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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE LEITURA
DE PRODUÇÃO DO TEXTO ESCRITO E FALADO
SERGIO EDUARDO HERMAN
Orientadora: Profª Drª Sonia Sueli Berti Santos
Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.
SÃO PAULO
2013
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
H473t
Herman, Sérgio Eduardo. Texto, discurso e ensino: processos de leitura de produção do
texto escrito e falado / Sérgio Eduardo Herman. -- São Paulo; SP: [s.n], 2013.
88 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Sonia Sueli Berti Santos. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise de texto 2. Linguística textual 3. Ethos I. Santos,
Sonia Sueli Berti. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.
CDU: 801.82(043.3)
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
TEXTO, DISCURSO E ENSINO: PROCESSOS DE LEITURA
DE PRODUÇÃO DO TEXTO ESCRITO E FALADO
SERGIO EDUARDO HERMAN
Dissertação de mestrado defendida e aprovada
pela banca examinadora em 13/12/2013.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente
Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara
Universidade Cruzeiro do Sul
Prof. Dr. Fábio Luiz Villani
Faculdade Campo Limpo Paulista
DEDICATÓRIA
A Deus, pelas oportunidades concedidas e pela capacidade com
que me imbuiu.
Ao meu pai Carlos Eduardo “in memoriam”, pelo apoio, paciência e sabedoria com que me conduziu. Por todos os conselhos que, em sua extensa experiência de vida, soube adequar a cada situação que marcou minha trajetória. À minha esposa e companheira Arli, por haver entrado em minha vida de maneira inesperada e por estar em todos os momentos mais importantes, demonstrando seu carinho e dedicação de maneira incondicional. À minha mãe por me haver gerado e educado. Pelo incentivo nos estudos e pelo apoio nesta fase final.
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos, pela
dedicação, pela paciência e pela competência com que conduziu este trabalho.
Aos Professores Drs. Fabio e Ana Elvira Gebara, pela leitura rigorosa e
valiosas sugestões que contribuíram para o prosseguimento do meu trabalho.
Aos professores do Mestrado de Linguística da Universidade Cruzeiro
do Sul, pela dedicação e competência com que ministraram as aulas.
Aos colegas do curso, pelo companheirismo durante toda a trajetória.
Aos amigos, que não nomeei, mas que colaboraram efetivamente para a
construção deste trabalho.
A toda minha família e amigos, que celebraram a minha história.
“Tudo posso Naquele que me fortalece”.
Filipenses 4:13
O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira,
vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório: é
portanto o sujeito da enunciação uma vez que enuncia que está em jogo aqui.
HERMAN, Sérgio Eduardo. Texto, discurso e ensino: processos de leitura de produção do texto escrito e falado. 2013. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.
RESUMO
Esta dissertação, apresentada ao Programa de Mestrado em Linguística da
Universidade Cruzeiro do Sul, insere-se na Linha de Pesquisa: Texto, Discurso e
Ensino: processos de leitura e produção do texto escrito e falado e no Projeto:
Gramática, Texto e Argumentação para a Prática de Leitura e Escrita. Tem por
objeto as análises de ethos em conjunto com enunciados aportados em elementos
de Linguística Textual, como as anáforas, as catáforas, as dêixis e os operadores
argumentativos, dos três primeiros capítulos do livro Um Estudo em Vermelho, de
Arthur Conan Doyle. Os objetivos visados com essas análises são a construção e a
comprovação do ethos superior de Holmes em comparação a todos seus colegas de
trabalho, durante sua atividade profissional no final do século dezenove. As análises
dos trechos serão feitas, portanto, sempre com os trechos dos textos, elementos de
Linguística Textual e com os conceitos de ethos em conjunto, para que os resultados
finais sejam atingidos sejam condizentes com os objetivos almejados. Várias obras
foram utilizadas e consultadas, porém as principais foram dos autores Doyle (2009),
Maingueneau (2008), Amossy (2011), Koch (2012) e Cavalcante (2011).
Palavras-chave: Ethos, Anáforas, Catáforas, Dêixis; Texto, Discurso, Operadores
argumentativos.
HERMAN, Sergio Eduardo. Text, discourse and education: reading processes of production of written and spoken text. 2013. 88 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.
ABSTRACT
This dissertation has, as the object of study, the analysis of ethos in conjunction with
enunciates brought by certain elements of Textual Linguistics, just like anaphors,
cataphors, deixis, argumentative operators, from the three first chapters of the book
A Study in Scarlet, by Arthur Conan Doyle. The objectives to reach with this analysis
are the construction and verification of the superior Holmes’ ethos in comparison to
all of his workmates during his professional activity in the late years of the nineteenth
century. However, the analysis will always be based on patches from the texts, with
elements of Textual Linguistics and ethos altogether for the reached results might be
consistent with the objective pursued. Several books have been used and consulted,
although the main ones are by Doyle (2009), Maingueneau (2008), Amossy (2011),
Koch (2012) and Cavalcante (2011).
Keywords: Ethos, Anaphors, Cataphors, Deixis, Text, Discourse, Argumentative
operators.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – A morte de Sherlock Holmes . ............................................................. 23
Figura 2 – Ele ainda tinha o cachimbo entre os lábios ....................................... 26
Figura 3 – Examinou com sua lente a palavra escrita na parede, detendo-
se em cada letra com o mais minucioso rigor. ................................. 29
Figura 4 – Achei! Achei!, gritou! ........................................................................... 59
Figura 5 – Holmes fez-me um esboço dos fatos ................................................. 64
Figura 6 – Holmes tirou o relógio da Algibeira. ................................................... 71
Figura 7 – Ele segurava uma velha botina preta no ar ........................................ 82
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 10
JUSTIFICATIVA ........................................................................................................ 13
1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA .......................................................... 14
1.1 A Personagem Holmes e sua Contextualização Histórica ........................ 14
1.2 Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes – Uma breve história ................. 19
1.3 A Personalidade e Formação de Holmes .................................................... 24
1.4 Dr. Watson – Personalidade, Formação e História. ................................... 26
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..................................................................... 30
2.1 O Que é Ethos? ............................................................................................. 30
2.2 O fiador .......................................................................................................... 37
2.3 O Ethos e as Cenas da Enunciação. ........................................................... 40
2.4 Anáforas e sua Tipologia ............................................................................. 43
2.5 Catáforas ....................................................................................................... 46
2.6 Dêixis ............................................................................................................. 47
2.7 Operadores Argumentativos ....................................................................... 48
3 ANÁLISES ...................................................................................................... 60
3.1 Capítulo 1 – Mr. Sherlock Holmes ............................................................... 60
3.2 Capítulo 2 - A Ciência da Dedução .............................................................. 67
3.3 Capítulo 3 - O Mistério de Lauriston Garden .............................................. 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 84
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 87
10
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho abarca um conjunto teórico sobre a teoria do ethos iniciada há
muito tempo pelo filósofo grego Aristóteles e alguns conceitos da teoria da
Linguística Textual associada à da Análise do Discurso, disciplina que se dedica a
analisar e descrever os enunciados da conversação humana em seus mais variados
contextos e com os mais variados propósitos, sendo que ambas as teorias serão
aplicadas de forma complementar na análise da construção do ethos de Sherlock
Holmes, famoso detetive inglês do século XIX.
A teoria do ethos se destaca pela sua importância na formação da imagem de
uma pessoa real ou de um personagem trabalhado em um livro, e pode ser
construído por meio das falas da própria pessoa ou personagem, ou mesmo pelas
falas de terceiros que atribuem a este ser (real ou fictício) determinados valores
positivos ou negativos que conduzem os interlocutores a pensar sobre ele(a) de uma
certa maneira.
O ethos de um ser é tão relevante, uma vez que define quem ou o quê é o
ser, que este conceito existe e é estudado desde a antiguidade clássica, entretanto é
com o avanço e desenvolvimento das teorias linguísticas que se passou a focar a
atenção principalmente em meios de construí-lo utilizando exclusivamente recursos
textuais, sejam eles orais ou escritos; método que, embora já existente, é colocado
em relevância desde o passado recente até a atualidade.
A utilização da teoria da Linguística Textual de maneira conjugada à teoria do
ethos visa construí-lo de forma ordenada, não tomando do texto termos e
enunciados aleatoriamente, mas sim que pertençam a uma teoria já estudada e
comprovada por linguistas consagrados que tenham já tido a oportunidade de
classificar os termos em categorias específicas. A associação das duas teorias
trabalhadas por analistas do discurso de renome permite, então, que se proceda a
uma análise com maior rigor, com os operadores argumentativos, anáforas,
catáforas e dêixis englobando enunciados que embasem o ethos do detetive
Holmes.
11
A formação do trabalho se empenha em recolher enunciados contidos em
trechos do livro inicial de Doyle, o pai de Holmes, e justificá-los, analisando-os sob
os conceitos do ethos e da Linguística Textual, como os citados anteriormente,
deixando as análises realizadas nesta dissertação com o maior grau de acurácia
possível, e permitindo que a compreensão da formação da personalidade do
detetive e da forma como ele é recebido e assimilado por seus leitores tenha uma
avaliação e estudo mais empíricos e menos intuitivos.
O trabalho toma assim um rumo que afasta as ideias imprecisas que os
leitores possam fazer da imagem de Holmes e leva os leitores a compreender
melhor como Doyle consegue, utilizando-se de recursos da língua, apresentar um
personagem superior devido a sua inteligência associada a estudos diferenciados
que desenvolve na resolução de crimes de difícil solução.
Todo este aparato vem acompanhado também por uma explicitação do
contexto histórico de quando se dá a história analisada, na Inglaterra do século
dezenove, para que o leitor possa inclusive localizar-se mais apuradamente e tenha
condições de desenvolver um raciocínio abrangente e correto nas interpretações
realizadas.
Esta dissertação organiza-se, para esses objetivos, em alguns capítulos. O
capítulo um, organizado em quatro subitens, contextualiza historicamente a época
em que Holmes e seu criador Doyle viveram. Isso é importante, pois a análise do
ethos depende em larga escala dos valores vigentes no momento em que os
enunciados são produzidos, uma vez que são influenciados por esses valores, assim
como também os influenciam.
O subitem 1.3 trabalha com a formação de Holmes e sua complexa
personalidade, para que o leitor se familiarize com a personagem e os enunciados
por ela produzidos, e possa acompanhar toda a complexidade posterior, no que
concerne às análises e conceitos aplicados ao cotexto.
O subitem 1.4 contém informações sobre a formação e a história de Watson,
o médico, fiel companheiro de Holmes nas histórias e também o autor/fiador dos
textos sobre o detetive. Muito do que sabemos sobre Holmes vem por meio do que o
Dr. Watson relata e pensa sobre Holmes, de sua admiração aos modos de raciocínio
12
característicos do detetive consultor. Na verdade, Doyle utiliza Watson como um
meio para interagir e explorar a inteligência de sua personagem, permitindo a
construção de um ethos forte e atraente de Holmes.
Concluídas as apresentações e as contextualizações, inicia-se o capítulo
seis, que, por sua vez, subdivide-se em sete subseções. As três primeiras
descrevem, nesta ordem, o ethos, o fiador e o ethos em conjunto com as cenas da
enunciação. Conforme afirmado, o ethos somente se constrói plenamente, podendo
ser compreendido integralmente, se envolto em uma conjuntura social e em
determinado momento histórico, entretanto, as cenas da enunciação, trabalho
desenvolvido por Maingueneau (2008), desempenham papel decisivo na sua
concepção e compreensão.
As quatro subseções subsequentes abrangem os conceitos de Linguística
Textual, tais como os elementos dêiticos, anafóricos, catafóricos e também os
operadores argumentativos, os quais se comportam como os veículos que aportam
os enunciados e as ideias analisados no presente trabalho.
O capítulo sete abarca as análises necessárias ao trabalho, subdividindo-se
em três partes, cada qual referente a um dos três primeiros capítulos do livro Um
Estudo em Vermelho, sendo esses capítulos a fonte de matéria-prima das análises
realizadas.
As considerações finais especificam os objetivos alcançados no decorrer da
dissertação, bem como as contribuições que o trabalho possa trazer em relação à
Linguística enquanto ciência e também novos interesses em pesquisas futuras que
esta dissertação possa haver suscitado.
Por fim, o capítulo nove descreve as referências bibliograficas, que podem
ser de alguma valia e interesse para os estudantes de Linguística e mesmo
estudantes de outras áreas relacionadas aos temas trabalhados.
13
JUSTIFICATIVA
A elaboração desta dissertação justifica-se pelo interesse e pela necessidade
em se comprovar a forma pela qual o ethos de Sherlock Holmes pode ser
cientificamente construído e as técnicas linguísticas utilizadas pelo escritor da obra
de Holmes, o autor Arthur Conan Doyle, na construção do ethos dessa personagem.
O proceder desta pesquisa se mostra relevante dado que o corpus,
apresentando-se na forma de uma personagem bastante popular da literatura
policial, pode facilitar a compreensão, por parte de estudiosos, dos conceitos
abordados no curso de Mestrado em Linguística, como o ethos e os conceitos de
Linguística Textual, tais como os operadores argumentativos, anáforas, catáforas e
dêixis. Tem, portanto, como finalidade, contribuir para a ciência da Linguística e de
seus estudos em geral, visto que desenvolve seus conceitos na forma de análises
práticas de enunciados da obra abordada.
Sendo uma personagem de grande popularidade, Sherlock Holmes vem já
com uma bagagem de qualidades bem conhecidas pelo público em geral, e não
somente por seus leitores aficionados. Para quem se dedica ao estudo da
Linguística, a aplicação de conceitos tais como o ethos e de Linguística Textual à
obra inicial do autor Doyle (Um Estudo em Vermelho) coopera para que se aprenda
na prática como se podem unificar duas teorias na comprovação da imagem que
uma imensa quantidade de pessoas já tem sobre o detetive, visto que o objetivo do
mestrado é exatamente a análise discursiva aplicada a textos.
14
1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA OBRA
1.1 A Personagem Holmes e sua Contextualização Histórica
A personagem Sherlock Holmes, doravante denominado Holmes, nasceu em
06 de janeiro de 1854, em plena era vitoriana, e teve, portanto, amplas
oportunidades de desenvolver seus estudos sobre criminologia, pois a Inglaterra da
época havia se tornado a principal potência mundial, inclusive com a possessão de
colônias por todo o globo. A compreensão do detetive Holmes e de seus métodos
necessita de pelo menos um pouco de esclarecimento sobre a época em que surgiu.
Pelo menos um conhecimento rudimentar da história vitoriana é necessário para se compreender o meio social de Sherlock Holmes. É importante saber que no início do reinado de Vitória, em 1837, a Grã-Bretanha havia não apenas ajudado a criar a Revolução Industrial, como se tornara a principal nação industrializada da Europa. Durante a era vitoriana, a aquisição de territórios ultramarinos e motivos que iam do comércio à caridade impulsionaram uma arrancada exponencial do crescimento industrial. Benjamin Disraeli, após tornar-se primeiro-ministro em 1868, defendeu enfática e frequentemente a expansão, que atingiu o zênite em 1876, quando, sob sua instigação, Vitória foi coroada imperatriz da Índia. (DOYLE, 2010b, p. 20)
Embora tenha perdido o controle das treze colônias americanas, quando da
guerra de independência de 1776, promovida pelas mesmas com o apoio da França
e Espanha que retaliavam seu inimigo inglês, a Inglaterra, fazendo valer seu pujante
poderio naval e o comando que tinha dos mares, passou a conquistar territórios em
outros continentes, forjando assim um cordão colonial que envolvia todo o globo
terrestre.
Em citação do aclamado best-seller de Geoffrey Blainey, Uma Breve História
do Mundo, o historiador deixa bem evidente este fato:
A Inglaterra passou a ser mais forte nos oceanos Índico e Pacífico do que jamais havia sido na América e governava agora uma população bem superior à que havia governado ali. Quase totalmente derrotada em outro continente, havia se voltado para novos oceanos e rapidamente erguido o maior império que o mundo havia visto (BLAINEY, 2008, p. 246)
Os fatos citados ocorreram em fins do século XVIII e início do século XIX, e
levaram, portanto, ao predomínio britânico durante este século, gerado por meio de
15
um império que havia enriquecido com os lucros do comércio e exploração de suas
colônias.
A ascensão ao trono da rainha Vitória em 1837 e a continuidade ininterrupta
de seu reinado até o início do século XX, em 1901, garantiu também um período de
grande estabilidade política e econômica, prosperidade, aumento populacional e o
crescimento de uma classe média educada; e forneceu todas as condições
necessárias para que profissionais liberais aparecessem e prosperassem, como foi o
caso do detetive.
A ilha inglesa tinha também a vantagem de liderar o processo de Revolução
Industrial, processo este que se espalhou primeiramente pelo noroeste europeu e
posteriormente aos Estados Unidos, Japão e demais países do continente
americano, Ásia e África.
Como potência mundial majoritária em meio a outras potências europeias que
disputavam o primeiro posto, os ingleses tinham exércitos e marinhas alocados nos
três oceanos e em todos os continentes, suas ideias, invenções de seus cientistas e
seus produtos manufaturados como armas, máquinas, roupas e outros itens eram
exportados enquanto matérias-primas eram absorvidas na ilha pelos industriais
ansiosos por lucros.
... Os recursos naturais da Inglaterra, embora de modo algum pródigos, prestavam-se à produção de certos artigos muito comerciáveis. O clima de Lancashire era adequadamente úmido para a fiação de algodão com bom resultado; havia carvão disponível em grande quantidade, de fácil acesso; e havia algumas pequenas jazidas de minério de ferro. Uma vez bem colocada a produção fabril, podia a indústria inglesa retornar à importação das matérias primas essenciais e dos alimentos reclamados por uma população rapidamente crescente. (SAVELLE, 1968, p. 100)
Este ambiente também era propício para que Conan Doyle lograsse a
afirmação de Sherlock Holmes, pois a despeito de focos de resistência localizados, a
literatura e outros elementos culturais do país dominante em determinado período
costumam ter bom nível de inserção e aceitação nas sociedades dos países ainda
em desenvolvimento.
Obviamente, nem todas as invenções vieram da Inglaterra, vacinas francesas
e alemãs, equipamentos desenvolvidos nos Estados Unidos da América e outros
produtos também desembarcavam nos portos britânicos, entretanto os mesmos
16
britânicos, devido às circunstâncias privilegiadas em que se encontravam, eram
capazes de se utilizar mais prontamente e de aplicar estes novos recursos e ideias.
No norte da Inglaterra, especialmente a partir da década de 1780, surgiram cidades industriais cheias de máquinas engenhosas que fiavam e teciam lã ou algodão. Os visitantes de outros países se maravilhavam com o vigor de Manchester, Leeds, Birmingham e das novas cidades industriais, (BLAINEY, 2008, p. 260)
Entretanto, sua posição hegemônica como potência mundial econômica e
industrial capaz de fornecer armamentos e produtos industrializados em larga
escala, seja inventando-os, seja reproduzindo-os rapidamente e com uma qualidade
no mínimo semelhante, fez com que a Inglaterra pudesse também exportar seus
pensadores e escritores, apoiados por uma economia possante cuja moeda, a libra
esterlina, executava o mesmo papel que o dólar americano veio a possuir no século
XX.
... o capital britânico construiu a indústria têxtil indiana. Isso foi só um exemplo de uma tendência crescente, nos países de maior progresso industrial, para exportarem capitais a áreas subdesenvolvidas. Os ingleses, naturalmente, tomaram a dianteira nesse processo; entre 1815 e 1914, os ingleses investiram o equivalente a 20 bilhões de dólares no ultramar, especialmente nos Estados Unidos, na América Latina e no Império. (SAVELLE, 1998, p. 107)
Todo este processo iniciado com os ganhos territoriais do século XVIII e com
o advento da revolução industrial, processo sócio-histórico liderado pelos ingleses,
estabeleceu um verdadeiro “modo de vida ocidental”, no qual o padrão de bem-estar
e o status de pessoa bem sucedida pertenciam aos donos de capital, maquinários,
banqueiros e suas transações comerciais e outros poderosos.
Dificilmente um personagem criado por uma pessoa que eventualmente
tivesse condições financeiras para dedicar-se ao ofício de escritor, porém que
vivesse em um país periférico ou colonizado faria sucesso ou poderia regozijar-se de
uma divulgação e de uma aceitação do público como ocorreu com Sherlock Holmes.
Não se deve desfazer, entretanto, do talento de Doyle e de sua dedicação às
histórias do detetive, pois, através dos escritos biográficos do autor, sabe-se que
teve que lutar muito para firmar o ethos de seu personagem e torná-lo o mito que
logrou realizar. Todavia, o modo de vida inglês se havia tornado bastante apreciado
pelas populações dos países periféricos, e mesmo pelos países europeus
17
concorrentes; ser inglês no século XIX era como ser norte-americano no século XX,
após a segunda guerra mundial: status de cidadão do país mais rico e poderoso do
mundo.
E é fato curioso e significativo ter sido a Inglaterra, durante o século de 1750 a 1850, quase a única a beneficiar-se do ritmo acelerado da mudança industrial, atingindo os ingleses uma vanguarda que nenhuma outra nação pode ameaçar seriamente, até depois de 1900. (SAVELLE, 1998, p. 99)
Por exemplo, houve alguns detetives criados por autores franceses e norte-
americanos, como Monsieur Dupin, criado pelo americano Edgar Allan Poe ou o
detetive Lecoq, do francês Gaboriau, mas nenhum deles conseguiu consagrar-se no
mesmo nível de Sherlock Holmes; mesmo o francês, provindo do país que se
afigurava como a segunda potência mundial da época, não conseguiu fazer frente
aos apelos e atrativos de Holmes.
Estes aspectos mostrados referir-se-iam ao contexto macro do universo
sherlockiano, aspectos sociais, econômicos e históricos que embasavam e
perpassavam este universo, porém há outros aspectos igualmente importantes do
micro universo que cercava o detetive e suas aventuras os quais desempenhavam
também um papel de relevância na concepção do personagem por Doyle, e os dois
merecem atenção especial, sejam o desenvolvimento científico e o uso da
razão/raciocínio nos textos escritos.
Personagem fruto de um século no qual se presenciava um desenvolvimento
científico cada vez mais acelerado e sob a influência relativamente recente do
iluminismo e do racionalismo de René Descartes e outros filósofos, para Sherlock
Holmes o uso da razão e os expedientes derivados da ciência aos quais recorria,
como novas substâncias químicas aplicadas à Medicina Forense, a recém-inventada
extração de impressões digitais parar os ramos da polícia investigativa e outros se
mostraram ferramentas mais eficazes para seu trabalho investigativo.
Esses expedientes empregados por Holmes podiam levar a parecer que se
tratava de algum tipo de mágica, mas na verdade, nada mais eram do que os
métodos científicos aplicados aos problemas detetivescos, obviamente estes
métodos estavam sendo levados ao extremo de sua aplicabilidade pela grande
capacidade de Holmes.
18
Desnecessário dizer que a Inglaterra liderava também no que toca às
descobertas e avanços científicos, e neste quesito Sherlock era um privilegiado, pois
além de contar com todas as facilidades materiais proporcionadas por seu país e
pelo império, contava ainda com a possibilidade de acesso a uma variedade muito
grande de substâncias derivadas de plantas que se encontravam dentro dos limites
dos territórios controlados pelos ingleses, como o ópio, que se origina da papoula,
plantada e cultivada em regiões chinesas de relativo fácil acesso aos ingleses.
Os alcaloides, que ocorrem naturalmente em plantas, são conhecidos por seus poderosos efeitos fisiológicos sobre seres humanos e animais. O primeiro alcaloide a ser isolado e cristalizado foi a morfina, extraída da papoula, em 1805-06. Em 1878, Holmes poderia ter feito experimentos com vários alcaloides isolados, que tendem a ser inodoros e de gosto amargo; ao mesmo tempo, porém, não se sabia muito em definitivo sobre suas propriedades. (KLINGER, 2009, p. 28)
Da Índia, submetida ao controle britânico desde o século XVIII, conseguia
também alguns venenos por vezes utilizados em crimes que Sherlock investigava,
tornando fácil então sua identificação pelo detetive, já que havia tido a oportunidade
de tomar contato e de estudar seus efeitos no organismo humano antes que outros
estudiosos de nações menos privilegiadas pudessem havê-lo feito.
“... Eu poderia imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, veja bem, mas simplesmente movido por espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos. Para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo o tomaria com igual prontidão. Parece ter paixão por conhecimento certo e exato”. (DOYLE, 2009, p. 15)
Todo o pensamento antropocentrista reinante naquele século que fazia do
homem o centro do universo, o centro das decisões e a razão o instrumento principal
que poderia levar a humanidade a superar todos os seus problemas exercia tal
fascínio nos escritores da época que as crenças e mitos caíam por terra com rapidez
cada vez maior.
Foi igualmente o caso de Doyle, na busca de um personagem que à primeira
vista podia parecer um ser-humano comum, mas que retirava seus superpoderes do
conhecimento e do raciocínio lógico, sem recorrer a entidades ou mesmo santos ou
mitos, que colocava em questão os atos das pessoas e dos possíveis suspeitos, e
que era capaz de fazer suposições baseadas em fatos e circunstâncias sem se
deixar influenciar de forma supersticiosa, por mais estranhos que os fatos se
mostrassem, era justamente o que o grande público da época desejava, pois viviam
19
também a atmosfera do desenvolvimento e desejavam romper com os grilhões de
um universo incompreensível, que não pudesse ser explicado pela razão e pela
lógica.
Habitando este contexto altamente científico e racional, amparado por um
sistema político, econômico e cultural de primeira ordem proporcionado por uma
pátria que lhe permitia desenvolver todo seu potencial, Holmes pode ter
desenvolvidas e avalizadas através de seus métodos e do talento de Doyle todas
suas habilidades, tornar-se mundialmente conhecido e dar ao público aquilo que ele
realmente desejava, histórias de qualidade incomparável perfeitamente coadunadas
com a ideologia predominante em seu tempo.
1.2 Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes – Uma breve história
O personagem mostrado nos livros de Arthur Conan Doyle representado pelo
detetive Sherlock Holmes foi baseado, pelo autor, em seu professor de anatomia da
Universidade de Edimburgo.
Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, estudou nesta
universidade de 1876 a 1881, graduando-se em medicina nesta universidade, e teve
um professor chamado Dr. Joseph Bell cujos métodos didáticos se mostravam
extremamente originais.
Exemplificando: quando do momento da dissecação de um corpo para a
realização de um estudo anatômico ou mesmo para uma autópsia, Mr. Bell utilizava-
se de métodos observacionais muito pouco conhecidos, como a minúcia do formato
de uma perfuração fatal, ou não, mas cujo detalhismo na observação poderia ajudar
a identificar o tipo de arma utilizada, ou mesmo o cheiro dos lábios do morto que
poderia acusar a intoxicação por algum tipo de veneno.
Doyle impressionou-se com a capacidade de seu professor e com a eficácia
de seus métodos, o que o levou a refletir sobre a possível utilidade prática de tais
ações, até mesmo fora do campo da medicina, iniciando um processo de elaboração
que o levaria mais tarde a criar Sherlock Holmes e seus métodos mirabolantes,
porém altamente eficientes.
20
Após formar-se na universidade Doyle veio a estabelecer-se em Plymouth,
sudoeste inglês, em 1882, numa tentativa de clinicar em parceria com um colega
seu de nome George Budd. Entretanto a parceria não foi bem sucedida devido a
problemas de relacionamento entre os dois. Decidido a romper a sociedade, Dr.
Doyle se muda para a cidade de Portsmouth, sul da Inglaterra, em julho do mesmo
ano, onde recomeça a clinicar na rua Elm Grove.
Entretanto, foi-lhe muito difícil este início, não conseguindo conquistar muitos
clientes que lhe compensassem todo o custo da instalação do consultório e todo o
investimento realizado em sua formação, o que, por consequência, tornou difícil até
mesmo sua sobrevivência na cidade inglesa.
Dr. Doyle passou então a despender seus momentos de ócio no consultório, à
espera de clientes que não apareciam, na escrita de alguns ensaios de literatura
ficcional. Foi quando lhe ocorreu escrever as histórias de um detetive que se
servisse de métodos não-ortodoxos na resolução dos casos de seus clientes,
métodos esses baseados em inferências e deduções utilizadas por seu ex-professor,
o Dr. Bell.
Assim nasceu a personagem Sherlock Holmes, descrito no primeiro livro
escrito pelo Dr. Doyle, “Um Estudo em Vermelho” (título em língua inglesa: A Study
in Scarlet), no qual ele relata a história do detetive Sherlock Holmes no momento em
que este trava conhecimento com um médico chamado Dr. Watson, o qual havia
servido no exército inglês em campanhas no Afeganistão, mas que, por ser ferido
seriamente em batalha e passar por diversos outros sofrimentos durante sua
convalescença, apresentava a saúde bastante combalida, encontrando-se em
período de licença e com direito a uma pequena pensão do governo britânico. Aqui,
Watson descreve um pouco de seus sofrimentos e privações durante a campanha
do Afeganistão:
A campanha rendeu honraria e promoção a muitos, mas para mim resultou apenas em infortúnio e desgraça. Fui removido de minha brigada e incorporado aos Berkshires, com os quais servi na batalha fatal de Maiwand, Ali fui atingido no ombro por uma bala de jezail, que estilhaçou o osso e roçou a artéria subclávia. Teria caído nas mãos dos ghazis assassinos, não tivessem sido a devoção e a coragem demonstradas por Murray, meu ordenança, que me jogou de través sobre um cavalo de carga e conseguiu me levar em segurança até as linhas britânicas... me reanimei, e já me restabelecera a ponto de ser capaz de caminhar pelas enfermarias,
21
e até de tomar um pouco de sol na varanda, quando fui atingido pela febre entérica, aquela maldição de nossas possessões indianas. (DOYLE, 2009, p. 11-12)
Durante todas as aventuras de Holmes, seu fiel companheiro passa a ser
Watson. Aproveitando-se dos longos meses de licença do exército a que teve direito
para recuperar-se dos ferimentos passou a seguir o detetive, após um breve período
inicial de estranheza para com Holmes, em quase todas as suas aventuras,
narrando-as e também tomando parte ativa na maioria delas.
Na verdade, o Dr. Watson era como uma encarnação literária de Arthur
Conan Doyle, e isso pode ser percebido, inclusive, pelo fato de ambos serem
médicos de profissão e também pelo seu interesse mútuo na resolução de casos
criminais.
Nas aventuras de Holmes, o prisma do Dr. Watson é o principal ponto de vista
que nos apresenta o modo de ser do detetive, mesmo quando Holmes fala, é
através da voz de Watson que ele expressa suas ideias, seu raciocínio e mesmo
suas manias. Dr. Watson se preocupa mesmo com a saúde de seu amigo, serve-o
como assistente, complementa seus conhecimentos de biologia com sua formação
em medicina e ajuda a promover a autoimagem de Holmes como um dos
personagens mais influentes da literatura policial de todos os tempos.
O Dr. Doyle publica esta primeira história na revista inglesa Beeton’s
Christmas Annual de 1887, feito que se revelou um grande sucesso para as histórias
do detetive, tornando-o inicialmente muito conhecido, e que também o fez cair nas
graças dos leitores que logo formariam a base de fãs que proliferaria pela Inglaterra
e pelo mundo.
Arthur Conan Doyle chegou a escrever a seu ex-professor universitário, Dr.
Joseph Bell, para informar-lhe como havia engendrado o detetive Sherlock Holmes,
dizendo que tomara emprestado de seu mestre os métodos dedutivos e de
inferência por ele usados em suas aulas e pesquisas e os colocara no centro da
personalidade do novo detetive, construindo assim um homem de extraordinária
capacidade intelectual e que, a exemplo do trabalho do Dr. Joseph Bell em prol da
medicina, dedicava-se a combater inteligente e eficientemente o crime.
22
Arthur Doyle continuou a escrever outros contos e histórias de Holmes nos
anos que se seguiram, enquanto tentava a sorte como médico. Estas outras
histórias foram publicadas em outra revista, a Strand Magazine.
Doyle passou então a viver mais por conta de suas histórias do que pela
medicina, uma vez que os pacientes eram raros em sua prática médica de
Portsmouth, não lhe proporcionando os meios financeiros necessários para subsistir
somente pela prática da medicina oftálmica.
Casou-se, finalmente, com Louise Hawkins em 1885, casamento do qual
resultaram dois filhos, Mary Louise e Arthur Alleyne Kingsley, e, na década de 90 do
século 19, estabeleceu-se em Londres com o intuito de trabalhar como
oftalmologista, já que no ano de 1890 havia passado uma estadia em Viena
estudando e especializando-se na área.
Continuou a escrever as histórias de Holmes enquanto, novamente como em
seu período em Portsmouth, aguardava novos pacientes que terminaram por repetir
a atitude dos da cidade anterior, o que caracterizou outro insucesso seu como
médico, desta vez na capital inglesa.
Doyle, neste ínterim, havia se tornado conhecido escritor devido a seu
personagem, porém desenvolvia também histórias de outros personagens que lhe
proporcionavam algum retorno financeiro, e por crer que o ego de Holmes havia se
tornado muito grande, decidiu assassiná-lo.
Na história “O Problema Final”, Holmes enfrenta seu pior inimigo, o professor
Moriarty, que era um professor universitário famoso no meio acadêmico, um fino
intelectual de variados talentos que possuía extraordinária inteligência e apurada
memória, mas que tinha uma tendência marcadamente má e grande vontade de
utilizar seus dotes extraordinários para o mal e também em benefício próprio.
Holmes, inclusive, acreditava que o homem estava envolvido em diversos crimes
aparentemente sem conexão. O professor Moriarty era também um excelente
pugilista.
O embate dos dois ocorre acima das cataratas Reichenbach, na Suíça, local
onde terminam por enfrentar-se mesmo fisicamente e, quando os dois caem nas
23
cataratas, Arthur Doyle conclui, então, seu intento de eliminar o detetive mais
famoso da história por meio de uma cena de morte épica e digna de um detetive tão
grandioso como Sherlock Holmes.
Figura 1 – A morte de Sherlock Holmes (in: Doyle, 2010a, p. 366).
Ocorre, entretanto, que os ávidos leitores e adeptos de Sherlock não se
resignaram e não aceitaram o fim de seu ídolo tão facilmente; eles protestaram
então com veemência pelo seu retorno imediato, qualquer que fosse o subterfúgio
que Doyle tivesse que inculcar para ressuscitá-lo.
Arthur Conan Doyle foi forçado a forjar o reaparecimento do detetive em uma
nova série de histórias, o que reforçou a imagem do detetive como um ser superior,
que além de possuir as tão propaladas habilidades da dedução e uma inteligência
muito acima da média, passou agora a contar com uma aura de invencibilidade até
mesmo contra a morte.
Holmes volta então a atuar como detetive particular consultor nos contos e
romances posteriores de Doyle, reacendendo a chama que havia iluminado seu
glorioso passado até sua morte nas cataratas de Reichenbach.
Novamente, o narrador e grande responsável pelas histórias de Sherlock
Holmes volta a ser seu amigo e incansável companheiro de aventuras Dr. Watson,
que havia ficado muito deprimido com sua suposta morte e que, não obstante, o
recebe com grande surpresa e alegria quando de sua reaparição, visto que a queda
24
nas cataratas facilmente deveria tê-lo trucidado, a ele e ao terrível professor
Moriarty.
1.3 A Personalidade e Formação de Holmes
A personalidade complexa de Sherlock Holmes, se bem analisada, pode levar
também a uma melhor compreensão do ethos do detetive, pois Holmes tem várias
características psicológicas que ajudam a defini-lo e caracterizá-lo dentro da imagem
amplamente divulgada perante o público.
É extremamente concentrado, costuma trancar-se em casa para estudar suas
fórmulas químicas com o único e exclusivo fito de aplicar estes estudos a seus
casos de investigação criminal. Às vezes fica por muitas horas, ou até mesmo dias
inteiros, sentado em sua poltrona, degustando seu cachimbo favorito enquanto
pensa em algum caso um pouco mais difícil que desafia sua inteligência e
conhecimentos, envolto em uma atmosfera de fumaça de tabaco que, segundo ele
próprio, o ajuda a resolver os casos.
O detetive nunca teve muitos amigos durante toda sua vida, mas os poucos
que teve, como o Dr. Watson, por exemplo, são bastante estimados e cuidados,
mesmo sendo Holmes de uma aparência exterior fria e calculista.
A formação de Sherlock Holmes é bastante eclética, já que obviamente não
existia uma universidade de formação de detetives particulares consultores, portanto
ele teve que estudar diferentes áreas, como química, biologia, história inglesa,
geologia e outras ciências que tivessem o dom de contribuir para a formação de uma
mente totalmente voltada para a resolução de crimes. Watson, em seu período
inicial de convivência com Holmes ainda tenta descobrir a profissão do novo amigo
atinando com o conjunto de conhecimentos que Holmes possui, mas termina por
desistir.
Enumerei em minha própria mente os pontos sobre os quais me mostrara ser excepcionalmente bem informado. Cheguei a pegar um lápis e anotá-los. Não pude deixar de sorrir quando conclui o documento. Ficou assim: 1- Conhecimento de literatura – Zero 2- “ “ de filosofia – Zero 3- “ “ de astronomia – Zero 4- “ “ política – Fraco
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5- “ “botânica – Variável. Versado em beladona, ópio, e venenos em geral. Não sabe nada de jardinagem prática.
6- “ “geologia – Prático, mas limitado. Distingue diferentes tipos de solo num relance. Após caminhadas, mostrou-me salpicos em suas calças e me disse, com base em sua cor e consistência, em que parte de Londres os recebera.
7- “ “Química – profundo. 8- “ “Anatomia – preciso, mas assistemático. 9- “ “Literatura sensacionalista – Imenso. Parece saber cada
detalhe de cada horror perpetrado no século. 10- ” “Toca violino bem. 11- ” “É perito em singlestick, boxeador e espadachim 12- “ “ Tem bom conhecimento prático do direito inglês
(DOYLE, 2009, p. 36)
Para Sherlock, todo o conhecimento que adquirimos necessariamente ocupa
um espaço na memória, logo, para ele, a aquisição de conhecimentos que não
tivessem nenhuma conexão com suas atividades profissionais somente poderiam
estorvar sua capacidade para solucionar os casos que se apresentassem durante
sua trajetória como detetive consultor, uma vez que esses conhecimentos gerais
poderiam fazer com que a bagagem necessária contida em sua memória
simplesmente a abandonasse. Holmes deixa esse ponto de vista bem claro quando
está em um debate com Watson sobre os conhecimentos necessários a um homem.
Um tolo recolhe todo tipo de trastes com que depara, de modo que o conhecimento que lhe poderia ser útil fica atravancado, ou na melhor das hipóteses misturado com muitas outras coisas, de modo que ele tem dificuldade em localizá-lo. O trabalhador competente, porém, é muito cuidadoso com relação ao que leva para seu cérebro-sótão. Não guardará nada lá a não ser as ferramentas que possam ajudá-lo em seu trabalho, mas dessas tem grande sortimento, e todas na mais perfeita ordem. È um erro pensar que o quartinho tem paredes elásticas e que pode se expandir até qualquer medida. Acredite que chega uma hora em que para cada novo conhecimento, você esquece um coisa que sabia antes. É da maior importância, portanto, não ter fatos inúteis expulsando os úteis.” (DOYLE, 2009, p. 35)
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Figura 2 – “Ele ainda tinha o cachimbo entre os lábios” (in:
Doyle, 2010, p. 258)
Outra característica de Holmes é o fato de ser um celibatário convicto. Para
ele, as mulheres nada mais são que uma fonte de distração que somente
constituiriam um obstáculo ao seu desempenho como profissional. Holmes crê até
mesmo que as mulheres não possuem o mesmo nível intelectual dos homens,
quando em um de seus casos se vê enganado pela astúcia de uma adversária, de
um cliente seu, Irene Adler, o que faz, a partir daí, seu respeito pelo sexo feminino
aumentar sensivelmente.
Holmes é caracterizado ao longo de todo o resto do Cânone como beirando a misoginia. “Nunca se pode confiar inteiramente nas mulheres – pelo menos nas melhores”, profere ele em O Signo dos Quatro. “Não sou um admirador entusiástico do sexo feminino, como você bem sabe Watson,” observa em O Vale do Medo. Os sentimentos que revela em relação a Irene, portanto, acabam por fazer marcado contraste com sua imagem usual, e talvez tenha sido sagaz da parte de Watson introduzi-lo aos leitores na Strand Magazine mostrando essa faceta mais amena. (DOYLE, 2010b, P. 96)
1.4 Dr. Watson – Personalidade, Formação e História.
Dr. Watson, a personificação literária de Arthur Conan Doyle, tem um bom
nível intelectual e é bastante esclarecido e, embora possua uma excelente formação
27
como médico, frequentemente se vê em apuros para compreender o raciocínio
prodigioso de seu amigo. Temos um exemplo disso quando Watson, após casar-se
com Mary e ficar um bom tempo sem contato direto com Holmes, faz-lhe uma visita
inesperada ao voltar da casa de um paciente. Watson entra no apartamento que um
dia também fora seu e se encontra com Holmes, tomando assento na poltrona do
amigo; então Holmes lhe diz:
“A vida conjugal lhe faz bem”, observou. “Acredito, Watson, que você ganhou uns três quilos e meio desde que o vi pela última vez.”
“Três”, respondi.
“Realmente, eu devia ter pensado um pouco mais. Só um pouquinho mais, acho eu, Watson. E, pelo que observo, voltou a clinicar. Não me contou que pretendia voltar ao trabalho.”
Então, como sabe?”
“Vejo, deduzo isso. Como sei que você tem se molhado muito ultimamente e que tem uma criada das mais ineptas e desleixadas?”
“Meu caro Holmes”, exclamei, “isto é demais. Não tenho dúvida de que você teria ido parar na fogueira se tivesse vivido alguns séculos atrás.” (DOYLE, 2010b, p. 73)
Ele se formou na universidade de Edimburgo e engajou-se no exército, sendo
logo em seguida enviado para uma missão militar a serviço das forças coloniais
inglesas no Afeganistão. Lá chegando, em uma de suas primeiras missões como
médico sofre um disparo de um dos rebeldes afegãos que o atinge bem no ombro e
o deixa gravemente ferido.
Watson foi levado a um hospital de campanha e tratado para a cura de seu
ferimento, porém, logo em seguida, ele se contamina com a bactéria da febre
entérica (febre tifoide) e passa vários meses entre a vida e a morte.
Aos poucos vai se recuperando, mesmo desenganado pelos médicos, pois
que a febre entérica, naqueles tempos, era muito grave e sem nenhum tratamento
que não fosse a hidratação constante dos doentes para que não morressem por falta
de água nos processos bioquímicos do organismo.
Quando finalmente se recupera o suficiente para levantar-se do leito e
caminhar até a varanda, entretanto em um estado físico bastante debilitado, com
aparência emaciada e ainda muito fraco, os médicos decidem que Watson não tem
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condições de prosseguir em campanha junto ao exército britânico, sendo, portanto,
enviado de volta a Londres, capital do império, com uma pensão e nove meses
extras para sua total recuperação.
Watson hospedou-se no hotel no Strand – uma avenida em Londres – em um
hotel caro, mas que oferecia muito conforto e era bem o que Watson necessitava, já
que sua saúde estava bastante delicada. Esta situação, contudo não estava de
acordo com a disponibilidade financeira de Watson, pois a pensão que recebia era
modesta e não era suficiente para todos os gastos de se manter em um hotel todos
os dias.
Foi no momento em que decidiu que deveria mudar seus hábitos que
encontrou Stamford, um conhecido que o viu tomando um drinque no Criterion Bar e
foi ter com ele. Neste encontro, comenta com Stamford sobre sua situação e sua
necessidade de encontrar algum companheiro para dividir um aluguel em Londres,
sabendo então da existência de um sujeito chamado Sherlock Holmes que também
buscava alguém para compartir um aluguel.
O estado de minhas finanças tornou-se tão alarmante que logo compreendi que devia ou deixar a metrópole e ir morar em algum lugar na zona rural, ou fazer uma completa alteração em meu estilo de vida... No mesmo dia em que chegara a esta conclusão, encontrava-me no Criterion Bar quando alguém me deu um tapinha no ombro, e, virando-me, reconheci o jovem Stamford... (DOYLE, 2009, p. 12)
Partem, então, Watson e Stamford, no dia seguinte, ao meio-dia, em direção
da universidade onde Holmes se encontrava fazendo suas experiências, para que os
dois possam ser apresentados por Stamford e verificar se têm hábitos que não
estorvem a convivência a fim de, posteriormente, visitar os aposentos da Baker
Street.
O próximo capítulo discorrerá sobre as questões teóricas de cunho técnico da
presente dissertação, começando pela questão do ethos.
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Figura 3 – “Examinou com sua lente a palavra escrita na parede, detendo-se
em cada letra com o mais minucioso rigor.” (in: Doyle, 2009, p. 67)
30
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 O Que é Ethos?
Aristóteles já trabalhava com a conceituação do ethos, preocupando-se com a
imagem que um enunciador deveria transmitir a seus interlocutores, a maneira como
deveria se comportar, as palavras utilizadas, o modo de se apresentar, de olhar e
outros atributos que deveria possuir ou fingir possuir se desejasse convencer seu
auditório.
O ethos é, portanto, um conceito que remonta à antiga Grécia, aos estudos do
filósofo Aristóteles, que já discutia sobre o ethos de um orador específico e cujo
plural será encontrado como ethé. Aristóteles se referia ao ethos retórico, àquele
que era mostrado aos interlocutores no decorrer de seu discurso com a função de
convencê-los de determinadas características que aquele enunciador tinha a
intenção de afirmar. Este tipo de ethos trabalhado por Aristóteles chama-se “ethos
retórico”.
Consiste em causar boa impressão mediante a forma com que se constrói o discurso, em dar uma boa imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança. O destinatário deve, assim, atribuir certas propriedades à instância que é posta como fonte do acontecimento enunciativo (MAINGUENEAU, 2008, p. 56)
A análise ética utilizada por Aristóteles compreendia, além do ethos retórico
derivado do discurso, todas as características que o enunciador poderia demonstrar
como pontos passíveis de serem analisados por seus interlocutores na construção
do ethos daquele enunciador, ou seja, sua imagem perante o auditório. Esses
pontos poderiam ser o tom de voz, a modulação da fala, a escolha de palavras e dos
tipos de argumentos, bem como os gestos utilizados, a maneira de olhar, postura
física, adornos corporais usados e outros elementos que, apesar de não serem
essencialmente discursivos, podem ser bastante eloquentes na apreciação e
construção de uma imagem perante o público.
A construção e interpretação do ethos pelos interlocutores ocorrem de forma
dinâmica, constantemente pondo em movimento as paixões, os sentimentos e a
31
razão do interlocutor. Estas três características tomam parte do processo de
construção do ethos e foram nomeadas por Aristóteles. Maingueneau as cita em
seus trabalhos sobre o ethos. Segundo Maingueneau (2008), “os argumentos
correspondem ao logos; as paixões, ao pathos; os costumes ao ethos”.
Sendo assim, o logos faria referência à razão, ao raciocínio ao qual os
interlocutores procederiam na análise da imagem ética e também aos argumentos
utilizados pelo enunciador; na retórica de Aristóteles encontramos as referências que
o filósofo constrói acerca destes elementos. Segundo Aristóteles (2012, p. 14),
persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece
verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular.
Ainda conforme Aristóteles, temos:
Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio. (ARISTÓTELES, 2012, p. 13)
Este é o pathos, o qual faria referência às emoções despertadas pelo
enunciador em seus interlocutores, emoções às quais os interlocutores recorrem
durante a recepção e formulação ética e mesmo às emoções demonstradas pelo
enunciador. Já o ethos faria referência ao caráter do enunciador ou daquele sobre o
qual os interlocutores desejam formar uma imagem, ou construir o ethos, uma vez
que este caráter se reflete no comportamento daquele enunciador, sendo ainda que
o ethos daquele público ao qual o orador/enunciador se dirige deve ser considerado
se este quiser ser bem sucedido. Segundo Aristóteles (2012, p. 13), “persuade-se
pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de
o orador ser digno de fé”.
Se forem analisadas essas colocações relativas ao ethos retórico, perceber-
se-á que elas ainda fazem bastante sentido na atualidade, já que com os novos
meios midiáticos, temos acesso não somente ao discurso falado ou escrito de um
enunciador, mas também à sua imagem física e a todo o aparato visual que nos
influencia na construção de sua imagem. A análise ética de um indivíduo ou mesmo
de um grupo continua tão importante e recorrente quanto o era nos tempos de
aristotélicos, visto que os seres humanos continuam a se utilizar, e com cada vez
32
mais meios para fazê-lo, destas mesmas características na tentativa de construir
imagens de indivíduos ou grupos de indivíduos os mais diversos.
Há ainda outros pontos relevantes no processo de formulação e construção
do ethos que se referem especificamente ao locutor/orador; e estes pontos vitais
podem ser amplamente manipulados pelos mesmos quando proferindo seus
discursos. O enunciador, ou segundo Aristóteles (2012), orador, baseia-se em três
qualidades fundamentais para mobilizar a afetividade dos interlocutores e
conquistar-lhes a confiança: a prudência, ou phronesis; a virtude, ou areté e a
benevolência, ou eunóia.
Em seu livro, Maingueneau (2008) cita este trecho da “Retórica” de
Aristóteles:
Quanto aos oradores, eles inspiram confiança por três razões; elas são as únicas que, postas de lado as demonstrações, determinam nossa crença: a prudência (phronesis), a virtude (areté) e a benevolência (eunóia). Se, com efeito, os oradores alteram a verdade do que dizem, quando falam ou aconselham, é por todas as razões ao mesmo tempo ou por uma dentre elas: ou, por imprudência, não pensam o justo; ou, pensando o justo, calam sua opinião por maldade; ou, embora prudentes e honestos, não são benevolentes... (ARISTÓTELES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 57-58)
Conforme explica Maingueneau (2008), o ethos retórico aristotélico expresso
por um orador deve buscar convencer, dentro deste tripé de qualidades mencionado,
seu auditório, ou seja, um grupo de indivíduos, de que é um ser digno de confiança e
credibilidade e cujo caráter está acima de qualquer suspeita, se quiser alcançar o
êxito do convencimento. Aristóteles trabalhava muito mais com a questão da
construção do ethos pelo grupo de indivíduos, e não com o indivíduo considerado
isoladamente, já que em sua Retórica ele se voltava mais para a política e o jurídico,
ou seja, o convencimento e negociação verbal entre muitos homens.
Mas a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários. De sorte que, se os juízos não se fizerem como convém, a verdade e a justiça serão necessariamente vencidas pelos seus contrários, e isso é digno de censura. Além disso, mesmo que tivéssemos a ciência mais exata não nos seria fácil persuadir com ela certos auditórios. Pois o discurso científico é próprio do ensino, e o ensino é aqui impossível, visto ser necessário que as provas por persuasão e os raciocínios se formem de argumentos comuns, a propósito da comunicação com as multidões. (ARISTÓTELES, 2012, p. 10)
O orador, para Aristóteles (2012), ou enunciador, para Maingueneau (2008),
necessita conhecer o ethos do grupo de indivíduos ao qual se dirige se quiser
33
aumentar suas chances de convencê-los de sua sinceridade, mesmo que esta seja
uma sinceridade apenas aparente e não corresponda absolutamente às suas
intenções ocultas; o ethos mostrado não necessariamente corresponde ao
verdadeiro ethos, assim como o ethos formado na mente dos interlocutores pode
não corresponder ao ethos mostrado ou ao ethos real. Maingueneau (2008)
esclarece este ponto:
São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão (...) O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso, eu não sou aquilo. (BARTHES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 59)
Ter-lhes-á a confiança muito mais facilmente, de fato, se puder demonstrar e
fazê-los crer que o ethos deste auditório é parecido ou pelo menos muito
semelhante ao seu. Conforme Maingueneau (2008) explana:
Como a virtude não é considerada em todos os lugares nem por todas as pessoas da mesma maneira, é em função de seu auditório que o orador construirá uma imagem de si conforme o que é considerado como virtude. (BARTHES apud MAINGUENEAU, 2008, p. 58)
Portanto, conforme explica Maingueneau (2008), o conhecimento do ethos do
grupo de indivíduos e o sucesso do enunciador em construir uma imagem o mais
condizente possível com este ethos, garantirá um maior ou menor grau de adesão
destes indivíduos ao discurso do enunciador. Entretanto, a persuasão completa do
auditório, pode-se dizer, somente pode ser conseguida se o enunciador (orador)
conseguir se tornar parte do grupo, mostrar-lhes que seu ethos é o mesmo que o
deles, desta forma sendo capaz de jogar com sua afetividade e emoções, pois será
também parte integrante do grupo. Este jogo discursivo por parte do
orador/enunciador trabalha especificamente no sentido de persuadir os
interlocutores; e as emoções (pathos) com as quais lida quando da tentativa de
persuasão do auditório são da maior importância no processo. Segundo
Maingueneau (2008):
A persuasão só é obtida se o auditório constatar no orador o mesmo ethos que vê em si mesmo: persuadir consistirá em fazer passar em seu discurso o ethos característico do auditório, para dar-lhe a impressão de que é um dos seus que se dirige a ele. (MAINGUENEAU, 2008, p.58)
Logicamente, o conhecimento extradiscursivo sobre a pessoa do enunciador
influencia bastante na concepção de seu ethos, porém quando se trabalha com o
34
ethos discursivo deve-se tomar em consideração o fato de que ele se faz pela
enunciação, a construção do ethos discursivo ocorre no momento em que o
processo se desenvolve, e em que, ao mesmo tempo, os interlocutores interpretam
os enunciados.
Maingueneau (2008) cita Ducrot para deixar mais claro os processos
enunciativos de construção do ethos. Segundo Ducrot (apud Maingueneau, 2008, p.
59) o conceito de ethos envolve dois locutores, ou enunciadores, “o locutor-L (= o
enunciador) e o locutor-lambda (o locutor enquanto ser do mundo), que atravessa a
distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer: o ethos se mostra na
enunciação”.
O locutor lambda é o ser do mundo que se encontra efetivamente no espaço,
e cujo caráter, se já conhecido do público, dar-lhes-ia ideias prévias sobre sua
pessoa, seria uma das maneiras de pensar em ethos extradiscursivo, mais
especificamente neste caso, o ethos pré-discursivo, para Maingueneau (2008) ou
ethos prévio, para Amossy (2011). Amossy se utiliza desta definição e exemplifica
em seu livro “Imagens de Si no Discurso”:
Certamente há tipos de discurso e circunstâncias para as quais não se presume que o coenunciador disponha de representações prévias do ethos do enunciador: por exemplo, quando abre um romance. Mas as coisas são diferentes no domínio político, por exemplo, quando os enunciadores, que ocupam constantemente a cena midiática, são associados a um ethos que cada enunciado pode confirmar ou infirmar. (AMOSSY, 2011, p. 71)
Já o locutor L é aquele que constrói o ethos no momento em que o
enunciador constrói seus enunciados, ou seja, no momento da enunciação, sendo
este o próprio ethos discursivo.
Maingueneau (2008) faz uma citação conclusiva de Ducrot:
Não se trata de afirmações elogiosas que o orador pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu discurso, afirmações que correm o risco, ao contrário, de chocar o auditório, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, dos argumentos... Em minha terminologia, direi que o ethos está associado a L, o locutor enquanto tal: é na medida em que é fonte de enunciação que ele se vê revestido de certos caracteres que, em consequência, tornam essa enunciação aceitável ou refutável (DUCROT apud MAINGUENEAU, 2008, p.59).
35
Ainda Amossy, em seu livro “Imagens de Si no Discurso – a construção do
ethos”, também cita Ducrot e sua concepção:
Oswald Ducrot conceitua esse ethos por meio de uma distinção entre “locutor-L” e “locutor lambda”, que recobre a distinção dos pragmaticistas entre mostrar e dizer: o ethos se mostra, ele não é dito. (AMOSSY, 2011, p. 71)
Em suma, embora a noção de ethos esteja ligada à construção da identidade,
o ethos discursivo (ethos retórico para Aristóteles), está intrinsecamente ligado à
construção da identidade por meio de elementos intradiscursivos, o que não exclui o
fato de que esta construção possa ser levada a efeito em conjunto com elementos
extradiscursivos, os quais incluem elementos visuais diversos, como mímicas,
vestimentas e outros já citados.
Voltando novamente ao aspecto intradiscursivo do ethos, pode-se afirmar que
o ethos apresentado no discurso também depende de ser percebido pelos
interlocutores através do “tom” do enunciador, dentro do movimento enunciação-
percepção, tom este que se pode aplicar tanto ao texto oral como ao escrito, o que
evidencia uma corporalidade enunciante, ou seja, um corpo que se move em um
espaço social e que produz enunciados, legitimando então as proposições feitas
nestes enunciados, ou seja, cada vez que o enunciador toma a palavra ele gera um
movimento discursivo que faz com que seu interlocutor atribua valores positivos ou
negativos a este discurso, e consequentemente a este enunciador.
A legitimação do enunciado não passa somente pela articulação de proposições, ela é habitada pela evidência de uma corporalidade que se dá no próprio movimento de leitura. (MAINGUENEAU, 2008, p. 53)
Mesmo com a noção de ethos se mostrando um conceito relativamente
simples, existem algumas dificuldades em sua caracterização que concernem a
estas características visuais e também a outras características, e é aí que vamos
analisar um pouco o aspecto extradiscursivo já mencionado, como a ideia que os
interlocutores fazem previamente do locutor, ou mesmo ideias provindas do tipo de
gênero discursivo no qual o discurso lido ou ouvido se inscreve. Sim, movimentos
corporais, adereços utilizados, formas de falar acompanham o discurso e influem na
construção do ethos pelo interlocutor, o ato da apreciação audiovisual será peça-
chave deste processo. Outrossim, o posicionamento ideológico ou mesmo o gênero
36
do discurso ao qual pertence o texto podem gerar uma expectativa que influirá na
concepção do ethos.
Segundo Maingueneau (2008):
O problema é mais delicado se considerarmos que o ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal, articula verbal e não-verbal para provocar no destinatário efeitos que não decorrem apenas das palavras. (MAINGUENEAU, 2008, p. 61)
Mesmo o interlocutor não conhecendo ou não tendo formado previamente
nenhuma ideia ou imagem, o fato de tomar ciência do tipo de gênero lhe fornecerá
subsídios para imaginar o que está por vir. Se o enunciatário abre um romance de
ficção científica, por exemplo, embora desconhecendo autor e obra, imaginará que
elementos próprios deste gênero serão apresentados na obra. Se for a uma palestra
política ou mesmo a uma peça teatral romântica, também se predispõe a ouvir um
discurso repleto de seus elementos peculiares. Conforme Maingueneau (2008):
De qualquer forma, mesmo que o destinatário não saiba nada antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 60)
Sem o objetivo de esgotar o assunto, embora com a intenção de concluir este
tópico, faz-se necessária ainda a colocação de alguns conceitos sobre o ethos
revelados por Auchlin na obra de Mainguenau (2008), pois como sabemos, o ethos
depende tanto do locutor quanto de sua percepção pelos interlocutores. No decorrer
deste processo, contanto se vise a uma transmissão de determinado ethos que se
queira afirmar, muitas coisas podem dar errado, devido a uma infinidade de fatores
que às vezes fogem ao controle do locutor, e o ethos incorporado pelos
interlocutores pode ser deformado ou até mesmo completamente o contrário do que
se objetivou inicialmente.
Maingueneau (2008, p. 61-62) cita Auchlin que desenvolve então argumentos
que podem explicar esta variação no processo de construção do ethos. Ele relata
que o ethos pode ser mais ou menos carnal, abstrato ou concreto e afirma que a
própria tradução do termo ethos pode ser posta em jogo. Discute também o caráter
moral da prova pelo ethos, em que questiona se a vida do locutor analisado é
virtuosa, se ele é um homem de bem, como se fazia na retórica latina (mas não na
aristotélica) e acrescenta ainda que o ethos pode ser concebido como mais ou
37
menos fixo, convencional vs. emergente ou singular. Auchlin chama todas estas
variações possíveis na concepção do termo como zonas de variação.
Maingueneau (2008) complementa o raciocínio de Auchlin em seu trabalho,
confirmando a extrema variação à qual o termo ethos está sujeito:
De todo modo, desde a origem, a noção de ethos não tem um valor unívoco. O termo “ethos”, em grego, tem um sentido pouco específico e se presta a múltiplos investimentos: em retórica, em moral, em política, em música... Já em Aristóteles, o ethos é objeto de tratamentos diferentes na Política e na Retórica, e vimos que, nesse último livro, ele designa ora propriedades associadas ao orador enquanto ele enuncia, ora disposições estáveis atribuídas a indivíduos inseridos em comunidades. (MAINGUENEAU, 2008, p. 62)
Vale ainda salientar aqui, para efeito de complementar a compreensão sobre
o conceito de ethos, a colocação de Kerbrat-Orechionni, também apresentada no
livro de Maingueneau, em que ela faz referência ao ethos comunitário e a sua
caracterização por meio de hábitos locucionais compartilhados.
Pode-se, de fato, supor razoavelmente que os diferentes comportamentos de uma mesma comunidade obedecem a alguma coerência profunda, e esperar que sua descrição sistemática permita extrair o “perfil comunicativo”, o ethos, dessa comunidade (isto é, sua maneira de se comportar e de apresentar na interação – mais ou menos calorosa ou fria, próxima ou distante, modesta ou imodesta, “inconveniente” ou respeitosa do território do outro, susceptível ou indiferente à ofensa etc.) (KERBRAT-
ORECCHIONI apud MAINGUENEAU, 2008, p. 62)
2.2 O fiador
A noção de fiador tem ampla aplicação ao conceito de ethos, visto que o
fiador fornece todas as informações, dentro do discurso, que possibilitam a
construção e o vislumbre da imagem do enunciador por parte de seus interlocutores.
O fiador se encontra plenamente imerso no processo, pois é ele quem da fé ao que
é dito no ato enunciativo.
Quando do processo de enunciação, o fiador tem este papel importante de
incorporar os enunciados, porém ele não pode ser confundido com o autor dos
enunciados, pois na verdade o fiador funcionará como um componente subjetivo que
incorpora um discurso cujas enunciações o constituem, ou seja, o fiador seria esta
tomada de forma das enunciações, por elas constituído e que a elas lhes dá acesso
e credibilidade. Maingueneau (2008) descreve o fiador e seu papel em seu livro:
38
A instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como uma “voz”, associada a um “corpo enunciante” historicamente especificado. (MAINGUENEAU, 2008, p. 64)
Amossy (2011) também trabalha com esta noção de fiador em sua obra, pois
o fiador perpassa o discurso, ele faz parte da reflexividade enunciativa e contribui
integralmente ao processo.
O “fiador”, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se, assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos. (AMOSSY, 2011, p. 72)
É função do fiador também a constituição e manutenção do tom, tanto para
discursos orais e escritos, tom este que corrobora os enunciados e também auxilia
para que o ethos apreendido seja o mesmo que se almejou transmitir. Conforme
Maingueneau (2008, p. 64) afirma,“...a um fiador que, por meio de seu “tom”, atesta
o que é dito”.
O corpo enunciante ao qual Maingueneau (2008) se refere, o fiador em si,
será idealizado na mente dos interlocutores, no caso de textos escritos, e esta
idealização será construída por meio da atribuição de qualidades, feita pelos
interlocutores, que lhe proporcionem um caráter e uma corporalidade. O fiador
ganhará um certo número de características psicológicas que lhe moldem o caráter
e outras características físicas que lhe moldem corporalmente.
O “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Quanto à “corporalidade”, ela é associada a uma compleição corporal, mas também a uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. (AMOSSY, 2011, p. 72)
Estes traços formadores da corporalidade e do caráter introjetados pelos
interlocutores serão comparados em suas memórias discursivas aos mais diversos
tipos de estereótipos sociais, que já tenham sido absorvidos por eles através de
leituras, vivências, cinemas e outros meios, viabilizando então a construção do ethos
que, correspondendo a estes estereótipos será valorizado ou desvalorizado,
apreciado ou detestado, visto que as representações sociais presentes na memória
discursiva dos enunciatários correspondentes a aqueles estereótipos já têm uma
carga de valores definida, seja ela positiva ou negativa.
39
O processo de apropriação que os interlocutores efetuam em suas mentes
pode ser então chamado de “incorporação” (MAINGUENEAU, 2008), que é esta
introjeção das características físicas e psicológicas, e Maingueneau (2008, p. 65)
assim o descreve:
Construção da corporalidade do fiador por meio da enunciação da obra.
Conjunto de esquemas, que se relacionam com o mundo de maneira
específica, incorporados pelo enunciatário.
Viabilização da construção de um corpo, por intermédio das duas primeiras
incorporações, por aqueles que aderirem ao discurso determinado.
Retomando o termo “tom” utilizado por Maingueneau (2008, p. 64), Amossy
(2011, p. 73) desenvolve este tópico explicando que ele, o “tom”, torna possível a
vocalidade específica do texto que confirma ou infirma o ethos que é parte integrante
de um posicionamento discursivo e por que não, sócio-histórico-ideológico.
Amossy (2011) avança mais profundamente e afirma que o fiador, dando
acesso a este mundo ético que se forma na mente dos interlocutores, ou
coenunciadores, os fará aderir “fisicamente” a um universo de sentido, e tanto
melhor os persuadirá quanto melhor puder fazê-los identificar-se consigo, fiador ou
corpo enunciante imbuído de valores sócio-históricos especificados, movimentação
por um espaço social determinado e reconhecido pelos coenunciadores.
A qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse “fiador” que, mediante sua fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é por seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer. (AMOSSY, 2011, p. 73)
Esta contextualização do fiador em uma realidade sócio-histórica leva, por
conseguinte, a se pensar que deve haver um embasamento maior e mais
abrangente que perpasse todo o processo enunciativo, as incorporações e a
construção do ethos. Esses procedimentos devem estar alicerçados em algo que os
envolva e no qual se inscrevam, viabilizando suas constituições de maneira
fundamentada.
40
Esse embasamento provém das cenas enunciativas, pois sem elas os
processos descritos não seriam possíveis. Amossy (2011) bem esclarece este ponto:
O discurso não resulta da associação contingente entre um “fundo” e uma “forma”; é um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e não se pode dissociar a organização de seus conteúdos e o modo de legitimação de sua cena discursiva. (AMOSSY, 2011, p. 74)
A próxima subseção discorrerá sobre o ethos e as cenas da enunciação
desenvolvidas em um mesmo momento e lugar.
2.3 O Ethos e as Cenas da Enunciação.
Tudo o que já foi falado e que já se sabe sobre ethos e o fiador não estaria
completo se não se levar em conta as cenas de enunciação. O ethos, considerado
como um conjunto de elementos de caráter psicológico e físico, não se encontra
isolado em relação ao tempo e espaço; está intrinsecamente conectado sócio-
historicamente a um momento específico e um espaço determinado.
A análise do ethos jamais se completaria se não fosse possível analisar de
igual maneira as características deste momento e espaço nos quais ele está imerso
e com os quais interage a todo momento, perpassando-os e sendo perpassado por
eles, ao mesmo tempo em que vai sendo mostrado e construído na mente e na
memória discursiva dos interlocutores.
Quando disserta sobre o ethos, Maingueneau (2008) trata também deste caso
espaço-temporal e os define mais especificamente como as referidas cenas de
enunciação, que são os elementos envolventes e interagentes que trabalham em
estreita cooperação com o fiador e com todos os elementos discursivos que
contribuem na construção ética.
As cenas de enunciação trabalhadas por Maingueneau (2008) são divididas
em três, cada qual com sua definição e função individuais. A primeira cena sobre a
qual Maingueneau discorre é a cena englobante. A cena englobante é a mais geral
das três, esta sim faz referência a campos bastante amplos nos quais os discursos
se inscrevem e aos quais lhes atribui um estatuto prático. Segundo Maingueneau
(2008, p. 70) assim se define: “A cena englobante atribui ao discurso um estatuto
pragmático, ela o integra em um tipo, publicitário, administrativo, filosófico.” Ou seja,
41
a cena englobante se refere a grandes áreas do discurso humano as quais
“oficializam” o discurso que nela se inscrevem como sendo parte desta cena
englobante.
A cena genérica se refere ao contrato (MAINGUENEAU, 2008) que se
encontra associado a um gênero ou a um subgênero de discurso, está posicionada
dentro da cena englobante e o contrato citado por Maingueneau está ligado ao
gênero, por exemplo, dentro do discurso religioso englobante, temos o sermão, a
missa ou o culto, que são gêneros que viabilizam a construção coerente do discurso
dentro da cena englobante.
Já a cenografia, esta se encontra envolvida pelas cenas anteriores,
entretanto, embora se encontre conectada a um gênero ou subgênero discursivo,
não é por ele imposta nem condicionada, a cenografia é o modo pelo qual o discurso
se constrói, que dentro de um mesmo gênero discursivo e de uma cena englobante
pode ser realizada de diferentes maneiras. Por exemplo, em uma aula de filosofia
(cena englobante), dentro do gênero discursivo aula (cena genérica), o professor
pode escolher várias metodologias para encetar a conversação com seus alunos,
pode usar o discurso professoral tradicional, ou pode utilizar anedotas que
demonstrem os princípios filosóficos ou pode mesmo utilizar-se da comicidade,
citando vários ditados populares que esclareçam os princípios filosóficos.
A cenografia se mostra a mais importante no processo de construção do
ethos, pois como cena de fala direta (oral ou escrita) entre o locutor e os
interlocutores, propicia a exposição e a percepção do ethos. Maingueneau (2008)
explica bem sua importância no processo:
A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir uma situação de enunciação que o torna pertinente. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)
Percebe-se que a cenografia não é uma moldura que simplesmente envolve o
discurso, na verdade, na medida em que as enunciações constroem o discurso, vão
instaurando a cenografia adequada àquelas enunciações, sendo que a cenografia
também demanda um discurso adequado a ela, estabelecendo assim um caminho
de mão dupla.
42
Maingueneau consegue expor com propriedade esta ideia ao demonstrar que
a cenografia não é um fim em si mesma, ela é origem e destino do discurso
concomitantemente, carregando em seu bojo o ethos que dela toma parte.
A cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento: desde sua emergência, a fala é carregada de certo ethos, que, de fato, se valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena da qual vem a palavra é precisamente a cena requerida para enunciar nessa circunstância. (MAINGUENEAU, 2008, p. 71)
Amossy (2011) complementa muito bem as ideias de Maingueneau (2008) ao
falar da questão do enunciador na cena de enunciação e diferencia-o do ethos
retórico de Aristóteles, apresentado como um elemento com a simples função de
persuadir seus interlocutores.
Para Amossy (2011), o ethos da retórica tradicional não corresponde ao da
Análise do Discurso, pois, para a estudiosa, o ethos discursivo é parte integrante das
cenas enunciativas instituídas pelo discurso ao mesmo tempo em que elas o tornam
pertinente, ou seja, o ethos, além de ser elemento que tem a função de convencer
os interlocutores da imagem desejada, também é parte essencial das cenas da
enunciação e ainda do gênero discursivo pelo qual estas cenas se desenrolam, os
quais estariam incompletos sem aquele elemento.
Na perspectiva da análise do discurso, não podemos, pois, contentar-nos, como na retórica tradicional, em fazer do ethos um meio de persuasão: ele é parte constitutiva da cena de enunciação, com o mesmo estatuto que o vocabulário ou os modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de existência. (AMOSSY, 2011, p. 75)
Existem ainda mais dois conceitos interessantes citados por Amossy que
auxiliam na contextualização do discurso, suas cenas enunciativas e o gênero
utilizado, que são a topografia e a cronografia. Quando da realização de uma
interação discursiva, seja ela verbal ou escrita, a construção interativa
contextualizada do fio do discurso entre o enunciador e o interlocutor está
intimamente ligada a estes conceitos, seja a topografia, que se refere ao local onde
a interação se dá e a cronografia, que se refere ao tempo, ou momento histórico em
que esta interação ocorre. Esses dois elementos condicionam fortemente o discurso
43
construído e o que será dito, dependendo das características do local e dos
costumes vigentes na época da interação discursiva.
Todas as interações de Holmes, no romance, ocorrem na Inglaterra, no
século XIX e, como já mencionado, o fato de o país ser a maior potência naquela
época influencia o comportamento até certo ponto arrogante de Holmes, que mostra
em seu discurso marcas da crença em sua própria superioridade.
2.4 Anáforas e sua Tipologia
As teorias aplicadas às análises fazem referência principalmente aos
elementos de coesão referencial e da referenciação da Linguística Textual. Para
obter uma análise fidedigna, faz-se necessário a explicitação da teoria sobre os
mecanismos de uma série de elementos coesivos que podem ser aplicados à
construção da tessitura textual.
Segundo Koch (2012a), é a “coesão referencial aquela em que um
componente da superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) nela
presentes ou inferíveis a partir do universo textual (KOCH, 2012a p. 31). Koch
explica ainda que o termo que faz esta remissão é o “termo referencial” ou
“remissiva”, já o termo referido é chamado de “elemento de referência”, ou referente
textual”.
Já a referenciação, conforme mencionado, é o processo que envolve a
coesão referencial, é o caminho que o leitor/interlocutor faz utilizando-se dos vários
elementos da coesão referencial, como anáforas nominais e pronominais, para a
construção da textualidade e compreensão do texto e de seus sentidos muitas vezes
implícitos, não expressos no cotexto (a superfície textual).
A referenciação e a referência textual trabalham em conjunto na construção
do tecido do texto e têm grande responsabilidade também na construção da
intencionalidade que o autor demonstra no texto, já que nenhum texto é neutro e
todos, por mais discretos e imparciais que pareçam, têm alguma intenção em seu
bojo.
44
Ainda conforme Koch (2009), como explana em seu livro Introdução à
Linguística:
A intencionalidade refere-se aos diversos modos como os sujeitos usam textos para perseguir e realizar suas intenções comunicativas, mobilizando, para tanto, o recursos adequados à concretização dos objetivos visados. (KOCH, 2009, p. 42)
A professora Koch (2009) descreve, em seu livro A Coesão Textual, diversos
tipos de técnicas utilizadas na composição coesiva referencial dos textos, como
referência, substituição, elipse, conjunção e coesão lexical em suas duas
modalidades: anafórica e catafórica.
As anáforas são retomadas, referências a termos já expressos no cotexto,
segundo Cavalcante (2011, p. 54): “Se os referentes já foram de algum modo
evocados por pistas explícitas no cotexto, então estamos em presença de
continuidades referenciais, isto é, de anáforas.” Essas seriam as anáforas diretas
correferenciais.
As anáforas podem funcionar não somente com elementos citados no cotexto,
elementos extratextuais podem também servir como âncora para referências
anafóricas, enquanto aquelas são denominadas de endofóricas, estas se chamam
exofóricas. Segundo Koch (2012a):
A referência é exofórica quando a remissão é feita a algum elemento da situação comunicativa, isto é, quando o referente está fora do texto; e é endofórica, quando o referente se acha expresso no próprio texto. (KOCH, 2012a, p.19)
Koch se utiliza da teoria de Halliday e Hasan para descrever ainda os
mecanismos coesivos endofóricos ou exofóricos baseados em anáforas diretas ou
correferenciais, a saber:
As anáforas por referência, pessoal demonstrativa ou comparativa, que
retomam introdutores referenciais através de pronomes pessoais, possessivos ou
demonstrativos, ou mesmo de advérbios indicativos de lugar e comparações por vias
indiretas.
As anáforas por substituição nominal, verbal ou frasal, que seriam a
colocação de um termo no lugar de outros do texto.
45
As anáforas por elipse, que nada mais são que uma substituição por
zero, ou seja, nada toma o lugar do introdutor referencial, sabe-se do
que se fala por meio de outras pistas no cotexto.
Anáforas por conjunção são aquelas que permitem “estabelecer
relações significativas específicas entre elementos ou orações do texto”
(HALLIDAY; HASAN, 1976 apud KOCH, 2012a, p. 21). São
evidentemente baseadas no uso das várias conjunções.
Por último, Koch (2012a) apresenta as anáforas diretas por coesão lexical,
que são construídas através de dois mecanismos; reiteração e colocação. “A
reiteração é feita repetindo-se o mesmo item lexical ou através de sinônimos,
hiperônimos ou nomes genéricos [...]” e a colocação pelo “[...] uso de termos
pertencentes a um mesmo campo significativo” (HALLIDAY; HASAN, 1976 apud
KOCH, 2012a, P.22).
Encontram-se também conceitos que aprofundam a questão anafórica no livro
sobre Referenciação: Sobre Coisas Ditas e Não-Ditas de Cavalcante (2011).
Recuperando conceitos de Kleiber (1984), Cavalcante (2011) apresenta, de forma
mais detalhada, outros tipos de anáforas, neste caso são as inferenciais ou indiretas,
que podem ser utilizadas na presente análise.
Segundo as teorias aí encontradas, Kleiber (1984) discorre sobre as anáforas
associativas e as inferenciais, sendo as primeiras conceitualmente baseadas e as
segundas inferencialmente baseadas; o que significa dizer que as associativas
retomam introdutores referenciais, ou referentes, presentes no texto e as inferenciais
abarcam casos diversos em que a recuperação do referente depende do
conhecimento culturalmente compartilhado, de situações enunciativas percebidas
pelos interlocutores e dadas pelo desenvolvimento textual. (CAVALCANTE, 2011, p.
63)
É bastante perceptível a analogia endofóricas-associativas e as exofóricas-
inferenciais.
Kleiber, segundo Cavalante (2011), divide teoricamente as anáforas indiretas
ou inferenciais em cinco tipos básicos: anáforas meronímicas “quando o nome
46
nuclear do anafórico associativo é semanticamente marcado pelo traço “parte de”
(KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE, 2011, p. 64).
As anáforas associativas locativas caracterizam-se pela retomada do
introdutor referencial com “independência referencial, porque sua existência não se
prende à existência de outra entidade” (KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE, 2011,
p. 65).
Quanto às anáforas associativas funcionais, há algumas diferenças ou
restrições semânticas com relação às meronímicas, pois enquanto estas “podem
conservar uma noção de distributividade, as funcionais não podem” (KLEIBER, 1984
apud CAVALCANTE, 2011, p. 66). Outra restrição se mostra no fato de que estas
anáforas não se sujeitam a uma prova estrutural com o verbo ter, ou seja, a
retomada não é parte necessariamente integrante do referente.
As anáforas associativas actanciais (argumentativas) caracterizam-se pela
retomada que o referente anafórico faz a “um dos argumentos (actantes) de um
predicado introduzido no cotexto precedente” (KLEIBER, 1984 apud CAVALCANTE,
2011, p. 67).
Por último há as anáforas encapsuladoras que também se encaixam nas
anáforas indiretas ou inferenciais, e que são um tipo de anáfora que “não retoma
nenhum objeto de discurso pontualmente, mas se prende a conteúdos espalhados
pelo contexto.” (CAVALCANTE, 2011, p. 71)
2.5 Catáforas
Numa cadeia de referência, a expressão que estabelece o referente pode
ocorrer no discurso subsequente àquele em que surgem as expressões
referencialmente dependentes, habitualmente designadas por termos
anafóricos (anáfora). Quando a cadeia de referência exibe esta ordenação linear, o
termo catáfora substitui o termo anáfora. No fragmento textual "A irmã olhou-o e
disse: - João, estás com um ar cansado", o pronome pessoal o é uma expressão
referencialmente não autônoma, cujo valor depende da interpretação de uma
expressão presente no contexto discursivo subsequente, o nome próprio João.
47
Catáfora designa este tipo particular de anáfora, em que o termo anafórico precede
o antecedente. (FÁVERO; KOCH, 2012; KOCH, 2012; CAVALCANTE, 2011).
2.6 Dêixis
A dêixis é um processo que pode ocorrer no cotexto independentemente dos
processos anafóricos ou catafóricos, ou mesmo sobrepondo-se a eles. Este
processo de construção referencial muitas vezes confunde-se com os dois
anteriores, entretanto ele necessita de informações mais precisas para atingir um
nível de completude que permita ao interlocutor compreender a semântica geral dos
enunciados.
Segundo Cavalcante:
Desde Buhler ([1934] 1982), tem-se chamado atenção para certas expressões referenciais cujo significado completo depende de certos aspectos da situação enunciativa. Para construir o referente dessas expressões, seria preciso analisá-las dentro de um outro campo, um campo dêitico, pois elas exigiriam o conhecimento do lugar ou do tempo em que se encontra o enunciador. (CAVALCANTE, 2011, p. 92)
As dêixis podem ocorrer na forma de pronomes pessoais (eu, você, ele, ela),
demonstrativos (aqui, ali, lá) ou até mesmo advérbios de tempo (ontem, hoje,
amanhã), porém somente ganham significado completo quando a perspectiva na
qual esses termos estão incluídos nos enunciados é especificada e esclarecida.
A dêixis, formada e estabelecida por esses elementos, chamados elementos
dêiticos, carece, portanto, de especificações de tempo e espaço que caracterizem o
momento da enunciação, demonstrando as circunstâncias e suas mudanças no
decorrer do diálogo.
As circunstâncias discursivas tornam-se uma parte da expressão do sentido completo [...] O conhecimento das circunstâncias que acompanham as palavras torna-se, então, uma condição necessária para a “exata compreensão” do pensamento expresso por um enunciado contendo dêiticos. (LAHUD, 1984, p. 67-68 apud CAVALCANTE, 2011, p. 93)
Os dêiticos se subdividem em quatro grupos que seguem:
A) Dêiticos pessoais – Estes dêiticos são utilizados para identificar os
interlocutores na comunicação. São principalmente os pronomes pessoais
e os possessivos.
48
B) Dêiticos sociais – São dêiticos que se expressam na forma de títulos
reconhecidos socialmente que representam os atores de uma situação
comunicativa, como doutor, senhor e professor, por exemplo.
C) Dêiticos temporais – Os dêiticos temporais somente podem assim ser
definidos se dentro do texto têm a propriedade de identificar o tempo de
origem do falante ou de seu interlocutor; caso contrário não podem ser
chamados de dêiticos temporais, são apenas indicadores de
circunstâncias temporais no texto.
D) Dêiticos espaciais – Seguem uma regra similar à dos dêiticos temporais,
uma vez que somente podem ser assim identificados se tiverem inerentes
a si a propriedade de identificar a localização do enunciador ou de seu
interlocutor no momento do ato enunciativo, caso contrário serão simples
advérbios de lugar com a característica anafórica ou catafórica.
2.7 Operadores Argumentativos
Outro ponto importante a ser utilizado neste trabalho com o fito de construir o
ethos sherlockiano serão os operadores argumentativos, elementos significativos
que acrescentam, subentendem, valorizam os significados ou têm mesmo o
potencial de reverter essas ações no fio do discurso. Os operadores argumentativos,
que se apresentam em grande parte na forma de conjunções, proporcionam a força
argumentativa de um texto, agregando, inclusive, circunstâncias polifônicas ao
discurso.
É interessante notar que, além do uso de elementos anafóricos e catafóricos
na construção ética de Holmes, os operadores argumentativos, por sua força dentro
do cotexto, têm um papel relevante na construção deste ethos, pois conseguem
demonstrar e convencer o leitor, no discurso escrito, das qualidades e ideias visadas
pelo autor ou por Watson.
Isso ocorre porque os operadores argumentativos em qualquer idioma
existem justamente para este tipo de finalidade, que é a de gerar reações nos
49
interlocutores, fazê-los convencer-se e responder ou ainda de provocar ações e
atitudes com objetivos específicos. Segundo Koch (2012):
Quando interagimos através da linguagem (quando nos propomos a jogar o “jogo”), temos sempre objetivos, fins a serem atingidos; há relações que desejamos estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos ver desencadeados, isto é, pretendemos atuar sobre o(s) outros(s) de determinada maneira, obter dele(s) determinadas reações (verbais ou não verbais). (KOCH, 2012b, p. 29).
Esses elementos ou mecanismos utilizados no discurso levam a denominação
de “marcas linguísticas da enunciação ou da argumentação. Outras vezes tais
elementos são denominados modalizadores – em sentido amplo – já que têm a
função de determinar o modo como aquilo que se diz é dito” (KOCH, 2012b, p. 29).
Como resultado da soma desses mecanismos nós temos a argumentatividade,
conceito que se define pela indicação da direção ou orientação dos argumentos
utilizados.
Seguindo ao raciocínio desenvolvido, Koch (2012b) cita Ducrot com seus dois
conceitos básicos: escalas argumentativas e classe argumentativa. Segundo a
citação de Koch: “Uma classe argumentativa é constituída de um conjunto de
enunciados que podem igualmente servir de argumento para uma mesma conclusão
(a que, por convenção, se denomina R)”. (DUCROT apud KOCH, 2012b, p. 30).
Baseada em estudos sobre a teoria de Ducrot, Koch (2012b) demonstra que
um conjunto de argumentos podem somar-se no sentido de apontar para uma
determinada direção, o que leva igualmente a uma determinada conclusão,
complementando ainda que dependendo da forma como estes argumentados são
dispostos no texto, podem ou não criar uma gradação na força da argumentação, o
que é chamado de “escala argumentativa” (KOCH, 2012b, p. 30). Esta escala
argumentativa tem também a particularidade de apresentar-se nas formas crescente
ou decrescente.
Esta teoria comporta em seu cerne uma série de operadores argumentativos
que constroem os argumentos, suas escalas, as pressuposições e as
concordâncias, bem como contradições. Koch (2012b) apresenta então todos os
principais tipos de operadores argumentativos utilizados em língua portuguesa,
dissertando, portanto, sobre seus mais variados papéis na construção do discurso e
50
das ideias em nosso idioma que permitem a comunicação e o convencimento dos
interlocutores, convencimento esse baseado na intencionalidade de quem fala ou
escreve.
São basicamente nove classes de argumentadores, que, na verdade,
representam classes gramaticais de nossa língua, e, no entanto, consentem na
confecção de verdadeiras “manobras argumentativas” construtoras do discurso do
“convencimento”, o que se presta diretamente à construção do ethos de Sherlock
Holmes e sua apresentação como um detetive excepcionalmente capaz e acima da
média de investigadores seus contemporâneos.
O primeiro grupo de operadores argumentativos sobre o qual Koch trabalha é
justamente aquele que trabalha na questão das escalas argumentativas, pois são
operadores que transparecem a força empregada nos argumentos discursivos em
um ou outro sentido. Segundo Koch, 2012b, p. 31: “São operadores que assinalam o
argumento mais forte de uma escala orientada no sentido de determinada
conclusão: até, mesmo, até mesmo, inclusive”.
Retomando a escala argumentativa, pode-se exemplificar o uso desses
operadores com os seguintes argumentos:
Conclusão R: O evento escolar foi muito bem sucedido.
A” – esteve presente o secretário de educação
A’ – esteve presente o diretor da escola
A – estiveram presentes professores e funcionários
(Gráfico meu)
Ou seja, o argumento mais forte, numa escala que se expressa
positivamente, está no topo da escala, já que A “mostra que o evento foi tão bem
sucedido que ‘até mesmo’ o secretário de educação compareceu. Em caso de uma
51
argumentação negativa, os elementos inverter-se-iam, com o argumento A tornando-
se o argumento A”.
No primeiro caso, o da argumentação positiva, poder-se-ia construir uma
frase com sentido completo como o que segue:
“O evento foi tão bem sucedido que até mesmo o secretário de educação
compareceu.”
Daí a força da argumentação demonstrada pelos operadores “até” e “mesmo”
agindo conjuntamente neste momento.
O segundo grupo de argumentadores trabalhado por Koch é aquele que
funciona no sentido de acumular argumentos que conduzem a uma conclusão de
igual teor. Conforme Koch:
Operadores que somam argumentos a favor de uma mesma conclusão (isto é, argumentos que fazem parte de uma mesma classe argumentativa): e, também, ainda, nem, (= e não), não só..., mas também, tanto... como, além de..., além disso..., a par de..., etc. (KOCH, 2012b, p. 33)
Um exemplo interessante para este grupo seria o seguinte para a
corroboração de uma conclusão R:
Conclusão R: O carro vermelho é o melhor para nossas necessidades.
Conclusão R
Tem boa potência É econômico É barato
(KOCH, 2012b, p. 33)
52
Aqui não existe um argumento mais forte que favoreça a compra do
automóvel, todos os argumentos tem a mesma força e se somam para que a
conclusão favorável à aquisição do veículo seja atingida e seguida. Pode-se, por
exemplo, dispor os argumentos linearmente com o auxílio dos operadores: “O carro
tem boa potência, também é econômico e, além disso, é barato”.
Além desses operadores, Koch (2012b) adiciona ao grupo um extra, que,
segundo suas palavras, adiciona ao grupo de argumentos um argumento adicional.
Segundo Koch:
Existe mais um operador, que também introduz um argumento adicional a um conjunto de argumentos já enunciado, mas o faz de maneira “sub-reptícia”: ele é apresentado como se fosse desnecessário, como se se tratasse de simples “lambuja”, quando, na verdade, é por meio dele que se introduz um argumento decisivo, com o qual se dá o “golpe final”, resumindo ou coroando todos os demais argumentos. Trata-se do operador “aliás”. (KOCH, 2012b, p. 34)
O terceiro grupo de operadores argumentativos estudados por Koch (2012)
são os introdutores de conclusões que se referem a argumentos ou sequência de
argumentos elaborados em enunciados anteriormente expressos.
Este grupo de operadores é intrínseco às conjunções conclusivas, como logo,
por conseguinte, portanto, pois, em decorrência, consequentemente, etc, uma vez
que essas conjunções levarão a resultados, geralmente lógicos, dos enunciados ou
atos expressos anteriormente. Koch (2012b) exemplifica da seguinte forma:
O custo de vida continua subindo vertiginosamente; as condições de saúde do povo brasileiro são péssimas e a educação vai de mal a pior. Portanto (logo, por conseguinte...) não se pode dizer que o Brasil esteja prestes a se integrar no primeiro mundo. (KOCH, 2012b, p. 34)
No exemplo da autora a conjunção “portanto” e/ou suas assemelhadas, “logo”
e “por conseguinte”, levam o interlocutor ou leitor a concluir que devido às
dificuldades que o país apresenta não se pode pensar o Brasil como um país que
possa integrar o bloco dos países desenvolvidos.
Esses tipos de operadores envolvem um movimento essencialmente frontal,
que avança em direção a um resultado ou conclusão:
53
Enunciados conclusões ou resultados
(Gráfico meu)
A partir da obra de Kock, propomos o gráfico acima.
O quarto grupo de operadores argumentativos descritos por Koch (2012b)
também trabalha com a possibilidade de atingir conclusões, mas de maneira
diferente, são conclusões às quais os interlocutores podem chegar e que levam a
caminhos distintos, às vezes até mesmo opostos, mas que geralmente conduzem a
um afastamento entre os dois caminhos.
Este grupo de argumentadores se identifica com as conjunções alternativas
“ou, ou então, quer... quer, seja... seja”, e o exemplo segundo Koch (2012b, p. 35):
“Vamos juntos à passeata. Ou você prefere se omitir e ficar aguardando os
acontecimentos?”
Esses operadores criam, então, um movimento também frontal, porém
divergente, como segue:
A
Enunciado conclusões divergentes
B
(Gráfico meu)
A partir da obra de Koch propomos o gráfico acima.
54
O quinto grupo de operadores que Koch (2012b) estuda são específicos para
estabelecer as mais diversas relações de comparação entre elementos humanos,
materiais ou imateriais e que também levam a conclusões. Eles se identificam com
as conjunções comparativas “mais que, menos que, tão... como”.
Como se percebe nos dois primeiros operadores, a comparação de valores é
bastante apropriada para a análise de ethos, já que se pode reforçar positiva ou
negativamente a imagem de um ser, entretanto esses elementos comparativos
podem sugerir conotações um pouco diferentes do que se espera ao primeiramente
visualizá-los, especialmente os de igualdade, e Koch (2012b, p. 35), exemplifica
muito bem com este simples conceito: “A: Vamos convocar a Lúcia para redigir o
contrato”. “B: A Márcia é tão competente quanto a Lúcia”.
Embora a autora trabalhe com a dupla comparativa “tão... quanto”, existe uma
conotação implícita de que Márcia é mais competente do que Lúcia, pelo fato da
colocação desta em segundo lugar na comparação. O funcionamento dar-se-ia
como segue:
Comparação de superioridade:
Elemento A Elemento B
(Gráfico meu)
A partir da obra de Koch propomos o gráfico acima.
Comparação de inferioridade:
Elemento A Elemento B
(Gráfico meu)
55
Comparação de igualdade:
Elemento A Elemento B
(Gráfico meu)
Ou pode ocorrer como na comparação de inferioridade acima, que, conforme
o exemplo da autora, o segundo elemento adquira primazia sobre o primeiro.
O sexto grupo de operadores argumentativos estudados por Koch (2012b)
tem suas bases assentadas na justificação ou explicação que pode ser dada relativa
ao enunciado anterior. Esse grupo envolve um movimento de retomada do
enunciado na tentativa de ratificar a sua existência.
Esse grupo faz referência às conjunções explicativas, visando justificar uma
sentença ou enunciado anterior. Os principais operadores representantes deste
grupo são porque, que, já que e pois. O exemplo utilizado por Koch, 2012b, p. 35, é
o seguinte: “Não fiques triste que este mundo é todo teu”. Tu és muito mais bonita
que a Camélia que já morreu”. Neste exemplo a conjunção que justifica o enunciado
anterior, explicando que já que o mundo pertence à pessoa citada, ela não deve ficar
triste.
Movimento retrógrado explicativo:
Enunciado A
enunciado B (explicativo)
(Gráfico Meu)
56
O sétimo grupo trabalhado pela autora faz referência a ideias contrárias,
argumentos que se opõem dentro do fio do discurso levando a conclusões que
tomam direções diferentes. As conjunções que representam este grupo são as
adversativas ou concessivas, inerentes a este movimento discursivo: mas, porém,
contudo, todavia, no entanto, embora, ainda que, posto que, apesar de.
Este grupo é bastante interessante, pois o autor do enunciado pode introduzi-
lo ou a um grupo de enunciados dando a impressão de até mesmo concordar com
eles, quando na verdade é na sequência enunciativa que se encontra sua verdadeira
opinião. Koch (2012b) coloca um exemplo de Ducrot baseado no conceito de pratos
da balança:
O esquema de funcionamento do MAS (o “operador argumentativo por excelência”, segundo Ducrot) e de seus similares é o seguinte: introduz em seu discurso um argumento possível para uma conclusão R; logo em seguida, opõe-lhe um argumento decisivo para a conclusão contrária não R (~R). Ducrot ilustra esse esquema argumentativo recorrendo à metáfora da balança: o locutor coloca no prato A um argumento (ou conjunto de argumentos) com o qual não se engaja, isto é, que pode ser atribuído ao interlocutor, a terceiros, a um determinado grupo social ou ao saber comum de determinada cultura; a seguir coloca no prato B um argumento (ou conjunto de argumentos) contrário, ao qual adere, fazendo a balança inclinar-se nessa direção (ou seja, entrechocam-se no discurso “vozes” que falam de perspectivas, de pontos de vista diferentes – é o fenômeno da polifonia...) (KOCH, 2012b, p. 36)
O gráfico para ilustrar o movimento deste grupo seria aproximadamente este
do movimento contrário:
Enunciado A Enunciado B (choque polifônico)
(Gráfico nosso)
O oitavo grupo de operadores têm a função de introduzir conteúdos
pressupostos no enunciado, de forma que o interlocutor possa tirar conclusões
inferindo-as através das conjunções presentes no enunciado. Os operadores que
formam este grupo são: já, ainda, agora, etc.
Exemplo: Paulo agora mora no Rio.
57
Daí se infere que Paulo não morava no Rio anteriormente, já que o advérbio
agora mira e restringe o enunciado ao tempo presente ao mesmo tempo em que
descarta a ação de morar no Rio no passado.
Enunciado [ pressuposto]
(Gráfico nosso)
O nono e último grupo de operadores argumentativos estudados e descritos por
Koch (2012b) é o das escalas opostas. Este grupo trabalha também com advérbios
como quase, apenas, às vezes, bastante, pouco, completamente, só, somente, etc.
O uso de superlativos analíticos ou sintéticos também se apresenta útil nesse
tipo de operadores, pois conseguem construir uma espécie de medição em forma de
escalas que opõem e denotam a importância de uma ideia em relação à outra. Koch
(2012b) demonstra em um gráfico o uso desses operadores de maneira bastante
didática:
ESTUDOU NÃO ESTUDOU
estudou muitíssimo estudou pouquíssimo
estudou bastante estudou muito pouco
estudou um pouco estudou pouco
(KOCH, 2012b)
As setas, conjuntamente com os enunciados expressos, demonstram uma
gradação na quantidade de estudo que determinada pessoa perpetrou, entretanto
elas mostram caminhos opostos, sendo que na primeira circunstância a pessoa
58
estuda somente um pouco, depois aumenta a intensidade e por fim atinge o auge,
demonstrando que suas chances de ser bem sucedida no exame aumentam, já na
segunda circunstância a pessoa inicia por estudar pouco, depois reduz a intensidade
e termina por estudar praticamente nada, e como consequência suas chances de
sucesso no exame ficam bastante reduzidas.
Outros operadores que trabalham no mesmo grupo, como o quase ou o
apenas também trabalham de forma similar. Expõem uma situação que pode se
aproximar da totalidade de algo ou de uma situação ou até mesmo negá-la, beirando
o nada ou a inação completa.
Esses elementos serão utilizados nas análises a seguir, uma vez que, sendo
este o capítulo inicial da obra, preferiu-se utilizar os operadores argumentativos no
intento de se verificar a lógica contida nos enunciados sobre e do próprio Holmes.
59
Figura 4 – “Achei! Achei!, gritou! (in: Doyle, 2009, p. 16)
60
3 ANÁLISES
3.1 Capítulo 1 – Mr. Sherlock Holmes
As análises dos operadores argumentativos, assim como as análises dos
componentes anafóricos, catafóricos e dêiticos, também serão realizadas sobre
trechos de capítulos correspondentes ao corpus, tomando por base os operadores
descritos e explicados na base teórica do trabalho, os quais terão o objetivo final de
contribuir para a construção do ethos de Sherlock Holmes de forma positiva e que
possam demonstrar como este detetive detinha qualidades superiores a outros seus
contemporâneos.
A primeira amostra do corpus trazida à baila faz referência ao momento em
que Watson está conversando com um conhecido comum aos dois, o senhor
Stamford, sobre Holmes, que naquela ocasião trabalhava no laboratório da
universidade, mas que era ainda um ilustre desconhecido para o doutor Watson.
Esta análise faz referência ao primeiro capítulo do livro Um Estudo em Vermelho
devido à necessidade de demonstrar os fatos em sua ordem cronológica.
Como ainda é um momento em que o interlocutor (leitor) está debutando no
conhecimento do detetive, Doyle quer seguramente utilizar as palavras para aguçar
a curiosidade alheia, e, se pensarmos nos conceitos aristotélicos de que o ethos é
construído com a ativação de razão (logos) e emoção (pathos), dentro de um
contexto localizado temporalmente nos valores criados pela recente revolução
industrial, na qual o valor do trabalho contínuo é exaltado, este comportamento de
Holmes o torna um ser singular, passível de mais investigações sobre seu estilo de
vida.
Quando Watson reencontra seu antigo conhecido, mencionado no texto
como o “jovem Stamford”, ele fica realmente feliz por rever um rosto conhecido na
imensidão da Londres do século XIX “A visão de um rosto amigo na vastidão
desnorteante de Londres é algo realmente agradável...” (DOYLE, 2010).
Em meio a conversas amigáveis típicas de reencontros (cenografia de
conversa amigável), Watson diz a Stamford que necessita de alguém para
61
compartilhar um aluguel, pois o hotel no qual vem se hospedando após retornar de
sua missão militar no Afeganistão está muito acima de seus padrões financeiros.
Stamford, então, lhe diz que conhece alguém que também buscava um companheiro
para repartir o aluguel, e é aí que começa um diálogo entre os dois bastante rico em
operadores e com bom potencial para análise do discurso.
Logo ao início da conversa, Stamford previne seu conhecido de que o tal
sujeito, Sherlock Holmes, talvez tenha características que possam não agradá-lo; e
Watson, por sua vez questiona o que pode ser tão ruim assim em relação ao virtual
parceiro.
“Ora, o que há contra ele?”
“Bem, eu não disse que havia alguma coisa contra ele. É um pouco extravagante em suas ideias – um entusiasta de alguns ramos da ciência. Até onde sei, é um sujeito bastante decente.” (DOYLE, 2010, p. 14, grifo nosso)
Esses operadores correspondem ao sétimo grupo de Koch (2012b). Esse
grupo faz referência às declarações argumentativas opostas, e embora aqui
tenhamos apenas dois, é o suficiente para demonstrar que Stamford, ainda que
tenha suas próprias dúvidas sobre Holmes, não tem nenhuma evidência contrária à
sua reputação. Koch (2012) declara em seu livro:
Do ponto de vista semântico, os operadores do grupo do MAS e os do grupo do EMBORA têm funcionamento semelhante: eles opõem argumentos enunciados de perspectivas diferentes, que orientam, portanto, para conclusões contrárias. (KOCH, 2012b, p. 30)
Quando diz que Holmes é um “pouco extravagante” e depois que “até onde
sei é um sujeito bastante decente”, o segundo sintagma esconde o operador MAS
(mas até onde sei), levando primeiramente o leitor a pensar que Holmes possa ser
uma pessoa problemática, mas em seguida rejeita essa ideia e afirma que ele é
bastante “decente”. Ocorre aqui um choque polifônico, duas vozes se contrapõem
para que a segunda conclusão prevaleça, neste caso, sobre a primeira, conduzindo
o leitor a pensar positivamente sobre o detetive, iniciando a construção de seu
ethos.
Stamford descreve Holmes para Watson utilizando operadores
argumentativos que exaltam seu potencial científico em prol da ciência investigativa
62
e, de certa forma, o rótulo de insensível coloca Holmes como uma grande mente
investigativa do século XIX. Estas são as colocações de Stamford:
“Não é fácil exprimir o inexprimível”, respondeu ele rindo. “Holmes é um
pouco científico demais para o meu gosto... chega quase a ser desalmado. Eu poderia imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do mais recente alcaloide vegetal, não por maldade, veja bem, mas simplesmente movido por puro espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos. Para lhe fazer justiça, acho que ele mesmo o tomaria com igual prontidão. Parece ter paixão por conhecimento certo e exato” (DOYLE, 2010, p. 15, grifo nosso)
Dentro de uma cenografia de conversa informal, visando transmitir a Watson
uma imagem, um ethos de Holmes, Stamford se utiliza de dois importantes
operadores argumentativos que apoiam sua opinião correta sobre a personalidade
de Sherlock Holmes.
O fato de ser um “pouco científico demais”, embora utilizando o pronome
pouco, dentro da expressão aponta para a totalidade de um espírito científico e
desalmado que só faz elevar o caráter sério e competente com que Holmes conduz
suas investigações.
Já o advérbio quase no contexto de “chega quase a ser desalmado”,
associado à constatação de que o próprio Holmes tomaria o alcaloide mostra que o
detetive na verdade não é mau, porém seu espírito científico para conduzir
investigações que levem a deduções brilhantes é tão comprometido que chega até
mesmo a colocar em risco sua própria saúde.
Há um trecho no livro de Koch (2012b) que esclarece um pouco mais essa
questão:
Vê-se, assim, que o emprego de certos operadores obedece a regras combinatórias, ou seja, eles não entram nos mesmo contextos argumentativos. É o que acontece com o quase e apenas. (KOCH, 2012b, p. 39)
O quase aponta no sentido da totalidade, sendo que o apenas, ou pouco,
apontam no sentido da ausência de totalidade, no entanto é a combinação destes
operadores que realmente constrói o caráter do enunciado. Estes operadores fazem
referência ao nono grupo de operadores de Koch (2012b)
63
Outro trecho do corpus que apresenta operadores argumentativos que
ajudam na construção e afirmação do ethos de Holmes contém o operador do
terceiro grupo descrito por Koch (2012b). Este grupo de operadores são introdutores
de conclusões baseados nos enunciados anteriores, conforme exposto
anteriormente na base teórica do trabalho, e envolvem um movimento frontal no
raciocínio do interlocutor.
A amostra do corpus ocorre no momento em que Stamford apresenta Holmes
a Watson:
“Dr. Watson, Mr. Sherlock Holmes”, disse Stamford, apresentando-nos.
“Como vai?” disse ele cordialmente, apertando minha mão com uma força que eu dificilmente lhe teria atribuído. “Pelo visto, esteve no Afeganistão.” (DOYLE, 2010, p.16, grifo nosso)
Surpreendentemente, embora esteja incluído naquele terceiro grupo de Koch
(2012b, p. 34), o operador não se refere a nenhum conjunto anterior de enunciados.
De fato, é aqui que reside a agradável surpresa dessa amostra, pois um operador
que leva a uma conclusão de um sujeito sobre outro que nem conhece é incomum.
Dentro de uma cenografia amigável que se institui aqui, há uma mudança de
curso devido à surpresa causada pela afirmação de Holmes. Reiterando
Maingueneau (2008):
Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável, etc. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)
64
Figura 5 – Holmes fez-me um esboço dos fatos (in: Doyle,
2010a, p. 12)
Portanto, no primeiríssimo contato entre Holmes e Watson, o leitor
(interlocutor) já se apercebe de que Holmes possui algum tipo de poder acima da
normalidade, senão não teria como aparentemente “adivinhar” que Watson estivera
no Afeganistão. Isto contribui sobremaneira para que o detetive comece a formar um
ethos confiavelmente superior em relação à média das pessoas e mesmo de seus
colegas de profissão.
Na sequência narrativa ao momento em que Watson e Holmes travam
conhecimento pessoal, demonstra-se que o detetive estava pesquisando algo novo
na universidade, por isso trabalhava no laboratório repleto de substâncias químicas.
Em seguida à apresentação dos dois por Stamford, Holmes consegue realizar
a descoberta que estava prestes a consumar, e é nesse momento em que aparece
uma declaração sua sobre o teste que pesquisava ser bem sucedido, utilizando-se
de outro operador argumentativo pertencente ao grupo número cinco de Koch
(2012b). Este grupo trata dos operadores comparativos, que podem ser usados para
elevar os valores de indivíduos, grupos de indivíduos ou de objetos em geral.
Veja-se o seguinte trecho de Holmes, quando faz sua descoberta logo após
testar sua substância:
65
“Lindo! Lindo! O velho teste com guaiaco era muito grosseiro e duvidoso. O exame microscópico para corpúsculos também. Este último não tem nenhum valor se as manchas já tiverem algumas horas. Agora, isto aqui parece agir igualmente bem seja o sangue velho ou novo. Se este teste já tivesse sido inventado, centenas de homens que agora perambulam por aí teriam pagado por seus crimes há muito tempo [...]
Seus olhos brilhavam enquanto falava e, levando a mão ao peito, fez uma reverência, como se sua imaginação tivesse feito surgir por encanto uma multidão que o aplaudia. (DOYLE, 2010, p. 17, grifo nosso)
Os operadores igualmente bem e como se estão encaixados em dois
contextos diferentes no discurso da personagem, entretanto apoiam seu ethos
superior, já que o primeiro confirma que seu teste é eficaz independentemente da
idade da mancha de sangue, enquanto o segundo apresenta o modo pensar do
próprio Holmes, como se vê como uma pessoa especial que merece inclusive ser
agraciado e aclamado.
O “igualmente bem” se coloca no quinto grupo de operadores argumentativos
de Koch (2012b, p. 35), já que na verdade não é um operador que marca igualdade,
se observados os enunciados. Ele marca uma superioridade do teste de Holmes em
relação aos dois testes já inventados, podendo ser utilizado com manchas de
sangue recentes ou mais antigas. Segundo Koch (2012b, p. 35): “Operadores que
estabelecem relações de comparação entre elementos, com vistas a uma dada
conclusão”.
O “como se” também se encaixa nesse grupo, pois compara a reverência de
Holmes com uma reverência que poderia ser feita por uma multidão, que, na ocasião
mencionada, era apenas imaginária, demonstrando como o detetive é cheio de si,
orgulhoso de seus talentos. Os dois são uma mostra do uso do logos (AMOSSY,
2011), ou seja, uma argumentação eficiente para convencer seus interlocutores.
Uma vez mais, pode-se encontrar a verdade nas palavras da autora quando
se observam as declarações que o jovem Stamford faz sobre Holmes no momento
em que está conduzindo Watson à universidade para que ambos travem
conhecimento, a fim de eventualmente alugarem um apartamento em comum na
Baker Street.
Stamford comenta sobre os hábitos de Holmes no que concerne à sua vida
como pesquisador no laboratório, e como o leitor está no início do processo por
66
conhecer o detetive e elaborar um ethos intrínseco ao personagem, este comentário
pode tanto levar a conclusões positivas como a negativas. Quando Watson lhe
pergunta onde pode encontrar Holmes para que se conheçam, a reposta é:
“Com certeza está no laboratório”, “ou ele evita o lugar por semanas a fio,
ou trabalha lá de manhã à noite.” Se quiser, podemos tomar um fiacre e passar lá depois do almoço. (DOYLE, 2010, p. 14, grifo nosso).
Ainda dentro dessa cena genérica do romance, a cenografia da conversa
amigável se desenvolve de modo a provocar certa curiosidade no leitor e, conforme
Koch (2012b), os operadores ou...ou, seja...seja, são “operadores que introduzem
argumentos alternativos que levam a conclusões diferentes ou opostas...”.
Ora, pode-se então depreender duas coisas diferentes da frase de Stamford,
a primeira é que se Holmes evita o lugar por semanas a fio, existe a possibilidade de
se tratar de uma pessoa preguiçosa e relaxada, que não dá o devido
prosseguimento a suas pesquisas para levá-las a bom termo. Por outro lado, o fato
de que em outro tanto de ocasiões mergulha interminavelmente no trabalho, talvez
seja um sujeito que utiliza o tempo aparentemente ocioso para organizar suas ideias
com a finalidade de colocá-las em experimentação nas horas em que trabalha com
tal afinco.
No trecho a seguir, ainda no âmbito da descrição que Holmes faz de seu
teste, pode-se verificar a existência de mais um operador argumentativo, referente
ao oitavo grupo da autora Koch (2012b), que são chamados operadores
argumentativos de pressuposição. Segundo Koch (2012b, p. 38): “Operadores que
têm por função introduzir no enunciado conteúdos pressupostos: já, ainda, agora,
etc”.
Esses operadores são úteis para que o interlocutor possa formar uma ideia
acerca de um enunciado, e no caso posto, devido ao valor que o detetive dá à sua
descoberta, chega-se à conclusão de que seu novo método será um divisor de
águas nas técnicas e práticas da Medicina Legal.
Um homem torna-se suspeito de um crime meses depois, talvez, que ele foi cometido. Suas roupas de baixo ou outras peças são examinadas, e descobrem-se manchas amarronzadas nelas. São manchas de sangue, de lama, de ferrugem, de frutas ou o quê? Esta é uma pergunta que intrigou muitos especialistas, e por quê? Porque não havia um teste confiável.
67
Agora temos o teste de Sherlock Holmes e não haverá mais nenhuma dificuldade. (DOYLE, 2009, p. 17, grifo nosso)
O operador de pressuposição “agora” normalmente leva o interlocutor a
pensar que algo ou alguma ação são pertinentes no momento presente, porém não
no passado, ou vice-versa, o que pode fazer aparecer pressuposições como essa,
de que o novo teste criado por Holmes, o mais moderno, será também o mais
eficiente, conferindo a seu inventor uma aura de genialidade.
Duas colocações interessantes de Maingueneau sobre o ethos, e que
parecem adequar-se a esta análise:
O ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior à fala;
O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro (MAINGUENEAU, 2008, p. 63)
O próximo capítulo compreenderá análises de elementos dêiticos e
catafóricos, análise esta realizada sobre os enunciados resgatados do segundo
capítulo da obra Um estudo em Vermelho.
3.2 Capítulo 2 - A Ciência da Dedução
Este capítulo conta com as análises dos elementos dêiticos e catafóricos que
cooperarão na conjuntura do trabalho para que o ethos de Holmes continue a ser
construído. O capítulo dois do livro Um Estudo em Vermelho é bem adequado a
essa tarefa, pois Watson e Holmes iniciam sua convivência na Rua Baker Street.
A convivência abordada por Watson em seus escritos vai aos poucos
mostrando a ele e aos interlocutores os hábitos diários de Holmes com uma
quantidade de pormenores cada vez maior, fato que oferece uma gama bastante
grande de elementos textuais passíveis de análise sob essas teorias da Linguística
Textual.
Todas as dêixis explanadas na parte teórica da dissertação serão abordadas
na análise presente, levando o estudioso a uma maior conscientização do processo
de construção ética de Holmes, como até mesmo dêixis e catáforas, assim como as
68
anáforas e os operadores argumentativos têm o poder de contribuir para o processo
em geral.
O primeiro exemplo a ser analisado trata do uso dos dêiticos pessoais,
chamados por Cavalcante (2011) de “dêiticos por excelência”. Watson explorava os
conhecimentos de Holmes a fim de conhecê-lo melhor:
Sua ignorância era tão extraordinária quanto seu conhecimento. De literatura contemporânea, filosofia e política, parecia não saber praticamente nada. Quando lhe citei Thomas Carlyle, perguntou da maneira mais ingênua quem ele poderia ser e o que teria feito. Minha surpresa chegou ao clímax, entretanto, quando descobri por acaso que ele ignorava a teoria copernicana e a composição do Sistema Solar. Que um ser humano civilizado neste século XIX não estivesse ciente de que a Terra gira em redor do Sol pareceu-me um fato que, de tão extraordinário, era quase inacreditável.
“Você parece espantado”, disse ele, sorrindo diante de minha expressão de surpresa. “Agora que sei disso, farei o possível para esquecer.”
“Esquecer!”
“Entenda, explicou ele, “considero que o cérebro de um homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de encher com os móveis que escolhemos.” (DOYLE, 2009, p. 35, grifo nosso)
A cenografia utilizada aqui é uma conversa informal, embora não se possa
chamá-la de amigável, cujo fiador, Watson, tenta sondar o cérebro de Holmes na
tentativa de compreender quem realmente era aquele homem excêntrico e
misterioso.
Complementando o discurso de Cavalcante (2011):
Os pessoais são os dêiticos por excelência, porque remetem diretamente aos sujeitos da enunciação, o que se reflete na concordância verbal. Outras formas dêiticas não pessoais ...apenas pressupõem os interlocutores em seu posicionamento espacial e temporal (por isso recebem as flexões de terceira pessoa gramatical) (CAVALCANTE, 2011, p. 96)
Os recursos dêiticos pessoais aqui em ação remetem a Holmes e ao
conhecimento que possui e que não possui ao mesmo tempo. A atenção mais
detalhada aos enunciados demonstra que, no mesmo momento em que Watson se
espanta com alguns aspectos da ignorância de Holmes, o detetive o tranquiliza
dizendo que isso é uma escolha sua, pois necessita deixar sua memória livre para a
sabedoria intrinsecamente relacionada ao seu trabalho, sabedoria esta escolhida
pelo próprio Holmes.
69
Do ponto de vista do ethos, isto demonstra uma autoconfiança e um
engrandecimento dos métodos e da pessoa do detetive. Ele só se interessa por
assuntos de importância capital a seu trabalho e nada mais. E corrobora este
pensamento utilizando o exemplo do sótão vazio, argumento lógico e forte.
Falar de logos aqui é interessante, uma vez que a lógica deste conceito se
encaixa muito bem com a lógica do detetive, e, segundo Amossy (2011):
O que é preciso reter inicialmente aqui é o fato de que, em todos esses contextos, o logos convence em si e por si mesmo, independente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação, e sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados. (AMOSSY, 2011, p. 41)
A segunda amostra a ser analisada neste capítulo são dois elementos
dêiticos bem próximos. O primeiro é um dêitico espacial e faz referência ao período
imediatamente posterior ao início da convivência de Holmes e Watson, quando
haviam recentemente se transladado para a Baker Street 221 B, já o segundo é um
dêitico social, referente ao investigador Mr. Lestrade, da Scotland Yard.
Watson observava cuidadosamente os hábitos de Holmes, seu costume de
tocar violino, Doyle (2009, p. 37): “Ao entardecer, recostado em sua poltrona,
fechava os olhos e arranhava descuidadamente a rabeca atravessada em seu
joelho”.
Então, após o período de uma semana de convivência começa a descrever os
hábitos profissionais do detetive.
Durante a primeira semana, aproximadamente, não recebemos visitas, e eu tinha começado a pensar que meu companheiro era um homem tão sem amigos como eu. Pouco depois, porém, descobri que ele tinha muitos conhecidos, e nas mais diferentes classes da sociedade. Havia um sujeitinho amarelado, com cara de rato e olhos escuros, que me foi apresentado como Mr. Lestrade, e que apareceu três ou quatro vezes numa única semana. Uma manhã, apareceu uma moça elegantemente vestida, que ficou por meia hora ou mais. A mesma tarde trouxe um visitante grisalho e andrajoso, parecendo um mascate judeu, que me deu a impressão de estar muito aflito e foi seguido de perto por uma mulher idosa desmazelada. (DOYLE, 2009, p. 38, grifo nosso)
Os dêiticos encontrados no trecho estão imersos em meio a enunciados que
proporcionam a construção do ethos de Holmes. A retomada dêitica “a primeira
semana” é um elemento dêitico temporal, pois implica uma pressuposição do
70
conhecimento do período em que os dois amigos iniciaram sua convivência na
Baker Street. São os dêiticos de tempo, segundo Cavalcante:
São os que situam o ponto de origem do falante (e seu interlocutor) no momento em que a mensagem é enunciada. Assim, nem toda expressão que indique tempo é necessariamente dêitica: somente se, a fim de o referente temporal ser identificado, for preciso conhecer o tempo em que se encontra o falante. (CAVALCANTE, 2011, p. 99)
Já a retomada dêitica “Mr. Lestrade” é um elemento dêitico social, que faz
referência a um investigador da Yard cuja capacidade não é levada a sério por
Holmes. Segundo Cavalcante, os dêiticos sociais são:
Também se definem diretamente a partir do centro dêitico do falante, mas codificam relacionamentos sociais, mantidos pelos participantes da conversação. Toda interação é regida por regras, baseadas em comportamentos mais ou menos ritualizados. (CAVALCANTE, 2011, p.96)
Neste caso, Watson, como fiador, utiliza os dois em conjunto para construir o
ethos de Holmes, pois o primeiro (temporal) trata de introduzir o interlocutor ao
momento em que o locutor enuncia seus pontos de vista sobre os visitantes do
apartamento que ambos compartilham. Já no segundo, que aparece na sequência,
no mesmo momento em que apresenta Lestrade, que mais tarde lhe será
apresentado como investigador da Yard, Watson o descreve como um sujeito com
aparência de um rato e de cor amarelada. Obviamente, essas descrições só fazem
desmerecer a figura do investigador.
Outro fato que merece relevância sobre o investigador é a quantidade de
vezes que ele procura Holmes, sendo que isso mostra mesmo uma dependência
dos serviços do detetive. A construção ética de Holmes aqui ocorre da seguinte
forma: ao mesmo tempo em que peca no quesito phrónesis (razoabilidade no que
diz) e eúnoia (benevolência), pelo menos Watson é honesto (areté) e é por este
caminho que tenta persuadir o interlocutor de que o que diz pode ser mais razoável,
pois descreve o que vê; e na verdade a construção do ethos Sherlockiano se dá pela
desconstrução de seu concorrente Lestrade. Segundo Cavalcante (2011, p. 34): ”Ele
(o locutor) persuadirá mais à medida que o ouvinte tiver a convicção de que ele
parece expor esses argumentos com “virtude”, isto é, honesta e sinceramente”.
O terceiro trecho retirado para análise de dêiticos deste capítulo dois contém
elementos que se referem às remissões textuais dêiticas espaciais. Na realidade
71
também temos um dêitico pessoal, porém o enunciado relacionado ao elemento
espacial tem um peso maior no aumento da importância do cargo do detetive
consultor. Essa parte, no texto original, vem logo a seguir ao trecho analisado
anteriormente e se inscreve em uma cenografia amigável:
Quando qualquer desses indivíduos indefiníveis aparecia, Sherlock Holmes costumava pedir para usar a salas de estar, e eu me retirava para meu quarto. Ele sempre pedia desculpas por me submeter a esse inconveniente. “Preciso usar esta sala para meus negócios”, dizia, ”e essas pessoas são meus clientes.” (DOYLE, 2009, p. 38, grifo nosso)
Figura 6 – “Holmes tirou o relógio da Algibeira” (in: Doyle, 2010a,
p. 271).
Os dêiticos espaciais assim são definidos quando para que o referente seja
recuperado, a expressão dêitica de espaço necessite pressupor o espaço onde se
situa o falante. Segundo Cavalcante (2011) em relação aos dêiticos espaciais:
São definidos mais ou menos como os dêiticos de tempo, pois só serão tomados como dêiticos espaciais os elementos que pressupuserem o lugar em que se situa o falante e seu interlocutor no ato enunciativo. Desse modo, nem todas as expressões que denotam lugar são necessariamente dêiticos de espaço [...] (CAVALCANTE, 2011, p. 101)
Quando afirma que “esta sala” é sua, Holmes utiliza um dêitico, pois
pressupõe o lugar de onde está enunciando, o qual o leitor deve conhecer para
recuperar o local onde Holmes trabalha através do “esta”. O detetive consultor
Holmes eleva sua residência ao nível de um escritório, agregando valor à sua
72
imagem profissional e complementa com um dêitico pessoal, “meus”, demonstrando
que possui uma quantidade razoavelmente grande de pessoas que buscam seus
serviços.
Ao mesmo tempo em que mostra a Watson seu valor profissional e seu ethos
valorizado enquanto consultor detetive, os mostra também aos interlocutores
(leitores), através dos enunciados produzidos em torno das dêixis, especialmente a
espacial. Em relação ao ethos, pode-se citar uma fala de Maingueneau que se
combina com os dêiticos espaciais.
O ethos é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada. (MAINGUENEAU, 2008, p. 63)
É nessa cenografia de conversação amigável e explicando o porquê da
necessidade de uso do cômodo que Holmes começa a se apresentar como um
competente consultor de casos policiais.
A última amostra do capítulo a ser analisada é um trecho onde Holmes revela
a Watson sua profissão e explica a Watson porque tantas pessoas o procuram,
desenvolvendo uma cenografia conciliadora. Nesta parte do capítulo encontramos
vários dêiticos, porém, novamente, os mais interessantes para verificação são o
social e os pessoais, que, pelos enunciados trazidos por eles, demonstram a força
da personalidade e da qualidade do detetive.
“Bem, tenho uma profissão. Suponho que sou o único no mundo a exercê-la. Sou um detetive consultor, se é capaz de entender o que é isso. Aqui em Londres temos um punhado de detetives do governo e detetives privados. Quando esses sujeitos se veem numa enrascada, eles me procuram, e consigo pô-los na pista certa. Eles me expõem todas as evidências, e em geral sou capaz, com a ajuda de meu conhecimento da história do crime, de corrigir seus erros. Há uma forte semelhança de família entre os delitos, e se você tem todos os detalhes de um milhar deles na ponta dos dedos, seria estranho que não conseguisse desvendar o milésimo primeiro. Lestrade é um detetive muito conhecido. Ele se confundiu recentemente com um caso de falsificação, e foi isso que o trouxe aqui. (DOYLE, 2009, p. 41, grifo nosso)
No exemplo retirado do corpus, temos um dêitico social, que apresenta a
profissão de Holmes, acompanhado de cinco dêiticos pessoais expressos, cujos
enunciados circundantes só fazem reforçar a ideia do primeiro.
73
O primeiro elemento dêitico retoma a pessoa de Holmes através de sua
profissão, conferindo-lhe um título e afirmando que provavelmente seja a única
pessoa “no mundo” a possuí-lo. Holmes realmente se acha superior por ser único,
sem ninguém que possa reproduzir suas proezas intelectuais, e, portanto, os outros
lhe devem um respeito especial. Segundo Cavalcante (2011):
As relações em sociedade (e não a interação linguística em si mesma), ao condicionar a escolha dos níveis de maior ou menor formalidade, findam por determinar a seleção de títulos honoríficos e de outras expressões de intimidade ou polidez. (CAVALCANTE, 2011, p. 96)
As outras formas dêiticas explicitadas no texto, por meio dos enunciados, dão
suporte a esta dêixis principal na qual Holmes se mostra todo poderoso. Quando ele
afirma que é procurado por todas aquelas pessoas, que elas lhe expõem seus
casos, e que utiliza seu conhecimento para corrigir seus erros, todas essas
colocações introduzidas pelos dois dêiticos pessoais “me” e pelos dêiticos
possessivos “meu” e “seu”, afirmam seu ethos uma vez mais, como se fora a única
fonte de resolução de casos misteriosos do mundo.
Ainda, uma vez mais coloca seu colega da Yard como um aluno inferior, ao
utilizar o dêitico “se” para expressar que Lestrade havia se confundido em seu caso
de falsificação. Os sistemas dêiticos pessoais conseguem trabalhar essa
estruturação de localização do referente. Aqui elas mostram o referente Holmes em
situação de superioridade absoluta sobre os “pobres mortais”. Segundo Cavalcante
(2011):
O enunciador se coloca, dessa maneira, como o lugar de origem do sistema dêitico, estabelecendo-se como um ponto de referência para as coordenadas de espaço e tempo do contexto enunciativo imediato. (CAVALCANTE, 2011, p. 93)
Aqui, o interlocutor sabe que Holmes está apresentando seu trabalho a
Watson, enquanto recém começaram a coabitar a Baker Street 221 B.
Do ponto de vista da análise do ethos, podemos dizer que Holmes se utiliza
basicamente do apelo à razão, logos, a fim de mostrar ao colega de habitação sua
importância e capacidade; sendo ele mesmo seu próprio fiador. Embora não se
importe com o pathos (o afeto, a emoção), tanto que Watson chega até a achá-lo
demasiado arrogante, Holmes se utiliza dos argumentos lógicos em conjunção com
os elementos dêiticos para construir sua imagem de superioridade.
74
O que é preciso reter inicialmente aqui é o fato de que, em todos esses contextos, o logos convence em si e por si mesmo, independentemente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação e, sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados. (AMOSSY, 2011, p. 41)
Os elementos catafóricos também contribuem para o processo de coesão
textual, conquanto sejam menos frequentes que os fenômenos anafóricos, ainda
assim podem ser estudados juntamente aos enunciados a eles pertinentes com
vistas à comprovação e construção do ethos superior de Holmes.
Neste capítulo encontra-se uma referenciação catafórica bem colocada em
meio a um diálogo em que Holmes explicava a Watson sobre seus métodos e
porque conseguiu descobrir que havia recentemente chegado dos trópicos; então
Watson tenta compará-lo com alguns detetives de escritores famosos, como Edgar
Allan Poe e Gaboriau.
“É muito simples quando você explica”, disse eu, sorrindo. “Você me lembra Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que existiam pessoas assim na vida real.”
Sherlock Holmes levantou-se e acendeu seu cachimbo. “Sem dúvida acha que está me elogiando ao me comparar com Dupin”, observou. “Em minha opinião, porém, Dupin era um sujeito muito inferior. Aquele truque de se intrometer nos pensamentos com um comentário oportuno depois de um quarto de hora de silêncio é por demais aparatoso e superficial. Ele tinha algum talento analítico, sem dúvida; mas não era de maneira alguma o fenômeno que Poe parecia imaginar.”
“Leu as obras de Gaboriau?”, perguntei. “Lecoq corresponde à sua ideia de um detetive?”
Sherlock Holmes torceu o nariz, sardônico. “Lecoq era um pobre trapalhão” [...] (DOYLE, 2009, p. 42)
Desta vez a retomada ocorre em forma catafórica, em outra cenografia de
conversa informal, com Watson utilizando o pronome “você” antes do nome de
Holmes. Segundo Koch (2012a, p. 19): “Neste caso, se o referente precede o item
coesivo, tem-se a anáfora; se vem após ele, tem-se a catáfora”.
A maneira como Holmes se refere a seus rivais literários realmente comprova
que se acha superior, levando seus interlocutores a crer que ele e seus métodos são
os melhores que há.
75
Holmes, uma vez mais, torna-se seu próprio fiador, colocando-se como o
detetive mais bem preparado e conhecedor dos casos criminais, um mestre da arte
da Dedução e Análise do século XIX.
O personagem utiliza um tom apropriado, termo de Maingueneau (2008), a
fim de se autoelogiar, trabalhando em prol de sua imagem e no propósito de
convencer Watson e os interlocutores.
[...] a um fiador que, por meio de seu “tom”, atesta o que é dito (o termo “tom” tem a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral).
Isso quer dizer que optei por uma concepção mais “encarnada” do ethos, que, nessa perspectiva, recobre não somente a dimensão verbal, mas também o conjunto das determinações físicas e psíquicas associadas ao “fiador” pelas representações coletivas. Assim, acaba-se por atribuir ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”, cujo grau de precisão varia segundo os textos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 64-65)
O capítulo seguinte, concebido a partir de um trabalho concretizado durante o
curso de mestrado, na disciplina de Linguística Textual, terá suas análises focadas
nos enunciados trazidos pelos elementos anafóricos, área bastante trabalhada pela
ciência em questão.
3.3 Capítulo 3 - O Mistério de Lauriston Garden
As análises dos elementos anafóricos que promovem a sequência textual se
iniciam com o estudo de uma primeira retomada anafórica cujo referente encontra-se
no final do capítulo 2. Nesta parte, Holmes recebe um mensageiro com um
telegrama do detetive Tobias Gregson da Scotland Yard clamando pela presença de
Sherlock, se possível, na cena do crime em uma casa da rua Lauriston Garden.
Sherlock Holmes deduziu que o mensageiro era um sargento da marinha reformado
através de alguns detalhes que ele enxergava por suas habilidades especiais em
observar e deduzir.
Fica bem claro, logo no início do capítulo 3, que a intencionalidade de Doyle é
apresentar Holmes ao mundo como um ser humano diferente, superior de certa
forma, mas que se utiliza de detalhes aparentemente insignificantes para tirar suas
conclusões “mágicas”, conforme vemos neste trecho, onde Watson lhe pergunta
sobre a dedução acerca do mensageiro:
76
“Como diabos você deduziu isso?” perguntei.
“Deduzi o quê?” retrucou com petulância.
“Não tenho tempo para ninharias”, respondeu bruscamente [...] foi mais fácil perceber isso do que será explicar como o fiz. [...] Quando o sujeito ainda estava do outro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul tatuada no dorso da sua mão. Senti cheiro de mar. Ele tinha um porte militar, porém, e as costumeiras suíças. Temos aí um fuzileiro naval [...]. Além disso, a julgar pelas aparências, um homem de meia-idade, equilibrado e respeitável – fatos que, juntos me levaram a acreditar que tinha sido sargento.”
“Maravilhoso!” exclamei.
“Banal”, disse Holmes [...] (DOYLE, 2009, p. 56-57, grifo nosso)
A cenografia que aqui se desenvolve é de uma conversa informal, porém não
muito amigável, pois Holmes até responde bruscamente a Watson. Pode-se dizer
que chega ser professoral, pois Holmes explica a Watson, embora de má vontade,
como chegou à conclusão sobre o mensageiro ser um militar.
Holmes está metido em seus pensamentos acerca da mensagem recebida,
portanto, exibe seu comportamento característico, ethos, iniciando sua atividade de
dedução já pelo mensageiro e demonstrando a autoridade que tem no assunto
dedutivo. Consegue, ainda, reunir, segundo Amossy (2011, p. 42) uma qualidade
convincente de orador graças à boa mescla das três componentes do ethos,” ...só o
orador que consegue mostrar em seu discurso os mais elevados graus dessas três
dimensões do ethos – phrónesis, areté, eúnoia – convencerá realmente.”
A maneira como coloca seus enunciados faz de Sherlock um ser
surpreendente à vista de Watson e do leitor. Segundo se entende pelo postulado de
Koch, “A intencionalidade [...] em sentido restrito, refere-se à intenção do locutor de
produzir uma manifestação linguística coesa e coerente, ainda que esta intenção
nem sempre se realize integralmente.” (KOCH, 2009, p. 42). Ou seja, Holmes se
utiliza de argumentos coerentes e de enunciados convincentes no intento de expor
seus conhecimentos e de apresentar seu ethos superior.
O pronome demonstrativo “isso” é um referente anafórico de uma frase no
capítulo 2, quando Watson pergunta a Holmes sobre um sujeito que caminhava pela
rua e este lhe responde: “Você se refere ao sargento reformado dos Fuzileiros
Navais, disse Sherlock Holmes” (DOYLE, 2010, p. 43). A dedução que Holmes faz
do sujeito é devida a um processo mental que demonstra sua superioridade de
77
raciocínio, e o pronome isso pode ser considerado uma anáfora indireta ou
inferencial encapsuladora que aborda os tópicos mentais do detetive, fato que se
percebe quando Sherlock explicita para Watson seu processo de pensamento:
[...] o sujeito ainda estava do outro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul tatuada no dorso da sua mão, Senti cheiro de mar. Ele tinha um porte militar, porém, e as costumeiras suíças. Temos aí o fuzileiro naval. (DOYLE, 2009, p. 57)
Holmes e Watson tomam então um fiacre e se dirigem ao número 3 da
Lauriston Garden para investigar o caso, mas antes que a carruagem chegasse,
Sherlock comenta a Watson, em uma cenografia que pode ser definida como uma
conversa confidencial para convencimento:
Gregson é o homem mais astuto da Scotland Yard, observou meu amigo; ele e Lestrade são a nata de um bando de incompetentes. São ambos rápidos e vigorosos, mas convencionais – escandalosamente convencionais. Além disso, têm aversão um pelo outro. E são ciumentos como um par de beldades profissionais. Esse caso será divertido se ambos estiverem na pista. (DOYLE, 2009, p. 58, grifo nosso)
As palavras em negrito mostram o sentimento de superioridade que o próprio
Holmes alimenta em relação a seus colegas da Scotland Yard, já que a palavra nata
se refere à melhor parte de algo, mas esse algo é definido por Holmes como um
“bando” de “incompetentes”. Há algumas retomadas na sequência que confirmam
ainda mais sua crença na inferioridade dos profissionais da Yard, mas são anáforas
por elipse (correferenciais), explicitadas através dos verbos “são” e “têm” e pelo
pronome “ambos”, apoiadas pela afirmação de serem “escandalosamente
convencionais”.
“A elipse seria, então, uma substituição por zero: omite-se um item lexical, um
sintagma, uma oração ou todo um enunciado, facilmente recuperável pelo contexto”
(HALLIDAY; HASAN, 1976 apud KOCH, 2012a, p. 21).
Holmes tenta convencer Watson de que os detetives da Yard, mesmo sendo
os melhores encontrados na corporação, lhe são muito inferiores, logo, Holmes
clama sua própria superioridade. Podemos observar um trecho de Maingueneau
sobre este tipo de convencimento feito pelo locutor:
O ethos discursivo é coextensivo a toda enunciação: o destinatário é necessariamente levado a construir uma representação do locutor, que este último tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de maneira
78
bastante variável, segundo os gêneros de discurso. (MAINGUENEAU, 2008, p. 79)
Os métodos de Holmes também mostram superioridade em relação aos de
Gregson e Lestrade. Enquanto se encaminhavam ao número 3 da Lauriston Garden,
Watson lhe diz:
Terá todos os seus dados logo, logo, observei, apontando; se não me engano esta é a Brixton Road e aquela é a casa.
Isso mesmo. Pare, cocheiro, pare! Ainda estávamos a cerca de cem metros dela, mas ele insistiu em descer, e terminamos o trajeto a pé. (DOYLE, 2009, p. 59, grifo nosso)
A contração da preposição “de” com o pronome pessoal “ela”, resultando em
“dela”, forma outra relação anafórica correferencial por referência pessoal (pronome
pessoal), dessa vez com o substantivo “casa”. E Watson se utiliza desse elemento
para, através de seu enunciado, mostrar como os métodos de Sherlock são também
superiores, pois ele prefere vir caminhando a pé de uma distância mais longa, de
maneira a preservar quaisquer pistas que o assassino possa haver deixado no
caminho, evitando assim que o fiacre as apagasse ou enfraquecesse após sua
passagem, ou mesmo para apreender pistas no caminho. Segundo Koch (2012a) a
anáfora referencial “é endofórica quando o referente se acha expresso no próprio
texto” (KOCH, 2012a, p. 19).
Todos os elementos anafóricos analisados até o momento possuem o
propósito subjacente, ou seja, a intenção de mostrar o quão superior Holmes é em
relação a seus colegas de ofício. Seus métodos, a maneira peculiar de pensar e agir
demonstram este propósito do autor. Qualquer outro policial provavelmente desceria
do fiacre bem próximo da casa, não se importando com um detalhe aparentemente
sem importância.
Após descer do fiacre e caminhar até a casa, local onde o crime foi praticado,
enquanto analisava o aspecto lúgubre do local, Sherlock inspeciona o quintal à
procura de pistas e critica Gregson por haver deixado a polícia pisoteá-lo,
prejudicando assim o processo.
Dentro da casa é onde se torna possível encontrar mais retomadas relevantes
para a análise. No trecho seguinte, após a vistoria do corpo da vítima por Holmes,
Lestrade aparece para comunicar uma descoberta, e é possível encontrar a quarta
79
anáfora do trabalho, cuja conceituação pode ser classificada na categoria de anáfora
indireta meronímica, pois se refere à parede onde Lestrade encontra uma palavra
escrita em cor vermelho – sangue, “RACHE”, que se constituirá em uma das pistas-
chave para a resolução do mistério.
“Mr. Gregson, disse, acabo de fazer uma descoberta da maior importância, algo que teria passado despercebido se eu não tivesse feito um exame cuidadoso das paredes.”
[...] Neste canto particular da sala, um grande pedaço descascara, deixando um quadrado amarelo de reboco áspero. Neste espaço nu, via-se uma única palavra garatujada em letras vermelho-sangue: RACHE.
“Que acham disso?” exclamou o detetive, com o ar de um empresário a exibir seu espetáculo. ”Passou despercebido porque estava do lado mais escuro da sala, e ninguém pensou em olhar ali. O assassino escreveu isso com seu próprio sangue. Vejam esta mancha onde ele escorreu pela parede! De qualquer maneira, isso afasta a hipótese de suicídio. Por que escolher este canto? Eu lhes direi. Vejam aquela vela no aparador. Ela estava acesa no momento, e nesse caso esse canto seria a parte mais iluminada, não a mais escura da parede.”
”E o que significa isso, agora que você o encontrou? Perguntou Gregson num tom desdenhoso.”
“Significa? Ora, significa que a pessoa ia escrever o nome feminino Rachel, mas foi interrompida antes de ter tempo para terminar. Tomem nota das minhas palavras: quando este caso for esclarecido, verão que uma mulher chamada Rachel tem alguma coisa a ver com ele. Pode rir à vontade Mr. Sherlock Holmes.” (DOYLE, 2009, p. 65-66, grifo nosso)
Gregson, com ciúmes da descoberta de seu colega, pergunta-lhe “E o que
significa isso agora que você o encontrou” (DOYLE, 2010, p. 66), sendo respondido
por Lestrade “Significa? Ora, significa que a pessoa ia escrever o nome feminino
Rachel, mas foi interrompida antes de ter tempo para terminar.” (DOYLE, 2009,
p.66). Neste momento, Holmes solta uma gargalhada que constrange Lestrade.
Este trecho mostra uma cenografia mesclada, Lestrade enuncia, ao mesmo
tempo, em uma cenografia policial, professoral e profética, dizendo-se o melhor
detetive, aquele que pode explicar melhor o caso e ainda por cima prevendo seu
desfecho.
O desdém demonstrado por Holmes em sua risada sarcástica nasce a partir
desta relação meronímica – anáfora indireta - entre parede e reboco áspero onde
se encontra a palavra RACHE que dá origem à dedução errônea de Lestrade. Para
Cavalcante (2011, p. 64) “haveria entre as duas entidades que essas expressões
80
representam uma dependência ontológica particular, em que o referente do
anafórico seria uma parte constitutiva do referente de seu antecedente”.
O trecho deixa transparecer a competição estabelecida entre os dois detetives
da Yard, e também termina por engrandecer o ethos de Holmes por causa do
tratamento irônico que dá às conclusões e previsões de Lestrade, deixando bem
claro que já vislumbrou elementos mais profundos e que seu colega da Yard está
ingenuamente errado. Devido aos tipos de cenografia construídos por Lestrade e
que conduzem ao resultado da análise, torna-se interessante a colocação de uma
citação de Maingueneau sobre o tema:
Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável, etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. (MAINGUENEAU, 2008, p. 70)
Na sequência, na quinta anáfora analisada, o autor continua a utilizar as
anáforas no processo de reforço da imagem de Holmes. Este trecho se encontra
bem próximo ao anterior e mostra Lestrade irritado com a arrogância de Sherlock.
Lestrade lhe diz:
Pode rir à vontade, Mr. Sherlock Holmes. Pode ser muito sagaz e inteligente, mas no fim das contas é o velho cão de caça que se sai melhor.
Peço sinceramente que me desculpe! Respondeu meu companheiro, que agastara o homenzinho com um acesso de riso (DOYLE, 2009, p. 66)
Esse tipo de anáfora se configura como a anáfora por coesão lexical –
mecanismo da reiteração, que é feita por meio da “repetição do mesmo item lexical
ou através de sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos [...]” (HALLIDAY; HASAN,
1976 apud KOCH, 2012a, p. 22).
Entretanto, Sherlock, ao ouvi-lo, apenas persiste em sua gargalhada até que
percebe que está ofendendo seu colega e se escusa, ironicamente claro.
Novamente o autor demonstra sua intencionalidade, pois o epíteto “velho cão de
caça” que deveria denotar experiência, domínio do assunto e competência, apenas
faz com que Holmes desdenhe ainda mais seu colega de profissão, denegrindo a
81
capacidade de Lestrade e apresentando a capacidade de visão mais abrangente de
Holmes.
Este trecho portador da anáfora por coesão lexical, como seu antecedente,
também está relacionado à descoberta da palavra “RACHE”, assim como estará o
sexto elemento anafórico do trecho subsequente, que se encontra já ao final do
capítulo, após Sherlock Holmes haver tido a oportunidade de analisar a parede e
verificar que o nome havia sido escrito com sangue, provavelmente do próprio
assassino, já que a vítima não apresentava ferimentos, fora morta com veneno, o
que Holmes havia descoberto por cheirar os lábios do morto.
Aqui a falta de modéstia de Holmes e o tratamento que dá a seu colega
Lestrade traz um elemento importante de ethos, já que quando se desculpa com o
policial da Yard, seu tom é irônico, justamente para demonstrar aos interlocutores
que é superior aos policiais ordinários. Dentro da teoria do ethos, Holmes falta com
um pilar básico da noção, a areté (honestidade), pois não demonstra abertamente
sua linha de raciocínio a Lestrade, ocultando o processo de raciocínio perante seu
colega até que tenha tempo de examinar a cena do crime, a fim de que possa
alcançar primeiramente uma conclusão valiosa, e, conquanto para Lestrade isso
talvez seja difícil de enxergar, para o interlocutor (leitor) fica óbvio que Holmes “vê”
mais, e, portanto, é superior. Segundo Amossy (2011, p. 32): [...] “se apresentar
como um homem simples e sincero (areté)”. É o que falta a Holmes aqui.
Holmes utiliza, finalmente, seu conhecimento superior em outra língua, no
caso o alemão, para dar um golpe mortal em seus dois rivais, os inspetores Gregson
e Lestrade, deduzindo as características do assassino e desmantelando a teoria de
Lestrade sobre a existência de Miss Rachel, como segue no fragmento:
Lestrade e Gregson entreolharam-se com um sorriso incrédulo. Se esse homem foi assassinado, como isso foi feito? Perguntou o primeiro.
Veneno, respondeu Sherlock Holmes laconicamente e foi saindo. Mais uma coisa, Lestrade, disse dando meia-volta junto à porta: Rache é vingança em alemão; por isso não perca seu tempo procurando Miss Rachel.
82
Com esse arremesso parto1, retirou-se, deixando atrás de si os dois rivais
boquiabertos. (DOYLE, 2009, p. 68, grifo nosso)
Figura 7 – “Ele segurava uma velha botina preta no ar” (in: Doyle,
2010c, p. 216)
Esse termo faz referência a um elemento extratextual, faz uma retomada de
algo, um conhecimento sobre um fato que não se encontra no texto, já que
arremesso parto é um tipo de arremesso certeiro, executado com muita habilidade
pelos guerreiros partos que o faziam ao se voltar sobre seus cavalos e lançar suas
flechas. É uma anáfora exofórica que ocorre quando a “remissão é feita a algum
elemento da situação comunicativa, isto é, quando o referente está fora do texto”
(KOCH, 2012a, p. 19). Novamente Doyle tem a intenção de provar que Holmes é
sagaz e que sabe usar seus conhecimentos teóricos com eficiência para superar
seus colegas de ofício, comparando suas habilidades dedutivas às habilidades
bélicas de guerreiros que em sua época eram superiores aos guerreiros da maioria
dos outros impérios.
O ethos aqui é construído através do desenvolvimento de uma cenografia
professoral e dedutiva; Holmes explica a seus colegas da Yard o que significa a
1 Império que fazia fronteira a leste do Império Romano e que lhe resistiu em função de seus excepcionais
cavaleiros
83
palavra na parede e também mostra que percebeu a presença de um veneno que foi
responsável pela morte da vítima, fazendo com que seus colegas rivais fiquem
tremendamente surpresos. Nesse caso Holmes é seu próprio fiador e se coloca
como um ser superior intelectualmente no mundo da investigação policial. Segundo
Maingueneau (2008):
A especificidade de um ethos remete, de fato, à figura de um “fiador” que, por meio de sua fala, se dá uma identidade em acordo com o mundo que ele supostamente faz surgir. Tal problemática do ethos leva a contestar a redução da interpretação a uma simples decodificação; alguma coisa da ordem da experiência sensível funciona no processo de comunicação verbal. As “ideias” suscitam a adesão do leitor por meio de uma maneira de dizer, que é também uma maneira de ser. (MAINGUENEAU, 2008, p. 72)
A partir das teorias apresentadas, essas são as análises que se fizeram
necessárias para a possível comprovação da construção do ethos sherlockiano.
Essas análises suscitaram algumas considerações finais ao trabalho a fim de
concluir o raciocínio utilizado e apresentar alguns pontos de interesse com vistas a
possíveis futuras pesquisas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os textos escritos por Doyle que contam as aventuras de Sherlock Holmes
realmente instigam a curiosidade do leitor, promovendo um desejo cada vez mais
forte de continuar a leitura até o final, a fim de que se descubra a chave do mistério
que está sendo investigado pelo detetive, entretanto, essa leitura realizada pela
maioria dos interlocutores é, em grande parte das vezes, superficial, sem um
interesse científico, que é justamente o que se busca com este trabalho.
Para os leitores que demandam ou sentem a necessidade de uma maior
profundidade na leitura, que não se contentam somente com os elementos da
superfície textual sem maiores aprofundamentos, a análise e a compreensão de
elementos técnicos pertencentes à Linguística Textual, como os conectores e suas
funções, e à Análise do Discurso, como o ethos, foi executada nesta dissertação,
promovendo, então, maior abrangência técnica na compreensão do texto na
tentativa de trazer contribuições teórico-práticas aos interessados pela área.
A unificação da teoria do ethos e dos elementos da teoria da Linguística
Textual, construída através das análises realizadas no presente trabalho, possibilita
ao leitor uma concepção renovada do detetive Sherlock Holmes. Renovada porque
se toma, por meio desse estudo, consciência e clareza sobre os processos textuais
utilizados por Doyle na construção de seu personagem, o que leva o leitor a
conhecê-los mais profundamente e favorece um raciocínio e uma leitura mais
científicos e menos intuitivos, fazendo do universo sherlockiano um lugar mais
compreensivo e racional e menos intuitivo, “mágico”, uma vez que a maioria das
pessoas que aprecia as histórias do secular detetive apenas faz uma leitura
superficial e não se atêm o suficiente ao “como” as ações e deduções se processam
nos textos que leem.
Por meio da utilização da teoria do ethos, dá-se ciência do como se processa
a construção da imagem de um orador, seja pela fala do próprio, de Watson, neste
caso, ou de terceiros que lhe atribuam qualidades ou defeitos. O ethos, aqui
estudado por meio de escritos de Maingueneau (2008) e Koch (2012), conquanto um
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advento antiquíssimo que remonta mesmo à Grécia antiga, tendo seu estudo e
pesquisa já sido realizados pelo filósofo Aristóteles, mesclou-se nas modernas
teorias de Análise do Discurso das últimas décadas do século vinte e delas pôde
tirar novo vigor, já que passou a ser estudado também à luz dos enunciados
apoiados em novas concepções. Maingueneau, por exemplo, trabalha com a noção
de ethos e com os problemas e dificuldades existentes em torno da noção já há
algumas décadas.
A anexação de alguns conceitos analíticos provenientes da Linguística
Textual de Cavalcante (2011) e Koch (2012), importante área que estuda os termos
em si mesmos e suas correlações dentro e com o enunciado, perpassando a
semântica e tornando possível a compreensão mais detalhada do cerne da
mensagem, somente tem a acrescentar à teoria do ethos, visto que ambas as
teorias podem ser complementárias e trabalhar lado a lado, objetivando a
compreensão da imagem e do conceito que a personagem, no caso Holmes, terá
por parte do leitor.
O escopo do trabalho pôde, portanto, ser atingido, pois as duas teorias,
utilizando-se de conceitos aparentemente desconexos, trabalharam em uníssono,
uma e outra se apoiando e possibilitando, dentro de suas características, auxiliar no
levantamento da superioridade de Holmes, segundo Doyle (2009), sobre todos os
outros investigadores da época, visando assim convencer o leitor da capacidade
intelectual de Holmes. Associando isso aos estudos elaborados pelo detetive e à
resolução de casos que para outros se mostrariam aparentemente insolúveis, têm-
se os instrumentos que possibilitam a Holmes ser quem ele é, um dos melhores
detetives já descritos na literatura policial.
Desta maneira, este trabalho visou apresentar algumas análises dentro das
linhas teóricas já citadas, de forma que possa contribuir para estudos de graduação
ou mesmo de pós-graduação no que se refere ao estudo de conjunções, ou
operadores argumentativos, e sua função dentro do texto, visto que o texto não é
somente um amontoado de palavras, mas sim um conjunto de ideias expressas por
meio de enunciados que se correlacionam, um local onde as conjunções que
aportam esses enunciados trabalham umas com as outras na tentativa de expressar
ideias e levar a conclusões.
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Igualmente, nos cursos de pós-graduação, como os cursos de mestrado em
Linguística, por exemplo, este trabalho intentou apresentar formas de uso das
teorias e dos modelos de análises citados para levar o estudante a aprender mais
sobre os conceitos de ethos e de Linguística Textual e sua aplicabilidade na análise
e interpretação dos enunciados. Neste fazer, o trabalho abarcou conceitos
interdisciplinares que funcionaram como pilares, sustentáculos dos estudos
realizados. Desse modo, esperamos ter podido contribuir para com a formação do
aluno desses cursos e possibilitado o incremento de seu cabedal de conhecimentos
linguísticos e possibilidades outras de análises na tentativa de propiciar diversas
formas de aplicabilidade desses conhecimentos, tanto no estudo das disciplinas que
abarquem esses conceitos como na construção de seus artigos e monografias, ou,
até mesmo, dependendo de sua linha de trabalho, auxiliando na construção de sua
própria dissertação final.
Enfim, a dissertação como um todo teve a intenção de trazer ao leitor alguns
conhecimentos literários sobre Holmes, posto que conjuntos de enunciados dos três
capítulos iniciais da obra foram analisados, à luz das teorias aqui apresentadas, no
intuito de trazer contribuições teórico-práticas a estudantes, professores e pessoas
interessadas nas histórias do detetive, ou que porventura tenham o desejo conhecê-
lo, e para os que queiram se aprofundar nesses conceitos para aplicá-los em seus
trabalhos.
Outrossim, durante o desenvolvimento deste trabalho, percebeu-se a
necessidade de estudos posteriores para clarificar pontos duvidosos que
eventualmente tenham surgido no decorrer das atividades, e isso suscitou a
necessidade de pesquisas adicionais, mais aprofundadas, que poderiam servir de
mote para estudos em âmbito de doutorado.
Como exemplo desses pontos, pode-se citar a questão das cenas da
enunciação desenvolvidas por Maingueneau (2008); ao longo de seu trabalho notou-
se a carência de material mais detalhado sobre quais são e como se organizam as
cenas da enunciação, material que, se pudesse haver sido obtido, teria facilitado
sobremaneira a presente pesquisa.
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