariando, quer o alerta de Schwab (1969) de

    que o currculo estava moribundo, quer o de Huebner (1976) que afirmara que

    o currculo estava morto (FREITAS, 1998).

    22 Foi justamente na Universidade do Minho que, em 1976/77, se leccionou, pela primeira vez em Portugal, uma disciplina de curriculum.

  • 35

    J anteriormente, na Amrica do Norte e no Brasil, Freire (1970), Apple

    (1975) e Pinar (1975), integrando um grupo heterogneo de reconceptualistas,

    pretenderam reanalisar o currculo. Uns como Freire - colocaram a tnica na

    organizao participativa e democrtica das comunidades, outros como

    Apple aliceraram a sua luta volta do questionamento das instituies e da

    aco emancipatria, outros ainda como Pinar consideraram que a funo

    do reconceptualismo era o discurso dialtico, com vista compreenso.

    Tratou-se, neste ltimo caso, de um contributo que teve frutos na

    investigao que se foi fazendo em termos curriculares, a qual, ao valorizar a

    compreenso dos fenmenos, se dedicou investigao do pensamento dos

    professores e dos alunos, com base numa investigao autobiogrfica, da qual

    emergiram perspectivas multiculturais de abordagem do quotidiano das

    escolas. No entanto, e como refere Peter Hlebowitsh, As guas encapelam-se com retrica sobre a luta contra a hegemonia, conscincia crtica e compreenso psicanaltica, enquanto as velhas correntes de guas profundas continuam a mover-se,

    na escola, em direces predizveis (HLEBOWITSH, 1997: 507).

    O discurso reconceptualista no tem conseguido, realmente, afirmar-se

    e as ressonncias do debate entre tradicionalistas e reconceptualistas no tero chegado a Portugal a no ser para um pequeno nmero de acadmicos, e julgo poder dizer que em certo sentido as posies dominantes sobre curriculum so, entre ns,

    ainda tylerianas (FREITAS, 1998: 22).

    Mais recentemente, alguns acadmicos - Henry Giroux (1986) nos EUA,

    Tomaz Tadeu da Silva (1993) no Brasil, e Jos Augusto Pacheco (2004b) em

    Portugal - tm recorrido primeira fase da Escola de Frankfurt e

    concretamente a Max Horkheimer (1937), o que deu um novo alento aos

    trabalhos desenvolvidos no mbito do currculo, nomeadamente ao desviarem

    o centro do debate da anlise comunicativa Habermasiana para uma reflexo

    prxima de uma anlise da cultura, tematizada por Horkheimer, e inserida

    numa tendncia a analisar e a teorizar a educao atravs de uma Teoria Cultural, a ver

    a educao em termos de campo poltico cultural (TADEU da SILVA 1993: 122).

    Vejamos porqu.

    Os termos centrais da filosofia prtica de Horkheimer so a

    emancipao, a liberdade e a felicidade. Diz a este propsito o prprio: en la

  • 36

    teora crtica, el concepto de necesidad es l mismo un concepto crtico; presupone el

    concepto de libertad, aunque no como concepto existente (HORKHEIMER, 2000:

    65). Considera que existe uma relao dialctica entre pensamento,

    esclarecimento e mito, assim como entre racionalidade e realidade social.

    Defendendo a necessidade de uma teoria crtica, este filsofo considera que a

    humanidade procura constantemente emancipar-se do medo, do mito e da

    dominao, em que constantemente cai. O mito e a dominao so o resultado

    de um progresso e de uma civilizao que se constroem na base do saber

    tcnico, o qual se fundamenta na dominao da natureza e dos homens,

    porque apoiado nos critrios de utilidade e de eficincia.

    justamente nesta predisposio da humanidade para a emancipao

    atravs do esclarecimento do pensamento crtico, livre, independente e

    tolerante, que no capitula face s sugestes do real e ao poder - que se

    fundamentam as mais recentes teorias do currculo:

    La teora crtica no tiene de su parte otra instancia especfica que l inters, vinculado a ella misma, en la supresin de la injusticia social (). En un perodo histrico como el nuestro, la verdadera teora no es tanto afirmativa como crtica, del mismo modo que la accin conforme a ella no puede ser productiva. El futuro de la humanidad depende hoy de la existencia de la actitud crtica, que naturalmente entraa elementos de la teora tradicional y de esta cultura moribunda en general. Una ciencia que, con presuntuosa autosuficiencia, considera la configuracin de la praxis a la que pertenece y sirve simplemente como lo que queda ms all de ella, y que se conforma con la separacin de pensamiento y accin, ha renunciado ya a la humanidad (ibidem: 77)23.

    Se uma Teoria Cultural da Educao v a Educao, a Pedagogia e o Currculo

    como campos de luta e conflito simblicos (TADEU DA SILVA, 1993: 122), um

    novo desafio se apresenta na actualidade para a Teoria Crtica da Educao:

    ultrapassar as preocupaes exclusivamente analticas que tm marcado a

    crtica, e cuja consequncia tem sido consubstanciada em entraves para a aco

    poltica [e] para a interveno social (ibidem: 124). No fundo, trata-se de

    perspectivar uma crtica dialctica, que permita uma linguagem da

    possibilidade e da esperana (GIROUX, 1986), ultrapassando o plano de crtica

    23 Este texto, lido na traduo espanhola de 2000, data de 1937.

  • 37

    negativa que, como o excerto transcrito esclarece, pode caracterizar as

    anlises sociais feitas com base em Horkheimer. Bruno Pucci diz a propsito

    que, se verdade que Horkheimer, Adorno e Marcuse fazem uma crtica

    contundente sociedade capitalista e indstria cultural, eles so acusados,

    pelos seus crticos, de terem ficado pela denncia, sem apresentarem

    perspectivas de superao. Acusam a sua dialctica de ter sido paralisante e

    incompleta. No entanto, a resistncia individual e colectiva (aos irracionalismos

    da barbrie fascista, do autoritarismo estalinista, da semicultura capitalista)

    feita pelos seguidores da Escola de Frankfurt existiu, e foi realizada atravs da

    Razo - da cultura, da educao, da formao, da arte - (PUCCI, 1995), numa

    linha iluminista de esclarecimento pela razo.

    Na verdade, da linguagem da possibilidade e da esperana faz parte

    uma estratgia intelectual de aco que perspectiva a teoria como uma prtica

    poltica e pedaggica, em que os educadores fomentam a participao efectiva

    dos estudantes atravs de uma pedagogia da teorizao (Giroux, apud SILVA,

    2002: 189), quer dizer, atravs do contacto com vrias e diversas teorias na

    soluo de problemas, de forma a associar anlise crtica a interveno

    poltica.

    Em suma, trata-se de praticar uma crtica dialctica que rompa com a

    teoria crtica radical das formas estabelecidas da cincia social (BOURDIEU, 2004:

    124) praticada, por exemplo, por Apple (1994). Na modernidade, a crtica tem

    sido feita com base numa ideia considerada correcta de educao, de currculo

    e de pedagogia, decorrente, por sua vez, de uma viso ideolgica da

    sociedade. Nesta perspectiva, a crtica consiste na anlise dos aspectos em

    que a sociedade e a educao esto deformadas relativamente ao modelo que

    serve de anlise. Deste modo se tem feito a anlise crtica da reproduo

    (BOURDIEU e PASSERON, 1970), conformada reflexividade a que poderamos chamar narcsica, no s porque esta reflexividade se limita muitas vezes a um retorno complacente do investigador s suas prprias experincias, mas tambm porque em si

    mesma o seu fim e no produz qualquer efeito prtico (BOURDIEU, 2004: 124).

    Pelo contrrio, trata-se agora de adoptar um posicionamento crtico atravs da

    capacidade reflexiva, que possibilite a construo da autonomia, que permita converter a reflexividade numa disposio constitutiva dos seus hbitos cientficos, ou

  • 38

    seja, uma reflexividade reflexa, capaz de agir no ex post, sobre o opus operatium, mas a

    priori, sobre o modus operandi (ibidem: 124).

    No sentido Kantiano, a crtica ps-moderna aparece associada ideia

    de incerteza, no sentido em que, na Crtica da Razo Pura, este filsofo

    defende que as mesmas provas que demonstram a impotncia da razo humana em relao afirmao da existncia de um tal ser, bastam tambm, necessariamente, para

    demonstrar a fragilidade de toda a afirmao contrria (VANCOURT, 1986: 78).

    Mas tambm remete para a ideia de esclarecimento24 e libertao, atravs da

    razo25. O mtodo que usa a anlise reflexiva.

    Deste modo, ser legtimo afirmar que

    O racionalismo crtico [Kantiano] mantm-se a igual distncia do dogmatismo e do cepticismo. No dogmtico, porque recusa razo humana o poder de conhecer um mundo inteligvel, feito de realidades transcendentes, ou seja, o poder de atingir o absoluto. Mas tampouco ctico, pois admite que o esprito humano capaz de chegar a verdades universais e necessrias (PASCAL, 1985: 46).

    A crtica ps-moderna assume assim uma dupla vertente: a conscincia

    dos limites das formas de pensamento, pois no se trata de procurar uma nova forma de saber absoluto, mas de exercer uma forma especfica de vigilncia

    epistemolgica (BOURDIEU, 2004: 124) e, simultaneamente, de criao de

    condies de emancipao, atravs da reflexividade, valorizando as condies

    sociais de possibilidade (idem: 125). Assim se conseguir uma prudncia

    epistemolgica que permite antecipar as hipteses provveis de erro ou, de forma

    mais lata, as tendncias e as tentaes inerentes a um sistema de disposies (idem:

    127).

    A necessidade de uma linguagem da possibilidade tinha j sido, como

    dissemos atrs, apresentada por Henry Giroux. Na verdade, se este

    curricularista e filsofo da educao norte-americano aceita, como ponto de

    partida da anlise da teoria e da prtica educacionais, os interesses emprico-

    24 Esclarecimneto (Aufklaerung) a sada do homem de sua menoridade (...). A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direco de outro indivduo (...). Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento (KANT, 1985: 100). 25 Isso nos faz lembrar Gramsci, para quem todos os homens so filsofos, intelectuais (PUCCI, 1995: 21).

  • 39

    instrumental ou tcnico, histrico-hermenutico ou interpretativo e crtico-

    emancipatrio de Habermas (1987), ele tambm considera a racionalidade

    emancipatria, tal como Habermas a tematiza, excessivamente regulada por

    um horizonte de consenso baseado num conjunto de normas aceites como

    verdade. Fundamentando-se nos tericos da primeira fase da Escola de

    Frankfurt, Giroux reconceptualiza o conceito de teoria26, atribuindo-lhe

    um valor de intencionalidade transformadora atravs de um movimento de crtica autoconsciente, ou de capacidade autocrtica, que a constitui como uma metateoria (Giroux, 198327: 15). No mbito destas dimenses transformadora e autocrtica da teoria cabe uma anlise que a situe menos como um conjunto estabilizado de prescries e mais como o reescrever das relaes entre a teoria e a prtica, por forma a criar condies de descoberta de novos objectos, problemas, valores, antagonismos e modos de aco. Por outras palavras, trata-se de situar num plano dialctico o debate, por vezes equvoco, em torno da relao entre teoria e trabalho emprico (SILVA, 2002: 179).

    Deste modo, ao criticar a crtica da reproduo (BOURDIEU e

    PASSERON, 1970), por inoperante, Giroux apresenta um modelo terico

    produtor. Trata-se de dar voz aos que habitualmente no a tm, utilizando as

    formas de organizao e de estruturao prprias, quer dos grupos

    dominantes, quer dos dominados, e facultando s classes dominadas o acesso

    aos saberes normalmente restritos s classes dominantes (GIROUX e SIMON,

    1989) a relao entre o modo de organizao e o contedo desse corpo de conhecimentos que faz com que a escola se torne num local onde a classe trabalhadora pode encontrar respostas a necessidades especficas, atravs de uma luta ideolgica (Giroux, 198828: 201, apud SILVA; 2002: 195).

    Por outras palavras, os educadores crticos e transformadores so os

    que compreendem que, para afirmar e fazer ouvir a voz dos grupos dominados

    necessrio que eles se apropriem da linguagem dominante e que os saberes

    dos grupos dominados passem a fazer parte da histria. Trata-se de

    26 Henri Giroux concilia, no delineamento filosfico que traa, aspectos do pensamento moderno e do pensamento ps-moderno (TADEU DA SILVA, 1993). 27 GIROUX, H. (1983). Pedagogia Radical. Subsdios. So Paulo: Cortez Editora. 28 GIROUX; H. (1988). Teachers as intellectuals. Toward a critical pedagogy of learning. New York and London: Bergin and Garvey.

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    facultar cultura da classe trabalhadora a compreenso da cultura humanstica tradicional constituda pelas ideias e autores consagrados pela histria oficial dominante, para que, numa perspectiva dialctica, essas ideias e autores reconhecidos com valor de universalidade, e academicamente organizados, possam ser criticados e rearticulados (...) [e que] se reconhea a existncia especfica de uma cultura da classe trabalhadora que no pode ser interpretada a partir de um plano de equivalncia com a cultura dominante (SILVA, 2002: 195).

    So, aqui, as questes da hegemonia que, com Gramsci (1974), Giroux

    coloca como tema central da educao e que, com Paulo Freire, sintetiza na

    ideia de que necessrio tornar o poltico mais pedaggico e o pedaggico

    mais poltico (GIROUX e FREIRE, 1987).

    Deste modo, mapeando os pressupostos da Teoria e do

    Desenvolvimento Curricular, se v que a teoria representa, reflecte, espelha a realidade. A teoria uma representao, uma imagem, um reflexo, um signo de uma

    realidade que (...) a precede (TADEU da SILVA, 2000b: 9), porque no fundo das teorias do currculo est (...) uma questo de identidade ou de subjectividade (ibidem: 14).

    O Processo de Desenvolvimento Curricular em que o currculo se traduz

    num plano de aco e num produto, em que predomina uma perspectiva

    racional e tecnolgica, com trs momentos independentes: elaborao (pelos

    especialistas), implementao (pelos professores) e avaliao (pelo sistema),

    corresponde teria tcnica. Pelo contrrio, quando o currculo um projecto,

    logo o processo de desenvolvimento curricular assume uma perspectiva

    racional prtica, em que existe uma interdependncia entre a elaborao, a

    implementao e a avaliao, insere-se na teoria prtica. Se o currculo

    praxis, logo o desenvolvimento curricular um processo racional crtico, em

    que a elaborao, a implementao e a avaliao competem comunidade

    educativa, trata-se de um processo inserido na teoria crtica.

    Horkheimer um autor fundamental para compreendermos a

    importncia epistemolgica da teoria crtica, dominante ao nvel dos discursos,

    sendo tambm certo que ao nvel das prticas continuam a ser trabalhadas as

    componentes da teoria tcnica ou de uma teoria da instruo, na linha

    tyleriana.

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    Em suma, reiteramos a existncia de duas teorias curriculares dominantes - teoria de instruo e teoria crtica -, alis subsidirias da classificao de Max

    Horkheimer, quando distingue teoria crtica de teoria tradicional (PACHECO, 2004b:

    no prelo). So duas teorias que correspondem, por sua vez, a dois

    posicionamentos distintos face ao acto educativo: as teorias tradicionais, cujos

    tericos procuram resposta questo que conhecimento deve ser ensinado, e

    as teorias crticas, cujos mentores se orientam no sentido de responder

    questo porqu essa escolha, na assuno de que nela esto sempre

    implicadas relaes de poder e de identidade. E com base neste

    pressuposto, que assumimos como linha orientadora desta investigao, que

    passaremos anlise dos modelos de desenvolvimento curricular que tm

    servido de base reflexo curricular.

    1.2. Modelos de desenvolvimento curricular

    Entendemos por modelo no um exemplo a seguir, uma norma para ser

    imitada, mas uma representao simplificadora e ilustrativa de estruturas e

    ligaes alcanadas atravs da reduo e acentuao de factores individuais.

    Um modelo , para ns, uma hiptese de trabalho, um esquema

    operatrio, uma construo. ESCUDERO MUOZ (1981) define modelo como

    uma construo que representa de forma simplificada uma realidade ou

    fenmeno, com a finalidade de delimitar algumas das suas dimenses e

    variveis. Um modelo permite uma viso aproximada, que orienta estratgias

    de investigao para a verificao de relaes entre variveis e que apresenta

    dados para a progressiva elaborao das teorias (FROUFE QUINTAS e

    CASTAO, 1994).

    Assim, um modelo curricular ser a forma como os diferentes

    componentes do currculo29 tomam a sua sequncia, de modo a assegurar o

    desenvolvimento do currculo.

    Modelo distingue-se de paradigma, na medida em que este um

    sistema ideal, testado, generalizado e partilhado por uma comunidade

    educativa; distingue-se de teoria porque esta o resultado da confirmao ou 29 Os diferentes componentes de currculo a que nos referimos so: os agentes (professores, alunos e comunidade), os componentes escritos (normativos legais, programas e carga horria) e a implementao (programao, metodologias, suportes e avaliao).

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    infirmao de diferentes possibilidades, sendo que os modelos esto para os

    paradigmas como as hipteses esto para as teorias (SCRIVEN, 1967).

    Em termos de modelos de desenvolvimento curricular, parece-nos

    pertinente distinguir, por um lado, e tendo como referncia a estrutura curricular

    e o papel desempenhado pelo professor, trs modelos de desenvolvimento

    curricular: centrado nos objectivos, centrado no processo e centrado na

    situao. No mbito dos dois primeiros, necessrio identificar trs grandes

    orientaes para o sistema de crenas dos professores, as quais determinam

    as escolhas de material e os sistemas de avaliao usados: i) orientao de

    desenvolvimento linear, de transmisso ou unidireccional, que corresponde ao

    modelo centrado nos objectivos; ii) orientao cclica ou circular, de transaco;

    iii) orientao de transformao. Estes dois ltimos correspondem ao modelo

    centrado no processo. Distinguimo-los segundo a funo que atribuem ao

    currculo, de acordo com o paradigma filosfico-cientfico por que se orientam,

    as metodologias que preconizam e a viso do mundo que pressupem, tal

    como o quadro seguinte esclarece:

    Orientaes para o