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Introduo
En un universo donde el xito consiste en ganar tiempo, pensar no tiene ms que un solo defecto, pero incorregible: hace perder tiempo, no es eficiente (PREZ GMEZ, 1998: 119).
2
3
A tese de doutoramento que aqui apresentamos inscreve-se, pelo
perodo a que se reporta, numa estrutura scio-econmica e cultural moderna;
porm, o momento em que foi escrita remete j para um contexto ps-
moderno, neoliberal. Assim, importa comear a sua apresentao pela
caracterizao das racionalidades tensionais em que assenta.
Partindo dos caminhos de sntese que Boaventura Sousa Santos
identifica como necessrios para a construo de uma teoria crtica ps-
moderna, esta tese tem como finalidade, no mbito de uma anlise da
formao inicial de professores, defender o papel essencial que a educao
deve reivindicar para, na tecedura econmica e social da actualidade, combinar
cidadania, subjectividade e emancipao. Trata-se de uma proposta para
ultrapassar os excessos de regulao modernos, os quais se jogaram em
subsnteses de cidadania sem subjectividade nem emancipao, subjectividade
sem cidadania nem emancipao, emancipao sem subjectividade nem cidadania,
emancipao com cidadania e sem subjectividade e emancipao com
subjectividade e sem cidadania (SANTOS, 1995: 232). Este propsito espelha-se
na escolha das epgrafes que estruturam a investigao e atravs delas que
faremos a primeira apresentao das pginas que se seguem.
Aps o alerta sobre a tendncia para o adormecimento a que a
sociedade nos parece incitar, no primeiro captulo, e inserindo claramente esta
tese na especialidade de Desenvolvimento Curricular, procura-se a alternativa
que apresentada por esta rea de estudos atravs do seu convite constante
investigao, com base na avaliao de experincias, numa linha integradora
de contributos de diferentes reas.
Entrando pela porta que esta rea do saber nos abriu, o ponto um do
primeiro captulo relaciona o posicionamento do curricularista com uma
presena tica no mundo, imprescindvel para garantir a liberdade e a
responsabilidade. O ponto dois deste mesmo captulo revela a necessidade de
que o discurso curricular faa parte do quotidiano dos professores, caminho
que at hoje tem sido difcil, a avaliar pela epgrafe que recolhemos no
Professor Albano Estrela. Aqui se procura uma via que passe pelo
entendimento entre o currculo e a didctica, assim se procurando combinar o
pensamento e a aco dos professores, pois lugar ou no lugar, cabe
4
educao conseguir (ou no) construir a utopia que se deseja. o que
abordaremos no ponto trs do primeiro captulo.
Depois desta abordagem, destinada aos que comungam uma viso
crtica da sociedade, sentimos necessidade de construir um segundo captulo,
que equacionasse as razes do que exposto no primeiro. Tratou-se de uma
insero numa rea de trabalho que no a nossa e que, por isso mesmo, foi
reduzida em extenso e em profundidade. Na verdade, ao atrevermo-nos a
utilizar ideias e conceitos prprios da Sociologia da Educao, da Filosofia da
Educao e da Psicologia da Aprendizagem, foi clara a dificuldade que
sentimos e foi cautelosa a sua apropriao.
Na verdade, o captulo dois desta tese o nico que sai do mbito de
especialidade que o nosso mais no pretende do que inserir a problemtica
que estudamos no contexto scio-econmico e social em que se inscreve. Sem
propsitos de inovao, nele identificamos nem sempre de maneira
encadeada, mas, esperamos, de forma compreensiva as linhas de fora que
so imprescindveis anlise do objecto por ns estudado a Formao Inicial
de Professores no Ramo Educacional da FLUP. assim que, no captulo dois,
se defender que a viso economicista no s com a educao que no
combina, pois toda a estrutura social por ela afectada. Para o mostrar, o
ponto um alerta para o vazio das palavras sempre que no assentam no
conhecimento das coisas, isto , na investigao, neste caso, a investigao
sobre polticas. Aprofundando esta ideia, o ponto dois mostra quais as
condies de que o mercado necessita para se impor a desideologizao.
Esta ideia desenvolvida no ponto trs, com a referncia s consequncias
deste percurso: a embriaguez do consumo e do servio ao instante.
Voltemos ento educao e, concretamente, vida nas escolas, de
onde s aparentemente tnhamos sado. Voltemos ao espao privilegiado de
aprendizagem da liberdade, a que se dedicar o captulo trs. Aqui, e seguindo
os trs pilares identificados por Boaventura Sousa Santos para a ps-
modernidade, a que j nos referimos, se mostrar em primeiro lugar, no ponto
um, como a educao da liberdade e em liberdade a essncia do esqueleto
que caracteriza a verticalidade do ser humano e a garantia da sua evoluo. A
se tratar da associao entre os conceitos de cultura e de educao. No ponto
dois entra na discusso a cidadania. Da sua relao com a educao
5
ressaltar, na linha do que tinha sido apresentado no ponto anterior, a
recontextualizao das identidades. No ponto trs retommos a concluso
principal a que tnhamos chegado quando elabormos a dissertao de
mestrado: mais forte do que toda a formao, o ser de cada um que se
manifesta.
uma constatao que nos posiciona na defesa de subjectividades,
mas tambm, no desenvolvimento que agora fazemos, na sua
recontextualizao: como nos pontos anteriores se demonstra, quando no
mundo exterior a arquitectura moral parece ruir, justamente no interior dos
eus que as questes ticas do ser tm condies para eclodir, no em
isolamento, mas em culturas de colaborao.
Continuando o percurso lgico que estamos a seguir, foi necessrio, no
captulo quatro, inserirmo-nos na problemtica que nos permitiu, no terreno,
confirmar este caminho. Neste sentido, foi altura de pensarmos concretamente
no professor principiante e na forma como a formao inicial de professores
deve trabalhar com as caractersticas prprias de quem est no seu primeiro
ano de docncia. Foi assim que, no ponto um, mostramos a necessidade de
cada professor ser um sujeito interpretativo, em vez de um sujeito informativo.
O ponto dois mostrou-nos como assim que se vence a poltica da avestruz, e
o ponto trs como esta a forma de iniciarmos a construo de percursos
singulares de desenvolvimento.
O captulo cinco concretiza o percurso que esta tese prope. Trata-se da
definio da metodologia que usamos para, no terreno educativo,
concretamente na Formao Inicial de Professores de Francs da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, entre 1988 e 2005, analisarmos fluxos e
influxos de desenvolvimento. O primeiro ponto apresenta o cuidado que
tivemos, e que se prendeu com a garantia de que no haveria contaminao na
avaliao, quer pelas caractersticas prprias da mesma, quer pelo facto de
nos situarmos num papel duplo de avaliador e avaliado. O segundo ponto
abordou a questo das escolhas metodolgicas, no sentido em que sabemos
que a forma como escolhessemos trabalhar a formao inicial de professores
traduziria, ela prpria, a forma como a vemos, como vemos os professores,
logo como nos vemos. Foi assim que usamos as tcnicas de recolha e de
anlise de dados como meios para dar vez e voz a todos os que tiveram
6
interveno no desenvolvimento do Homem novo que toda a formao procura
ajudar a construir. Isso foi mostrado no ponto trs.
O ltimo captulo, o captulo seis, apresenta finalmente concluses, que
se sintetizam na necessidade de assegurar a sobrevivncia institucional do
esprito de universidade, enquanto eco da alma colectiva. No ponto um mostra-
se como a concretizao desta vontade se traduziria na garantia de que a
Europa se construiria nos valores. O ponto dois mostra que a residiria o mrito
e o sucesso.
A concluso a que chegamos reencontra a centralidade da vida no
pensamento, tal como a epgrafe desta introduo sugere. No entanto, ao
contrrio do que na introduo acontece, no nos focalizamos no crime que
sabemos estar a cometer ao praticar o acto de pensar, mas na certeza de que
nele que reside a nossa dignidade. assim que esta tese termina na
abertura de uma via mais larga do que qualquer outra por ns antes encetada:
o propsito de trabalhar para bem pensar.
Mas recuemos e explicitemos como se chegar a esta concluso.
A tese de doutoramento que aqui apresentamos enquadra-se no Ramo
Educao, especialidade de Desenvolvimento Curricular, e foi orientada pelo
Professor Doutor Jos Augusto Pacheco. Desenvolveu-se ao longo de quatro
anos e teve como objecto de estudo o modelo de formao inicial (Francs) da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (a partir daqui designada
FLUP), em vigor entre 1988 e 20051.
Trata-se de uma perspectiva de estudo que se iniciou com a dissertao
de mestrado, a qual nos permitiu identificar as orientaes curriculares deste
modelo e com base na qual tivemos oportunidade de intervir em reunies e de
publicar textos de reflexo, dentro e fora da instituio, em que defendemos a
reestruturao curricular do referido modelo. Porm, no estudo ento realizado
dois aspectos ficaram por integrar: i) a compreenso das polticas educativas
que enquadraram as opes tomadas pela FLUP ao definir o seu modelo; ii) a
possibilidade de generalizao de concluses relacionadas com o trabalho de
campo (ento estudo de caso) que realizara. justamente esta dupla lacuna
que o presente projecto de investigao pretende colmatar. Sem abandonar 1 A Licenciatura no Ramo Educacional Francs da FLUP funcionou pela primeira vez no ano lectivo de 1988/89, para o primeiro ano. Os primeiros estgios decorreram no ano de 1992/93. A ltima vez que o 1 ano da licenciatura funcionou foi em 2000/01, tendo esses alunos desenvolvido o seu estgio em 2004/05.
7
nem o paradigma do pensamento do professor, nem a perspectiva curricular do
estudo pretendemos, por um lado, proceder ao cruzamento de dados
qualitativos, resultantes de entrevista e da investigao documental, e
quantitativos, obtidos atravs de inqurito por questionrio a uma amostra da
populao que obteve a sua licenciatura no Ramo Educacional da FLUP nestes
anos de vigncia do modelo em estudo, assim como aos seus formadores e
empregadores.
So, tal como na dissertao de mestrado, as representaes que
estudmos, isto , as imagens e as noes construdas no decurso de todos os dias e que configuram o patrimnio cognitivo partilhado pelos membros de um dado grupo (SANTOS SILVA, 1999a: 31), pois continuamos a crer que uma atitude que relegue o conhecimento prtico para o estatuto de conjunto de meras pr-noes, pr-conceitos, que a cincia deve ultrapassar e esquecer, bloqueia a anlise dos processos
sociais simblicos (idem, ibidem). Partimos, nesta investigao, de um conjunto estruturado de interrogaes (...) devidamente especificadas sobre o lugar e as funes
(ALMEIDA E PINTO, 1999: 56) do modelo de formao inicial da FLUP,
patrimnio acumulado de interpretaes provisoriamente validadas (idem, ibidem)
no estudo exploratrio realizado na dissertao de mestrado, o qual constituir
o ponto de partida para a pesquisa.
O objecto de estudo aparece assim definido por razes afectivas e
institucionais: i) para completar um trabalho inacabado (iniciado, como foi j
mencionado, na dissertao de mestrado); ii) para rentabilizar uma experincia
profissional acumulada, uma vez que acompanhamos este modelo de
formao desde o segundo ano de vigncia dos estgios profissionalizantes
entre 1989/90 e 1993/94 como orientadora de estgio pedaggico numa escola
secundria adstrita FLUP e entre 1994/95 e 2004/05 como acompanhante da
prtica pedaggica ligada FLUP; iii) para dar resposta a necessidades
profissionais de uma prtica reflectida em que apostmos.
O problema de investigao para este estudo quantitativo, qualitativo,
longitudinal e transversal2 surge, ento, definido da seguinte maneira:
conhecer o grau de satisfao dos licenciados pelo Ramo Educacional FLUP relativamente ao cumprimento das metas da UP, remetendo-nos, desta maneira, para a anlise das variveis curriculares e organizacionais do 2 Longitudinal porque questionou o modelo em diferentes fases da sua evoluo; transversal porque inquiriu e entrevistou os diferentes intervenientes alunos, formadores, rgos decisores e empregadores.
8
modelo, de acordo com a questo estruturante em que o objecto foi traduzido:
como se cruzam os Modelos de Formao de Professores com as Polticas Educativas, com as Polticas de Formao Inicial e com o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores formados pelo Ramo Educacional da FLUP?
Avaliar como este modelo funcionou, curricular e organizacionalmente,
implicou o estudo dos planos curriculares da instituio, dos aspectos
organizacionais concretos, do modo como se efectuou a integrao entre as
cincias da educao e as cincias da especialidade e do modo como a
componente curricular do modelo do Ramo Educacional se integrou na
organizao da Universidade. Implicou tambm o confronto desses dados com
as polticas educativas dos anos 80 e 90 e as polticas de formao inicial de
professores que, correspondendo respectivamente s definies econmica e
organizacional da educao (CORREIA, 1999) na modernidade, tiveram
desenvolvimentos neo-liberais que, com a aproximao do sculo XXI, foram,
paulatina, mas firmemente, pondo em causa os princpios organizativos do
modelo. Implicou ainda o estudo do impacto que o Ramo Educacional teve no
desenvolvimento pessoal e profissional dos professores que realizaram a sua
formao inicial da instituio estudada. Implicou conhecer como se processa o
desenvolvimento dos professores em incio de carreira, assim como a forma
como se gere a vida nas escolas bsicas e secundrias, em termos de culturas
profissionais e escolares.
Deste modo, num primeiro momento foram identificados os objectivos3
desta investigao:
Avaliar as variveis curriculares e organizacionais do Modelo de
Formao Inicial da FLUP (Francs) na reestruturao curricular em vigor
entre 1988/98 e 2004/05;
Compreender essa estrutura luz:
dos Modelos de Formao Inicial de Professores;
das Polticas Educativas dos anos 80 e 90;
das Polticas de Formao Inicial.
3 O objectivo faz parte de uma interveno, clarificando as variveis ou indicadores metodolgicos e as problemticas tericas que permitiro ao investigador seguir num determinado caminho (PACHECO, 2005).
9
Avaliar as representaes dos professores formados pela FLUP, no que
respeita ao desenvolvimento pessoal e profissional operado na formao,
por aco do cumprimento das metas da UP que com esse
desenvolvimento so consentneas.
Analisar os pontos de vista dos formadores (docentes universitrios e
orientadores de estgio) e dos empregadores (conselhos executivos das
escolas bsicas e secundrias) acerca do cumprimento das referidas
metas da UP.
Logo de seguida foi identificada e desenvolvida uma linha investigativa
que, em termos de fundamentao conceptual, garantisse a consecuo dos
objectivos que nos propnhamos alcanar. Assim, a interpretao dos dados
teve sempre por base, quer a fundamentao conceptual, quer outros estudos
realizados na rea, quer ainda documentos de reflexo e anlise oriundos da
Reitoria da UP que, de forma cclica foram sendo divulgados no Boletim oficial
desta entidade.
Ao longo de quatro anos, o trabalho de investigao desenvolveu-se da
maneira que o quadro a seguir transcrito explicita. A preto esto indicadas as
tarefas que, quando apresentmos o projecto de doutoramento, nos
propusemos fazer; a azul o que efectivamente foi feito:
ANO
MS
TRABALHO A REALIZAR/REALIZADO
2001 Outubro
Novembr
o
Dezembr
o
Reviso
bibliogrfi
ca
2002 Janeiro
Fevereiro
Maro
Abril
Maio
Reviso
bibliogrfi
ca
Anlise de
document
os de
arquivo
Sntese das concluses
obtidas no estudo
exploratrio de caso
realizado para
elaborao da
dissertao de mestrado.
Elaborao dos
questionrios Aplicao
dos questionrios
(Fevereiro, Maro, Abril e
Maio)
Junho
Julho
Agosto
Reviso
bibliogrfi
ca
[Elaborao das
questes para as
entrevistas]
Recuperao dos
questionrios
Setembro
Outubro
Novembr
o
Reviso
bibliogrfi
ca
[Realizao das
entrevistas]
Recuperao dos
questionrios
10
Dezembr
o
2003 Janeiro
Fevereiro
Maro
Abril
Reviso
bibliogrfi
ca
[Tratamento dos dados
das entrevistas]
Recuperao dos
questionrios
Redaco da 1
parte da tese
fundamentao
terica e
conceptual
Maio
Junho
Julho
Agosto
Reviso
bibliogrfi
ca
[Formulao de
hipteses emergentes]
Aplicao e recuperao
dos questionrios (Maio)
[Elaborao dos
questionrios]
Redaco da 1
parte da tese
fundamentao
terica e
conceptual
Setembro
Outubro
Novembr
o
Dezembr
o
Reviso
bibliogrfi
ca
Elaborao das questes
para as entrevistas
Realizao das
entrevistas (Fevereiro e
Maro)
Tratamento dos dados
parciais
[Aplicao dos
questionrios]
2004 Janeiro
Fevereiro
Maro
Abril
Reviso
bibliogrfi
ca
Tratamento dos dados
das entrevistas
[Tratamento dos dados
dos questionrios]
Maio
Junho
Julho
Agosto
Setembro
Outubro
Novembr
o
Dezembr
o
Reviso
bibliogrfi
ca
Tratamento dos dados
das entrevistas
Aplicao e recuperao
dos questionrios (Maio)
Redaco dos
dados relativos
s entrevistas
[Redaco final]
2005 Janeiro
Fevereiro
Maro
Abril
Maio
Junho
Julho
Agosto
Setembro
Reviso
bibliogrfi
ca
Aplicao e recuperao
dos questionrios
(Janeiro)
Tratamento dos dados
dos questionrios
Redaco dos
dados relativos
aos
questionrios de
opinio
Redaco final
Reviso
[Reviso]
O dado que se evidencia que a reviso de literatura acompanhou, tal
como previamente estipulado, todo o trabalho de campo desenvolvido,
esclarecendo, fundamentando-o ou fazendo evidenciar problemas e desafios.
11
Tambm o trabalho de arquivo foi o ponto despoletador de toda a problemtica,
como havamos previamente pensado.
A maior alterao relativamente ao projecto inicial residiu na inverso da
ordem com que cruzmos os dados qualitativamente e quantitativamente
recolhidos. Tendo originariamente sido nosso propsito fazer da entrevista o
incio do trabalho de campo, reflexes ulteriores com o orientador desta tese
conduziram-nos concluso que era das entrevistas j feitas na dissertao de
mestrado que deveramos partir. Deste modo, transformmos as entrevistas
num confronto final dos representantes dos respondentes com os resultados
obtidos de forma quantitativa, atravs de inqurito por questionrio realizado
aos seus pares, por um lado, e a outros grupos de informantes, por outro.
Atendendo amplitude do trabalho, e no sentido de rentabilizar esforos e
reflexes, sentimos necessidade de ir redigindo partes do texto, conforme a
investigao se ia efectuando, para no final do tempo dedicado a esta tarefa
fazermos apenas a sua redaco final.
Depois do que foi enunciado altura de voltarmos a referir a estrutura
desta investigao, no j de forma problematizadora como inicimos esta
introduo, mas concretizando os propsitos ento apresentados. Esta tese
tem duas partes distintas: uma primeira estruturante da perspectiva conceptual
do estudo, constituda pelos quatro primeiros captulos; uma segunda,
dedicada ao enquadramento metodolgico e composta por dois captulos.
Assim, comearemos por, no primeiro captulo, esclarecer os aspectos
organizativos e curriculares relacionados com a formao inicial de
professores, enquadrada pelos desafios de Bolonha. De seguida, o segundo
captulo apresentar uma reflexo sobre as polticas educativas e curriculares
de formao de professores, a qual passar pela identificao de medidas neo-
liberais que, actualmente, caracterizam o sistema educativo; ser esclarecida
pelos conceitos de modernidade e ps-modernidade, leit-motives da
actualidade.
No movimento de afunilamento de interesses que, nesta investigao
nos move, centrar-nos-emos, de seguida, na vida nas escolas, discutindo as
questes da educao, da cidadania e do sujeito, que desembocaro,
necessariamente, na dinmica das culturas escolares e profissionais. Ser
12
ento altura de nos centrarmos no professor em incio de carreira, e no muito
que hoje se sabe j sobre as suas representaes e necessidades.
Construdas e explicitadas as linhas de fora do trabalho de campo, o
captulo cinco ser dedicado ao contexto metodolgico da investigao. Ao
longo dessas pginas, justificaremos todas as decises tomadas, no sentido de
garantir a eticidade da investigao realizada. Identificaremos a estratgia de
recolha de dados, composta por metodologias no interferentes, por
metodologia qualitativa e por metodologia quantitativa; esclareceremos os
diferentes mtodos de anlise de dados: a estatstica descritiva e a anlise de
contedo. Apresentaremos os dados e faremos, a partir deles, uma anlise
crtica e interpretativa, atravs do confronto dos dados empricos com os dados
tericos e contextuais. Deste ltimo captulo o sexto ressaltar a
constatao que o Ramo Educacional FLUP foi um projecto com dfice de
projecto (CASTRO, 2005), numa aposta que tinha condies para ter sucesso.
13
1 Parte
Enquadramento Conceptual
Reconheo a realidade. Reconheo os obstculos, mas recuso acomodar-me em silncio ou simplesmente ser eco vazio, tmido ou cnico perante o discurso dominante (FREIRE, 1997).
14
15
Captulo I
Organizao curricular nos cursos de formao inicial de professores
As decises curriculares no podem ser analisadas na base da opinio pessoal e do mero consenso, (...) mas na base da investigao e avaliao das experincias (PACHECO, 2002a).
16
17
1. Os Estudos Curriculares Somos seres de briga numa vocao de liberdade e responsabilidade. No fundo, tambm uma vocao de quem decide e opta, por isso mesmo uma vocao tica. Acredito que a nossa presena no mundo implica uma eticidade permanente (Paulo Freire)4.
Do mesmo modo que o significado do termo currculo, o campo desta
rea de estudos tem sofrido alteraes. As definies propostas por Bobbit
(1918), Tyler (1949), Hilda Taba (1983) e Louis D'Hainaut (1980), entre outros,
reduzem o currculo a uma inteno prescritiva a que correspondeu o que
normalmente se designa como a idade da eficincia do currculo, marcada pela
sua gesto cientfica. Nesta perspectiva tradicional e tcnica, o currculo -
implementado com o propsito de cumprir intenes previamente previstas5 -
pode ser definido como o conjunto de todas as experincias planificadas no
mbito da escolarizao dos alunos (PACHECO, 2002a).
As definies de Schwab (1969), Stenhouse (1987), Kemmis (1988),
Gimeno Sacristn (1988) e Zabalza (1992) situam-se j numa perspectiva
prtica, pelo que perspectivam o currculo como um projecto que resulta quer
das intenes, quer da sua concretizao. Nesta linha anglo-saxnica, o
currculo ser o conjunto das experincias educativas vividas pelos alunos
dentro do contexto escolar (PACHECO, 2004b).
Foi neste sentido que os documentos que regulamentaram as reformas
educativas do final do sculo XX em Portugal foram construdos. A definio de
currculo que aparece nesses documentos refere uma realidade socialmente
construda com base na negociao e na tomada de decises.
Nos seus desenvolvimentos mais completos, dentro desta perspectiva
prtica, o currculo surge como uma construo social que resulta da
necessidade de responder a aprendizagens que se consideram socialmente
necessrias para um determinado grupo, numa determinada poca; corporiza-
se atravs das decises dos responsveis e reflecte o poder dos campos
cientficos (ROLDO, 2000). Currculo tudo o que aprendido dentro ou fora 4 Entrevista concedida agncia Lusa e publicada em 4 de Maio de 1997 no jornal O Pblico, pouco antes da sua morte. 5 Na tradio francfona, a ideia de currculo est prxima da de programa (DHainaut, 1980).
18
da escola, quer o que assumido (currculo explcito), quer o que no
assumido, apesar de ser intencional (currculo oculto), como consequncia da
interveno directa ou indirecta da prpria escola.
Trata-se de um conceito amplo que alarga a linha anglo-saxnica, a qual
restringe o currculo ao conjunto das actividades educativas planeadas; um
conceito que revela a conscincia de que a antiga misso de divulgar a informao, que era uma das funes grandes da escola, hoje de facto no o j; no s a escola que o faz divulgar, passar informao. Mas fornecer quadros enquadradores do conhecimento e produzir instrumentos de construo do conhecimento, isso realmente s a escola, at agora, tem possibilidade de fazer
(ROLDO, 2000: 14).
Numa ltima perspectiva (APPLE, 1994; PINAR, 1975; GIROUX, 1986;
TADEU DA SILVA, 1993), o currculo considerado uma construo social
historicamente situada, dependente de inmeros condicionalismos e de
conflituosos interesses, que os autores crticos se tm preocupado em
identificar. Tratou-se, num primeiro momento (entre as dcadas de 70 e de 90),
de analisar a dimenso poltica da educao e as relaes entre escola e
sociedade, assim como entre os interesses individuais e os interesses de
grupo. A partir dos anos 90 foram as questes de identidade e de diferena
(cultural), que passaram a reunir a ateno dos estudos culturais.
No fundo, trata-se de desenvolvimentos das anlises das relaes
existentes entre cultura e poder que so um dos pontos de partida do
pensamento que marca as abordagens estruturalistas. So anlises
conceptuais que descrevem o problema da representao entre processos de
produo e processos de reproduo, nos quais a escola desempenha, pela
sua funo social, um lugar central. Numa perspectiva estruturalista, o
conhecimento e os factos sociais so o resultado da natureza estrutural, isto ,
relacional dos fenmenos. Esta perspectiva representada por Gaston
Bachelard e Louis Althusser, na Filosofia, Mikhail Baktin e Noam Chomsky, na
Literatura, Sigmund Freud e Jacques Lacan, na Psinanlise, Maurice Merleau-
Ponty, na Fenomenologia, Pierre Bourdieu, na Sociologia, Roman Jakobson,
na Lingustica, Claude Lvi-Strauss, na Antropologia, Fernand Braudel, na
Histria e Basil Bernstein no Currculo. Da, o currculo de ordem estrutural tanto
nas intenes quanto nas prticas (PACHECO, 2004b: s/p).
19
Contrariamente ao que referimos relativamente s reformas educativas,
que marcaram o final do sculo XX portugus, na actualidade assiste-se ao
recrudescer do eficientismo nas prticas curriculares, visvel nas perspectivas
impostas pelo neoliberalismo educacional (LIMA E AFONSO, 2002),
nomeadamente no controlo dos resultados e na pedagogia por competncias
(PACHECO, 2002a),
Mas a actualidade tambm marcada pela reconceptualizao do
currculo que, assim, se inscreve de modo forte na agenda da ps-
modernidade e do ps-estruturalismo. Nestas abordagens, e de forma no
linear, a cultura ganha evidncia no campo do currculo, enquanto espao em
que os significados se produzem; o currculo surge como uma prtica de
significao que contribui para a produo de identidades6 sociais e se
expressa atravs de conflitos e de relaes de poder (MOREIRA e MACEDO,
2002), fazendo emergir as questes de identidade, e de diferena7 (TADEU da
SILVA, 2000c):
Se a identidade uma construo social que define os que, como ns, ficam dentro e os que, como eles, ficam de fora, analisar a formao de identidades exige que se compreendam os padres de incluso e excluso que fazem com que sempre que se forme um ns se fechem as portas para os eles (Gilroy, 1997). Exige que se compreendam os mecanismos, as disputas e as relaes de poder em cujo mbito se dividem os semelhantes dos diferentes, os ns dos outros. Exige que se compreenda o processo histrico em que se definem as categorias e as classificaes que demarcam os territrios e as fronteiras, o interior e o exterior. Da a preocupao, no currculo, em capacitar o aluno a analisar e a compreender esses processos (MOREIRA e MACEDO, 2002: 19/20).
Nesta linha de redefinio do campo do currculo, a investigao tem-se
debruado, na tradio anglo-americana, mas tambm em Espanha, no Brasil,
e j em Portugal, sobre as polticas educativas (GIMENO SACRISTN, 1998;
6 Desde os primrdios da modernidade que as questes de identidade so alvo de reflexo. Identificavam-se ento com as questes da subjectividade e acabavam por ser reduzidas identidade nacional. Recentemente, o fenmeno da globalizao, o desenvolvimento dos meios de comunicao e os fluxos migratrios fizeram com que as identidades nacionais passassem a ser menos relevantes para o processo de construo de identidades. A existncia de uma identidade unificada passa a ser vista como mera fantasia: no h um ncleo essencial do eu, estvel, que passe, do incio ao fim, sem mudana, por todas as vicissitudes da histria. O que se tem um sujeito fragmentado, descentrado, deslocado tanto do seu lugar no mundo social como de si mesmo, composto de vrias identidades, algumas contraditrias ou mesmo no resolvidas o sujeito ps-moderno (MOREIRA e MACEDO, 2002: 18). 7 Devemos distinguir diferena de distino ou diversidade. Enquanto a diferena pressupe uma relao que no est sujeita a categorizaes, apenas identificao de elementos de uma identidade, a diversidade decorre de categorizaes, isto , da distino com base em pontos externos de comparao e contraste.
20
TORRES SANTOM, 2001; PACHECO, 2000a; TADEU da SILVA, 1993,
1994), abraando aspectos como educao e poder (APPLE, 1994), poltica
curricular integrada e autonomia curricular (PACHECO, 2000c, 2000d; LEITE,
2003; MORGADO, 2000a, 2000b); sobre questes de liderana (DAY, 2000;
MORGADO, 2004b), de desenvolvimento profissional de professores (DAY,
2002; FLORES, 2000a) e de profissionalidade e profissionalismo (ESTRELA,
2001; HARGREAVES, 2000); sobre cultura popular e escola (GIROUX e
SIMON, 1994); sobre cultura escolar (HARGREAVES, 1995; PREZ GMEZ,
1998), cultura profissional (HARGREAVES, 1994, 1998) e interculturalismo
(LEITE, 1996, 2002, 2003); sobre identidade social (TADEU da SILVA, 1995) e
ainda sobre a reproduo social (GOODSON, 2001).
uma linha recente de investigao, no que respeita ao trabalho que se
vem fazendo em Portugal, como se constata na anlise sobre a produo
cientfica ocorrida entre 1990 e 2001 (PACHECO, 2002b). De entre as
temticas que nesse perodo foram objecto de estudos de investigao,
destacam-se como sendo as mais valorizadas a organizao curricular, o
currculo e a formao de professores, a avaliao, o currculo e a
autonomia/reforma; as temticas sobre as quais existem registos pouco
significativos, em termos de quantidade, so (por ordem decrescente) o
currculo e o multiculturalismo, o currculo no ensino bsico, o currculo e a
investigao, as estratgias pedaggicas, os programas, o currculo e a
indisciplina, o currculo no ensino superior, polticas curriculares, teorizao
curricular, programao/planificao, currculo e gnero, fundamentao
epistemolgica para o currculo. As temticas menos valorizadas so os
contedos, o currculo no ensino secundrio, os pressupostos curriculares, os
manuais8 e os objectivos.
A partir destes dados, constata-se a valorizao de temticas que esto na confluncia das decises curriculares, da dcada de 90, marcadas pela reforma e pelo
processo de reorganizao e/ou reviso curricular (PACHECO, 2002b: 238)9.
uma tendncia que s recentemente acompanha o
8 Refira-se a propsito o livro de J. C. MORGADO (2004a). Manuais escolares contributo para uma anlise. Porto: Porto Editora. 9 Destes resultados uma segunda constatao identificada: a difcil tarefa de estabelecer as fronteiras entre Currculo e Didctica e entre Didctica Geral e Didctica Especfica. A ela nos referiremos algumas pginas frente, nesta tese.
21
aumento de interesse por problemas relacionados com a diversidade cultural, quer atravs de estudos sobre educao e diversidade, quer directamente sobre culturas e outros que tm a problemtica da diversidade na base das preocupaes tericas que estruturam o trabalho (...) num nmero cada vez mais alargado de reas de pesquisa (Sociologia, Educao, Antropologia, Lingustica, etc.) (...) [n]uma relao bastante clara da pesquisa com problemas que tm vindo a ter lugar, sucessivamente, na sociedade portuguesa (descolonizao, regresso de emigrantes, e a transformao de Portugal num pas de imigrao (CORTESO et al, 2002: 51).
Neste contexto, a investigao que aqui apresentamos inscreve-se
numa concepo curricular como projecto ideolgico, que analisa e descodifica
o contexto, atravs de uma atitude de vigilncia epistemolgica (BOURDIEU,
2004); uma construo cultural (GRUNDY, 1991) que define identidades
contextualizadas no tempo e no espao, atravs de uma atitude emancipatria
(GIROUX e FREIRE, 1987).
Neste sentido, assumimos que no currculo se cruzam saber e poder,
representao e domnio, discurso e regulao e que, ainda neste sentido, o
currculo materializa relaes sociais em que poder e identidades sociais esto
mutuamente implicados (TADEU DA SILVA, 1999) a poltica de identidade situa-se, pois, na interseco entre representao como forma de conhecimento e
poder (TADEU DA SILVA, 2000a: 61). Se a representao a relao entre, por um lado, o real e a realidade e, por outro, as formas pelas quais esse real e essa
realidade se tornam presentes para ns re-presentados (ibidem: 60),
justamente na interseco entre representao e identidade, que o currculo adquire a
sua importncia poltica (ibidem: 96).
Sem entrarmos na distino entre representaes mentais e
representaes objectais (BOURDIEU, 1998), consideraremos que promover
um currculo coerente deve envolver uma explorao do modo como as
pessoas percepcionam as suas experincias, pois construmos, a partir das
nossas vivncias, esquemas de significados sobre ns prprios e sobre o
mundo. Consideraremos ainda que estas leituras do real so condicionadas
pela nossa cultura, pelo que emergem diferentes leituras em funo da raa, da
etnia, da classe, do sexo, da provenincia geogrfica, da idade, dos padres
familiares (BEANE, 2000).
Por outro lado, mas no mesmo sentido, assumimos que, como as identidades so culturalmente construdas, o currculo uma prtica de identidades que, historicamente partilhadas e mediadas pelos sujeitos em funo de situaes
22
particulares, englobam valores, sentimentos, atitudes, expectativas, crenas e saberes (PACHECO, 2002a: 123).
uma definio de currculo que coloca diferentes desafios formao
inicial de professores o objecto desta investigao -, uma vez que exige que
os profissionais da educao possuam competncias de trabalho em equipa
para, integrados em comunidades crticas se trata de comunidades de personas com preocupaciones mutuas, que interactan directamente entre s (...) cuyas relaciones
se caracterizan por la solidaridad y la preocupacin mutua (GRUNDY, 1991: 171) ,
desenvolverem competncias de deciso.
Os docentes tm que ser formados para actuarem curricularmente, para
serem profissionais do currculo (ROLDO, 2000), executores, decisores; para
serem obreiros do desafio actual dos sistemas educacionais: a passagem de
currculo a projecto curricular, a operacionalizao do currculo enquanto
escolha, orientao e organizao, pensado e decidido a diferentes nveis, num
continuum do processo de desenvolvimento curricular, da mxima
generalizao para a mxima concretizao (PACHECO, 2001).
Um continuum que, no contexto poltico-administrativo, deveria permitir:
i) proceder a uma organizao curricular pluri-disciplinar, em que vrias
disciplinas afins entram em correlao sem que nenhuma perca a sua
identidade10; ii) implementar um modelo integrado, que conduziria
interdisciplinaridade e, concomitantemente, ao atendimento diferenciado por
nveis de desenvolvimento e satisfao dos interesses dos educandos, em
resposta aos diferentes ritmos de progresso dos alunos11; iii) fazer a
abordagem curricular com base em contedos correlacionados e em
reas/campos de saber.
No que respeita s decises curriculares tomadas no contexto de gesto
(nvel meso) e que no fazem parte da tradio portuguesa, devido ao peso do
centralismo, a operacionalizao dos princpios atrs enunciados exigiria uma
outra perspectivao da cultura docente e da formao de professores, em que
a escola se assumisse como um territrio educativo, um espao institucional de
gesto e adaptao do currculo, em autonomia curricular, educativa, cultural,
10 esta a lgica que preside ao esprito da organizao curricular do 2 ciclo do E.B. em reas Disciplinares. 11 H que distinguir esta noo da de transdisciplinaridade, que pressupe a existncia de um axioma comum a vrias disciplinas, cujos contedos so da responsabilidade de vrios professores, em vrias disciplinas.
23
pedaggica e administrativa, consubstanciado no Projecto de Escola: projecto
educativo (estabelecimento de fins educativos, em parceria entre a escola e a
comunidade); projecto curricular (programao elaborada pelos professores no
interior de um determinado grupo de docncia, com base nos planos
curriculares e nos programas12 que ensinar? quando? como? o qu, quando
e como avaliar?); projecto organizativo (identificao dos princpios e modelos
de organizao, abarcando: i) organizao curricular horizontal decises
tomadas a nvel da administrao regional e local e ao nvel de escolas, ii)
organizao curricular vertical decises tomadas em agrupamentos de
professores, de encarregados de educao, etc.).
Finalmente, ao nvel do contexto de realizao, concretizado ao nvel da
sala de aula (nvel micro), e consubstanciado em termos de decises relativas
sequencializao e gesto dos contedos, assim como relativas
organizao de situaes de aprendizagem, da utilizao de materiais e da
implementao de procedimentos de avaliao, as alteraes resultariam no
projecto didctico, em termos da actuao dos professores em equipas inter e
pluridisciplinares.
No momento que actualmente vivemos, urge que, aos rankings de
escola, que hierarquizam os estabelecimentos de ensino em funo dos
resultados abstractos, ditos objectivos, sem atender multiplicidade dos
contextos locais, os professores consigam que o
desenvolvimento curricular baseado na escola [funcione efectivamente] como unidade bsica da mudana, em funo do protagonismo dos actores, sobretudo dos professores e alunos, e da busca dos critrios de qualidade. (...). Nesta linha, e de acordo com o relatrio da OCDE (1992), a escola deve ser portadora de uma autonomia, estar imbuda de uma cultura organizacional e possuir uma identidade formativa (PACHECO, 2000b: 100).
Uma identidade construda por professores cuja formao lhes permite
serem profissionais do currculo que actuam de acordo com o contexto de
deciso em que esto inseridos e a cada contexto fazem corresponder a
respectiva fase de desenvolvimento do currculo: no contexto poltico- 12 Com Zabalza (1992) distinguimos programa e programao do seguinte modo: programa o documento oficial, emanado do poder central, que contm o conjunto de prescries relativamente ao ensino; programao a territorializao dos pressupostos gerais do programa, desenvolvida pelos professores para um grupo de alunos concreto, numa situao concreta.
24
administrativo, o currculo prescrito, oficial, explicitado atravs dos planos
curriculares, dos programas e dos objectivos curriculares e torna-se currculo
apresentado, pela via dos manuais escolares adoptados; torna-se currculo
programado, moldado, percebido e institucionalizado no contexto de
realizao, para ento ser planificado e se tornar o currculo real, no contexto
de realizao, e ser depois avaliado.
Estamos a falar de professores que equacionam o currculo oculto,
implcito, latente, no ensinado; o conjunto de processos e efeitos ausentes
dos programas oficiais, mas transmitidos de forma clara no sistema educativo.
Professores, tambm, que vem o desenvolvimento curricular como um
processo circular e integrado de execuo (planificar o currculo) e concepo
(pensar o currculo), numa lgica dialctica entre inteno e aco, com base
na elaborao, na implementao e na avaliao do processo de ensino e de
aprendizagem.
So profissionais que constantemente procuram resposta questo
curricular fundamental: quais as aprendizagens que os professores precisam
de fazer na actualidade?. Encontram as suas respostas atravs da leitura
crtica do fenmeno educativo, a partir das diferentes correntes filosficas: os
professores precisam de i) aprender os contedos estruturantes da sua rea de
especialidade (essencialismo); ii) os contedos que permanecem atravs dos
tempos (perenealismo); iii) os contedos que esto em debate, sujeitos a
mudana (progressivismo); iv) os contedos que tm uma implicao directa na
mudana da sociedade (reconstrucionismo).
Encontram tambm as suas respostas nas diversas propostas
relativamente s formas de teorizar o conceito de Currculo, enquadrando os
conceitos de currculo e de desenvolvimento curricular nos seus pressupostos:
aluno, cultura, sociedade e ideologia. Eisner e Vallance (1974) falam de cinco
orientaes curriculares - currculo como desenvolvimento dos processos
cognitivos, como tecnologia, como auto-realizao ou experincia
consumatria, como reconstruo social, como racionalismo acadmico;
Landsheere (1992) refere trs orientaes - Saber (que engloba as
orientaes tecnolgica e racionalista de Eisner), Aluno (que abarca os
processos cognitivos e a auto-realizao de Eisner), Sociedade (ou
reconstruo social de Eisner). Meyer (apud Pacheco, 2001) fala de trs tipos
25
de legitimao do currculo: normativa, processual, discursiva; Schiro (1980)
fala de ideologias curriculares: acadmica, eficincia social, centrada no
aluno e reconstruo social; Holmes e McLean (1992) falam de modelos
curriculares: essencialismo, enciclopedismo, politecnicismo (vertente tcnica
da eficincia social), pragmatismo. McNeil (1977) fala de concepes
curriculares - humanstica (Escola Nova), reconstruo social (Neo-
marxismo), tecnolgica (Pedagogia por Objectivos), acadmica (Medieval);
Gimeno Sacristn (1988) fala tambm de concepes curriculares:
exigncias acadmicas, experincia, legado tecnolgico, configurao prtica;
Lundgren (1992) fala da existncia de cinco cdigos13: clssico (at Idade
Mdia), com uma estrutura dos discursos tradicionais; idealista - renovao
pedaggica e adequao aos interesses, com Rousseau e Montssori; moral
formao de atitudes e valores, preparao para a cidadania; racional
contedos escolhidos na obedincia a propsitos econmicos e financeiros;
oculto ou invisvel sntese de todos os cdigos, interaces no previstas a
nvel oficial.
So saberes prprios do discurso curricular (PACHECO, 1995a), que
permitem proceder identificao do campo de interveno do currculo, tarefa
tanto mais necessria quanto desde o surgimento da escola oficial, no sculo
XIX, e a institucionalizao da formao de professores, no sculo XX, o
conceito de currculo imps-se (NVOA, 1997: 14) e se tornou um conceito-
chave em educao (PACHECO, 2004a).
No entanto, numa fase em que o currculo constituye una de las reas ms importantes de la investigacin educativa (), sera de esperar que el campo de la teora curricular estuviera bien desarrollado, pero incluso un simple repaso a la literatura
curricular revela que esto no es as (LUNDGREN, 1992: 71). Por um lado, a presso externa que sofre particularmente forte e (...) as condies internas da
autonomia so muito difceis de instaurar (BOURDIEU, 2004: 121). Por outro, em
educao h reas de saber que, para serem compreendidas, necessitam de
uma compreenso mtua e complementar. o caso da relao entre currculo
e didctica. Apesar de ser tcito que o currculo engloba os parmetros
institucionais de deciso e justificao do projecto educativo, enquanto 13 Para Lundgren cdigos curriculares so "un conjunto de principios fundamentales segn los cuales se desarrolla el curriculum (...). Se debe considerar el curriculum como un texto pedaggico que aparece cuando los procesos de produccin y reproduccin de una sociedad estn separados uno del otro (Lundgreen, 1992: 67).
26
didctica diz respeito a planificao, realizao e avaliao do processo
ensino/aprendizagem, competindo-lhe associar os mtodos aos contedos e a
transformao pedaggica dos mesmos (PACHECO, 2004b), fazendo a
reviso dos textos escritos em Portugal entre 1990 e 2001, constata-se uma difcil tarefa de estabelecer as fronteiras entre Currculo e Didctica e entre Didctica
Geral e Didctica Especfica (PACHECO, 2002b: 238). o caso de trabalhos
sobre objectivos, contedos e manuais que, sendo temas obrigatrios da
Didctica Especfica, tambm o so, ainda que numa perspectiva mais geral,
da Teoria e Desenvolvimento Curricular.
Por um lado, possvel identificar a existncia de trs discursos
educacionais: um ligado s cincias auxiliares da educao (Sociologia da
Educao, Psicologia da Educao, Administrao Educacional, Filosofia da
Educao); outro relacionado com as cincias da especialidade (englobando
necessariamente o discurso da Didctica Especfica); outro ainda que se
prende com o Currculo, e cujo objecto de estudo abrange os saberes gerais
comuns s diferentes especialidades de ensino, sem qualquer dependncia de
disciplinas acadmicas, pois trata de problemas especificamente educativos;
um territrio prtico que exige discusso, investigao e interveno (ibidem:
238).
Por outro lado, se a origem dos Estudos Curriculares se situa, no sculo
XIX, no Currculo e Instruo, passando nas dcadas de setenta e oitenta do
sculo XX para as questes da ideologia e do poder, hoje em dia abarca
essencialmente os Estudos Culturais. No faz sentido, por isso, discutir
territrios especficos do currculo e da didctica, quando o trabalho curricular
dos professores nas escolas profundamente cultural.
Os Estudos Curriculares situam-se, porm, numa complexidade de
perspectivas sobre currculo, a que correspondem diferentes conceitos e uma
permanente conflitualidade de contextos/nveis de deciso e ainda de territrios
epistemolgicos. E justamente neste sentido que diferentes orientaes,
perspectivas e ideologias curriculares definem diferentes teorias curriculares,
como veremos de seguida. Tambm a sua caracterizao importante para a
anlise de dados que apresentaremos na segunda parte desta tese.
27
1.1. As teorias curriculares 1.1.1. Habermas e a teoria dos interesses constitutivos do conhecimento
em Habermas14 que encontramos os fundamentos para as teorias
curriculares, tal como nos aparecem definidas por KEMMIS (1988), tendncia
que tem marcado a Teoria e o Desenvolvimento Curricular at actualidade. Aquele filsofo da segunda fase da Escola de Frankfurt considera que a
delimitao dos campos de conhecimento das cincias influenciada pelos
interesses15 constitutivos do conhecimento: o campo das cincias
experimentais caracteriza-se por uma relao com a realidade marcada pelo
agir tcnico-instrumental; o campo das cincias histrico-hermenuticas f-lo
actuando sobre o mundo cultural atravs da aco comunicativa na vida social
prtica; o campo das cincias crticas e da psicanlise relaciona-se com a
realidade do interesse emancipatrio.
Por um lado, a identificao do interesse crtico e emancipatrio com
uma rea de interveno especfica a da psicanlise -, logo fora do mbito,
quer das cincias experimentais, quer das cincias sociais, condicionou at
actualidade o mbito de interveno do currculo. Por outro lado, para
Habermas, a crtica apresenta um horizonte de sentido regulado pela ideia de
consenso, numa linha de regulao kantiana. Foi neste quadro que se operou a
delimitao do campo especfico do saber para a Teoria e Desenvolvimento
Curricular e de afirmao desta disciplina como uma cincia, como
evidenciaremos de seguida.
Tomando como referncia a relao do homem com a natureza,
Habermas considera que na base do conhecimento16 est o interesse. Afirma
que o conhecimento um jogo de interesses e de necessidades, pelo que s
conhecemos aquilo que nos interessa. Por um lado, o homem subjuga a
natureza s suas necessidades, tentando obter o mximo sucesso com a
mxima economia de meios ( o princpio da utilidade que o move). Trata-se da
actividade instrumental ou teleolgica, realizada atravs do trabalho, que
14 Habermas representante da 2 gerao da Escola de Frankfurt e a sua actividade intelectual tornou-o um dos mentores da revolta estudantil de Maio de 68 (embora tambm tenha sido um dos seus crticos). 15 O conceito de interesse remete para a unidade do conjunto vital no qual a cognio est inserida (SIEBENEICHLER, 1990: 81). 16 Habermas refere-se a qualquer tipo de conhecimento relacionado com a aco humana e no s ao conhecimento cientfico.
28
origina um conhecimento relacionado com a produo e a reproduo de
tcnicas.
Por outro lado, a apropriao da natureza pelo homem faz-se em
sociedade com outros homens. Trata-se de um interesse intersubjectivo, social
e comunicativo, que se realiza atravs da linguagem, isto , da aco
comunicativa, que leva organizao social. o interesse prtico.
Em ltimo lugar, Habermas identifica o interesse relacionado com a
emancipao da conscincia relativamente aos poderes institudos
ideolgicamente, e que traduz as ideias de liberdade, maioridade e de
subjectividade (SIEBENEICHLER, 1990: 82). Segundo Habermas, a
emancipao processa-se, com base em momentos emancipatrios presentes
nos outros dois interesses que conduzem o conhecimento: o interesse tcnico,
ao ter como propsito o domnio da natureza, pretende, atravs dele, conseguir
a libertao do homem, do mesmo modo que o interesse prtico, ao procurar a
compreenso do sentido da existncia, pretende a libertao do homem em
relao fora das tradies culturais redutoras e opressivas.
Esta omnipresena do interesse emancipatrio no desenvolvimento dos
outros dois interesses no foi, porm, valorizada pelos curricularistas que tm
marcado o desenvolvimento desta rea do conhecimento.
Tratar-se-ia de considerar que a teoria tem sempre ligao com a praxis,
com uma praxis emancipatria, que tem como metodologia a reflexo e a auto-
reflexo. Explicitando: um trabalho de prtica terica que pretende levar
consciencializao do enraizamento do conhecimento humano na praxis social,
dirigindo, para isso, o acto de pensar para a complexidade contextual do agir
humano. Tratar-se-ia, no fundo, de fundamentar a praxis emancipatria numa
crtica dialctica, que, para Habermas e para a escola de Frankfurt, no deve
ser dogmtica, impondo a sua viso teoria criticada para identificar a
falsidade da mesma.
Pelo contrrio, a crtica, que deve ser dialctica, debruando-se sobre a teoria a ser criticada e recebendo dela, no momento da crtica, impulsos de pensamento
que nascem precisamente de suas brechas e contradies (SIEBENEICHLER, 1990:
27), o que faz com que as contradies da teoria criticada no constituam
29
indcios de fraqueza de pensamento do autor tratado, mas indicadores de que um determinado problema ainda no foi resolvido definitivamente ou que est encoberto (ibidem: 27). Com Habermas abre-se a possibilidade de uma anlise
interdisciplinar (crtica e dialctica) da sociedade, logo a de uma interveno
crtica e emancipatria no mbito dos estudos curriculares.
Na verdade, recorrendo teoria dos interesses constitutivos dos saberes
(HABERMAS, 1987), possvel identificar trs grupos de Curricularistas:
i) Os Tradicionalistas, que se situam no quadro do interesse tcnico
caracterizado por Habermas, vem o currculo como uma instncia
determinada por especialistas, um produto que, uma vez
apresentado aos professores (tcnicos), ser por estes executado e
transmitido aos alunos (seres passivos). O currculo focaliza os
contedos, organizados disciplinarmente.
ii) Os Empiristas (interesse prtico), perspectivam o currculo de acordo
com o contexto de realizao; preconizam a autonomia dos
professores e das escolas, focalizando as prticas.
iii) Os Reconceptualistas (interesse emancipatrio ou crtico),
consideram que o currculo um processo poltico que focaliza a
reconstruo social, sendo definido a partir de comunidades
constitudas atravs de uma praxis crtica, isto , teoricamente
esclarecida.
E assim que Kemmis (1988) define trs teorias curriculares, da forma
que o quadro a seguir transcreve:
Teorias Curriculares (vd. KEMMIS, 1988)
TEORIA TCNICA TEORIA PRTICA TEORIA CRTICA
Centrada no Ministrio da Educao
Centrada na Escola/Sala de aula
Centrada na Comunidade
Legitimidade Normativa
(legislao / especialistas)
Legitimidade Processual (variveis contextuais do processo)
Legitimidade Discursiva (currculo depende de quem o aplica e incrementa)
Racionalidade Tcnica:
Saber fazer
Professor executante, implementador de decises
Racionalidade Prtica: o que se faz resulta de um contexto
= processo de deliberao que estabelece a relao entre a inteno e a realidade
Racionalidade Comunicativa: resultante da interaco e da autonomia das comunidades educativas trabalho em colegialidade
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(intersubjectividade)
Ideologia Burocrtica Ideologia Pragmtica Ideologia Crtica
Teoria Prtica Teoria Prtica Prtica Teoria Prtica
Organizao Burocrtica Organizao Liberal Organizao Participativa, Democrtica, Comunitria
Discurso Cientfico Discurso Humanista Discurso Dialctico
Aco Tecnicista Aco Racional Aco Emancipatria
TRADICIONALISTAS EMPIRISTAS CONCEPTUAIS
(processos cognitivos)
RECONCEPTUALISTAS
(reconstruo social)
1918 Bobitt 1949 Tyler 1962 Hilda Taba
1969 Schawb 1987 Stenhouse
1970 - Paulo Freire
1975 M. Apple
1981 - H. Giroux
1975 W. Pinar
Currculo = Plano, Programa Currculo = Texto, Hiptese, Projecto, Inteno
Currculo = Praxis
A teoria tcnica , por sua vez, categorizada, por Gimeno Sacristn,
segundo trs concepes como smula das experincias acadmicas; como
base da experincia dos alunos e como legado tecnolgico, de acordo com o
seguinte quadro:
Concepes Curriculares (vd. GIMENO SACRISTN, 1988)
Currculo
=
Smula de Exigncias Acadmicas
Organizao Disciplinar
Currculo
=
Base da Experincia
Auto-realizao dos Alunos
Currculo
=
Legado Tecnolgico e Eficientista
Plano/Planificao para a Aprendizagem dos Alunos
Centrado nos Contedos Centrado nos Alunos Centrado nos Resultados
Escolstica medieval Dewey (incio sc. XX)
Escola Nova
Tyler (1949)
Johnson (1967)
Privilegia a transmisso de contedos (f na imutabilidade dos contedos)
Atender experincia, interesses e expectativas dos alunos (no entanto, o currculo mantm a organizao que parte das caractersticas da Teoria Tcnica)
Pedagogia por objectivos = a aprendizagem antecipada e convertida em objectivos.
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(eficincia)
a concepo mais dominante que os professores tm de currculo
Consequncias:
i) Valorizao das condies ambientais da aprendizagem
ii) Planificao aberta para as experincias (valorizao do currculo oculto)
iii) Ateno aos factos psicolgicos que interferem (valorizao do processo de aprendizagem dos alunos)
Consequncias:
Prepara-se tcnica e rgida do professor na formulao de objectivos.
J nos anos setenta Eisner e Vallance (1974) tinham identificado cinco
principais linhas curriculares, que apresentaremos agrupadas segundo trs
ordens conceptuais: teoria tcnica, teoria prtica e teoria crtica.
i) No mbito da teoria tcnica, identificam uma primeira orientao - o
racionalismo acadmico; uma orientao tradicionalista, segundo a qual a
principal preocupao curricular tornar os jovens capazes de adquirirem os
instrumentos que lhes permitam participar na tradio cultural ocidental. A
escola tem como funo a transmisso cultural cultivar o intelecto das
crianas, fornecendo-lhes oportunidades de adquirirem os produtos da
inteligncia humana (contidos nas disciplinas). O Ser educado aquele que
capaz de ler e perceber as obras produzidas pelas grandes disciplinas
(herana que data dos primrdios da civilizao grega). Neste contexto, o
currculo s pode basear-se no estudo de matrias organizadas
disciplinarmente17.
Uma segunda orientao aborda as questes da auto-realizao; trata-
se de uma perspectiva relacionada com o humanismo e o existencialismo.
Considera-se que preocupao do currculo a autonomia e o crescimento
pessoal do aluno, conseguidos atravs da veiculao de valores. O currculo
o conjunto de experincias de aprendizagem que satisfazem, de forma total,
cada aluno; e funo da escola fornecer quer os contedos quer os
instrumentos para uma melhor descoberta de si, uma vez que Educao
17 Poderamos salientar que esta perspectiva assenta em duas falcias: a do contedo (valorizao do que e no do como) formao livresca e a do universalismo: Educao quer dizer ensino. Ensino quer dizer saber como verdade. A verdade a mesma em todo o lado. Portanto, a educao devia ser a mesma em todo o lado (Hutchins, apud McNEIL, 1977).
32
capacitao, fora libertadora (meio de ajudar os alunos a descobrir coisas por
si prprio)18.
Uma terceira orientao assume carcter tecnolgico; relacionada com
os modelos cibernticos, os sistemas industriais e o behaviorismo, a
abordagem tecnolgica considera que o currculo est margem do contedo
e do aluno. A preocupao expressa no currculo o processo o COMO e
no o QU, estruturado em fases: Input /output / feedback / estmulo e
reforo. O Currculo baseia-se na procura de meios eficientes para um conjunto
de fins pr-definidos e que no so problematizados. Um currculo adequado
considerado um meio que permite produzir qualquer fim. Para isso, funo da
escola procurar a tecnologia atravs da qual o conhecimento melhor
comunicado e a aprendizagem facilitada, para ser possvel ensinar tudo a todos
e produzir aprendizagem. O Ser educado aquele que capaz de desenvolver
um sistema liberto de valores, marcado por uma linguagem concisa, rgida,
esquematicamente lgica, clara e directa19.
ii) Identificada com a teoria prtica, existe a perspectiva que v o
currculo orientado para o desenvolvimento dos processos cognitivos. uma
orientao que se relaciona com a psicologia cognitiva e com as teorias da
informao. O currculo visa o aperfeioamento das operaes intelectuais,
pelo que maior a preocupao com o COMO do que com o QU, no
sentido de compreender os processos atravs dos quais a aprendizagem
acontece (e no o contexto social em que ela ocorre). Assim, funo da
escola identificar os processos intelectuais mais importantes e eficazes e
fornecer o ambiente e a estrutura para o seu desenvolvimento, isto , fornecer
ao aluno uma autonomia intelectual que o habilitar a fazer as suas prprias
escolhas e interpretaes de situaes com que se depara para alm do
contexto escolar. A educao vista como uma dinmica da aprendizagem,
um mecanismo imparcial de capacitao. 18 H, no entanto, que ter em conta que o conhecimento de si no sempre uma experincia feliz e a mudana de auto-conceito precisa de ser apoiada. Esta perspectiva assenta em conceitos limitados de diferenciao, por um lado, e parece dar demasiada nfase no indivduo, por outro (McNEIL, 1977).
19 A abordagem lgica do tecnlogo que tenta ajudar o aluno a conseguir o domnio de objectivos especficos, tem sido acusada de deixar de fora mais influncias potenciais nos resultados de aprendizagem do que as que inclui. So tambm criticadas a reduzida validade das hierarquias estabelecidas, a inadequao no que toca a situaes imprevistas e a limitao dos conceitos de individualizao que assume (McNEIL, 1977).
33
iii) Na rea da teoria crtica, o currculo orientado para a reconstruo
social. Trata-se de uma orientao ligada com o modelo sociopsicolgico
(preconiza a interdependncia entre o desenvolvimento individual e a qualidade
do contexto social). O currculo uma experincia total de valores sociais e
posies polticas, com prioridade das necessidades sociais sobre as
individuais. Sendo preocupao do currculo desenvolver uma melhor
conjuno entre o indivduo e a sociedade, funo da escola a interveno no
contexto social, pois ela agente de mudana, ponte entre o que e o que
devia ser. O Ser educado.
Tomaz Tadeu da Silva acrescenta a esta categorizao de trs teorias
curriculares a referncia s teorias ps-crticas20. Num contexto marcado pelo
ps-modernismo, com os seus fulminantes ataques ao sujeito racional, livre,
autnomo, centrado e soberano da Modernidade (TADEU DA SILVA, 2000b: 116),
em que as grandes narrativas21, as meta-narrativas e a objectividade so
substitudas pelo subjectivismo das interpretaes parciais e localizadas
(ibidem:: 117), no s o currculo oficial que questionado; tambm a teoria
crtica do currculo o : o ps-modernismo desconfia profundamente dos impulsos emancipadores e libertadores da pedagogia crtica [considerando que] em ltima anlise, na origem desses impulsos est a mesma vontade de domnio e controlo da
epistemologia moderna (ibidem: 119).
Quer as teorias crticas quer as teorias ps-crticas defendem que o
currculo uma questo de saber, de identidade e de poder; ambas mostram a
insuficincia de caracterizar o currculo atravs dos conceitos tcnicos de
eficincia ou das categorias psicolgicas de aprendizagem e desenvolvimento.
No entanto, elas distinguem-se da seguinte maneira: para as teorias crticas o
currculo um territrio poltico, uma construo social, enquanto para as
teorias ps-crticas o currculo no pode ser compreendido sem uma anlise das
relaes de poder nas quais ele est envolvido (ibidem: 153) e o poder est em 20 O que certos autores, com destaque para Tomaz Tadeu da Silva (2000b), chamam teoria curricular ps-crtica tem origem nas abordagens ps-moderna e ps-estruturalista. Porm, o reconhecimento simultneo do crtico e do ps-crtico: ao questionar alguns dos pressupostos da teoria crtica do currculo, a teoria ps-crtica introduz um claro elemento de tenso no centro mesmo da teorizao crtica. Sendo ps, ela no , entretanto, simplesmente superao. Na teoria do currculo, assim como ocorre na teoria social mais geral, a teoria ps-crtica deve combinar-se com a teoria crtica para ajudar-nos a compreender os processos pelos quais, atravs das relaes de poder e controlo, nos tornamos naquilo que somos. Ambas nos ensinaram, de diferentes formas, que o currculo uma questo de saber, identidade e poder (TADEU DA SILVA, 2000b: 151-152). 21 Tomaz Tadeu da Silva considera haver, na actualidade, uma luta pelo significado e pela narrativa, mas que atravs das narrativas, identidades hegemnicas so fixadas, formadas e moldadas, mas tambm contestadas, questionadas e disputadas (TADEU DA SILVA, 1995: 205).
34
toda a rede social nomeadamente nos processos de dominao centrados na
raa, na etnia, no gnero e na sexualidade -, sendo o conhecimento parte
desse poder. Por isso,
O currculo lugar, espao, territrio. O currculo uma relao de poder. O currculo trajectria, viagem, percurso. O currculo a autobiografia, a nossa vida, o curriculum vitae: no currculo forja-se a nossa identidade. O currculo texto, discurso, documento. O currculo documento de identidade (ibidem: 155).
1.1.2. Max Horkheimer e a dialctica do esclarecimento
No ponto anterior referimos que Habermas identificava o interesse
emancipatrio com o campo das cincias crticas e da psicanlise e que,
apesar de este filsofo cujas perspectivas tm definido os fundamentos para
a Teoria e Desenvolvimento Curricular - explicitar que este mesmo interesse
est presente, quer na relao tcnica que o homem estabelece com a
natureza, quer no agir comunicacional que o relaciona com esta e com os
outros homens, a Teoria e o Desenvolvimento Curricular tm-se debruado,
essencialmente, nos dois primeiros interesses.
Na verdade, a identificao das diferentes teorias, concepes e
orientaes curriculares, feita no ponto anterior, mostra a dificuldade que em
Portugal tem havido em definir, na Teoria e Desenvolvimento Curricular, uma
linha crtica e emancipatria. Se a teoria crtica tem caracterizado o dizer dos
discursos da Administrao Central desde os anos oitenta, o mesmo no tem
acontecido, nem ao nvel das teorias de instruo que regulamentam a
formao de professores, nem, bvia e consequentemente, ao nvel das
prticas docentes.
Em Portugal, em 1998, Cndido Varela de Freitas lanou, no Colquio
sobre Questes Curriculares organizado pela U.M.22, um pungente desafio
reconceptualizao curricular, contrariando, quer o alerta de Schwab (1969) de
que o currculo estava moribundo, quer o de Huebner (1976) que afirmara que
o currculo estava morto (FREITAS, 1998).
22 Foi justamente na Universidade do Minho que, em 1976/77, se leccionou, pela primeira vez em Portugal, uma disciplina de curriculum.
35
J anteriormente, na Amrica do Norte e no Brasil, Freire (1970), Apple
(1975) e Pinar (1975), integrando um grupo heterogneo de reconceptualistas,
pretenderam reanalisar o currculo. Uns como Freire - colocaram a tnica na
organizao participativa e democrtica das comunidades, outros como
Apple aliceraram a sua luta volta do questionamento das instituies e da
aco emancipatria, outros ainda como Pinar consideraram que a funo
do reconceptualismo era o discurso dialtico, com vista compreenso.
Tratou-se, neste ltimo caso, de um contributo que teve frutos na
investigao que se foi fazendo em termos curriculares, a qual, ao valorizar a
compreenso dos fenmenos, se dedicou investigao do pensamento dos
professores e dos alunos, com base numa investigao autobiogrfica, da qual
emergiram perspectivas multiculturais de abordagem do quotidiano das
escolas. No entanto, e como refere Peter Hlebowitsh, As guas encapelam-se com retrica sobre a luta contra a hegemonia, conscincia crtica e compreenso psicanaltica, enquanto as velhas correntes de guas profundas continuam a mover-se,
na escola, em direces predizveis (HLEBOWITSH, 1997: 507).
O discurso reconceptualista no tem conseguido, realmente, afirmar-se
e as ressonncias do debate entre tradicionalistas e reconceptualistas no tero chegado a Portugal a no ser para um pequeno nmero de acadmicos, e julgo poder dizer que em certo sentido as posies dominantes sobre curriculum so, entre ns,
ainda tylerianas (FREITAS, 1998: 22).
Mais recentemente, alguns acadmicos - Henry Giroux (1986) nos EUA,
Tomaz Tadeu da Silva (1993) no Brasil, e Jos Augusto Pacheco (2004b) em
Portugal - tm recorrido primeira fase da Escola de Frankfurt e
concretamente a Max Horkheimer (1937), o que deu um novo alento aos
trabalhos desenvolvidos no mbito do currculo, nomeadamente ao desviarem
o centro do debate da anlise comunicativa Habermasiana para uma reflexo
prxima de uma anlise da cultura, tematizada por Horkheimer, e inserida
numa tendncia a analisar e a teorizar a educao atravs de uma Teoria Cultural, a ver
a educao em termos de campo poltico cultural (TADEU da SILVA 1993: 122).
Vejamos porqu.
Os termos centrais da filosofia prtica de Horkheimer so a
emancipao, a liberdade e a felicidade. Diz a este propsito o prprio: en la
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teora crtica, el concepto de necesidad es l mismo un concepto crtico; presupone el
concepto de libertad, aunque no como concepto existente (HORKHEIMER, 2000:
65). Considera que existe uma relao dialctica entre pensamento,
esclarecimento e mito, assim como entre racionalidade e realidade social.
Defendendo a necessidade de uma teoria crtica, este filsofo considera que a
humanidade procura constantemente emancipar-se do medo, do mito e da
dominao, em que constantemente cai. O mito e a dominao so o resultado
de um progresso e de uma civilizao que se constroem na base do saber
tcnico, o qual se fundamenta na dominao da natureza e dos homens,
porque apoiado nos critrios de utilidade e de eficincia.
justamente nesta predisposio da humanidade para a emancipao
atravs do esclarecimento do pensamento crtico, livre, independente e
tolerante, que no capitula face s sugestes do real e ao poder - que se
fundamentam as mais recentes teorias do currculo:
La teora crtica no tiene de su parte otra instancia especfica que l inters, vinculado a ella misma, en la supresin de la injusticia social (). En un perodo histrico como el nuestro, la verdadera teora no es tanto afirmativa como crtica, del mismo modo que la accin conforme a ella no puede ser productiva. El futuro de la humanidad depende hoy de la existencia de la actitud crtica, que naturalmente entraa elementos de la teora tradicional y de esta cultura moribunda en general. Una ciencia que, con presuntuosa autosuficiencia, considera la configuracin de la praxis a la que pertenece y sirve simplemente como lo que queda ms all de ella, y que se conforma con la separacin de pensamiento y accin, ha renunciado ya a la humanidad (ibidem: 77)23.
Se uma Teoria Cultural da Educao v a Educao, a Pedagogia e o Currculo
como campos de luta e conflito simblicos (TADEU DA SILVA, 1993: 122), um
novo desafio se apresenta na actualidade para a Teoria Crtica da Educao:
ultrapassar as preocupaes exclusivamente analticas que tm marcado a
crtica, e cuja consequncia tem sido consubstanciada em entraves para a aco
poltica [e] para a interveno social (ibidem: 124). No fundo, trata-se de
perspectivar uma crtica dialctica, que permita uma linguagem da
possibilidade e da esperana (GIROUX, 1986), ultrapassando o plano de crtica
23 Este texto, lido na traduo espanhola de 2000, data de 1937.
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negativa que, como o excerto transcrito esclarece, pode caracterizar as
anlises sociais feitas com base em Horkheimer. Bruno Pucci diz a propsito
que, se verdade que Horkheimer, Adorno e Marcuse fazem uma crtica
contundente sociedade capitalista e indstria cultural, eles so acusados,
pelos seus crticos, de terem ficado pela denncia, sem apresentarem
perspectivas de superao. Acusam a sua dialctica de ter sido paralisante e
incompleta. No entanto, a resistncia individual e colectiva (aos irracionalismos
da barbrie fascista, do autoritarismo estalinista, da semicultura capitalista)
feita pelos seguidores da Escola de Frankfurt existiu, e foi realizada atravs da
Razo - da cultura, da educao, da formao, da arte - (PUCCI, 1995), numa
linha iluminista de esclarecimento pela razo.
Na verdade, da linguagem da possibilidade e da esperana faz parte
uma estratgia intelectual de aco que perspectiva a teoria como uma prtica
poltica e pedaggica, em que os educadores fomentam a participao efectiva
dos estudantes atravs de uma pedagogia da teorizao (Giroux, apud SILVA,
2002: 189), quer dizer, atravs do contacto com vrias e diversas teorias na
soluo de problemas, de forma a associar anlise crtica a interveno
poltica.
Em suma, trata-se de praticar uma crtica dialctica que rompa com a
teoria crtica radical das formas estabelecidas da cincia social (BOURDIEU, 2004:
124) praticada, por exemplo, por Apple (1994). Na modernidade, a crtica tem
sido feita com base numa ideia considerada correcta de educao, de currculo
e de pedagogia, decorrente, por sua vez, de uma viso ideolgica da
sociedade. Nesta perspectiva, a crtica consiste na anlise dos aspectos em
que a sociedade e a educao esto deformadas relativamente ao modelo que
serve de anlise. Deste modo se tem feito a anlise crtica da reproduo
(BOURDIEU e PASSERON, 1970), conformada reflexividade a que poderamos chamar narcsica, no s porque esta reflexividade se limita muitas vezes a um retorno complacente do investigador s suas prprias experincias, mas tambm porque em si
mesma o seu fim e no produz qualquer efeito prtico (BOURDIEU, 2004: 124).
Pelo contrrio, trata-se agora de adoptar um posicionamento crtico atravs da
capacidade reflexiva, que possibilite a construo da autonomia, que permita converter a reflexividade numa disposio constitutiva dos seus hbitos cientficos, ou
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seja, uma reflexividade reflexa, capaz de agir no ex post, sobre o opus operatium, mas a
priori, sobre o modus operandi (ibidem: 124).
No sentido Kantiano, a crtica ps-moderna aparece associada ideia
de incerteza, no sentido em que, na Crtica da Razo Pura, este filsofo
defende que as mesmas provas que demonstram a impotncia da razo humana em relao afirmao da existncia de um tal ser, bastam tambm, necessariamente, para
demonstrar a fragilidade de toda a afirmao contrria (VANCOURT, 1986: 78).
Mas tambm remete para a ideia de esclarecimento24 e libertao, atravs da
razo25. O mtodo que usa a anlise reflexiva.
Deste modo, ser legtimo afirmar que
O racionalismo crtico [Kantiano] mantm-se a igual distncia do dogmatismo e do cepticismo. No dogmtico, porque recusa razo humana o poder de conhecer um mundo inteligvel, feito de realidades transcendentes, ou seja, o poder de atingir o absoluto. Mas tampouco ctico, pois admite que o esprito humano capaz de chegar a verdades universais e necessrias (PASCAL, 1985: 46).
A crtica ps-moderna assume assim uma dupla vertente: a conscincia
dos limites das formas de pensamento, pois no se trata de procurar uma nova forma de saber absoluto, mas de exercer uma forma especfica de vigilncia
epistemolgica (BOURDIEU, 2004: 124) e, simultaneamente, de criao de
condies de emancipao, atravs da reflexividade, valorizando as condies
sociais de possibilidade (idem: 125). Assim se conseguir uma prudncia
epistemolgica que permite antecipar as hipteses provveis de erro ou, de forma
mais lata, as tendncias e as tentaes inerentes a um sistema de disposies (idem:
127).
A necessidade de uma linguagem da possibilidade tinha j sido, como
dissemos atrs, apresentada por Henry Giroux. Na verdade, se este
curricularista e filsofo da educao norte-americano aceita, como ponto de
partida da anlise da teoria e da prtica educacionais, os interesses emprico-
24 Esclarecimneto (Aufklaerung) a sada do homem de sua menoridade (...). A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direco de outro indivduo (...). Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento (KANT, 1985: 100). 25 Isso nos faz lembrar Gramsci, para quem todos os homens so filsofos, intelectuais (PUCCI, 1995: 21).
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instrumental ou tcnico, histrico-hermenutico ou interpretativo e crtico-
emancipatrio de Habermas (1987), ele tambm considera a racionalidade
emancipatria, tal como Habermas a tematiza, excessivamente regulada por
um horizonte de consenso baseado num conjunto de normas aceites como
verdade. Fundamentando-se nos tericos da primeira fase da Escola de
Frankfurt, Giroux reconceptualiza o conceito de teoria26, atribuindo-lhe
um valor de intencionalidade transformadora atravs de um movimento de crtica autoconsciente, ou de capacidade autocrtica, que a constitui como uma metateoria (Giroux, 198327: 15). No mbito destas dimenses transformadora e autocrtica da teoria cabe uma anlise que a situe menos como um conjunto estabilizado de prescries e mais como o reescrever das relaes entre a teoria e a prtica, por forma a criar condies de descoberta de novos objectos, problemas, valores, antagonismos e modos de aco. Por outras palavras, trata-se de situar num plano dialctico o debate, por vezes equvoco, em torno da relao entre teoria e trabalho emprico (SILVA, 2002: 179).
Deste modo, ao criticar a crtica da reproduo (BOURDIEU e
PASSERON, 1970), por inoperante, Giroux apresenta um modelo terico
produtor. Trata-se de dar voz aos que habitualmente no a tm, utilizando as
formas de organizao e de estruturao prprias, quer dos grupos
dominantes, quer dos dominados, e facultando s classes dominadas o acesso
aos saberes normalmente restritos s classes dominantes (GIROUX e SIMON,
1989) a relao entre o modo de organizao e o contedo desse corpo de conhecimentos que faz com que a escola se torne num local onde a classe trabalhadora pode encontrar respostas a necessidades especficas, atravs de uma luta ideolgica (Giroux, 198828: 201, apud SILVA; 2002: 195).
Por outras palavras, os educadores crticos e transformadores so os
que compreendem que, para afirmar e fazer ouvir a voz dos grupos dominados
necessrio que eles se apropriem da linguagem dominante e que os saberes
dos grupos dominados passem a fazer parte da histria. Trata-se de
26 Henri Giroux concilia, no delineamento filosfico que traa, aspectos do pensamento moderno e do pensamento ps-moderno (TADEU DA SILVA, 1993). 27 GIROUX, H. (1983). Pedagogia Radical. Subsdios. So Paulo: Cortez Editora. 28 GIROUX; H. (1988). Teachers as intellectuals. Toward a critical pedagogy of learning. New York and London: Bergin and Garvey.
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facultar cultura da classe trabalhadora a compreenso da cultura humanstica tradicional constituda pelas ideias e autores consagrados pela histria oficial dominante, para que, numa perspectiva dialctica, essas ideias e autores reconhecidos com valor de universalidade, e academicamente organizados, possam ser criticados e rearticulados (...) [e que] se reconhea a existncia especfica de uma cultura da classe trabalhadora que no pode ser interpretada a partir de um plano de equivalncia com a cultura dominante (SILVA, 2002: 195).
So, aqui, as questes da hegemonia que, com Gramsci (1974), Giroux
coloca como tema central da educao e que, com Paulo Freire, sintetiza na
ideia de que necessrio tornar o poltico mais pedaggico e o pedaggico
mais poltico (GIROUX e FREIRE, 1987).
Deste modo, mapeando os pressupostos da Teoria e do
Desenvolvimento Curricular, se v que a teoria representa, reflecte, espelha a realidade. A teoria uma representao, uma imagem, um reflexo, um signo de uma
realidade que (...) a precede (TADEU da SILVA, 2000b: 9), porque no fundo das teorias do currculo est (...) uma questo de identidade ou de subjectividade (ibidem: 14).
O Processo de Desenvolvimento Curricular em que o currculo se traduz
num plano de aco e num produto, em que predomina uma perspectiva
racional e tecnolgica, com trs momentos independentes: elaborao (pelos
especialistas), implementao (pelos professores) e avaliao (pelo sistema),
corresponde teria tcnica. Pelo contrrio, quando o currculo um projecto,
logo o processo de desenvolvimento curricular assume uma perspectiva
racional prtica, em que existe uma interdependncia entre a elaborao, a
implementao e a avaliao, insere-se na teoria prtica. Se o currculo
praxis, logo o desenvolvimento curricular um processo racional crtico, em
que a elaborao, a implementao e a avaliao competem comunidade
educativa, trata-se de um processo inserido na teoria crtica.
Horkheimer um autor fundamental para compreendermos a
importncia epistemolgica da teoria crtica, dominante ao nvel dos discursos,
sendo tambm certo que ao nvel das prticas continuam a ser trabalhadas as
componentes da teoria tcnica ou de uma teoria da instruo, na linha
tyleriana.
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Em suma, reiteramos a existncia de duas teorias curriculares dominantes - teoria de instruo e teoria crtica -, alis subsidirias da classificao de Max
Horkheimer, quando distingue teoria crtica de teoria tradicional (PACHECO, 2004b:
no prelo). So duas teorias que correspondem, por sua vez, a dois
posicionamentos distintos face ao acto educativo: as teorias tradicionais, cujos
tericos procuram resposta questo que conhecimento deve ser ensinado, e
as teorias crticas, cujos mentores se orientam no sentido de responder
questo porqu essa escolha, na assuno de que nela esto sempre
implicadas relaes de poder e de identidade. E com base neste
pressuposto, que assumimos como linha orientadora desta investigao, que
passaremos anlise dos modelos de desenvolvimento curricular que tm
servido de base reflexo curricular.
1.2. Modelos de desenvolvimento curricular
Entendemos por modelo no um exemplo a seguir, uma norma para ser
imitada, mas uma representao simplificadora e ilustrativa de estruturas e
ligaes alcanadas atravs da reduo e acentuao de factores individuais.
Um modelo , para ns, uma hiptese de trabalho, um esquema
operatrio, uma construo. ESCUDERO MUOZ (1981) define modelo como
uma construo que representa de forma simplificada uma realidade ou
fenmeno, com a finalidade de delimitar algumas das suas dimenses e
variveis. Um modelo permite uma viso aproximada, que orienta estratgias
de investigao para a verificao de relaes entre variveis e que apresenta
dados para a progressiva elaborao das teorias (FROUFE QUINTAS e
CASTAO, 1994).
Assim, um modelo curricular ser a forma como os diferentes
componentes do currculo29 tomam a sua sequncia, de modo a assegurar o
desenvolvimento do currculo.
Modelo distingue-se de paradigma, na medida em que este um
sistema ideal, testado, generalizado e partilhado por uma comunidade
educativa; distingue-se de teoria porque esta o resultado da confirmao ou 29 Os diferentes componentes de currculo a que nos referimos so: os agentes (professores, alunos e comunidade), os componentes escritos (normativos legais, programas e carga horria) e a implementao (programao, metodologias, suportes e avaliao).
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infirmao de diferentes possibilidades, sendo que os modelos esto para os
paradigmas como as hipteses esto para as teorias (SCRIVEN, 1967).
Em termos de modelos de desenvolvimento curricular, parece-nos
pertinente distinguir, por um lado, e tendo como referncia a estrutura curricular
e o papel desempenhado pelo professor, trs modelos de desenvolvimento
curricular: centrado nos objectivos, centrado no processo e centrado na
situao. No mbito dos dois primeiros, necessrio identificar trs grandes
orientaes para o sistema de crenas dos professores, as quais determinam
as escolhas de material e os sistemas de avaliao usados: i) orientao de
desenvolvimento linear, de transmisso ou unidireccional, que corresponde ao
modelo centrado nos objectivos; ii) orientao cclica ou circular, de transaco;
iii) orientao de transformao. Estes dois ltimos correspondem ao modelo
centrado no processo. Distinguimo-los segundo a funo que atribuem ao
currculo, de acordo com o paradigma filosfico-cientfico por que se orientam,
as metodologias que preconizam e a viso do mundo que pressupem, tal
como o quadro seguinte esclarece:
Orientaes para o