89
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE LEITURA DE PRODUÇÃO DO TEXTO ESCRITO E FALADO SERGIO EDUARDO HERMAN Orientadora: Profª Drª Sonia Sueli Berti Santos Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2013

TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE LEITURA

DE PRODUÇÃO DO TEXTO ESCRITO E FALADO

SERGIO EDUARDO HERMAN

Orientadora: Profª Drª Sonia Sueli Berti Santos

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO

2013

Page 2: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

H473t

Herman, Sérgio Eduardo. Texto, discurso e ensino: processos de leitura de produção do

texto escrito e falado / Sérgio Eduardo Herman. -- São Paulo; SP: [s.n], 2013.

88 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Sonia Sueli Berti Santos. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise de texto 2. Linguística textual 3. Ethos I. Santos,

Sonia Sueli Berti. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 801.82(043.3)

Page 3: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE LEITURA

DE PRODUÇÃO DO TEXTO ESCRITO E FALADO

SERGIO EDUARDO HERMAN

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela banca examinadora em 13/12/2013.

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara

Universidade Cruzeiro do Sul

Prof. Dr. Fábio Luiz Villani

Faculdade Campo Limpo Paulista

Page 4: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

DEDICATÓRIA

A Deus, pelas oportunidades concedidas e pela capacidade com

que me imbuiu.

Ao meu pai Carlos Eduardo “in memoriam”, pelo apoio, paciência e sabedoria com que me conduziu. Por todos os conselhos que, em sua extensa experiência de vida, soube adequar a cada situação que marcou minha trajetória. À minha esposa e companheira Arli, por haver entrado em minha vida de maneira inesperada e por estar em todos os momentos mais importantes, demonstrando seu carinho e dedicação de maneira incondicional. À minha mãe por me haver gerado e educado. Pelo incentivo nos estudos e pelo apoio nesta fase final.

Page 5: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos, pela

dedicação, pela paciência e pela competência com que conduziu este trabalho.

Aos Professores Drs. Fabio e Ana Elvira Gebara, pela leitura rigorosa e

valiosas sugestões que contribuíram para o prosseguimento do meu trabalho.

Aos professores do Mestrado de Linguística da Universidade Cruzeiro

do Sul, pela dedicação e competência com que ministraram as aulas.

Aos colegas do curso, pelo companheirismo durante toda a trajetória.

Aos amigos, que não nomeei, mas que colaboraram efetivamente para a

construção deste trabalho.

A toda minha família e amigos, que celebraram a minha história.

Page 6: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

“Tudo posso Naquele que me fortalece”.

Filipenses 4:13

O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira,

vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório: é

portanto o sujeito da enunciação uma vez que enuncia que está em jogo aqui.

Page 7: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

HERMAN, Sérgio Eduardo. Texto, discurso e ensino: processos de leitura de produção do texto escrito e falado. 2013. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

RESUMO

Esta dissertação, apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística da

Universidade Cruzeiro do Sul, insere-se na Linha de Pesquisa: Texto, Discurso e

Ensino: processos de leitura e produção do texto escrito e falado e no Projeto:

Gramática, Texto e Argumentação para a Prática de Leitura e Escrita. Tem por

objeto as análises de ethos em conjunto com enunciados aportados em elementos

de Linguística Textual, como as anáforas, as catáforas, as dêixis e os operadores

argumentativos, dos três primeiros capítulos do livro Um Estudo em Vermelho, de

Arthur Conan Doyle. Os objetivos visados com essas análises são a construção e a

comprovação do ethos superior de Holmes em comparação a todos seus colegas de

trabalho, durante sua atividade profissional no final do século dezenove. As análises

dos trechos serão feitas, portanto, sempre com os trechos dos textos, elementos de

Linguística Textual e com os conceitos de ethos em conjunto, para que os resultados

finais sejam atingidos sejam condizentes com os objetivos almejados. Várias obras

foram utilizadas e consultadas, porém as principais foram dos autores Doyle (2009),

Maingueneau (2008), Amossy (2011), Koch (2012) e Cavalcante (2011).

Palavras-chave: Ethos, Anáforas, Catáforas, Dêixis; Texto, Discurso, Operadores

argumentativos.

Page 8: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

HERMAN, Sergio Eduardo. Text, discourse and education: reading processes of production of written and spoken text. 2013. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

ABSTRACT

This dissertation has, as the object of study, the analysis of ethos in conjunction with

enunciates brought by certain elements of Textual Linguistics, just like anaphors,

cataphors, deixis, argumentative operators, from the three first chapters of the book

A Study in Scarlet, by Arthur Conan Doyle. The objectives to reach with this analysis

are the construction and verification of the superior Holmes’ ethos in comparison to

all of his workmates during his professional activity in the late years of the nineteenth

century. However, the analysis will always be based on patches from the texts, with

elements of Textual Linguistics and ethos altogether for the reached results might be

consistent with the objective pursued. Several books have been used and consulted,

although the main ones are by Doyle (2009), Maingueneau (2008), Amossy (2011),

Koch (2012) and Cavalcante (2011).

Keywords: Ethos, Anaphors, Cataphors, Deixis, Text, Discourse, Argumentative

operators.

Page 9: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – A morte de Sherlock Holmes . ............................................................. 23

Figura 2 – Ele ainda tinha o cachimbo entre os lábios ....................................... 26

Figura 3 – Examinou com sua lente a palavra escrita na parede, detendo-

se em cada letra com o mais minucioso rigor. ................................. 29

Figura 4 – Achei! Achei!, gritou! ........................................................................... 59

Figura 5 – Holmes fez-me um esboço dos fatos ................................................. 64

Figura 6 – Holmes tirou o relógio da Algibeira. ................................................... 71

Figura 7 – Ele segurava uma velha botina preta no ar ........................................ 82

Page 10: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 10

JUSTIFICATIVA ........................................................................................................ 13

1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA .......................................................... 14

1.1 A Personagem Holmes e sua Contextualização Histórica ........................ 14

1.2 Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes – Uma breve história ................. 19

1.3 A Personalidade e Formação de Holmes .................................................... 24

1.4 Dr. Watson – Personalidade, Formação e História. ................................... 26

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..................................................................... 30

2.1 O Que é Ethos? ............................................................................................. 30

2.2 O fiador .......................................................................................................... 37

2.3 O Ethos e as Cenas da Enunciação. ........................................................... 40

2.4 Anáforas e sua Tipologia ............................................................................. 43

2.5 Catáforas ....................................................................................................... 46

2.6 Dêixis ............................................................................................................. 47

2.7 Operadores Argumentativos ....................................................................... 48

3 ANÁLISES ...................................................................................................... 60

3.1 Capítulo 1 – Mr. Sherlock Holmes ............................................................... 60

3.2 Capítulo 2 - A Ciência da Dedução .............................................................. 67

3.3 Capítulo 3 - O Mistério de Lauriston Garden .............................................. 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 84

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 87

Page 11: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho abarca um conjunto teórico sobre a teoria do ethos iniciada há

muito tempo pelo filósofo grego Aristóteles e alguns conceitos da teoria da

Linguística Textual associada à da Análise do Discurso, disciplina que se dedica a

analisar e descrever os enunciados da conversação humana em seus mais variados

contextos e com os mais variados propósitos, sendo que ambas as teorias serão

aplicadas de forma complementar na análise da construção do ethos de Sherlock

Holmes, famoso detetive inglês do século XIX.

A teoria do ethos se destaca pela sua importância na formação da imagem de

uma pessoa real ou de um personagem trabalhado em um livro, e pode ser

construído por meio das falas da própria pessoa ou personagem, ou mesmo pelas

falas de terceiros que atribuem a este ser (real ou fictício) determinados valores

positivos ou negativos que conduzem os interlocutores a pensar sobre ele(a) de uma

certa maneira.

O ethos de um ser é tão relevante, uma vez que define quem ou o quê é o

ser, que este conceito existe e é estudado desde a antiguidade clássica, entretanto é

com o avanço e desenvolvimento das teorias linguísticas que se passou a focar a

atenção principalmente em meios de construí-lo utilizando exclusivamente recursos

textuais, sejam eles orais ou escritos; método que, embora já existente, é colocado

em relevância desde o passado recente até a atualidade.

A utilização da teoria da Linguística Textual de maneira conjugada à teoria do

ethos visa construí-lo de forma ordenada, não tomando do texto termos e

enunciados aleatoriamente, mas sim que pertençam a uma teoria já estudada e

comprovada por linguistas consagrados que tenham já tido a oportunidade de

classificar os termos em categorias específicas. A associação das duas teorias

trabalhadas por analistas do discurso de renome permite, então, que se proceda a

uma análise com maior rigor, com os operadores argumentativos, anáforas,

catáforas e dêixis englobando enunciados que embasem o ethos do detetive

Holmes.

Page 12: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

11

A formação do trabalho se empenha em recolher enunciados contidos em

trechos do livro inicial de Doyle, o pai de Holmes, e justificá-los, analisando-os sob

os conceitos do ethos e da Linguística Textual, como os citados anteriormente,

deixando as análises realizadas nesta dissertação com o maior grau de acurácia

possível, e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do

detetive e da forma como ele é recebido e assimilado por seus leitores tenha uma

avaliação e estudo mais empíricos e menos intuitivos.

O trabalho toma assim um rumo que afasta as ideias imprecisas que os

leitores possam fazer da imagem de Holmes e leva os leitores a compreender

melhor como Doyle consegue, utilizando-se de recursos da língua, apresentar um

personagem superior devido a sua inteligência associada a estudos diferenciados

que desenvolve na resolução de crimes de difícil solução.

Todo este aparato vem acompanhado também por uma explicitação do

contexto histórico de quando se dá a história analisada, na Inglaterra do século

dezenove, para que o leitor possa inclusive localizar-se mais apuradamente e tenha

condições de desenvolver um raciocínio abrangente e correto nas interpretações

realizadas.

Esta dissertação organiza-se, para esses objetivos, em alguns capítulos. O

capítulo um, organizado em quatro subitens, contextualiza historicamente a época

em que Holmes e seu criador Doyle viveram. Isso é importante, pois a análise do

ethos depende em larga escala dos valores vigentes no momento em que os

enunciados são produzidos, uma vez que são influenciados por esses valores, assim

como também os influenciam.

O subitem 1.3 trabalha com a formação de Holmes e sua complexa

personalidade, para que o leitor se familiarize com a personagem e os enunciados

por ela produzidos, e possa acompanhar toda a complexidade posterior, no que

concerne às análises e conceitos aplicados ao cotexto.

O subitem 1.4 contém informações sobre a formação e a história de Watson,

o médico, fiel companheiro de Holmes nas histórias e também o autor/fiador dos

textos sobre o detetive. Muito do que sabemos sobre Holmes vem por meio do que o

Dr. Watson relata e pensa sobre Holmes, de sua admiração aos modos de raciocínio

Page 13: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

12

característicos do detetive consultor. Na verdade, Doyle utiliza Watson como um

meio para interagir e explorar a inteligência de sua personagem, permitindo a

construção de um ethos forte e atraente de Holmes.

Concluídas as apresentações e as contextualizações, inicia-se o capítulo

seis, que, por sua vez, subdivide-se em sete subseções. As três primeiras

descrevem, nesta ordem, o ethos, o fiador e o ethos em conjunto com as cenas da

enunciação. Conforme afirmado, o ethos somente se constrói plenamente, podendo

ser compreendido integralmente, se envolto em uma conjuntura social e em

determinado momento histórico, entretanto, as cenas da enunciação, trabalho

desenvolvido por Maingueneau (2008), desempenham papel decisivo na sua

concepção e compreensão.

As quatro subseções subsequentes abrangem os conceitos de Linguística

Textual, tais como os elementos dêiticos, anafóricos, catafóricos e também os

operadores argumentativos, os quais se comportam como os veículos que aportam

os enunciados e as ideias analisados no presente trabalho.

O capítulo sete abarca as análises necessárias ao trabalho, subdividindo-se

em três partes, cada qual referente a um dos três primeiros capítulos do livro Um

Estudo em Vermelho, sendo esses capítulos a fonte de matéria-prima das análises

realizadas.

As considerações finais especificam os objetivos alcançados no decorrer da

dissertação, bem como as contribuições que o trabalho possa trazer em relação à

Linguística enquanto ciência e também novos interesses em pesquisas futuras que

esta dissertação possa haver suscitado.

Por fim, o capítulo nove descreve as referências bibliograficas, que podem

ser de alguma valia e interesse para os estudantes de Linguística e mesmo

estudantes de outras áreas relacionadas aos temas trabalhados.

Page 14: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

13

JUSTIFICATIVA

A elaboração desta dissertação justifica-se pelo interesse e pela necessidade

em se comprovar a forma pela qual o ethos de Sherlock Holmes pode ser

cientificamente construído e as técnicas linguísticas utilizadas pelo escritor da obra

de Holmes, o autor Arthur Conan Doyle, na construção do ethos dessa personagem.

O proceder desta pesquisa se mostra relevante dado que o corpus,

apresentando-se na forma de uma personagem bastante popular da literatura

policial, pode facilitar a compreensão, por parte de estudiosos, dos conceitos

abordados no curso de Mestrado em Linguística, como o ethos e os conceitos de

Linguística Textual, tais como os operadores argumentativos, anáforas, catáforas e

dêixis. Tem, portanto, como finalidade, contribuir para a ciência da Linguística e de

seus estudos em geral, visto que desenvolve seus conceitos na forma de análises

práticas de enunciados da obra abordada.

Sendo uma personagem de grande popularidade, Sherlock Holmes vem já

com uma bagagem de qualidades bem conhecidas pelo público em geral, e não

somente por seus leitores aficionados. Para quem se dedica ao estudo da

Linguística, a aplicação de conceitos tais como o ethos e de Linguística Textual à

obra inicial do autor Doyle (Um Estudo em Vermelho) coopera para que se aprenda

na prática como se podem unificar duas teorias na comprovação da imagem que

uma imensa quantidade de pessoas já tem sobre o detetive, visto que o objetivo do

mestrado é exatamente a análise discursiva aplicada a textos.

Page 15: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

14

1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA

1.1 A Personagem Holmes e sua Contextualização Histórica

A personagem Sherlock Holmes, doravante denominado Holmes, nasceu em

06 de janeiro de 1854, em plena era vitoriana, e teve, portanto, amplas

oportunidades de desenvolver seus estudos sobre criminologia, pois a Inglaterra da

época havia se tornado a principal potência mundial, inclusive com a possessão de

colônias por todo o globo. A compreensão do detetive Holmes e de seus métodos

necessita de pelo menos um pouco de esclarecimento sobre a época em que surgiu.

Pelo menos um conhecimento rudimentar da história vitoriana é necessário para se compreender o meio social de Sherlock Holmes. É importante saber que no início do reinado de Vitória, em 1837, a Grã-Bretanha havia não apenas ajudado a criar a Revolução Industrial, como se tornara a principal nação industrializada da Europa. Durante a era vitoriana, a aquisição de territórios ultramarinos e motivos que iam do comércio à caridade impulsionaram uma arrancada exponencial do crescimento industrial. Benjamin Disraeli, após tornar-se primeiro-ministro em 1868, defendeu enfática e frequentemente a expansão, que atingiu o zênite em 1876, quando, sob sua instigação, Vitória foi coroada imperatriz da Índia. (DOYLE, 2010b, p. 20)

Embora tenha perdido o controle das treze colônias americanas, quando da

guerra de independência de 1776, promovida pelas mesmas com o apoio da França

e Espanha que retaliavam seu inimigo inglês, a Inglaterra, fazendo valer seu pujante

poderio naval e o comando que tinha dos mares, passou a conquistar territórios em

outros continentes, forjando assim um cordão colonial que envolvia todo o globo

terrestre.

Em citação do aclamado best-seller de Geoffrey Blainey, Uma Breve História

do Mundo, o historiador deixa bem evidente este fato:

A Inglaterra passou a ser mais forte nos oceanos Índico e Pacífico do que jamais havia sido na América e governava agora uma população bem superior à que havia governado ali. Quase totalmente derrotada em outro continente, havia se voltado para novos oceanos e rapidamente erguido o maior império que o mundo havia visto (BLAINEY, 2008, p. 246)

Os fatos citados ocorreram em fins do século XVIII e início do século XIX, e

levaram, portanto, ao predomínio britânico durante este século, gerado por meio de

Page 16: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

15

um império que havia enriquecido com os lucros do comércio e exploração de suas

colônias.

A ascensão ao trono da rainha Vitória em 1837 e a continuidade ininterrupta

de seu reinado até o início do século XX, em 1901, garantiu também um período de

grande estabilidade política e econômica, prosperidade, aumento populacional e o

crescimento de uma classe média educada; e forneceu todas as condições

necessárias para que profissionais liberais aparecessem e prosperassem, como foi o

caso do detetive.

A ilha inglesa tinha também a vantagem de liderar o processo de Revolução

Industrial, processo este que se espalhou primeiramente pelo noroeste europeu e

posteriormente aos Estados Unidos, Japão e demais países do continente

americano, Ásia e África.

Como potência mundial majoritária em meio a outras potências europeias que

disputavam o primeiro posto, os ingleses tinham exércitos e marinhas alocados nos

três oceanos e em todos os continentes, suas ideias, invenções de seus cientistas e

seus produtos manufaturados como armas, máquinas, roupas e outros itens eram

exportados enquanto matérias-primas eram absorvidas na ilha pelos industriais

ansiosos por lucros.

... Os recursos naturais da Inglaterra, embora de modo algum pródigos, prestavam-se à produção de certos artigos muito comerciáveis. O clima de Lancashire era adequadamente úmido para a fiação de algodão com bom resultado; havia carvão disponível em grande quantidade, de fácil acesso; e havia algumas pequenas jazidas de minério de ferro. Uma vez bem colocada a produção fabril, podia a indústria inglesa retornar à importação das matérias primas essenciais e dos alimentos reclamados por uma população rapidamente crescente. (SAVELLE, 1968, p. 100)

Este ambiente também era propício para que Conan Doyle lograsse a

afirmação de Sherlock Holmes, pois a despeito de focos de resistência localizados, a

literatura e outros elementos culturais do país dominante em determinado período

costumam ter bom nível de inserção e aceitação nas sociedades dos países ainda

em desenvolvimento.

Obviamente, nem todas as invenções vieram da Inglaterra, vacinas francesas

e alemãs, equipamentos desenvolvidos nos Estados Unidos da América e outros

produtos também desembarcavam nos portos britânicos, entretanto os mesmos

Page 17: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

16

britânicos, devido às circunstâncias privilegiadas em que se encontravam, eram

capazes de se utilizar mais prontamente e de aplicar estes novos recursos e ideias.

No norte da Inglaterra, especialmente a partir da década de 1780, surgiram cidades industriais cheias de máquinas engenhosas que fiavam e teciam lã ou algodão. Os visitantes de outros países se maravilhavam com o vigor de Manchester, Leeds, Birmingham e das novas cidades industriais, (BLAINEY, 2008, p. 260)

Entretanto, sua posição hegemônica como potência mundial econômica e

industrial capaz de fornecer armamentos e produtos industrializados em larga

escala, seja inventando-os, seja reproduzindo-os rapidamente e com uma qualidade

no mínimo semelhante, fez com que a Inglaterra pudesse também exportar seus

pensadores e escritores, apoiados por uma economia possante cuja moeda, a libra

esterlina, executava o mesmo papel que o dólar americano veio a possuir no século

XX.

... o capital britânico construiu a indústria têxtil indiana. Isso foi só um exemplo de uma tendência crescente, nos países de maior progresso industrial, para exportarem capitais a áreas subdesenvolvidas. Os ingleses, naturalmente, tomaram a dianteira nesse processo; entre 1815 e 1914, os ingleses investiram o equivalente a 20 bilhões de dólares no ultramar, especialmente nos Estados Unidos, na América Latina e no Império. (SAVELLE, 1998, p. 107)

Todo este processo iniciado com os ganhos territoriais do século XVIII e com

o advento da revolução industrial, processo sócio-histórico liderado pelos ingleses,

estabeleceu um verdadeiro “modo de vida ocidental”, no qual o padrão de bem-estar

e o status de pessoa bem sucedida pertenciam aos donos de capital, maquinários,

banqueiros e suas transações comerciais e outros poderosos.

Dificilmente um personagem criado por uma pessoa que eventualmente

tivesse condições financeiras para dedicar-se ao ofício de escritor, porém que

vivesse em um país periférico ou colonizado faria sucesso ou poderia regozijar-se de

uma divulgação e de uma aceitação do público como ocorreu com Sherlock Holmes.

Não se deve desfazer, entretanto, do talento de Doyle e de sua dedicação às

histórias do detetive, pois, através dos escritos biográficos do autor, sabe-se que

teve que lutar muito para firmar o ethos de seu personagem e torná-lo o mito que

logrou realizar. Todavia, o modo de vida inglês se havia tornado bastante apreciado

pelas populações dos países periféricos, e mesmo pelos países europeus

Page 18: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

17

concorrentes; ser inglês no século XIX era como ser norte-americano no século XX,

após a segunda guerra mundial: status de cidadão do país mais rico e poderoso do

mundo.

E é fato curioso e significativo ter sido a Inglaterra, durante o século de 1750 a 1850, quase a única a beneficiar-se do ritmo acelerado da mudança industrial, atingindo os ingleses uma vanguarda que nenhuma outra nação pode ameaçar seriamente, até depois de 1900. (SAVELLE, 1998, p. 99)

Por exemplo, houve alguns detetives criados por autores franceses e norte-

americanos, como Monsieur Dupin, criado pelo americano Edgar Allan Poe ou o

detetive Lecoq, do francês Gaboriau, mas nenhum deles conseguiu consagrar-se no

mesmo nível de Sherlock Holmes; mesmo o francês, provindo do país que se

afigurava como a segunda potência mundial da época, não conseguiu fazer frente

aos apelos e atrativos de Holmes.

Estes aspectos mostrados referir-se-iam ao contexto macro do universo

sherlockiano, aspectos sociais, econômicos e históricos que embasavam e

perpassavam este universo, porém há outros aspectos igualmente importantes do

micro universo que cercava o detetive e suas aventuras os quais desempenhavam

também um papel de relevância na concepção do personagem por Doyle, e os dois

merecem atenção especial, sejam o desenvolvimento científico e o uso da

razão/raciocínio nos textos escritos.

Personagem fruto de um século no qual se presenciava um desenvolvimento

científico cada vez mais acelerado e sob a influência relativamente recente do

iluminismo e do racionalismo de René Descartes e outros filósofos, para Sherlock

Holmes o uso da razão e os expedientes derivados da ciência aos quais recorria,

como novas substâncias químicas aplicadas à Medicina Forense, a recém-inventada

extração de impressões digitais parar os ramos da polícia investigativa e outros se

mostraram ferramentas mais eficazes para seu trabalho investigativo.

Esses expedientes empregados por Holmes podiam levar a parecer que se

tratava de algum tipo de mágica, mas na verdade, nada mais eram do que os

métodos científicos aplicados aos problemas detetivescos, obviamente estes

métodos estavam sendo levados ao extremo de sua aplicabilidade pela grande

capacidade de Holmes.

Page 19: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

18

Desnecessário dizer que a Inglaterra liderava também no que toca às

descobertas e avanços científicos, e neste quesito Sherlock era um privilegiado, pois

além de contar com todas as facilidades materiais proporcionadas por seu país e

pelo império, contava ainda com a possibilidade de acesso a uma variedade muito

grande de substâncias derivadas de plantas que se encontravam dentro dos limites

dos territórios controlados pelos ingleses, como o ópio, que se origina da papoula,

plantada e cultivada em regiões chinesas de relativo fácil acesso aos ingleses.

Os alcaloides, que ocorrem naturalmente em plantas, são conhecidos por seus poderosos efeitos fisiológicos sobre seres humanos e animais. O primeiro alcaloide a ser isolado e cristalizado foi a morfina, extraída da papoula, em 1805-06. Em 1878, Holmes poderia ter feito experimentos com vários alcaloides isolados, que tendem a ser inodoros e de gosto amargo; ao mesmo tempo, porém, não se sabia muito em definitivo sobre suas propriedades. (KLINGER, 2009, p. 28)

Da Índia, submetida ao controle britânico desde o século XVIII, conseguia

também alguns venenos por vezes utilizados em crimes que Sherlock investigava,

tornando fácil então sua identificação pelo detetive, já que havia tido a oportunidade

de tomar contato e de estudar seus efeitos no organismo humano antes que outros

estudiosos de nações menos privilegiadas pudessem havê-lo feito.

“... Eu poderia imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, veja bem, mas simplesmente movido por espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos. Para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo o tomaria com igual prontidão. Parece ter paixão por conhecimento certo e exato”. (DOYLE, 2009, p. 15)

Todo o pensamento antropocentrista reinante naquele século que fazia do

homem o centro do universo, o centro das decisões e a razão o instrumento principal

que poderia levar a humanidade a superar todos os seus problemas exercia tal

fascínio nos escritores da época que as crenças e mitos caíam por terra com rapidez

cada vez maior.

Foi igualmente o caso de Doyle, na busca de um personagem que à primeira

vista podia parecer um ser-humano comum, mas que retirava seus superpoderes do

conhecimento e do raciocínio lógico, sem recorrer a entidades ou mesmo santos ou

mitos, que colocava em questão os atos das pessoas e dos possíveis suspeitos, e

que era capaz de fazer suposições baseadas em fatos e circunstâncias sem se

deixar influenciar de forma supersticiosa, por mais estranhos que os fatos se

mostrassem, era justamente o que o grande público da época desejava, pois viviam

Page 20: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

19

também a atmosfera do desenvolvimento e desejavam romper com os grilhões de

um universo incompreensível, que não pudesse ser explicado pela razão e pela

lógica.

Habitando este contexto altamente científico e racional, amparado por um

sistema político, econômico e cultural de primeira ordem proporcionado por uma

pátria que lhe permitia desenvolver todo seu potencial, Holmes pode ter

desenvolvidas e avalizadas através de seus métodos e do talento de Doyle todas

suas habilidades, tornar-se mundialmente conhecido e dar ao público aquilo que ele

realmente desejava, histórias de qualidade incomparável perfeitamente coadunadas

com a ideologia predominante em seu tempo.

1.2 Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes – Uma breve história

O personagem mostrado nos livros de Arthur Conan Doyle representado pelo

detetive Sherlock Holmes foi baseado, pelo autor, em seu professor de anatomia da

Universidade de Edimburgo.

Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, estudou nesta

universidade de 1876 a 1881, graduando-se em medicina nesta universidade, e teve

um professor chamado Dr. Joseph Bell cujos métodos didáticos se mostravam

extremamente originais.

Exemplificando: quando do momento da dissecação de um corpo para a

realização de um estudo anatômico ou mesmo para uma autópsia, Mr. Bell utilizava-

se de métodos observacionais muito pouco conhecidos, como a minúcia do formato

de uma perfuração fatal, ou não, mas cujo detalhismo na observação poderia ajudar

a identificar o tipo de arma utilizada, ou mesmo o cheiro dos lábios do morto que

poderia acusar a intoxicação por algum tipo de veneno.

Doyle impressionou-se com a capacidade de seu professor e com a eficácia

de seus métodos, o que o levou a refletir sobre a possível utilidade prática de tais

ações, até mesmo fora do campo da medicina, iniciando um processo de elaboração

que o levaria mais tarde a criar Sherlock Holmes e seus métodos mirabolantes,

porém altamente eficientes.

Page 21: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

20

Após formar-se na universidade Doyle veio a estabelecer-se em Plymouth,

sudoeste inglês, em 1882, numa tentativa de clinicar em parceria com um colega

seu de nome George Budd. Entretanto a parceria não foi bem sucedida devido a

problemas de relacionamento entre os dois. Decidido a romper a sociedade, Dr.

Doyle se muda para a cidade de Portsmouth, sul da Inglaterra, em julho do mesmo

ano, onde recomeça a clinicar na rua Elm Grove.

Entretanto, foi-lhe muito difícil este início, não conseguindo conquistar muitos

clientes que lhe compensassem todo o custo da instalação do consultório e todo o

investimento realizado em sua formação, o que, por consequência, tornou difícil até

mesmo sua sobrevivência na cidade inglesa.

Dr. Doyle passou então a despender seus momentos de ócio no consultório, à

espera de clientes que não apareciam, na escrita de alguns ensaios de literatura

ficcional. Foi quando lhe ocorreu escrever as histórias de um detetive que se

servisse de métodos não-ortodoxos na resolução dos casos de seus clientes,

métodos esses baseados em inferências e deduções utilizadas por seu ex-professor,

o Dr. Bell.

Assim nasceu a personagem Sherlock Holmes, descrito no primeiro livro

escrito pelo Dr. Doyle, “Um Estudo em Vermelho” (título em língua inglesa: A Study

in Scarlet), no qual ele relata a história do detetive Sherlock Holmes no momento em

que este trava conhecimento com um médico chamado Dr. Watson, o qual havia

servido no exército inglês em campanhas no Afeganistão, mas que, por ser ferido

seriamente em batalha e passar por diversos outros sofrimentos durante sua

convalescença, apresentava a saúde bastante combalida, encontrando-se em

período de licença e com direito a uma pequena pensão do governo britânico. Aqui,

Watson descreve um pouco de seus sofrimentos e privações durante a campanha

do Afeganistão:

A campanha rendeu honraria e promoção a muitos, mas para mim resultou apenas em infortúnio e desgraça. Fui removido de minha brigada e incorporado aos Berkshires, com os quais servi na batalha fatal de Maiwand, Ali fui atingido no ombro por uma bala de jezail, que estilhaçou o osso e roçou a artéria subclávia. Teria caído nas mãos dos ghazis assassinos, não tivessem sido a devoção e a coragem demonstradas por Murray, meu ordenança, que me jogou de través sobre um cavalo de carga e conseguiu me levar em segurança até as linhas britânicas... me reanimei, e já me restabelecera a ponto de ser capaz de caminhar pelas enfermarias,

Page 22: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

21

e até de tomar um pouco de sol na varanda, quando fui atingido pela febre entérica, aquela maldição de nossas possessões indianas. (DOYLE, 2009, p. 11-12)

Durante todas as aventuras de Holmes, seu fiel companheiro passa a ser

Watson. Aproveitando-se dos longos meses de licença do exército a que teve direito

para recuperar-se dos ferimentos passou a seguir o detetive, após um breve período

inicial de estranheza para com Holmes, em quase todas as suas aventuras,

narrando-as e também tomando parte ativa na maioria delas.

Na verdade, o Dr. Watson era como uma encarnação literária de Arthur

Conan Doyle, e isso pode ser percebido, inclusive, pelo fato de ambos serem

médicos de profissão e também pelo seu interesse mútuo na resolução de casos

criminais.

Nas aventuras de Holmes, o prisma do Dr. Watson é o principal ponto de vista

que nos apresenta o modo de ser do detetive, mesmo quando Holmes fala, é

através da voz de Watson que ele expressa suas ideias, seu raciocínio e mesmo

suas manias. Dr. Watson se preocupa mesmo com a saúde de seu amigo, serve-o

como assistente, complementa seus conhecimentos de biologia com sua formação

em medicina e ajuda a promover a autoimagem de Holmes como um dos

personagens mais influentes da literatura policial de todos os tempos.

O Dr. Doyle publica esta primeira história na revista inglesa Beeton’s

Christmas Annual de 1887, feito que se revelou um grande sucesso para as histórias

do detetive, tornando-o inicialmente muito conhecido, e que também o fez cair nas

graças dos leitores que logo formariam a base de fãs que proliferaria pela Inglaterra

e pelo mundo.

Arthur Conan Doyle chegou a escrever a seu ex-professor universitário, Dr.

Joseph Bell, para informar-lhe como havia engendrado o detetive Sherlock Holmes,

dizendo que tomara emprestado de seu mestre os métodos dedutivos e de

inferência por ele usados em suas aulas e pesquisas e os colocara no centro da

personalidade do novo detetive, construindo assim um homem de extraordinária

capacidade intelectual e que, a exemplo do trabalho do Dr. Joseph Bell em prol da

medicina, dedicava-se a combater inteligente e eficientemente o crime.

Page 23: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

22

Arthur Doyle continuou a escrever outros contos e histórias de Holmes nos

anos que se seguiram, enquanto tentava a sorte como médico. Estas outras

histórias foram publicadas em outra revista, a Strand Magazine.

Doyle passou então a viver mais por conta de suas histórias do que pela

medicina, uma vez que os pacientes eram raros em sua prática médica de

Portsmouth, não lhe proporcionando os meios financeiros necessários para subsistir

somente pela prática da medicina oftálmica.

Casou-se, finalmente, com Louise Hawkins em 1885, casamento do qual

resultaram dois filhos, Mary Louise e Arthur Alleyne Kingsley, e, na década de 90 do

século 19, estabeleceu-se em Londres com o intuito de trabalhar como

oftalmologista, já que no ano de 1890 havia passado uma estadia em Viena

estudando e especializando-se na área.

Continuou a escrever as histórias de Holmes enquanto, novamente como em

seu período em Portsmouth, aguardava novos pacientes que terminaram por repetir

a atitude dos da cidade anterior, o que caracterizou outro insucesso seu como

médico, desta vez na capital inglesa.

Doyle, neste ínterim, havia se tornado conhecido escritor devido a seu

personagem, porém desenvolvia também histórias de outros personagens que lhe

proporcionavam algum retorno financeiro, e por crer que o ego de Holmes havia se

tornado muito grande, decidiu assassiná-lo.

Na história “O Problema Final”, Holmes enfrenta seu pior inimigo, o professor

Moriarty, que era um professor universitário famoso no meio acadêmico, um fino

intelectual de variados talentos que possuía extraordinária inteligência e apurada

memória, mas que tinha uma tendência marcadamente má e grande vontade de

utilizar seus dotes extraordinários para o mal e também em benefício próprio.

Holmes, inclusive, acreditava que o homem estava envolvido em diversos crimes

aparentemente sem conexão. O professor Moriarty era também um excelente

pugilista.

O embate dos dois ocorre acima das cataratas Reichenbach, na Suíça, local

onde terminam por enfrentar-se mesmo fisicamente e, quando os dois caem nas

Page 24: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

23

cataratas, Arthur Doyle conclui, então, seu intento de eliminar o detetive mais

famoso da história por meio de uma cena de morte épica e digna de um detetive tão

grandioso como Sherlock Holmes.

Figura 1 – A morte de Sherlock Holmes (in: Doyle, 2010a, p. 366).

Ocorre, entretanto, que os ávidos leitores e adeptos de Sherlock não se

resignaram e não aceitaram o fim de seu ídolo tão facilmente; eles protestaram

então com veemência pelo seu retorno imediato, qualquer que fosse o subterfúgio

que Doyle tivesse que inculcar para ressuscitá-lo.

Arthur Conan Doyle foi forçado a forjar o reaparecimento do detetive em uma

nova série de histórias, o que reforçou a imagem do detetive como um ser superior,

que além de possuir as tão propaladas habilidades da dedução e uma inteligência

muito acima da média, passou agora a contar com uma aura de invencibilidade até

mesmo contra a morte.

Holmes volta então a atuar como detetive particular consultor nos contos e

romances posteriores de Doyle, reacendendo a chama que havia iluminado seu

glorioso passado até sua morte nas cataratas de Reichenbach.

Novamente, o narrador e grande responsável pelas histórias de Sherlock

Holmes volta a ser seu amigo e incansável companheiro de aventuras Dr. Watson,

que havia ficado muito deprimido com sua suposta morte e que, não obstante, o

recebe com grande surpresa e alegria quando de sua reaparição, visto que a queda

Page 25: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

24

nas cataratas facilmente deveria tê-lo trucidado, a ele e ao terrível professor

Moriarty.

1.3 A Personalidade e Formação de Holmes

A personalidade complexa de Sherlock Holmes, se bem analisada, pode levar

também a uma melhor compreensão do ethos do detetive, pois Holmes tem várias

características psicológicas que ajudam a defini-lo e caracterizá-lo dentro da imagem

amplamente divulgada perante o público.

É extremamente concentrado, costuma trancar-se em casa para estudar suas

fórmulas químicas com o único e exclusivo fito de aplicar estes estudos a seus

casos de investigação criminal. Às vezes fica por muitas horas, ou até mesmo dias

inteiros, sentado em sua poltrona, degustando seu cachimbo favorito enquanto

pensa em algum caso um pouco mais difícil que desafia sua inteligência e

conhecimentos, envolto em uma atmosfera de fumaça de tabaco que, segundo ele

próprio, o ajuda a resolver os casos.

O detetive nunca teve muitos amigos durante toda sua vida, mas os poucos

que teve, como o Dr. Watson, por exemplo, são bastante estimados e cuidados,

mesmo sendo Holmes de uma aparência exterior fria e calculista.

A formação de Sherlock Holmes é bastante eclética, já que obviamente não

existia uma universidade de formação de detetives particulares consultores, portanto

ele teve que estudar diferentes áreas, como química, biologia, história inglesa,

geologia e outras ciências que tivessem o dom de contribuir para a formação de uma

mente totalmente voltada para a resolução de crimes. Watson, em seu período

inicial de convivência com Holmes ainda tenta descobrir a profissão do novo amigo

atinando com o conjunto de conhecimentos que Holmes possui, mas termina por

desistir.

Enumerei em minha própria mente os pontos sobre os quais me mostrara ser excepcionalmente bem informado. Cheguei a pegar um lápis e anotá-los. Não pude deixar de sorrir quando conclui o documento. Ficou assim: 1- Conhecimento de literatura – Zero 2- “ “ de filosofia – Zero 3- “ “ de astronomia – Zero 4- “ “ política – Fraco

Page 26: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

25

5- “ “botânica – Variável. Versado em beladona, ópio, e venenos em geral. Não sabe nada de jardinagem prática.

6- “ “geologia – Prático, mas limitado. Distingue diferentes tipos de solo num relance. Após caminhadas, mostrou-me salpicos em suas calças e me disse, com base em sua cor e consistência, em que parte de Londres os recebera.

7- “ “Química – profundo. 8- “ “Anatomia – preciso, mas assistemático. 9- “ “Literatura sensacionalista – Imenso. Parece saber cada

detalhe de cada horror perpetrado no século. 10- ” “Toca violino bem. 11- ” “É perito em singlestick, boxeador e espadachim 12- “ “ Tem bom conhecimento prático do direito inglês

(DOYLE, 2009, p. 36)

Para Sherlock, todo o conhecimento que adquirimos necessariamente ocupa

um espaço na memória, logo, para ele, a aquisição de conhecimentos que não

tivessem nenhuma conexão com suas atividades profissionais somente poderiam

estorvar sua capacidade para solucionar os casos que se apresentassem durante

sua trajetória como detetive consultor, uma vez que esses conhecimentos gerais

poderiam fazer com que a bagagem necessária contida em sua memória

simplesmente a abandonasse. Holmes deixa esse ponto de vista bem claro quando

está em um debate com Watson sobre os conhecimentos necessários a um homem.

Um tolo recolhe todo tipo de trastes com que depara, de modo que o conhecimento que lhe poderia ser útil fica atravancado, ou na melhor das hipóteses misturado com muitas outras coisas, de modo que ele tem dificuldade em localizá-lo. O trabalhador competente, porém, é muito cuidadoso com relação ao que leva para seu cérebro-sótão. Não guardará nada lá a não ser as ferramentas que possam ajudá-lo em seu trabalho, mas dessas tem grande sortimento, e todas na mais perfeita ordem. È um erro pensar que o quartinho tem paredes elásticas e que pode se expandir até qualquer medida. Acredite que chega uma hora em que para cada novo conhecimento, você esquece um coisa que sabia antes. É da maior importância, portanto, não ter fatos inúteis expulsando os úteis.” (DOYLE, 2009, p. 35)

Page 27: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

26

Figura 2 – “Ele ainda tinha o cachimbo entre os lábios” (in:

Doyle, 2010, p. 258)

Outra característica de Holmes é o fato de ser um celibatário convicto. Para

ele, as mulheres nada mais são que uma fonte de distração que somente

constituiriam um obstáculo ao seu desempenho como profissional. Holmes crê até

mesmo que as mulheres não possuem o mesmo nível intelectual dos homens,

quando em um de seus casos se vê enganado pela astúcia de uma adversária, de

um cliente seu, Irene Adler, o que faz, a partir daí, seu respeito pelo sexo feminino

aumentar sensivelmente.

Holmes é caracterizado ao longo de todo o resto do Cânone como beirando a misoginia. “Nunca se pode confiar inteiramente nas mulheres – pelo menos nas melhores”, profere ele em O Signo dos Quatro. “Não sou um admirador entusiástico do sexo feminino, como você bem sabe Watson,” observa em O Vale do Medo. Os sentimentos que revela em relação a Irene, portanto, acabam por fazer marcado contraste com sua imagem usual, e talvez tenha sido sagaz da parte de Watson introduzi-lo aos leitores na Strand Magazine mostrando essa faceta mais amena. (DOYLE, 2010b, P. 96)

1.4 Dr. Watson – Personalidade, Formação e História.

Dr. Watson, a personificação literária de Arthur Conan Doyle, tem um bom

nível intelectual e é bastante esclarecido e, embora possua uma excelente formação

Page 28: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

27

como médico, frequentemente se vê em apuros para compreender o raciocínio

prodigioso de seu amigo. Temos um exemplo disso quando Watson, após casar-se

com Mary e ficar um bom tempo sem contato direto com Holmes, faz-lhe uma visita

inesperada ao voltar da casa de um paciente. Watson entra no apartamento que um

dia também fora seu e se encontra com Holmes, tomando assento na poltrona do

amigo; então Holmes lhe diz:

“A vida conjugal lhe faz bem”, observou. “Acredito, Watson, que você ganhou uns três quilos e meio desde que o vi pela última vez.”

“Três”, respondi.

“Realmente, eu devia ter pensado um pouco mais. Só um pouquinho mais, acho eu, Watson. E, pelo que observo, voltou a clinicar. Não me contou que pretendia voltar ao trabalho.”

Então, como sabe?”

“Vejo, deduzo isso. Como sei que você tem se molhado muito ultimamente e que tem uma criada das mais ineptas e desleixadas?”

“Meu caro Holmes”, exclamei, “isto é demais. Não tenho dúvida de que você teria ido parar na fogueira se tivesse vivido alguns séculos atrás.” (DOYLE, 2010b, p. 73)

Ele se formou na universidade de Edimburgo e engajou-se no exército, sendo

logo em seguida enviado para uma missão militar a serviço das forças coloniais

inglesas no Afeganistão. Lá chegando, em uma de suas primeiras missões como

médico sofre um disparo de um dos rebeldes afegãos que o atinge bem no ombro e

o deixa gravemente ferido.

Watson foi levado a um hospital de campanha e tratado para a cura de seu

ferimento, porém, logo em seguida, ele se contamina com a bactéria da febre

entérica (febre tifoide) e passa vários meses entre a vida e a morte.

Aos poucos vai se recuperando, mesmo desenganado pelos médicos, pois

que a febre entérica, naqueles tempos, era muito grave e sem nenhum tratamento

que não fosse a hidratação constante dos doentes para que não morressem por falta

de água nos processos bioquímicos do organismo.

Quando finalmente se recupera o suficiente para levantar-se do leito e

caminhar até a varanda, entretanto em um estado físico bastante debilitado, com

aparência emaciada e ainda muito fraco, os médicos decidem que Watson não tem

Page 29: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

28

condições de prosseguir em campanha junto ao exército britânico, sendo, portanto,

enviado de volta a Londres, capital do império, com uma pensão e nove meses

extras para sua total recuperação.

Watson hospedou-se no hotel no Strand – uma avenida em Londres – em um

hotel caro, mas que oferecia muito conforto e era bem o que Watson necessitava, já

que sua saúde estava bastante delicada. Esta situação, contudo não estava de

acordo com a disponibilidade financeira de Watson, pois a pensão que recebia era

modesta e não era suficiente para todos os gastos de se manter em um hotel todos

os dias.

Foi no momento em que decidiu que deveria mudar seus hábitos que

encontrou Stamford, um conhecido que o viu tomando um drinque no Criterion Bar e

foi ter com ele. Neste encontro, comenta com Stamford sobre sua situação e sua

necessidade de encontrar algum companheiro para dividir um aluguel em Londres,

sabendo então da existência de um sujeito chamado Sherlock Holmes que também

buscava alguém para compartir um aluguel.

O estado de minhas finanças tornou-se tão alarmante que logo compreendi que devia ou deixar a metrópole e ir morar em algum lugar na zona rural, ou fazer uma completa alteração em meu estilo de vida... No mesmo dia em que chegara a esta conclusão, encontrava-me no Criterion Bar quando alguém me deu um tapinha no ombro, e, virando-me, reconheci o jovem Stamford... (DOYLE, 2009, p. 12)

Partem, então, Watson e Stamford, no dia seguinte, ao meio-dia, em direção

da universidade onde Holmes se encontrava fazendo suas experiências, para que os

dois possam ser apresentados por Stamford e verificar se têm hábitos que não

estorvem a convivência a fim de, posteriormente, visitar os aposentos da Baker

Street.

O próximo capítulo discorrerá sobre as questões teóricas de cunho técnico da

presente dissertação, começando pela questão do ethos.

Page 30: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

29

Figura 3 – “Examinou com sua lente a palavra escrita na parede, detendo-se

em cada letra com o mais minucioso rigor.” (in: Doyle, 2009, p. 67)

Page 31: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

30

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 O Que é Ethos?

Aristóteles já trabalhava com a conceituação do ethos, preocupando-se com a

imagem que um enunciador deveria transmitir a seus interlocutores, a maneira como

deveria se comportar, as palavras utilizadas, o modo de se apresentar, de olhar e

outros atributos que deveria possuir ou fingir possuir se desejasse convencer seu

auditório.

O ethos é, portanto, um conceito que remonta à antiga Grécia, aos estudos do

filósofo Aristóteles, que já discutia sobre o ethos de um orador específico e cujo

plural será encontrado como ethé. Aristóteles se referia ao ethos retórico, àquele

que era mostrado aos interlocutores no decorrer de seu discurso com a função de

convencê-los de determinadas características que aquele enunciador tinha a

intenção de afirmar. Este tipo de ethos trabalhado por Aristóteles chama-se “ethos

retórico”.

Consiste em causar boa impressão mediante a forma com que se constrói o discurso, em dar uma boa imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades à instância que é posta como fonte do acontecimento enunciativo (MAINGUENEAU, 2008, p. 56)

A análise ética utilizada por Aristóteles compreendia, além do ethos retórico

derivado do discurso, todas as características que o enunciador poderia demonstrar

como pontos passíveis de serem analisados por seus interlocutores na construção

do ethos daquele enunciador, ou seja, sua imagem perante o auditório. Esses

pontos poderiam ser o tom de voz, a modulação da fala, a escolha de palavras e dos

tipos de argumentos, bem como os gestos utilizados, a maneira de olhar, postura

física, adornos corporais usados e outros elementos que, apesar de não serem

essencialmente discursivos, podem ser bastante eloquentes na apreciação e

construção de uma imagem perante o público.

A construção e interpretação do ethos pelos interlocutores ocorrem de forma

dinâmica, constantemente pondo em movimento as paixões, os sentimentos e a

Page 32: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

31

razão do interlocutor. Estas três características tomam parte do processo de

construção do ethos e foram nomeadas por Aristóteles. Maingueneau as cita em

seus trabalhos sobre o ethos. Segundo Maingueneau (2008), “os argumentos

correspondem ao logos; as paixões, ao pathos; os costumes ao ethos”.

Sendo assim, o logos faria referência à razão, ao raciocínio ao qual os

interlocutores procederiam na análise da imagem ética e também aos argumentos

utilizados pelo enunciador; na retórica de Aristóteles encontramos as referências que

o filósofo constrói acerca destes elementos. Segundo Aristóteles (2012, p. 14),

persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece

verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular.

Ainda conforme Aristóteles, temos:

Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio. (ARISTÓTELES, 2012, p. 13)

Este é o pathos, o qual faria referência às emoções despertadas pelo

enunciador em seus interlocutores, emoções às quais os interlocutores recorrem

durante a recepção e formulação ética e mesmo às emoções demonstradas pelo

enunciador. Já o ethos faria referência ao caráter do enunciador ou daquele sobre o

qual os interlocutores desejam formar uma imagem, ou construir o ethos, uma vez

que este caráter se reflete no comportamento daquele enunciador, sendo ainda que

o ethos daquele público ao qual o orador/enunciador se dirige deve ser considerado

se este quiser ser bem sucedido. Segundo Aristóteles (2012, p. 13), “persuade-se

pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de

o orador ser digno de fé”.

Se forem analisadas essas colocações relativas ao ethos retórico, perceber-

se-á que elas ainda fazem bastante sentido na atualidade, já que com os novos

meios midiáticos, temos acesso não somente ao discurso falado ou escrito de um

enunciador, mas também à sua imagem física e a todo o aparato visual que nos

influencia na construção de sua imagem. A análise ética de um indivíduo ou mesmo

de um grupo continua tão importante e recorrente quanto o era nos tempos de

aristotélicos, visto que os seres humanos continuam a se utilizar, e com cada vez

Page 33: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

32

mais meios para fazê-lo, destas mesmas características na tentativa de construir

imagens de indivíduos ou grupos de indivíduos os mais diversos.

Há ainda outros pontos relevantes no processo de formulação e construção

do ethos que se referem especificamente ao locutor/orador; e estes pontos vitais

podem ser amplamente manipulados pelos mesmos quando proferindo seus

discursos. O enunciador, ou segundo Aristóteles (2012), orador, baseia-se em três

qualidades fundamentais para mobilizar a afetividade dos interlocutores e

conquistar-lhes a confiança: a prudência, ou phronesis; a virtude, ou areté e a

benevolência, ou eunóia.

Em seu livro, Maingueneau (2008) cita este trecho da “Retórica” de

Aristóteles:

Quanto aos oradores, eles inspiram confiança por três razões; elas são as únicas que, postas de lado as demonstrações, determinam nossa crença: a prudência (phronesis), a virtude (areté) e a benevolência (eunóia). Se, com efeito, os oradores alteram a verdade do que dizem, quando falam ou aconselham, é por todas as razões ao mesmo tempo ou por uma dentre elas: ou, por imprudência, não pensam o justo; ou, pensando o justo, calam sua opinião por maldade; ou, embora prudentes e honestos, não são benevolentes... (ARISTÓTELES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 57-58)

Conforme explica Maingueneau (2008), o ethos retórico aristotélico expresso

por um orador deve buscar convencer, dentro deste tripé de qualidades mencionado,

seu auditório, ou seja, um grupo de indivíduos, de que é um ser digno de confiança e

credibilidade e cujo caráter está acima de qualquer suspeita, se quiser alcançar o

êxito do convencimento. Aristóteles trabalhava muito mais com a questão da

construção do ethos pelo grupo de indivíduos, e não com o indivíduo considerado

isoladamente, já que em sua Retórica ele se voltava mais para a política e o jurídico,

ou seja, o convencimento e negociação verbal entre muitos homens.

Mas a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários. De sorte que, se os juízos não se fizerem como convém, a verdade e a justiça serão necessariamente vencidas pelos seus contrários, e isso é digno de censura. Além disso, mesmo que tivéssemos a ciência mais exata não nos seria fácil persuadir com ela certos auditórios. Pois o discurso científico é próprio do ensino, e o ensino é aqui impossível, visto ser necessário que as provas por persuasão e os raciocínios se formem de argumentos comuns, a propósito da comunicação com as multidões. (ARISTÓTELES, 2012, p. 10)

O orador, para Aristóteles (2012), ou enunciador, para Maingueneau (2008),

necessita conhecer o ethos do grupo de indivíduos ao qual se dirige se quiser

Page 34: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

33

aumentar suas chances de convencê-los de sua sinceridade, mesmo que esta seja

uma sinceridade apenas aparente e não corresponda absolutamente às suas

intenções ocultas; o ethos mostrado não necessariamente corresponde ao

verdadeiro ethos, assim como o ethos formado na mente dos interlocutores pode

não corresponder ao ethos mostrado ou ao ethos real. Maingueneau (2008)

esclarece este ponto:

São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão (...) O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso, eu não sou aquilo. (BARTHES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 59)

Ter-lhes-á a confiança muito mais facilmente, de fato, se puder demonstrar e

fazê-los crer que o ethos deste auditório é parecido ou pelo menos muito

semelhante ao seu. Conforme Maingueneau (2008) explana:

Como a virtude não é considerada em todos os lugares nem por todas as pessoas da mesma maneira, é em função de seu auditório que o orador construirá uma imagem de si conforme o que é considerado como virtude. (BARTHES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 58)

Portanto, conforme explica Maingueneau (2008), o conhecimento do ethos do

grupo de indivíduos e o sucesso do enunciador em construir uma imagem o mais

condizente possível com este ethos, garantirá um maior ou menor grau de adesão

destes indivíduos ao discurso do enunciador. Entretanto, a persuasão completa do

auditório, pode-se dizer, somente pode ser conseguida se o enunciador (orador)

conseguir se tornar parte do grupo, mostrar-lhes que seu ethos é o mesmo que o

deles, desta forma sendo capaz de jogar com sua afetividade e emoções, pois será

também parte integrante do grupo. Este jogo discursivo por parte do

orador/enunciador trabalha especificamente no sentido de persuadir os

interlocutores; e as emoções (pathos) com as quais lida quando da tentativa de

persuasão do auditório são da maior importância no processo. Segundo

Maingueneau (2008):

A persuasão só é obtida se o auditório constatar no orador o mesmo ethos que vê em si mesmo: persuadir consistirá em fazer passar em seu discurso o ethos característico do auditório, para dar-lhe a impressão de que é um dos seus que se dirige a ele. (MAINGUENEAU, 2008, p.58)

Logicamente, o conhecimento extradiscursivo sobre a pessoa do enunciador

influencia bastante na concepção de seu ethos, porém quando se trabalha com o

Page 35: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

34

ethos discursivo deve-se tomar em consideração o fato de que ele se faz pela

enunciação, a construção do ethos discursivo ocorre no momento em que o

processo se desenvolve, e em que, ao mesmo tempo, os interlocutores interpretam

os enunciados.

Maingueneau (2008) cita Ducrot para deixar mais claro os processos

enunciativos de construção do ethos. Segundo Ducrot (apud Maingueneau, 2008, p.

59) o conceito de ethos envolve dois locutores, ou enunciadores, “o locutor-L (= o

enunciador) e o locutor-lambda (o locutor enquanto ser do mundo), que atravessa a

distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer: o ethos se mostra na

enunciação”.

O locutor lambda é o ser do mundo que se encontra efetivamente no espaço,

e cujo caráter, se já conhecido do público, dar-lhes-ia ideias prévias sobre sua

pessoa, seria uma das maneiras de pensar em ethos extradiscursivo, mais

especificamente neste caso, o ethos pré-discursivo, para Maingueneau (2008) ou

ethos prévio, para Amossy (2011). Amossy se utiliza desta definição e exemplifica

em seu livro “Imagens de Si no Discurso”:

Certamente há tipos de discurso e circunstâncias para as quais não se presume que o coenunciador disponha de representações prévias do ethos do enunciador: por exemplo, quando abre um romance. Mas as coisas são diferentes no domínio político, por exemplo, quando os enunciadores, que ocupam constantemente a cena midiática, são associados a um ethos que cada enunciado pode confirmar ou infirmar. (AMOSSY, 2011, p. 71)

Já o locutor L é aquele que constrói o ethos no momento em que o

enunciador constrói seus enunciados, ou seja, no momento da enunciação, sendo

este o próprio ethos discursivo.

Maingueneau (2008) faz uma citação conclusiva de Ducrot:

Não se trata de afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de chocar o auditório, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, dos argumentos... Em minha terminologia, direi que o ethos está associado a L, o locutor enquanto tal: é na medida em que é fonte de enunciação que ele se vê revestido de certos caracteres que, em consequência, tornam essa enunciação aceitável ou refutável (DUCROT apud MAINGUENEAU, 2008, p.59).

Page 36: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

35

Ainda Amossy, em seu livro “Imagens de Si no Discurso – a construção do

ethos”, também cita Ducrot e sua concepção:

Oswald Ducrot conceitua esse ethos por meio de uma distinção entre “locutor-L” e “locutor lambda”, que recobre a distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer: o ethos se mostra, ele não é dito. (AMOSSY, 2011, p. 71)

Em suma, embora a noção de ethos esteja ligada à construção da identidade,

o ethos discursivo (ethos retórico para Aristóteles), está intrinsecamente ligado à

construção da identidade por meio de elementos intradiscursivos, o que não exclui o

fato de que esta construção possa ser levada a efeito em conjunto com elementos

extradiscursivos, os quais incluem elementos visuais diversos, como mímicas,

vestimentas e outros já citados.

Voltando novamente ao aspecto intradiscursivo do ethos, pode-se afirmar que

o ethos apresentado no discurso também depende de ser percebido pelos

interlocutores através do “tom” do enunciador, dentro do movimento enunciação-

percepção, tom este que se pode aplicar tanto ao texto oral como ao escrito, o que

evidencia uma corporalidade enunciante, ou seja, um corpo que se move em um

espaço social e que produz enunciados, legitimando então as proposições feitas

nestes enunciados, ou seja, cada vez que o enunciador toma a palavra ele gera um

movimento discursivo que faz com que seu interlocutor atribua valores positivos ou

negativos a este discurso, e consequentemente a este enunciador.

A legitimação do enunciado não passa somente pela articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de uma corporalidade que se dá no próprio movimento de leitura. (MAINGUENEAU, 2008, p. 53)

Mesmo com a noção de ethos se mostrando um conceito relativamente

simples, existem algumas dificuldades em sua caracterização que concernem a

estas características visuais e também a outras características, e é aí que vamos

analisar um pouco o aspecto extradiscursivo já mencionado, como a ideia que os

interlocutores fazem previamente do locutor, ou mesmo ideias provindas do tipo de

gênero discursivo no qual o discurso lido ou ouvido se inscreve. Sim, movimentos

corporais, adereços utilizados, formas de falar acompanham o discurso e influem na

construção do ethos pelo interlocutor, o ato da apreciação audiovisual será peça-

chave deste processo. Outrossim, o posicionamento ideológico ou mesmo o gênero

Page 37: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

36

do discurso ao qual pertence o texto podem gerar uma expectativa que influirá na

concepção do ethos.

Segundo Maingueneau (2008):

O problema é mais delicado se considerarmos que o ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal, articula verbal e não-verbal para provocar no destinatário efeitos que não decorrem apenas das palavras. (MAINGUENEAU, 2008, p. 61)

Mesmo o interlocutor não conhecendo ou não tendo formado previamente

nenhuma ideia ou imagem, o fato de tomar ciência do tipo de gênero lhe fornecerá

subsídios para imaginar o que está por vir. Se o enunciatário abre um romance de

ficção científica, por exemplo, embora desconhecendo autor e obra, imaginará que

elementos próprios deste gênero serão apresentados na obra. Se for a uma palestra

política ou mesmo a uma peça teatral romântica, também se predispõe a ouvir um

discurso repleto de seus elementos peculiares. Conforme Maingueneau (2008):

De qualquer forma, mesmo que o destinatário não saiba nada antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 60)

Sem o objetivo de esgotar o assunto, embora com a intenção de concluir este

tópico, faz-se necessária ainda a colocação de alguns conceitos sobre o ethos

revelados por Auchlin na obra de Mainguenau (2008), pois como sabemos, o ethos

depende tanto do locutor quanto de sua percepção pelos interlocutores. No decorrer

deste processo, contanto se vise a uma transmissão de determinado ethos que se

queira afirmar, muitas coisas podem dar errado, devido a uma infinidade de fatores

que às vezes fogem ao controle do locutor, e o ethos incorporado pelos

interlocutores pode ser deformado ou até mesmo completamente o contrário do que

se objetivou inicialmente.

Maingueneau (2008, p. 61-62) cita Auchlin que desenvolve então argumentos

que podem explicar esta variação no processo de construção do ethos. Ele relata

que o ethos pode ser mais ou menos carnal, abstrato ou concreto e afirma que a

própria tradução do termo ethos pode ser posta em jogo. Discute também o caráter

moral da prova pelo ethos, em que questiona se a vida do locutor analisado é

virtuosa, se ele é um homem de bem, como se fazia na retórica latina (mas não na

aristotélica) e acrescenta ainda que o ethos pode ser concebido como mais ou

Page 38: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

37

menos fixo, convencional vs. emergente ou singular. Auchlin chama todas estas

variações possíveis na concepção do termo como zonas de variação.

Maingueneau (2008) complementa o raciocínio de Auchlin em seu trabalho,

confirmando a extrema variação à qual o termo ethos está sujeito:

De todo modo, desde a origem, a noção de ethos não tem um valor unívoco. O termo “ethos”, em grego, tem um sentido pouco específico e se presta a múltiplos investimentos: em retórica, em moral, em política, em música... Já em Aristóteles, o ethos é objeto de tratamentos diferentes na Política e na Retórica, e vimos que, nesse último livro, ele designa ora propriedades associadas ao orador enquanto ele enuncia, ora disposições estáveis atribuídas a indivíduos inseridos em comunidades. (MAINGUENEAU, 2008, p. 62)

Vale ainda salientar aqui, para efeito de complementar a compreensão sobre

o conceito de ethos, a colocação de Kerbrat-Orechionni, também apresentada no

livro de Maingueneau, em que ela faz referência ao ethos comunitário e a sua

caracterização por meio de hábitos locucionais compartilhados.

Pode-se, de fato, supor razoavelmente que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidade obedecem a alguma coerência profunda, e esperar que sua descrição sistemática permita extrair o “perfil comunicativo”, o ethos, dessa comunidade (isto é, sua maneira de se comportar e de apresentar na interação – mais ou menos calorosa ou fria, próxima ou distante, modesta ou imodesta, “inconveniente” ou respeitosa do território do outro, susceptível ou indiferente à ofensa etc.) (KERBRAT-

ORECCHIONI apud MAINGUENEAU, 2008, p. 62)

2.2 O fiador

A noção de fiador tem ampla aplicação ao conceito de ethos, visto que o

fiador fornece todas as informações, dentro do discurso, que possibilitam a

construção e o vislumbre da imagem do enunciador por parte de seus interlocutores.

O fiador se encontra plenamente imerso no processo, pois é ele quem da fé ao que

é dito no ato enunciativo.

Quando do processo de enunciação, o fiador tem este papel importante de

incorporar os enunciados, porém ele não pode ser confundido com o autor dos

enunciados, pois na verdade o fiador funcionará como um componente subjetivo que

incorpora um discurso cujas enunciações o constituem, ou seja, o fiador seria esta

tomada de forma das enunciações, por elas constituído e que a elas lhes dá acesso

e credibilidade. Maingueneau (2008) descreve o fiador e seu papel em seu livro:

Page 39: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

38

A instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como uma “voz”, associada a um “corpo enunciante” historicamente especificado. (MAINGUENEAU, 2008, p. 64)

Amossy (2011) também trabalha com esta noção de fiador em sua obra, pois

o fiador perpassa o discurso, ele faz parte da reflexividade enunciativa e contribui

integralmente ao processo.

O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos. (AMOSSY, 2011, p. 72)

É função do fiador também a constituição e manutenção do tom, tanto para

discursos orais e escritos, tom este que corrobora os enunciados e também auxilia

para que o ethos apreendido seja o mesmo que se almejou transmitir. Conforme

Maingueneau (2008, p. 64) afirma,“...a um fiador que, por meio de seu “tom”, atesta

o que é dito”.

O corpo enunciante ao qual Maingueneau (2008) se refere, o fiador em si,

será idealizado na mente dos interlocutores, no caso de textos escritos, e esta

idealização será construída por meio da atribuição de qualidades, feita pelos

interlocutores, que lhe proporcionem um caráter e uma corporalidade. O fiador

ganhará um certo número de características psicológicas que lhe moldem o caráter

e outras características físicas que lhe moldem corporalmente.

O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. (AMOSSY, 2011, p. 72)

Estes traços formadores da corporalidade e do caráter introjetados pelos

interlocutores serão comparados em suas memórias discursivas aos mais diversos

tipos de estereótipos sociais, que já tenham sido absorvidos por eles através de

leituras, vivências, cinemas e outros meios, viabilizando então a construção do ethos

que, correspondendo a estes estereótipos será valorizado ou desvalorizado,

apreciado ou detestado, visto que as representações sociais presentes na memória

discursiva dos enunciatários correspondentes a aqueles estereótipos já têm uma

carga de valores definida, seja ela positiva ou negativa.

Page 40: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

39

O processo de apropriação que os interlocutores efetuam em suas mentes

pode ser então chamado de “incorporação” (MAINGUENEAU, 2008), que é esta

introjeção das características físicas e psicológicas, e Maingueneau (2008, p. 65)

assim o descreve:

Construção da corporalidade do fiador por meio da enunciação da obra.

Conjunto de esquemas, que se relacionam com o mundo de maneira

específica, incorporados pelo enunciatário.

Viabilização da construção de um corpo, por intermédio das duas primeiras

incorporações, por aqueles que aderirem ao discurso determinado.

Retomando o termo “tom” utilizado por Maingueneau (2008, p. 64), Amossy

(2011, p. 73) desenvolve este tópico explicando que ele, o “tom”, torna possível a

vocalidade específica do texto que confirma ou infirma o ethos que é parte integrante

de um posicionamento discursivo e por que não, sócio-histórico-ideológico.

Amossy (2011) avança mais profundamente e afirma que o fiador, dando

acesso a este mundo ético que se forma na mente dos interlocutores, ou

coenunciadores, os fará aderir “fisicamente” a um universo de sentido, e tanto

melhor os persuadirá quanto melhor puder fazê-los identificar-se consigo, fiador ou

corpo enunciante imbuído de valores sócio-históricos especificados, movimentação

por um espaço social determinado e reconhecido pelos coenunciadores.

A qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse “fiador” que, mediante sua fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é por seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer. (AMOSSY, 2011, p. 73)

Esta contextualização do fiador em uma realidade sócio-histórica leva, por

conseguinte, a se pensar que deve haver um embasamento maior e mais

abrangente que perpasse todo o processo enunciativo, as incorporações e a

construção do ethos. Esses procedimentos devem estar alicerçados em algo que os

envolva e no qual se inscrevam, viabilizando suas constituições de maneira

fundamentada.

Page 41: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

40

Esse embasamento provém das cenas enunciativas, pois sem elas os

processos descritos não seriam possíveis. Amossy (2011) bem esclarece este ponto:

O discurso não resulta da associação contingente entre um “fundo” e uma “forma”; é um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e o modo de legitimação de sua cena discursiva. (AMOSSY, 2011, p. 74)

A próxima subseção discorrerá sobre o ethos e as cenas da enunciação

desenvolvidas em um mesmo momento e lugar.

2.3 O Ethos e as Cenas da Enunciação.

Tudo o que já foi falado e que já se sabe sobre ethos e o fiador não estaria

completo se não se levar em conta as cenas de enunciação. O ethos, considerado

como um conjunto de elementos de caráter psicológico e físico, não se encontra

isolado em relação ao tempo e espaço; está intrinsecamente conectado sócio-

historicamente a um momento específico e um espaço determinado.

A análise do ethos jamais se completaria se não fosse possível analisar de

igual maneira as características deste momento e espaço nos quais ele está imerso

e com os quais interage a todo momento, perpassando-os e sendo perpassado por

eles, ao mesmo tempo em que vai sendo mostrado e construído na mente e na

memória discursiva dos interlocutores.

Quando disserta sobre o ethos, Maingueneau (2008) trata também deste caso

espaço-temporal e os define mais especificamente como as referidas cenas de

enunciação, que são os elementos envolventes e interagentes que trabalham em

estreita cooperação com o fiador e com todos os elementos discursivos que

contribuem na construção ética.

As cenas de enunciação trabalhadas por Maingueneau (2008) são divididas

em três, cada qual com sua definição e função individuais. A primeira cena sobre a

qual Maingueneau discorre é a cena englobante. A cena englobante é a mais geral

das três, esta sim faz referência a campos bastante amplos nos quais os discursos

se inscrevem e aos quais lhes atribui um estatuto prático. Segundo Maingueneau

(2008, p. 70) assim se define: “A cena englobante atribui ao discurso um estatuto

pragmático, ela o integra em um tipo, publicitário, administrativo, filosófico.” Ou seja,

Page 42: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

41

a cena englobante se refere a grandes áreas do discurso humano as quais

“oficializam” o discurso que nela se inscrevem como sendo parte desta cena

englobante.

A cena genérica se refere ao contrato (MAINGUENEAU, 2008) que se

encontra associado a um gênero ou a um subgênero de discurso, está posicionada

dentro da cena englobante e o contrato citado por Maingueneau está ligado ao

gênero, por exemplo, dentro do discurso religioso englobante, temos o sermão, a

missa ou o culto, que são gêneros que viabilizam a construção coerente do discurso

dentro da cena englobante.

Já a cenografia, esta se encontra envolvida pelas cenas anteriores,

entretanto, embora se encontre conectada a um gênero ou subgênero discursivo,

não é por ele imposta nem condicionada, a cenografia é o modo pelo qual o discurso

se constrói, que dentro de um mesmo gênero discursivo e de uma cena englobante

pode ser realizada de diferentes maneiras. Por exemplo, em uma aula de filosofia

(cena englobante), dentro do gênero discursivo aula (cena genérica), o professor

pode escolher várias metodologias para encetar a conversação com seus alunos,

pode usar o discurso professoral tradicional, ou pode utilizar anedotas que

demonstrem os princípios filosóficos ou pode mesmo utilizar-se da comicidade,

citando vários ditados populares que esclareçam os princípios filosóficos.

A cenografia se mostra a mais importante no processo de construção do

ethos, pois como cena de fala direta (oral ou escrita) entre o locutor e os

interlocutores, propicia a exposição e a percepção do ethos. Maingueneau (2008)

explica bem sua importância no processo:

A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir uma situação de enunciação que o torna pertinente. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)

Percebe-se que a cenografia não é uma moldura que simplesmente envolve o

discurso, na verdade, na medida em que as enunciações constroem o discurso, vão

instaurando a cenografia adequada àquelas enunciações, sendo que a cenografia

também demanda um discurso adequado a ela, estabelecendo assim um caminho

de mão dupla.

Page 43: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

42

Maingueneau consegue expor com propriedade esta ideia ao demonstrar que

a cenografia não é um fim em si mesma, ela é origem e destino do discurso

concomitantemente, carregando em seu bojo o ethos que dela toma parte.

A cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento: desde sua emergência, a fala é carregada de certo ethos, que, de fato, se valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena da qual vem a palavra é precisamente a cena requerida para enunciar nessa circunstância. (MAINGUENEAU, 2008, p. 71)

Amossy (2011) complementa muito bem as ideias de Maingueneau (2008) ao

falar da questão do enunciador na cena de enunciação e diferencia-o do ethos

retórico de Aristóteles, apresentado como um elemento com a simples função de

persuadir seus interlocutores.

Para Amossy (2011), o ethos da retórica tradicional não corresponde ao da

Análise do Discurso, pois, para a estudiosa, o ethos discursivo é parte integrante das

cenas enunciativas instituídas pelo discurso ao mesmo tempo em que elas o tornam

pertinente, ou seja, o ethos, além de ser elemento que tem a função de convencer

os interlocutores da imagem desejada, também é parte essencial das cenas da

enunciação e ainda do gênero discursivo pelo qual estas cenas se desenrolam, os

quais estariam incompletos sem aquele elemento.

Na perspectiva da análise do discurso, não podemos, pois, contentar-nos, como na retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de persuasão: ele é parte constitutiva da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o vocabulário ou os modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de existência. (AMOSSY, 2011, p. 75)

Existem ainda mais dois conceitos interessantes citados por Amossy que

auxiliam na contextualização do discurso, suas cenas enunciativas e o gênero

utilizado, que são a topografia e a cronografia. Quando da realização de uma

interação discursiva, seja ela verbal ou escrita, a construção interativa

contextualizada do fio do discurso entre o enunciador e o interlocutor está

intimamente ligada a estes conceitos, seja a topografia, que se refere ao local onde

a interação se dá e a cronografia, que se refere ao tempo, ou momento histórico em

que esta interação ocorre. Esses dois elementos condicionam fortemente o discurso

Page 44: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

43

construído e o que será dito, dependendo das características do local e dos

costumes vigentes na época da interação discursiva.

Todas as interações de Holmes, no romance, ocorrem na Inglaterra, no

século XIX e, como já mencionado, o fato de o país ser a maior potência naquela

época influencia o comportamento até certo ponto arrogante de Holmes, que mostra

em seu discurso marcas da crença em sua própria superioridade.

2.4 Anáforas e sua Tipologia

As teorias aplicadas às análises fazem referência principalmente aos

elementos de coesão referencial e da referenciação da Linguística Textual. Para

obter uma análise fidedigna, faz-se necessário a explicitação da teoria sobre os

mecanismos de uma série de elementos coesivos que podem ser aplicados à

construção da tessitura textual.

Segundo Koch (2012a), é a “coesão referencial aquela em que um

componente da superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela

presentes ou inferíveis a partir do universo textual (KOCH, 2012a p. 31). Koch

explica ainda que o termo que faz esta remissão é o “termo referencial” ou

“remissiva”, já o termo referido é chamado de “elemento de referência”, ou referente

textual”.

Já a referenciação, conforme mencionado, é o processo que envolve a

coesão referencial, é o caminho que o leitor/interlocutor faz utilizando-se dos vários

elementos da coesão referencial, como anáforas nominais e pronominais, para a

construção da textualidade e compreensão do texto e de seus sentidos muitas vezes

implícitos, não expressos no cotexto (a superfície textual).

A referenciação e a referência textual trabalham em conjunto na construção

do tecido do texto e têm grande responsabilidade também na construção da

intencionalidade que o autor demonstra no texto, já que nenhum texto é neutro e

todos, por mais discretos e imparciais que pareçam, têm alguma intenção em seu

bojo.

Page 45: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

44

Ainda conforme Koch (2009), como explana em seu livro Introdução à

Linguística:

A intencionalidade refere-se aos diversos modos como os sujeitos usam textos para perseguir e realizar suas intenções comunicativas, mobilizando, para tanto, o recursos adequados à concretização dos objetivos visados. (KOCH, 2009, p. 42)

A professora Koch (2009) descreve, em seu livro A Coesão Textual, diversos

tipos de técnicas utilizadas na composição coesiva referencial dos textos, como

referência, substituição, elipse, conjunção e coesão lexical em suas duas

modalidades: anafórica e catafórica.

As anáforas são retomadas, referências a termos já expressos no cotexto,

segundo Cavalcante (2011, p. 54): “Se os referentes já foram de algum modo

evocados por pistas explícitas no cotexto, então estamos em presença de

continuidades referenciais, isto é, de anáforas.” Essas seriam as anáforas diretas

correferenciais.

As anáforas podem funcionar não somente com elementos citados no cotexto,

elementos extratextuais podem também servir como âncora para referências

anafóricas, enquanto aquelas são denominadas de endofóricas, estas se chamam

exofóricas. Segundo Koch (2012a):

A referência é exofórica quando a remissão é feita a algum elemento da situação comunicativa, isto é, quando o referente está fora do texto; e é endofórica, quando o referente se acha expresso no próprio texto. (KOCH, 2012a, p.19)

Koch se utiliza da teoria de Halliday e Hasan para descrever ainda os

mecanismos coesivos endofóricos ou exofóricos baseados em anáforas diretas ou

correferenciais, a saber:

As anáforas por referência, pessoal demonstrativa ou comparativa, que

retomam introdutores referenciais através de pronomes pessoais, possessivos ou

demonstrativos, ou mesmo de advérbios indicativos de lugar e comparações por vias

indiretas.

As anáforas por substituição nominal, verbal ou frasal, que seriam a

colocação de um termo no lugar de outros do texto.

Page 46: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

45

As anáforas por elipse, que nada mais são que uma substituição por

zero, ou seja, nada toma o lugar do introdutor referencial, sabe-se do

que se fala por meio de outras pistas no cotexto.

Anáforas por conjunção são aquelas que permitem “estabelecer

relações significativas específicas entre elementos ou orações do texto”

(HALLIDAY; HASAN, 1976 apud KOCH, 2012a, p. 21). São

evidentemente baseadas no uso das várias conjunções.

Por último, Koch (2012a) apresenta as anáforas diretas por coesão lexical,

que são construídas através de dois mecanismos; reiteração e colocação. “A

reiteração é feita repetindo-se o mesmo item lexical ou através de sinônimos,

hiperônimos ou nomes genéricos [...]” e a colocação pelo “[...] uso de termos

pertencentes a um mesmo campo significativo” (HALLIDAY; HASAN, 1976 apud

KOCH, 2012a, P.22).

Encontram-se também conceitos que aprofundam a questão anafórica no livro

sobre Referenciação: Sobre Coisas Ditas e Não-Ditas de Cavalcante (2011).

Recuperando conceitos de Kleiber (1984), Cavalcante (2011) apresenta, de forma

mais detalhada, outros tipos de anáforas, neste caso são as inferenciais ou indiretas,

que podem ser utilizadas na presente análise.

Segundo as teorias aí encontradas, Kleiber (1984) discorre sobre as anáforas

associativas e as inferenciais, sendo as primeiras conceitualmente baseadas e as

segundas inferencialmente baseadas; o que significa dizer que as associativas

retomam introdutores referenciais, ou referentes, presentes no texto e as inferenciais

abarcam casos diversos em que a recuperação do referente depende do

conhecimento culturalmente compartilhado, de situações enunciativas percebidas

pelos interlocutores e dadas pelo desenvolvimento textual. (CAVALCANTE, 2011, p.

63)

É bastante perceptível a analogia endofóricas-associativas e as exofóricas-

inferenciais.

Kleiber, segundo Cavalante (2011), divide teoricamente as anáforas indiretas

ou inferenciais em cinco tipos básicos: anáforas meronímicas “quando o nome

Page 47: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

46

nuclear do anafórico associativo é semanticamente marcado pelo traço “parte de”

(KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE, 2011, p. 64).

As anáforas associativas locativas caracterizam-se pela retomada do

introdutor referencial com “independência referencial, porque sua existência não se

prende à existência de outra entidade” (KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE, 2011,

p. 65).

Quanto às anáforas associativas funcionais, há algumas diferenças ou

restrições semânticas com relação às meronímicas, pois enquanto estas “podem

conservar uma noção de distributividade, as funcionais não podem” (KLEIBER, 1984

apud CAVALCANTE, 2011, p. 66). Outra restrição se mostra no fato de que estas

anáforas não se sujeitam a uma prova estrutural com o verbo ter, ou seja, a

retomada não é parte necessariamente integrante do referente.

As anáforas associativas actanciais (argumentativas) caracterizam-se pela

retomada que o referente anafórico faz a “um dos argumentos (actantes) de um

predicado introduzido no cotexto precedente” (KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE,

2011, p. 67).

Por último há as anáforas encapsuladoras que também se encaixam nas

anáforas indiretas ou inferenciais, e que são um tipo de anáfora que “não retoma

nenhum objeto de discurso pontualmente, mas se prende a conteúdos espalhados

pelo contexto.” (CAVALCANTE, 2011, p. 71)

2.5 Catáforas

Numa cadeia de referência, a expressão que estabelece o referente pode

ocorrer no discurso subsequente àquele em que surgem as expressões

referencialmente dependentes, habitualmente designadas por termos

anafóricos (anáfora). Quando a cadeia de referência exibe esta ordenação linear, o

termo catáfora substitui o termo anáfora. No fragmento textual "A irmã olhou-o e

disse: - João, estás com um ar cansado", o pronome pessoal o é uma expressão

referencialmente não autônoma, cujo valor depende da interpretação de uma

expressão presente no contexto discursivo subsequente, o nome próprio João.

Page 48: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

47

Catáfora designa este tipo particular de anáfora, em que o termo anafórico precede

o antecedente. (FÁVERO; KOCH, 2012; KOCH, 2012; CAVALCANTE, 2011).

2.6 Dêixis

A dêixis é um processo que pode ocorrer no cotexto independentemente dos

processos anafóricos ou catafóricos, ou mesmo sobrepondo-se a eles. Este

processo de construção referencial muitas vezes confunde-se com os dois

anteriores, entretanto ele necessita de informações mais precisas para atingir um

nível de completude que permita ao interlocutor compreender a semântica geral dos

enunciados.

Segundo Cavalcante:

Desde Buhler ([1934] 1982), tem-se chamado atenção para certas expressões referenciais cujo significado completo depende de certos aspectos da situação enunciativa. Para construir o referente dessas expressões, seria preciso analisá-las dentro de um outro campo, um campo dêitico, pois elas exigiriam o conhecimento do lugar ou do tempo em que se encontra o enunciador. (CAVALCANTE, 2011, p. 92)

As dêixis podem ocorrer na forma de pronomes pessoais (eu, você, ele, ela),

demonstrativos (aqui, ali, lá) ou até mesmo advérbios de tempo (ontem, hoje,

amanhã), porém somente ganham significado completo quando a perspectiva na

qual esses termos estão incluídos nos enunciados é especificada e esclarecida.

A dêixis, formada e estabelecida por esses elementos, chamados elementos

dêiticos, carece, portanto, de especificações de tempo e espaço que caracterizem o

momento da enunciação, demonstrando as circunstâncias e suas mudanças no

decorrer do diálogo.

As circunstâncias discursivas tornam-se uma parte da expressão do sentido completo [...] O conhecimento das circunstâncias que acompanham as palavras torna-se, então, uma condição necessária para a “exata compreensão” do pensamento expresso por um enunciado contendo dêiticos. (LAHUD, 1984, p. 67-68 apud CAVALCANTE, 2011, p. 93)

Os dêiticos se subdividem em quatro grupos que seguem:

A) Dêiticos pessoais – Estes dêiticos são utilizados para identificar os

interlocutores na comunicação. São principalmente os pronomes pessoais

e os possessivos.

Page 49: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

48

B) Dêiticos sociais – São dêiticos que se expressam na forma de títulos

reconhecidos socialmente que representam os atores de uma situação

comunicativa, como doutor, senhor e professor, por exemplo.

C) Dêiticos temporais – Os dêiticos temporais somente podem assim ser

definidos se dentro do texto têm a propriedade de identificar o tempo de

origem do falante ou de seu interlocutor; caso contrário não podem ser

chamados de dêiticos temporais, são apenas indicadores de

circunstâncias temporais no texto.

D) Dêiticos espaciais – Seguem uma regra similar à dos dêiticos temporais,

uma vez que somente podem ser assim identificados se tiverem inerentes

a si a propriedade de identificar a localização do enunciador ou de seu

interlocutor no momento do ato enunciativo, caso contrário serão simples

advérbios de lugar com a característica anafórica ou catafórica.

2.7 Operadores Argumentativos

Outro ponto importante a ser utilizado neste trabalho com o fito de construir o

ethos sherlockiano serão os operadores argumentativos, elementos significativos

que acrescentam, subentendem, valorizam os significados ou têm mesmo o

potencial de reverter essas ações no fio do discurso. Os operadores argumentativos,

que se apresentam em grande parte na forma de conjunções, proporcionam a força

argumentativa de um texto, agregando, inclusive, circunstâncias polifônicas ao

discurso.

É interessante notar que, além do uso de elementos anafóricos e catafóricos

na construção ética de Holmes, os operadores argumentativos, por sua força dentro

do cotexto, têm um papel relevante na construção deste ethos, pois conseguem

demonstrar e convencer o leitor, no discurso escrito, das qualidades e ideias visadas

pelo autor ou por Watson.

Isso ocorre porque os operadores argumentativos em qualquer idioma

existem justamente para este tipo de finalidade, que é a de gerar reações nos

Page 50: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

49

interlocutores, fazê-los convencer-se e responder ou ainda de provocar ações e

atitudes com objetivos específicos. Segundo Koch (2012):

Quando interagimos através da linguagem (quando nos propomos a jogar o “jogo”), temos sempre objetivos, fins a serem atingidos; há relações que desejamos estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos ver desencadeados, isto é, pretendemos atuar sobre o(s) outros(s) de determinada maneira, obter dele(s) determinadas reações (verbais ou não verbais). (KOCH, 2012b, p. 29).

Esses elementos ou mecanismos utilizados no discurso levam a denominação

de “marcas linguísticas da enunciação ou da argumentação. Outras vezes tais

elementos são denominados modalizadores – em sentido amplo – já que têm a

função de determinar o modo como aquilo que se diz é dito” (KOCH, 2012b, p. 29).

Como resultado da soma desses mecanismos nós temos a argumentatividade,

conceito que se define pela indicação da direção ou orientação dos argumentos

utilizados.

Seguindo ao raciocínio desenvolvido, Koch (2012b) cita Ducrot com seus dois

conceitos básicos: escalas argumentativas e classe argumentativa. Segundo a

citação de Koch: “Uma classe argumentativa é constituída de um conjunto de

enunciados que podem igualmente servir de argumento para uma mesma conclusão

(a que, por convenção, se denomina R)”. (DUCROT apud KOCH, 2012b, p. 30).

Baseada em estudos sobre a teoria de Ducrot, Koch (2012b) demonstra que

um conjunto de argumentos podem somar-se no sentido de apontar para uma

determinada direção, o que leva igualmente a uma determinada conclusão,

complementando ainda que dependendo da forma como estes argumentados são

dispostos no texto, podem ou não criar uma gradação na força da argumentação, o

que é chamado de “escala argumentativa” (KOCH, 2012b, p. 30). Esta escala

argumentativa tem também a particularidade de apresentar-se nas formas crescente

ou decrescente.

Esta teoria comporta em seu cerne uma série de operadores argumentativos

que constroem os argumentos, suas escalas, as pressuposições e as

concordâncias, bem como contradições. Koch (2012b) apresenta então todos os

principais tipos de operadores argumentativos utilizados em língua portuguesa,

dissertando, portanto, sobre seus mais variados papéis na construção do discurso e

Page 51: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

50

das ideias em nosso idioma que permitem a comunicação e o convencimento dos

interlocutores, convencimento esse baseado na intencionalidade de quem fala ou

escreve.

São basicamente nove classes de argumentadores, que, na verdade,

representam classes gramaticais de nossa língua, e, no entanto, consentem na

confecção de verdadeiras “manobras argumentativas” construtoras do discurso do

“convencimento”, o que se presta diretamente à construção do ethos de Sherlock

Holmes e sua apresentação como um detetive excepcionalmente capaz e acima da

média de investigadores seus contemporâneos.

O primeiro grupo de operadores argumentativos sobre o qual Koch trabalha é

justamente aquele que trabalha na questão das escalas argumentativas, pois são

operadores que transparecem a força empregada nos argumentos discursivos em

um ou outro sentido. Segundo Koch, 2012b, p. 31: “São operadores que assinalam o

argumento mais forte de uma escala orientada no sentido de determinada

conclusão: até, mesmo, até mesmo, inclusive”.

Retomando a escala argumentativa, pode-se exemplificar o uso desses

operadores com os seguintes argumentos:

Conclusão R: O evento escolar foi muito bem sucedido.

A” – esteve presente o secretário de educação

A’ – esteve presente o diretor da escola

A – estiveram presentes professores e funcionários

(Gráfico meu)

Ou seja, o argumento mais forte, numa escala que se expressa

positivamente, está no topo da escala, já que A “mostra que o evento foi tão bem

sucedido que ‘até mesmo’ o secretário de educação compareceu. Em caso de uma

Page 52: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

51

argumentação negativa, os elementos inverter-se-iam, com o argumento A tornando-

se o argumento A”.

No primeiro caso, o da argumentação positiva, poder-se-ia construir uma

frase com sentido completo como o que segue:

“O evento foi tão bem sucedido que até mesmo o secretário de educação

compareceu.”

Daí a força da argumentação demonstrada pelos operadores “até” e “mesmo”

agindo conjuntamente neste momento.

O segundo grupo de argumentadores trabalhado por Koch é aquele que

funciona no sentido de acumular argumentos que conduzem a uma conclusão de

igual teor. Conforme Koch:

Operadores que somam argumentos a favor de uma mesma conclusão (isto é, argumentos que fazem parte de uma mesma classe argumentativa): e, também, ainda, nem, (= e não), não só..., mas também, tanto... como, além de..., além disso..., a par de..., etc. (KOCH, 2012b, p. 33)

Um exemplo interessante para este grupo seria o seguinte para a

corroboração de uma conclusão R:

Conclusão R: O carro vermelho é o melhor para nossas necessidades.

Conclusão R

Tem boa potência É econômico É barato

(KOCH, 2012b, p. 33)

Page 53: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

52

Aqui não existe um argumento mais forte que favoreça a compra do

automóvel, todos os argumentos tem a mesma força e se somam para que a

conclusão favorável à aquisição do veículo seja atingida e seguida. Pode-se, por

exemplo, dispor os argumentos linearmente com o auxílio dos operadores: “O carro

tem boa potência, também é econômico e, além disso, é barato”.

Além desses operadores, Koch (2012b) adiciona ao grupo um extra, que,

segundo suas palavras, adiciona ao grupo de argumentos um argumento adicional.

Segundo Koch:

Existe mais um operador, que também introduz um argumento adicional a um conjunto de argumentos já enunciado, mas o faz de maneira “sub-reptícia”: ele é apresentado como se fosse desnecessário, como se se tratasse de simples “lambuja”, quando, na verdade, é por meio dele que se introduz um argumento decisivo, com o qual se dá o “golpe final”, resumindo ou coroando todos os demais argumentos. Trata-se do operador “aliás”. (KOCH, 2012b, p. 34)

O terceiro grupo de operadores argumentativos estudados por Koch (2012)

são os introdutores de conclusões que se referem a argumentos ou sequência de

argumentos elaborados em enunciados anteriormente expressos.

Este grupo de operadores é intrínseco às conjunções conclusivas, como logo,

por conseguinte, portanto, pois, em decorrência, consequentemente, etc, uma vez

que essas conjunções levarão a resultados, geralmente lógicos, dos enunciados ou

atos expressos anteriormente. Koch (2012b) exemplifica da seguinte forma:

O custo de vida continua subindo vertiginosamente; as condições de saúde do povo brasileiro são péssimas e a educação vai de mal a pior. Portanto (logo, por conseguinte...) não se pode dizer que o Brasil esteja prestes a se integrar no primeiro mundo. (KOCH, 2012b, p. 34)

No exemplo da autora a conjunção “portanto” e/ou suas assemelhadas, “logo”

e “por conseguinte”, levam o interlocutor ou leitor a concluir que devido às

dificuldades que o país apresenta não se pode pensar o Brasil como um país que

possa integrar o bloco dos países desenvolvidos.

Esses tipos de operadores envolvem um movimento essencialmente frontal,

que avança em direção a um resultado ou conclusão:

Page 54: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

53

Enunciados conclusões ou resultados

(Gráfico meu)

A partir da obra de Kock, propomos o gráfico acima.

O quarto grupo de operadores argumentativos descritos por Koch (2012b)

também trabalha com a possibilidade de atingir conclusões, mas de maneira

diferente, são conclusões às quais os interlocutores podem chegar e que levam a

caminhos distintos, às vezes até mesmo opostos, mas que geralmente conduzem a

um afastamento entre os dois caminhos.

Este grupo de argumentadores se identifica com as conjunções alternativas

“ou, ou então, quer... quer, seja... seja”, e o exemplo segundo Koch (2012b, p. 35):

“Vamos juntos à passeata. Ou você prefere se omitir e ficar aguardando os

acontecimentos?”

Esses operadores criam, então, um movimento também frontal, porém

divergente, como segue:

A

Enunciado conclusões divergentes

B

(Gráfico meu)

A partir da obra de Koch propomos o gráfico acima.

Page 55: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

54

O quinto grupo de operadores que Koch (2012b) estuda são específicos para

estabelecer as mais diversas relações de comparação entre elementos humanos,

materiais ou imateriais e que também levam a conclusões. Eles se identificam com

as conjunções comparativas “mais que, menos que, tão... como”.

Como se percebe nos dois primeiros operadores, a comparação de valores é

bastante apropriada para a análise de ethos, já que se pode reforçar positiva ou

negativamente a imagem de um ser, entretanto esses elementos comparativos

podem sugerir conotações um pouco diferentes do que se espera ao primeiramente

visualizá-los, especialmente os de igualdade, e Koch (2012b, p. 35), exemplifica

muito bem com este simples conceito: “A: Vamos convocar a Lúcia para redigir o

contrato”. “B: A Márcia é tão competente quanto a Lúcia”.

Embora a autora trabalhe com a dupla comparativa “tão... quanto”, existe uma

conotação implícita de que Márcia é mais competente do que Lúcia, pelo fato da

colocação desta em segundo lugar na comparação. O funcionamento dar-se-ia

como segue:

Comparação de superioridade:

Elemento A Elemento B

(Gráfico meu)

A partir da obra de Koch propomos o gráfico acima.

Comparação de inferioridade:

Elemento A Elemento B

(Gráfico meu)

Page 56: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

55

Comparação de igualdade:

Elemento A Elemento B

(Gráfico meu)

Ou pode ocorrer como na comparação de inferioridade acima, que, conforme

o exemplo da autora, o segundo elemento adquira primazia sobre o primeiro.

O sexto grupo de operadores argumentativos estudados por Koch (2012b)

tem suas bases assentadas na justificação ou explicação que pode ser dada relativa

ao enunciado anterior. Esse grupo envolve um movimento de retomada do

enunciado na tentativa de ratificar a sua existência.

Esse grupo faz referência às conjunções explicativas, visando justificar uma

sentença ou enunciado anterior. Os principais operadores representantes deste

grupo são porque, que, já que e pois. O exemplo utilizado por Koch, 2012b, p. 35, é

o seguinte: “Não fiques triste que este mundo é todo teu”. Tu és muito mais bonita

que a Camélia que já morreu”. Neste exemplo a conjunção que justifica o enunciado

anterior, explicando que já que o mundo pertence à pessoa citada, ela não deve ficar

triste.

Movimento retrógrado explicativo:

Enunciado A

enunciado B (explicativo)

(Gráfico Meu)

Page 57: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

56

O sétimo grupo trabalhado pela autora faz referência a ideias contrárias,

argumentos que se opõem dentro do fio do discurso levando a conclusões que

tomam direções diferentes. As conjunções que representam este grupo são as

adversativas ou concessivas, inerentes a este movimento discursivo: mas, porém,

contudo, todavia, no entanto, embora, ainda que, posto que, apesar de.

Este grupo é bastante interessante, pois o autor do enunciado pode introduzi-

lo ou a um grupo de enunciados dando a impressão de até mesmo concordar com

eles, quando na verdade é na sequência enunciativa que se encontra sua verdadeira

opinião. Koch (2012b) coloca um exemplo de Ducrot baseado no conceito de pratos

da balança:

O esquema de funcionamento do MAS (o “operador argumentativo por excelência”, segundo Ducrot) e de seus similares é o seguinte: introduz em seu discurso um argumento possível para uma conclusão R; logo em seguida, opõe-lhe um argumento decisivo para a conclusão contrária não R (~R). Ducrot ilustra esse esquema argumentativo recorrendo à metáfora da balança: o locutor coloca no prato A um argumento (ou conjunto de argumentos) com o qual não se engaja, isto é, que pode ser atribuído ao interlocutor, a terceiros, a um determinado grupo social ou ao saber comum de determinada cultura; a seguir coloca no prato B um argumento (ou conjunto de argumentos) contrário, ao qual adere, fazendo a balança inclinar-se nessa direção (ou seja, entrechocam-se no discurso “vozes” que falam de perspectivas, de pontos de vista diferentes – é o fenômeno da polifonia...) (KOCH, 2012b, p. 36)

O gráfico para ilustrar o movimento deste grupo seria aproximadamente este

do movimento contrário:

Enunciado A Enunciado B (choque polifônico)

(Gráfico nosso)

O oitavo grupo de operadores têm a função de introduzir conteúdos

pressupostos no enunciado, de forma que o interlocutor possa tirar conclusões

inferindo-as através das conjunções presentes no enunciado. Os operadores que

formam este grupo são: já, ainda, agora, etc.

Exemplo: Paulo agora mora no Rio.

Page 58: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

57

Daí se infere que Paulo não morava no Rio anteriormente, já que o advérbio

agora mira e restringe o enunciado ao tempo presente ao mesmo tempo em que

descarta a ação de morar no Rio no passado.

Enunciado [ pressuposto]

(Gráfico nosso)

O nono e último grupo de operadores argumentativos estudados e descritos por

Koch (2012b) é o das escalas opostas. Este grupo trabalha também com advérbios

como quase, apenas, às vezes, bastante, pouco, completamente, só, somente, etc.

O uso de superlativos analíticos ou sintéticos também se apresenta útil nesse

tipo de operadores, pois conseguem construir uma espécie de medição em forma de

escalas que opõem e denotam a importância de uma ideia em relação à outra. Koch

(2012b) demonstra em um gráfico o uso desses operadores de maneira bastante

didática:

ESTUDOU NÃO ESTUDOU

estudou muitíssimo estudou pouquíssimo

estudou bastante estudou muito pouco

estudou um pouco estudou pouco

(KOCH, 2012b)

As setas, conjuntamente com os enunciados expressos, demonstram uma

gradação na quantidade de estudo que determinada pessoa perpetrou, entretanto

elas mostram caminhos opostos, sendo que na primeira circunstância a pessoa

Page 59: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

58

estuda somente um pouco, depois aumenta a intensidade e por fim atinge o auge,

demonstrando que suas chances de ser bem sucedida no exame aumentam, já na

segunda circunstância a pessoa inicia por estudar pouco, depois reduz a intensidade

e termina por estudar praticamente nada, e como consequência suas chances de

sucesso no exame ficam bastante reduzidas.

Outros operadores que trabalham no mesmo grupo, como o quase ou o

apenas também trabalham de forma similar. Expõem uma situação que pode se

aproximar da totalidade de algo ou de uma situação ou até mesmo negá-la, beirando

o nada ou a inação completa.

Esses elementos serão utilizados nas análises a seguir, uma vez que, sendo

este o capítulo inicial da obra, preferiu-se utilizar os operadores argumentativos no

intento de se verificar a lógica contida nos enunciados sobre e do próprio Holmes.

Page 60: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

59

Figura 4 – “Achei! Achei!, gritou! (in: Doyle, 2009, p. 16)

Page 61: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

60

3 ANÁLISES

3.1 Capítulo 1 – Mr. Sherlock Holmes

As análises dos operadores argumentativos, assim como as análises dos

componentes anafóricos, catafóricos e dêiticos, também serão realizadas sobre

trechos de capítulos correspondentes ao corpus, tomando por base os operadores

descritos e explicados na base teórica do trabalho, os quais terão o objetivo final de

contribuir para a construção do ethos de Sherlock Holmes de forma positiva e que

possam demonstrar como este detetive detinha qualidades superiores a outros seus

contemporâneos.

A primeira amostra do corpus trazida à baila faz referência ao momento em

que Watson está conversando com um conhecido comum aos dois, o senhor

Stamford, sobre Holmes, que naquela ocasião trabalhava no laboratório da

universidade, mas que era ainda um ilustre desconhecido para o doutor Watson.

Esta análise faz referência ao primeiro capítulo do livro Um Estudo em Vermelho

devido à necessidade de demonstrar os fatos em sua ordem cronológica.

Como ainda é um momento em que o interlocutor (leitor) está debutando no

conhecimento do detetive, Doyle quer seguramente utilizar as palavras para aguçar

a curiosidade alheia, e, se pensarmos nos conceitos aristotélicos de que o ethos é

construído com a ativação de razão (logos) e emoção (pathos), dentro de um

contexto localizado temporalmente nos valores criados pela recente revolução

industrial, na qual o valor do trabalho contínuo é exaltado, este comportamento de

Holmes o torna um ser singular, passível de mais investigações sobre seu estilo de

vida.

Quando Watson reencontra seu antigo conhecido, mencionado no texto

como o “jovem Stamford”, ele fica realmente feliz por rever um rosto conhecido na

imensidão da Londres do século XIX “A visão de um rosto amigo na vastidão

desnorteante de Londres é algo realmente agradável...” (DOYLE, 2010).

Em meio a conversas amigáveis típicas de reencontros (cenografia de

conversa amigável), Watson diz a Stamford que necessita de alguém para

Page 62: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

61

compartilhar um aluguel, pois o hotel no qual vem se hospedando após retornar de

sua missão militar no Afeganistão está muito acima de seus padrões financeiros.

Stamford, então, lhe diz que conhece alguém que também buscava um companheiro

para repartir o aluguel, e é aí que começa um diálogo entre os dois bastante rico em

operadores e com bom potencial para análise do discurso.

Logo ao início da conversa, Stamford previne seu conhecido de que o tal

sujeito, Sherlock Holmes, talvez tenha características que possam não agradá-lo; e

Watson, por sua vez questiona o que pode ser tão ruim assim em relação ao virtual

parceiro.

“Ora, o que há contra ele?”

“Bem, eu não disse que havia alguma coisa contra ele. É um pouco extravagante em suas ideias – um entusiasta de alguns ramos da ciência. Até onde sei, é um sujeito bastante decente.” (DOYLE, 2010, p. 14, grifo nosso)

Esses operadores correspondem ao sétimo grupo de Koch (2012b). Esse

grupo faz referência às declarações argumentativas opostas, e embora aqui

tenhamos apenas dois, é o suficiente para demonstrar que Stamford, ainda que

tenha suas próprias dúvidas sobre Holmes, não tem nenhuma evidência contrária à

sua reputação. Koch (2012) declara em seu livro:

Do ponto de vista semântico, os operadores do grupo do MAS e os do grupo do EMBORA têm funcionamento semelhante: eles opõem argumentos enunciados de perspectivas diferentes, que orientam, portanto, para conclusões contrárias. (KOCH, 2012b, p. 30)

Quando diz que Holmes é um “pouco extravagante” e depois que “até onde

sei é um sujeito bastante decente”, o segundo sintagma esconde o operador MAS

(mas até onde sei), levando primeiramente o leitor a pensar que Holmes possa ser

uma pessoa problemática, mas em seguida rejeita essa ideia e afirma que ele é

bastante “decente”. Ocorre aqui um choque polifônico, duas vozes se contrapõem

para que a segunda conclusão prevaleça, neste caso, sobre a primeira, conduzindo

o leitor a pensar positivamente sobre o detetive, iniciando a construção de seu

ethos.

Stamford descreve Holmes para Watson utilizando operadores

argumentativos que exaltam seu potencial científico em prol da ciência investigativa

Page 63: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

62

e, de certa forma, o rótulo de insensível coloca Holmes como uma grande mente

investigativa do século XIX. Estas são as colocações de Stamford:

“Não é fácil exprimir o inexprimível”, respondeu ele rindo. “Holmes é um

pouco científico demais para o meu gosto... chega quase a ser desalmado. Eu poderia imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, veja bem, mas simplesmente movido por puro espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos. Para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo o tomaria com igual prontidão. Parece ter paixão por conhecimento certo e exato” (DOYLE, 2010, p. 15, grifo nosso)

Dentro de uma cenografia de conversa informal, visando transmitir a Watson

uma imagem, um ethos de Holmes, Stamford se utiliza de dois importantes

operadores argumentativos que apoiam sua opinião correta sobre a personalidade

de Sherlock Holmes.

O fato de ser um “pouco científico demais”, embora utilizando o pronome

pouco, dentro da expressão aponta para a totalidade de um espírito científico e

desalmado que só faz elevar o caráter sério e competente com que Holmes conduz

suas investigações.

Já o advérbio quase no contexto de “chega quase a ser desalmado”,

associado à constatação de que o próprio Holmes tomaria o alcaloide mostra que o

detetive na verdade não é mau, porém seu espírito científico para conduzir

investigações que levem a deduções brilhantes é tão comprometido que chega até

mesmo a colocar em risco sua própria saúde.

Há um trecho no livro de Koch (2012b) que esclarece um pouco mais essa

questão:

Vê-se, assim, que o emprego de certos operadores obedece a regras combinatórias, ou seja, eles não entram nos mesmo contextos argumentativos. É o que acontece com o quase e apenas. (KOCH, 2012b, p. 39)

O quase aponta no sentido da totalidade, sendo que o apenas, ou pouco,

apontam no sentido da ausência de totalidade, no entanto é a combinação destes

operadores que realmente constrói o caráter do enunciado. Estes operadores fazem

referência ao nono grupo de operadores de Koch (2012b)

Page 64: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

63

Outro trecho do corpus que apresenta operadores argumentativos que

ajudam na construção e afirmação do ethos de Holmes contém o operador do

terceiro grupo descrito por Koch (2012b). Este grupo de operadores são introdutores

de conclusões baseados nos enunciados anteriores, conforme exposto

anteriormente na base teórica do trabalho, e envolvem um movimento frontal no

raciocínio do interlocutor.

A amostra do corpus ocorre no momento em que Stamford apresenta Holmes

a Watson:

“Dr. Watson, Mr. Sherlock Holmes”, disse Stamford, apresentando-nos.

“Como vai?” disse ele cordialmente, apertando minha mão com uma força que eu dificilmente lhe teria atribuído. “Pelo visto, esteve no Afeganistão.” (DOYLE, 2010, p.16, grifo nosso)

Surpreendentemente, embora esteja incluído naquele terceiro grupo de Koch

(2012b, p. 34), o operador não se refere a nenhum conjunto anterior de enunciados.

De fato, é aqui que reside a agradável surpresa dessa amostra, pois um operador

que leva a uma conclusão de um sujeito sobre outro que nem conhece é incomum.

Dentro de uma cenografia amigável que se institui aqui, há uma mudança de

curso devido à surpresa causada pela afirmação de Holmes. Reiterando

Maingueneau (2008):

Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável, etc. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)

Page 65: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

64

Figura 5 – Holmes fez-me um esboço dos fatos (in: Doyle,

2010a, p. 12)

Portanto, no primeiríssimo contato entre Holmes e Watson, o leitor

(interlocutor) já se apercebe de que Holmes possui algum tipo de poder acima da

normalidade, senão não teria como aparentemente “adivinhar” que Watson estivera

no Afeganistão. Isto contribui sobremaneira para que o detetive comece a formar um

ethos confiavelmente superior em relação à média das pessoas e mesmo de seus

colegas de profissão.

Na sequência narrativa ao momento em que Watson e Holmes travam

conhecimento pessoal, demonstra-se que o detetive estava pesquisando algo novo

na universidade, por isso trabalhava no laboratório repleto de substâncias químicas.

Em seguida à apresentação dos dois por Stamford, Holmes consegue realizar

a descoberta que estava prestes a consumar, e é nesse momento em que aparece

uma declaração sua sobre o teste que pesquisava ser bem sucedido, utilizando-se

de outro operador argumentativo pertencente ao grupo número cinco de Koch

(2012b). Este grupo trata dos operadores comparativos, que podem ser usados para

elevar os valores de indivíduos, grupos de indivíduos ou de objetos em geral.

Veja-se o seguinte trecho de Holmes, quando faz sua descoberta logo após

testar sua substância:

Page 66: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

65

“Lindo! Lindo! O velho teste com guaiaco era muito grosseiro e duvidoso. O exame microscópico para corpúsculos também. Este último não tem nenhum valor se as manchas já tiverem algumas horas. Agora, isto aqui parece agir igualmente bem seja o sangue velho ou novo. Se este teste já tivesse sido inventado, centenas de homens que agora perambulam por aí teriam pagado por seus crimes há muito tempo [...]

Seus olhos brilhavam enquanto falava e, levando a mão ao peito, fez uma reverência, como se sua imaginação tivesse feito surgir por encanto uma multidão que o aplaudia. (DOYLE, 2010, p. 17, grifo nosso)

Os operadores igualmente bem e como se estão encaixados em dois

contextos diferentes no discurso da personagem, entretanto apoiam seu ethos

superior, já que o primeiro confirma que seu teste é eficaz independentemente da

idade da mancha de sangue, enquanto o segundo apresenta o modo pensar do

próprio Holmes, como se vê como uma pessoa especial que merece inclusive ser

agraciado e aclamado.

O “igualmente bem” se coloca no quinto grupo de operadores argumentativos

de Koch (2012b, p. 35), já que na verdade não é um operador que marca igualdade,

se observados os enunciados. Ele marca uma superioridade do teste de Holmes em

relação aos dois testes já inventados, podendo ser utilizado com manchas de

sangue recentes ou mais antigas. Segundo Koch (2012b, p. 35): “Operadores que

estabelecem relações de comparação entre elementos, com vistas a uma dada

conclusão”.

O “como se” também se encaixa nesse grupo, pois compara a reverência de

Holmes com uma reverência que poderia ser feita por uma multidão, que, na ocasião

mencionada, era apenas imaginária, demonstrando como o detetive é cheio de si,

orgulhoso de seus talentos. Os dois são uma mostra do uso do logos (AMOSSY,

2011), ou seja, uma argumentação eficiente para convencer seus interlocutores.

Uma vez mais, pode-se encontrar a verdade nas palavras da autora quando

se observam as declarações que o jovem Stamford faz sobre Holmes no momento

em que está conduzindo Watson à universidade para que ambos travem

conhecimento, a fim de eventualmente alugarem um apartamento em comum na

Baker Street.

Stamford comenta sobre os hábitos de Holmes no que concerne à sua vida

como pesquisador no laboratório, e como o leitor está no início do processo por

Page 67: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

66

conhecer o detetive e elaborar um ethos intrínseco ao personagem, este comentário

pode tanto levar a conclusões positivas como a negativas. Quando Watson lhe

pergunta onde pode encontrar Holmes para que se conheçam, a reposta é:

“Com certeza está no laboratório”, “ou ele evita o lugar por semanas a fio,

ou trabalha lá de manhã à noite.” Se quiser, podemos tomar um fiacre e passar lá depois do almoço. (DOYLE, 2010, p. 14, grifo nosso).

Ainda dentro dessa cena genérica do romance, a cenografia da conversa

amigável se desenvolve de modo a provocar certa curiosidade no leitor e, conforme

Koch (2012b), os operadores ou...ou, seja...seja, são “operadores que introduzem

argumentos alternativos que levam a conclusões diferentes ou opostas...”.

Ora, pode-se então depreender duas coisas diferentes da frase de Stamford,

a primeira é que se Holmes evita o lugar por semanas a fio, existe a possibilidade de

se tratar de uma pessoa preguiçosa e relaxada, que não dá o devido

prosseguimento a suas pesquisas para levá-las a bom termo. Por outro lado, o fato

de que em outro tanto de ocasiões mergulha interminavelmente no trabalho, talvez

seja um sujeito que utiliza o tempo aparentemente ocioso para organizar suas ideias

com a finalidade de colocá-las em experimentação nas horas em que trabalha com

tal afinco.

No trecho a seguir, ainda no âmbito da descrição que Holmes faz de seu

teste, pode-se verificar a existência de mais um operador argumentativo, referente

ao oitavo grupo da autora Koch (2012b), que são chamados operadores

argumentativos de pressuposição. Segundo Koch (2012b, p. 38): “Operadores que

têm por função introduzir no enunciado conteúdos pressupostos: já, ainda, agora,

etc”.

Esses operadores são úteis para que o interlocutor possa formar uma ideia

acerca de um enunciado, e no caso posto, devido ao valor que o detetive dá à sua

descoberta, chega-se à conclusão de que seu novo método será um divisor de

águas nas técnicas e práticas da Medicina Legal.

Um homem torna-se suspeito de um crime meses depois, talvez, que ele foi cometido. Suas roupas de baixo ou outras peças são examinadas, e descobrem-se manchas amarronzadas nelas. São manchas de sangue, de lama, de ferrugem, de frutas ou o quê? Esta é uma pergunta que intrigou muitos especialistas, e por quê? Porque não havia um teste confiável.

Page 68: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

67

Agora temos o teste de Sherlock Holmes e não haverá mais nenhuma dificuldade. (DOYLE, 2009, p. 17, grifo nosso)

O operador de pressuposição “agora” normalmente leva o interlocutor a

pensar que algo ou alguma ação são pertinentes no momento presente, porém não

no passado, ou vice-versa, o que pode fazer aparecer pressuposições como essa,

de que o novo teste criado por Holmes, o mais moderno, será também o mais

eficiente, conferindo a seu inventor uma aura de genialidade.

Duas colocações interessantes de Maingueneau sobre o ethos, e que

parecem adequar-se a esta análise:

O ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior à fala;

O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro (MAINGUENEAU, 2008, p. 63)

O próximo capítulo compreenderá análises de elementos dêiticos e

catafóricos, análise esta realizada sobre os enunciados resgatados do segundo

capítulo da obra Um estudo em Vermelho.

3.2 Capítulo 2 - A Ciência da Dedução

Este capítulo conta com as análises dos elementos dêiticos e catafóricos que

cooperarão na conjuntura do trabalho para que o ethos de Holmes continue a ser

construído. O capítulo dois do livro Um Estudo em Vermelho é bem adequado a

essa tarefa, pois Watson e Holmes iniciam sua convivência na Rua Baker Street.

A convivência abordada por Watson em seus escritos vai aos poucos

mostrando a ele e aos interlocutores os hábitos diários de Holmes com uma

quantidade de pormenores cada vez maior, fato que oferece uma gama bastante

grande de elementos textuais passíveis de análise sob essas teorias da Linguística

Textual.

Todas as dêixis explanadas na parte teórica da dissertação serão abordadas

na análise presente, levando o estudioso a uma maior conscientização do processo

de construção ética de Holmes, como até mesmo dêixis e catáforas, assim como as

Page 69: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

68

anáforas e os operadores argumentativos têm o poder de contribuir para o processo

em geral.

O primeiro exemplo a ser analisado trata do uso dos dêiticos pessoais,

chamados por Cavalcante (2011) de “dêiticos por excelência”. Watson explorava os

conhecimentos de Holmes a fim de conhecê-lo melhor:

Sua ignorância era tão extraordinária quanto seu conhecimento. De literatura contemporânea, filosofia e política, parecia não saber praticamente nada. Quando lhe citei Thomas Carlyle, perguntou da maneira mais ingênua quem ele poderia ser e o que teria feito. Minha surpresa chegou ao clímax, entretanto, quando descobri por acaso que ele ignorava a teoria copernicana e a composição do Sistema Solar. Que um ser humano civilizado neste século XIX não estivesse ciente de que a Terra gira em redor do Sol pareceu-me um fato que, de tão extraordinário, era quase inacreditável.

“Você parece espantado”, disse ele, sorrindo diante de minha expressão de surpresa. “Agora que sei disso, farei o possível para esquecer.”

“Esquecer!”

“Entenda, explicou ele, “considero que o cérebro de um homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de encher com os móveis que escolhemos.” (DOYLE, 2009, p. 35, grifo nosso)

A cenografia utilizada aqui é uma conversa informal, embora não se possa

chamá-la de amigável, cujo fiador, Watson, tenta sondar o cérebro de Holmes na

tentativa de compreender quem realmente era aquele homem excêntrico e

misterioso.

Complementando o discurso de Cavalcante (2011):

Os pessoais são os dêiticos por excelência, porque remetem diretamente aos sujeitos da enunciação, o que se reflete na concordância verbal. Outras formas dêiticas não pessoais ...apenas pressupõem os interlocutores em seu posicionamento espacial e temporal (por isso recebem as flexões de terceira pessoa gramatical) (CAVALCANTE, 2011, p. 96)

Os recursos dêiticos pessoais aqui em ação remetem a Holmes e ao

conhecimento que possui e que não possui ao mesmo tempo. A atenção mais

detalhada aos enunciados demonstra que, no mesmo momento em que Watson se

espanta com alguns aspectos da ignorância de Holmes, o detetive o tranquiliza

dizendo que isso é uma escolha sua, pois necessita deixar sua memória livre para a

sabedoria intrinsecamente relacionada ao seu trabalho, sabedoria esta escolhida

pelo próprio Holmes.

Page 70: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

69

Do ponto de vista do ethos, isto demonstra uma autoconfiança e um

engrandecimento dos métodos e da pessoa do detetive. Ele só se interessa por

assuntos de importância capital a seu trabalho e nada mais. E corrobora este

pensamento utilizando o exemplo do sótão vazio, argumento lógico e forte.

Falar de logos aqui é interessante, uma vez que a lógica deste conceito se

encaixa muito bem com a lógica do detetive, e, segundo Amossy (2011):

O que é preciso reter inicialmente aqui é o fato de que, em todos esses contextos, o logos convence em si e por si mesmo, independente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação, e sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados. (AMOSSY, 2011, p. 41)

A segunda amostra a ser analisada neste capítulo são dois elementos

dêiticos bem próximos. O primeiro é um dêitico espacial e faz referência ao período

imediatamente posterior ao início da convivência de Holmes e Watson, quando

haviam recentemente se transladado para a Baker Street 221 B, já o segundo é um

dêitico social, referente ao investigador Mr. Lestrade, da Scotland Yard.

Watson observava cuidadosamente os hábitos de Holmes, seu costume de

tocar violino, Doyle (2009, p. 37): “Ao entardecer, recostado em sua poltrona,

fechava os olhos e arranhava descuidadamente a rabeca atravessada em seu

joelho”.

Então, após o período de uma semana de convivência começa a descrever os

hábitos profissionais do detetive.

Durante a primeira semana, aproximadamente, não recebemos visitas, e eu tinha começado a pensar que meu companheiro era um homem tão sem amigos como eu. Pouco depois, porém, descobri que ele tinha muitos conhecidos, e nas mais diferentes classes da sociedade. Havia um sujeitinho amarelado, com cara de rato e olhos escuros, que me foi apresentado como Mr. Lestrade, e que apareceu três ou quatro vezes numa única semana. Uma manhã, apareceu uma moça elegantemente vestida, que ficou por meia hora ou mais. A mesma tarde trouxe um visitante grisalho e andrajoso, parecendo um mascate judeu, que me deu a impressão de estar muito aflito e foi seguido de perto por uma mulher idosa desmazelada. (DOYLE, 2009, p. 38, grifo nosso)

Os dêiticos encontrados no trecho estão imersos em meio a enunciados que

proporcionam a construção do ethos de Holmes. A retomada dêitica “a primeira

semana” é um elemento dêitico temporal, pois implica uma pressuposição do

Page 71: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

70

conhecimento do período em que os dois amigos iniciaram sua convivência na

Baker Street. São os dêiticos de tempo, segundo Cavalcante:

São os que situam o ponto de origem do falante (e seu interlocutor) no momento em que a mensagem é enunciada. Assim, nem toda expressão que indique tempo é necessariamente dêitica: somente se, a fim de o referente temporal ser identificado, for preciso conhecer o tempo em que se encontra o falante. (CAVALCANTE, 2011, p. 99)

Já a retomada dêitica “Mr. Lestrade” é um elemento dêitico social, que faz

referência a um investigador da Yard cuja capacidade não é levada a sério por

Holmes. Segundo Cavalcante, os dêiticos sociais são:

Também se definem diretamente a partir do centro dêitico do falante, mas codificam relacionamentos sociais, mantidos pelos participantes da conversação. Toda interação é regida por regras, baseadas em comportamentos mais ou menos ritualizados. (CAVALCANTE, 2011, p.96)

Neste caso, Watson, como fiador, utiliza os dois em conjunto para construir o

ethos de Holmes, pois o primeiro (temporal) trata de introduzir o interlocutor ao

momento em que o locutor enuncia seus pontos de vista sobre os visitantes do

apartamento que ambos compartilham. Já no segundo, que aparece na sequência,

no mesmo momento em que apresenta Lestrade, que mais tarde lhe será

apresentado como investigador da Yard, Watson o descreve como um sujeito com

aparência de um rato e de cor amarelada. Obviamente, essas descrições só fazem

desmerecer a figura do investigador.

Outro fato que merece relevância sobre o investigador é a quantidade de

vezes que ele procura Holmes, sendo que isso mostra mesmo uma dependência

dos serviços do detetive. A construção ética de Holmes aqui ocorre da seguinte

forma: ao mesmo tempo em que peca no quesito phrónesis (razoabilidade no que

diz) e eúnoia (benevolência), pelo menos Watson é honesto (areté) e é por este

caminho que tenta persuadir o interlocutor de que o que diz pode ser mais razoável,

pois descreve o que vê; e na verdade a construção do ethos Sherlockiano se dá pela

desconstrução de seu concorrente Lestrade. Segundo Cavalcante (2011, p. 34): ”Ele

(o locutor) persuadirá mais à medida que o ouvinte tiver a convicção de que ele

parece expor esses argumentos com “virtude”, isto é, honesta e sinceramente”.

O terceiro trecho retirado para análise de dêiticos deste capítulo dois contém

elementos que se referem às remissões textuais dêiticas espaciais. Na realidade

Page 72: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

71

também temos um dêitico pessoal, porém o enunciado relacionado ao elemento

espacial tem um peso maior no aumento da importância do cargo do detetive

consultor. Essa parte, no texto original, vem logo a seguir ao trecho analisado

anteriormente e se inscreve em uma cenografia amigável:

Quando qualquer desses indivíduos indefiníveis aparecia, Sherlock Holmes costumava pedir para usar a salas de estar, e eu me retirava para meu quarto. Ele sempre pedia desculpas por me submeter a esse inconveniente. “Preciso usar esta sala para meus negócios”, dizia, ”e essas pessoas são meus clientes.” (DOYLE, 2009, p. 38, grifo nosso)

Figura 6 – “Holmes tirou o relógio da Algibeira” (in: Doyle, 2010a,

p. 271).

Os dêiticos espaciais assim são definidos quando para que o referente seja

recuperado, a expressão dêitica de espaço necessite pressupor o espaço onde se

situa o falante. Segundo Cavalcante (2011) em relação aos dêiticos espaciais:

São definidos mais ou menos como os dêiticos de tempo, pois só serão tomados como dêiticos espaciais os elementos que pressupuserem o lugar em que se situa o falante e seu interlocutor no ato enunciativo. Desse modo, nem todas as expressões que denotam lugar são necessariamente dêiticos de espaço [...] (CAVALCANTE, 2011, p. 101)

Quando afirma que “esta sala” é sua, Holmes utiliza um dêitico, pois

pressupõe o lugar de onde está enunciando, o qual o leitor deve conhecer para

recuperar o local onde Holmes trabalha através do “esta”. O detetive consultor

Holmes eleva sua residência ao nível de um escritório, agregando valor à sua

Page 73: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

72

imagem profissional e complementa com um dêitico pessoal, “meus”, demonstrando

que possui uma quantidade razoavelmente grande de pessoas que buscam seus

serviços.

Ao mesmo tempo em que mostra a Watson seu valor profissional e seu ethos

valorizado enquanto consultor detetive, os mostra também aos interlocutores

(leitores), através dos enunciados produzidos em torno das dêixis, especialmente a

espacial. Em relação ao ethos, pode-se citar uma fala de Maingueneau que se

combina com os dêiticos espaciais.

O ethos é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada. (MAINGUENEAU, 2008, p. 63)

É nessa cenografia de conversação amigável e explicando o porquê da

necessidade de uso do cômodo que Holmes começa a se apresentar como um

competente consultor de casos policiais.

A última amostra do capítulo a ser analisada é um trecho onde Holmes revela

a Watson sua profissão e explica a Watson porque tantas pessoas o procuram,

desenvolvendo uma cenografia conciliadora. Nesta parte do capítulo encontramos

vários dêiticos, porém, novamente, os mais interessantes para verificação são o

social e os pessoais, que, pelos enunciados trazidos por eles, demonstram a força

da personalidade e da qualidade do detetive.

“Bem, tenho uma profissão. Suponho que sou o único no mundo a exercê-la. Sou um detetive consultor, se é capaz de entender o que é isso. Aqui em Londres temos um punhado de detetives do governo e detetives privados. Quando esses sujeitos se veem numa enrascada, eles me procuram, e consigo pô-los na pista certa. Eles me expõem todas as evidências, e em geral sou capaz, com a ajuda de meu conhecimento da história do crime, de corrigir seus erros. Há uma forte semelhança de família entre os delitos, e se você tem todos os detalhes de um milhar deles na ponta dos dedos, seria estranho que não conseguisse desvendar o milésimo primeiro. Lestrade é um detetive muito conhecido. Ele se confundiu recentemente com um caso de falsificação, e foi isso que o trouxe aqui. (DOYLE, 2009, p. 41, grifo nosso)

No exemplo retirado do corpus, temos um dêitico social, que apresenta a

profissão de Holmes, acompanhado de cinco dêiticos pessoais expressos, cujos

enunciados circundantes só fazem reforçar a ideia do primeiro.

Page 74: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

73

O primeiro elemento dêitico retoma a pessoa de Holmes através de sua

profissão, conferindo-lhe um título e afirmando que provavelmente seja a única

pessoa “no mundo” a possuí-lo. Holmes realmente se acha superior por ser único,

sem ninguém que possa reproduzir suas proezas intelectuais, e, portanto, os outros

lhe devem um respeito especial. Segundo Cavalcante (2011):

As relações em sociedade (e não a interação linguística em si mesma), ao condicionar a escolha dos níveis de maior ou menor formalidade, findam por determinar a seleção de títulos honoríficos e de outras expressões de intimidade ou polidez. (CAVALCANTE, 2011, p. 96)

As outras formas dêiticas explicitadas no texto, por meio dos enunciados, dão

suporte a esta dêixis principal na qual Holmes se mostra todo poderoso. Quando ele

afirma que é procurado por todas aquelas pessoas, que elas lhe expõem seus

casos, e que utiliza seu conhecimento para corrigir seus erros, todas essas

colocações introduzidas pelos dois dêiticos pessoais “me” e pelos dêiticos

possessivos “meu” e “seu”, afirmam seu ethos uma vez mais, como se fora a única

fonte de resolução de casos misteriosos do mundo.

Ainda, uma vez mais coloca seu colega da Yard como um aluno inferior, ao

utilizar o dêitico “se” para expressar que Lestrade havia se confundido em seu caso

de falsificação. Os sistemas dêiticos pessoais conseguem trabalhar essa

estruturação de localização do referente. Aqui elas mostram o referente Holmes em

situação de superioridade absoluta sobre os “pobres mortais”. Segundo Cavalcante

(2011):

O enunciador se coloca, dessa maneira, como o lugar de origem do sistema dêitico, estabelecendo-se como um ponto de referência para as coordenadas de espaço e tempo do contexto enunciativo imediato. (CAVALCANTE, 2011, p. 93)

Aqui, o interlocutor sabe que Holmes está apresentando seu trabalho a

Watson, enquanto recém começaram a coabitar a Baker Street 221 B.

Do ponto de vista da análise do ethos, podemos dizer que Holmes se utiliza

basicamente do apelo à razão, logos, a fim de mostrar ao colega de habitação sua

importância e capacidade; sendo ele mesmo seu próprio fiador. Embora não se

importe com o pathos (o afeto, a emoção), tanto que Watson chega até a achá-lo

demasiado arrogante, Holmes se utiliza dos argumentos lógicos em conjunção com

os elementos dêiticos para construir sua imagem de superioridade.

Page 75: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

74

O que é preciso reter inicialmente aqui é o fato de que, em todos esses contextos, o logos convence em si e por si mesmo, independentemente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação e, sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados. (AMOSSY, 2011, p. 41)

Os elementos catafóricos também contribuem para o processo de coesão

textual, conquanto sejam menos frequentes que os fenômenos anafóricos, ainda

assim podem ser estudados juntamente aos enunciados a eles pertinentes com

vistas à comprovação e construção do ethos superior de Holmes.

Neste capítulo encontra-se uma referenciação catafórica bem colocada em

meio a um diálogo em que Holmes explicava a Watson sobre seus métodos e

porque conseguiu descobrir que havia recentemente chegado dos trópicos; então

Watson tenta compará-lo com alguns detetives de escritores famosos, como Edgar

Allan Poe e Gaboriau.

“É muito simples quando você explica”, disse eu, sorrindo. “Você me lembra Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que existiam pessoas assim na vida real.”

Sherlock Holmes levantou-se e acendeu seu cachimbo. “Sem dúvida acha que está me elogiando ao me comparar com Dupin”, observou. “Em minha opinião, porém, Dupin era um sujeito muito inferior. Aquele truque de se intrometer nos pensamentos com um comentário oportuno depois de um quarto de hora de silêncio é por demais aparatoso e superficial. Ele tinha algum talento analítico, sem dúvida; mas não era de maneira alguma o fenômeno que Poe parecia imaginar.”

“Leu as obras de Gaboriau?”, perguntei. “Lecoq corresponde à sua ideia de um detetive?”

Sherlock Holmes torceu o nariz, sardônico. “Lecoq era um pobre trapalhão” [...] (DOYLE, 2009, p. 42)

Desta vez a retomada ocorre em forma catafórica, em outra cenografia de

conversa informal, com Watson utilizando o pronome “você” antes do nome de

Holmes. Segundo Koch (2012a, p. 19): “Neste caso, se o referente precede o item

coesivo, tem-se a anáfora; se vem após ele, tem-se a catáfora”.

A maneira como Holmes se refere a seus rivais literários realmente comprova

que se acha superior, levando seus interlocutores a crer que ele e seus métodos são

os melhores que há.

Page 76: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

75

Holmes, uma vez mais, torna-se seu próprio fiador, colocando-se como o

detetive mais bem preparado e conhecedor dos casos criminais, um mestre da arte

da Dedução e Análise do século XIX.

O personagem utiliza um tom apropriado, termo de Maingueneau (2008), a

fim de se autoelogiar, trabalhando em prol de sua imagem e no propósito de

convencer Watson e os interlocutores.

[...] a um fiador que, por meio de seu “tom”, atesta o que é dito (o termo “tom” tem a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral).

Isso quer dizer que optei por uma concepção mais “encarnada” do ethos, que, nessa perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das determinações físicas e psíquicas associadas ao “fiador” pelas representações coletivas. Assim, acaba-se por atribuir ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”, cujo grau de precisão varia segundo os textos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 64-65)

O capítulo seguinte, concebido a partir de um trabalho concretizado durante o

curso de mestrado, na disciplina de Linguística Textual, terá suas análises focadas

nos enunciados trazidos pelos elementos anafóricos, área bastante trabalhada pela

ciência em questão.

3.3 Capítulo 3 - O Mistério de Lauriston Garden

As análises dos elementos anafóricos que promovem a sequência textual se

iniciam com o estudo de uma primeira retomada anafórica cujo referente encontra-se

no final do capítulo 2. Nesta parte, Holmes recebe um mensageiro com um

telegrama do detetive Tobias Gregson da Scotland Yard clamando pela presença de

Sherlock, se possível, na cena do crime em uma casa da rua Lauriston Garden.

Sherlock Holmes deduziu que o mensageiro era um sargento da marinha reformado

através de alguns detalhes que ele enxergava por suas habilidades especiais em

observar e deduzir.

Fica bem claro, logo no início do capítulo 3, que a intencionalidade de Doyle é

apresentar Holmes ao mundo como um ser humano diferente, superior de certa

forma, mas que se utiliza de detalhes aparentemente insignificantes para tirar suas

conclusões “mágicas”, conforme vemos neste trecho, onde Watson lhe pergunta

sobre a dedução acerca do mensageiro:

Page 77: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

76

“Como diabos você deduziu isso?” perguntei.

“Deduzi o quê?” retrucou com petulância.

“Não tenho tempo para ninharias”, respondeu bruscamente [...] foi mais fácil perceber isso do que será explicar como o fiz. [...] Quando o sujeito ainda estava do outro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul tatuada no dorso da sua mão. Senti cheiro de mar. Ele tinha um porte militar, porém, e as costumeiras suíças. Temos aí um fuzileiro naval [...]. Além disso, a julgar pelas aparências, um homem de meia-idade, equilibrado e respeitável – fatos que, juntos me levaram a acreditar que tinha sido sargento.”

“Maravilhoso!” exclamei.

“Banal”, disse Holmes [...] (DOYLE, 2009, p. 56-57, grifo nosso)

A cenografia que aqui se desenvolve é de uma conversa informal, porém não

muito amigável, pois Holmes até responde bruscamente a Watson. Pode-se dizer

que chega ser professoral, pois Holmes explica a Watson, embora de má vontade,

como chegou à conclusão sobre o mensageiro ser um militar.

Holmes está metido em seus pensamentos acerca da mensagem recebida,

portanto, exibe seu comportamento característico, ethos, iniciando sua atividade de

dedução já pelo mensageiro e demonstrando a autoridade que tem no assunto

dedutivo. Consegue, ainda, reunir, segundo Amossy (2011, p. 42) uma qualidade

convincente de orador graças à boa mescla das três componentes do ethos,” ...só o

orador que consegue mostrar em seu discurso os mais elevados graus dessas três

dimensões do ethos – phrónesis, areté, eúnoia – convencerá realmente.”

A maneira como coloca seus enunciados faz de Sherlock um ser

surpreendente à vista de Watson e do leitor. Segundo se entende pelo postulado de

Koch, “A intencionalidade [...] em sentido restrito, refere-se à intenção do locutor de

produzir uma manifestação linguística coesa e coerente, ainda que esta intenção

nem sempre se realize integralmente.” (KOCH, 2009, p. 42). Ou seja, Holmes se

utiliza de argumentos coerentes e de enunciados convincentes no intento de expor

seus conhecimentos e de apresentar seu ethos superior.

O pronome demonstrativo “isso” é um referente anafórico de uma frase no

capítulo 2, quando Watson pergunta a Holmes sobre um sujeito que caminhava pela

rua e este lhe responde: “Você se refere ao sargento reformado dos Fuzileiros

Navais, disse Sherlock Holmes” (DOYLE, 2010, p. 43). A dedução que Holmes faz

do sujeito é devida a um processo mental que demonstra sua superioridade de

Page 78: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

77

raciocínio, e o pronome isso pode ser considerado uma anáfora indireta ou

inferencial encapsuladora que aborda os tópicos mentais do detetive, fato que se

percebe quando Sherlock explicita para Watson seu processo de pensamento:

[...] o sujeito ainda estava do outro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul tatuada no dorso da sua mão, Senti cheiro de mar. Ele tinha um porte militar, porém, e as costumeiras suíças. Temos aí o fuzileiro naval. (DOYLE, 2009, p. 57)

Holmes e Watson tomam então um fiacre e se dirigem ao número 3 da

Lauriston Garden para investigar o caso, mas antes que a carruagem chegasse,

Sherlock comenta a Watson, em uma cenografia que pode ser definida como uma

conversa confidencial para convencimento:

Gregson é o homem mais astuto da Scotland Yard, observou meu amigo; ele e Lestrade são a nata de um bando de incompetentes. São ambos rápidos e vigorosos, mas convencionais – escandalosamente convencionais. Além disso, têm aversão um pelo outro. E são ciumentos como um par de beldades profissionais. Esse caso será divertido se ambos estiverem na pista. (DOYLE, 2009, p. 58, grifo nosso)

As palavras em negrito mostram o sentimento de superioridade que o próprio

Holmes alimenta em relação a seus colegas da Scotland Yard, já que a palavra nata

se refere à melhor parte de algo, mas esse algo é definido por Holmes como um

“bando” de “incompetentes”. Há algumas retomadas na sequência que confirmam

ainda mais sua crença na inferioridade dos profissionais da Yard, mas são anáforas

por elipse (correferenciais), explicitadas através dos verbos “são” e “têm” e pelo

pronome “ambos”, apoiadas pela afirmação de serem “escandalosamente

convencionais”.

“A elipse seria, então, uma substituição por zero: omite-se um item lexical, um

sintagma, uma oração ou todo um enunciado, facilmente recuperável pelo contexto”

(HALLIDAY; HASAN, 1976 apud KOCH, 2012a, p. 21).

Holmes tenta convencer Watson de que os detetives da Yard, mesmo sendo

os melhores encontrados na corporação, lhe são muito inferiores, logo, Holmes

clama sua própria superioridade. Podemos observar um trecho de Maingueneau

sobre este tipo de convencimento feito pelo locutor:

O ethos discursivo é coextensivo a toda enunciação: o destinatário é necessariamente levado a construir uma representação do locutor, que este último tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de maneira

Page 79: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

78

bastante variável, segundo os gêneros de discurso. (MAINGUENEAU, 2008, p. 79)

Os métodos de Holmes também mostram superioridade em relação aos de

Gregson e Lestrade. Enquanto se encaminhavam ao número 3 da Lauriston Garden,

Watson lhe diz:

Terá todos os seus dados logo, logo, observei, apontando; se não me engano esta é a Brixton Road e aquela é a casa.

Isso mesmo. Pare, cocheiro, pare! Ainda estávamos a cerca de cem metros dela, mas ele insistiu em descer, e terminamos o trajeto a pé. (DOYLE, 2009, p. 59, grifo nosso)

A contração da preposição “de” com o pronome pessoal “ela”, resultando em

“dela”, forma outra relação anafórica correferencial por referência pessoal (pronome

pessoal), dessa vez com o substantivo “casa”. E Watson se utiliza desse elemento

para, através de seu enunciado, mostrar como os métodos de Sherlock são também

superiores, pois ele prefere vir caminhando a pé de uma distância mais longa, de

maneira a preservar quaisquer pistas que o assassino possa haver deixado no

caminho, evitando assim que o fiacre as apagasse ou enfraquecesse após sua

passagem, ou mesmo para apreender pistas no caminho. Segundo Koch (2012a) a

anáfora referencial “é endofórica quando o referente se acha expresso no próprio

texto” (KOCH, 2012a, p. 19).

Todos os elementos anafóricos analisados até o momento possuem o

propósito subjacente, ou seja, a intenção de mostrar o quão superior Holmes é em

relação a seus colegas de ofício. Seus métodos, a maneira peculiar de pensar e agir

demonstram este propósito do autor. Qualquer outro policial provavelmente desceria

do fiacre bem próximo da casa, não se importando com um detalhe aparentemente

sem importância.

Após descer do fiacre e caminhar até a casa, local onde o crime foi praticado,

enquanto analisava o aspecto lúgubre do local, Sherlock inspeciona o quintal à

procura de pistas e critica Gregson por haver deixado a polícia pisoteá-lo,

prejudicando assim o processo.

Dentro da casa é onde se torna possível encontrar mais retomadas relevantes

para a análise. No trecho seguinte, após a vistoria do corpo da vítima por Holmes,

Lestrade aparece para comunicar uma descoberta, e é possível encontrar a quarta

Page 80: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

79

anáfora do trabalho, cuja conceituação pode ser classificada na categoria de anáfora

indireta meronímica, pois se refere à parede onde Lestrade encontra uma palavra

escrita em cor vermelho – sangue, “RACHE”, que se constituirá em uma das pistas-

chave para a resolução do mistério.

“Mr. Gregson, disse, acabo de fazer uma descoberta da maior importância, algo que teria passado despercebido se eu não tivesse feito um exame cuidadoso das paredes.”

[...] Neste canto particular da sala, um grande pedaço descascara, deixando um quadrado amarelo de reboco áspero. Neste espaço nu, via-se uma única palavra garatujada em letras vermelho-sangue: RACHE.

“Que acham disso?” exclamou o detetive, com o ar de um empresário a exibir seu espetáculo. ”Passou despercebido porque estava do lado mais escuro da sala, e ninguém pensou em olhar ali. O assassino escreveu isso com seu próprio sangue. Vejam esta mancha onde ele escorreu pela parede! De qualquer maneira, isso afasta a hipótese de suicídio. Por que escolher este canto? Eu lhes direi. Vejam aquela vela no aparador. Ela estava acesa no momento, e nesse caso esse canto seria a parte mais iluminada, não a mais escura da parede.”

”E o que significa isso, agora que você o encontrou? Perguntou Gregson num tom desdenhoso.”

“Significa? Ora, significa que a pessoa ia escrever o nome feminino Rachel, mas foi interrompida antes de ter tempo para terminar. Tomem nota das minhas palavras: quando este caso for esclarecido, verão que uma mulher chamada Rachel tem alguma coisa a ver com ele. Pode rir à vontade Mr. Sherlock Holmes.” (DOYLE, 2009, p. 65-66, grifo nosso)

Gregson, com ciúmes da descoberta de seu colega, pergunta-lhe “E o que

significa isso agora que você o encontrou” (DOYLE, 2010, p. 66), sendo respondido

por Lestrade “Significa? Ora, significa que a pessoa ia escrever o nome feminino

Rachel, mas foi interrompida antes de ter tempo para terminar.” (DOYLE, 2009,

p.66). Neste momento, Holmes solta uma gargalhada que constrange Lestrade.

Este trecho mostra uma cenografia mesclada, Lestrade enuncia, ao mesmo

tempo, em uma cenografia policial, professoral e profética, dizendo-se o melhor

detetive, aquele que pode explicar melhor o caso e ainda por cima prevendo seu

desfecho.

O desdém demonstrado por Holmes em sua risada sarcástica nasce a partir

desta relação meronímica – anáfora indireta - entre parede e reboco áspero onde

se encontra a palavra RACHE que dá origem à dedução errônea de Lestrade. Para

Cavalcante (2011, p. 64) “haveria entre as duas entidades que essas expressões

Page 81: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

80

representam uma dependência ontológica particular, em que o referente do

anafórico seria uma parte constitutiva do referente de seu antecedente”.

O trecho deixa transparecer a competição estabelecida entre os dois detetives

da Yard, e também termina por engrandecer o ethos de Holmes por causa do

tratamento irônico que dá às conclusões e previsões de Lestrade, deixando bem

claro que já vislumbrou elementos mais profundos e que seu colega da Yard está

ingenuamente errado. Devido aos tipos de cenografia construídos por Lestrade e

que conduzem ao resultado da análise, torna-se interessante a colocação de uma

citação de Maingueneau sobre o tema:

Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável, etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)

Na sequência, na quinta anáfora analisada, o autor continua a utilizar as

anáforas no processo de reforço da imagem de Holmes. Este trecho se encontra

bem próximo ao anterior e mostra Lestrade irritado com a arrogância de Sherlock.

Lestrade lhe diz:

Pode rir à vontade, Mr. Sherlock Holmes. Pode ser muito sagaz e inteligente, mas no fim das contas é o velho cão de caça que se sai melhor.

Peço sinceramente que me desculpe! Respondeu meu companheiro, que agastara o homenzinho com um acesso de riso (DOYLE, 2009, p. 66)

Esse tipo de anáfora se configura como a anáfora por coesão lexical –

mecanismo da reiteração, que é feita por meio da “repetição do mesmo item lexical

ou através de sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos [...]” (HALLIDAY; HASAN,

1976 apud KOCH, 2012a, p. 22).

Entretanto, Sherlock, ao ouvi-lo, apenas persiste em sua gargalhada até que

percebe que está ofendendo seu colega e se escusa, ironicamente claro.

Novamente o autor demonstra sua intencionalidade, pois o epíteto “velho cão de

caça” que deveria denotar experiência, domínio do assunto e competência, apenas

faz com que Holmes desdenhe ainda mais seu colega de profissão, denegrindo a

Page 82: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

81

capacidade de Lestrade e apresentando a capacidade de visão mais abrangente de

Holmes.

Este trecho portador da anáfora por coesão lexical, como seu antecedente,

também está relacionado à descoberta da palavra “RACHE”, assim como estará o

sexto elemento anafórico do trecho subsequente, que se encontra já ao final do

capítulo, após Sherlock Holmes haver tido a oportunidade de analisar a parede e

verificar que o nome havia sido escrito com sangue, provavelmente do próprio

assassino, já que a vítima não apresentava ferimentos, fora morta com veneno, o

que Holmes havia descoberto por cheirar os lábios do morto.

Aqui a falta de modéstia de Holmes e o tratamento que dá a seu colega

Lestrade traz um elemento importante de ethos, já que quando se desculpa com o

policial da Yard, seu tom é irônico, justamente para demonstrar aos interlocutores

que é superior aos policiais ordinários. Dentro da teoria do ethos, Holmes falta com

um pilar básico da noção, a areté (honestidade), pois não demonstra abertamente

sua linha de raciocínio a Lestrade, ocultando o processo de raciocínio perante seu

colega até que tenha tempo de examinar a cena do crime, a fim de que possa

alcançar primeiramente uma conclusão valiosa, e, conquanto para Lestrade isso

talvez seja difícil de enxergar, para o interlocutor (leitor) fica óbvio que Holmes “vê”

mais, e, portanto, é superior. Segundo Amossy (2011, p. 32): [...] “se apresentar

como um homem simples e sincero (areté)”. É o que falta a Holmes aqui.

Holmes utiliza, finalmente, seu conhecimento superior em outra língua, no

caso o alemão, para dar um golpe mortal em seus dois rivais, os inspetores Gregson

e Lestrade, deduzindo as características do assassino e desmantelando a teoria de

Lestrade sobre a existência de Miss Rachel, como segue no fragmento:

Lestrade e Gregson entreolharam-se com um sorriso incrédulo. Se esse homem foi assassinado, como isso foi feito? Perguntou o primeiro.

Veneno, respondeu Sherlock Holmes laconicamente e foi saindo. Mais uma coisa, Lestrade, disse dando meia-volta junto à porta: Rache é vingança em alemão; por isso não perca seu tempo procurando Miss Rachel.

Page 83: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

82

Com esse arremesso parto1, retirou-se, deixando atrás de si os dois rivais

boquiabertos. (DOYLE, 2009, p. 68, grifo nosso)

Figura 7 – “Ele segurava uma velha botina preta no ar” (in: Doyle,

2010c, p. 216)

Esse termo faz referência a um elemento extratextual, faz uma retomada de

algo, um conhecimento sobre um fato que não se encontra no texto, já que

arremesso parto é um tipo de arremesso certeiro, executado com muita habilidade

pelos guerreiros partos que o faziam ao se voltar sobre seus cavalos e lançar suas

flechas. É uma anáfora exofórica que ocorre quando a “remissão é feita a algum

elemento da situação comunicativa, isto é, quando o referente está fora do texto”

(KOCH, 2012a, p. 19). Novamente Doyle tem a intenção de provar que Holmes é

sagaz e que sabe usar seus conhecimentos teóricos com eficiência para superar

seus colegas de ofício, comparando suas habilidades dedutivas às habilidades

bélicas de guerreiros que em sua época eram superiores aos guerreiros da maioria

dos outros impérios.

O ethos aqui é construído através do desenvolvimento de uma cenografia

professoral e dedutiva; Holmes explica a seus colegas da Yard o que significa a

1 Império que fazia fronteira a leste do Império Romano e que lhe resistiu em função de seus excepcionais

cavaleiros

Page 84: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

83

palavra na parede e também mostra que percebeu a presença de um veneno que foi

responsável pela morte da vítima, fazendo com que seus colegas rivais fiquem

tremendamente surpresos. Nesse caso Holmes é seu próprio fiador e se coloca

como um ser superior intelectualmente no mundo da investigação policial. Segundo

Maingueneau (2008):

A especificidade de um ethos remete, de fato, à figura de um “fiador” que, por meio de sua fala, se dá uma identidade em acordo com o mundo que ele supostamente faz surgir. Tal problemática do ethos leva a contestar a redução da interpretação a uma simples decodificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível funciona no processo de comunicação verbal. As “ideias” suscitam a adesão do leitor por meio de uma maneira de dizer, que é também uma maneira de ser. (MAINGUENEAU, 2008, p. 72)

A partir das teorias apresentadas, essas são as análises que se fizeram

necessárias para a possível comprovação da construção do ethos sherlockiano.

Essas análises suscitaram algumas considerações finais ao trabalho a fim de

concluir o raciocínio utilizado e apresentar alguns pontos de interesse com vistas a

possíveis futuras pesquisas.

Page 85: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os textos escritos por Doyle que contam as aventuras de Sherlock Holmes

realmente instigam a curiosidade do leitor, promovendo um desejo cada vez mais

forte de continuar a leitura até o final, a fim de que se descubra a chave do mistério

que está sendo investigado pelo detetive, entretanto, essa leitura realizada pela

maioria dos interlocutores é, em grande parte das vezes, superficial, sem um

interesse científico, que é justamente o que se busca com este trabalho.

Para os leitores que demandam ou sentem a necessidade de uma maior

profundidade na leitura, que não se contentam somente com os elementos da

superfície textual sem maiores aprofundamentos, a análise e a compreensão de

elementos técnicos pertencentes à Linguística Textual, como os conectores e suas

funções, e à Análise do Discurso, como o ethos, foi executada nesta dissertação,

promovendo, então, maior abrangência técnica na compreensão do texto na

tentativa de trazer contribuições teórico-práticas aos interessados pela área.

A unificação da teoria do ethos e dos elementos da teoria da Linguística

Textual, construída através das análises realizadas no presente trabalho, possibilita

ao leitor uma concepção renovada do detetive Sherlock Holmes. Renovada porque

se toma, por meio desse estudo, consciência e clareza sobre os processos textuais

utilizados por Doyle na construção de seu personagem, o que leva o leitor a

conhecê-los mais profundamente e favorece um raciocínio e uma leitura mais

científicos e menos intuitivos, fazendo do universo sherlockiano um lugar mais

compreensivo e racional e menos intuitivo, “mágico”, uma vez que a maioria das

pessoas que aprecia as histórias do secular detetive apenas faz uma leitura

superficial e não se atêm o suficiente ao “como” as ações e deduções se processam

nos textos que leem.

Por meio da utilização da teoria do ethos, dá-se ciência do como se processa

a construção da imagem de um orador, seja pela fala do próprio, de Watson, neste

caso, ou de terceiros que lhe atribuam qualidades ou defeitos. O ethos, aqui

estudado por meio de escritos de Maingueneau (2008) e Koch (2012), conquanto um

Page 86: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

85

advento antiquíssimo que remonta mesmo à Grécia antiga, tendo seu estudo e

pesquisa já sido realizados pelo filósofo Aristóteles, mesclou-se nas modernas

teorias de Análise do Discurso das últimas décadas do século vinte e delas pôde

tirar novo vigor, já que passou a ser estudado também à luz dos enunciados

apoiados em novas concepções. Maingueneau, por exemplo, trabalha com a noção

de ethos e com os problemas e dificuldades existentes em torno da noção já há

algumas décadas.

A anexação de alguns conceitos analíticos provenientes da Linguística

Textual de Cavalcante (2011) e Koch (2012), importante área que estuda os termos

em si mesmos e suas correlações dentro e com o enunciado, perpassando a

semântica e tornando possível a compreensão mais detalhada do cerne da

mensagem, somente tem a acrescentar à teoria do ethos, visto que ambas as

teorias podem ser complementárias e trabalhar lado a lado, objetivando a

compreensão da imagem e do conceito que a personagem, no caso Holmes, terá

por parte do leitor.

O escopo do trabalho pôde, portanto, ser atingido, pois as duas teorias,

utilizando-se de conceitos aparentemente desconexos, trabalharam em uníssono,

uma e outra se apoiando e possibilitando, dentro de suas características, auxiliar no

levantamento da superioridade de Holmes, segundo Doyle (2009), sobre todos os

outros investigadores da época, visando assim convencer o leitor da capacidade

intelectual de Holmes. Associando isso aos estudos elaborados pelo detetive e à

resolução de casos que para outros se mostrariam aparentemente insolúveis, têm-

se os instrumentos que possibilitam a Holmes ser quem ele é, um dos melhores

detetives já descritos na literatura policial.

Desta maneira, este trabalho visou apresentar algumas análises dentro das

linhas teóricas já citadas, de forma que possa contribuir para estudos de graduação

ou mesmo de pós-graduação no que se refere ao estudo de conjunções, ou

operadores argumentativos, e sua função dentro do texto, visto que o texto não é

somente um amontoado de palavras, mas sim um conjunto de ideias expressas por

meio de enunciados que se correlacionam, um local onde as conjunções que

aportam esses enunciados trabalham umas com as outras na tentativa de expressar

ideias e levar a conclusões.

Page 87: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

86

Igualmente, nos cursos de pós-graduação, como os cursos de mestrado em

Linguística, por exemplo, este trabalho intentou apresentar formas de uso das

teorias e dos modelos de análises citados para levar o estudante a aprender mais

sobre os conceitos de ethos e de Linguística Textual e sua aplicabilidade na análise

e interpretação dos enunciados. Neste fazer, o trabalho abarcou conceitos

interdisciplinares que funcionaram como pilares, sustentáculos dos estudos

realizados. Desse modo, esperamos ter podido contribuir para com a formação do

aluno desses cursos e possibilitado o incremento de seu cabedal de conhecimentos

linguísticos e possibilidades outras de análises na tentativa de propiciar diversas

formas de aplicabilidade desses conhecimentos, tanto no estudo das disciplinas que

abarquem esses conceitos como na construção de seus artigos e monografias, ou,

até mesmo, dependendo de sua linha de trabalho, auxiliando na construção de sua

própria dissertação final.

Enfim, a dissertação como um todo teve a intenção de trazer ao leitor alguns

conhecimentos literários sobre Holmes, posto que conjuntos de enunciados dos três

capítulos iniciais da obra foram analisados, à luz das teorias aqui apresentadas, no

intuito de trazer contribuições teórico-práticas a estudantes, professores e pessoas

interessadas nas histórias do detetive, ou que porventura tenham o desejo conhecê-

lo, e para os que queiram se aprofundar nesses conceitos para aplicá-los em seus

trabalhos.

Outrossim, durante o desenvolvimento deste trabalho, percebeu-se a

necessidade de estudos posteriores para clarificar pontos duvidosos que

eventualmente tenham surgido no decorrer das atividades, e isso suscitou a

necessidade de pesquisas adicionais, mais aprofundadas, que poderiam servir de

mote para estudos em âmbito de doutorado.

Como exemplo desses pontos, pode-se citar a questão das cenas da

enunciação desenvolvidas por Maingueneau (2008); ao longo de seu trabalho notou-

se a carência de material mais detalhado sobre quais são e como se organizam as

cenas da enunciação, material que, se pudesse haver sido obtido, teria facilitado

sobremaneira a presente pesquisa.

Page 88: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

87

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel; HEIDMANN, Ute; MAINGUENEAU, Dominique. Análises textuais e discursivas. São Paulo: Cortez, 2010.

______. A linguística textual. São Paulo: Cortez, 2011.

AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2011.

ANDRADE, Carlos Augusto Batista. Texto, discurso e suas práticas. São Paulo: Terracota, 2009.

ARISTÓTELES. Retórica (obra traduzida). São Paulo: Martins Fontes, 2012.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Referenciação: sobre coisas ditas e não-ditas. Fortaleza: Edições UFC, 2011.

DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

______. As memórias de Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010a.

______. As aventuras de Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010b.

______. O cão dos Baskerville. Rio de Janeiro: Zahar, 2010c.

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Linguística textual: introdução. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

KOCH, Ingedore. Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.

______. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2012a.

______. A interação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2012b.

LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

Page 89: TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE … · Figura 3 –Examinou com sua lente a palavra escrita na ... e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do detetive

88

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2011.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2010.

PÊCHEUX, Michel. Análise de discurso. São Paulo: Pontes, 2011.

______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2008.

SAVELLE, Max. História da civilização mundial: os tempos modernos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1968.