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O JULGAMENTO DE LAMPIÃO Divagações entre o real e a utopia Virgulino Ferreira da Silva, pelo povo também conhecido como “ Lampião”, foi preso em flagrante pela “volante” do Tenente Bezerra e apresentado a este Juízo na forma da ilustração de autoria do cartunista @CarlosLatuff. Esta é uma decisão, portanto, que navega entre o virtual e o real, o passado e o presente, entre o possível e o impossível, permeada de utopia, sonho e esperança... O que se verá, por fim, é a evidência da contradição, não insolúvel, entre o Direito e a Justiça. Quem viver, verá. Inicialmente, registro que não costumo me dirigir aos acusados por “ alcunhas”, vulgos” ou apelidos. Aqui, todos tem nome, pois ter um nome significa, no mínimo, o começo para ser cidadão e detentor de garantias fundamentais previstas na Constituição brasileira. Neste caso, no entanto, abro uma exceção para me dirigir ao acusado Virgulino Ferreira da Silva apenas como “Lampião”, pois creio que assim o fazendo não lhe falto com o devido respeito. Ao contrário, faço valer, ao tratá-lo como “ Lampião”, a mesma reverência que lhe dedica o povo pobre e excluído do sertão brasileiro.

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  • OJULGAMENTO DE LAMPIODivagaes entre o real e a utopia

    Virgulino Ferreira da Silva, pelo povo tambm conhecido como Lampio, foi preso emflagrante pela volante do Tenente Bezerra e apresentado a este Juzo na forma dailustrao de autoria do cartunista @CarlosLatuff.

    Esta uma deciso, portanto, que navega entre o virtual e o real, o passado e o

    presente, entre o possvel e o impossvel, permeada de utopia, sonho e esperana... O que se

    ver, por fim, a evidncia da contradio, no insolvel, entre o Direito e a Justia. Quem

    viver, ver.

    Inicialmente, registro que no costumo me dirigir aos acusados por alcunhas,

    vulgos ou apelidos. Aqui, todos tem nome, pois ter um nome significa, no mnimo, o

    comeo para ser cidado e detentor de garantias fundamentais previstas na Constituio

    brasileira. Neste caso, no entanto, abro uma exceo para me dirigir ao acusado Virgulino

    Ferreira da Silva apenas como Lampio, pois creio que assim o fazendo no lhe falto com

    o devido respeito. Ao contrrio, fao valer, ao trat-lo como Lampio, a mesma

    reverncia que lhe dedica o povo pobre e excludo do serto brasileiro.

  • Em seguida, devo observar que a responsabilidade de julgar Lampio tamanha e

    me assombra. De outro lado, no aceito como divino o papel de julgar. Deixemos Deus

    com seus problemas. Julgar homens tarefa de homens. Da mesma forma, tenho comigo

    que realizar a Justia tarefa do homem na histria. Assim sendo, passo a julgar Lampio

    como tarefa essencialmente humana e com o sentido de que, ao julgar, o Juiz tambm pode

    contribuir com a realizao da Justia ou, na pior das hipteses, ao menos no impedir que o

    povo realize sua histria com Justia.

    Pois bem, consta dos autos que Lampio teria sido preso em flagrante sob

    acusao de formao de quadrilha para a prtica de inmeros crimes contra a vida, contra o

    patrimnio e contra os costumes. Consta ainda dos autos os depoimentos dos condutores

    membros da volante do Tenente Bezerra - e a representao da autoridade policial pela

    decretao da priso preventiva do acusado, sob argumento da garantia da ordem

    pblica.

    Ao estrito exame das provas apresentadas, por conseguinte, e do que dispe a lei,

    parece pacfica a necessidade da segregao preventiva do acusado para garantia da ordem

    pblica, visto que restou provado, em face dos depoimentos colhidos, que o acusado, de

    fato, representa grave perigo harmonia e paz social. Isto o que se depreende do que se

    apurou at ento e do que consta dos autos. Imperativo, por fim, que se decrete a priso

    preventiva do acusado, segregando-o do meio social.

    ...................

    Antes de concluir a deciso com a terminologia prpria, o tal expea-se o mandado

    de priso, publique-se, intime-se, cumpra-se..., recosto a cabea na cadeira, ajeito o corpo,

    fecho os olhos e ponho-me a pensar quantas vezes j decidi dessa maneira, quantas vezes j

    decretei prises preventivas por motivo de garantia da ordem pblica...

    De sbito, enquanto pensava, eis que Lampio, o prprio, saltitando feito uma

    guariba, pula da gravura do @CarlosLatuff e invade minha mente. virtual, mas como se

    fosse tambm real e humano na minha frente. Parabellum em uma mo e o punhal de

    prata, cabo cravejado de brilhantes, em outra. No tenho medo e nem me assusto. Ele

    tambm no diz nada e agora apenas me olha e circula em torno de mim. Somos pessoas e

    ao mesmo tempo ideias e pensamentos. O texto final da minha deciso judicial, por

    exemplo, fazendo referncia garantia da ordem pblica, como se fosse tambm algo

  • concreto nesta cena, como um pssaro rondando minha cabea. De repente, com um tiro

    certeiro de Parabellum, Lampio esfacela esta forma de pensar, que me ronda feito um

    pssaro, como se matando este meu senso comum terico dos juristas, conforme denuncia

    Warat. Em seguida, ainda atnito e sem mais pensamentos para me agarrar, sinto uma

    profunda punhalada no corao, mas no sinto dor alguma. No sangro sangue, mas vejo

    jorrando do meu peito todos os meus medos de pensar criticamente o mundo em que vivo,

    as relaes sociais e, sobretudo, o Direito.

    O que fao? No tenho mais o senso comum terico dos juristas e tambm no

    tenho mais freios no meu modo de pensar criticamente o mundo e o Direito. Lampio

    acabou com eles com um tiro de parabellum e uma punhalada com punhal de prata.

    Agora, sem minhas defesas, que imaginava poderosas, sou como um morto... Estou

    morto.

    Na verdade, estou morto e renascido livre ao mesmo tempo. Vejo, de um lado, meu

    corpo morto e meu pensar antigo e, de outro lado, sinto-me renascido em outro corpo e

    outro pensar. Morri para nascer de novo. Agora, nascido de novo, posso pensar diferente;

    posso pensar um novo Direito e, por fim, posso pensar que a Justia possvel e que pode

    ser construda pelo homem novo. Est certo Gilberto Gil. preciso morrer para

    germinar. Lampio me matou para que eu pudesse viver e ver. Viva Lampio!

    E vivendo depois da morte, vejo, agora, com Lampio ao meu lado, que aquele

    antigo modo de pensar, na verdade, foi o fruto do ensino jurdico que incute verdades e

    dogmas na mente de acadmicos de Direito, que se tornam advogados, que se tornam juzes,

    que se tornam desembargadores, que se tornam ministros de tribunais e se imaginam sbios

    porque aprenderam a reduzir o Direito lei e a Justia vontade da classe que representam.

    Este o Direito limitado aos autos do processo e tarefa de manter excludos da

    dignidade os pobres e miserveis; o Direito da manuteno da falsa ordem burguesa; o

    Direito alheio vida, pobreza, misria e fome.

    Posso ver agora, com Lampio ao meu lado, que aquele modo antigo de pensar

    aprisiona e mutila os fatos nos autos do processo. Assim, autos no tem vida, no esto

    no mundo, no tem contradies sociais e transformam homens em delinqentes,

    meliantes e bandidos. Reduz, pois, todas as contradies do mundo e da vida em uma

    tolice: o que no est no processo no est no mundo.

  • Agora posso ver, com Lampio ao meu lado, depois de ter morrido para viver, ver

    e violar dogmas, que o mundo est no processo. , pois, no processo que est a

    desigualdade social, a concentrao de renda, sculos de latifndio, a acumulao da riqueza

    nacional nas mos de uns poucos, preconceitos, discriminaes e excluso social. Tudo isso

    e est no processo. Isto o processo.

    Vejo, por fim, compartilhando esta ltima viso com Lampio, que os autos que

    me apresentaram no tem mundo e nem vida. No tem sua vida, Lampio. No tem sua

    histria. No tem seu passado. No tem sua famlia. No tem seus pais e irmos sendo

    expulsos da terra que cultivavam. No tem sua dor e sua revolta. No tem sua sede e fome

    de justia. No tem sua desesperana na justia. No tem sua vida, repito. No tem nada e

    de nada servem esses autos. No servem para um julgamento. Servem para justificar uma

    farsa, acalentar os hipcritas e fazer da mentira a verdade.

    Esses autos que me apresentaram, Lampio, no tem ndios escravizados e

    mortos pelo colonizador; negros desterrados e escravizados nesta terra; posseiros expulsos

    de suas terras e mortos pelo latifndio; operrios explorados, desempregados e

    desesperados; crianas dormindo ao relento; os sem-teto, os sem-terra, os excludos da

    dignidade. Esses autos no esto no mundo, um faz-de-conta, uma iluso...

    O que fao agora? Estou morto de um lado, mas vivo de outro. No sei mais o que

    virtual e o que real. Sei que deliro, mas no posso deixar morrer este novo eu. Preciso

    fazer com que permanea vivo em mim o que renasceu e deixar morto o que morreu. No

    quero ser mais o que era antes de morrer. Quero ser apenas o que renasci.

    Luto comigo mesmo e permaneo vivo. Estou vivo, escuto e vejo, agora, mais uma

    vez, tiros de parabellum e golpes de punhal, como se sados do nada e bailando no ar,

    furando e cortando em pedaos os autos do processo. Agora, no existem mais os

    autos do processo. Papis picados tremulam no ar. Voam descompassados como

    borboletas... Preciso manter a lucidez, mas agora tarde. A loucura tomou conta de mim e

    me levou com as borboletas para as lagoas encantadas do serto brasileiro. Agora sou

    pura utopia, sonho e liberdade. Converso com mes-dgua beira da lagoa e todas as

    coisas agora fazem parte de tudo. Nada mais sem as outras coisas. Somos todos partes de

    um todo...

    Neste devaneio em que me encontro, no sei mais o que o real, o que verdade, o

  • que passado ou presente ou se estou morto ou vivo; no sei mais - ou sei? - o que e para

    que serve o Direito. Delirando assim, no posso mais julgar. Estou impedido de julgar. No

    posso mais julgar Lampio. Eu no sou mais real, sou sonho apenas. Lampio, tambm,

    no mais real. uma lenda, um mito. Lampio agora povoa o imaginrio dos pobres do

    serto. Lampio no pode ser mais julgado por um juiz apenas. S a histria e o povo

    podem julg-lo agora.

    Esperem! Lampio me foi apresentado preso e eu preciso decidir sobre o flagrante.

    Preciso voltar... As borboletas me trazem de volta da lagoa encantada em que me

    encantei. Sou novamente real neste mundo virtual. Aqui estou e preciso falar. Assim,

    enquanto a histria no vem, mas inevitavelmente vir um dia, no posso deixar Lampio

    encarcerado. A cadeia no serve aos valentes e aos destemidos; a cadeia no serve aos que,

    como Marighella, nunca tiveram tempo para ter medo; a cadeia no serve aos que no tem

    Senhor e aos que amam a liberdade. Homens verdadeiros no morrem presos.

    Portanto, Lampio, a liberdade tua sina. V. Talvez Maria te espere ainda. Talvez

    teu bando te espere ainda. Talvez Corisco no precise te vingar. Talvez teu corpo no trema

    por mais de dois minutos depois que degolarem tua cabea. V. melhor, na verdade, que

    morra em combate com a volante do Tenente Bezerra do que apodrecer e morrer vivo na

    priso. Os valentes morrem lutando e escrevem a histria. V. a histria, somente ela, que

    tem a autoridade para lhe julgar.

    Por fim, agora concluo minha deciso inacabada: expea-se o Alvar de Soltura e

    entregue-se o acusado, Virgulino Ferreira da Silva, Lampio, ao seu prprio destino.

    Dato e assino: Gerivaldo Alves Neiva, Juiz de Direito.

    Depois disso, as borboletas me levaram de volta ao mundo da paz, da harmonia e da

    solidariedade, onde somos todos iguais e irmos; de volta s lagoas encantadas do serto

    brasileiro e aos braos das mes dgua.

    Com viram, ouviram e imaginaram, este julgamento um devaneio. Mistura de

    imaginao, passado e presente, sonho, utopia e, sobretudo, esperana inquebrantvel na

    Justia.

    Uma noite fria e chuvosa, agosto, 2010.

    Gerivaldo Alves NeivaJuiz de Direito