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1 DOCUMENTO/MONUMENTO: A AMPLIAÇÃO DOS MATERIAIS DE PESQUISA UTILIZADOS PELA HISTORIOGRAFIA 1 VERONICA KARINA IPÓLITO (*) ANGELO PRIORI (**) “Em toda a parte a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa, se concentra. Um momento vai além de si próprio, de sua fachada (se tem uma), de seu espaço interno. A monumentalidade pertencem, em geral, a altura e a profundidade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites materiais.” Henri Lefbvre (1999). INTRODUÇÃO O documento é a matéria-prima do historiador. No entanto, o seu uso varia, no tempo e no espaço, conforme a trajetória pessoal e cultural do profissional de história. Mesmo com as diferenças históricas no trato com o documento, o historiador, tanto do presente quanto do passado, deveria explorar a erudição e a sensibilidade das fontes, pois delas dependiam a construção de seus argumentos e o convencimento de sua pesquisa. Nesse sentido, pelo menos duas questões seriam fundamentais: qual a relevância dos documentos para a construção do discurso dos historiadores? Qual a importância dos documentos e como os historiadores os incorporaram em sua escrita? Os primeiros registros da vida humana podem ser vistos nas paredes das cavernas, com a arte rupestre (desenhos e pinturas), que se constituíram nas fontes primárias dos historiadores. Essas sociedades ágrafas deixaram indícios e permitiram que antropólogos, arqueólogos, etnólogos, dentre outros cientistas, elaborassem hipóteses sobre diferentes povos. A questão do uso do documento pelos historiadores é algo que nos remete a diversas concepções. Desde o momento em que a História se constitui como disciplina acadêmica, na segunda metade do século XIX, alguns modelos metodológicos cientificistas rigorosos foram construídos, o que permitiu elaborar diretrizes avaliadoras de autenticidade documental. A concepção dominante na historiografia daquele momento defendia que a comparação de documentos possibilitava a reconstituição de acontecimentos do passado, desde que fossem coligados a uma explicação de causas 1 Versão preliminar de texto que será publicado no livro: Introdução aos Estudos Históricos. Ed. da UEM. Março/2010. Citar a fonte. (*) Verônica Karina Ipólito é mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).. (**) Ângelo Priori, Doutor em História, é Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UEM.

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DOCUMENTO/MONUMENTO: A AMPLIAÇÃO DOS MATERIAIS DE PESQUISA UTILIZADOS PELA HISTORIOGRAFIA 1

VERONICA KARINA IPÓLITO (*) ANGELO PRIORI (**)

“Em toda a parte a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa, se

concentra. Um momento vai além de si próprio, de sua fachada (se tem uma), de seu espaço interno. A monumentalidade pertencem, em geral, a

altura e a profundidade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites materiais.”

Henri Lefbvre (1999).

INTRODUÇÃO

O documento é a matéria-prima do historiador. No entanto, o seu uso varia, no

tempo e no espaço, conforme a trajetória pessoal e cultural do profissional de história.

Mesmo com as diferenças históricas no trato com o documento, o historiador, tanto do

presente quanto do passado, deveria explorar a erudição e a sensibilidade das fontes,

pois delas dependiam a construção de seus argumentos e o convencimento de sua

pesquisa. Nesse sentido, pelo menos duas questões seriam fundamentais: qual a

relevância dos documentos para a construção do discurso dos historiadores? Qual a

importância dos documentos e como os historiadores os incorporaram em sua escrita?

Os primeiros registros da vida humana podem ser vistos nas paredes das

cavernas, com a arte rupestre (desenhos e pinturas), que se constituíram nas fontes

primárias dos historiadores. Essas sociedades ágrafas deixaram indícios e permitiram

que antropólogos, arqueólogos, etnólogos, dentre outros cientistas, elaborassem

hipóteses sobre diferentes povos.

A questão do uso do documento pelos historiadores é algo que nos remete a

diversas concepções. Desde o momento em que a História se constitui como disciplina

acadêmica, na segunda metade do século XIX, alguns modelos metodológicos

cientificistas rigorosos foram construídos, o que permitiu elaborar diretrizes avaliadoras

de autenticidade documental. A concepção dominante na historiografia daquele

momento defendia que a comparação de documentos possibilitava a reconstituição de

acontecimentos do passado, desde que fossem coligados a uma explicação de causas

1 Versão preliminar de texto que será publicado no livro: Introdução aos Estudos Históricos. Ed. da UEM. Março/2010. Citar a fonte. (*) Verônica Karina Ipólito é mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).. (**) Ângelo Priori, Doutor em História, é Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UEM.

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e conseqüências. Ao mesmo tempo, influenciados pelos princípios do racionalismo, os

filósofos afirmavam que o destino da humanidade estaria marcado pelo progresso e

evolução. Logo, os historiadores incorporaram esse pensamento e conceberam a

história, sobretudo na Escola Positivista predominante no século XIX, como

essencialmente política. Sua escrita deveria ser a mais objetiva possível e retratar os

fatos como “eles se passaram realmente”. Essa escrita se fazia através de uma

narrativa de acontecimentos fundamentados exclusivamente em documentos oficiais.

“Concentrado nos grandes feitos e nos grandes homens, o resto da humanidade

permanecia destinado a um papel secundário da história” (ZANIRATO, 1999, p. 94).

No entanto, no século XX, houve uma verdadeira revolução sobre o que se

entendia por documento (LE GOFF, 1992). Peter Burke (1992) ressaltou essa

mudança e afirmou que a historiografia do século XX (sobretudo a francesa,

representada pelos Annales) questionou a objetividade e a autenticidade relegada ao

documento escrito pelos integrantes da Escola Metódica (Positivista) no século XIX. E

enfatizou que a história dos “grandes homens” era uma história “vista de cima”, e por

isso não contemplaria todas as esferas e grupos sociais. O resultado desse embate foi

um significativo aumento das possibilidades de fontes a serem utilizadas pelos

historiadores em suas pesquisas. Além disso, a subjetividade na escrita da história foi

reconhecida e constatou-se a existência de história “das massas”, “vista de baixo” e

até, como propôs Harvey Kaye (1989, p. 201), uma história “vista de baixo para cima”.

O DOCUMENTO NAS DIFERENTES ESCOLAS HISTORIOGRÁFICAS

Antes de tornar-se uma ciência propriamente dita, a história era repassada

grosso modo pela tradição oral por meio de estudiosos amadores, conhecidos como

“antiquários”. Com o Renascimento e o Iluminismo, nos séculos XVI e XVII, a

preocupação se centra na elaboração de um método que dê fundamento à pesquisa

científica. Sem ele, o campo de conhecimento não poderia ser considerado ciência.

Essa nova preocupação trouxe mudanças na narrativa histórica, eliminando a

explicação conjectural e exigindo um rigor “científico”. Rompeu-se com a religião e a fé

deu lugar à razão. Houve mudanças na noção de ciência como também na explicação

histórica. Os conceitos da história começam a se adequar aos pressupostos racionais.

O tempo passa a ser linear, progressivo e irreversível, sendo o passado considerado

um objeto em si e, portanto, visto isolado do presente.

Entre os séculos XVIII e XIX surge a Escola Positivista, de August Comte.

Visando adequar os estudos sociais ao conceito de ciência proposta de acordo com o

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modelo iluminista, Comte elege o documento como método. Buscando a objetividade

científica, essa vertente adotou como mecanismo de estudo o documento em sua

forma seqüencial, descritiva e oficial. Os testemunhos eleitos como método, traziam

em seu bojo, fatos e ações da classe dominante, se caracterizando por sua verdade

absoluta e inquestionável.

Essa narrativa dos acontecimentos políticos e militares, apresentada como a

“história dos grandes feitos e de grandes homens”, passou a ser a forma predominante

na escrita da história. Por volta do século XVIII, alguns intelectuais e estudiosos

começaram a se preocupar com a “história da sociedade”. Leovold Von Ranke, apesar

de ser considerado um positivista, fugiu da perspectiva política e trabalhou com a

Reforma e Contra-Reforma sem rejeitar a história da sociedade, da literatura, da arte

ou da ciência. Jacob Burckhardt analisou a história como um campo em que

interagiram três forças: o Estado, a religião e a cultura. Jules Michelet defendia uma

história por meio da visão das classes subalternas (BURKE, 1997). Essas

perspectivas colocaram em questão o enfoque e o método do positivismo.

O desenvolvimento do capitalismo comercial-industrial, as revoluções liberais

da Inglaterra e da França ocorridas, respectivamente, nos séculos XVII e XVIII e a

independência norte-americana, ocorrida também no século XVIII, destacaram o papel

da burguesia e do Estado na defesa de posições imperialistas e na adesão do

liberalismo como política governista. A considerada “voracidade em acumular capital”

rendeu debates, nos quais o assunto central era a exploração da recém criada classe

operária. As condições de vida desses trabalhadores influenciaram o pensamento de

Karl Marx e o levou a escrever “O Capital”, obra em que defende a concepção de que

a estrutura econômica é a base da sociedade. Opondo-se ao liberalismo, a teoria do

materialismo dialético de Marx defende que as lutas entre as classes dominantes e

dominadas dão sentido à história.

Oferecendo um paradigma histórico alternativo ao de Comte, Karl Marx

argumentava que as causas essenciais da mudança histórica deveriam ser localizadas

nas tensões existentes no interior das estruturas socioeconômicas. Para isso, o

marxismo iniciou um tratamento diferenciado em relação às fontes. Segundo essa

concepção, o documento deveria ser analisado de acordo com um processo histórico,

no qual fosse possível trabalhar as perspectivas de dominantes e dominados (luta de

classes). Ao contrário do positivismo comtiano, o marxismo infundiu a crítica à

especulação filosófica e procurou demonstrar, na análise das fontes, os interesses e

aspirações das classes trabalhadoras. Como enfatiza Janotti, foi sob a influência

desse modelo, que se desenvolveu a pesquisa em Sociologia e Economia:

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a coleta e interpretações de fontes – antes focada na área política e na atuação de grandes personagens – para documentos sobre atividades econômicas, devassando-se cartórios, processos judiciais, censos, contratos de trabalho, movimentos de portos, abastecimento e outros de cunho coletivo e reivindicatório. A historiografia social e econômica sobrepujou a política na preferência dos historiadores que investigaram as estruturas básicas sobre as quais a política se assentava (JANOTTI, 2005, p. 11).

A abordagem do documento no modelo marxista reforçava a importância em

trabalhar com as estruturas, ignorando as intenções dos indivíduos. Nesse modelo, os

mecanismos econômicos deveriam ser identificados. Acreditavam que eles dariam

conta de organizar as relações sociais e, portanto, de articular as formas de discurso.

Em comum, tanto Comte como Marx, decretaram às fontes uma existência

objetiva em que o curso do tempo é marcado pela cadeia de atos que exprimem as

mudanças sucessivas dos acontecimentos. Tal como no positivismo, o tempo continua

linear, evolutivo e com uma direção pré-determinada (passado, presente e futuro).

Já em fins do século XIX, a historiografia francesa expôs questionamentos a

essas escolas. Tais contestações frutificaram principalmente na década de 1920,

momento em que as críticas a esses modelos historiográficos eram particularmente

agudas e as sugestões para a sua substituição bastante férteis. Foi a partir de 1929,

com a fundação da revista Annales d’histoire économique et sociale, que a utilização

do documento como fonte sofreu mudanças significativas. O tempo histórico

ultrapassou os fatos e começou a ser visto numa “longa duração”. Esse conceito,

formulado por Fernand Braudel (1976), introduz na escrita da história, a ideia de

repetição e permanência, sendo, nesse sentido, necessário pensar em sucessão sem

mudança, em repetição, criando permanência onde se articulam as mudanças lentas.

Essa nova interpretação, pluridirecionada e simultânea, opõem-se a uma história

contínua, progressiva, irreversível e total.

Com o movimento dos Annales houve uma considerável ampliação no campo

documental: fontes orais, objetos, ícones etc, superaram a exclusividade do

testemunho escrito no âmbito das fontes. Os sujeitos analisados nessa perspectiva

não são somente os dominantes e os dominados, mas também os marginalizados

(prostitutas, mendigos, ladrões etc), abrindo uma maior possibilidade de diálogo entre

o historiador e a fonte. Essa subjetividade é vista pelas gerações dos Annales como

um ponto positivo e enriquecedor na narrativa histórica, pois permite ao historiador

questionar, problematizar e confrontar as fontes de pesquisa. Por isso, para essa nova

história, o passado não se isola do presente, mas é abordado a partir das questões

levantadas por ele.

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A CRÍTICA AOS DOCUMENTOS: A REVOLUÇÃO DOCUMENTAL

Os integrantes da Escola dos Annales não aceitavam os pressupostos

baseados na superficialidade dos fatos elaborados pela historiografia política

tradicional. Contrapondo essa perspectiva, desenvolveram o método da História-

problema, que consistia na busca e interpretação das fontes segundo as hipóteses

que partiam do historiador. Todas as ações do homem e na sua vida em sociedade

eram consideradas da mesma importância.

A reconstrução do passado, nesse sentido, tornou-se mais rica em virtude da

expansão da noção de documento. Lucien Febvre nos deixa explícito em sua obra

“Combates pela história”, a mudança no trato com o documento, partindo da

interpretação e da possibilidade em explorar vários tipos de fontes:

a história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo, o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de boi. Com exames de pedras por geólogos e análises de espada de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (FEBVRE, 1985, p. 249).

A partir da crítica feita aos documentos, a escola historiográfica dos Annales

inovou na ampliação das fontes de pesquisa. Um exemplo disso foi a utilização da

história oral, introduzida na pesquisa histórica principalmente nos anos de 1950,

sobretudo nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. A história oral, a

exemplo dos outros tipos de fontes adotados nesse momento, manifestou-se no seio

dos movimentos sociais, procurando dar voz aos marginalizados e excluídos.

Jacques Le Goff (1992), em sua obra “História e memória”, afirma que não

basta haver uma diversidade documental na pesquisa histórica. Abordando

diretamente a postura do historiador, Le Goff defende a crítica em profundidade

iniciada pelos fundadores dos Annales, que puseram em discussão o documento

como tal. Nesse sentido, para o autor, o historiador não deve assumir o papel de

ingênuo. Compete a ele problematizar o documento, não isolando-o de sua realidade.

Por isso, Le Goff afirma que todo documento não é inofensivo. Trata-se,

evidentemente, de um instrumento de poder. A escolha do historiador em selecionar

um documento em detrimento de outro, atribui um “valor de testemunho”, que garante,

ao contrário do que os positivistas pensavam, uma escolha pessoal e, portanto,

subjetiva.

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Os documentos, que outrora falavam aos positivistas, hoje murmuram nos

ouvidos dos pesquisadores. Desmistificar o significado aparente do testemunho vai

muito além da simples compilação dos escritos. Exige do profissional da história, uma

preparação e adequação com os preceitos de interpretação, análise e problematização

da disciplina histórica.

UM NOVO SENTIDO PARA AS FONTES

O documento, para a Escola Positivista do fim do século XIX e início do século

XX, era considerado o fundamento do fato histórico e apresentado como prova

histórica. A concepção de documento muda, substancialmente, com a Escola dos

Annales. Antes, apenas o documento manuscrito era considerado fonte histórica.

Hoje, essa ideia foi ampliada. “Não há história sem documentos (...). Há que tomar a

palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido

pelo som, imagem, ou de qualquer outra maneira” (SAMARAN, citado por LE GOFF,

1992, p. 540).

Desde a Idade Média e, principalmente com o Renascimento, houve uma

preocupação com a busca da autenticidade. Essa procura recebe novo

direcionamento quando Paul Zumthor estabelece a relação documento/monumento.

Foi Zumthor que identificou o que transforma o documento em monumento, “a sua

utilização pelo poder” (LE GOFF, 1992, p. 543). Logo, todo documento permanece

como monumento. Revestindo-se em documento arquitetônico, escultural, escrito ou

iconográfico, o monumento é utilizado como testemunho de poder. Esse poder é

perpetuado pela memória coletiva, a qual tenta recordar as futuras gerações sobre sua

existência, instruindo-as e avisando-as sobre a importância e força que possui.

Buscando as origens etimológicas das palavras documento e monumento, Le Goff

(1992) apresenta as maneiras distintas como esses conceitos foram utilizados pelos

historiadores durante o desenvolvimento da ciência histórica. Sobre o monumento, Le

Goff afirma:

A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (meminí). O verbo monere significa 'fazer recordar', de onde 'avisar', 'iluminar', 'instruir'. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [Philippicae, XIV, 41], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado. Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento funerário destinado a

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perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte (1992, p. 536). [Grifos no original].

Antes do século XX, as escolas historiográficas concebiam os monumentos

como “atos escritos”, ou seja, documentos jurídicos e políticos, ou eram representados

por coleções de documentos, glorificando a história de um país ou de um povo. Tanto

que até a primeira metade do século XIX, não são raras as coletâneas como

Monumenta Germaniae historica, Monumenta historiae patrie, Monumenti di storia

patria delle provincie modenesi, dentre outras. Por isso, muito mais do que propor uma

“revolução documental”, a concepção de documento/monumento direciona o

historiador a uma crítica dos documentos enquanto patrimônio de uma sociedade,

defendendo uma história-problema, como proposta pelos Annales.

O documento como monumento é submetido à crítica interna, sendo analisado

pelas condições de sua produção histórica e pela intencionalidade inconsciente de seu

autor. Ao lançarmos nosso olhar crítico sobre fontes de diversas naturezas, estamos

resgatando o cotidiano de uma época, a experiência de personagens muitas vezes

esquecidos ou marginalizados pela história tradicional.

Afinal, se a história é a ciência que problematiza a vida, compete ao historiador

compreendê-la e não julgá-la. Seu ofício, a partir dos Annales, passou a ser a

inaceitabilidade das coisas como são dadas. É preciso ter em mente a elaboração de

problemas e a formulação de hipóteses diante de um objeto de pesquisa e tecer um

conhecimento cientificamente elaborado (FEBVRE, 1985).

Por isso, o primeiro passo para a pesquisa é uma análise preliminar da

documentação disponível e seleção de um corpo documental considerados úteis ao

tema pretendido. Diante da documentação disponível, o profissional da história deverá,

partindo das hipóteses que formulou, realizar a comparação ou a refutação das fontes.

Para isso, é necessário que o historiador tenha em mente que a ciência, o relato, o

livro e qualquer outro tipo de documentação não são, em princípio, o que se acreditava

que fossem. É preciso, segundo Michael Foucault (2008), questioná-los. Existem

várias condições que justificam o aparecimento de um dado objeto. A análise do

discurso transposto no documento é diagnosticar o que se diz, em que época e para

quem se fala, estabelecendo, dessa forma, tramas de relações. Estas podem ser

conhecidas por meio de análises de formas sociais, econômicas, comportamentais,

institucionais, entre outras.

Os feixes de relações que se estabelecem entre os discursos não se

restringem à fala, são feitos de signos, que são utilizados para designar coisas.

Baseado nessa linguagem de símbolos, Foucault (2008) formula questões para

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descobrir quem é o sujeito falante, quais as suas intenções, em que contexto histórico

ele se encontra e se manifesta e por que ele defende tal posição e não uma outra.

Outro ponto importante que Foucault (2008) defende é a identificação de

relações que se formam a partir desse sujeito: relações de poder, dominação,

divergência entre classes sociais ou grupos políticos e profissionais.

Ao estabelecermos essa relação de estudo da memória coletiva e de tipos

materiais, estaremos construindo, como afirmou Le Goff uma ponte entre documento e

monumento. O autor deixa explícita a importância de cada um deles. Sobre o

monumento, afirma que “tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação,

voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)

e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos”

(1992, p. 536). Le Goff define os documentos como “escolhas do historiador”. Cabe ao

profissional da história identificar e definir as suas fontes, ciente de que o documento

não é inofensivo, mas sim, “uma montagem consciente e inconsciente, da história, da

época, das sociedades que o produziram. O documento é monumento. Resulta do

esforço das sociedades históricas para impor ao futuro (...) determinadas imagens de

si próprias” (1992, p. 472. grifos nossos). Para demonstrar a ambivalência existente

em documento/monumento, é preciso haver uma interdisciplinariedade, buscando,

principalmente em outros campos das ciências sociais, subsídios que ultrapasse uma

única crítica histórica.

Os avisos simbolizados no monumento representam o discurso do poder.

Construído como signos das ideologias dominantes, o monumento, sobretudo os

arquitetônicos ou esculturais, representam os poucos dominantes para a grande

massa dominada, “da qual a única resposta que se espera deve vir sobre a forma de

respeito, admiração e até mesmo medo”. Enfim, os monumentos, enquanto

documentos diversos (esculturais, arquitetônicos, escritos, gestuais, dentre outros) são

“a própria espacialização de uma ideia, de uma concepção de mundo que procura

tanto sua auto-afirmação quanto a subjugação de outras ideias e concepções

destoantes” (RODRIGUES, 2001, p.04).

Nesse sentido, a história procura dar vozes aos monumentos arqueológicos,

questionando a sua neutralidade e, com isso, buscando definir os pensamentos, as

imagens, as representações, os temas, as observações, as obsessões “que se

ocultam ou se manifestam nos discursos” e também os “próprios discursos, enquanto

práticas que obedecem as regras” (FOUCAULT, 2008, p. 157). Como proposto por

Foucault, temos que trilhar o campo das possibilidades e não sustentar as

determinações. O resgate do momento histórico deve ser feito, analisando os mais

diversos sentidos e versões que estão ao alcance do historiador. Mais do que a

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análise de documentos textuais, é importante que se estabeleça um diálogo entre o

profissional da história e o conjunto de valores e tradições do contexto em estudo.

Ao se propor em trabalhar com a interpretação de símbolos que justificavam o

poder de Constantino, Le Goff (1992) utilizou um rol de fontes, não somente

manuscritas, mas documentos não escritos, como ícones da numismática2 e a

contribuição de outras ciências, como a arqueologia. Também Foucault (2008)

observou a medicina ao longo dos tempos, atentando para as diversas explicações

que se fizeram dela em épocas distintas, utilizando, para isso, o discurso médico e a

posição das classes sociais. Por essas práticas e diversificação de fontes, é que o

historiador tem o dever de expandir a noção de documento:

O novo documento, alargado para além dos textos tradicionais, transformado – sempre que a história quantitativa é possível e pertinente – em dado, deve ser tratado como um documento/monumento. De onde a urgência de elaborar uma nova erudição capaz de transferir este documento/monumento do campo da memória para o da ciência histórica (LE GOFF, 1992, p. 549).

A memória coletiva (monumento/documento) é algo próprio de uma sociedade,

ou de classes dominadas ou dominantes. Nisso ninguém se sobrepõe. A memória

social domina todas as questões da vivência humana e se constitui como identidade,

seja individual ou coletiva. Nesse aspecto, a memória pode ser entendida como

instrumental de poder. Sobretudo nas sociedades em que a tradição oral está

manifestamente arraigada, podemos compreender a luta pela recordação e, portanto,

pela atuação da memória.

Atualmente, as interpretações que se fazem do documento levantam questões

que vão além da objetividade e neutralidade. Todo documento revela uma intenção,

expressando o poder da sociedade e ou do meio em que foi produzido sobre a

memória e o futuro. Por isso que Foucault e Le Goff afirmam que o documento é

monumento. A constatação que a inocência do documento é um mito, possibilitou a

abertura a várias interpretações de historiadores e, consequentemente, a ampliação

da área documental. Textos e produtos da arqueologia (muitas vezes tratada

separadamente da história) não são mais as únicas fontes dos estudos históricos. Em

contraposição a essa prática da história tradicional, muitos estudiosos inovaram no

2 De todas as “ciências auxiliares”, a Numismática é talvez a mais antiga. É a ciência das moedas cunhadas em objetos de metal, cujo peso ou título são garantidos por uma ou várias impressões das autoridades que os emite. A moeda metálica recebe a impressão das duas cunhas entre as quais ela é colocada quente. Assim, constituem-se os tipos monetários, que por seu número e sua diversidade, são um importante objeto de estudos: a procura da origem de cada um deles, a sua qualidade estética, as informações políticas, militares, religiosas. Um exemplo: em numismática antiga, pode-se perguntar a ideologia das famílias dominantes ou do imperador reinante, ou os meios de propaganda do imperador etc... Pode-se também inferir sobre a circulação e da longevidade dessas moedas – princípio da história econômica.

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campo dos documentos, chegando a incluir, gestos, depoimentos, informática e

imagens a seu material de pesquisa.

Seja como obra arquitetônica, escultural ou documento histórico escrito,

iconográfico ou oral, o monumento serve de testemunho de poder e se constitui em

uma força legada à perpetuação da memória coletiva e a certeza da recordação de

suas práticas às gerações futuras. O monumento não carrega uma categoria concreta

por não se limitar ao objeto, mas leva consigo formas simbólicas, abstratas, que

constituem a sua monumentalidade e exercem formas de continuidade no imaginário

social.

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