Texto I - Eficácia externa das obrigações

Embed Size (px)

Citation preview

SNTESE PARA OS ALUNOS SOBRE A CHAMADA EFICCIA EXTERNA DAS OBRIGAES

Bibliografia portuguesa mais relevante: VAZ SERRA, Responsabilidade de terceiros no no cumprimento de obrigaes, BMJ 85, 1959, pp. 345-360 ANTUNES VARELA, Das obrigaes em geral, Almedina, Coimbra, vol. I, 10. ed., 2003, pp. 166-169 e 172-182 FERRER CORREIA/VASCO LOBO XAVIER, Efeito externo das obrigaes; abuso do direito; concorrncia desleal, RDE V/1, 1979, pp. 3-19 MENEZES CORDEIRO, Direito das obrigaes, vol. I, AAFDL, Lisboa, 1980, 251-284 L. MENEZES LEITO, Direito das obrigaes, vol. I, 3. ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 97-101 E. SANTOS JNIOR, Da responsabilidade civil de terceiro por leso do direito de crdito, Almedina, Coimbra, 2003.

I COLOCAO DO PROBLEMA: Um terceiro que, sabendo da existncia de um crdito contratual, contribua para o respectivo no cumprimento designadamente, colaborando com o devedor no no cumprimento, instigando-o a no cumprir ou impedindo-o de cumprir deve ser responsabilizado pelo no cumprimento? Como exemplos concretos desta questo, podem ver-se os casos prticos n.s 7 e 8, alnea b), de 2003-2004. A este problema d-se tambm o nome de problema da eficcia externa das obrigaes, da oponibilidade das obrigaes a terceiro ou, pelo lado negativo, da relatividade da obrigaes em termos de eficcia. Ou ainda: o problema da leso do crdito por terceiro. No se deve confundir esta matria com a da relatividade estrutural das obrigaes, ou seja, com a afirmao (verdadeira) de que todas as obrigaes so

1

relativas na medida em que a obrigao assenta, por definio, num dever de uma pessoa determinada, o devedor, perante uma pessoa determinada, o credor. Em rigor, pode haver vrios devedores ou credores de uma s obrigao, mas tero sempre de ser pessoas determinadas1[1]. O direito de crdito , estruturalmente, um direito relativo; os direitos reais, o direito de autor, a propriedade industrial e os direitos de personalidade so direitos absolutos. A relatividade estrutural das obrigaes pouco discutida e corresponde a um aspecto descritivo e essencialmente terico da obrigao. Diz-nos o que uma obrigao, em si mesma considerada, numa anlise formal. Pelo contrrio, o problema da relatividade em termos de eficcia amplamente discutido e verdadeiramente um problema jurdico: trata-se de saber se, no caso de um terceiro lesar o crdito, ele ser ou no civilmente responsvel. Este problema da oponibilidade da obrigao a terceiros o problema da resposta a um quid iuris. Ainda para esclarecer a importncia prtica da questo, note-se que, quer o terceiro seja responsvel quer no, o devedor quase sempre responsvel. S no o ser se a interferncia do terceiro tiver ocorrido independentemente da sua vontade, o que pouco frequente. Nos casos mais comuns, o devedor responsvel, porque violou culposamente a obrigao. A pergunta que se faz e a que tentamos aqui responder se o terceiro tambm responsvel, alm do devedor. O que tem o maior significado quando o devedor no tem patrimnio suficiente para indemnizar totalmente o credor lesado. Convm lembrar a terminologia bsica: uma obrigao estabelece-se entre credor e devedor. Ao direito do credor chama-se crdito, e o direito de exigir e receber a prestao, que o comportamento devido. O devedor tem um dbito (ou dvida, sobretudo se for a entrega de dinheiro). Ao dbito tambm se chama

1[1]

Mesmo que o momento da determinao seja posterior ao da constituio. Cf. art. 511. CC.2

obrigao. A palavra obrigao por vezes usada para designar o conjunto do crdito e do dbito. Leia-se o art. 397..

II TESE ARCAICA Houve quem defendesse que seria impossvel a um terceiro lesar o crdito, devido relatividade estrutural. Disse-se que, se s o devedor tem o dever de cumprir, s ele poderia violar o crdito. Os terceiros no teriam sequer a possibilidade lgica de violar o crdito. Esta tese a que chamamos arcaica deduz a relatividade de eficcia a partir da relatividade estrutural, numa argumentao conceptualista. E evidentemente uma tese errada, j que os terceiros tm muitas maneiras de lesar o direito do credor: quer impedindo o devedor de cumprir (p. ex., sequestrando-o), quer, em termos mais gerais, tornando impossvel o cumprimento (a prestao), quer recebendo uma prestao (irrepetvel) em lugar do credor, quer instigando o devedor a no cumprir, quer apoiando-o no incumprimento.

III TESE TRADICIONAL Podemos chamar tese tradicional quela que defende, em termos gerais, a relatividade de eficcia das obrigaes e dos contratos, embora com os limites abaixo indicados. Alguns autores chamam intermdia a esta tese, por se situar entre aquela chammos arcaica e a tese da eficcia externa geral. A tese tradicional tem alguma proximidade com a tese arcaica, porque alguns dos autores que a defendem tambm no distinguem claramente o problema da relatividade estrutural do problema da oponibilidade. Contudo, alguns outros autores fazem a distino. A tese tradicional, todavia, invoca outros argumentos em favor da relatividade de eficcia. Eis os dois mais importantes: 3

- -

A inoponibilidade da obrigao a terceiros , para estes autores, um

trao essencial que distingue o direito de crdito dos direitos reais. A obrigao s vincula o devedor. S o devedor deve cumprir. Pelo contrrio, os direitos reais so oponveis erga omnes, como se v pelo regime da reivindicao, que pode ser exercida contra qualquer detentor do bem (ubi rem meam invenio, ibi vindico cf. art. 1311.). - Um contrato (obrigacional) no pode produzir efeitos para terceiros,

como resulta, na lei portuguesa, do art. 406./2. Para os defensores da tese tradicional, a eficcia externa das obrigaes estaria explicitamente afastada pelo art. 406./2. E, na verdade, seria inadmissvel que duas pessoas, num contrato entre si, estipulassem vinculaes para terceiros. Para esta tese, mas tambm para toda a discusso, o art. 406./2 nuclear.

- -

Pode considerar-se um terceiro argumento, que acentua a posio

especfica do devedor como obrigado, passe a redundncia. Numa obrigao, o devedor, no caso de no cumprir (culposamente), responsvel pelos danos causados ao credor (art. 798.). Se um terceiro induzir ou apoiar o devedor no no cumprimento, isto no afasta que, em primeiro lugar, foi o devedor que violou a sua obrigao. Era com o devedor que o credor poderia contar para cumprir e com o patrimnio do devedor que o credor pode contar para uma indemnizao por incumprimento. Era inclusive naquela pessoa que o credor podia confiar. Ora, se o devedor indemnizar o credor pelos seus danos, como manda a lei, o problema da eficcia externa perde toda a relevncia prtica, porque o credor logo satisfeito pelo devedor, no tendo mais nada que pedir a um terceiro. Se, pelo contrrio, o devedor no tem bens, no tem um patrimnio suficiente para indemnizar plenamente o credor, a perda que o credor assim sofre dever, para a doutrina tradicional, ficar com esse mesmo credor, e no ser transferida para um terceiro, j que foi o credor que

4

escolheu, contratualmente, o seu devedor e tinha o nus de escolher um devedor com patrimnio suficiente para uma eventual indemnizao.

Em favor da tese tradicional, ainda se juntam, por vezes, os trs argumentos seguintes, mas que parecem improcedentes: - A obrigao no seria oponvel a terceiros por razes de segurana

jurdica. Se a obrigao lhes fosse oponvel, qualquer pessoa que contratasse estaria sujeita a que, mais tarde, lhe viessem opor um contrato prvio que j vinculava a sua contraparte impedindo-a de cumprir licitamente o segundo contrato. Diz-se tambm, de modo semelhante, que os terceiros no tm nenhum dever de investigar se existia ou no um contrato prvio incompatvel com o seu, pelo que no seria possvel responsabiliz-los. Supomos, porm, que este argumento incorrecto. No h nenhum problema de segurana jurdica, j que a tese da eficcia externa defende apenas que, se o terceiro souber da obrigao anterior, no poder ter comportamentos que inviabilizem o seu cumprimento. Como a tese da eficcia externa pressupe conhecimento, no h qualquer problema de se criar insegurana com a possibilidade de um terceiro vir a ser surpreendido com uma obrigao anterior. Pela mesma razo, a teoria da eficcia externa no afirma que exista algum dever de investigar obrigaes anteriores. Acrescente-se, ainda assim, que, se esta teoria estiver correcta, sero imaginveis alguns casos, embora raros, em que esse dever surgisse (p. ex., quando o credor faa chegar ao terceiro indcios fortes da existncia do crdito). - Diz-se tambm que a tese da eficcia externa estaria errada porque a

lei permite a celebrao vlida de dois contratos cujo cumprimento simultneo seja impossvel. A lei prev inclusive o modo de proceder quando o devedor no tem meios para cumprir todas as obrigaes que o vinculam. Os credores com crditos anteriores no tm qualquer preferncia, designadamente em matria de concurso de credores (cf. art. 604.). Esta seria, alis, outra diferena entre obrigaes e direitos reais, j 5

que, celebrando algum dois contratos com eficcia real incompatveis, o segundo, normalmente, no teria validade (cf. art. 892.). Este argumento tambm parece improcedente, embora, de facto, se d conta aqui de um regime de direito das obrigaes o do concurso de credores, em que no h, normalmente, prevalncias por ordem cronolgica2[2] sem paralelo em direitos reais. De qualquer modo, o argumento improcede na medida em que confunde o problema da validade de contratos incompatveis com o problema da

responsabilidade de algum que interfira com o cumprimento dum contrato obrigacional prvio. que a validade dos negcios jurdicos e a responsabilidade so institutos que se colocam em planos substancialmente diferentes. claramente admissvel um contrato vlido que, apesar disso, torne responsveis as partes que o celebraram ou, sobretudo, que o venham a cumprir. A invalidade dos negcios jurdicos, para mais, surge, designadamente, por o seu objecto ser ilcito (cf. art. 280.), mas esta ilicitude apenas a que resulte directamente de uma disposio legal injuntiva, nunca estaria em causa a simples incompatibilidade de um contrato com um contrato (obrigacional) anterior, que, alis, pode a qualquer momento ser revogado pelas partes. Acrescente-se que eis um aspecto muitas vezes esquecido mesmo quanto a direitos reais, vlido um contrato que pretenda dispor sobre um direito alheio, pelo menos quando as partes reconheam essa alienidade (cf. arts. 893. e 904.). A venda de bens alheios reconhecidos como tal perfeitamente vlida!3[3]

Embora inoponvel ao proprietrio. E, se essa venda for cumprida sem consentimento do proprietrio, surgir muito provavelmente uma obrigao de indemnizar, uma vez verificados os pressupostos desta.

2[2]

No h prevalncia cronolgica entre os credores comuns. Os credores com garantia real, pelo contrrio, prevalecem entre si por ordem cronolgica, na maior parte dos casos. 3[3] Em Direito Comercial, toda a venda de bens alheios vlida (art. 467./2. CCom). Note-se, ainda, que o art. 892. CC bastante discutvel de iure condendo. Por fim, sublinhemos que, de iure condito, o art. 892., como resulta da sua letra, no estatui uma verdadeira nulidade (tpica; cf. art. 286.), mas sim uma invalidade especial, marcada desde logo por duas regras de inoponibilidade.6

- -

Alega-se, em terceiro lugar, que os casos de eficcia de contratos

(obrigacionais) para terceiros seriam (s) os dos arts. 413. e 421. (contrato-promessa e pacto de preferncia com eficcia real, alm da obrigacional), que seguem, alis, requisitos bastante apertados. Este argumento tambm parece incorrecto, j que o nosso problema apenas o de saber se um terceiro que lese o crdito ser civilmente responsvel, ou seja, se dever indemnizar pelos danos do credor. Os arts. 413. e 421. no se relacionam com a matria da responsabilidade civil, mas sim com a exigncia de um bem a terceiro por fora de um direito real sobre esse bem. Direitos reais so apenas os estabelecidos na lei (cf. art. 1306.), mas o problema da eficcia externa no o de conferir um direito real. As pretenses reais e as pretenses indemnizatrias no tm nada em comum, como melhor se ver no fim deste texto.

IV CINCO LIMITES RELATIVIDADE DE ACORDO COM A TESE TRADICIONAL A tese tradicional, em suma, defende a relatividade dos contratos e das obrigaes, com base na inexistncia de equivalente ao art. 1311. em direito das obrigaes e, sobretudo, na disposio do art. 406./2. Reconhecem-se, porm, pelo menos, cinco limites relatividade das obrigaes e contratos, que tm assento legal claro (como o prprio art. 406./2 ressalva): - O contrato a favor de terceiro (arts. 443. e ss.). Ocorre esta figura

quando as partes estipulam no contrato que um terceiro adquira certo direito. preciso que as partes o estipulem, ou seja, o declarem (expressa ou tacitamente). Assim, a mxima res inter alios acta nec nocet nec prodest 4[4] foi praticamente negada quanto parte final (nec prodest). Esta figura do contrato a favor de terceiro foi um importantssimo passo histrico de restrio regra da relatividade dos contratos. A4[4]

letra, coisa tratada por outros no prejudica nem favorece.7

sua aceitao nos sistemas jurdicos foi tardia. S no sc. XIX foi reconhecida nos direitos continentais, e ainda mais tarde nos anglo-saxnicos. No direito ingls, s com o recente Contracts (Rights of third parties) act de 1999, que afastou os precedentes judiciais em vigor. O contrato a favor de terceiro, de qualquer modo, no tem significado directo para a questo da oponibilidade do crdito a terceiros, porque nele s se atribuem direitos a terceiros. Note-se ainda que o contrato a favor de terceiro no diz respeito apenas ao Direito das Obrigaes, pois com ele podem tambm atribuir-se direitos doutra natureza, p. ex., direitos reais (cf. art. 443./2). Mesmo quanto s obrigaes, no serve s para constitu-las em favor do terceiro, mas tambm para extinguir as que o vinculassem (art. 443./2, remitir dvidas). - Os contratos com eficcia real. Diz o art. 406./2 que os contratos no

produzem efeitos para terceiros. No entanto, quando um contrato tenha eficcia real, e porque os direitos reais so oponveis a terceiros (salvo poucas excepes), o art. 406./2 no impede essa oponibilidade. Nos contratos com eficcia real, tem interesse distinguir duas situaes: por um lado, aqueles em que h a simples atribuio de um direito real de gozo ou de garantia (como a compra e venda, um contrato de constituio de uma hipoteca ou um contrato de constituio de usufruto), atravs dos quais os terceiros podem ser atingidos de modo algo indirecto; por outro, aqueles em que o contrato constitui uma obrigao reforada por um direito real de aquisio (vide arts. 413. e 421.). Este segundo grupo de casos, mais interessante, permite que o prprio contedo do contrato venha de alguma forma a ser exercido contra um terceiro. Veja-se que o regime dos arts. 413. e 421. faz depender a eficcia real de pressupostos bastante apertados. A limitao do art. 406./2 pelos contratos reais quoad effectum , por assim dizer, a sua limitao por excelncia, assinalando, no entendimento tradicional, a diferena entre obrigaes e direitos reais.

8

- -

A impugnao pauliana5[5] e o regime da falncia. Nos termos dos

arts. 610. e ss., um terceiro que, de m f ou a ttulo gratuito, adquira bens de um devedor, impossibilitando ou dificultando assim que os respectivos credores satisfaam os seus crditos, fica sujeito a que os bens adquiridos continuem a responder pelas dvidas em causa, podendo ser executados no patrimnio do adquirente. Deste modo, uma simples obrigao acabar por ser invocada contra um terceiro que lesou o credor atravs da aquisio de bens do devedor. O regime da falncia6[6], inclusive com proteco penal7[7], desenvolve a ideia bsica, com alguns acrscimos. A impugnao pauliana manifestamente um caso de eficcia externa das obrigaes, em sentido amplo. Devem, porm, notar-se duas coisas: primeiro, que a consequncia da impugnao pauliana que o bem adquirido por terceiro pode ser executado para satisfao do credor; pelo contrrio, o nosso problema da eficcia externa o de haver ou no responsabilidade civil, ou seja, a obrigao de indemnizar pelos danos que o credor sofra devido a terceiro. Em segundo lugar, e com alguma importncia, deve notar-se que a impugnao pauliana reage contra terceiros que interfiram sobre o patrimnio do devedor, ou seja, sobre a chamada garantia das obrigaes (arts. 601. ss.). A impugnao pauliana no se relaciona com o prprio cumprimento das obrigaes. O direito do credor ao cumprimento anterior ao seu direito de agir sobre o patrimnio do devedor em caso de no cumprimento. A impugnao pauliana s se preocupa com este segundo momento de proteco do credor. - O abuso do direito (cf. art. 334.). Apesar do art. 406./2, um terceiro

que impea o devedor de cumprir ou que o instigue a no cumprir com a inteno exclusiva de prejudicar o credor ou devido a um interesse seu de valor insignificante5[5]

menos significativa a relao entre o tema da eficcia externa e o da aco sub-rogatria (arts. 606. e ss.). 6[6] Arts. 151. e ss. do CPEREF de 1993. So significativos alguns outros preceitos do mesmo cdigo. 7[7] Vejam-se os crimes dos arts. 227. e ss. CP (quanto aos terceiros, cf. art. 227./3, alm do art. 28.).9

ou desproporcional ficar obrigado a indemnizar o credor, nos termos do art. 483.. A ilicitude do seu comportamento resulta do art. 334.8[8]. Trata-se, de facto, de um exerccio inadmissvel de situaes jurdicas, na modalidade de exerccio em desequilbrio9[9]. Esta , para a doutrina clssica, a limitao primordial regra da relatividade das obrigaes e dos contratos, atenuando um possvel rigor excessivo do art. 406./2. Sublinhemos, de qualquer modo, o seguinte: a invocao do abuso de direito para efeitos de responsabilidade civil no tem nenhuma relao especfica com o tema da eficcia externa. um problema geral. Alis, para ser invocado o abuso do direito (na modalidade de exerccio em desequilbrio) com vista obrigao de indemnizar, no necessrio existir um crdito atingido, ou seja, no necessrio que o lesado tenha sequer um direito. A leso pode surgir, por exemplo, quando um terceiro impede a futura celebrao de contratos com o lesado (que, claro, no tem qualquer direito a essa futura celebrao). A invocao do abuso do direito nos casos que estudamos, portanto, no representa um modo de proteco do crdito, em si mesmo considerado, mas sim um modo de proteco do patrimnio do credor, enquanto valor econmico global. Alguns autores opem-se a esta argumentao assente no abuso de direito. Simplificando, dizem eles que, para haver abuso, seria preciso haver um direito. Como os terceiros aqui visados no exercem nenhum direito subjectivo, o problema no se relacionaria com o art. 334.. Supomos que este contra-argumento no correcto, por duas razes. Primeiro, devido a um argumento de maioria de razo. Se quem tem um direito subjectivo, situao jurdica activa por excelncia, no pode exerc-lo em certos termos, considerados abusivos, ainda menos poder agir nesses termos quem nem sequer titular dum direito subjectivo. Em segundo lugar, e com maior importncia, devido natureza do abuso do direito e do art. 334., que o consagra. Na verdade,8[8]

Esta uma argumentao semelhante que, no direito alemo, se faz a partir do 826 BGB, que complementa o 823 do mesmo cdigo. O 823 semelhante ao nosso art. 483./1. 9[9] Numa conceptualizao mais antiga, falar-se-ia aqui de exceptio doli.10

trata-se aqui de uma clusula geral, alis amplssima (o art. 334. a clusula geral das clusulas gerais), destinada a permitir ao intrprete-aplicador superar resultados injustos, contrrios aos princpios do sistema, a que se chegaria numa simples aplicao do direito estrito, ou seja, simplificando, das disposies legais directa e especificamente reguladoras de cada matria. O abuso do direito uma das janelas do sistema de fontes, como se costuma dizer, permitindo aproximar o sistema jurdico do direito justo. Por outro lado, o abuso do direito um instituto com validade de princpio, pouco dependente de concretizaes legais (vrios pases no o referem na sua legislao, sem que isso tenha grande importncia). um dispositivo jusmetodolgico fundamental, ao lado da interpretao-aplicao da lei. Por isso, querer sustentar que o art. 334. se refira apenas a direitos, no dispondo para outras situaes jurdicas (como a liberdade contratual genrica), parece ser

metodologicamente inadequado e contrrio prpria funo do instituto. - A proibio de concorrncia desleal (cf. art. 317. CPI). Outra

restrio ao art. 406./2 com claro apoio na lei a que decorre da proibio de concorrncia desleal. Trata-se aqui de uma disposio que visa o exerccio da actividade comercial e que probe uma srie de actos, identificados no art. 317. CPI como contrrios s normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade econmica. Alm da clusula geral do corpo do artigo, esta disposio ainda enumera exemplificativamente alguns actos de concorrncia desleal. Ora, a actuao de um comerciante lesiva de um crdito anterior ser algumas vezes contrria s normas e usos honestos da sua actividade, conforme melhor se estudar no 4. ano do curso, na disciplina de Direito Comercial. Notemos apenas que, tal como sucedia com o abuso do direito, o instituto da concorrncia desleal no tem nenhuma ligao especfica com alguma ideia de proteco do credor, mas sim de proteco geral do patrimnio e da lisura da actividade comercial. Alis, os defensores da teoria tradicional da relatividade do crdito afirmam precisamente que, em muitos casos, a actuao de um comerciante terceiro que prejudique outro comerciante favorecendo o 11

no cumprimento de um crdito j constitudo seria uma simples actuao de concorrncia leal. E sublinhemos ainda que o art. 317. CPI no tem relevncia fora das actuaes comerciais (ou equiparadas).

V UM SEXTO LIMITE: A PROTECO DA TITULARIDADE DO CRDITO Alm daqueles cinco limites10[10] relatividade de eficcia, que tm consagrao legal evidente, alguma da doutrina tradicional ainda defende a tutela do credor contra terceiros nos casos chamados de violao da titularidade do crdito. A violao da titularidade do crdito ocorre especialmente quando um terceiro se faz passar pelo credor, enganando o devedor e recebendo assim a prestao (que no possa ser renovada) que o credor devia receber. o que sucede na seguinte situao: Antnio reserva por telefone um bilhete para certo espectculo, muito difcil de obter. Bento ouve o telefonema e levanta o bilhete dizendo ser Antnio. Este fica sem o lugar. Seriam equivalentes os casos em que o terceiro no engana o devedor, mas consegue receber a prestao sem o seu contributo. O raciocnio da doutrina tradicional sustenta que, enquanto o direito de crdito (estruturalmente) relativo, a simples qualidade de titular desse direito de crdito uma qualidade absoluta, que no se define pela pessoa do devedor, mas apenas pela pessoa do credor e pelo direito de crdito, em si mesmo considerado como objecto. Quando um terceiro toma o lugar do credor, recebendo a prestao em seu lugar sem contributo do devedor, o terceiro estaria a lesar directamente a titularidade do crdito, a qualidade do credor como credor e, nessa medida, ficaria obrigado a indemniz-lo, nos termos do art. 483./1. De facto, estes casos de leso da titularidade parecem ser de soluo clara. O terceiro deve indemnizar. Ficam dvidas, porm, sobre se a argumentao usada10[10]

Tem muito menos interesse o caso do art. 495./3.12

ser a melhor. Esta referncia titularidade soa demasiado formal para uma deciso jurdica. Voltaremos ao tema.

VI VERSO SIMPLIFICADA DA TESE DA EFICCIA EXTERNA DAS OBRIGAES Ope-se tese tradicional a tese da eficcia externa das obrigaes, que aqui se apresenta primeiro numa verso simplificada. O credor tem um direito subjectivo: o crdito. Quem viola ilicitamente um direito subjectivo alheio fica obrigado a indemnizar pelos danos a que der origem (art. 483.). Logo, um terceiro que viole o crdito, impedindo o credor de vir a receber a prestao a que tem direito, ter de indemniz-lo nos termos desse art. 483.. Acresce que, se o terceiro incitar ou apoiar o devedor no incumprimento, esse terceiro ser instigador ou cmplice, e estes tambm so obrigados a indemnizar (art. 490.). Nesta verso simplificada, porm, a tese da eficcia externa no procede. Quer dizer: talvez a concluso seja certa, talvez no, mas estes dois argumentos, sem mais, so insuficientes. - O art. 483., na sua histria, visava apenas direitos absolutos. No s

porque a histria da responsabilidade delitual11[11], nos vrios antecedentes do direito portugus em vigor, desde o direito romano, tem em conta apenas violaes de direitos absolutos, mas tambm porque o art. 483./1 muitssimo semelhante, na sua letra, ao 823 BGB, que acrescenta apenas uma exemplificao de direitos violveis todos eles absolutos e que sempre foi maioritariamente12[12] interpretado no sentido de no abranger o direito de crdito. Estudaremos melhor o art. 483. no lugar prprio. claro que a histria de um preceito legal no um argumento intransponvel, mas tambm no pode ser ignorada.11[11]

Tambm chamada aquiliana, extracontratual ou extra-obrigacional, por contraposio responsabilidade contratual ou obrigacional, a que se refere o art. 798. e alguns outros, como o art. 801./1 e o art. 804./1. 12[12] Mas no unanimemente.13

- -

Pode depois talvez dizer-se que o credor tem um direito perante o

devedor, mas no ter um direito perante o terceiro. Nessa medida, o terceiro no violaria um direito do credor. Este argumento, dito assim, no inultrapassvel. Mas impede que se use o art. 483. para responsabilizar o terceiro sem que, primeiro, se demonstre claramente qual a situao do terceiro em face do crdito. - Por outras palavras, mais rigorosas, o erro desta verso simplificada da

teoria da eficcia externa que ela no demonstra a existncia do dever genrico de terceiros respeitarem o direito de crdito. O art. 483. estatui a obrigao de indemnizar de quem ilicitamente cause danos a outrem, o que quer dizer que um terceiro que interfira com o crdito s ser responsvel se tiver agido em violao de um dever. Ora, ainda no demonstrmos a existncia desse dever. - De igual modo, invocar o art. 490., sem mais, para responsabilizar um

terceiro que colabore com o devedor ou que o instigue a violar o crdito tambm insuficiente. H aqui um salto lgico. que o cmplice ou instigador de algum que viole um direito absoluto tem, sem dvida, o mesmo dever que o autor directo do acto ilcito. S podemos usar o art. 490. para responsabilizar um terceiro que instigue o devedor a no cumprir depois de demonstrarmos que este terceiro tem um dever de respeitar o direito de crdito. E isso, ainda no o fizemos.

Contra a verso simplificada da teoria da eficcia externa, recorre-se ainda, por vezes, a dois argumentos que, contudo, parecem incorrectos: - Diz-se que o art. 483. no trataria dos casos de violao (por terceiro)

do direito de crdito porque as violaes dos direitos de crdito seriam reguladas nos arts. 798. e ss.. Este argumento incorrecto porque os arts. 798. a 812. tratam apenas da violao do crdito pelo devedor, ou seja, determinam apenas os efeitos do incumprimento para as partes na obrigao (devedor e credor). Nestes artigos, no se diz absolutamente nada sobre uma eventual responsabilidade de terceiros. No se diz

14

que existe, nem que no existe. Portanto, estas disposies no furtam a matria da eficcia externa a uma eventual aplicao do art. 483.. - Diz-se tambm que o art. 406./2 determinaria justamente e de modo

expresso a inoponibilidade do crdito a terceiros. Como j sabemos, em todo este problema da oponibilidade do crdito a terceiros, o art. 406./2 fundamental. Contudo, veremos a seguir que o art. 406./2 no determina nada do que este argumento supe.

VII ANLISE DO ART. 406./2 DO CDIGO CIVIL Com isto, chegamos a um ponto essencial para todo o problema. Impe-se analisar o art. 406./2 do Cdigo Civil. Em primeiro lugar, diga-se que o art. 406./2 exprime uma regra bsica, indiscutvel e universal, a regra da relatividade dos contratos. No tem qualquer valor um contrato ou uma clusula num contrato em que se estipule um efeito negativo para uma terceira pessoa. Em boa verdade, o art. 406./2 no distingue efeitos positivos (vantagens) e negativos (desvantagens), mas j sabemos que as regras do contrato a favor de terceiro permitem que se lhe atribuam direitos. Com efeito negativo, referimo-nos aquisio ou alargamento de uma situao jurdica passiva (desvantajosa) e perda ou diminuio de uma situao jurdica activa (vantajosa). Por exemplo, a constituio de uma obrigao, o aumento do montante de uma obrigao, a perda de qualquer direito (real, obrigacional, de participao numa sociedade comercial ou qualquer outro) ou a diminuio do objecto de um direito. Quanto a efeitos positivos, so as hipteses contrrias. a elas que se refere o art. 443., n.s 1 e 2. Leiam este nmero 2!

15

Em termos mais rigorosos, conjugando os arts. 406./2, e 443. e ss., chegamos aos seguintes quatro resultados: - Se as partes num contrato estipularem um efeito negativo para um

terceiro, essa estipulao no tem qualquer valor jurdico. P. ex., se uma clusula de um contrato entre A e B declarar que C fica obrigado a fazer qualquer coisa, essa clusula (evidentemente) invlida ou, pelo menos, inoponvel ao terceiro. - Se as partes estipularem um efeito positivo para um terceiro, o terceiro

pode invocar a estipulao (arts. 443. e ss.). O efeito produz-se de imediato (art. 444./1, aplicvel mutatis mutandis nos casos do art. 443./2). - Quando as partes estipulam um efeito negativo para uma delas, esse

efeito negativo no pode ser transposto para um terceiro. P. ex., se as partes estipularem uma clusula penal para o caso de uma delas causar certo dano outra e um terceiro vier a causar esse mesmo dano, essa clusula irrelevante para o terceiro, no o prejudica, no invocvel contra ele13[13]. H um pequeno grupo de casos, porm, em que ocorre esta transposio de um efeito contratual em prejuzo de terceiro. assim quando o terceiro se encontra numa especial relao de dependncia de um contrato, sendo afectado pela revogao deste (cf. art. 406./1). Note-se que a revogao um segundo contrato e o efeito deste segundo contrato que vai ser transposto para o terceiro. O principal caso aqui o do subcontrato, e as principais disposies da lei so as dos arts. 1051./1, al. c), CC e 45. RAU. As questes do subcontrato, alis, criam vrios problemas de articulao com o princpio da relatividade dos contratos14[14]. - Quando as partes estipulam um efeito positivo para uma delas, esse

efeito positivo no pode ser transposto para um terceiro. importante fixar este caso para no o confundir com o do contrato a favor de terceiro. Exemplo: se as partes13[13] 14[14]

Assim decidiu o ac. STJ 16-6-1964 (BMJ 138, 1964). Cf., em especial, ROMANO MARTINEZ, O subcontrato, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 103-108 e 155-159.16

estipularem um limite indemnizao para o caso de uma delas causar certo dano outra e um terceiro vier a causar esse mesmo dano, essa clusula intil para o terceiro; ele no beneficia com ela. Outro exemplo (de um caso previsto no art. 770., al. a), a que se chama contrato ou obrigao com prestao a terceiro): Plcido, cantor lrico, contrata com Manel fazer uma serenata janela de Maria, sob as ordens de Manel; aqui, Maria no pode exigir a Plcido que cante; s Manel tem direito cantoria. No entanto, tambm h um grupo de casos em que ocorre uma transposio de um efeito contratual em benefcio de terceiro. A saber, quando o terceiro se encontra numa posio dependente da posio de certo devedor e este devedor, por contrato, melhora a sua posio perante o credor. Esta transposio favorvel pode ocorrer com um subcontrato, mas o exemplo mais simples ocorre na fiana (arts. 627. ss.). Se o devedor principal vir (por contrato) a sua obrigao diminuda, extinta ou de alguma outra forma aligeirada, esta melhoria repercute-se em princpio na posio do fiador (cf. arts. 637./1 e 651.). H outros exemplos na rea da garantia das obrigaes. Em suma, o art. 406./2 exprime que as estipulaes num contrato s produzem o efeito estipulado nas esferas jurdicas das prprias partes, e no na de terceiros, salvo quando um efeito positivo seja especificamente15[15] estipulado para um terceiro. A relatividade dos contratos, consagrada neste art. 406./2, uma decorrncia elementar do princpio da autonomia privada. Como se v at pela origem da palavra autonomia (do grego; nomos, regra, + auto, para o prprio). Podemos criar vinculaes (regras) para ns prprios, no para outrem. Isso seria heteronomia!

15[15]

Ou seja, declarando que o direito para o terceiro. Mas a declarao tanto pode ser expressa quanto tcita.17

A razo de ser do art. 406./2 a mesma da regra que estatui que no se pode por acto unilateral impor um dever a outrem16[16]. Uma regra no escrita, mas de que absolutamente ningum duvidaria. Quem diz um dever, diz outra situao jurdica desvantajosa.

[ Parntese processual: convm lembrar uma regra do direito processual equivalente do art. 406./2. Assim como os contratos so relativos, tambm os efeitos do caso julgado so relativos. Assim como res inter alios acta nec nocet nec prodest, tambm res inter alios judicata nec nocet nec prodest. matria da relatividade do caso julgado, chama-se igualmente dos limites subjectivos do caso julgado (cf. arts. 497. e 498./1 e 2 CPC). Ainda assim, as restries relatividade do caso julgado (ou seja, os casos de oponibilidade do caso julgado a terceiros ou de possibilidade de invocao por terceiros) so mais e maiores do que os limites regra da relatividade dos contratos, conforme se estuda em Direito Processual Civil17[17]. A relatividade do caso julgado resulta do princpio do contraditrio (cf. art. 3./2 a 4 CPC, aparentado com o art. 20. CRP). A tese da afinidade substancial (nos princpios e nas regras) entre a relatividade do caso julgado e a dos contratos tem consequncias prticas e tericas importantes. Mas uma tese discutida. ]

Note-se agora que o art. 406./2 no diz respeito s constituio de obrigaes. Tal como no contrato a favor de terceiro se podem atribuir vrios efeitos jurdicos positivos a terceiros (art. 443./2), tambm o art. 406./2 impede que se16[16]

Salvo, como evidente, havendo uma situao de autoridade, como acontece com o poder poltico ou administrativo, no contrato de trabalho (art. 1152.) e nalguns outros contextos. Com muito menos intensidade, o poder de dar ordens tambm surge nos contratos de mandato (cf. art. 1161., al. a), in fine) e de empreitada (cf. art. 1216.). 17[17] Cf., p. ex., arts. 674. a 674.-B, 271./3, 341. e 349./2 CPC e 522., 531., 538./2 e 635. CC, entre outros. Tambm h casos de oponibilidade do caso julgado a terceiros sem previso legal especfica, mas esses tm maiores relaes com algumas regras de direito civil de que se fala abaixo.18

estipulem quaisquer efeitos negativos para terceiros: no se lhes podem constituir obrigaes, no se podem extinguir ou modificar crditos que o terceiro tenha sobre uma das partes ou sobre qualquer outra pessoa, no se podem extinguir ou modificar direitos reais do terceiro, no se podem criar direitos menores sobre bens do terceiro (nem direitos reais, nem direitos pessoais de gozo), etc., etc. Toda a estipulao em prejuzo de um terceiro invlida ou, pelo menos, -lhe inoponvel. Normalmente, no que diz respeito extino ou modificao de direitos de terceiros, diz-se que ela impossvel por faltar o pressuposto da legitimidade. Mas parece que o pressuposto da legitimidade uma consequncia do art. 406./2 (e da inadmissibilidade geral de imposio de desvantagens a terceiros), e no o contrrio. Mesmo quanto s obrigaes, devemos dizer que s o prprio obrigado (o futuro devedor) tem legitimidade para as constituir18[18]. A propsito da legitimidade como pressuposto de certas eficcias jurdicas, note-se que os alunos tm muitas vezes um entendimento errado sobre ela, designadamente quando supem que a compra e venda de bens alheios, de que j aqui falmos, seria sempre nula. Assim, supe-se que o art. 406./2 tanto vale para as obrigaes quanto para os direitos reais. Este artigo impede que se constitua uma obrigao para terceiro, mas tambm que se constitua um direito real menor contra um terceiro e que se extinga ou modifique um direito real do terceiro. O art. 406./2, afinal, no est relacionado com a distino entre obrigaes e direitos reais, ao contrrio do que pressuposto pela teoria tradicional de que falmos.

O que nos leva de imediato a uma concluso sobre o art. 406./2. O art. 406./2 consagra a regra da relatividade dos contratos, e no uma regra de relatividade das obrigaes. Mesmo a letra do art. 406./2 s se refere a contratos.

18[18]

Sem prejuzo, claro, dos casos de representao (arts. 258. e ss.). H casos de produo de efeitos desvantajosos para terceiros prximos dos de representao e decorrentes de certas autorizaes.19

No podemos confundir o contrato e a obrigao. Os contratos podem constituir obrigaes, mas tambm produzem outros efeitos jurdicos. As obrigaes podem ser constitudas por contrato, mas tambm por outras fontes. Mesmo quando um contrato obrigacional, no podemos confundir a causa com o efeito. A causa (a fonte) o contrato, um negcio jurdico bilateral, constitudo pelas declaraes das partes. O efeito a obrigao (e o crdito), uma situao jurdica, o vnculo que fica a subsistir entre as partes aps a celebrao do contrato. Contudo, sabe-se que, ao longo da histria, houve uma grande tendncia para confundir a matria da obrigao com a matria do contrato. Ainda hoje, usa-se muitas vezes a palavra contrato para significar o conjunto das obrigaes e doutros efeitos jurdicos resultantes do contrato propriamente dito. Fala-se por vezes do cumprimento do contrato, quando o ideal seria falar do cumprimento da obrigao. Nos direitos de influncia alem, como o portugus, a lei clara na determinao de um regime para as obrigaes, qualquer que seja a sua fonte, no que respeita ao cumprimento, no cumprimento, extino, transmisso e garantia (cf. arts. 512. a 561. e 577. a 873.). Nos direitos de influncia inglesa e francesa, pelo contrrio, estes problemas so tratados a propsito dos contratos. Ora, o art. 406./2 estatui a relatividade dos contratos. No diz nada a respeito da relatividade das obrigaes. Nos termos do art. 406./2, as partes num contrato s a si prprias se podem vincular, constituindo obrigaes. Mas o art. 406./2 no nos diz se, depois de constituda a obrigao entre as partes no contrato, os terceiros tero ou no de respeitar a existncia daquela obrigao entre aquelas partes e, em especial, se tero ou no de respeitar o direito do credor (o direito de crdito). O art. 406./2 no nos diz se os terceiros tm ou no de respeitar o direito daquele credor a uma prestao daquele devedor. Ou seja, o art. 406./2 nada nos diz sobre se existir um dever geral de respeito dos direitos de crdito alheios. O art. 406./2 no se ope a esse eventual dever geral de respeito, embora tambm nada diga em seu favor. 20

A doutrina tradicional poderia, no entanto, usar o seguinte argumento: se houvesse um dever geral de respeito dos crditos alheios, ento, sempre que se celebrasse um contrato com efeitos obrigacionais, estar-se-ia, indirectamente, a criar efeitos negativos (desvantajosos) para terceiros. Na perspectiva da doutrina tradicional, a tese da eficcia externa das obrigaes (ou seja, a tese de que existiria um dever geral de respeito do crdito) ainda violaria o art. 406./2 do Cdigo Civil, porque, embora a estipulao contida no contrato s possa constituir uma obrigao para as partes, os terceiros seriam indirectamente atingidos, pois passariam a ter de respeitar a existncia daquele crdito. E o art. 406./2 diz que os contratos no produzem efeitos para terceiros. Contudo, o art. 406./2 no impede a produo destes efeitos indirectos para terceiros, nem em contratos obrigacionais, nem em contratos com outro tipo de efeitos. Talvez a expresso efeitos indirectos no seja muito clara. Apesar disso, h vrias razes para entender que o art. 406./2 no impede a sua produo: - A expresso efeitos do contrato visa em primeiro lugar os efeitos

contratuais do contrato. Ou, generalizando, os efeitos negociais do negcio jurdico. Trata-se dos efeitos correspondentes s estipulaes das partes, inteno das partes, ao significado juridicamente relevante do negcio. Os efeitos do contrato so, acima de tudo, os efeitos contratados, e no o que resulte do direito objectivo. Ora, os efeitos indirectos a que nos referimos no so efeitos estipulados pelas partes; pelo contrrio, so efeitos para os quais a vontade das partes irrelevante. So efeitos que, como se diz por vezes, tomam o contrato como mero facto. Afirmar, p. ex., que um negcio nulo no produz efeitos afirmar apenas que no produz os efeitos estipulados, embora possa produzir efeitos indirectos, resultantes, p. ex., da boa f. Portanto, a prpria letra do art. 406./2 aponta no sentido de no abranger os efeitos indirectos.

21

- -

S os efeitos estipulados assentam na autonomia privada; s eles

correspondem a um exerccio da liberdade jurgena. Pelo contrrio, os efeitos indirectos resultam de outros princpios ou regras. O 406./2, como vimos, uma decorrncia da autonomia privada. Logo, s abrange os efeitos que digam respeito prpria autonomia privada.

[os exemplos seguintes so meramente ilustrativos; no tm de ser (todos) memorizados] - Por outro lado, h inmeros (outros) efeitos indirectos da

constituio contratual de uma obrigao que no oferecem dvidas. A partir do momento da celebrao de um contrato obrigacional, o patrimnio do devedor fica diminudo. Isso relevante para terceiros, desde logo, na matria do concurso de credores (cf. art. 604.). Semelhantemente, a existncia do dbito pode ser oposta a terceiros nos casos da chamada impossibilidade moral de cumprimento da obrigao, que havemos de estudar19[19]. O dbito ainda relevante atravs da j conhecida impugnao pauliana (arts. 610. ss.). A existncia do crdito no patrimnio do credor, por seu turno, aproveita aos credores do credor, que podem execut-lo para o pagamento dos seus crditos (cf. arts. 820. CC e 856. ss. CPC) e podem at, em certos casos, exerc-lo (cf. arts. 606. ss.) Por fim, a titularidade do crdito (contratual) d legitimidade ao credor para sobre ele praticar actos com terceiros, como um contrato de cesso de crditos (arts. 577. ss.), de penhor de crditos (arts. 679. ss.) ou de usufruto de crditos (arts. 1463. ss.). - Os efeitos indirectos de um contrato, em favor ou em prejuzo de

terceiros, tambm ocorrem nos contratos de transmisso ou extino de direitos sejam eles reais, obrigacionais ou outros bem como nos contratos de constituio de direitos (reais) menores. Os efeitos indirectos aqui produzidos so bastante19[19]

De qualquer modo, consulte-se MENEZES CORDEIRO, A impossibilidade moral: do tratamento igualitrio no cumprimento das obrigaes, in Estudos de direito civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 97-114.22

semelhantes aos vistos no ponto anterior. Note-se, porm, a importncia destes efeitos indirectos em termos de responsabilidade civil20[20]. Se Antnio vende a Bento a sua propriedade sobre certa coisa, o dever geral de respeito relativo a esse bem deixa de beneficiar Antnio e passa a beneficiar Bento. Assim, p. ex., se Carlos danificar a coisa, apenas Bento, e no Antnio, quem lhe pode exigir uma indemnizao. - Outro tipo de efeitos indirectos de um contrato ocorre no chamado

contrato com eficcia de proteco para terceiros, em que a existncia de um contrato, por fora da boa f (cf. art. 762./2), cria para as partes um especial dever de proteco que beneficia alguns terceiros especialmente prximos desse contrato, como os familiares e os trabalhadores das partes. Esta matria ser estudada mais tarde21[21]. Alis, todos os deveres de proteco que orbitam o contrato so, no sentido que vimos, efeitos indirectos do contrato. - deva ser Em sede de efeitos indirectos de um contrato obrigacional, talvez ainda lembrada a matria da liquidao de dano de terceiro

(Drittschadensliquidation, third parties loss), pouco tratada entre ns, mas j bastante discutida no espao alemo e com relevncia crescente do direito ingls22[22]. Este problema ocorre na juno de dois contratos entre trs pessoas: duas delas (o devedor e o lesado) so partes s num deles; a outra (o intermedirio) parte nos dois. Pode acontecer que esse devedor viole a sua obrigao sem causar danos ao intermedirio, mas sim ao lesado, que parte no outro contrato. E acontece por vezes que esse lesado no tem nenhum mecanismo eficaz para pedir uma indemnizao ao devedor, designadamente devido ao prprio princpio da20[20]

O exemplo seguinte diz respeito a um direito absoluto, porque ainda estamos a discutir se haver responsabilidade civil de um terceiro em caso de leso de um crdito. 21[21] De qualquer maneira, pode consultar-se MENEZES CORDEIRO, Da boa f no direito civil, reimp., Almedina, Coimbra, 1997 (1984), 619-625, e, para acentuar a autonomia entre os deveres de proteco e o contrato, CARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de proteco, supl. do BFDUC, sep. do vol. XXXVIII, Coimbra, 1994, 92-114 (esp.te 103-106). 22[22] Quanto ao direito alemo, o tema surge na generalidade dos manuais recentes. Quanto ao direito ingls, so decisivos os acrdos da Cmara dos Lordes St Martin's Property Corporation Ltd v Sir Robert McAlpine Ltd, de 1994, e Alfred McAlpine Construction Ltd v. Panatown Ltd, de 2000, que se encontram facilmente na Internet.23

relatividade dos contratos. Nestas circunstncias, tem-se admitido que o intermedirio exija uma indemnizao ao devedor, sendo essa indemnizao, contudo, totalmente destinada ao lesado. O contrato do lesado tem assim um efeito indirecto contra o devedor; e o contrato do devedor tem um efeito indirecto em favor do lesado. Todavia, esta matria da liquidao de danos de terceiros bastante complexa e ainda no est completamente resolvida pela doutrina e jurisprudncia.

Ora, claro que estes efeitos indirectos no contendem com a ideia de relatividade dos contratos. No se trata aqui de impor as estipulaes de um contrato a terceiro. Os efeitos indirectos no tm qualquer relao com o art. 406./2. E diga-se, por fim, que muitos comportamentos unilaterais tm efeitos indirectos negativos para terceiros, apesar de, como vimos, no ser vlido um acto unilateral que estipule um dever para outra pessoa. Exemplos: (1) Se A. pe o seu carro no lugar de estacionamento, isso probe B. de ali pr o seu, enquanto A. no sair. (2) Quando um autor literrio escreve ou publica a sua obra, surge o dever geral de respeito dessa obra. (3) Se algum se apropria de um animal selvagem (cf. art. 1318.), surge o dever geral de respeito da sua propriedade. claro que estes exemplos, excepto o primeiro, se referem a direitos absolutos. Eles mostram, contudo, que a produo de efeitos indirectos negativos para terceiros no contrria ao Direito nem s ideias subjacentes ao art. 406./2.

VIII PRIMEIRA CONCLUSO Depois de se estudar a verso simplificada da tese da eficcia externa e o argumento legal mais importante da teoria tradicional, chegamos a uma concluso decisiva: a lei no resolve o problema da eventual eficcia externa das

24

obrigaes. No o resolve com o art. 483., como no o resolve com o art. 406./2. A lei no nos d soluo para estes casos. Nem num sentido, nem no outro. claro que, para resolvermos o problema, teremos de respeitar tanto quanto possvel todas as directrizes legais. Contudo, j pudemos at aqui extrair a concluso decisiva de que no h nenhuma disposio legal especfica sobre o nosso problema, ao contrrio do que defendem alguns autores. Quanto ao problema da

responsabilizao de um terceiro por leso do direito de crdito, a lei portuguesa (alis, como as outras) perfeitamente lacunar. E ainda bem, porque o pensamento jurdico ainda no chegou a nenhum consenso nesta matria. A jurisprudncia portuguesa no nos d melhores indicaes. Nalguns acrdos em que os nossos tribunais superiores se pronunciaram sobre esta matria, houve decises nos vrios sentidos23[23]. Convm lembrar o dever de decidir (cf. art. 8./1). No por falta de indicao nas fontes do direito que os problemas jurdicos deixam de ter de ser resolvidos. Na falta de argumentos textuais, ficam consideraes de substncia (que tambm so argumentos jurdicos!).

IX ARGUMENTOS EM FAVOR DA EFICCIA EXTERNA GERAL Vimos que o art. 406./2 no se ope tese da eficcia externa, mas tambm no a favorece. A distino entre efeitos directos e indirectos de um contrato ajuda a mostrar que a tese da eficcia externa possvel, mas no mostra que ela esteja certa. H, porm, alguns argumentos em favor da eficcia externa, ou seja, da oponibilidade do crdito a terceiros para efeitos de responsabilidade civil. Defender a23[23]

Por exemplo, nos acrdos STJ 16-6-1964, BMJ 138, 1964, pp. 342 e ss., STJ 17-6-1969, BMJ 188, 1969, pp. 146 e ss., STJ 27-1-1993, CJ-STJ I/1, 1993, pp. 84 e ss., STJ 25-10-1993, BMJ 430, 1993, pp. 455 e ss.. Nestes quatro acrdos, temos duas decises em cada sentido.25

eficcia externa da obrigao defender a existncia de um dever geral de respeito dos crditos, que, quando violado, dar origem a responsabilidade civil. A teoria da eficcia externa, de qualquer modo, s defende a responsabilidade civil de terceiros que lesem o credor conhecendo a existncia do crdito. Argumentos: - Em primeiro lugar, preciso ter em conta que o credor tem um direito

subjectivo. Tem uma posio de vantagem protegida pelo sistema jurdico e pelo aparelho estatal. Inclusive, o ordenamento d ao credor a possibilidade de obter coercivamente a prpria prestao devida (cf. arts. 817. e 827. ss.), e no s um sucedneo pecunirio. A posio do credor no a de quem tem uma simples expectativa de ganho econmico, mas sim a de quem tem um bem juridicamente protegido. E a existncia desta posio do credor tem de ser reconhecida por todos, como j vimos a propsito dos efeitos indirectos dos contratos. Ora, se o credor tem este direito a uma prestao do devedor, parece que todos devem respeit-lo, ou seja, abster-se de interferir sobre a prestao do devedor. Em suma, parece que o prprio conceito de direito subjectivo leva a que exista um dever geral de respeito dos crditos. - H casos em que consensual a responsabilidade do terceiro que lese

o crdito. So, sobretudo, os casos da chamada leso da titularidade do credor (em que o terceiro se faz passar por credor). Estes casos, porm, no esto bem dogmatizados, porque o terceiro nunca afecta a titularidade do crdito. O credor continua sempre a ser o titular! O terceiro limita-se a impossibilitar a prestao, tal como quando a recebe com o consentimento do devedor. Esses casos parecem simplesmente mostrar que o crdito protegido erga omnes para efeitos de responsabilidade civil. - Os casos de impugnao pauliana e de proteco do credor contra

terceiros em sede de falncia e recuperao de empresas tambm mostram que o crdito tem proteco contra terceiros. certo que, nestes casos, s se protege a garantia do crdito, ou seja, o direito de o credor executar o patrimnio do devedor 26

para satisfazer o seu interesse, mas, em qualquer caso, o crdito protegido. Parece que esta proteco do crdito tem de ocorrer tambm em termos de responsabilidade civil. - O nosso tempo mostra em especial a necessidade de proteco do

crdito atravs do processo geral de desmaterializao dos bens econmicos. Noutras pocas, a riqueza correspondeu em regra propriedade de coisas corpreas, em especial imveis e metais preciosos. Cada vez mais, porm, a riqueza assenta em vantagens incorpreas: depsitos bancrios, valores mobilirios, participaes em sociedades comerciais, etc.. Estas vantagens incorpreas so, essencialmente, feixes de direitos de crdito e direitos potestativos dos seus titulares. Na viso do homem comum, p. ex., as pessoas tm dinheiro no banco. A realidade jurdica, porm, que as pessoas tm apenas o direito de crdito sobre o banco a receber certa quantia. Ora, seria pouco compreensvel dar maior proteco s notas que se tem no bolso do que quelas que se tem direito a receber do banco. A desmaterializao dos bens econmicos mais ampla do que parece primeira vista. Direitos absolutos como a propriedade industrial e o direito de autor tm por objecto coisas incorpreas. So direitos economicamente muito diferentes da propriedade sobre coisas corpreas e no deixam de ter proteco contra terceiros. Os prprios crditos so, cada vez mais, perspectivados enquanto bens susceptveis de operaes que, em tempos, eram reservadas a direitos absolutos como a propriedade. E isso no s nas previses legais, mas tambm na vida econmica. Pense-se na transmissibilidade das obrigaes (cf. arts. 577. e ss.), nos crditos como objecto de garantia de outros credores (cf. arts. 820. CC, 856. ss. CPC e 606. ss.), em especial no penhor de crditos (679. ss.), e no usufruto de crditos (cf. arts. 1463. ss.). Estes instrumentos jurdicos e outros semelhantes so hoje de grande utilizao na vida econmica. Ora, se o crdito visto como um bem (em rigor, um direito) equivalente a outros bens (como os objectos da propriedade), merecer com certeza proteco equivalente.

27

- -

A doutrina tradicional, como veremos abaixo, invoca a liberdade de

concorrncia como argumento contra a eficcia externa. Contudo, o que parece que a liberdade de concorrncia acaba quando se chega deciso de contratar. A concorrncia concorrncia at se chegar ao contrato. Nesse momento, elegeu-se o concorrente vencedor atribuindo-lhe uma posio juridicamente protegida.

Intervenes posteriores dos vencidos sero ilcitas. - A interpretao do art. 483./1 no sentido de abranger apenas direitos

absolutos tem fundamento histrico, mas parece no ter mais nenhum fundamento. Designadamente, no decorre da sua letra. Mesmo em termos histricos, no parece que o legislador de 1966 tenha querido dar ao art. 483./1 o sentido restritivo que na Alemanha dado ao seu equivalente. E este gnero de argumento histrico no decisivo em termos de interpretao. O art. 483. parece dever ser entendido como uma clusula geral, que tambm protege os crditos. Esta questo, porm, muito discutida. - O direito comparado aponta com alguma clareza no sentido de o

crdito ter proteco contra terceiros em sede de responsabilidade civil. Em Frana, em Itlia, em Espanha e nos pases do common law pelo menos, no Reino Unido e nos Estados Unidos24[24] tem sido reconhecida a responsabilidade civil do terceiro que lese o crdito. Pelo contrrio, a Alemanha mantm-se muito restritiva nesta matria: a responsabilidade do terceiro ocorreria s nos termos do abuso do direito (ou melhor, na lei alem, nos termos do 826 BGB) ou da concorrncia desleal. minoritria, desde sempre, a doutrina que defende a sua responsabilizao em termos gerais. O que se pode pensar que, na Alemanha, o rigor da distino entre direitos de crdito e direitos reais (e, afinal, da sistematizao germnica do direito civil) se

24[24]

Lembre-se que no h um direito privado unitrio, nem no Reino Unido, nem nos EUA. Nos EUA, h tantos sistemas jurdicos privados quantos os estados membros, ainda que se influenciem uns aos outros e que haja muita investigao jurdica no plano interestadual. No Reino Unido, h os direitos de Inglaterra e Gales, da Esccia e da Irlanda do Norte, alm de alguns semi-autnomos.28

ter cristalizado na doutrina com demasiada rigidez, impedindo os desenvolvimentos que, noutros pases, surgiram com naturalidade. - Acrescente-se apenas o seguinte. H casos consensuais em que um

terceiro causa o no cumprimento e no responsvel, mas essa ausncia de responsabilidade decorre de regras gerais da responsabilidade civil. A teoria da eficcia externa no pretende, de modo nenhum, afastar os pressupostos gerais da responsabilidade civil. P. ex., suponha-se que um taxista transporta uma cantora para o local onde ela dar um concerto. A cantora, como o taxista sabe, est contratualmente obrigada perante o organizador do espectculo a actuar nesse dia. No caminho, devido a negligncia do taxista, h um acidente em que a cantora ferida, ficando impedida de actuar. O taxista (ou a sua seguradora) responsvel pelos danos que a cantora sofra. Contudo, tambm consensual que o taxista no responsvel perante o organizador do espectculo, apesar de o taxista ter sido o causador da ausncia da cantora. Esta soluo decorre da falta de nexo de causalidade suficiente, como veremos quando estudarmos essa matria.

X ARGUMENTOS EM FAVOR DA RELATIVIDADE H alguns argumentos fortes em favor da relatividade das obrigaes em termos de responsabilidade civil. J sabemos que no se trata aqui de invocar o art. 406./2. Quanto distino entre crditos e direitos reais, voltaremos a ela abaixo. Mas os defensores da relatividade tm ainda alguns fundamentos substanciais para a sua tese, ou seja, para negarem a existncia de um dever geral de respeito dos crditos. - Em primeiro lugar, repita-se que o devedor tem uma posio especial

enquanto obrigado ao cumprimento e responsvel pelo incumprimento. J 29

falmos disto. A teoria da eficcia externa no nega que o devedor , em primeiro lugar, o responsvel pelo no cumprimento. O devedor quem tem o dever de cumprir. Terceiros que fossem responsveis s-lo-iam sempre numa posio algo secundria, salvo nos casos menos frequentes de o no cumprimento ser imputvel apenas a esses terceiros, mas no ao devedor. A posio primordial do devedor decorre de ser com ele apenas que o credor pode contar. E de ser apenas com o patrimnio do devedor que o credor pode contar em caso de no cumprimento. Era no devedor que o credor legitimamente podia confiar. Se o devedor indemnizar na ntegra o credor pelo seu no cumprimento, uma responsabilidade de terceiro perde toda a relevncia. Mas, se o devedor no tem patrimnio suficiente para satisfazer o credor, o terceiro parece no dever ser prejudicado com isso, at porque incumbe ao credor o nus de procurar devedores com patrimnio suficiente para responder pelas suas dvidas. Esta posio de responsvel primordial, nos seus vrios aspectos, parece mostrar que pelo menos nos casos em que tenha havido acordo entre o devedor e o terceiro com vista ao no cumprimento s se justifica que o credor pea um indemnizao ao devedor, e no ao terceiro.25[25] Em suma, o facto indiscutvel de o devedor ser o responsvel primordial parece dever levar-nos a concluir que ele o nico responsvel. - A posio de obrigado primordial do devedor mostra-se ainda no facto

de caber ao devedor, e no a um terceiro, uma eventual negociao e acordo com o credor no sentido de revogar o contrato que o vinculava a cumprir. possvel que o terceiro contrate com o devedor que este no cumprir o contrato inicial na suposio de que o devedor vir a chegar a acordo com o credor no sentido de se desvincular desse contrato. Mais do que isso, o terceiro no ter de se preocupar em saber se o contrato inicial se ir manter ou no. E, se o devedor no conseguir

25[25]

Quem admitir a teoria da eficcia externa deveria tambm admitir, segundo parece, que o terceiro tivesse pleno direito de regresso contra o devedor.30

convencer o credor a celebrar um contrato de revogao do contrato inicial, parece que o terceiro no poder ser responsabilizado por isso. - A favor da relatividade das obrigaes joga ainda o princpio da livre

concorrncia econmica. Um terceiro que colabore com o devedor no no cumprimento celebrando com ele um contrato incompatvel com o primeiro parece estar simplesmente a agir como concorrente, num exerccio normal da sua actividade econmica. Por que que os terceiros ho-de ficar limitados na sua actividade econmica pelo facto de j antes algum ter celebrado um contrato?26[26] - Tambm pode invocar-se a favor da relatividade um argumento

histrico. As discusses de direito civil so particularmente sensveis aos termos da sua histria, sobretudo porque o nosso direito civil se vem desenvolvendo ao longo de dois milnios de maturao em que se estabelecem marcos culturais bastante slidos e em que a generalidade dos problemas e teorias tiveram oportunidade de ser testados. claro que a histria no tudo e que, p. ex., continuam a ser possveis descobertas jurdicas, mas a eficcia externa das obrigaes talvez no seja uma delas. Ora, nesses dois mil anos, a responsabilidade por violao de direitos absolutos sempre foi um dado adquirido. Pelo contrrio, a ideia de responsabilizar um terceiro que colabore com o devedor no incumprimento ou que o induza a isso nunca teve consagrao legal, jurisprudencial ou doutrinal clara. E, como evidente, no nova a possibilidade de um terceiro faz-lo. Veja-se que, ao invs, a impugnao pauliana (arts. 610. e ss.) uma figura assente; ou seja, em termos histricos, parece que o credor merece proteco apenas no que respeita garantia patrimonial do seu direito contra o devedor, e no quanto ao prprio objecto da prestao. - A teoria da eficcia externa invoca em seu favor o prprio conceito de

direito subjectivo. Contudo, o conceito de direito subjectivo no suficientemente

26[26]

A este propsito, ainda se podem tentar invocar argumentos de eficincia econmica, ao gosto da anlise econmica do direito, mas a verdade que esses argumentos poderiam inclusive levar ao resultado oposto relatividade. A questo no clara.31

delimitado para servir de apoio a essa teoria. Na verdade, direitos subjectivos so o direito de propriedade sobre uma esferogrfica, o direito vida, o direito de autor de uma obra literria, o direito de crdito a uma prestao.... Ora, a variedade substancial desta figura amplssima. Trata-se de situaes jurdicas com contedo, dignidade, funo e estrutura radicalmente diversas. Quer a tese da eficcia externa, quer a tese da relatividade so perfeitamente compatveis com o conceito de direito subjectivo. - O art. 483. estatui a responsabilidade do devedor quer em casos de

dolo, quer em casos de negligncia. Contudo, os defensores da eficcia externa s a admitem quando o terceiro conhea27[27] a existncia do crdito, ou seja, quando haja dolo de sua parte. Isto demonstra que a teoria da eficcia externa introduz uma perturbao no direito da responsabilidade civil, ou seja, um conjunto de solues dificilmente harmonizveis com o sistema. - A invocao do princpio do neminem ldere insuficiente como

apoio da teoria da eficcia externa. Por um lado, no facilmente demonstrvel que exista esse princpio, o que desde logo decorre da falta de consagrao legal28[28] e da circunstncia de a causao de alguns danos ser um facto inerente a toda a vida em comum. Por outro lado, o princpio do neminem ldere no justificaria uma especial proteco do crdito, mas sim a proteco contra quaisquer danos, quer correspondessem leso dum crdito, quer no correspondessem leso de direito subjectivo nenhum (danos patrimoniais puros no sentido mais restrito do termo29[29]).

27[27]

Ou, no mximo, em casos de desconhecimento particularmente grave, devido a negligncia grosseira. 28[28] Quando se diz que o neminem ldere estaria consagrado no art. 483./1, o que se pretende significar que todos os danos causados ilicitamente deveriam ser indemnizados. Diferente a afirmao do neminem ldere em sentido prprio, ou seja, a afirmao de que, em princpio, causar danos ilcito. Por outras palavras: para alguns autores, o art. 483./1 estatui que a causao ilcita de danos cria a obrigao de indemnizar. preciso, porm, que haja uma causao ilcita de danos. Diferente dizer que toda a causao de danos a outrem , em princpio, ilcita. 29[29] P. ex., se certo acto contribui para que diminuam as vendas futuras de certo comerciante, esse acto produz um dano patrimonial puro, j que, quando praticado, o comerciante no tinha qualquer direito a receber os preos que lhe pagaro em cumprimento dessas compras e vendas.32

- -

Por fim, veja-se que a teoria da eficcia externa parece conduzir a

alguns resultados absurdos. Suponha-se que A dono de um automvel e que B se obriga perante C a comprar o automvel de A e a entreg-lo a C. De acordo com a teoria da eficcia externa, parece que, a partir do momento em que A soubesse da existncia do acordo entre B e C, A ficaria impedido de, p. ex., desmontar o automvel para utilizar algumas das peas e vender outras a terceiros, j que a desmontagem impossibilita o cumprimento da obrigao de B.30[30] Diga-se em abono da verdade, porm, que este argumento contra a eficcia externa no procede. Estes resultados absurdos acontecem em casos em que o devedor se obriga a fazer algo que depende de terceiros. Ora, dada a regra da relatividade dos contratos (o art. 406.), esses terceiros no estavam vinculados a permitir ao devedor o resultado pretendido. Do contrato no decorre nenhum direito subjectivo contra o terceiro. Assim, qualquer conduta desse terceiro visado ou doutros terceiros, na medida em que respeite apenas esfera jurdica do terceiro visado (no exemplo dado, A), ser sempre lcita. A teoria da eficcia externa no defende o contrrio e, portanto, no afectada por este gnero de exemplos. A teoria da eficcia externa s defende a existncia dum dever geral de respeito dos crditos; no defende que a constituio de um crdito limite de alguma forma a interveno de terceiros na esfera jurdica de terceiros.

XI POSSIBILIDADE DE SOLUES INTERMDIAS A teoria tradicional da relatividade e a teoria da eficcia externa geral no oferecem as nicas solues concebveis para o problema da interveno de terceiros sobre o crdito. So imaginveis vrias solues intermdias, designadamente, as solues de que o terceiro s responderia em certos casos ou de que o terceiro s30[30]

Um exemplo de THON apresentado por VAZ SERRA no estudo citado sobre esta questo.33

responderia em termos diminudos. Nalguns pases, sobretudo no common law, sustenta-se ou sustentou-se que s seria responsvel o terceiro que agisse ou com uma inteno malvola ou de modo imprprio, o que, de toda a maneira, bastante vago.31[31] Solues intermdias mais claras seriam, p. ex., (1) s responsabilizar o terceiro nos casos em que fosse notoriamente difcil para o credor encontrar um devedor substitutivo do primeiro, (2) s responsabilizar o terceiro que conhecesse ou devesse conhecer a insuficincia do patrimnio do devedor para indemnizar o credor, (3) s responsabilizar o terceiro nos casos em que o devedor no responsvel ou (4) responsabilizar o terceiro a ttulo subsidirio, ou seja, atribuindo-lhe em regra uma posio equivalente de fiador do devedor. Seriam imaginveis ainda outras solues. Mas, p. ex., no se v qualquer possibilidade de encontrar argumentos em favor da soluo (1), e a soluo (4) seria talvez defensvel de iure condendo, mas no fcil fundament-la no direito constitudo. Pelo contrrio, podem convocar-se argumentos bastante razoveis em favor das solues (2) e (3) ou mesmo de uma juno das duas. Apresentam-se mais frente alguns argumentos em favor da seguinte soluo intermdia: um terceiro que conhea o direito de crdito e cause o seu incumprimento obrigado a indemnizar o credor quando o devedor no satisfaa plenamente o direito do credor a uma indemnizao e esta falta de indemnizao seja imputvel ao terceiro. Defende-se aqui, portanto, que um terceiro ser responsvel por leso do direito de crdito quando se verifiquem os seguintes quatro pressupostos: a) conhecimento pelo terceiro da existncia do crdito; b) nexo de causalidade suficiente, nos termos gerais da responsabilidade civil, entre a conduta do terceiro e o incumprimento do crdito; isso acontece, designadamente, quando o terceiro instiga o devedor a no cumprir ou quando o impede de cumprir; c) o devedor no indemniza (totalmente) o credor, o que acontece quando o devedor no tem culpa no no31[31]

Embora leve a uma responsabilizao do terceiro muito maior do que aquela que a doutrina tradicional pretende conceder atravs da figura do abuso do direito.34

cumprimento (p. ex., se o terceiro, s por si, impedir o cumprimento) ou quando o patrimnio do devedor no suficiente para ressarcir o credor; d) imputao ao terceiro da ausncia de indemnizao (total) pelo devedor, o que acontece sobretudo quando o terceiro, s por si, impossibilita conscientemente que o devedor cumpra e quando o terceiro sabe ou devia saber que o patrimnio do devedor no suficiente para ressarcir o credor. Em suma, esta soluo intermdia defende que um terceiro responsvel pelo no cumprimento quando, alm do mais, lhe seja imputvel a inexistncia ou insuficincia da responsabilidade do devedor. Antes de apresentar os argumentos em seu favor, convm que os alunos tenham em mente que esta soluo no a soluo do problema da eficcia externa das obrigaes. apenas mais uma hiptese, mas que parece to razovel, partida, como a teoria tradicional ou a teoria da eficcia externa genrica. O problema continua em aberto. Os argumentos so, ento, os seguintes: - A posio primordial do devedor como responsvel reconhecida. O

terceiro surge como um responsvel de segunda linha, na falta de responsabilidade (e pagamento) do devedor. - A tese intermdia concilia-se bem com o facto de, na lei expressa, a

tutela do credor perante terceiros estar estabelecida apenas quanto garantia das obrigaes (com os exemplos do 610. e do direito da falncia). Ou seja, tal como na impugnao pauliana, esta tese intermdia defende o credor apenas nos casos em que o devedor no o satisfaa atravs da responsabilidade patrimonial. - A tese intermdia concilia-se bem com a soluo (unnime) para os

casos de leso da titularidade. que, nesses casos, o problema parece ser justamente o de o terceiro lesar, s por si, o crdito, sem contributo do devedor e, portanto, sem que este indemnize.

35

XII SEGUNDA CONCLUSO O problema da eficcia externa das obrigaes um problema em aberto. No h muitas solues que devam ser aprendidas; h argumentos que devem ser compreendidos. Por outro lado, os problemas concretos tm de ser resolvidos (vide, alis, o art. 8./1). Quando estes problemas surgem a um tribunal, o tribunal tem de resolver. E se um destes problemas surgir num caso prtico, o aluno tem de o resolver. Tem de concluir. E para concluir tem de argumentar. Quanto a mim, PFM, no estou certo de qual seja a soluo correcta. Inclino-me, de qualquer maneira, para a teoria da eficcia externa genrica (havendo conhecimento pelo terceiro), que me parece oferecer os melhores argumentos. E no defenderia menos do que a tese intermdia. Mas a minha posio no argumento, e bom que os alunos se convenam disso.

XIII EXCURSO: A DISTINO ENTRE DIREITOS DE CRDITO E DIREITOS REAIS Esta questo j no respeita ao problema da eficcia externa das obrigaes, embora esteja com ela relacionada. preciso ter em conta que mesmo quem defenda a eficcia externa continuar a reconhecer que existem importantes diferenas prticas (i.e., de regime) entre os direitos de crdito e os direitos reais. Em sntese, so as seguintes: - H meios de proteco (contra terceiros) especficos dos direitos reais

ou, pelo menos, dos direitos absolutos, sem paralelo no direito de crdito, como sejam a aco de reivindicao (cf. art. 1311.), a aco negatria (sem artigo

36

especfico32[32]), e as aces constitutivas em que se exercem direitos reais de aquisio (cf. arts. 1410. e 413.). - culpa. - Pelo contrrio, a responsabilidade civil depende normalmente de culpa Esses meios de tutela especficos dos direitos reais no dependem de

(cf. art. 483.). Portanto, mesmo quem defende a eficcia externa das obrigaes s a defende no caso de haver culpa do terceiro. No esquecer, por outro lado, que, quando se pretende proteger o titular de um direito real atravs da responsabilidade civil, esta responsabilidade civil tambm depende de culpa (art. 483.). - Mesmo em matria de responsabilidade civil, parece haver uma

diferena entre os direitos reais e os direitos de crdito. que o lesante de um direito real ser responsvel ainda que ignore a existncia desse direito real, desde que a ignorncia seja negligente. Pelo contrrio, um terceiro que lese o crdito s ser responsvel, diz-se, se efectivamente conhecer o crdito.

Pedro Ferreira Mrias, Dezembro de 2003

Disponvel online em: http://muriasjuridico.no.sapo.pt/eEficaciaExterna.htm

32[32]

Mas aceite por toda a gente. Vejam-se os manuais de Reais no captulo da defesa da propriedade. H meios de tutela a que tambm podemos chamar negatrios (como fazem os autores alemes) expressamente previstos para outros direitos absolutos, como a aco da manuteno, no caso da posse, e o requerimento do art. 70./2, no caso dos direitos de personalidade. A mesma figura surge ainda no Cdigo do Direito de Autor (art. 56./1, in fine) e no CPI (art. 101.).37