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Algumas consideraceies sobre o texto, considerado como objeto literario Alckmar Luiz dos Santos Professor-bolsista, CNPq-UFSC Quando se considers a experiencia de leitura critica, é necessario discutir os pressupostos sobre os quais esta fundada a prOpria nocdo de objeto textual. Primeiramente, porque o texto literario pode ser considerado o inicio de um experiencia cognitiva que a leitura torna possivel pouco a pouco; em segundo, porque a entrada dentro do universo literario (universo poetico, diria Valery) implica uma revisdo constante de seus elementos. Do contrario, corremos o risco de perder toda a riqueza que os textos nos dao a ver. A esse respeito, as obras filosOficas de Merleau-Ponty e de Bachelard podem nos ajudar a compreender, urn pouco melhor talvez, como aparece e como se desenvolve esse objeto essencialmente dinamico e multiforme que é o texto literario. As limitacOes do sujeito intelectualista , s t ito da mesma ordem dos limites que enfeixam seu objeto de conhecimento. Condenando as conseqiiencias do intelectualismo, herdeiro do pensamento cartesiano, Merleau-Ponty observa que aquilo que the falta é "a contingencia das ocasiOes de pensar" 2 . Assim, o que esse pensamento negligencia e justamente a reflexdo acerca do ato de constituicão de seu objeto, a fundacdo dos elementos primeiros de seu conhecimento. De acordo corn Bachelard, falta ao intelectualismo um esforco insistente de "psicanalisar" seu prOprio ato de conhecimento. Ora, retomando Merleau-Ponty, o que falta ao intelectualismo é "a conexdo interna do objeto e do ato que ele - objeto - ocasiona"3. Urn nä° pode ser pensado sem o outro. Refletir acerca das condicaes do pensamento implica tambern buscar essa conexao interna, sem a qual nao haveria experiencia cognitiva. E precis() tambem sublinhar que o ato de leitura, ao menos Anuario de Literatura 1, 1993, pp. 177-186

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Algumas consideraceies sobre o texto,considerado como objeto literario

Alckmar Luiz dos SantosProfessor-bolsista, CNPq-UFSC

Quando se considers a experiencia de leitura critica, énecessario discutir os pressupostos sobre os quais esta fundada aprOpria nocdo de objeto textual. Primeiramente, porque o textoliterario pode ser considerado o inicio de um experiencia cognitivaque a leitura torna possivel pouco a pouco; em segundo, porque aentrada dentro do universo literario (universo poetico, diria Valery)implica uma revisdo constante de seus elementos. Do contrario,corremos o risco de perder toda a riqueza que os textos nos dao aver. A esse respeito, as obras filosOficas de Merleau-Ponty e deBachelard podem nos ajudar a compreender, urn pouco melhor talvez,como aparece e como se desenvolve esse objeto essencialmentedinamico e multiforme que é o texto literario.

As limitacOes do sujeito intelectualista, s tito da mesma ordemdos limites que enfeixam seu objeto de conhecimento. Condenandoas conseqiiencias do intelectualismo, herdeiro do pensamentocartesiano, Merleau-Ponty observa que aquilo que the falta é "acontingencia das ocasiOes de pensar" 2 . Assim, o que esse pensamentonegligencia e justamente a reflexdo acerca do ato de constituicão deseu objeto, a fundacdo dos elementos primeiros de seu conhecimento.De acordo corn Bachelard, falta ao intelectualismo um esforcoinsistente de "psicanalisar" seu prOprio ato de conhecimento. Ora,retomando Merleau-Ponty, o que falta ao intelectualismo é "aconexdo interna do objeto e do ato que ele - objeto - ocasiona"3.Urn nä° pode ser pensado sem o outro. Refletir acerca das condicaesdo pensamento implica tambern buscar essa conexao interna, sem aqual nao haveria experiencia cognitiva.

E precis() tambem sublinhar que o ato de leitura, ao menos

Anuario de Literatura 1, 1993, pp. 177-186

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como eu o entendo, so se completa verdadeiramente sob a impulsdode uma consciencia aberta, sempre atenta a suas pr6priascontingencias, a possibilidade sempre presente de tornar-seexperiencia imediata.

Merleau-Ponty observa ainda que, "para o pensamentocartesiano, a conexao da essencia e da existéncia nao se encontra naexperiencia, mas na ideia de infinito" 4 . Isso significa que talpensamento prefere esconder essa conexdo atras de uma imagemidealizada (urn infinito a ser concretizado via cognigdo), a encontra-la em seu prOprio esforgo de conhecimento, tornado entdo experienciade um conhecimento. Eis ai alguns limites do pensamento cientificodo seculo XIX que chegaram a atingir ate mesmo as ciencias ditashumanas. Ora, a partir do momento em que as nogOes de objeto sac,completamente reformuladas s , e preciso questionar os pressupostosque fundam nossos objetos. Eles nä° podem restar a distancia detodas as reflexOes epistemolOgicas que foram feitas ate esta alturado seculo XX.

A propOsito dessas questOes, Bachelard escreve que, seencontramos as dualidades que definem o objeto, podemos enriquece-los todos6 . Isso significa que devemos constantemente buscar ligagOescorn o objeto; que sua constituigao, dentro de uma experienciacognitiva, deve ser paralelo ao ato de constituigdo do prOprio sujeito.Dessa forma, escapamos aos limites do pensamento intelectualista,que (segundo Merleau-Ponty), faz corn que nos "separemos doobjeto" 7 . Em relagdo a critica literaria, sobretudo a critica de poesia,o esforgo contrario pode (e deve) ser estabelecido por urnconhecimento poetic() que desenvolvemos no contato corn o texto,na medida em que ele vem principalmente de nosso intim°, dointerior do sujeito critic° que se erige precariamente como leitor.

Objeto generico vs. objeto quanticoBachelard propOe tal oposigao a fim de diferenciar o que

seria uma cientificidade moderna e as ciéncias dos seculos anteriores.0 objeto generico significa a adesdo a uma realidade estatica, ondeas contingencias do conhecimento sac, esquecidas em prol de umavisa() mais esquernatica e, provavelmente, mais idealizada (no sentidoplatOnico do termo). 0 objeto generico e a supremacia de urn saber

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que se afasta de suas condigOes imanentes de aplicaedo, perdendoassim toda possibilidade de tornar-se verdadeiramente geral. 0 objetogeneric° é a vitOria da determinagao, da causalidade estrita, sobre oconhecimento advindo da experiencia direta do mundo.

Ao contrario, o objeto quantico elege a indeterminagdo comoseu aspecto mais importante. Isso significa que ele valoriza sobretudoo fenOmeno de descoberta do objeto. No sentido dos postulados deHeisenberg, nao ha nenhum objeto que nao seja determinado pelascondigOes de observagdo, o que compreende igualmente o sujeito-observador. Toda intervened° deste Ultimo implica uma alteragaoda coisa observada ela mesma.

Encontramos comentarios semelhantes tambem nos textos deMerleau-Ponty. Na Phenomenologie de la Perception, ele nos ensinaque "e preciso reconhecer o indeterminado como urn fenOmenopositivo" 8 . Isso significa que devemos apreender da experienciaurn conhecimento que seja tambem (ou sobretudo) fundado naindeterminagdo. A incerteza das particulas fisicas podem nos ensinarbastante acerca de qualquer objeto, nao importando sua natureza. Adeterminagdo do objeto é uma operagao realizada somente nos ültimosprocedimentos de qualquer ato de conhecimento (e podemos ver aimais uma coincidencia notavel entre a epistemologia cientifica euma provavel epistemologia da critica literaria). Ora, a partir domomento em que ha apenas objetos incertos dentro do dominioliterario, torna-se quase obrigat6rio que nos aproximemos daepistemologia do seculo XX, que se consagra a este mesmo tipo deobjeto indefinido, como o que perseguimos na critica literaria. Comodiz Merleau-Ponty: "A sensagao, vista como inequivoca, esta ligadaa super-estrutura tardia da consciencia"9.

De acordo corn Bachelard, "ha urn abandono da nocao deabsoluto, na fisica moderna" 10 . Da mesma maneira, a critica modernave-se na obrigagdo de esquecer seu antigo objeto, por demaisdeterminado (monadic°, talvez), para adotar uma nova nocao deobjeto, privilegiando as particularidades derivadas do ato deconhecimento.

A esse respeito, é tambem necessdrio considerar urn outroaspecto. A indeterminagdo do objeto deve ser compreendida dentrode urn esforgo de raciocinio, de racionalizagdo. Isso significa que

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devemos associar ao objeto urn trabalho de delimitagdo, a saber,uma atividade cognitiva que enfeixe a indeterminacdo do objeto emsuas prOprias contingencias, em sua fenomenalidade, em seudesenrolar experimental. E exatamente isso que afirma Bachelard,quando escreve que "a ciencia contempordnea quer conhecerfenOmenos e nao coisas. Ela nao e de modo algum coisista. A coisanao e mais que urn fenOmeno parado"". Ora, as ciencias exatasaceitaram que, as vezes, e necessario misturar a razdo e a intuigdo,a partir do momento em que seu objeto cientifico mistura, ao mesmotempo, a indeterminagdo e a agdo localizavel' 2 . A fortiori, essanecessidade tambem e sentida no dominio da literatura. E precisoapenas encontrar a justa medida deste dialog() entre determinagdo eindeterminagdo, razdo e intuigdo 13 . E justamente o que CarloGinzburg diz a respeito dos metodos de critica de arte, em seuMitos, Emblemas, Sinais. Ele defende ai justamente a necessidadede escapar ao paradoxo racional-irracional 14 e cita uma frase deWarburg: "Deus esta no particular" 15 . Dito de outra maneira, atotalidade do conhecimento so pode ser descoberta debaixo dasparticularidades, sob os indicios da intuigdo que ilumina a aspiragdode totalidade. E isso que compreendo comofenOmeno, do qual umadas caracteristicas mais importantes e justamente a "indeterminagdoativa" do objeto.

A pluralidade do objeto: o papel da conscienciaMerleau-Ponty retoma de Husserl a questao da

intencionalidade, segundo a qual, toda consciencia e consciencia dealguma coisa (como se encontra logo no inicio da Phenomenologiede la Perception). Poderfamos entao nos perguntar qual seria opapel da intengdo na constituigdo do objeto. Ou ainda, como trabalhaaf a consciencia do sujeito? E fundamental encontrar uma formulagdooperativa do que entendemos como leitura, sobretudo quando talnogdo encerra uma ideia de experiencia, prOxima a operatividadeda epistemologia cientifica. Parece-me que essa questa.o pode sermelhor compreendida quando utilizamos o conceito de atencao,estabelecido por Merleau-Ponty. A atengdo pode ser compreendidacomo a atuagdo da consciencia quando do estabelecimento de urnobjeto. Entre a consciencia, marca do ser singular, e a coisa,

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possibilidade do objeto, se estabelecem os tacos da atengdo. 0 queconduz esses tacos de urn polo a outro do fenOmeno é justamente aintencao. E por isso que Merleau-Ponty define a atencao da seguintemaneira: "transformacao do campo mental, uma nova maneira de aconsciencia estar presente diante de seus objetos" 16.

Pensemos ainda acerca de uma outra observacdo feita pelofilOsofo: "A atencäo como atividade geral e formal nao existe. Restafazer aparecer o objeto da atencdo" 17 . Ele define assim o trabalhoda intencao. Ela ajuda a produzir o objeto, dentro do campofenomenal. Ndo haveria objeto sem o trabalho da intencao. Mesmoesquecida, mesmo escondida, a intencionalidade permanece ativa.E a Onica maneira da consciencia de se mostrar como um ser. Aindasegundo Merleau-Ponty, "tudo o que existe, existe como coisa oucomo consciencia e nao ha meio-termo" 18 . Quanto a mim, nao possodeixar de compreender a experiencia de leitura como oestabelecimento de urn caminho entre uma e outra, atraves daintencao, sem parar no "meio do caminho" (onde ha uma pedra,segundo o poema de Drummond, que nao é nem o texto lido, nema consciencia que le, mas o prOprio desenrolar do ato de leitura).Entre urn texto e o "eu" que o le, temos o exercicio da leitura comouma experiencia que ilumina ao mesmo tempo a coisa lida e aconsciencia que le.

Se é verdade que a consciencia so apreende a si mesma atravesda intencao, é tambem verdadeiro que o objeto so se da a nossacontemplacäo por intermedio da intencao. 0 objeto (e o caso doobjeto poetic() é ainda mais caracteristico) so se constitui gracas aotrabalho intencional da consciencia. E entdo preciso lev y-lo emconsideracdo: mais do que em outros dominios, é na critica depoesia (sobretudo na critica de poesia), que a observacdo de umsujeito empiric° - quer dizer, real - vem delimitar (ou determinar,ou ainda, constituir) urn objeto.

A pluralidade do objeto: tentativa de uma auto determinacäoPodemos compreender a abertura do sujeito em direcao do

objeto como uma operacdo dupla. Ao mesmo tempo que ele tentadeterminar seu objeto, ele se determina igualmente. 0 sujeito, quandoda urn sentido ao objeto, esta tambem se outorgando urn sentido

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prOprio. Ao fundar o sentido do objeto, ele esta fundando o seuprOprio sentido. Merleau-Ponty diz que o sentido do mundo nascede uma abertura de nosso corpo a exterioridade, quando misturamosnossas sensacOes ao sentido geral do mundo, alterando-o 19 . NOs nosreconhecemos assim no sentido que atribuimos aos objetos, atravesde nossas experiencias cognitivas. Eis ai o trabalho que se impOe,no que concerne a critica literaria: reconhecer a leitura como oestabelecimento (ou a descoberta), fora de nos mesmos, de algunsde nossos tracos pessoais 20 . A coerencia imposta por nossa leituranao e mais do que a busca de urn sentido que vai de nos (enquantosujeitos) em direcao de uma predisposicao de sentido manifestapelo objeto. E essa predisposicao, nos devemos habita-la com nossostracos particulares, corn nossa disposicdo de fazer dela umaexperiéncia cognitiva cada vez mais profunda.

Por outro lado, a identidade do objeto, como podemosdepreender do que dizem os fisicos modernos, realiza-se napluralidade das manifestacOes e dos fenOmenos. E, ao menos, o quese pode depreender do principio da incerteza. E como pensar nosujeito de uma leitura critica, no quadro de uma tal oposicao entreidentidade e pluralismo? E preciso, alem do mais, levar emconsideracdo que esses dois pOlos nao se dissolvem dialeticamente(no sentido hegeliano). Como diz Pessoa, so aos deuses compete,talvez, sintetizar. Ao contrario, esse sujeito busca estabelecer suaidentidade, mas nao encontra outros meios alem da pluralidade.Assim, a tarefa de urn sujeito-leitor critic° (nos diferentes sentidosda palavra) e construir sua identidade, sua determinacao, por meiode uma pluralidade de dados que ele, ao mesmo tempo, associa aseu objeto e retira de sua experiéncia cognitiva.

Esses postulados epistemolOgicos, tornados de emprestimodas ciéncias modernas, aproximam-se de algumas questaes literarias.De uma certa maneira, as ciencias "duras" tornaram-se vizinhasdas ciéncias humanas. Menos por urn parentesco dos respectivosobjetos, mais por uma irmandade epistemolOgica, por umasemelhanca na prOpria maneira de desenrolar as respectivosexperiencias cognitivas. 0 objeto da ciéncia moderna, exatamentecomo foi sempre o caso do objeto literario, apresenta uma extensdobastante larga, uma amplitude epistemolOgica que o afasta cada vez

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mais do antigo objeto positivista, determinado desde o inicio poruma arbitrariedade intelectualista. De onde a questdo: por que naoutilizar, dentro do dominio literario, todos esses preceitosepistemolOgicos, oriundos da ciéncia contemporanea, se eles estaoassociados a pr6pria essencia de nosso objeto literario?

A pluralidade do objeto: os contornos da experienciaAlgumas conclusOes e/ou postulados, que resultam das

questOes discutidas acima:A delimitacdo do objeto decorre de uma delimitagao

correspondente da experiencia cognitiva onde esse objeto aparece;A experiencia pode ser entendida como uma resposta a

uma organizacdo, a uma ordem iminente, a uma possiveldeterminacdo do objeto; a lOgica dessa nova epistemologia naopoderia mais ligar-seas coisas ("fenOmenos parados", na acepcdode Bachelard), ela deve "reintegrar as coisas aos movimentos dofenOmeno"21;

3. A reuniao dos pOlos sujeito-objeto da a experiencia umapossibilidade de totalizacdo (jamais de totalidade).

Em relagao ao primeiro comentario, podemos concluir que adelimitacdo do objeto corresponde a criacdo de urn campo fenomenal.Aplicado a literatura, podemos falar entdo de urn campo de leitura,onde esta vai-se desenrolar como experiéncia cognitiva. Tal campodeve compreender o texto-objeto, o sujeito-critico e a leitura elamesma. Nao se trata de considerar separadamente os papeis de cadaurn, mas de encontrar os utensilios criticos que associam urn sentidoao conjunto constiturdo por esses tres elementos. Dessa forma, oobjeto textual so é apreendido dentro das condicOes de contornoque impomos a leitura; alem do mais, todas as condigOes previasdevem ser bem controladas (psicanalisadas, diria Bachelard), paraque nao nos distanciemos dos bons resultados.

0 segundo comentario constitui uma reciproca do primeiro.Agora, é o objeto que delimita as condicOes de "mise-en-scene" daexperiencia. De acordo corn Merleau-Ponty, "a percepcao tern umaparte real e uma outra intencional" 22 . E justamente sua parte realque associa a experiOncia os elementos objectuais, que the da a

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possibilidade de ter acesso aos sentidos do objeto. A delimitacdo daexperiencia deve forcosamente passar por ai. Essa interferencia entrea observacdo e a coisa observada levou a fisica a uma completarevisdo de seus principios epistemolOgicos, e essa mesmainterferencia nao poderia nunca deixar de ser produtiva para a criticaliteraria. Alias, segundo Merleau-Ponty, "a percepcdo faz corn queos dados tenham um sentido" 23 . Ora, o sentido da percepcdo naoexistiria sem a coerencia que ela vem retirar tambem de seu objeto.E por isso que temos insistido na necessidade de rever aspossibilidades cognitivas da experiencia literaria.

E muito comum uma certa tendencia a negligenciar ascondicOes imanentes de realizacdo da leitura. A segunda conclusdo,resumida acima, nos alerta igualmente para o perigo representadopor uma nocao positivista de objeto, quer dizer, quando ele e isoladode seu contexto empirico, quando ele e "impermeabilizado" aosoutros elementos da experiencia cognitiva. Os instrumentos criticosa desenvolver devem obedecer as condicOes experimentais. Nuncahavera urn conhecimento verdadeiro, se isolamos o texto, se otomamos como uma coisa auto-suficiente, como uma realidade muitodistante do ato de observacdo - a leitura Uma leitura renovada (erenovadora) deve utilizar instrumentos criticos que colaborem parase chegar a esse visa° mais global do texto. Tornado em si mesmo,como coisa, o texto nao a mais do que um fenOmeno parado(retomando mais uma vez a expressdo de Bachelard). E necessarioassim compreender o texto em seu movimento de significacao, naagitacdo incessante, na dinamicidade que pode the dar o ato deleitura.

Finalmente, o terceiro comentario encerra o objetivo de todoprojeto de conhecimento: a totalizacdo. E claro que a totalidade naosera jamais atingida. A ideia de totalizacao procura resgatar a nocaode movimento que se projeta para a totalidade, sem jamais toca-la.Se tomamos cuidado em nao cair nos erros de uma "pan-cosmicidade" (com o devido perddo pela hiperbole), percebemosque a totalidade nao passa de uma metafora, do sentido que damosao movimento de nossa cognicao (que nao para jamais; parado, eledeixaria de ser conhecimento). Para resumir, o que importa e osentido do movimento, e nao o objetivo, o ponto de chegada ele

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mesmo24 . A esse respeito, podemos retomar algumas palavras deMerleau-Ponty: "A experiencia normal apresenta circulos outurbilhOes, dentro dos quais cada elemento e representativo de todosos outros e comporta como que vetores que ligam uns aos outros"25.Saliente-se ainda que tal nocao nao é recente: mesmo a visa°aristotelica de urn objeto literario organic° ja implicava uma ideiasemelhante a essa.

Em suma, podemos ver, nessa totalidade, tao somente o meioque nos permite visualizar os liames entre a imanencia do texto e atranscendencia do ato de leitura, ligados pelo sujeito-leitor.Idealmente, a imanéncia e a transcendencia nao sao verdadeiramenteseparaveis, pois, "na percepcdo efetiva, tomada no nascedouro,antes de toda fala, o signo sensivel e sua significacdo nao sao, demodo algum, idealmente separaveis" 26 . Reconhecer este papel dotexto-objeto, corresponde a reconhecer sua realidade mais essencial.Se esse desejo de totalizacao anima os elementos de todo ato deconhecimento, a critica, de seu lado, nao pode se furtar a ele, sobpena de perder todas as complexidades que viriam enriquece-la,assim como enriquecer esse objeto textual, objeto de especiecomplicada (como diz Pessoa de Caeiro).

NOTASRetomo ai a expressao usada por Merleau-Ponty, em sua Phenomenologie

de la Perception.Op. cit., p. 36.Ibid.Id., p. 60.Como se pode ver na fisica moderna. Ha ate mesmo alguns cientistas que

defendem a ideia de que a constituicao do objeto experimental das ciénciasdeva considerar a consciéncia do pesquisador (ver Fritjof Capra, 0 Tao daFisica).

Le Nouvel Esprit Scientifique, p. 161.Phenomen. de la Percep., pp. 230-1.Cf. capitulo 1, "La Sensation".Id., p. 15.La Philosophic du Non, p. 30.Id., p. 109.Cf. Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique.

13. Evitem-se ai os paralelismos. Ao mesmo tempo em que podemos ter umarazdo indeterminada, nada nos impede de desenvolver uma intuicao

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determinada.Cf. a introducao da obra.Cf. a versdo francesa: Mythes, Emblêmes, Traces, p. 139.Phenom. de la Percep., p. 37.Id., pp. 37-8.Id., p. 47.Id., p. 19.Essa e a razdo pela qual atribuo uma tal importancia ao conceito de "ser

incarnado", de Merleau-Ponty. Esses tracos correspondem justamente a "mise-en-scene" do ser enquanto existente.

La Philosophie du Non, p. 104.Phenomen. de la Percep., p. 20.Id., p. 44.0 que esti dentro das melhores linhas inicidticas; basta consultar as antigas

mitologias acerca do labirinto.Id., p. 223.

26. Id., p. 44.