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HELENA E O SEU PAPEL NA GUERRA DE TRÓIA

Adriana Barbosa SILVA

Resumo: Este trabalho analisa e compara as imagens de Helena de Tróia nas obras de

três poetas. Os textos escolhidos são os trechos sobre Helena na peça “Doctor Faustus”

do dramaturgo elizabetano Christopher Marlowe, o poema “To Helen” de Edgar Allan

Poe e o poema “Helen” de H.D. (Hilda Doolittle). Estudando a maneira em que Helena

é retratada na obra dos dois poetas e da poetisa, é possível observar que os trabalhos de

Marlowe e Poe são influenciados pelos estereótipos de mulheres prevalentes na

sociedade patriarcal. Enquanto Marlowe considera a beleza de Helena como sendo

perigosa, destrutiva e associada com o mal. Ao mesmo tempo ela é vista como um

objeto desejado pelos homens, sendo sua beleza ainda considerada como divina. Poe

apresenta Helena como uma figura idealizada que o inspira e guia remetendo-o aos

valores e conceitos clássicos da Grécia Antiga. H.D., a única poetisa que considera

Helena como uma pessoa e não como um símbolo, apresenta e avalia seus sentimentos e

reações às situações impostas a ela. Aplicadas como suporte, as teorias de Simone de

Beauvoir, Kate Millett, Eva Figes e Germaine Greer foram utilizadas neste trabalho para

colaborar com a interpretação das imagens de Helena apresentadas pelos poetas

supracitados.

Palavras-chave: Influência; Dualidade; Estereótipos; Literatura feminina.

1. Introdução

Através da história os homens tentam manter as mulheres em um estado de

subserviência, agindo como se eles tivessem ganho o direito de controlar seus destinos

do próprio Deus. Consideradas mentalmente inferiores aos homens às mulheres foram

reduzidas a meras máquinas reprodutoras. Em geral as mulheres são tratadas como

objetos de prazer masculino, o Outro sexo, totalmente dependente dos homens e a sua

posição na sociedade patriarcal é quase nula.

Críticas femininas como Eva Figes apontam que as mulheres não tinham direito

a expor suas opiniões ou a liberdade para expressar seus desejos já que esses anseios

deveriam corresponder aos mesmos dos membros masculinos de suas famílias. A

educação também lhes era negada para forçá-las a permanecer nessa posição de

subordinação. O resultado da repressão sofrida pelas mulheres e a falta de instrução

trouxeram como consequência a ausência de mulheres escritoras em comparação ao

número de homens. Sendo a literatura dominada por eles e as imagens femininas

apresentadas unicamente sob a perspectiva masculina das mesmas.

Nesse contexto, estudamos a maneira como Helena de Tróia é apresentada

historicamente na literatura. Como um ícone de beleza, Helena de Tróia foi um modelo

para as garotas espartanas na Era do Bronze, uma linda e jovem rainha admirada pelas

mulheres e desejada pelos homens. Sua abdução pelo príncipe persa Paris de Tróia é

considerada como responsável pela guerra entre gregos e troianos, narrada na obra

Ilíada de Homero, que durou dez anos e causou milhares de mortes.

Helena era diferente da maioria das mulheres do passado e do presente já que ela

tinha poder sendo a filha do Deus Zeus e de uma rainha, sua beleza também lhe dava a

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habilidade de dominar os homens, ao mesmo tempo em que sua história ilustra o poder

destrutivo das mulheres; mesmo aspecto que é abordado na história de Adão e Eva.

Helena é retrada como deusa, princesa, e prostituta. Embora não haja provas de sua

inocência ou de suas más intenções. Não está claro se ela partiu voluntariamente de

Tróia ou se foi levada a força por Paris.

As imagens de Helena de Tróia nas obras de dois poetas e de uma poetisa foram

analisadas, são eles: Christopher Marlowe, Edgar Allan Poe e H.D. (Hilda Doolittle) e

as passagens foram: “Helena de Tróia” na peça Doutor Fausto de Marlowe (1592), o

poema “Para Helena” de Poe (1831) e “Helena” de H. D. (1923). Bem como as teorias

feministas de Simone de Beauvoir, Kate Millett, Eva Figes e Germaine Greer que

auxiliaram na análise sobre as perspectivas femininas e masculinas a cerca das imagens

de Helena apresentadas nesses textos.

2. Teoria feminista: perdidas em um mundo masculino

As teorias de quatro críticas feministas cujos pensamentos são semelhantes

forma analisadas na construção desde artigo. São elas: Simone de Beauvoir, Kate

Millett, Eva Figes e Germaine Greer as quais comentam a posição inferior que a mulher

ocupa na sociedade patriarcal, sua redução a objetos do prazer masculino e a supressão

de seus direitos sendo restringidas a dicotomia dos estereótipos da esposa frágil ou a

prostituta rebelde, promiscua e perigosa.

Desde a criação do mundo através da história na sociedade patriarcal a mulher

tem lutado para construir sua independência e conquistar seu espaço na mesma

livrando-se da dominação imposta pelos homens representada pelos membros

masculinos de sua família e subsequentes maridos.

A crítica feminista Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949) mostra como

a mulher é tratada como o Outro sexo, aquele que é inferior mental e fisicamente em

relação ao homem, pois fora criada de uma simples costela de Adão e não do puro pó

assim como ele e que, portanto era um ser dependente daquele, ainda que não houvesse

uma explicação concreta que dissesse o porquê dessa dependência feminina para com a

masculina.

Ainda segundo Beauvoir (1949) as mulheres desde seu nascimento estavam

fadadas ao papel de máquinas reprodutoras, com o destino de serem perfeitas e

submissas donas de casas, cuja função era cuidar do marido, filhos e da casa. Tratada

como mais um objeto na coleção masculina a mulher lhe servia não apenas como

suporte, mas como objeto de ostentação, pois quanto mais bem vestida e cheia de jóias

ela desfilasse maior seria a representatividade do poder aquisitivo do marido.

Do ponto de vista de Beauvoir (1949) não se nasce mulher, mas torna-se uma

devido ao comportamento que se é adquirido, o ser mulher é algo que se forma a partir

dos fatores biológicos, psicológicos e econômicos, se é condicionado desde a infância a

se sentir confortável na posição de segundo sexo, do Outro sexo, do efeminado,

delicado.

Embora a mulher sempre tenha sido vista como o sexo frágil, algumas não

aceitaram essa teoria e lutaram por seu espaço na sociedade patriarcal, essa luta foi

suportada a partir de algumas mudanças na sociedade, tais como o triunfo do

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capitalismo moderno, a conquista do trabalho fora de casa e subsequente ajuda no

sustento da família e do divórcio.

Kate Millett (1970) em seu livro Políticas Sexuais compartilha das mesmas

idéias que Beauvoir e considerando o surgimento do patriarcado aponta que nós temos

um deus que criou um mundo feito para os homens, sendo o homem criado primeiro

para ser considerado o guia da humanidade, através dele Deus passaria os seus

ensinamentos, sendo a mulher criada depois e servindo apenas de mera companhia, ela

também seria guiada pela supremacia masculina.

Como companheiras dos homens cabiam as mulheres o papel de cuidar dos seus

bens e, portanto nada do que aquelas possuem pertencia-lhes verdadeiramente, nem

mesmo os filhos, já que em caso de separação os pais tinham a vantagem de serem os

maiores provedores do sustento da família e sendo assim quase sempre ganhavam a

guarda dos filhos.

Para Millett (1970) desde o nascimento as crianças apenas pertenciam a dois

grupos, masculino ou feminino e não se considerava as questões biológicas ou o

desenvolvimento de suas futuras ideologias. A divisão representava apenas a visão

sobre o grupo dos dominadores e dos subjugados.

Millett acredita que o fato de as mulheres terem sido culpadas pelo sofrimento

da humanidade por causa de Eva ao aceitar o fruto proibido fez com que elas ocupassem

um lugar inferior na sociedade e com a consolidação do casamento que apenas serviu

para formalizar a dominação masculina sobre as mulheres como se elas não fossem

seres menos importantes que os homens muitas vezes nem consideradas como seres

humanos, sendo seus direitos negados e isso as condicionasse a serem submissas,

humildes, com atitudes passivas e vistas meramente como objetos sexuais dos homens.

Sendo assim Millett em seu livro buscava propagar o argumento pela revolução

sexual e a liberação feminina do poderio masculino e defendia que o casamento era não

somente um jeito de dominação masculina, mas o primeiro passo na amostra de

injustiças em relação aos grupos sociais, especialmente ao grupo feminino no que se

refere aos seus direitos legais, políticos e sociais, haja vista que mesmo os homens que

recebiam um alto grau de educação em sua maioria não apoiavam o direito das mulheres

a serem educadas e diziam que era perda de tempo, pois seu destino era ser donas de

casa, esposas e mães.

Eva Figes (1970) em seu livro Atitudes Patriarcais defende assim como Millett

(1970) e Beauvoir (1949) que o modo como alguém é criado influencia como ele irá se

comportar na sociedade, deste modo os seres se tornam aquilo que são ensinados desde

o nascimento.

Como resultado da inquestionável soberania masculina sobre as mulheres desde

o seu nascimento, elas não ousam sonhar nem almejar aquilo que não foi previamente

aprovado pelos homens presentes em suas vidas, não lhes foi ensinado a ter ambição.

Devendo ainda sentir-se felizes e realizadas por completo apenas tomarem conta de seus

maridos, seus filhos e cumprirem suas tarefas domiciliares.

Estrategicamente os homens tentaram atribuir as catástrofes do mundo às

mulheres, por exemplo, quando Pandora abriu a caixa que permitiu libertar todos os

males do mundo ou quando Eva mordeu a maçã oferecida pelo diabo. Porém a

superioridade intelectual masculina deve ser discutida, pois se Adão fosse tão esperto

assim ele não teria aceito morder a maçã também, o que só comprova a inteligência e

esperteza feminina.

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Figes afirma que as mulheres forma reduzidas a dicotomia de dois estereótipos o

da boa e submissa Virgem Maria e o da promiscua e pecadora Maria Madalena ao

lembrar-se de suas supostas ancestrais considerando-se a crença judia sobre a criação de

Adão e Lilith, sua primeira companheira, que ao lutar por direitos iguais ao dele, foi

banida ao inferno, sendo então criada a primeira Eva, Adão, porém tendo assistido e

ficado doente pela visão fez com que Deus criasse a segunda Eva enquanto Adão

dormia e essa foi a escolhida por ser obediente e submissa.

Figes é da opinião que já que os homens não podiam gerar filhos eles excluíram

as mulheres da religião, tornando esta uma atividade exclusivamente masculina e

fazendo-as de platéia. É dito também pela sociedade patriarcal que os homens são

superiores espiritual e racionalmente e que as mulheres são mais vulneráveis

espiritualmente, o que ajudou a criar tabus e espalhar idéias errôneas sobre os desejos

sexuais de homens e mulheres. Os puritanos ainda usavam Deus e as orações para

esconder seus desejos físicos sob falsos valores de moralidade contra as mulheres.

Embora as mulheres fossem acusadas de dúbio comportamento e tratadas como

demônios, bruxas, sereias, mentirosas e traidoras os homens mantinham uma visão

romântica e idealizada das mulheres, pois de acordo com a sociedade patriarcal a

mulher era a perfeita e devota ajudante dos homens, eles também mantinham uma alta

concepção de si mesmos como respeitados e superiores chefes de família, maridos, pais

e membros da sociedade; exemplificando mais uma vez como os homens se sentiam

superiores as mulheres e como buscavam razões pelas quais eles deveriam dominá-las.

Após um longo tempo de espera para serem ouvidas as mulheres não sabiam por

onde começar a mostrar suas necessidades e desejos, mas o aumento do tempo livre e da

produção literária nos séculos dezoito e dezenove ajudou a mudar essa situação.

Hoje em dia a situação feminina mudou em alguns aspectos, por exemplo, o

casamento não é mais considerado como única opção de sobrevivência e solução para

os problemas financeiros, mesmo que algumas ainda o vejam como uma forma de

segurança.

Figes afirma ainda que o poder para mudar a situação feminina repousa

unicamente nas mãos das mulheres, não importando quanto tempo isso tome ou como

ocorra.

Germaine Greer ao publicar O Eunuco Feminino (1970) corrobora as idéias

defendidas pelas três autoras supracitadas quanto à situação de passividade e submissão

vivida pelas mulheres e discute temas como sexualidade, amor, família e sociedade em

geral na relação homem/mulher.

Greer aponta como um par de cromossomos XX pode definir o gênero físico e

diferenciar homens e mulheres, concedendo a estas suas curvas que tanto provocam

curiosidade e prazer e as tornando irresistíveis aos olhos dos homens.

Greer observa como os corpos femininos são vistos como objetos estéticos,

delimitando na maior parte do tempo a atenção recebida por elas para as suas curvas ao

invés de suas idéias e inteligência. O que causa uma enorme preocupação nas mulheres

ao se esforçarem por exibir-se sempre perfeitas não importando o sacrifício que tenham

que fazer para manter as aparências e agradar ao público masculino ao usar roupas e

acessórios que lhe valorizem a beleza e fazendo-as se encaixar nos estereótipos pré-

definidos para elas, Greer compara assim a mulher a um eunuco, um ser castrado sem

sexo.

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Em relação ao amor e ao casamento Greer afirma como ambos são utilizados

pelos homens e pela sociedade patriarcal como forma de dominar e iludir as mulheres

com falsas promessas pelo bom comportamento delas ao seguir sem questionamentos

todas as regras impostas a elas.

Durante a Renascença e a partir da peças do dramaturgo Inglês William

Shakespeare a idéia do casamento por amor foi disseminada, embora quando entre as

suas personagens frágeis e doces e as megeras rebeldes e inteligentes, ele preferisse as

últimas sendo, porém a única com chances de tornar-se heroína Cleópatra.

Greer ao terminar seu livro relembra que as mulheres não podem esperar apoio

dos homens nem da sociedade patriarcal para mudarem suas realidades de submissão e

que a iniciativa precisa partir delas.

3. Helena de Tróia

Helena é analisada como figura mítica, de origem divina e cuja vida e

participação na Guerra de Tróia é dita como fundamental, foi escolhida na literatura

Clássica para demonstrar os estereótipos que de acordo com a sociedade patriarcal

deveria cumprir. Helena de Tróia tem sido considerada por anos como símbolo d beleza

e como lembrete de seu poder destrutivo. Sendo o fator mais impressionante sobre esta

mulher é que ela não possui rosto. De acordo com Bettany Hughes, as várias imagens

que existem dela em museus, mostram-na como garota, rainha brilhante e de beleza

magnífica, uma semideusa e prostituta, “não revelam o que Helena era, mas sim o que

os homens queria que ela fosse.” (HUGHES, 2005, P. 4).

Origem: De acordo com o mito Grego, Helena era a única filha mortal de Zeus

(conhecido assim pelos Troianos e como Júpiter pelos Gregos), concebida de forma

violenta quando Zeus disfarçado como um cisne gigante estupra a belíssima Leda então

rainha e mulher de Tíndaro, rei de Esparta, como se a sua beleza esperasse por ser

violentada e não pudesse ser apenas apreciada.

Aparência: Sua pele branca como a neve era considerada como sua maior

atração, de acordo com Hughes “representava a perfeição esperando por ser destruída”

(2005, p. 25).

A Helena real: Quando nova Helena foi violentada por Teseu o já de idade rei

de Atenas e foi aprisionada no forte de Afidna e então resgatada por seus irmãs gêmeos

Castor e Pólux e escravizaram a mãe de Teseu Etra e este foi o início dos conflitos entre

gregos e troianos no qual Helena é considerada culpada desde a infância.

Apesar de não ser mais virgem, Helena era a princesa de Esparta e desejada por

muitos guerreiros já que além de ser bonita ela tinha a capacidade de tornar quem a

desposasse rei. Para decidir quem seria o marido de Helena, Tyndareu fez uma

competição cujo vencedor foi Menelau, mas recebeu o juramento de ajuda mútua de

todos os competidores não importando quem vencesse, o casal teve Hermione tão bonita

quanto à mãe.

A sedução de Helena por Paris é descrita de várias maneiras, numa das versões,

Paris seduz Helena enquanto está hospedado em sua casa por nove dias e lhe deu

diversos presentes, outra diz que o romance começou quando Menelau estava em

viagem no funeral do seu avô. O momento de paixão entre Paris e Helena custou a ela o

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abandono de sua casa e da sua filha e iniciou a guerra Grego-Troiana, seu amor era letal,

embora não haja provas se ela fugiu voluntariamente ou se foi raptada.

Quando a suposta traição de Helena foi descoberta, os heróis gregos lembraram-

se da promessa feita e sob o comando de Agamenon, o rei mais poderoso da Grécia e

irmão mais velho de Menelau partiram para resgatar Helena e se vingar de Tróia

iniciando-se assim a guerra de entre gregos e troianos.

Enquanto Tróia queimava sob ataque grego, Helena percorria as ruas a procura

de um esconderijo, quando Menelau a encontrou seu desejo era matá-la, mas seu amor e

desejo por ela eram maiores e ele a ajudou a fugir, pois o fato de não poder dominá-la

pela falta de submissão dela fizeram com que sua paixão aumentasse. Ambos

navegaram por sete anos por Chipre, Creta, Tebas e outros lugares. Mesmo depois de

sua morte é dito que Helena passeia pelos seus templos e que virou estrela junto com

seus irmãos Castor e Pólux e que em noites escuras guia os viajantes com um raio de luz

branca que aparece no céu (fazendo referência a cor da pele de Helena), esse fenômeno

é conhecido como fogo de Santo Elmo.

4. Helena de Tróia na Ilíada de Homero

Na Ilíada, Homero revela o poder que as mulheres tem sobre os homens. Helena

é uma figura paradoxal, bonita e infiel, causou a morte de milhares de pessoas e décadas

de sofrimento para dois povos sem sofrer danos graves, frágil e poderosa, tendo ambos

o mal e o bem presente em seu espírito. Helena era um desafio para os homens por ser

atraente e perigosa, fatores que a fizeram ser uma figura ambígua através da história e

relembrada como ícone de beleza e ameaça para a humanidade, especialmente para os

homens.

Na história de Homero a ávida de Helena é marcada por divisões sexuais,

quando ela não está envolvida com nenhum homem ela desaparece da poesia do autor.

De acordo com Hughes Helena vai de vítima de estupro a noiva infantil para amante

traidora e de volta para esposa virtuosa. Hughes afirma que a Guerra de Tróia descreve

o fim de uma era, na qual a influência feminina era ampla e forte para uma audiência

que vivendo num mundo masculino e Cristão sabia que esse poder havia sido eclipsado

e no qual ela era um lembrete de como era a sociedade antiga.

Em Homero, ainda que Helena seja amante de Paris ela nunca é descrita como

sendo sua prostituta ou escrava sexual, mas sim como sua legítima e igual companheira;

ambos Menelau e Paris são descritos como sendo seus maridos, mas ela em nenhum

momento é dita como sendo uma esposa subserviente.

5. Helena através do tempo:

Hughes aponta como Helena não poderia ser unicamente considerada

simplesmente como maravilhosa. Em Homero ela é uma relutante destruidora de lares,

Hesíodo a descreve como uma princesa promiscua e Eurípides a mostra como uma

prostituta e Ovídio como uma rainha que usa sua beleza para conquistar todos a sua

volta e em todas as suas versões ela aparece como um ser com falhas, Hughes comenta

que “Helena é um anjo caído condenado por que é alguém que sempre se apaixona pela

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pessoa errada.” (p. 105). A história de Helena é um exemplo de como os homens

associam vários problemas à sexualidade feminina e de como o desejo deles por elas

acaba sendo posto como culpa delas e o sexo é visto como a raiz de todo o mal do

mundo e as mulheres como a origem de ambos. Na peça Mulheres Troianas (415 B.C.).

Helena é portada como alguém perigoso que não merece confiança principalmente por

que ela era articulada, atraente, carismática e inteligente.

6. Helena de Tróia na Literatura

Helena de Tróia é retratada na obra do dramaturgo Elizabetano Christopher

Marlowe e dos poetas americanos Edgar Allan Poe e H.D. (Hilda Doolittle) pertencendo

aos séculos dezesseis, dezenove e vinte respectivamente.

A peça de Christopher Marlowe (1564-1593), Doutor Fausto (1592) conta a

história de um estudioso alemão que quer ganhar conhecimento ilimitado através da

prática de magia. Fausto invoca Mefistófeles, um demônio para ir até seu mestre Lúcifer

e oferecer-lhe sua alma em troca de vinte e quatro anos dos serviços de Mefistófeles. A

oferta é aceita e Fausto passa a viajar pelas cortes da Europa demonstrando seus poderes

em convocar importantes figuras do passado entre elas, Helena de Tróia. Quando os

vinte e quatro anos estão no fim, Fausto fica aterrorizado pelo medo da morte e por ter

de passar a eternidade no inferno e um homem velho lhe aconselha a se arrepender, mas

ao invés disso, ele invoca Helena de Tróia mais uma vez. Deats aponta que “Helena

representa uma alternativa, o caminho imediato do último prazer antes da perdição. O

comportamento de Fausto em se afastar do Homem Velho e invocar Helena mostra a

sua rejeição ao criador do mundo durante toda a peça ao se dedicar ao Deus do seu

apetite.” (DEATS, 2005, p. 223)

Para Doutor Fausto, Helena de Tróia representa o modelo de beleza feminina

clássica perfeita, na passagem a seguir ele entusiasticamente enaltece sua beleza:

Dr Fausto: Foi este o rosto que fez naufargar mil navios ,

E queimou as torres descobertas de Ílio?

Doce Helen, faça-me imortal com um beijo. [ Eles se beijam] 95 Seus lábios sugam

minha alma: vamos ver pra onde ela voa!

Venha , Helen , venha , me dê a minha alma novamente. [ Eles

se beijam ]

Aqui eu vou morar , pois o céu é nesses lábios ,

E tudo o mais que não é Helena, é escória.

Eu serei Paris, e por amor a ti, 100

Em vez de Tróia, deve ser Wittenberg destruída;

E eu vou lutar com o fraco Menelau,

E as tuas cores usarei nas penas do meu elmo;

Sim, eu vou ferir Aquiles no calcanhar,

E depois voltar para tu Helena para um beijo. 105

Ó , tu és mais linda do que o ar da noite

Vestida com a beleza de milhares de estrelas ;

Mais brilhante que as chamas de Júpiter

Quando ele aparece para a Semele infeliz;

Mais linda do que o monarca do céu 110

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Nos braços azulados de Arethusa;

E nada mais, tu serás minha amante! Saem .

Doutor Fausto, Ato V, Cena I

(Tradução minha)

O poema “Para Helena” de Edgar Allan Poe (1809-1849) representa não

somente o ícone de beleza grego Helena de Tróia como também Jane Stith Stanard mãe

de seu amigo Robert Stanard, a qual depois Poe chamou de “o primeiro e puramente

ideal de amor da minha alma”. De acordo com a tradição Helena de Tróia podia

aparecer com a forma e a voz do primeiro amor de qualquer homem. Benjamim Fisher

comenta sobre a origem do nome de Helena, “O nome Helena se origina do grego

significando raio ou luz impressionante.” (FIHSER, 2008, p. 41). Fisher também

menciona o fato de Helena ser considerada como a maior representante da beleza e dos

valores clássicos e gregos, embora não haja nenhuma descrição da sua beleza em

detalhes.

A Helena de Tróia de Poe é idealizada, bonita, passiva, sábia e tem efeito

positivo sobre o autor, pois o inspira a escrever seus poemas e buscar seu caminho de

volta pra casa, pois ele a compara a Psique da alma ao manter uma lâmpada como guia

doméstico, porém não sabemos nada sobre seus sentimentos ou pensamentos.

Entretanto para Benjamim Fisher:

A Helena de Poe é idealizada, e sua imagem de Psique, a de alguém

que inspira a produção artística, oferece múltiplas perspectivas. Nos

trabalhos criativos de Poe o protagonista é inevitavelmente

dependente de uma integração com a presença do sexo feminino, só

então ele pode alcançar seu potencial imaginativo pleno [...] A

trajetória emocional mencionada do locutor comenta da harmonia que

emana da beleza de Helena, a sua viagem no mares tempestuosos,

para seu descanso final em casa, onde a sua presença continua a nutrir

e inspirar ele. (FISHER, 2008, pp.41-42)

“Para Helena” (1831)

Helena, tua beleza é para mim

Como aquelas cascas de Nicéia de outrora

Que suavemente, sobre um mar perfumado

O andarilho cansado de maneira desgastado trazia

Para sua própria terra natal. 5

Dos mares desesperados o longo costume de andar,

O teu cabelo de jacinto, teu rosto clássico,

Teus ares de ninfa tem me trazido para casa

Para a glória que foi a Grécia,

E a grandiosidade que foi Roma. 10

Você que como uma janela brilhante,

Como estátua é como eu te vejo de pé,

A lâmpada de ágata nas tuas mãos,

Ah! Psique, das regiões

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Que são minha Terra Santa! 15

(Tradução minha)

De acordo com Harold Bloom, Helena de Tróia “foi uma figura que iria

assombrar paralelamente H. D. a vida e os poemas da autora influenciando ambas a sua

evolução como mulher e como poeta”. (BLOOM, 2002, p. 49). H. D. foi influenciada

pela versão simpática de Eurípides sobre Helena. Ela começa seu poema depois do fim

da guerra de Tróia continua a sua análise iniciada no poema “Helena no Egito”, a

imagem de Helena em sua viajem de escapatória pelo Egito de volta a Grécia com

Menelau.

Friedman comenta: ““Helena” toma como tópico a mulher que tem sido

considerada como símbolo mítico e literário de beleza e sexual e amor ilícito na cultura

ocidental. O poema de H. D. faz algo até então novo, de forma completamente

implícita ataca a imagem tradicional e implica como essas perspectivas silenciaram a

voz própria Helena.” (2002, p. 53).

“Helena” (1923)

Toda a Grécia odeia

Os olhos inertes ainda no rosto branco,

Com seu brilho verde

Onde ela parada está,

Com as mãos brancas. 5

Toda a Grécia insulta

O rosto pálido quando ela sorri,

E o odeia ainda mais profundo

Quando cresce pálido e branco o sorriso,

Lembrando os últimos encantamentos 10

E males passados.

Que a Grécia vê, impassível,

A filha de Deus, nascida do amor,

A beleza de seus pés frios

E os joelhos delgados, 15

Poderia amar realmente sua serva,

Só se ela fosse coberta,

Com a s cinzas brancas no meio de ciprestes fúnebres.

(Tradução minha)

H. D. (Hilda Doolittle) (1886-1961) começa citando o jeito como os gregos

vêem Helena, depois da Guerra de Tróia ter acabado com a vitória grega e destruição de

Tróia. Seu rosto agora é pálido e seu sorriso já não seduz mais, sua imagem branca e

inerte já não agrada e ainda é um lembrete de toda a tragédia vivida por sua causa e os

vários homens mortos em batalha para lhe salvar. Após a volta de Helena para a Grécia,

os gregos passaram a considerar como mais real o adultério de Helena com Paris,

príncipe de Tróia e ela foi julgada como uma mulher real e não como uma deusa como

no passado, seu poder sobre eles havia acabado.

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Virgílio no sexto livro da Eneida inclui uma passagem na qual gregos e troianos

estão prontos para apedrejar Helena até a morte, sendo esta salva por Menelau e ambos

escondendo-se em um templo. Embora Menelau queira matar Helena, ele não consegue

prosseguir com seu intento diante da visão de sua beleza e apenas quer protegê-la e

levá-la de volta pra casa em segurança em seu navio. Helena retorna então para a rotina

doméstica que as teóricas feministas supracitadas comentaram sobre. Ela só poderá ser

aceita novamente na sociedade se assumir seu papel de esposa e mãe dedicada para

fazer esquecer seu adultério.

No poema “Os gregos olham-na com ódio”, Bloom descreve-os como um grupo

unido e com ódio que acreditava na beleza dessa mulher como sendo motivo válido para

lutar numa guerra... [vendo-a] como um corpo, um ser maravilhoso pelo qual muitos

morreram.”

A brancura de seu rosto e de suas mãos é enfatizada bem como o brilho

presentes em ambos, como sinal não somente de luz, mas também como de grande

beleza e fama. De acordo com Bettany Hughes a brancura era um dos maiores atrativos

de Helena. Porém para Bloom a brancura e a inércia de Helena representavam sua

inocência e forma de demonstrar arrependimento, entretanto para a sociedade patriarcal

o silêncio das mulheres é apreciado e incentivado, haja vista, como comentaram Greer e

Figes que não era esperado ou mesmo permitido que as mulheres tivessem voz e

pensamentos próprios, pois para esta sociedade é mais valioso ter uma mulher

silenciada ou morta servindo como símbolo do que uma viva e falante, pois esta última

é mais difícil de ser controlada.

6.1 Comparando as três Helenas

Esta breve análise da apresentação de Helena de Tróia na obra de três poetas

reflete muitas das teorias feministas defendidas por Beauvoir, Greer, Figes e Millett.

Como homens e poetas tanto Marlowe quanto Poe, falam apenas sobre a beleza física de

Helena sem lhes importar seus pensamentos e sentimentos. Ela é considerada como

símbolo de beleza e sexual, como um ser duo, dividido entre o bem e o mal, é deusa e

ao mesmo tempo é prostituta, é mulher e demônio, pode tornar qualquer um imortal

com um beijo e fazer com que se seja condenado ao inferno.

Como aponta Hughes (2005) Marlowe ao escrever na Renascença Inglesa é

influenciado pelo pensamento da igreja e se sente dividido ao falar de Helena, ela é

símbolo clássico da beleza, mas é também ícone de pecado e danação. Mesmo Poe ao

falar sobre ela, a torna um ser idealizado de beleza e que é utilizado como musa

inspiradora para que o poeta atinja seu primor nas rimas, mas a musa não tem vez nem

voz.

H. D. é a única que mostra os sentimentos de Helena ao ser odiada pelos gregos

e quase morta por eles e como a sociedade tentou transformá-la em um símbolo de

mulher domesticada e passiva, não lhe possibilitando apresentar sua versão dos fatos e a

diminuindo por tentar sobrepor seus sentimentos e desejos. É interessante como nos três

poemas Helena permanece em silêncio.

7. Conclusão

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As críticas feministas estudadas neste trabalho dividem muitas opiniões. Simone

de Beauvoir, por exemplo, comentou como de forma tradicional a sociedade patriarcal

fez com que a mulher desejasse ter beleza e saúde e se encaixar nos estereótipos

impostos a elas. E que por esse motivo talvez haja tanta controvérsia a respeito de

Helena de Tróia por que ela não se comportou da forma submissa como era esperado

dela pela sociedade patriarcal.

Kate Millett comenta sobre o fato das mulheres serem consideradas como propriedade

masculina e eles tendo total controle sobre elas e ainda como sendo a causa do

sofrimento humano.

Eva Figes, assim como Beauvoir e Millett, aponta como a forma que alguém é

criado desde seu nascimento determina seus valores e ações por toda a vida. Bem como

o fato de que homens e mulheres são educados de forma diferentes a fim de cumprirem

os papeis já predefinidos como sendo deles. Talvez por isso Marlowe implique que a

culpa pela Guerra de Tróia seja de fato de Helena e não menciona a responsabilidade de

Paris.

Germaine Greer comenta sobre a importância dada ao corpo feminino e como

este é tratado com um objeto estético. Elas não tem voz e nem são respeitadas por quem

são realmente, além de serem consideradas como brinquedos sexuais dos homens. Por

isso Greer vê a mulher como um ser eunuco, alguém sem personalidade ou sexualidade

própria, com a única missão de satisfazer aos homens.

Christopher Marlowe mostra Helena de Tróia como símbolo de beleza e busca

possuí-la não apenas por isso, mas por ela ser o maior ícone de beleza e se ele a possuir

será dono de um objeto precioso, assim como o conhecimento que ele buscava em sua

trajetória. Edgar Allan Poe de forma mais romântica e idealizada mostra como a beleza

de Helena influencia sua escrita e o torna mais exímio em sua arte, fazendo com que o

melhor dele apareça.

Apenas H. D. (Hilda Doolittle) mostra como Helena se sente após o fim da

Guerra de Tróia, com medo, velha, sem beleza e desprezada por aqueles que antes a

idolatravam e agora a culpam pela tragédia vivida por eles. Ninguém a considera como

vítima da sua própria beleza, de Teseu e Paris e pela sociedade patriarcal que tentou

dominá-la e silenciá-la, assim como fazia com todas as mulheres.

Mesmo a despeito da imagem de mulher bonita e promiscua que ainda muitos

autores masculinos insistem em propagar sobre Helena de Tróia, Bettany Hughes

(2005) aponta como Helena fora na antiguidade protetora, patrona, rainha, esposa, mãe

e modelo e adorada como deusa e heroína que conseguiu comandar as vidas de muitos

homens e servir de exemplo para muitas mulheres.

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P á g i n a | 797

MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES DE DISCUSSÕES LITERÁRIAS NO

FACEBOOK

Adriana Sales ZARDINI (CEFET-MG)

Lília dos Anjos AFONSO (UFPB)

Resumo: As possibilidades que a internet oferece para a literatura são muitas, tais

como: livros digitais gratuitos, sites e blogs especializados, listas de discussão e até

mesmo sites as redes sociais estão usadas com a finalidade de discutir literatura. Porém,

o campo que vem ganhando maior destaque é o uso do Facebook para divulgação de

livros, promoções e, principalmente resenhas e discussões literárias, que passa a ser

virtual e tem conquistado um número cada vez maior de adeptos.O objetivo deste

trabalho é apresentar um relato de experiência de um grupo de discussão da JASBRA,

além de expor algumas observações a respeito do comportamento dos membros deste

grupo. Além disso, faremos um levantamento das potencialidades de uso desta

ferramenta, inclusive no campo pedagógico.

Palavras chaves: Jane Austen, Facebook, Grupo de Discussão Literária.

1. Introdução

Atualmente vivemos uma espécie de ‘boom’ tecnológico e constante inovação

de constante inovação das tecnologias digitais e mídias diferentes de informação e

comunicação. O uso da tecnologia nos mais diferentes espaços favoreceu a

comunicação entre as pessoas do mundo inteiro, aumentando, assim, a possibilidade de

conexão entre elas, favorecendo as transações comerciais, as pesquisas, visualização de

vídeos dos mais diferentes gêneros, jornais, artigos e revistas em línguas variadas, além

de democratizar o acesso ao conhecimento.

Cada vez um número mais de usuários participa de alguma rede social, para

interação, socialização, publicação de imagens, vídeos, artigos. De acordo com a

Wikipédia, as redes sociais ou sites de relacionamento são estruturas sociais compostas

por pessoas ou organizações, conectadas por um ou vários tipos de relações e que

partilham valores e objetivos em comum. São exemplos de redes sociais: o orkut, o

facebook e o myspace. Já as mídias sociais são definidas como o uso do meio eletrônico

para interação entre pessoas através de sistemas digitais que combinam textos, imagens,

sons e vídeo, para criar uma interação social de compartilhamento de experiências

(Dubner, 2010). Estas ferramentas incluem blogs, fóruns, podcasts, microblogs, redes

sociais, wikis, entre tantas outras que são criadas a cada dia. De acordo com Warschauer

e Ware (2008), as novas mídias estão ganhando importância social, trazendo inúmeras

oportunidades de comunicação e expressão para todos. Já em 2008, segundo o relatório

da Nielsen Online, “80% dos internautas brasileiros visitou redes de relacionamento e

blogs ao longo daquele ano” (Pavarin, 2009). Ainda segundo o autor, os brasileiros

gastam cerca de 23% do tempo online em orkut, blogs e sites semelhantes. Com o

crescimento de novas redes e mídias sociais, estes espaços estão sendo utilizados para:

marketing, educação, cultura e comércio eletrônico. O principal objetivo da Web 2.0 é

partilhar e colaborar.

Obviamente tais recursos são utilização na área da educação há alguns

anos, inclusive aqui no Brasil. Muitas pesquisas acadêmicas apontam a utilização de

P á g i n a | 798

recursos computacionais e redes sociais como formas de favorecer o ensino e a

aprendizagem:

- a utilização de e-mails e chats no ensino e aprendizagem (Zardini e Costa,

2009), (Carvalho, 2009), (Silva, 2009), (Oliveira, 2005), (Souza, 2000);

- a utilização de blogs em contextos escolares (Zardini e Costa, 2007), (Silva,

2007);

- e o uso das redes sociais na educação, como: orkut (Bezerra, 2010; Penteado,

2009; Neto, 2007) e Live Mocha (Pereira e Araújo, 2010).

Com as comunidades virtuais a “interação humana se complexificou” o que

culminou “na criação de comunidades virtuais, constituídas pela linguagem

multimodal, sendo que “a tendência dos usuários de Internet é migrar para o Facebook

que passa a ser entendido com oum estado atrator da comunicação na internet” ”

(Paiva, 2013).

2. Dos Salões Franceses às Comunidades Virtuais

Se voltarmos no tempo, lá no século XIX, é possível perceber que a leitura de

livros sempre existiu, e já naquela época as pessoas tinham o costume de fazerem a

leitura em grupos, ou seja, já que nem todos eram letrados, um membro da família ou da

comunidade fazia a leitura em voz alta e os demais apenas escutavam, posteriormente

poderia haver uma discussão do livro. A ideia de círculo literário já existia, porém, não

era formalizada. Segundo Almeida (2008, p. 38), “os primeiros pontos de encontros

literários surgiram na França no início do século XVI”. A burguesia e os intelectuais

da época se reuniam em cafés, restaurantes e em salões literários, sendo que um dos

mais conhecidos era o ‘bureau d’esprit’ de Louise Labé (Almeida, 2008). No Brasil, a

partir do século XIX é que surgem os salões literários. Ainda de acordo com a autora

(2008, p. 39), “até este momento, os principais pontos de encontro dos literatos

brasileiros eram os cafés, e algumas confeitarias e livrarias”. Broca (apud Almeida,

2008) destaca que no período áureo dos cafés literários, os principais representantes

eram o Café do Rio, o Java, o Café Paris, quanto às confeitarias, as mais prestigiadas

eram a Confeitaria Colombo e a Confeitaria Pascoal. A transição dos encontros

presenciais para os encontros virtuais se dá a partir da última década do século XX, já

que:

“os encontros tête-à-tête, a exemplo dos salões franceses do século

XVI ou do Brasil do século XIX, já não são mais sinônimo de

ambiente literário; e, ainda, que as discussões antes mantidas de forma

contundente por escritores e apreciadores de uma boa leitura se

transportam hoje para as comunidades virtuais, para as salas de bate-

papo ou para os sítios de discussão”. (Almeida, 2008, p. 77)

3. O Facebook e a Discussão Literária

Também é possível perceber, no campo da literatura, como os avanços

tecnológicos favoreceram e continuam favorecendo esta área. Há alguns anos, só era

P á g i n a | 799

possível encontrar alguns textos/livros online (literatura digitalizada) e perfis de

escritores. Entretanto, com a popularidade das mídias sociais, hoje é possível encontrar

uma infinidade de recursos como: livros digitais gratuitos, sites e blogs especializados

em literatura, listas de discussão, fóruns de discussão e até os sites de relacionamentos

são usados com a finalidade de se discutir literatura. A leitura de textos é beneficiada

pelo desenvolvimento da tecnologia e também pela utilização e discussão por parte dos

usuários da internet segundo os autores Lin (1997), Potter (1999) e McGrath (2009).

Além disso, os círculos de discussão literária online apresentam inúmeras vantagens

como a questão de espaço e tempo, além de beneficiar pessoas que não podem se

locomover ou participar de discussões em escolas ou círculos literários, como relata

Cavanaugh (2006).

Hoje em dia, apenas com uma simples busca no Facebook ou Google é possível

encontrar o grupo de discussão daquele seu livro favorito ou do livro que é sucesso de

vendas. Com a facilidade de utilização das redes sociais, o usuários ampliam, cada vez

mais, a discussão de temas, incluindo nestes a discussão literária. Os participantes se

interessam, à princípio, pelo livro em questão, mas posteriormente se envolvem em

debates interessanets e frutíferos e acabam ampliando a visualização da obra para algo

além da leitura superficial.

Muitos dos grupos que acompanhamos no Facebook, tiveram início a partir da

participação de blogs dedicados a livros e afins. Enquanto há alguns anos, a participação

era centrada exclusivamente através dos comentários nas postagens do blog, hoje em dia

os leitores costumam ler as publicações e levarem os temas ou links para os grupos que

participam no Facebook.

Existem sites específicos para inclusão de obras já lidas ou aquelas que leitor

tem interesse de ler, como o caso do Skoob, O Livreiro, Goodreads, entre outros.

Porém, o campo que já é bastante explorado é o uso de blogs para divulgação de livros,

promoções e, principalmente resenhas e discussões literárias. Há espaço e pessoas

interessadas em todo tipo de gênero literário. Podemos citar como exemplo os blogs de

Valéria Fernandes (Shoujo Café1) , especializado em mangás; o blog de Rosangela

Neres (Descortinada palavra2), que discute uma literatura bastante diversificada; o site

de um grupo de leitoras e escritoras de fanfics (Orgulho e Preconceito Fanfics3); e o site

de Karla Arruda (Coffie and Movies4), especializado em literatura chicklit e o Romances

in Pink5, que explora todo o universo da literatura erótica e de banca

6. Esses sites e

blogs possuem milhares de seguidores e é possível perceber a enorme quantidade de

pessoas que acompanham as resenhas, lêem os livros e posteriormente participam de

clubes de leitura virtuais ou presenciais.

A grande maioria dos leitores do blogs, já migraram para o Facebook e

desenrolam suas discussões nesta rede social, fazendo com que o blog sirva de

referência e toda a ‘discussão’ seja direcionada para os grupos de discussão criados para

esta finalidade.

1 http://shoujo-cafe.blogspot.com/

2 http://rosangelaneres.com/

3 ttp://www.janeaustenfanfics.com.br

4 http://www.coffieandmovies.com.br/

5 http://www.romancesinpink.com.br/

6 Romances vendidos inicialmente em bancas de jornais, só que atualmente são vendidos também em

livrarias.

P á g i n a | 800

Além dos blogs e sites, ainda é necessário citar os fóruns de discussão, que

apesar do fenômeno Facebook, ainda encontra adeptos em toda parte do globo. O fórum

é um meio de interação em cursos universitários e discussões virtuais. Segundo

Marcuschi (2005), o fórum de discussão é considerado também um dos gêneros

discursos emergentes, pois sugiram com o desenvolvimento da internet e das

tecnologias da comunicação. Quando se refere à discussão literária, Cavanaugh (2006)

afirma que geralmente os fóruns são chamados de: grupos de discussão literária, círculo

de literatura, clube do livro, estudos literários e grupos de discussão literária.

Independente de nomenclaturas, umas das características desses ambientes de discussão

online é a função de:

“constituir-se espaço para a discussão de um tema...”, “...além de

oferecer condições para a construção de um ambiente colaborativo,

em que o conhecimento é construído coletivamente por diferentes

interlocutores e compartilhado para a construção ou a reconfiguração

de conceitos”. (Silva, 2009b).

Entretanto, os fóruns também estão deixando de ser uma opção para os leitores

que sejam discutir as obras literários e acabam cedendo lugar ao Facebook. O que

diferencia o Fóruns do Facebook é que nos fóruns existe um organização de tópicos e

discussão que não é possível no Facebook. Entretanto, mesmo em meio ao que se

parece caótico, como uma série de publicações de membros dos grupos no Facebook e

‘conversas’ que, na maioria das vezes, estrapalo o tema proposta.

De um modo geral, as comunidades de discussão literária no Facebook, seguem

mais ou menos os padrões de discussão proposta nos fóruns. A principal característica

das duas redes sociais é favorecerem uma ‘conversa’ onde os participantes não estão

conectados em tempo real, facilitando o diálogo através de uma discussão assíncrona. A

finalidade primordial é o debate mediado entre grupos, em um espaço virtual onde os

mediadores ou administradores disponibilizam perguntas sobre assuntos variados ou

pré-determinados, gerando a discussão e o questionamento que ‘alimenta’ o diálogo

permanente. Quanto à modalidade, os fóruns e grupos no facebook podem ser divididos

entre: 1) públicos ou privados (neste caso, é necessário receber um convite ou solicitar a

aprovação no fórum); 2) mediados ou não-mediados (onde a criação e publicação de

mensagens é livre); e 3) temáticos ou livres (nos fóruns temáticos, faz-se a escolha por

um assunto específico, enquanto nos fóruns livres, discute-se de tudo um pouco).

A internet está repleta de ambientes que propiciam a discussão literária como

sugeridos por Wolsey (2004), Porter (1999), Almeida (2008), McGrath (2009), Nunes e

Moura (2009). Porém, em muitos casos, percebe-se também que existe a necessidade e

o interesse em se discutir literatura mesmo fora dos ambientes ditos como educativos,

como as redes sociais (Fóruns, Facebook, etc.) e os fóruns de discussão criados fora do

ambiente escolar como.

O que motiva os usuários a participarem de determinados grupos no Facebook

são:

- Afinidade com a temática.

- Para receberem notícias sobre o escritor ou escritores.

- A possibilidade de interação e possível aprofundamento da leitura.

P á g i n a | 801

- Conversar com amigos e conhecer pessoas novas, etc.

Se comparadas com às discussões em sala de aula ou em um grupo presencial de

discussão literária, onde os participantes devem se expressar em tempo real, as redes

sociais proporcionam diversos benefícios, pois a participação assíncrona favorece,

segundo Leite (2008):

- A reflexão e a pesquisa antes da postar a mensagem.

- A organização do conteúdo e da forma do texto a ser postado.

- Permite o aprofundamento de ideias e conceitos.

- Facilita a prática consciente de diferentes funções cognitivas como: observar,

identificar, relacionar, comparar, analisar, inferir, sintetizar, divergir,

discordar, generalizar, etc.

- Possibilita o registro de construção colaborativa do conhecimento.

- Possibilita a mediação mais direcionada por parte do moderador/administrador.

Enquanto as redes sociais são utilizadas de maneira intensiva por usuários do

mundo inteiro, no campo da educação as possibilidades pedagógicas ainda não são

valorizadas ou conhecidas. Embora não seja uma plataforma usada pelos professores

para promover ambientes de conhecimento, os alunos passam boa parte do tempo

usando o Facebook e outras redes sociais. Neste caso, o fato de os alunos e boa parte

dos professores conhecerem uma rede social, como é o caso do Facebook, já é um

diferencial, visto que não seria necessário tutorias de utilização. Além disso, as redes

sociais propiciam múltiplas possibilidades de publicação: texto, imagens, vídeos, links,

enquetes, promover encontros, entre outros. A publicação de diferentes tipos de mídia e

gêneros digitais é facilitada porque os usuários não precisam ter conhecimentos de

programação ou edição, por exemplo. Além disso, a centralização de temas, autores e

livros, é o que mais atrai os usuários das redes sociais.

Ao ser usada tanto na educação quanto para finalidades de entreterimento, as

redes sociais como o Facebook agregam características como:

- A possibilidade de expansão do assunto abordado através da indicação de

outros livros, outros autores, e até mesmo criação de outros grupos de interesses em

comum (menos formais)

- Muitas vezes é necessário um cronograma de participação, visto que é

relativamente fácil se ‘perder’ em meio a tantas postagens e cometários. Porém, a

imprevisibilidade do sistema, também é um atrator, visto que muitos usuários preferem

apenas ler notícias, curtir publicações, sem, entretanto, participarem de discussões mais

aprofundadas.

- Os usuários, em sua grande maioria, trabalham colaborativamente. Como

sabem que determinados assuntos são de interesse do grupo, acabam trazendo notícias

de assuntos referentes ao tema do grupo.

- Proporciona engajamento e diversão com a literatura.

- Colabora para desenvolver as habilidades de entender e intepretar textos

liteários e as postagens dos colegas.

P á g i n a | 802

- Discussões proporcionam um ambiente favorável a compreensão mútua e

tolerância em relação às opiniões dos outros colegas.

Se usados por professores e alunos, o Facebook e demais redes sociais,

contribuem para ampliar a discussão também fora da sala de aula, proporcionando

novas amizades, novos grupos de interesse comum e produção colaborativa do

conhecimento. Além disso, os alunos sentem-se motivados a participar e é possível dar

voz aos alunos mais tímidos e que não se sentem parte do grupo. Com relação às novas

práticas de sala de aula, o uso das redes sociais desenvolve novas habilidades, novos

letramentos; dá a oportunidade dos alunos pensarem melhor e refletirem antes de

responderem; favorece um melhor aprendizagem, já que os alunos lêem as respostas dos

outros e podem aprender com ‘o outro’. Aprendizagem é centrada no que o grupo

produz, e o professor não é detentor do conhecimento, é um facilitador.

Entretanto, em um estudo anterior Zardini e Afonso (2010) aponta alguns

desvantagens do uso de fóruns de discussão que podem ser aplicados ao grupos de

discussão no Facebook. Os participantes, muitas vezes relatam falta de tempo para

participarem das discussões. Em algumas casos, eles desconhecem as regras do grupo e

funcionalidades do Facebook. São leitores passivos das discussões e, em alguns casos,

não se sentem pertecentes àquele grupo, pois acreditam que não têm nada a contribuir.

Alguns usuários apontam problemas técnicos, como a dificuldade de localizar os

tópicos de discussão. Isso é bem mais evidente nos grupos do Facebook, onde os

membros podem publicar com liberdade, os mais diversos assuntos, gerando um certo

caos na ordem e frequência de publicações do grupo.

4. Os participantes

Como o objetivo deste trabalho é apresentar um relato de experiência a respeito

da utilização de grupos no Facebook para discussão literária, optamos por fazer um

levantamento com os membros que se voluntariaram a responder nossas perguntas. O

grupo em questão é o Grupo Jane Austen Brasil, pertecente à JASBRA (Jane Austen

Sociedade do Brasil). Em nosso relato, apresentaremos as opiniões das blogueiras e

apresentaremos um do perfil dos membros, a frequência de acesso dos usuários, entre

outros aspectos quantitativos. Em seguida, faremos um levantamento a respeito das

opiniões dos usuários, as razões que levam as pessoas a discutirem literatura na

internet e tentar entender por quais motivos algumas desistem no meio das discussões

enquanto outras participam assiduamente.

Para se obter a opinião dos membros do grupo da JASBRA, foi feito um convite

e após o aceite, foi possível fazer um levantamento de dados e opiniões baseados nas

respostas obtidas. Procuramos destacar a opinião e a experiência de pessoas que estão

envolvidas diariamente com grupos de leitura, logo, que observam a evolução das

formas de leitura que tem sido praticadas atualmente.

O grupo é bastante eclético, sendo que a maior parte dos membros são do sexo

feminino, pertencente às mais diversas classes sociais e profissões. Há muitas pessoas

interessadas em discussões em questões mais aprofundadas e até mesmo técnicas,

relacionadas à literatura. Também há um grupo mais interessado nas adaptações

cinematográficas. O grupo mesmo sendo centrado em Jane Austen e sua obra, acaba

P á g i n a | 803

oferecendo um leque de discussões variadas, com temáticas que vão desde como usar

um leque, o preparo de chás, como se portar se você fosse um personagem de Austen,

além de discussões mais acalarados sobre gêneros .

A respeito dos benefícios da utlização de um grupo de discussão no Facebook,

alguns membros destacaram a importância desta rede social oferecer, com facilidade, a

divulgação de links, fotos, vídeos, criação de enquetes, entre outros. Além disso,

destacaram que as editoras saíram do espaço das livrarias e se instalaram virtualmente a

partir do contato direto com o seu cliente mais importante: o leitor, sendo possível

sorteios realizados por diversas mídias sociais, colocam diversas publicações, de temas

variados e atingindo públicos diversos, em pauta, o que faz com que a leitura ganhe

espaço na vida das pessoas de uma maneira diferente, através do contato virtual.

Apesar de ser um grupo grande, com mais de mil e quinhentos membros, são

poucos os participantes que assiduidade tanto de observação do espaço quanto de

respostas aos temas que são propostos. Porém, a maioria das pessoas acessam a página

do grupo porque gosta da leitura ali exposta, mas nem sempre deixam comentários que

permitam formar uma opinião coletiva a respeito de variados assuntos. Alguns

membros, apontam o uso excessivo do Facebook para outras finalidades – como jogos –

como um dos principais fatores da ‘ausência’ de participação em algumas publicações.

Sendo que a maioria esmagadora se detém apenas clicar na tecla ‘curtir’ do Facebook.

Em relação ao grupo da JASBRA, as discussões começam a partir dos livros,

em seguida são feitas comparações entre o livro e as adaptações para o cinema e a TV.

Não há um cronograma fixo a ser seguido, porém, a maior parte das publicações do

grupo estão relacionadas aos posts publicados no blog da JASBRA7. O grupo possui

moderadores, entretanto os membros podem publicar qualquer link, imagem ou vídeo

que desejarem, desde que seja relacionado à temática do grupo. Mesmo sendo um grupo

voltado para a discussão dos livros de Jane Austen, eventualmente há discussões sobre

livros e filmes afins, além de divulgação de links de sites e blogs contendo notícias

sobre a escritora.

Um dos aspectos negativos que podemos mencionar é a falta de organização

lógica dos tópicos de discussão. Como no Facebook os tópicos que ficam em evidência

são necessariamente aqueles que possuem maior númeor de comentários ou ‘curtidas’,

algumas publicações ficam relegadas à segundo plano, o que divulga a leitura por parte

dos membros que não possuem tempo o suficiente para entrar na Internet e acessar

tantas publicações. Além disso, há a falta de tempo, a dificuldade de se concentrar nas

discussões do grupo, com tantos aplicativos e ‘distrações’ que o Facebook oferece.

5. Considerações finais

O Facebook oferece muitos recursos que possibilitam uma discussão mais

completa de obras literárias visto que agrega botões de publicação de links, imagens,

vídeos, criação de enquetes, votação e atualização constante dos comentários. Os grupos

que temos observado crescer a cada dia no Facebook, geralmente começam com uma

temática específica e com o passar do tempo acabam variando temas, acrescentando

elementos não relacionados ao tema e em alguns casos, favorecem a criação de novos

grupos, com objetivos e interesses mais específicos.

7 http//:www.janeaustenbrasil.com.br

P á g i n a | 804

Com a utilização cada vez mais frequente do Facebook, esta rede social, tem

grandes potencialidades para a discussão literária, pois facilita a divulgação das obras,

possibilita um crescimento de pessoas interessadas e possíveis leitores, com perfis

diferenciados e pertecentes a diferentes regiões geográficas. Mesmo sendo um espaço

democrática, o uso do Facebook para discussão literária ainda pode ser considerado um

espaço privilegiado quando se trata de literatura e discussão de livros. Os principais

motivos para o aumento dos números de leitores se deve ao fato de que o poder de

compra cresceu e assim as pessoas podem comprar mais livros, além da propaganda

massiva em meios de comunicação e mídias digitais. Entretanto, a discussão literária

ainda é vista como algo acadêmico ou pertecente à um grupo elitizado, que detém

conhecimento específico sobre determinado autor ou obra.

A alegação de falta de tempo e consequente falta de comentários deve-se à

inúmeros fatores, porém, destacamos a crescente ‘mania’ dos usuários das redes sociais

se contentarem apenas à ‘curtir’ um tema de discussão, uma foto, um vídeo ou link para

uma postagem com um texto ainda maior. A impressão que se tem é que há muita coisa

importante publicada sobre literatura, mas aqueles que realmente se envolvem em

discussões aprofundadas são relativamente poucos.

Em relação ao grupo de discussão da JASBRA, foi possível observar que este

espaço tem gerado boas discussões e interesse dos participantes. Enquanto muitos

participantes leem e respondem as mensagens dos outros, alguns participantes se

limitam apenas a ler o que os outros escrevem. Além das características citadas

anteriormente, acrescentandos também a característica da afetividade entre os

participantes, pois muitos utilizam o fórum como uma forma de estarem juntos

(virtuamente) e acreditam que estão fortalecendo os laços de amizades nascidas no meio

digital.

É importante destacar também que os participantes devem reavaliar seus

conceitos a respeito da formalidade e informalidade de discussão literária, já que nos

últimos anos, as novas tecnologias têm contribuido muito para que as pessoas sejam

autores de sua própria aprendizagem.

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A LINGUAGEM POÉTICA E UMA ANÁLISE SIMBÓLICA DENTRO

DA POESIA DE EDWARD ESTLIN CUMMINGS

Aline Souza MELCHIADES (UFPB)8

Geovanna Dayse Bezerra SILVA (UFPB)9

Resumo: Neste trabalho, é desenvolvida uma proposta de análise revestida de

elementos simbólicos, a respeito do poema “somewhere i have never travelled, gladly

beyond” cuja autoria é do poeta, Edward Estlin Cummings (1894-1962), popularmente

conhecido pela assinatura com grafia em caixa baixa - e.e. cummings. O objetivo do

trabalho é demonstrar o quão atual, sonora, imagética, significativa e valorada tende a

ser a poesia, tomando-se em consideração que o poema foi musicado pelo intérprete

Zeca Baleiro – grande nome da música popular brasileira que faz uso da tradução de

Augusto de Campos. Desse modo, torna-se evidenciada a força e valor da poesia

perante a sociedade, muito embora grande parte dos indivíduos inseridos nesta

desconheça o ano, o contexto ou o autor da elaboração da obra. A linguagem poética,

por conseguinte, vem a ser realçada e particularizada a partir da fundamentação de

embasamentos teóricos como, por exemplo, o de CARMO (2011) que aponta a

definição da poesia como sendo uma forma especial de manifestação da linguagem

verbal, visto que sua maneira de comunicar seria permeada de especificidades,

implicando regras específicas. Acrescentem-se também os dizeres de PAZ (1982)

referidos à questão do reflexo da linguagem social e da fala na poesia, afirmando que

essas duas estão concentradas no poema, articulando-se e levantando-se, o que provoca

a figuração do poema numa linguagem erguida. Portanto, haverá um desenraizamento

das palavras, afinal o poeta arranca destas o sentido meramente informativo para que

elas possam ressurgir ricas de significação, incentivando até novas recriações, à medida

que o leitor, em seu momento, recita, recria-o ou canta, abrindo espaço para o campo

das imagens, que conforme CHKLOVSKI (1970) particulariza o objeto proveniente da

visão do eu-lírico.

Palavras-chave: Linguagem poética. Análise simbólica. Imagens. Particularização.

1. Introdução

A poesia é uma fonte de intensa eloquência e traz consigo uma linguagem capaz

de portar plurissignificação, levando-se em consideração que o texto poético é um meio

que possibilita visível transmissão de expressividade. Diante disso, neste trabalho, o

estudo da linguagem poética ganhará destaque.

Para tanto, adotando-se como corpus para a interpretação poética a tradução de

Augusto de Campos do poema “somewhere i have never travelled, gladly beyond” cuja

autoria, na língua inglesa, é do poeta Edward Estlin Cummings (1894-1962), é possível

demonstrar o quão atual, sonora, imagética, significativa e valorada tende a ser a poesia.

8 Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português, da Universidade Federal da Paraíba.

Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNjPÊ). E-mail: [email protected]. 9 Graduanda do curso de Licenciatura em Letras – Português, da Universidade Federal da Paraíba.

E-mail: [email protected].

P á g i n a | 808

“Nalgum que eu nunca estive alegremente além” é a tradução que foi

transformada em canção pelo intérprete Zeca Baleiro, grande nome da música popular

brasileira, fato que reforça a ideia de que a sociedade, nesse caso em questão, através

dos ouvintes da MPB, contribui para que a poesia seja ainda bastante cultivada e ativa

no meio social (mesmo que desconhecidos: o ano, o contexto ou o autor da elaboração

da obra).

Entendida a importância da canção, são também destacadas as visões

consagradas por alguns dos expoentes que representaram a Teoria do método formal,

isto é, os formalistas russos, a fim de teorizar o conteúdo abordado. Em seguida,

também é realçada a possibilidade da relação entre a poesia e a tradução, que se

desenvolve por meio da transcrição criativa, bem como a abordagem da linguagem

poética, em que são levantados aspectos como: o ritmo; a imagem; a disposição das

palavras nos versos; etc. Por fim, é feita uma análise simbólica baseada no “Dicionário

de Símbolos” (CHEVALIER, 2009), voltada para a percepção e interpretação da

simbologia alcançada através das imagens transmitidas pelo eu-lírico, o que colabora

para a percepção das teorias versadas ao texto, no momento em que é feita a análise,

facilitando, por conseguinte, o entendimento sobre a comunicação poética.

2. Da poesia de Edward Estlin Cummings à tradução de Augusto de Campos

Assim, usando grafia em caixa baixa – e.e. cummings -, o poeta, pintor, ensaísta

e dramaturgo americano preferia ser conhecido. Enxergado como sendo um poeta

dotado de grande originalidade, trouxe à poesia um estilo de escrita deveras diferente da

estética tradicionalista.

Em sua arte poética, cummings consegue fugir de padrões, revelando uma

liberdade maior de escrita, passível de algumas características como: o desprendimento

às regras gramaticais; a não obediência a imposições relativas ao uso de letras

minúsculas ou maiúsculas; o abandono aos versos tradicionais; a pontuação feita de

forma abrupta e errada; a transformação da sintaxe, de maneira que consegue

influenciar até mesmo a parte sonora da poesia, fato que, certamente, permitiu que o

poema se tornasse próximo da música, visto que há uma preocupação com as rimas,

assonâncias, paronomásias, aliterações, entre outros fatores permissivos ao realce do

aspecto da musicalidade, bem como o ritmo.

Em sua poesia, cummings para trazer tantas inovações, obviamente, não era

leigo do conhecimento da linguagem poética, afinal, conforme assinala Paz:

o poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma imagem suscita

outra. Assim, a função predominante do ritmo distingue o poema de

todas as outras formas literárias. O poema é um conjunto de frases,

uma ordem verbal, fundados no ritmo. (1982, p. 68)

Logo, tomando-se como exemplo a questão da disposição da sintaxe, feita

voluntariamente por cummings com a finalidade de alterá-la, desprendendo-a das regras

padronizadas, e, consequentemente, interferindo nos aspectos rítmicos, só comprova

que o poeta tinha domínio dos recursos da linguagem poética, muito embora, pudesse

P á g i n a | 809

ser visto como alguém que escrevia fora do padrão culto, nada mais passava de um

procedimento estilístico adotado intencionalmente por parte do autor.

Ressaltados são a sintaxe e o ritmo, desde a embrionária percepção de

formalistas, como no caso de O´Brik (1920) apud Eikhenbaum (1970, p. 24), quando ele

atenta para o fato de que no verso existem construções sintáticas indissoluvelmente

ligadas ao ritmo. Assim, o método formal já começa através de alguns de seus adeptos a

servir como embrião de reflexão no que diz respeito ao cuidado com a composição da

estrutura da linguagem poética. Isso contribuiu muito para a evolução dos estudos até a

atualidade, embora alguns conceitos formais tenham sido dissolvidos ou pelo menos

contestados nos dias de hoje.

Pode ser trazida à baila, a seguinte problemática que se funda na situação de que

o formalista russo Jakobson (1919) apud Compagnom (2003, p. 40-4) grosseiramente

tentou diferenciar a linguagem do cotidiano da linguagem da Literatura, por meio da

justificativa de que haveria uma determinada propriedade distintiva, chamada de

literariedade, capaz de separar a linguagem literária daquela utilizada normalmente no

cotidiano. Tal propriedade causaria uma desfamiliarização, pois a linguagem utilizada

para a obra literária seria apresentada de maneira que desarranjaria as formas habituais

da linguagem, visto que haveria maior sensibilidade linguística por parte dos leitores.

Entretanto, podemos ressaltar que a concepção acima mencionada, é falha, pois

não abrangeria toda a poesia; e, certamente a poesia do inovador e.e. cummings, devido

ao fato deste possuir um estilo mais moderno, não se encaixaria a esse preceito tão

restrito imposto por essa visão do renomado formalista.

Ao encontro desse posicionamento que divergente ao do citado teórico, como

sustentação a ser dada, seria possível trazer os dizeres de Paz (1982), quando ele afirma

que a linguagem poética é um reflexo da linguagem social e da fala, pois essas duas

estão concentradas no poema, articulando-se e levantando-se, o que provoca a figuração

do poema numa linguagem erguida. Portanto, haverá um desenraizamento das palavras,

afinal o poeta arranca destas o sentido meramente informativo para que elas possam

ressurgir ricas de significação.

E a respeito de tal significação, já enuncia Pound apud Carmo (2006, p. 32):

“literatura é linguagem carregada de significado”, desse modo, ele rememora a

importância da linguagem para a comunicação, e não deixa esquecidas características

sempre presentes na poesia, como, por exemplo, a polissemia – que propicia a

existência de ambiguidades –; a condensação de ideias fazendo uso de recursos (figuras

de linguagem que justificam a sonoridade, dando sentido às palavras e ao poema de uma

forma geral).

É importante adicionar a essas características mencionadas, a existência da

forma no poema. Ao seu respeito é dito que ela está fortemente entrelaçada com o

conteúdo, por isso que se deve preservá-la. Isso pode ser percebido no caso do corpus

adotado, a referida tradução do poema, conhecida por “nalgum lugar que eu nunca

estive alegremente além”, que preserva a forma do poema original escrito por e.e.

cummings, pois do contrário estaria sendo feita uma alteração brusca capaz de significar

uma mudança grosseira na comunicação poética, pois transformaria sua linguagem,

visto que a forma se relaciona com o conteúdo. Nesse sentido, “Ao traduzir poesia é

necessário traduzir o perfil sensível da mensagem, a forma (querendo-se entender por

esta palavra a correlação essencial de significante e significado que constitui o signo)”

(CAMPOS, 1977, p. 142)

P á g i n a | 810

Assim, ele está revelando a importância de resgatar a forma e também de

considerar a sensibilidade da mensagem. A forma, entretanto, transcenderá a semântica,

pois naquela será encontrada a informação estética que fará jus até mesmo para

identificar a relação entre a palavra e a estrutura do poema.

Então, em reforço desse pensamento é que Campos (op. cit.) admite a

possibilidade de existir tradução na poesia por meio da transcrição criativa, que

demandaria um processo de recriação, revestindo-se de forma crítica. Pois, feito isso,

haverá de todo modo um cuidado com a preservação da essência da obra original.

3. Análise simbólica

Conforme foi visto, a tradução é possível através da transcrição criativa. Visto

que o corpus adotado traduz uma língua estrangeira, de acordo com Jakobson (1985), o

caso em questão seria classificado como tradução interlingual ou propriamente dita.

Então, por meio dessa tradução é feita uma interpretação dos signos verbais da

língua inglesa. Ademais, analisando o poema em português, percebe-se que ele abarca

os caracteres oriundos de um lirismo bucólico com alusão a elementos da natureza.

Ocorre também o emprego de imagens que, de maneira enriquecedora, tendem a

particularizar as ações ou qualidades da pessoa amada, por exemplo, pelo eu-lírico, por

meio de metáforas, ou outras figuras de linguagem.

Seguem abaixo, respectivamente, o poema original e a tradução, está última

servindo corpus para a análise simbólica:

Versão original - e.e. cummings

somewhere i have never travelled, gladly beyond

any experience, your eyes have their silence:

in your most frail gesture are things which enclose me,

or which i cannot touch because they are too near

your slightest look will easily unclose me

though i have closed myself as fingers,

you open always petal by petal myself as Spring opens

(touching skilfully, mysteriously) her first rose

or if your wish be to close me, i and

my life will shut very beautifully ,suddenly,

as when the heart of this flower imagines

the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals

the power of your intense fragility: whose texture

compels me with the color of its countries,

rendering death and forever with each breathing

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(i do not know what it is about you that closes

and opens; only something in me understands

the voice of your eyes is deeper than all roses)

nobody, not even the rain, has such small hands

Tradução – Augusto de Campos

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além

de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:

no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,

ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra

embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar

me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre

(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e

minha vida nos fecharemos belamente, de repente,

assim como o coração desta flor imagina

a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala

o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura

compele-me com a cor de seus continentes,

restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha

e abre; só uma parte de mim compreende que a

voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)

ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

(e.e.cummings. Nalgum lugar. Tradução de Augusto de

Campos. In Líricas, Zeca Baleiro)

A análise do poema é feita através da seguinte proposta: tomemos, como base, a

exaltação de dois elementos muito presentes nos poemas de e.e. cummings: a natureza

e o amor. Considere-se também o fato de que o eu-lírico se reveste na figura de uma flor

que está sendo admirada pela pessoa amada e que foi retirada do canteiro, no qual

anteriormente vivia, para ser levada junto dessa pessoa descrita pelo eu-lírico como

sendo alguém de notória delicadeza e fragilidade que o magnetizam e o deixam

apaixonado.

Na primeira estrofe, acontece a aproximação da pessoa idealizada pelo eu-lírico

ao local (canteiro de rosas) onde ele se encontra, e logo é perceptível a paixão nascendo

a partir do olhar – inicialmente silente – de tal pessoa. Há um paradoxo: ele está tão

próximo, mas não toca a pessoa amada, pois é possível que ele seja alguém retraído,

devido a sua personalidade recluída ao seu mundo interior, não conseguindo assim

externar o sentimento. Mas também ele não o faz porque pode estar tão emocionado e

encantado que receia interferir o momento por meio de algum ato que termine sendo

impulsivo, então, se as coisas estão da forma como se mostram é porque tudo está

perfeito, não havendo motivo para macular tal distância. O lugar aqui é direcionado aos

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olhos da pessoa amada, isto é, ele projeta sua alegria ao enxergar o primeiro olhar

lançado sobre ele, quando ele ainda não conhecia bem tal pessoa, pois o olhar dela ainda

lhe era silente, entretanto, já fica claro que o deixou muito emocionado a ponto de

querer estar nesse lugar, isto é, ser levado por essa pessoa.

Na segunda estrofe, ele já revela maior familiarização com a pessoa, visto que o

mais rápido movimento do olhar desta seja motivo para deixa-lo a vontade para se

revelar, embora ele fosse alguém aprisionado no seu mundo interior (aqui o lugar em

questão mencionado)– talvez por ter sido ferido antes por alguém ou mesmo pela sua

personalidade retraída. Revestindo-se de um caráter simbólico sobre a interpretação da

figura da rosa, conforme Chevalier (2009, p. 788), “Designa uma perfeição acabada,

uma realização sem defeito. Como se verá ela simboliza a taça da vida, a alma, o

coração, o amor.”

Portanto, a rosa aqui como figura que remete ao amor, mas que também não

deixa de ser a alma apaixonada do eu-lírico, que será pétala por pétala aberta, isto é,

suas intimidades vão sendo pela amada descobertas, fenômeno que é por ele descrito

através da comparação feita com a ação da primavera ao fazer desabrochar a primeira

rosa, considerando-se também a influência dessa estação do ano acariciando as flores.

Logo, por mais que ele seja alguém fechado, a pessoa amada sabe como fazer com que

ele se sinta a vontade para se revelar para ela.

Na terceira estrofe, há certa ambiguidade. Ele tanto pode estar convidando a

pessoa para compreender seu universo interior, como um homem fechado que o é, pois

é natural que por esse ser o traço da sua personalidade, mesmo já estando aberto para

amar, ele pudesse se mostrar novamente fechado em alguma situação eventual com

relação à pessoa amada, e assim ele usa a colocação “nos fecharemos” no sentido de que

a amada o compreenda nessas ocasiões e mesmo assim permaneça com ele. Ou em

outro sentido, caso seja vontade da amada, ele vai embora e desiste de continuar

expressando o seu amor. O comparativo da neve descendo em cada pétala é mais um

reflexo da ação da natureza, só que agora no sentido de sacrifício da situação – a neve

gélida causaria a morte da flor. Portanto, o eu- lírico, (a flor cujo coração pulsa de

amores pela sua amada), estará disposto a enfrentar o distanciamento, se assim for a

vontade da pessoa por quem ele está apaixonado.

Na quarta estrofe, a visão simbólica a respeito de continente, segundo Chevalier,

cabe a interpretação também de que:

Simboliza um mundo de representação, de paixões, de desejos.(...).

Essa dimensão interior pode estar ligada a não importa que lugar,

cidade, país, etc. O importante é saber o que significam, para cada um,

as imagens, as sensações, os sentimentos, os preconceitos dos quais o

lugar em causa é portador e que fazem toda a verdade subjetiva do

símbolo. (2009, p 274-275).

Então, ainda nessa estrofe acentua-se a atração do eu-lírico pela fragilidade,

delicadeza da pessoa amada, e somando-se a isso há também atração pela cor da pele,

visto que aborda a ideia de textura, bem como a cor dos continentes, isto é, das formas

da amada, podendo ser os atributos físicos – seios, boca, etc. Afinal, esse seria o mundo

de paixões a que ele queria se entregar, em que haveria uma simbiose, ou seja, uma

ligação íntima muito forte entre ele e a amada de proximidade, eles seriam um para o

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outro. Há um jogo de imagens que ele cria quando diz que pode devolver a morte e o

sempre cada vez que respira – o que na verdade diz respeito ao mistério ou incerteza da

situação do término ou duração eterna do envolvimento sentimental entre ele e ela,

enquanto viverem.

Na quinta estrofe, a imagem do toque ou trato, através da metáfora “abrir e

fechar”, visto que nessa hora utilizaríamos um sentido figurado para dizer que a amada

segura a flor de um jeito singular, em outras palavras, ao fato de ele se sentir bem com o

toque dela e através da ternura que lhe repassada, demonstrando a correspondência do

sentimento. Mais uma vez a imagem dos olhos - porém que agora falam, devido a uma

intimidade entre os dois, e inclusive, a voz que sai dos olhos dela é mais profunda que

todas as rosas, ou seja, o olhar dela é único, assim como as mãos dela também são no

momento em que o toca (ninguém nem mesmo a chuva que cai sobre ele, novamente

uma alusão a uma ação da natureza – as gotas de chuva que costumam cair sobre as

flores – como forma de comparar a sensibilidade inigualável do toque da amada.

Diante de tal análise, destacamos uma concepção elencada por um dos mais

importantes formalistas russos, Chklovski

(...) o procedimento de singularização e o procedimento da forma

difícil que aumenta a dificuldade e a duração da percepção: o

procedimento da percepção, em arte é um fim em si mesmo e deve ser

prolongado. A arte é compreendida como um meio de destituir o

automatismo perceptivo, a imagem não procura nos facilitar a

compreensão de seu sentido, mas criar uma percepção particular do

objeto, busca e criação de sua visão e não de seu reconhecimento.

(apud EIKHENBAUM 1970, p.14 -15):

Isso permite concluir que, na poesia, ou eu lirico tende a particularizar a visão

que tem dos objetos, isto é, desautomatiza a linguagem. Isso vai sendo revelado por

meio das imagens apresentadas no poema, a razão, que são derivas do processo de

singularização, onde a maneira como são descritas demonstra um jeito único. Um

exemplo é a visão que o eu-lírico tem sobre a rosa, os continentes, as “mãos pequenas”

que a pessoa amada tem em comparação a chuva.

Desta feita, é perceptível a plurissignificação e criatividade na semântica,

gerando ambiguidades propositais em decorrência da polissemia dos termos utilizados,

caracterizando elementos para a existência da linguagem poética.

4. Considerações finais

A partir do presente estudo, foi possível entender que a linguagem poética não é

algo que está fixado, regrado, enfim, algo estigmatizado. Isto pode ser comprovado

através da evolução da teoria do método formal, como também pelos textos teóricos que

abordam a temática.

A poesia de e.e. cummings foi inovadora o bastante para quebrar padrões, o que

revela, que embora a linguagem poética seja dotada de determinadas particularidades, e

características atreladas ao texto, vemos que sempre a possibilidade da linguagem se

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recriar, se transformar, enfim, de chamar a atenção para diferentes estilos perante à

sociedade.

Por fim, percebeu-se que a arte poética não está distante do público

contemporânea, não devendo ser denominada como obsoleta, afinal, levando em

consideração que o poema foi transformado em canção, pode-se dizer que isto é uma

das possíveis formas de verificar que a poesia é forte e atividade na sociedade,

satisfazendo a todos de diferentes maneiras.

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FORMA, SENTIDO E DISTRIBUIÇÃO NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO

LÍNGUA ADICIONAL

Emny Nicole Batista de SOUSA10

Liane Velloso LEITÃO

Resumo: É hoje aceite, pela Linguística Aplicada, que se deve ensinar competência

intercultural para alunos de língua estrangeira. Este trabalho, portanto, pretende analisar

palavras na língua portuguesa do Brasil, em contraponto com as synforms e/ou

homógrafas na língua inglesa, através da metodologia de Lado, com o objetivo central

de ressaltar a importância das interações sociais para a aquisição da segunda língua, no

caso o português, atrelada à aquisição de seus valores culturais. Para tanto, lanço mão

de considerações de diferentes autores e paradigmas acerca da aquisição da linguagem.

Palavras-chave: Língua adicional, meio, léxico, português, inglês.

“(...) no Brasil, dois modos de colocar pronomes, enquanto o

português só admite um – ‘o modo duro e imperativo’: diga-me, faça-

me, espere-me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um

novo, (...) caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere.

Modo bom, doce, de pedido. E servimo-nos dos dois”. Gilberto Freyre

(apud ARAÚJO, 2003, p.201-202).

1. Introdução

O presente artigo é dedicado ao ensino da língua portuguesa falada no Brasil

como língua adicional que, com o crescente número de turistas, estudantes, imigrantes,

e refugiados passa a ser mais requisitada pelos aprendizes e deve ser entendida, por

estes e por seus professores, como parte integral de nossa cultura.

O Brasil está assumindo uma posição de protagonista político, econômico e

cultural. O português, como língua materna, é atualmente falado por aproximadamente

250 milhões de pessoas em Portugal, Brasil, Timor-Leste, Angola, Cabo Verde, Guiné-

Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial, Macau (China) e em

alguns territórios na Índia que foram colonizados por Portugal. O Brasil, entretanto,

representa a maior parte destes falantes, com cerca de 190 milhões de falantes nativos.

O português brasileiro, com suas influências do léxico africano e indígena, é o mais

atraente, pois o país está ganhando cada vez mais atenção internacional, seja pela

posição que atualmente ocupa economicamente no mundo, seja pelas parcerias

internacionais ou até mesmo pelos eventos que serão realizados em 2014 e 2016 (Copa

do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos). O país aproveita este momento para

alavancar ainda mais as possibilidades no âmbito internacional. O interesse pela língua

portuguesa cresce, pois a sua aquisição é o meio fundamental de aproximação da nossa

expressão cultural. O presente artigo, portanto, pretende ressaltar a importância do meio

nas construções de significados das palavras da língua portuguesa, fazendo um

contraponto com as correspondentes em língua inglesa. Para isto, faz-se necessário

buscar refletir sobre as ideias e concepções de aquisição de primeira língua e o processo

10

Mestrandas pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal da Paraíba.

P á g i n a | 817

por meio do qual os aprendizes de segunda língua passam até a fluência em L2. O foco

principal será a aquisição de palavras carregadas de significados atrelados à cultura.

Para tanto, levantam-se indagações: Qual é a importância do meio social no processo de

aquisição de segunda língua? Uma das fontes mais utilizadas pelos aprendizes é o

dicionário, até que ponto ele é confiável? Palavras que apresentam a mesma grafia e o

mesmo significado, nos dicionários de língua materna de duas línguas diferentes, podem

ser usadas nas mesmas situações? Irei analisar o léxico do inglês e do português, a

partir de palavras com a mesma grafia, ou similar, e suas definições no dicionário, as

quais, na verdade, não refletem os significados atribuídos pela comunidade de falantes,

pois não consideram em que situações essas palavras devem ser usadas. Diante do

exposto, este artigo visa a contribuir com as pesquisas voltadas para a aquisição de

português como segunda língua, como língua estrangeira e como língua de herança,

destacando a importância do contexto real de uso da língua portuguesa como primeira e

principal fonte para que os alunos consigam falar a língua, fluentemente. Os alunos

devem desenvolver a capacidade de utilizar o léxico de maneira adequada, nas situações

apropriadas, e entender que a nossa língua, e mais especificamente, os sentidos que

atribuímos às nossas palavras, e como as usamos, refletem também nossa cultura.

A metodologia utilizada será a qualitativa, pautada num processo indutivo,

interpretativo e construtivista. Portanto, basear-me-ei em considerações advindas de

mais de um paradigma. As ideias de Chomsky e Wittgenstein acerca da aquisição da

linguagem e as de Richards, Laufer e Ilari, a respeito das palavras, mais

especificamente, me ajudarão a tentar responder às perguntas investigativas; além das

considerações de Fernandes sobre Saussure, Pierce e Vygotsky, a respeito do signo

linguístico e a metodologia de análise das duas línguas de Lado.

2. Reflexões sobre aquisição do léxico de língua materna

A corrente gerativista defende que as crianças possuem capacidade inata de

desenvolver a linguagem. Chomsky questionou o paradigma em voga, apontando o fato

de as crianças serem capazes de falar qualquer língua, naturalmente, em pouco tempo. O

autor constatou que elas podem enunciar frases mesmo nunca tendo sido a elas

expostas, portanto, rompendo com o estruturalismo behaviorista que postulava que as

crianças adquiriam a língua através da repetição. Para esta corrente, durante o processo

de aquisição de linguagem, mesmo quando as crianças apresentam enunciados

“errados”, estes geralmente refletem seu domínio das regras gramaticais. No enunciado

“Eu fazi um bolo hoje com mainha*”, o verbo fazer foi conjugado como os verbos

comer, cair e beber. Portanto, inferimos que a criança mais acertou do que errou, pois

associou a regra a outros verbos comumente usados. Tendo isto a efeito, sua proposta de

que todos nós temos uma Gramática Universal, e que a partir dela, através do chamado

“dispositivo de aquisição de linguagem”, adquirimos qualquer língua em pouco tempo,

parece bem provável. Entretanto, para esta corrente, o fator biológico é fundamental,

nesse processo, e a interação social estaria na margem, seria apenas um ativador dessa

gramática geneticamente já estabelecida (QUADROS, 2007).

Essa é uma das ideias que o gerativismo defende que são mais debatidas por

estudiosos, como os construtivistas e funcionalistas. O meio não poderia ser somente

um “gatilho” que inicia o desempenho linguístico, mas essencial no processo,

especialmente em relação à aquisição dos significados das palavras. Os gerativistas

focam na capacidade que as crianças têm de utilizar adequadamente as estruturas

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gramaticais, mas sua investigação dedica aos sentidos das palavras pouca atenção

(BASILIO, 2010). As crianças dificilmente cometem equívocos gramaticais, contudo,

as crianças (bem como os adultos) se expressam com palavras que não são adequadas

para determinada enunciação, ou seja, não se ajustam ao propósito comunicativo.

Principalmente as palavras de conteúdo (incluindo substantivos, verbos e adjetivos),

como em “Eu quero ser autor”, se referindo à profissão de ator, “Isto é uma falta de

absurdo”, intentando dizer o contrário ou “Dizem que se a pessoa cheirar esse remédio

perde o fardo”. É bem verdade que essas substituições são, de modo geral, realizadas

dentro de uma mesma classe de palavras. Entretanto, podemos deduzir que o

significado, que já foi consolidado pela comunidade de falantes, ainda não foi

integralmente adquirido pelo falante em questão, por não ter sido, suficientemente,

exposto à palavra e às situações nas quais é usada.

A autora Fernandes (1999) conceituou as palavras a partir das considerações de

Saussure, Pierce, Pottier e Vygotsky a respeito do signo linguístico e chegou à

conclusão que i) as palavras são formadas por significado e significante; ii) que os

signos são sociais (uma vez que são compartilhados por participantes de uma

comunidade de falantes); iii) e também individuais (quando inferem suas próprias

interpretações baseadas nas relações pessoais com o social e atribuem significados às

palavras de acordo com a maturidade do falante). Para Wittgenstein (1958), o indivíduo

deve ser exposto à reflexão da língua em uso, pois é impossível entender os significados

das palavras quando analisadas independentes do seu contexto.

A língua, as palavras e seus significados são construídos e transformados

somente quando inseridos num contexto real de fala. A interação define a língua como

natural e viva, portanto, quando pensamos em signo como social e compartilhado por

falantes de uma sociedade, pensamos na relação entre língua e cultura. Dentro de uma

mesma “cultura11

”, nos deparamos com diferentes significados atribuídos ao mesmo

signo, por diferentes comunidades de falantes. No Brasil, todos conhecem a palavra

praia, e sabemos que é uma faixa de terra que está à margem do mar. Entretanto, a

forma como um pessoense compreende, entende e se relaciona com este signo é

diferente da de um porto-alegrense. Quando o primeiro pensa na ação de ir à praia, e

para Piaget, as palavras passam a ser signos quando se tornam representações das suas

ações (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2007), ele provavelmente vai pensar em levar

consigo água, chapéu, roupa de banho, e sombrinha, por exemplo. O segundo, por sua

vez, pode pensar na praia como um ambiente frio, portanto devendo levar consigo

cobertor, chimarrão, e roupas quentes, o que seria impensável para o cidadão que nunca

teve essa experiência com a praia. Quanto ao signo ser individual, a praia pode remeter

significados diferentes para cada pessoa dependendo das experiências vividas, boas ou

ruins, o indivíduo ao pensar no signo, pensa também no que ele representa em cunho

pessoal.

Se pensarmos nos signos café-da-manhã e lanche fazemos referência aos

alimentos ingeridos pela manhã e nos intervalos das refeições, respectivamente, mas as

interações entre os falantes de São Paulo deram outros significados ao léxico. A palavra

lanche, em São Paulo, remete, entre outras coisas, a um sanduíche. É comum ouvir a

seguinte frase: “Eu vou comer um lanche e um suco de uva”. Em Recife, por exemplo, a

frase não faria sentido, pois o suco faz parte do lanche, esse outro sentido não é usado

entre seus falantes.

11

Entenda-se o termo “cultura” aqui, como representação de uma mesma nação, onde se fala a mesma

língua.

P á g i n a | 819

Para Richards (1976), conhecer uma palavra significa conhecer todos os

significados a ela atribuídos. Saber todos os sentidos que uma palavra pode ter, numa

comunidade de fala, é uma faculdade que pode se apresentar complexa; praticamente

impossível. Todavia, os diferentes gêneros textuais exigem que o falante tenha

propriedade em diferentes sentidos de uma mesma palavra para que se faça entendido, a

tirinha, por exemplo, requer além da ciência de todo o contexto que envolve o texto

escrito, o entendimento da sua representação pelo desenho. Uma definição mais

adequada seria a de que não é possível ser fluente em uma dada língua, sem que haja

consciência do seu vocabulário (LAUFER, 1990). Desse modo, inferimos que essa

instrução só é obtida, pelo estrangeiro, através da exposição à língua em diferentes

suportes e, especialmente, por meio de interações sociais, na comunidade.

3. E a aquisição do léxico de uma segunda língua?

Diante do apresentado em relação à aquisição das palavras em língua materna,

podemos aproximar o processo pelo qual os aprendizes percorrem durante a aquisição

do léxico em segunda língua, assim tem feito muitos autores, como Krashen (2009) que

desenvolveu uma teoria de aquisição em L2, fundamentado nos princípios da Gramática

Universal. O autor postulou cinco hipóteses sobre a aquisição de segunda língua, como

a de que existe uma “ordem natural” de aquisição das palavras. Uma das críticas à sua

teoria, entretanto, é a negação à contribuição das interações em sala de aula no processo

de aquisição de L2 (que ele separa do processo de aprendizagem). Outro problema é de

alegar que não existe interface entre os dois processos (BROWN, 2007). Certamente, a

aquisição de L2 e dos sentidos diversos referentes ao léxico, requer do aluno um

conhecimento mais aprofundado do contexto cultural ao qual a língua em foco está

ligada; essa consciência linguística e cultural só é alcançada, plenamente, por

intermédio das relações do aluno com o meio. Logo, temos uma ideia do quão difícil é,

para os aprendizes de L2, serem fluentes ou até mesmo se comunicarem efetivamente,

numa segunda língua, uma vez que é importante entender os fatores culturais que a

permeiam. Essa situação é ainda mais evidente com as palavras homógrafas ou

synforms12

nas duas línguas, pois o aprendiz, geralmente, transfere os sentidos da

palavra da sua língua materna para a que está aprendendo. Contudo, um aluno que se

baseia nas interações entre os participantes de uma comunidade de fala, provavelmente,

não fará uma simples tradução literal das palavras, ou uma transposição dos seus valores

culturais para com a nova língua (fatores inter e intralexicais), mas desenvolverá um

entendimento mais arraigado, relevante e significativo, pois terá como fonte principal, a

interação social.

4. “Forma, sentido e distribuição” revisitados

A interação com os falantes nativos é importante para os aprendizes de segunda

língua porque esta, como dito anteriormente, deve ser referência basilar para a sua

aquisição. Ou seja, mesmo que o aprendiz tenha um dispositivo que lhe permita

desenvolver uma gramática que já está organizada em sua mente, e esse fato facilite seu

12

Laufer (1990) explica os synforms como “formas lexicais similares”, como as palavras conversação e

conversation.

P á g i n a | 820

desempenho em outra língua que apresenta uma gramática correlata, o meio é que

disponibilizará o aparato cultural necessário para que a comunicação ocorra de modo

pleno. O português do Brasil, solicitado por falantes de outras nacionalidades, reflete as

características do povo brasileiro as quais, em geral, não podem ser explicitadas apenas

por instrumentos linguísticos como as gramáticas e os dicionários. Para Sapir, “O

investigador linguístico não deve jamais cometer o engano de identificar uma língua

com seu dicionário”, mas pelo contexto real de seu uso.

O que nos identifica são características que formam a cultura, por exemplo, o

que vestimos, o que comemos, como agimos, e o que falamos (LARAIA, 2001). A

nossa língua e, consequentemente, o nosso vocabulário reflete o que somos como

brasileiros. Tendo isto em mente, farei uma análise comparativa do léxico da língua

portuguesa e inglesa sob a metodologia de Lado (1972), sobre “forma, sentido e

distribuição” das palavras. Essa será uma revisitação de sua teoria, a minha proposta

aqui não será comparar as duas línguas a fim de encontrar nas formas mais similares,

mais facilidade para apreendê-las, como o autor havia proposto. Pelo contrário, será nas

formas correlativas que irei demonstrar a complexidade pela qual os aprendizes de L2

são submetidos no processo de aquisição segunda língua, no caso, o português do

Brasil. As palavras analisadas não estão nas populares listas de falso-cognatos, são

palavras homógrafas ou synforms, e possuem, praticamente, a mesma definição nos

dicionários, mas são usadas com diferentes sentidos, situações e frequência, de acordo

com a comunidade real de fala. Farei a análise do léxico da língua portuguesa e inglesa,

baseada em eventos descritos por estudantes de PLA, em situação de imersão no Brasil,

nos quais a não aquisição dos sentidos das palavras, marcados pela cultura brasileira e

pela comunidade de fala na qual eles participavam, gerou situações de conflito. O

professor deve, portanto, levar em consideração as possibilidades de atrito e tentar,

através de atividades conscientes culturalmente, evitá-las ou, pelo menos, minimizá-las,

pois estes choques culturais podem suscitar constrangimentos e acabar desmotivando o

aluno, retardando (ou impedindo) o seu aprendizado (BROWN, 2007).

Segue um quadro com a forma e a distribuição das palavras que serão

examinadas. Mais adiante, no texto, farei a análise sob o ponto de vista do sentido13

,

definido por Lado (op.cit) como “(...) mensagem que se pretende transmitir na

comunicação”.

Forma

(português)

Forma

(inglês)

Distribuição

(português)

Distribuição

(inglês)

Atitude Attitude Substantivo Substantivo

Atraente Attractive Adjetivo Adjetivo

Discussão Discussion Substantivo Substantivo

Excitado(a) Excited Adjetivo; Verbo Adjetivo; Verbo

Frustrado(a) Frustrated Adjetivo; Verbo Adjetivo; Verbo

13

Incluirei na classe de sentido, a “conotação” das palavras que, para o autor, é representada pela “escala

de aceitação” das palavras. Por exemplo, uma palavra pode ser ofensiva ou tabu numa língua e não em

outra, entretanto os alunos evitam usá-la para evitar situações conflituosas e vice-versa.

P á g i n a | 821

Honesto(a) Honest Adjetivo Adjetivo

Como visto, as palavras possuem a “mesma” forma e a mesma distribuição.

Vamos, então, aos sentidos. A palavra attitude, em inglês, pode ter o mesmo sentido que

atitude, em português, em determinados contextos. Contudo, em português, ter atitude

pode significar algo positivo como ter iniciativa. Em inglês, em contrapartida, pode

carregar um significado negativo. A palavra attitude é amplamente utilizada com

conotação hostil, em situações nas quais uma pessoa está apresentando uma má postura

ou mau comportamento, por exemplo, quando uma mãe diz para um filho:

“Why are you giving me this attitude?”

(Por que você está me dando esta atitude?)

A palavra attractive, em inglês, significa cativante e encantador, não possui o

sentido sexual atribuído pela nossa cultura à correspondente direta atraente. Então, é

aceitável dizer em inglês, numa situação formal:

“My son’s girlfriend is really attractive.”

Em português “A namorada do meu filho é muito atraente.” não seria adequado.

Embora os dicionários apresentem significados equivalentes, as palavras

discussão e discussion são usadas em situações bem diferentes, nas duas realidades

linguísticas. Nos dicionários das duas línguas, suas definições são de debate,

controvérsia, e investigação da verdade pela análise de razões. Entretanto, em língua

portuguesa, e os alunos estrangeiros logo constatam essa diferença, a palavra discussão

também remete a uma briga, diferentemente de seu synform em inglês, que teria o

sentido de exame ou consideração de uma verdade.

A palavra excited, em inglês, significa empolgado, em português excitado

também tem essa conotação, mas é amplamente usada com uma conotação sexual. Um

aluno americano diria:

“I’m excited to attend this class.”

(Estou excitado para assistir essa aula.)

A mesma expressão dita em português, usando a mesma palavra excitado, não

caberia aqui. Melhor seria usar empolgado ou animado. O aluno que queira utilizar o

caminho mais fácil da tradução direta, pode se encontrar numa situação constrangedora.

Apesar de apresentar o mesmo radical, a palavra frustrated, em inglês, carrega

um sentido muito mais leve em comparação à palavra frustrado(a), em português. Em

inglês, você se sente frustrated quando liga para alguém e essa pessoa não atende, por

exemplo.

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“I got frustrated today when I tried calling you but you wouldn’t pick up.”

(Eu fiquei frustrado quando tentei te ligar, mas você não atendia.)

Em português, o motivo para ficar-se frustrado deve ser bem mais sério. Por

exemplo:

“Eu não me formei em enfermagem e me sinto frustrado hoje em dia”

Para um praticante da língua portuguesa no Brasil, essa será uma expressão que

poderia causar confusão.

Embora as palavras honesto e honest se encontrem em um ponto em comum,

como definem os calepinos, os seus sentidos também se distanciam. O sentido do

adjetivo honest em inglês é usado, geralmente, quando a veracidade dos fatos (dados

pelo interlocutor) é solicitada, de forma menos formal do que em português. Por

exemplo:

“Did you like my dress? Be honest.”

(Você gostou do meu vestido. Seja honesto(a)!)

Poderíamos também, ainda, acrescentar outro ponto interessante para que fizesse

parte dessa comparação dos dois sistemas de vocabulário. Mesmo com mesma forma,

distribuição e sentidos parciais, ainda há outra questão que torna esses signos distintos

quando postos em uso, a frequência. Algumas palavras são mais ou menos utilizadas

pelos falantes de uma determinada língua, o que também é importante para entendermos

a complexidade das diferenças entre as palavras das línguas.

Segundo Lado (op.cit), “(...) os sentidos em que classificamos nossa experiência

são determinados ou modificados culturalmente e variam consideravelmente de cultura

para cultura”. Não é necessário que o professor de língua estrangeira fale outra língua

além da que está ensinando para que seja um bom profissional, como fora assentido por

Lado e outros linguistas (As salas de aula de PLE hoje, no Brasil, têm alunos provindos

de vários países, seria impossível, para o professor, falar todas as línguas). Entretanto,

será que não seria interessante que o professor falasse ou, ao menos, tentasse falar uma

língua adicional? Assim, o professor entenderia, sob a mesma perspectiva do aluno, o

processo de aquisição de L2. Os fatores sociais, pessoais, psicológicos, de idade, os

estilos e estratégias. O caminho que é por vezes árduo, mas por muitas vezes prazeroso

e, sobretudo para a maior parte dos interessados, de grande vantagem.

5. E como devemos ensinar as palavras?

Para Laufer (1997), aprender uma palavra, vai além da compreensão do seu

significado. Em relação à semântica da palavra, a autora diz que é preciso saber o

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significado referencial, os valores afetivos, e a adequação pragmática. O professor de

PLA deve ter em mente que o aluno precisa aprender as palavras, seus significados e

como e em que contextos usá-las. Não basta a simples definição do dicionário, é

importante que o professor apresente o novo vocabulário através de diferentes exemplos

e exercícios. Estas atividades devem envolver diferentes suportes, gêneros e tipos

textuais, práticas orais e escritas e, evidentemente, consciência e percepção dos aspectos

culturais. Há muita investigação a respeito do ensino de vocabulário, e alguns autores

(WALLACE, 1988; MARZANO, 2005) postularam passos básicos que devem ser

observados na elaboração de um plano de aula destinado ao ensino de palavras aos

alunos internacionais; i) deve haver um objetivo, quais palavras serão ensinadas e por

que razão; ii) as palavras devem estar de acordo com as necessidades dos alunos; iii) os

professores devem dar oportunidades para que os alunos escutem e leiam as palavras,

em contextos nos quais as sentenças acontecem naturalmente; iv) ensinar conceitos em

vez de palavras isoladas e desconexas. Rodolfo Ilari (2012), em seu livro Introdução ao

Estudo do Léxico: Brincando com as Palavras, introduz uma série de sugestões para o

ensino do léxico da língua portuguesa, como língua materna. Seu livro é dividido em

capítulos destinados às palavras e seus componentes, como sufixos, ambiguidades,

arcaísmos, definições, distribuições, polissemia, estrangeirismos e etimologia. Para cada

capítulo, ele explicita seu objetivo geral, o material linguístico e propõe uma série de

exercícios que seriam como um norte para a elaboração das atividades pelos

professores. Acredito que este livro também seria de grande ajuda para os professores

de PLA, ele serve, por ora, como base no que diz respeito ao conteúdo que se deve

abordar e, a partir deste, os professores partiriam para uma elaboração mais direcionada

para o público estrangeiro.

6. Considerações finais

Podemos concluir que a língua portuguesa deve ser ensinada tendo a ciência de

que, não somente reflete, mas é parte fundamental da nossa cultura brasileira. Vimos

que é importante e relevante considerar o que foi investigado sobre a aquisição de L1

para desenvolver contextos conceituais sobre a aquisição em L2. As ideias da corrente

gerativista contribuíram para essa pesquisa no sentido de levantar o primeiro e principal

questionamento sobre o grau de importância do meio externo sobre o desempenho

linguístico. Atemo-nos às palavras com conteúdos e vimos que os verdadeiros

significados destas são construídos e resinificados através da interação social, pelas

comunidades de fala. Entendemos que estes sentidos não podem ser efetivamente

descritos por instrumentos linguísticos, como os dicionários, os quais, portanto, não

podem ser absolutamente confiáveis. Por conseguinte, analisadas as palavras das

línguas portuguesa e inglesa e seus sentidos no contexto real de uso, entendemos que os

dicionários podem ajudar o aprendiz de português L2, mas sua referência prevalecente

deve ser a comunidade onde a língua é usada em seus diferentes contextos; através

somente desta é que os alunos podem se tornar verdadeiramente fluentes. À vista disso,

sublinho a importância de considerar a língua portuguesa como parte essencial para a

compreensão da cultura brasileira e, evidentemente, a necessidade de aplicar esse fator

aos planos de aula, aos exercícios (como vimos na proposta de Ilari), aos materiais

didáticos e aos planos de curso, pelos devidos responsáveis. Esse posicionamento em

relação ao ensino-aprendizagem de português L2 tem o primordial efeito de ajudar os

alunos (principalmente em situação de imersão), minimizando as possibilidades de

choques culturais, uma vez que eles estão sendo preparados, dentro das salas de aula,

P á g i n a | 824

por meio de atividades que focam nossa expressão linguística inerente à nossa expressão

cultural.

Referências

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Grande & Senzala de Gilberto Freyre. São Paulo: Schwartz, 2009.

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Travessias: bases para o estudo da linguagem – Rio de Janeiro: edUERJ, 1999, cap.

3, p. 63-82.

ILARI, Rodolfo. Introdução ao Estudo do Léxico: Brincando com as Palavras. 5.

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2009. Disponível em: http://www.sdkrashen.com, acessado em 2012.

LADO, Robert. Introdução à Linguística Aplicada. Petrópolis RJ: Vozes, 1972.

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that affect the learning of words. In: International Review of Applied Linguistics 28

p. 293-305, 1990.

___________. What´s in a word that makes it hard or easy: some intralexical factors

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FINGER, QUADROS; Ingrid, Ronice. Teorias da Aquisição da Linguagem. 2007.

Cap. 2, p. p.45-81.

RAMOZZI-CHIAROTTINO, Zélia. Epistemologia Genética e a aquisição da

linguagem. In: FINGER, QUADROS; Ingrid, Ronice. Teorias da Aquisição da

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WALLACE, Michael. Practical Language Teaching: Teaching Vocabulary. Oxford:

Heinemann, 1988.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Basil Blackwell Ltd, 2nd

Ed. Great Britain, 1958.

P á g i n a | 825

A REALIDADE REESCRITA: FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA EM

ATONEMENT, DE IAN McEWAN

Tatiane da Costa P. SOUSA (UFCG)14

Suênio Stevenson Tomaz da SILVA (UFCG)15

Resumo: No presente artigo, discutimos e examinamos a relação entre ficção, história e

memória, utilizando como objeto de análise o romance Atonement [Reparação, na

versão brasileira] (2002a), do escritor inglês Ian McEwan, autor contemporâneo cuja

obra em foco podemos enquadrar no perfil de lite-ratura pós-moderna que Linda

Hutcheon (1991) denomina “metaficção historiográfica”. Nesse sen-tido, o romance de

McEwan adota e questiona, de forma aparentemente paradoxal, tanto o estilo mimético

da tradição realista quanto o dogmático culto ao esteticismo modernista, bem como

algu-mas convenções da própria literatura pós-moderna. Assim, procuramos verificar

como McEwan combina os discursos histórico, memoralista/autobiográfico e

metaficcional, para conceber um ro-mance multifacetado em que a ficção funciona

como instrumento para a reescrita da realidade. Constituem suporte teórico para a

presente análise, além da mencionada obra de Hutcheon, as valiosas reflexões de James

Wood (2012) e Terry Eagleton (1996) e outros autores, quanto aos te-mas da

representação da realidade na literatura e da autorreflexividade das narrativas pós-

modernas.

Palavras-chave: Reparação. Realidade e ficção. Autorreflexividade literária.

1. Introdução

Desde sua estreia literária em 1975, o escritor inglês Ian McEwan (1948 – ) já

produziu duas dezenas de obras, entre contos, romances, roteiros, livros infanto-juvenis

e libretos para peças musicais. Ganhador de diversos prêmios literários (incluindo o

Man Booker Prize, em 1998, o mais prestigioso prêmio do gênero no Reino Unido),

McEwan já tem uma ampla fortuna crítica centrada em sua obra, pela qual já é

considerado um dos maiores escritores ingleses do período pós-Segunda Guerra.16

Publicado em 2001, seu oitavo romance, Atonement [Reparação] (2002a)17

, foi

logo considerado por muitos uma obra-prima, recebendo excelente recepção crítica e

tornando-se, ao mesmo tempo, sucesso de vendas não apenas nos países de língua

inglesa, como também naqueles em que foi traduzido. A obra narra a história de dois

jovens, Robbie Turner e Cecilia Tallis (ele, filho da empregada da família dela), que, ao

14

Acadêmica do curso de Letras – Inglês, do Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina

Grande. E-mail: [email protected] 15

Professor de Língua Inglesa e Literaturas de Língua Inglesa na Unidade Acadêmica de Letras do

Centro de Humani-dades, Universidade Federal de Campina Grande. E-mail:

[email protected] 16

A esse respeito, vide: THE 50 greatest British writers since 1945. The Times, London, 5 jan. 2008.

Disponível em:

<http://entertainment.timesonline.co.uk/tol/arts_and_entertainment/books/article3127837.ece>. Acesso

em: 02 set. 2013. 17

A edição referenciada no presente artigo é a americana, publicada por Nan A.

Talese/Doubleday/Random House, em 2002. As traduções das passagens citadas, por sua vez, são

extraídas da versão para o português brasileiro feita por Paulo Henriques Britto (McEWAN, 2002b).

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mesmo tempo em que descobrem e admitem sua paixão, e decidem se entregar a ela,

são, de repente, separados como consequência de uma acusação feita contra o rapaz pela

irmã caçula de Cecilia, Briony, uma menina de 13 anos, imatura e de imaginação fértil,

que sonha em ser escritora. Uma acusação gravíssima, fundada em uma série de

interpretações equivocadas, que tem efeitos trágicos sobre a vida dos dois amantes, e

pelo qual a menina passará a vida buscando uma reparação que, ao fim, revela-se

inalcançável, impossível.

Narrado em terceira pessoa, por discurso indireto livre, o romance de McEwan

apresenta uma multiplicidade de perspectivas e algumas notáveis mudanças de gênero

ao longo das quatro partes em que o livro se divide. Além disso, algumas convenções do

realismo clássico e do moder-nismo são questionadas na narrativa, embora também

sejam vistas por um ângulo crítico algumas tendências que se vêm convencionando na

própria literatura pós-moderna, com sua problematização da pretensão mimética

realista. Isto é, a postura do autor (ou do narrador) na obra parece ser a de alguém que,

se não quer resgatar as antigas tradições do realismo nem do modernismo, também não

pretende seguir por vias normalmente tomadas nos romances contemporâneos,

preferindo escolher seu próprio caminho.

2. Vários pontos de vista, variadas narrativas

Atonement, como já dissemos, divide-se em quatro partes. Na mais longa delas,

a “Part One” [Primeira parte], deparamo-nos com uma narrativa e ambientação da trama

que evocam as obras de Jane Austen, não por acaso citada na epígrafe que abre o livro.

Nesta parte, alguns eventos são narrados a partir de pontos de vista distintos, permitindo

ao leitor uma apreensão menos limitada do que se passa, ver aquilo que outros

personagens não veem. Assim, acompanhamos um calmo e quente dia de verão, em

1935, na residência campestre de uma família inglesa rica e tradicional, quando e onde

ocorrem alguns fatos que se revelam significativos não só no desenrolar da trama, mas

na própria construção narrativa do romance. Esses fatos são: o envolvimento entre

Cecilia e Robbie; as confusões na mente da pequena e imaginativa Briony, que ainda é

imatura demais para entender certas atitudes dos adultos em suas relações; as

conclusões equivocadas a que ela chega sobre o caráter do filho da empregada e a

natureza de sua relação com a irmã mais velha; um crime violento praticado contra uma

jovem parenta da família Tallis, e, diante deste acontecimento, a precipitada conclusão

de Briony de que o culpado é Robbie — quando chega ao ponto de afirmar “I saw him.

I saw him” (McEWAN, 2002a, p. 155)18

, embora, só para, pouco depois, dentro de si,

refletir que, em relação a essa garantia de testemunho ocular, “she would have preferred

to qualify, or complicate, her use of the word ‘saw.’ Less like seeing, more like

knowing” (ibid., p. 159).19

Na “Part Two” [Segunda parte], a trama é narrada com um tom realista

diferente. O estilo agora lembra o de um romance histórico ou uma típica war story

[história de guerra], como From here to eternity [A um passo da eternidade, na versão

brasileira], de James Jones. A narrativa adota a perspectiva de Robbie, que, tendo

cumprido três anos e meio de prisão pelo crime de que foi acu-sado, teve de alistar-se e

18

“Eu vi. Eu vi” (McEWAN, 2002b, p. 200). 19

“... ela teria preferido fazer uma ressalva ou, de algum modo, relativizar sua utilização do verbo ‘ver’.

Era menos ver do que saber” (ibid., p. 205).

P á g i n a | 827

ir para a guerra em 1939. Acompanhamos, então, um ano mais tarde, sua tentativa de

chegar ao norte da França, acompanhado por dois cabos, onde, após os seguidos fra-

cassos dos aliados em conter o avanço das forças nazistas sobre o território francês,

vinha sendo realizada uma maciça operação de retirada de milhares dos combatentes da

Força Expedicionária Britânica enviadas ao continente. Nessa parte, através de

lembranças e divagações de Robbie (aces-síveis pelo artifício narrativo do discurso

indireto livre) e de algumas cartas que Cecilia lhe enviou, o leitor fica também sabendo

qual foi o destino dela: vivendo sozinha em Londres, rompida com a família,

trabalhando como enfermeira e sempre na esperança de que Robbie retorne da guerra e

de que possam enfim começar uma vida a dois.

A “Part Three” [Terceira parte], se conserva o tom de romance histórico da

seção anterior, distingue-se daquela, principalmente, na alternância do ponto de vista:

agora, os eventos são apre-sentados pelo ângulo de Briony, que, já mais amadurecida,

também trabalha como enfermeira em Londres, enquanto tenta se reaproximar da irmã e

reparar, de alguma forma, o terrível erro (agora compreendido) que cometeu em sua

acusação contra Robbie.

Nessa mesma seção da obra, outro assunto abordado é a persistência da jovem

em se tornar escritora. A certa altura, Briony recebe uma carta de rejeição de uma

novela que escreveu, inspirada no drama de Cecilia e Robbie. O autor da carta é um

personagem real e conhecido: Cyril Connolly, escritor e crítico que, à época, era editor

da revista literária Horizon. Na carta, embora reconheça o talento de Briony, ele critica

sua novela, destacando que seus pontos fracos estariam precisamente em a jovem autora

ter adotado algumas convenções modernistas que não seriam as mais adequadas para

aquele tipo de história que pretendia narrar. Nas palavras do editor na carta:

[W]e wondered whether it owed a little too much to the techniques of

Mrs. Woolf. […] Who can doubt the value of this experimentation?

However, such writing can become precious when there is no sense of

forward movement. Put the other way round, our attention would have

been held even more effectively had there been an underlying pull of

simple narrative. Development is required (McEWAN, 2002a, p. 294-

295).20

A terceira parte termina com um encontro dramático de Briony com sua irmã e

Robbie. Ela vai ao apartamento de Cecilia e descobre que ele está lá, já no fim de uma

breve licença durante a qual, finalmente, eles puderam ficar juntos — já que os dois

nunca tiveram essa chance, devido à prisão de Robbie e à sua ida para a guerra algum

tempo depois. A cena é intensa; nela, são enfim expressos ressentimentos por muito

tempo guardados, há inúteis pedidos de desculpas, e pode-se pressentir a violência

prestes a se manifestar a qualquer momento, mas contida com esforço até o fim. Quando

Briony deixa Robbie e Cecilia, ela lhes faz a promessa de esclarecer tudo ao menos

perante a família, que jamais dera ao rapaz o benefício da dúvida. No entanto,

precisamente no parágrafo que fecha essa terceira parte do livro, o leitor se depara com

20

“[P]or vezes nos pareceu haver uma presença um pouco excessiva das técnicas de Virgínia Woolf. [...].

Quem haverá de questionar a validade dessa experimentação? Porém esse tipo de prosa pode resvalar no

preciosismo quando falta um movimento para a frente. Em outras palavras, nossa atenção teria sido

cativada ainda mais se houvesse uma correnteza subjacente de simples narrativa. É preciso haver um

desenvolvimento” (McEWAN, 2002b, p. 373).

P á g i n a | 828

uma informação inesperada que faz com que sinta a repentina necessidade de reler e

reassimilar toda a narrativa até ali. Essas linhas finais, como agora descobrimos, são a

conclusão de toda a obra. São as palavras com que Atonement se encerra:

She was calm as she considered what she had to do. Together, the note

to her parents and the formal statement would take no time at all. Then

she would be free for the rest of the day. She knew what was required

of her. Not simply a letter, but a new draft, an atonement, and she was

ready to begin. BT London, 1999 (ibid., p. 330.)21

É a última cena do romance, dessa trágica história do amor, e da eterna culpa e

penitência de Briony após reconhecer ter causado injustamente a traumática separação

de Robbie e Cecilia. Uma obra que, no fim, informa não apenas onde e quando foi

concluída, como também permite conhecer seu “autor”. Ou melhor, sua “autora”. Nas

iniciais BT, de Briony Tallis. Na verdade, seria até mesmo possível dizer que um

simples detalhe acaba conferindo às três partes do livro o aspecto de mais um gênero

literário: apesar da narrativa em terceira pessoa (utilizando discurso indireto livre, como

dito antes), o leitor não pode deixar de sentir agora um forte teor memoralista em tudo o

que leu.

De repente, o romance se torna um relato das lembranças e confissões de Briony,

trazendo à tona o grande erro de seu passado e seu esforço a fim de repará-lo, a fim de

expiar sua falta. Porém, quando o leitor mal tem tempo de se recobrar dessa reviravolta

narrativa, ele é levado à última seção em que se divide o livro, que traz revelações ainda

mais radicais.

Intitulada apenas como “London, 1999” [Londres, 1999], trata-se de um epílogo

que Briony redige na manhã de seu 77o aniversário. Nele, depois de revelar que está

sofrendo de demência vas-cular (embora ainda não confirmado se irremediável ou não),

ela fala do romance — composto pelas três partes anteriores do livro. Briony informa

que, embora seja seu livro mais recente e provavelmente o último, que será publicado só

depois de sua morte devido a questões jurídicas que ela também esclarece, na verdade

deveria ter sido sua primeira obra publicada. Em suas palavras:

I’ve been thinking about my last novel, the one that should have been

my first. The earliest version, January 1940, the latest, March 1999,

and in between, half a dozen different drafts. The second draft, June

1947, the third... who cares to know? My fifty-nine-year assignment is

over (McEWAN, 2002a, p. 349).22

Contudo, as várias versões que a história já teve não são a informação mais

relevante que o epílogo traz para o leitor. Nesse relato em primeira pessoa (portanto,

21

“Ela estava calma, pensando no que tinha de fazer. A carta para os pais e a declaração formal, ela as

escreveria rapidamente. Então estaria livre o resto do dia. Sabia o que se exigia dela. Não apenas uma

carta, mas um novo rascunho, uma reparação, e ela estava pronta para começar. / BT / Londres, 1999”

(ibid., p. 417-418.) 22

“Estive pensando no meu último romance, que deveria ter sido o primeiro. Versão original, janeiro de

1940, última versão, março de 1999, entre uma e outra, meia dúzia de rascunhos diferentes. O segundo,

junho de 1947, o terceiro... que diferença faz? A tarefa que me impus há cinquenta e nove anos

finalmente foi cumprida” (McEWAN, 2002b, p. 441).

P á g i n a | 829

outra mudança de estilo narra-tivo), Briony não só comenta a feitura do romance (o que

confere à passagem um caráter explici-tamente metaficcional), como simplesmente

desconstrói toda a narrativa que seguimos até esse ponto e que já considerávamos agora

até mesmo um tanto memoralista ou autobiográfica. Mais especificamente, ela escreve:

“It is only in this last version that my lovers end well, standing side by side on a South

London pavement as I walk away. All the preceding drafts were pitiless” (ibid., p.

350).23

De fato, Briony revela que, devido ao agravamento de sua condição após um

ferimento, Robbie morreu em Bray-Dunes, no norte da França, em 1o de junho de 1940,

e que, igualmente, sua irmã Cecilia foi uma das vítimas fatais da bomba que explodiu na

estação de metrô de Balham, em Londres, em setembro daquele mesmo ano. Além

disso, a “autora-narradora” resolve desmentir muitos outros dos eventos descritos no

romance de forma tão realista, incluindo sua visita ao casal nas últimas páginas da

terceira parte. Nada disso aconteceu. Tudo não passou de invenção. Nunca houve

reparação. Nem sequer a promessa dela.

Essas revelações e algumas reflexões sobre elas fecham o epílogo que encerra o

romance de Briony. Já McEwan, com essa narrativa multifacetada, dá início a todas as

diversas discussões sobre a obra: as tantas leituras que ela possibilita, os vários temas a

explorar etc. Inclusive a relação entre realidade e ficção, e o caráter autorreflexivo do

romance pós-moderno, tema do qual nos ocupare-mos no presente artigo.

3. A autorreflexão narrativa

Ao comentar a produção literária pós-moderna, a crítica Linda Hutcheon

escreve:

Aquilo que quero chamar de pós-modernismo na ficção usa e abusa

paradoxalmente das convenções do realismo e do modernismo, e o faz

com o objetivo de contestar a transpa-rência dessas convenções, de

evitar a atenuação das contradições que fazem com que o pós--

moderno seja o que é: histórico e metaficcional, contextual e

autorreflexivo, sempre cons-ciente de seu status de discurso, de

elaboração humana (HUTCHEON, 1991, p. 79).

Nesse sentido, Atonement se encaixa sem dificuldade no perfil de romance pós-

moderno. Se temos na obra um esforço mimético que lhe confere um caráter

convincentemente realista até o en-cerramento da terceira parte, há também, não só em

seu epílogo, como em outras passagens da nar-rativa, evidências dessa autorreflexão

metaficcional que caracteriza o pós-modernismo na literatura.

A título de exemplo, poderíamos destacar o trecho em que Briony, pela janela do

quarto, ob-serva o comportamento de Cecilia e Robbie, diante da fonte no quintal da

casa. Os atos de ambos despertam a curiosidade da menina, deixam-na intrigada,

enquanto escapam à sua limitada compre-ensão infantil porque aquilo “was not a fairy

tale, this was the real, the adult world in which frogs did not address princesses, and the

23 “É só nesta última versão que o casal apaixonado termina bem, um ao lado do outro, numa calçada da

zona sul de Londres, enquanto eu vou embora. Todas as versões anteriores eram impiedosas” (ibid., p.

442).

P á g i n a | 830

only messages were the ones that people sent” (McEwan, 2002a, p. 37).24

Nessa

passagem, o narrador (que, agora sabemos, é a própria Briony, décadas mais tarde)

informa que a menina se sente, nesse momento, tentada a procurar a irmã e a exigir uma

explicação sobre o que acabou de ver; porém, decide não o fazer “because she wanted to

chase in solitude the faint thrill of possibility she had felt before, the elusive excitement

at a prospect she was coming close to defintion, at least emotionally. The definition

would refine itself over the years” (ibid., p. 37-38).25

São palavras significativas, pois — confrontadas com a carta de Cyril Connolly,

sugerindo uma revisão na novela Two figures by a fountain [Dois vultos juntos a uma

fonte], que Briony escrevera na juventude, e também com a própria admissão da autora,

na velhice, de que escreveu várias versões da história ao longo da vida — permitem-nos

concluir que a cena, conforme descrita na primeira parte do romance, já se encontra em

sua forma final. Já foi readaptada para se tornar parte de uma obra mais volumosa: um

romance. Nesse sentido, é importante notar também que esse evento, testemunhado pela

pequena Briony através da janela do quarto, é descrito como o que apresentou à menina

aspirante a escritora “an impartial psychological realism” (McEWAN, 2002a, p. 38),26

traço que seria assimilado aos escritos da futura autora consagrada.

Hutcheon destaca que uma postura fundamental da literatura pós-moderna é

questionar a autoridade da tradição e das crenças sobre o que deve ser a literatura. No

entanto, a despeito de al-guns experimentos narrativos visando a rejeitar por completo

toda forma de mimese realista e ne-gando até mesmo a necessidade de qualquer tipo de

trama, segundo a autora, o fato é que, na maio-ria dos romances contemporâneos, tem

havido um

“retorno” da trama e das questões de referência que haviam sido

reunidas na mesma cate-goria pelas últimas tentativas modernistas no

sentido de demolir as convenções narrativas realistas: o Novo Novo

Romance francês ou os textos da Tel Quel, a neovanguardia italia-na,

a superficção americana. Em termos de forma, todas elas são mais

radicais do que os ro-mances pós-modernos, que são mais

transigentes, digamos assim, em seu registro e em sua contestação

paradoxais dessas mesmas convenções. A estratégia, um pouco

diferente, da metaficção historiográfica [pós-moderna] subverte, mas

[não por meio] da rejeição. A pro-blematização substitui a demolição

(HUTCHEON, 1991, p. 15).

O romance de McEwan utiliza e critica, precisamente pela sua problematização,

as conven-ções miméticas realistas, bem como a multiplicidade de perspectiva e a

investigação do universo in-terior dos personagens pelo artifício do discurso indireto

livre na forma como os romances moder-nistas o utilizavam, e, assim, por um lado,

desconstrói a mimese, pondo em questão a impossibilida-de da representação realista no

romance, e, por outro lado, expõe a semelhante artificialidade da descrição relativista

dos fatos pela alternância de pontos de vista como sendo apenas mais uma me-ra

24

“... não era uma história de fadas, era a realidade, o mundo adulto em que sapos não falavam com

princesas e onde as únicas mensagens eram aquelas que as pessoas enviavam” (McEwan, 2002b, p. 54). 25

“… porque queria explorar sozinha a vaga e emocionante possibilidade que havia sentido antes, a

excitação evanescente diante de algo que ela estava quase definindo, ao menos no plano emocional. A

definição haveria de se refinar com o passar do tempo” (ibid., loc. cit.). 26

“… um realismo psicológico imparcial” (McEWAN, 2002b, p. 55).

P á g i n a | 831

convenção seguida pelo autor, que vai se fazendo recorrente no exercício de seu “godly

power of creation” (McEWAN, 2002a, p. 72).27

Porém, é curioso notar que a crítica dessas convenções não se traduz para

McEwan em uma recusa a nenhuma delas — uma posição compatível com a conclusão

de Hutcheon de que a meta-ficção historiográfica deveria subverter tais convenções,

mas não rejeitá-la. Até porque, como tam-bém e tão bem salienta o crítico James Wood,

toda ficção é convencional de uma maneira ou de outra, e, se

rejeitarmos algum tipo de realismo por ser convencional, pela mesma

razão teremos de rejeitar o surrealismo, a ficção científica, o pós-

modernismo autorreflexivo, os romances com quatro finais diferentes,

e assim por diante. A convenção está por toda parte e triunfa como a

velhice: depois de certa idade, morremos dela ou com ela (WOOD,

2012, p.189).

McEwan tem consciência disso. É como se, em parte, concordasse com a visão

moderada-mente simpática de Hutcheon quanto à ficção pós-moderna (que ela prefere

denominar “metafição historiográfica”), mas sem perder de vista a crítica de teóricos

como Terry Eagleton, para quem:

A típica obra de arte pós-modernista é arbitrária, eclética, híbrida,

descentrada, fluida, des-contínua, do tipo pastiche. [...] Suspeitando de

todas as verdades e certezas asseguradas, sua forma é irônica, e sua

epistemologia, relativista e cética. Rejeitando todas as tentativas de

refletir uma realidade para além de si mesma, ela existe

autoconscientemente no nível da forma ou da linguagem. Ciente de

que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, ela é capaz de

obter algum tipo de negativa autenticidade apenas fazendo ostentação

de sua cons-ciência irônica desse fato, pervertidamente destacando seu

próprio status como um artifício construído (EAGLETON, 1996, p.

201-202, tradução nossa).

A maior parte da literatura de McEwan “usa e abusa” das convenções realistas e

modernis-tas, como Hutcheon fala em sua obra. Mas a forma como o autor as utiliza,

assim como a autor-reflexividade que se percebe em suas narrativas, sugere uma

considerável aproximação com a visão crítica de Eagleton, principalmente no que se

refere às posturas pós-modernistas mais radicais dos que aceitam, sem questionamentos,

proposições como a de Roland Barthes, para quem

[a] função da narrativa não é a de ‘representar’, mas de constituir um

espetáculo que ainda parece muito enigmático, mas que não poderia

ser da ordem mimética [...]. ‘O que passa’ na narrativa não é, do ponto

de vista referencial (real), ao pé da letra, nada; ‘o que acon-tece’ é só

a linguagem inteiramente só, a aventura da linguagem, cuja vinda não

deixa nun-ca de ser festejada (apud WOOD, 2012, p. 188-189).

27

“… seu poder demiúrgico de criação” (ibid., p. 96).

P á g i n a | 832

McEwan utiliza essa opinião; porém, voltando-a contra as narrativas que nela se

amparam. De fato, ele usa Atonement para também subverter essas convenções já

recorrentes nos romances pós-modernos: obras que, buscando romper com a

representação narrativa da realidade, costumam apresentar finais ambíguos, em que não

se oferece ao leitor nenhuma segurança sobre o que aconte-ceu “de verdade” e aquilo

que não passou de ilusão criada pela narrativa. O epílogo de Atonement toma um

caminho totalmente distinto ao deixar claros vários elementos da trama que são cem por

cento ficcionais, porque a própria “autora” do romance nos revela que são fabricações

suas. Isto é, sabemos que Cecilia e Robbie não ficaram juntos, que nunca tiveram a

chance de viver seu amor, de gozar da companhia um do outro, nem mesmo por um

único dia — apesar de haver uma cena descrevendo precisamente a ocorrência de um

momento desses, na terceira parte do livro.

Resenhas como as de Brian Finney concluem que, no romance, Briony pode

estar “implici-tamente reconhecendo a contradição no centro de sua narrativa — a

impossibilidade de evitar a invenção de falsas ficções em torno dos outros, ao mesmo

tempo em que se lhe é exigido que entre imaginativamente em suas vidas” (FINNEY,

2004, p. 82, tradução nossa). Entretanto, como Alistair Cormack destaca, no romance de

McEwan, pelo contrário, o que se percebe é uma nítida leitura “anti-pós-modernista”,

nesse sentido:

[Um] lugar em que deveríamos testar essa leitura anti-pós-moderna é

no encerramento de Atonement, quando a autoconsciência do texto é o

mais óbvia possível. Ficamos sabendo que a seção ambientada em

Balham é uma invenção — que Robbie e Cecilia morreram — e

somos forçados a reconhecer o caráter de fabricação desse mundo em

que estivemos imer-sos. [...] Embora Atonement decerto queira que

sintamos o impacto de sua ambiguidade, como leitores nós sentimos

compaixão por Briony e admiramos sua sincera autoanálise, ao

mesmo tempo em que ficamos desolados com a morte de Robbie e

Cecilia. Mas parece ha-ver poucas incertezas no fim. Para que o

romance pertença ao mundo do pós-moderno — para que se possa

afirmar, como Finney sugere, que inventar falsas ficções é inevitável

—, é preciso haver dúvidas sobre o que realmente aconteceu. Aqui,

não há nenhuma. O real, contra o qual Briony se debate, como fez no

caso do [suposto crime de Robbie], é a inevi-tável verdade da morte

dos dois amantes (CORMACK, 2013, p. 81, tradução nossa).

Diante disso, fica a pergunta: o que a metaficção em Atonement quer nos dizer

então?, a que propósito ela serve?

4. Realidade e imaginação

Para Cormack, “a metafição em Atonement não está ali para apresentar ao leitor

a inevitável penetração do fictício no real. Em vez disso, o romance serve para mostrar

que esses dois mundos são inteiramente distintos: há o mundo do real e o mundo da

literatura, e ai de quem confundir os dois!” (ibid., p. 82, tradução nossa). Na obra,

McEwan, ao pôr em questão também algumas con-venções pós-modernas, acaba nos

P á g i n a | 833

levando a outras reflexões a respeito da ficção e sua relação com a vida, sobretudo com

a vida interior de cada um de nós, nossa experiência imaginativa.

James Wood, aludindo à obra Victorian fiction and the insights of sympathy [A

ficção vito-riana e os discernimentos da compaixão], de Brigid Lowe, destaca que, para

essa autora,

a pergunta sobre o caráter referencial da ficção — a ficção faz

afirmações verdadeiras sobre o mundo? — é descabida, porque a

ficção não nos pede para acreditar nas coisas (num sentido filosófico),

e sim para imaginá-las (num sentido artístico): “[...] Quando contamos

uma história, mesmo querendo ensinar uma lição, nosso objetivo

primário é gerar uma ex-periência imaginativa”. Ela propõe que

retomemos o termo retórico grego hypotyposis, que significa pôr algo

diante de nossos olhos, dá-lo vida (WOOD, 2012, p. 191).

Isso é algo que Atonement faz, sem dúvida alguma: põe algo diante de nós e dá-

lhe vida, fazendo-nos envolver e impressionar com uma história desmentida ao final,

não porque nos faz acreditar nela apesar do desmentido, mas porque nos faz imaginar

toda aquela “realidade” inventa-da, afetando-nos com essa experiência. De modo que

sentimos o impacto tanto da história, quanto da história dentro da história. O romance

consegue nos provocar empatia tanto em face da tragédia de Cecilia e Robbie (de que a

maior parte é admitida invenção de Briony), quanto em face do pró-prio drama da

“autora”, desde o começo consciente do abismo que separa ficção e realidade. A

consciência de que é tola e inútil toda esperança de reparar o irreparável:

[H]ow can a novelist achieve atonement when, with her absolute

power of deciding out-comes, she is also God? There is no one, no

entity or higher form that she can appeal to, or be reconciled with, or

that can forgive her. There is nothing outside her. In her imagination

she has set the limits and the terms. No atonement for God, or

novelists, even if they are atheists. It was always an impossible task,

and that was precisely the point. The attempt was all (McEWAN,

2002a, p. 350-351).28

A tentativa, ainda que inútil, era tudo, justamente porque permitia essa

experiência. Daí, porque Briony, apesar dos fatos inexoráveis da realidade que ela

conhece tão bem, diz que, ao leitor que teimar em perguntar o que de fato aconteceu,

responderá: “the lovers survive and flourish. […] I gave them happiness, but I was not

so self-serving as to let them forgive me. Not quite, not yet” (ibid., 250-251).29

Essa

experiência imaginativa gerada pela ficção é o único contexto em que a reparação é

possível. Por isso Briony demonstra certa ansiedade ao comentar que, depois que ela

28

“[C]omo pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a

história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela

possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua

imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os

romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente

essa a questão. A tentativa era tudo” (McEWAN, 2002b, p. 443-444). 29

“… o casal apaixonado está vivo e feliz. [...] Dei-lhes felicidade, mas não fui egoísta a ponto de fazê-

los me perdoar. Não exatamente, não ainda” (ibid., p. 443-444).

P á g i n a | 834

morrer, assim como os últimos personagens citados no livro que ainda estão vivos, e o

livro for enfim publicado, todos existirão apenas como invenções suas, inclusive ela

própria. “Briony will be as much of a fantasy as the lovers who shared a bed in Balham

and enraged their landlady” (ibid., p. 350).30

Em seu ensaio, Cormack conclui, em sentido contrário ao que argumentamos

acima, que Atonement constitui também uma crítica a essa experiência imaginativa

provocada pela ficção (CORMACK, 2013, p. 82). No entanto, essa posição fica difícil

de se sustentar não só quando le-vada em consideração a numerosa obra literária de

McEwan, cuja leitura corrobora nossos argu-mentos, como também colide com o que o

próprio autor afirma em uma entrevista, ao comentar os momentos em que sente estar

perdendo a “fé na ficção”:

Somos criaturas visuais. Quarenta por cento de nossos cérebros estão

envolvidos com o processamento de dados visuais. Nossa língua está

saturada de referências visuais, bem mais que qualquer outro sentido.

A chave para as emoções, sentimentos e para o redemo-inho dos

intercâmbios humanos é mais bem ajustada se você consegue capturar

a essência visual corretamente. [...] [Quando uma narrativa consegue]

[c]apturar um único detalhe [dessa essência visual, ela] é capaz de

fazer reviver meu prazer com a escrita: e se esse de-talhe for

vertiginoso, isso me deixará muito satisfeito (COOK; GROES; SAGE,

2013, p. 154, tradução nossa).

Sem dúvida, assim acontece porque essa “essência visual” que a literatura

captura induz uma experiência imaginativa, que, por vezes, consegue ter um efeito

“vertiginoso” sobre quem lê. Além disso, deve-se considerar na via escolhida por

McEwan em seu romance — pondo em questão também as convenções do ambíguo nos

romances pós-modernos, dos limites incertos e indefiníveis entre o acontecido e o não

acontecido no plano diegético — uma retomada daquela visão expressa por Umberto

Eco, quando escreve que a função de algumas narrativas de interpretação menos ambí-

gua e flexível é que,

contra qualquer desejo de mudar o destino, [elas] nos fazem tocar com

os dedos a impossi-bilidade de mudá-lo. E assim fazendo, qualquer

que seja a história que estejam contando, contam também a nossa, e

por isso nós [as] lemos e [as] amamos. Temos necessidade de sua

severa lição “repressiva”. [...]. [Essas narrativas] nos ensinam também

a morrer.

Creio que essa educação ao Fado e à morte é uma das funções

principais da literatura (ECO, 2003, p. 21).

Em se tratando de McEwan, levando em conta sua confessa obcessão por

ciências naturais, empíricas, não é coerente concluir que, em sua literatura, haja uma

rejeição do real. Somando-se isso à famosa insistência do autor em abordar temas que a

maioria das pessoas prefere evitar, não seria precipitado nem absurdo concluir que

30

“Briony sera uma personagem tão fictícia quanto os amantes que dormiram na mesma cama em

Balham, indignando a proprietária” (ibid., p. 443).

P á g i n a | 835

Atonement seja um romance que desconstrói a mimese realista justamente com o

objetivo de chamar a atenção para a distinção entre o real e o fictício, o poder divino

que um autor pode exercer neste mundo enquanto é impotente naquele. Traduz, por-

tanto, a ideia de Eco: da narrativa ficcional como um discurso que educa para a dureza

da realidade e a inevitabilidade de certos fatos da vida, dos quais a morte é o mais

emblemático.

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P á g i n a | 836

DISCUTINDO UMA NOVA MODALIDADE DE ENSINAR E APRENDER UMA

LÍNGUA ESTRANGEIRA COM UM OLHAR NA PROPOSTA DO PÓS-

MÉTODO

Arnon Alves ROCHA (UNEB)31

Resumo: Fruto de uma reflexão sobre o tema em pauta, esta comunicação tem por

finalidade discutir e elaborar novas estratégias de ensino e aprendizagem de Língua

Estrangeira (LE) com base na pedagogia do pós-método estabelecida por

Kumaravadivelu (2003), cujo objetivo central é desenvolver a autonomia de professores

e alunos. A metodologia a ser utilizada será o diálogo compartilhado com os

participantes deste evento. Para isso, é apresentada uma avaliação de como tem sido a

atuação dos métodos de ensino de língua estrangeira (LE) até então, sugerindo-se uma

proposta de abordagem de aprender e ensinar, na qual os métodos não têm influência

única na atuação desses interlocutores. Para tanto, serão abordados os três parâmetros

sugeridos por Kumaravadivelu (2003): a) a pedagogy of particularity, b) a pedagogy of

practicality e c) a pedagogy of possibility. Com base nesses princípios, o intento é

chegar mais próximo de um contexto sociocultural de aprendizes e professores, numa

tentativa de articular teoria e prática, visando um novo modo de trabalho mais útil,

através do qual professores e alunos tenham uma melhor consciência de seu papel, e

construam juntos a sua própria filosofia de ensinar e aprender línguas, compatível com

seus contextos particulares, possibilitando uma nova educação linguística.

Palavras-chave: Pedagogia do pós-método; Ensinar e aprender LE.

1. Introdução

Abordar os métodos de ensino e aprendizagem de Língua Estrangeira (LE) tem

sido um dos assuntos mais debatidos na área da Linguística Aplicada. Trata-se de um

contexto bastante polêmico, entre outras razões, pelo fato de que a maioria das escolas

bem como os professores de línguas têm-se valido de tal condição, ora encontrando

pontos positivos, ora pontos negativos para expressar satisfações e insucessos, a

depender de como esses métodos vêm sendo utilizados.

Diante do fato, este artigo vem dialogar sobre algumas questões que precisam

ser mais bem esclarecidas. Partiremos de um breve panorama do que foram esses

métodos e como foram usados. A partir disso, mostraremos outras tentativas de ensino

que tiveram o intuito de ampliar a perspectiva dos métodos, no caso, referimo-nos às

abordagens. E, no final, traremos a proposta de um pós-método sugerida por

Kumaravadivelu (2001), que estabelece três parâmetros básicos para a abordagem do

professor, denominados: a) a pedagogia da particularidade, b) a pedagogia da prática e

c) a pedagogia da possibilidade.

2. Uma breve comentário sobre os métodos

31

Professor de Língua Inglesa e Linguística Aplicada na Universidade do Estado da Bahia, Mestre em

Letras com foco da pesquisa em Linguística Aplicada ao Ensino e Aprendizagem de Língua Estrangeira.

Correio eletrônico: < [email protected]

P á g i n a | 837

Basta lembrarmos do “Grammar Translation Method”, por exemplo, que, de

acordo com Richards (2001), perdurou um século, de 1800 a 1900. Segundo esse

mesmo autor, essa foi a maneira mais prática de se trabalhar com as línguas clássicas da

época, como o grego e o latim. Vale ressaltarmos que, ainda hoje, esse método continua

transitando, de uma forma ou de outra, pelas nossas aulas de língua estrangeira.

Quadro 1 – Métodos de Richards desde 1800 até os dias atuais

MÉTODO PERÍODO

– Grammar Translation 1800 – 1900

– Direct Method 1890 – 1930

– Structural Method 1930 – 1960

– Reading Method 1920 – 1950

– Audiolingual Method 1950 – 1970

– Situational Method 1950 – 1970

–Communicative Approach 1970 – present

Fonte: Elaboração própria, adaptado de Richards (2001, p.3).

Através desse Quadro, é possível perceber que, de um método para outro, há

uma distância de tempo muito grande. Do Grammar Translation para o Direct Method,

por exemplo, há um século de tempo, mas isso não significa que, durante a utilização do

Direct Method em sala de aula, tivesse sido descartada a possibilidade do uso do

método anterior. Esses métodos sempre se aproximam entre si, porque um método

sempre requer um pouco de outro método para se completar, na sua operação de ideal

esperado. São perceptíveis, em cada um deles, bases estruturalistas seguidas de

propostas funcionalistas, como é o caso, por exemplo, do Communicative Approach.

Isso quer dizer que o tempo, por si só, não foi possível e nem suficiente para

corresponder a uma fase exaustiva de cada método.

O Direct Method (1890-1930), em oposição ao Grammar Translation Method,

trouxe como novidade o uso exclusivo da língua-alvo, porém prescrevendo não apenas a

forma como a língua deveria ser ensinada, mas também técnicas de perguntas e

respostas, bem como sequência de ordem gramatical, ou seja, apresentava uma

hierarquia sobre qual estrutura gramatical deveria anteceder determinados assuntos ou

não.

3. Algumas insatisfações com os métodos

Várias insatisfações têm marcado a trajetória dos métodos, entre elas, o fato de

já trazer prontas as estratégias de ensino sem uma preocupação com o contexto real de

seus interlocutores: professores e alunos. Para Prabhu (1990), uma das causas do

insucesso com o método é que, em muitos casos, os professores o aplicam sem refletir

por qual razão o utilizam, uma vez que, na maioria dos casos, os professores não se

identificam com ele.

P á g i n a | 838

Uma das explicações para o fato é que esses métodos geralmente são construídos

pelos mesmos autores considerados consagrados, que, por isso, se valem muito de

teorias formais também advindas de outros autores famosos que, na maioria das vezes,

nem sequer conhecem o ambiente cultural onde o método está sendo aplicado.

Promovem, às vezes, o desrespeito à cultura alheia através das insinuações de sentidos

presentes em suas lições.

Outra crítica é que nem sempre o professor sabe conduzir tais métodos,

conforme a sua metodologia e procedimentos. Outro ponto insatisfatório é que o

professor é induzido a seguir determinado método, mas não há uma adaptação natural,

entre outros fatores, a distância de sintonia com a realidade do professor que esse

método apresenta. No método, nem sempre há espaço para o questionamento e diálogos

entre professores e alunos. Seus passos já vêm pré-escritos por pessoas consagradas,

muitas vezes desconhecidas, porém autoridades no assunto, e por isso descarta-se o

questionamento, cedendo-se à utilização obrigatória que, como consequência, pode

gerar resultados negativos, entre eles, o mais crucial, a falta de aprendizagem. Nesse

sentido, o método não passa de um rol de obrigações consagradas e reafirmadas por um

grupo particular que apresenta desde os interesses ideológicos aos econômicos.

Cremos que, no dia em que o professor sentar com seus alunos, coordenadores,

diretores de institutos, etc., e discutir os conhecimentos mais necessários para a

formação cultural de seus aprendizes, instrumentos de aprendizagem surgirão

naturalmente a partir de tais reflexões. Fica muito estranho fazer um planejamento de

curso, discutindo questões locais e, via de regra, apresentar recursos didáticos

completamente distantes das demandas esclarecidas.

Enfim, os métodos mostram como o professor deve dar aula, mas não mostram

como ele deve interferir na aprendizagem do aluno. Como resultado, presenciamos o

fracasso, e geralmente, quando queremos superar essa situação, sempre procuramos

outro método que possa nos dar a solução do problema, fato que nunca acontece. Cria-

se, então, um círculo vicioso, sempre no sonho da renovação, porém sem ir muito longe.

Lembramos o caso da proposta de um método eclético, ou seja, uma maneira em que se

pudesse mesclar estratégias de vários métodos diferentes durante as aulas de língua

estrangeira, mesmo assim, por esse viés, a problemática do ensino e aprendizagem de

LE não foi resolvida.

4. Uma breve explicação do conceito de abordagem de ensino

Muitos têm sido os conceitos de abordagem de ensino. Essa perspectiva acata os

métodos e, além disso, nos traz elementos como intuição e experiências vivenciadas

pelo professor. Anthony (1963, p.63; 67) faz uma comparação entre método e

abordagem:

Uma abordagem é um conjunto de pressupostos correlacionados com

a natureza do ensino e aprendizagem de línguas. Uma abordagem é

axiomática. Ela descreve a natureza da matéria-prima a ser ensinada

[...] O método é um plano completo para a apresentação da linguagem

de forma organizada sem nenhuma contradição em suas partes e tudo

isso é baseado na abordagem selecionada. Uma abordagem é

axiomática, um método é procedimental. [...] Uma técnica é

P á g i n a | 839

implementacional. [...] É um truque, enganoso, ou contrastivo usado

para compartilhar um objetivo imediato. (Tradução própria).

Compreendendo as contribuições específicas de alguns autores, como Richard e

Rodgers (2004), Anthony (1963) e Almeida Filho (2005b), estudiosos do assunto,

apresentamos algumas relações que eles fazem entre métodos e abordagens.

Anthony se preocupou em esclarecer os termos básicos da abordagem, métodos

e técnicas; Richard e Rodgers (1982) já se preocupam em desenvolver um modelo que

descreva e permita comparar os métodos; e Almeida Filho (1997 b) objetiva esclarecer

o funcionamento complexo do que seja um método e uma abordagem, aproximando-se

mais do modelo de Anthony. Então, para Almeida Filho (1997, p.13: b)

[...] abordar ou ocupar-se do ensino de uma nova língua significa,

entre outras coisas, tratar de enfocar, conceber, dar direção,

aproximar-se de, acercar-se de, encaminhar, dar forma e sentido à

tarefa de auxiliar profissionalmente aqueles que se candidatam a

aprender essa língua-alvo.

Nesse sentido, um conjunto de regras fixas e formais como guia exclusivo de um

professor de línguas não dará conta da dinâmica social do que deve ser a sala de aula.

Prabhu (1992) considera a aula como um evento de muitos tipos diferentes nos quais

podemos encontrar uma sequência curricular planejada, um caso de método de ensino

em uso, uma atividade social padronizada e um conjunto de personalidades humanas.

Abordagens e métodos são duas condições de ensino distintas. Para Antony

(1963, p.64), abordagem é “[...] um conjunto de pressupostos correlacionados que

tratam da natureza do ensino e aprendizagem de língua. Uma abordagem é axiomática.

Descreve a natureza do assunto que está sendo ensinado”. O método é um plano global

de apresentação ordenada de materiais.

Uma abordagem sempre vai além do que os métodos podem fazer, pois, além de

acatar procedimentos técnicos, também utiliza as experiências acumuladas do professor,

sentido que não é acatado pelos métodos. Estes se limitam a teorias e ao fazer formal,

prescrevendo sempre o que o professor deve fazer.

Conferindo-se métodos e abordagens, sem a intenção de eleger um em

detrimento do outro, observamos que o processo de ensino e aprendizagem de LE é algo

bastante político e cultural, por isso seu destino deve trilhar os rumos da relatividade

cultural, isto é, como as coisas acontecem em seus respectivos espaços. Essa ideia de

espaço demarca um território linguístico com características particulares, por isso

precisamos ir além dos métodos e técnicas e das abordagens até então propostas.

5. A visão de Pós-Método

Imaginamos que falar em pós-método não significa desconhecer o quão útil a era

dos métodos foi e ainda tem contribuído e vem contribuindo para as nossas práticas

pedagógicas e linguísticas. O nosso propósito neste trabalho não é tentar descartá-los,

mas mostrar que uma postura de ensinar e aprender línguas apenas por esse viés não se

P á g i n a | 840

torna justo, diante das necessidades sociais vigentes. É a partir desse reconhecimento

atrelado ao reconhecimento de que as coisas mudam, e com essas o mundo também

muda, que queremos avaliar as propostas colocadas por um dos estudiosos do assunto.

Kumaravadivelu (2003, p.34-36) propõe três parâmetros para se construir uma

boa prática pedagógica: “Particularity, practicality e possibility” (particularidade,

prática e possibilidade), tradução minha. Esses elementos devem estar, segundo o autor,

coacoplados a outros atores da educação além do professor em sala de aula.

Desse modo, Kumaravadivelu propõe uma pedagogia do pós-método. Com essa

proposta, não queremos dizer que os métodos nunca foram úteis e muito menos dizer

que não precisamos mais deles. A nossa intenção é avaliar a sua importância e utilizar

os procedimentos mais necessários de acordo com as necessidades particulares e

contextualizadas de nossos aprendizes e professores.

6. Justificativa de uma proposta com base na pedagogia do pós-Método

Diante da revolução pela qual o mundo tem atravessado, somada aos grandes

avanços da ciência e tecnologia e às posturas políticas mundiais com sinais de viradas

políticas no que concerne a um governo mais laico, democrático e assistente do ponto

de vista dos direitos humanos, fica muito claro que todas as nossas relações sociais só

são possíveis através de linguagem. É nesta que o homem encontra o seu relativo lugar

de movimentos e reivindicações pessoais e coletivas.

Desse modo, entende-se que o uso da linguagem em nossas práticas sociais seja

algo mais do que útil na concretização de nossos objetivos. Várias tentativas já foram

feitas no que diz respeito ao ensino e aprendizagem linguística por esse viés. A

abordagem comunicativa, por exemplo, orientada por posturas teóricas funcionalistas,

transformadas em método comunicativo de línguas, tem estado presente na maioria das

abordagens de nossos professores de línguas em todo o mundo.

Para Kumaravadivelu (1993), essa abordagem promove interpretação, expressão

e negociação do significado. Isso quer dizer que os nossos alunos se tornam mais ativos

e participativos gerando mais necessidade social de interação. Esse impulso também

leva o aluno para além da sua condição de memorizar padrões de frases e regras

gramaticais, colocando-o numa situação de socialização e construção e reconstrução dos

conhecimentos linguísticos com os quais ele convive.

Nesse sentido, trazer a linguagem para nosso convívio diário é o grande desafio

e, muito mais, transformar esse desafio em estratégias práticas de ensino, de forma que

possa ajudar seus usuários a utilizá-las de forma mais plausível. É diante disso que

pedagogos e pensadores da educação, como Dewey (1959),.Paulo Freire (1980) e

muitos outros, têm mostrado a necessidade constante de transformação.

Kumaravadivelu (2003) propõe uma pedagogia do Pós-Método – “postmethod

pedagogy”. Para ele, essa pedagogia tem de ser sensível aos grupos particulares de

aprendizes e professores. Ele acredita que, assim como toda política é local, a pedagogia

também tem de ser local (KUMARAVADIVELU, 2001). Com isso, ele sugere três

parâmetros básicos como referência: a pedagogia da particularidade, a pedagogia da

prática e a pedagogia da possibilidade.

P á g i n a | 841

7. A pedagogia da particularidade

Kumaravadivelu (2001, p. 538) diz que a pedagogia da linguagem, para ser

relevante, “[...] deve ser sensível ao grupo particular de professores ensinando a um

grupo particular de aprendizes seguindo um conjunto de metas dentro de um contexto

particular institucional incorporado a um meio social particular”.

Nesse sentido, o autor nos mostra que não devemos mais primar por uma

pedagogia formal, a qual traz seus objetivos e procedimentos técnicos já definidos para

serem aplicados na sala de aula. Trata-se de uma proposta na qual se inclui o holístico,

já que vamos tratar das subjetividades e particularidades humanas. O ensino, nesse

aspecto, não é visto apenas como uma condição técnica, mas humanizadora e social.

Enfim, esta pedagogia significa um processo em ação e transformação, ao invés de,

exclusivamente, uma busca por um resultado final.

8. A pedagogia da prática

O autor nos deixa claro que essa pedagogia não pertence meramente às práticas

de ensino do dia a dia, mas a um problema muito maior, que tem um impacto direto

com a prática na sala de aula: o que conhecemos como a relação teoria e prática.

Alguns autores, como Prabhu (1990), Almeida Filho (1997 a) e outros, chamam

sempre a atenção para essa questão, que deve ser encarada como um processo dialético,

através do qual os professores possam teorizar suas próprias experiências, sem a

obrigação apenas da busca de teorias formais, criadas por outros autores. É de grande

importância que os professores divulguem suas teorias pessoais, porque elas são

individuais e marcam, de forma mais concreta, o seu percurso de ação.

9. A pedagogia da possibilidade

Este parâmetro toma como base a “pedagogia crítica” de Paulo Freire.

Educadores, de um modo geral, tais como Giroux e Simon (1999, p.375), “[...] o projeto

da possibilidade requer uma educação enraizada numa visão de liberdade humana como

o entendimento da necessidade e a transformação da necessidade”. Nessa perspectiva,

entendemos que é possível explorar as regras do Inglês em uso e examinar, de forma

crítica, as condições que deram ascensão a essas regras. Sendo assim, a pedagogia da

possibilidade, além de trazer autonomia para seus participantes, também lhes traz poder

e aponta para “[...] a necessidade de desenvolver teorias, formas de conhecimento e

práticas sociais que funcionam como as experiências que as pessoas trazem para o

cenário pedagógico” (GIROUX, 1988, p.134).

Para um melhor desempenho linguístico no percurso de uma aprendizagem de

uma língua estrangeira, Kumaravadivelu (2003) propõe um quadro macroestratégico.

Aqui, apresentamos algumas de suas macroestratégias propostas:

Macoestratégia 1: criar oportunidades de aprendizagem na sala de aula

P á g i n a | 842

Esta primeira estratégia baseia-se na crença popular de que o professor não deve

ir à sala de aula com o intuito de ensinar a língua, mas, ao invés disso, criar condições

através das quais os estudantes possam desenvolver suas estratégias próprias. Dessa

forma, o estudante pode construir sua própria autonomia. Não há uma obrigação de

seguir determinadamente um plano de aula oficializado pela instituição onde

professores e alunos atuam, e sim que, na sala de aula, todos em conjunto construam os

seus saberes de linguagem.

Macroestratégia 2: utilizar as oportunidades de aprendizagem criadas pelos

próprios alunos

Essa segunda estratégia está diretamente ligada à primeira e baseia-se na

premissa de que professores e alunos devem compartilhar os discursos durante as aulas.

Embora o professor seja reconhecido como uma autoridade competente em seus

conhecimentos, deve apenas atuar como mais um participante do grupo, demonstrando

força de vontade para que seus alunos se sintam livres em seus pronunciamentos, ao

invés de se posicionar como um ditador de normas de seu grupo.

Macroestratégia 3: facilitar a interação negociada entre os participantes

A terceira estratégia refere-se a uma interação mais significativa entre aluno e

aluno, professor e professor na sala de aula. Isso significa que o aluno deva ter uma

participação mais ativa durante os discursos no que concerne a tomada de decisões,

clareza dos fatos e conhecimentos, confirmações etc. Isso significa que o estudante

tenha a liberdade de interagir ao invés de ficar em silencio ou obrigatoriamente seguir o

professor.

Macroestratégia 4: ativar a heurística intuitiva do aluno

A quarta estratégia baseia-se no fato de que todos os seres humanos

automaticamente possuem intuições próprias. Esse processo cognitivo ajuda a assimilar

os padrões e regras do comportamento linguístico. Uma maneira de ativar a heurística

intuitiva é fornecer dados suficientes para que os alunos possam inferir e internalizar

regras subjacentes a partir de seu uso em contextos comunicativos variados.

Macroestratégia 5: contextualizar o conhecimento linguístico

A quinta estratégia baseia-se na visão psicolinguística de que a compreensão e a

produção envolvem, muito rápido e de forma simultânea, a integração entre sintaxe,

semântica e o fenômeno do discurso. Isso significa que o conhecimento linguístico deve

ser apresentado aos alunos em unidades de discurso de forma que eles possam se

beneficiar dos efeitos interativos dos vários componentes linguísticos. Se as sentenças

forem introduzidas de forma isolada, os alunos vão se sentir privados das sugestões

pragmáticas necessárias, tornando assim o processo de construção de significados mais

difícil.

10. Considerações finais

P á g i n a | 843

Nosso trabalho se iniciou apresentando um quadro panorâmico sobre a trajetória

dos métodos em nossa história de ensinar e aprender línguas, especificamente línguas

estrangeiras. Fizemos também um esclarecimento do que foi a tentativa de um ensino

através de abordagens, comparamos com as propostas dos métodos e técnicas e

percebemos que nenhuma dessas tentativas durou para sempre. As mudanças sociais

serviram, entre outros fatores, de instrumento transformador em nossa pedagogia de

ensino.

Com o advento da globalização, a ideia de língua homogênea começa a perder a

sua força, dando lugar a uma heterogeneidade linguística, porque os sentidos se tornam

mais relativos, diversificados e instáveis. Não há, nesse aspecto, espaço para a fixidez e

rigidez dos fatos. Tudo se torna bastante mutável e instável na sociedade.

É a sociedade em movimento gerando novos movimentos. Lutas constantes

pelos direitos humanos, questões de gênero, culturais, entre outros fatores afins, são

indícios da busca de uma nova era em nossas aprendizagens linguísticas. É o mundo se

transformando como um todo e, consequentemente, as transformações individuais. As

identidades tornam-se fragmentadas para ceder a esse processo tão envolvente. É

também um momento de reflexão linguística, já que o mundo é criado através da

linguagem.

Foi nesse sentido que o nosso artigo buscou trazer o diálogo com a premissa do

“Pós-Método”, a fim de mostrar um novo olhar para nossas salas de aula de língua

estrangeira (LE), visando pensar em novas estratégias de ensino.

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P á g i n a | 845

O EXAME CELPE-BRAS E O LIVRO DIDÁTICO DE PLE: UM OLHAR

SOBRE A PRODUÇÃO TEXTUAL

Mariana Lins ESCARPINETE (UFPB)

Thiago Magno de Carvalho COSTA (UFPB)

O ensino de Português brasileiro como língua estrangeira (usualmente PLE) tem

adquirido forma relevante no cenário das línguas estrangeiras atualmente, graças à

visibilidade que o Brasil tem conquistado. Nesse sentido, observa-se que a busca

progressiva por se aprender o português tem possibilitado o avanço nos estudos sobre o

ensino mais eficaz dessa língua. Tal fato incita a união das atuais teorias linguísticas

com métodos/abordagens de ensino de línguas estrangeiras que consideram o sujeito

como parte ativa da/na sociedade, como agente de transformação que interage com o

seu meio através da comunicação. Unido a esses elementos relevantes que compõem

esse contexto de ensino, o exame CELPE-Bras de proficiência em PLE se faz de igual

modo essencial, pois se configura como o documento oficial de avaliação sobre a

competência do estrangeiro em relação ao uso da língua portuguesa. Mediante tais

condições, surge o objetivo do nosso trabalho, o qual busca observar o quanto tal exame

serve de fomentador das atividades propostas nos Livros Didáticos (LD) de PLE, a

saber, Novo Avenida Brasil 1 e 2 e Horizontes: rumo à proficiência em Língua

Portuguesa. O interesse pelo LD se dá, uma vez que se caracteriza como o locus de

convergência das teorias de ensino de língua e língua estrangeira com vias à formação

de um sujeito proficiente e consciente do seu papel no meio, devendo, portanto,

correlacionar a utilização dos gêneros textuais exigidos no CELPE-Bras e a

metodologia de ensino de PLE adotada pelos livros didáticos analisados. Para esse

estudo, baseamo-nos nos postulados de Almeida Filho (2011, 2007, 2009, 2001), Maria

Jandyra Cavalcanti Cunha (2002), e outros, no que diz respeito ao ensino de PLE,

CELPE-Bras e suas atribuições, bem como em Dolz, Schneuwly e Noverraz (2204),

entre outros no que diz respeito ao ensino de gêneros textuais, foco do CELPE-Bras.

Palavras-chave: PLE; Livro Didático; CELPE-Bras; Gêneros Textuais.

1. Introdução

É notória a atual visibilidade que o ensino do Português como Língua

Estrangeira (PLE) tem assumido no contexto de ensino de línguas estrangeiras como um

todo. Nesse sentido, faz-se necessário o desenvolvimento de discussões que visem à

melhoria dessa vertente de ensino, uma vez que ela se insere em uma espécie de

”entremeio” de práticas de ensino. Dito de outra forma, por se tratar do ensino da nossa

língua sob uma perspectiva estrangeira, concebe-se reflexões que estejam no bojo das

discussões sobre língua estrangeira, bem como das discussões sobre língua materna, no

concerne ao estabelecimento de efetivas condições de aprendizagem.

Ainda nesse neste domínio de discussão, vale ressaltar que além o ensino do

PLE apresenta algumas condições muito particulares de observação, no tocante ao fato

de não existir um documento oficial que o regulamente e/ou parametrize, levando a

algumas concepções de metodologias mescladas no que se considera eficiente tanto para

o ensino de uma língua estrangeira (abordagem/metodologia de ensino comunicativa,

P á g i n a | 846

por exemplo), quanto de língua materna (a eficácia do ensino pautado nos gêneros

textuais). Contudo, por ter adquirido um status de busca significativo, é identificável

algumas postulações bem específicas para este ensino, a saber, considerações pautadas

no que o exame de proficiência em Português como língua estrangeira espera do

candidato ao título. Assim, entra em cena um elemento específico para o PLE, que é o

exame CELPE-Bras, cuja finalidade é mensurar em que nível de língua os candidatos

interessado em fazê-lo se encontram. Como sua configuração é totalmente voltada para

a produção (oral e escrita) de gêneros textuais como termômetro das competências do

estrangeiro, ele serve de direcionador das práticas de ensino do PLE, preenchendo esses

espaços vazios os quais foram mencionados.

Em última escala, interessa observar um outro elemento de igual importância

para as aulas de PLE, pois, no ensino como um todo, é comum sua importância

enquanto instrumento de aprendizagem: o Livro Didático (LD). Este, por sua vez,

quando inserido no ensino de PLE, deve dar conta de levar o aprendente à proficiência

de forma gradual, direcionado pelo ensino de vários níveis de conhecimento de língua,

mas, defende-se aqui, que, para além, o LD deve ser direcionado pelo ensino dos

gêneros textuais, assim como está previsto no CELPE-Bras, pois proporciona uma

aprendizagem mais significativa da língua, uma vez que o aprendente é posto como

sujeito social, que constrói e modifica a sociedade através da língua, de forma mais

específica, concebendo o aluno estrangeiro como o indivíduo que faz parte da sociedade

da língua-alvo.

Com todas essas considerações postas, instaura-se a justificativa deste trabalho,

ou seja: apesar de não possuir um documento oficial que regulamente, nem que trace

orientações sobre o ensino de Português como Língua Estrangeira, entra em cena um

outro elemento que, indiretamente, serve a essa função, o exame de proficiência em

Língua Portuguesa CELPE-Bras. Nesse sentido, os materiais, como um todo, devem

utilizar das perspectivas pressupostas no exame, o qual se faz na prática de produção

de gêneros textuais. É com base nessa lógica que o presente trabalho se desenvolve,

propondo observar em que medida os livros didáticos em PLE “dão conta” da prática de

produção textual na formação de aprendentes proficientes.

Para tornar o estudo mais palpável, faz-se necessário refletir sobre os elementos

basilares do artigo em voga, portanto, partindo do que já foi exposto sobre o ensino de

PLE, a seguir, desenvolveremos uma discussão sobre, sobre o CELPE-Bras, sobre os

Gêneros Textuais e, partindo para a análise, sobre o Livro Didático em PLE.

• CELPE-Bras

Considerando as mais variadas formas de consolidação do ensino de PLE, o de

maior ênfase é O Exame de Proficiência em Língua Portuguesa (CELPE–Bras), uma

vez que seu caráter, como bem dito por Scaramucci (2001), “não se restringe apenas ao

efeito prático da avaliação, ou seja, à seleção de candidatos, mas deve ser considerada,

principalmente, sob o ponto de vista do seu efeito retroativo no ensino”. Foi criado a

partir da necessidade de um exame de proficiência que atendesse aos programas

internacionais, promovendo a certificação da comprovada proficiência de estrangeiros

que necessitam se integrar à vida no Brasil, como também aos estrangeiros que

necessitam usar o Português Brasileiro no exterior.

No Brasil, é exigido pelas universidades para ingresso em cursos de graduação e

em programas de pós-graduação, bem como para validação de diplomas de profissionais

P á g i n a | 847

estrangeiros que pretendem trabalhar no país. Algumas entidades de classe exigem o

CELPE–Bras para inscrição profissional, a exemplo do Conselho Federal de Medicina

(CFM), que exige esse certificado dos médicos estrangeiros para inscrição nos

Conselhos Regionais de Medicina (CRM).

É conferido em quatro níveis: intermediário, intermediário superior, avançado e

avançado superior. É fundamental ressaltar que o exame não é um diploma para

interessados em dar aulas de Português para falantes de outras línguas, uma vez que

essa função prevê habilidades e competências não avaliadas na prova. Destina-se a

cidadãos estrangeiros e brasileiros cuja língua materna não seja o português.

De modo mais específico, o exame (que segue uma prática metodológica

comunicativa) se desenvolve em 2 (dois) grandes momentos, a saber: uma parte escrita

e outra oral. No exame escrito, há quatro (4) solicitações de produção textual a partir de

quatro (4) instrumentos de compreensão. Logo, o aluno deve escrever quatro (4) textos

de acordo com uma solicitação de gêneros específicos, iniciando com a observação de

um vídeo que servirá de matéria base para a primeira solicitação/produção; passando

pela escuta de áudio, também fomentador de outra solicitação/produção; finalizando,

portanto, este primeiro momento do CELPE-Bras, com a leitura de dois (2) textos com

o mesmo intuito de promover duas solicitações/produções.

O segundo momento é de caráter oral. Logo a “conversação espontânea” ganha o

foco de observação. Esta se processa através de uma conversa instaurada pelo professor

avaliador, no tempo máximo de vinte minutos, em torno do chamado “elemento

provocador”. O professor escolhe até três elementos – os quais possibilitam o diálogo,

uma vez da sua temática ser de cunho jornalístico, ou literário, ou propagandístico, ou

de qualquer outra esfera de temática que sugere um posicionamento do

leitor/espectador.

Descrita aprova, cabe refletir sobre a matéria de principal interesse para que o

nível do aprendente seja aprendido, como base no próprio exame, os gêneros Textuais.

• Gênero Textual

Nas aulas de Português como Língua Estrangeira, o trabalho deve ser em torno

dos gêneros textuais – uma proposta indicada pelo próprio CELPE-Bras –. Assim, deve,

no mínimo, associar o desenvolvimento linguístico ao desenvolvimento do

conhecimento contextual, e do conhecimento das modalidades discursivas e seus

respectivos gêneros.

Nesse sentido, os alunos, quando inseridos nessa proposta de ensino, devem ser

capazes de produzir um leque diversificado de textos, reconhecendo a função de cada

um deles no processo de interação pela linguagem, pois “os conhecimentos que os seres

humanos possuem, sua identidade, seus relacionamentos sociais e sua própria vida são

em grande parte determinados pelos gêneros textuais a que estão expostos, que

produzem e ‘consomem’” (MEURER, 2000; 152). Logo,

Para que o aluno aprenda a escrever é necessário que ele, de fato,

escreva e que as situações de escrita sejam constantes e variadas.

Quanto mais o aluno escreve, quanto mais analisa o próprio

texto, quanto mais produz textos para atingir diferentes objetivos

P á g i n a | 848

em diferentes situações, mais ele pode ampliar suas habilidades de

produtor de texto escrito. (EVANGELISTA, 1998; 119 grifos nossos)

Em consonância com o CELPE-Bras, o qual prioriza o trabalho com a produção

de textos para a formação de escritores competentes, enfatiza-se a relevância dessa

atuação direta com os gêneros textuais nas aulas de PLE, o que já, por sua vez, encontra

respaldo no apresentado pelos PCN (este no tocante a Língua Materna) que entende

como competente alguém que: “ao produzir um discurso, conhecendo possibilidades

que estão postas culturalmente, sabe selecionar o gênero no qual seu discurso se

realizará escolhendo aquele que for apropriado a seus objetivos e à circunstância

enunciativa da questão” (PCN – Língua Portuguesa; 47).

O ensino de produção textual, portanto, deve se basear em um trabalho

pedagógico que vise à formação do aluno nesse perfil de escritor competente, é somente

através dessa abrangência da atividade de produção textual que o processo de ensino-

aprendizagem se realiza de forma eficiente e significativa, pois construindo um texto

empírico, que parta de condições de produção funcionalmente orientadas, que tenha um

interlocutor real e esteja dentro de uma situação comunicacional concreta é que o aluno

vai se envolver e perceber o sentido de seu fazer linguístico.

• Livro Didático de PLE

Para que o ensino de uma Língua Estrangeira se efetive, o docente deve ter a

mão uma gama de instrumentos que auxiliem na condução do processo, visando que o

aluno atinja tanto a aquisição quanto a consequente aprendizagem da língua alvo.

Muitos são os recursos possíveis para se lançar mão na tentativa de tornar o aprendente

“estrangeiro” proficiente. Sabemos que o meio mais tradicional – quando do ensino da

língua materna - é a utilização de um Livro Didático que consiga englobar os conteúdos

necessários/possíveis para dado nível de conhecimento, sendo também importante seu

papel de “bússola” no planejamento e andamento das aulas, conforme o tópico de

abordagem do momento. Desta sorte, com muita clareza, detectamos a função de

“protagonista” do Livro Didático no contexto de ensino de PLE, apesar de muitos ainda

se apresentarem de forma “coadjuvante” nesse processo. Nesse sentido, é necessário

que o LD assuma o papel de instrumento de formação discente, especificamente de

formação de aprendentes estrangeiros que devem se tornar proficientes na língua-alvo.

Em sendo assim, eles devem preconizar, além de atividades de cunho estrutural, além de

atividades que levem à ampliação vocabular – atividades de cunho semântico – é

essencial o trabalho com os gêneros textuais, as quais construam no aprendente o

conhecimento de língua voltado para a interação, para a comunicação. E será esse tipo

de direcionamento que propomos observar nos LD’s que serão descritos para reflexão.

Justificativa de escolha:

A escolha dos LD’s para análise foi possibilitada considerando duas realidades:

1. A abordagem de ensino comunicativa /interativa, que converge com o que

está subjacente ao CELPE-Bras; 2. O fato de esses livros terem um caráter de referência

no contexto de ensino de PLE. Assim, os materiais escolhidos foram: o “Novo Avenida

Brasil” (1 e 2), de autoria de Emma Eberlein O. F. Lima, Luiz Rohrmann, Tokito

Ishihara, Samira Abirad Iunes e Cristián Gonzalez Bergweiler (editora EPU). Tal

P á g i n a | 849

coletânea passou por um processo de revisão/edição rigorosa com o intuito de adequar

os textos e atividades tanto á nova realidade de comunicação existente, quanto teórico-

metodológica em vigência, ou seja, reestruturado a partir da necessidade de se adequar o

livro às transformações que o mundo viveu desde sua primeira edição.

Outro material selecionado para apreciação é o Horizontes: Rumo à Proficiência

em Língua Portuguesa, escrito por Adriana Almeida e Cibele N. Pedrosa, publicado em

2010 (editora LibreAr), em Buenos Aires. As autoras, professoras de PLE,

desenvolveram o material a partir de suas práticas em sala de aula, na interação com

alunos de PLE dos mais diferentes níveis. De acordo com as referidas, o método é

elaborado a partir dos princípios da abordagem Comunicativa e Intercultural.

Com base nessas descrições, partamos para a análise do pretendido. Vamos

observar de que maneira há o direcionamento à prática de produção textual norteada

pelo ensino dos gêneros textuais, constatando se, apesar de serem materiais didáticos de

comum visão de língua do CELPE-Bras, se eles vão à esteira do que se é solicitado pelo

próprio exame.

Selecionamos 3 atividades, uma em cada livro, que trazem algo relacionado ao

pretendido observar. A primeira foi retirada do LD Horizontes e traz uma proposta de

“redação”, vejamos:

Nessa atividade, fica evidenciada que a proposta é condizente com a prática de

produção textual específica ao gênero “carta”. O livro de cunho interacionista-

comunicativo, prevê esse tipo de reflexão ao aluno, fazê-lo entender a realidade social

do país da língua-alvo, além de desenvolver o trabalho de produção escrita, o qual não

se baseia do nada, se constrói a partir de leituras anteriores sobre a temática incitada na

produção. Contudo, vale ressaltar que não um momento no manual em si, cujo foco seja

o gênero “carta”. Talvez seja concebido como um gênero “universal”, em que as

propriedades de produção já sejam de domínio comum, independente da língua. Outra

P á g i n a | 850

leitura estaria no entendimento de que esse foco mais detalhado não cabe ao material,

mas ao direcionamento do docente em PLE.

De modo mais abrangente, é evidente a preocupação com a criação do contexto

de produção textual, com o papel do sujeito de poder intervir nos problemas que a

sociedade apresenta. Outro recurso de construção do conhecimento se faz não só nos

textos anteriores, mas na imagem apresentada que fortifica o conhecimento adquirido

nas mensagens anteriores. Observamos que o tipo de linguagem também é suscitado

quando se diz que o aluno deve-se colocar como “presidente” de uma associação de

bairro, limitando o texto à modalidade formal da língua.

Como um todo, a atividade está condizente como que instaurado pelo CELPE-

Bras, proporcionando o aluno de interagir na sociedade através do gênero, colocando-o

como parte, como indivíduo pensante nesse todo e não como um estrangeiro, distante de

discussões próprias da língua-alvo.

Outra atividade de relevante destaque, foi retirada do LD Novo Avenida Brasil

1. Aparentemente, o destaque é dado ao gênero “e-mail”, o que permite, a priori,

afirmar que há uma preocupação com o trabalho de gêneros textuais, contudo, ao olhar

atentamente à questão, fica evidente que a proposta não se baseia em algo tão

discursivo/textual, pois o gênero “e-mail”, serve, apenas, como pano-de-fundo da

atividade propriamente dita, conforme observamos na atividade abaixo:

A ideia central é desenvolver utilizar o gênero como matéria informativa para

que se desenvolvam as respostas dos aprendentes, sendo, então, elemento textual de

informatividade, que está para o nível do conteúdo do “e-mail”. No entanto, é possível

observar que até este recurso conteudístico do texto em questão, é desprezado na

atividade suscitado, pois a matéria de relevante é a questão verbal, a conjugação dos

verbos em destaque nos “parênteses” de cada alternativa.

P á g i n a | 851

Diante de tal realidade, é a partir de uma observação geral do livro, é possível

considerar que o trabalho com os gêneros textuais, de significativa importância no

CELPE-Bras, uma vez atuar como elemento de manifestação, que denota

conhecimento/competência linguística (em mio ao contexto, ao uso) do aprendente, é

renegado a outras questões, como no caso, estrutural. Não se pretende com isso dizer

que este tipo de reflexão, conforme aparece na atividade em voga, deve ser renegado em

prol do exclusivo trabalho com gêneros, mas é concebível que os LD’s tenham o

cuidado de atribuir esse valor nas suas páginas, pois é comprovada sua relevância para o

desenvolvimento da proficiência do falante.

A última atividade selecionada segue a mesma lógica da atividade anterior – até

porque se faz na sequência do material anterior -. Encontrada no Novo Avenida Brasil

2, a atividade apresenta o gênero “anúncio” para desenvolvimento das questões que

devem ser respondidas.

A reflexão se faz de igual modo da anterior, pois o trabalho não está focado no

gênero “anúncio”, nem em suas características estruturais, nem em características

linguísticas de desenvolvimento. Este serve de texto, cujo conteúdo serve de mote para

que as questões sejam respondidas. O diferencial está no fato da atenção ser não em

perguntas quanto aos aspectos estruturais, gramaticais da língua, todavia, o foco está no

caráter de desenvolvimento de interpretação do texto. O que não é um mau trabalho,

mas poderia ser aproveitado de modo a levar ao conhecimento do gênero “anúncio”,

mostrando seu propósito comunicativo e, por fim, levando a uma produção textual.

Portanto, com base nos expresso até aqui, para estes manuais, o trabalho com o

gênero textual ainda merece uma atenção maior. O foco deve ser variado sim, mas

interessa que o direcionamento apresentado pelo CELPE-Bras seja assumido no

trabalho em PLE, não só no que o professor deve fazer diante dessas atividades – até

P á g i n a | 852

porque é muito possível um encaminhamento aos gêneros suscitados nas atividades,

mas estando nas mãos do docente enquanto usuário do LD, ampliando seus enunciados

e propostas-, como também de forma explícita no próprio livro. Assim, o ensino de PLE

ganhará uma força maior e uma adequação aos moldes do que se tem como regulador

não oficial do ensino de PLE, a saber, o CELPE–Bras.

Conclusão

O presente trabalho se propôs à observação de algumas atividades de PLE

existentes nos LD’s selecionados para tal, com vias a reflexão sobre o que se é

desenvolvido quando o assunto é gênero textual, uma vez da aceitação de que este tipo

de ensino, pautado nas práticas de produção textual específicas aos mais diversos

contextos comunicativos, serve de aliado à uma efetivação da aprendizagem em PLE.

Aprendizagem essa diferenciada, visando à proficiência e a “desestrangeirização”

(termos cunhado por Almeida Filho, 2013) do aprendente em PLE.

Com base nisso, identificamos dois tipos de postura: a primeira, evidenciada

pelo apresentado no Livro Didático Horizontes, cujo trabalho com enfoque nos gêneros

textuais era pertinente, convergindo com o exigido pelo exame de proficiência; a

segunda postura é identificável nas atividades da coleção Novo Avenida Brasil,

apresentando uma ausência de questões específicas de ensino de gênero e de proposta

de produção textual, quando muito, os gêneros servem de recursos de informação para

que outros tipos de reflexão sejam feitos.

Portanto, finalizamos afirmando que os LD devem assumir também essa postura

de ensino de PLE, não pelo fato de que os manuais devem levar os aprendentes a se

saírem bem no exame CELPE-Bras, até porque nem todos se interessam em fazê-lo,

mas pelo fato de que este exame serve ao papel de regulador, de modelar das estratégias

de ensino de PLE que objetivam a proficiência, devendo ser assumidos no ensino como

um todo.

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P á g i n a | 855

A COMPREENSÃO LEITORA NO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA: UMA

PERSPECTIVA DA ENUNCIAÇÃO BAKHTINIANA

Antônio Flávio Ferreira de oliveira – PROLING/UFPB32

Ilderlândio Assis de Andrade Nascimento - PROLING/UFPB33

Resumo. Este trabalho objetiva investigar como a teoria da enunciação de Bakhtin e o

Círculo pode contribuir para, no ensino de Língua Inglesa, formar leitores capazes de

usar os signos nas diversas esferas de atividades sociais. Como suporte teórico,

usaremos os conceitos apresentados em Marxismo e filosofia da linguagem

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009); A estrutura do enunciado (VOLOCHÍNOV,

1930); O discurso na vida e o discurso na arte (VOLOCHÍNOV (1926); O método

formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica.

(MEDVIÉDEV, 2012); dentre outros. Como metodologia de trabalho, fundamentamos

esta pesquisa a partir de um estudo sistemático de cunho teórico, haja vista o rigor

conceitual no tocante ao desempenho lógico, a argumentação diversificada e a

capacidade explicativa nos acercamentos da teoria em questão. Os resultados estão

estabelecidos (ainda como parciais) no que conferem a compreensão leitora como o

produto da percepção da materialização da interação verbal de sujeitos históricos bem

como da forma linguística utilizada como um signo variável e flexível.

Palavras-chave: Enunciação. Compreensão leitora. Ensino. Língua.

1. Introdução

Este trabalho está, em linhas gerais, concentrado na grande área da Linguística e

de forma particular no campo dos estudos enunciativos a partir dos postulados oriundos

de Bakhtin e o Círculo. Para o planejamento deste estudo, partimos de um recorte

estabelecido a partir de alguns conceitos dessa vertente teórica. Dentre esses conceitos,

elencamos a noção de gênero discursivo, enunciação, enunciado e dialogismo, bem

como algumas categorias advindas desses conceitos.

O problema que intencionamos investigar foi elaborado a partir de algumas

perguntas exploratórias, sendo que na principal delas questiona: que contribuições os

estudos enunciativos de Bakhtin e o Círculo podem trazer para o ensino de língua

inglesa, mas precisamente para o desenvolvimento da competência leitora?. Essa

pergunta foi levantada devido ao fato dos conceitos dessa teoria apresentarem um

aparato que pode(ria) acarretar um efeito pertinente na formação do leitor no ensino de

línguas. Um dos critérios para que pudéssemos eleger essa teoria foi o fato de, no seu

campo epistemológico, ser abordado a interação como um dos aspectos principais

concernentes à linguagem. Desse modo, ao apresentarmos algumas contribuições,

entendendo-as, também, como propostas para o ensino de línguas (estrangeiras),

estamos, certamente, trabalhando com sujeitos que são formados a partir dos outros

sujeitos - sujeitos que dependem desses outros para se tornarem sujeitos.

32

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB), sob a orientação do

Professor Doutor Pedro Farias Francelino. 33

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB), sob a orientação do

Professor Doutor Pedro Farias Francelino.

P á g i n a | 856

Com isso, partimos da perspectiva de que a enunciação é compreendida como

materialização da interação verbal de sujeitos históricos que utilizam a língua para

expressar suas necessidades concretas. Neste sentido, o foco de investigação está na

forma assimilada na estrutura completa (linguístico-social) da enunciação como um

signo flexível e variável que é construído no processo de interação desses sujeitos

histórico-sociais.

Nosso objetivo geral destina-se, portanto, a investigar as contribuições da

enunciação bakhtiniana no desenvolvimento da compreensão leitora do estudante de

língua inglesa. Para isso, (i) pesquisamos nos estudos de Bakhtin e o Círculo postulados

que fornecessem um suporte para o desenvolvimento da competência leitora do

estudante de língua inglesa; e (ii) analisamos alguns enunciados concretos, visando

mostrar como os postulados bakhtinianos podem respaldar teórica e

metodologicamente o ensino de leitura em aulas de língua inglesa.

Para familiarizar o nosso leitor com as terminologias utilizadas no estudo,

queremos apresentar, em primeiro lugar, a noção de compreensão leitora. A partir dessa

noção, pensamos ser possível formar leitores cada vez mais competentes e capazes de

perceberem as informações que existem à parte da estrutura verbal dos enunciados

concretos. Destarte, cabe dizer que nas bases da teoria proposta, a compreensão leitora

aponta para a formação de um leitor capaz de compreender os julgamentos de valor (as

avaliações sociais) e os presumidos (o que está além da estrutura). Essa concepção

perpassa todo esse trabalho, juntamente com as discussões sobre gêneros discursivos,

enunciado concreto, entre outros.

Diante disso, este trabalho tem sua importância, principalmente, na área de

ensino de línguas estrangeiras, devido ao fato de poder expandir as discussões sobre o

desenvolvimento de competências para a leitura em língua inglesa a partir dos

postulados da enunciação bakhtiniana e do Círculo. Vale ressaltar que não estamos nem

queremos apresentar uma proposta inaugural – já se discutem sobre esse tema –, mas

nossa intenção é apenas apresentar esse recorte feito a partir do que pudemos

compreender dessa teoria. Vale salientar que essa pesquisa não se apresenta como

conclusa. Ainda estamos em fase de desenvolvimento e, por isso, podemos retomá-la

em outro momento, até mesmo com alguns novos apontamentos no foco investigativo.

Para o desenvolvimento deste estudo, foi feita uma pesquisa de cunho teórico,

que, por sua vez, constituiu-se em um importante instrumento profícuo para as

considerações voltadas para o ensino de língua inglesa. Assim, revisitamos alguns

textos considerados clássicos da teoria bakhtiniana, a saber: Marxismo e filosofia da

linguagem, de Bakhtin[Volochínov] (2009); A estrutura do enunciado, de Volochínov

(1930), O discurso na vida e o discurso na arte, de Volochínov (1926), dentre outros.

Dito isso, apenas para mencionar a organização retórica desse estudo,

apresentamos, a seguir, alguns pontos advindos dos estudos do Círculo e, logo depois,

apresentamos uma possível análise que envolverá essa fundamentação, servindo,

consequentemente, para ilustrar um possível momento de leitura a partir do aporte

teórico dos estudos de Bakhtin e o Círculo.

2. Em Bakhtin e o Círculo: contribuições para o ensino de língua

P á g i n a | 857

Nossa intenção, ao formularmos esse suporte teórico, é discutir alguns conceitos

que são relevantes como um aparato para fundamentar a contribuição da enunciação, no

ensino de Língua Inglesa. Assim, quando pensamos em língua, somos atravessados por

várias construções teóricas que formulam e estabelecem diferentes visões de

compreender esse “ente” complexo. Por um lado, retomamos a concepção estrutural

saussureana, que apresenta a língua como um sistema de unidades linguísticas,

ordenadas por um conjunto de regras. Essa concepção apresenta uma visão imanente de

língua e, por sua vez, isso não preconiza os fatores sociais como elementos

imprescindíveis para a construção de um sistema dinâmico, flexível, capaz de ser

reformulados pelo processo das diversas interações ocorrentes dos indivíduos. Nesse

sentido, a defesa que fazemos é a de que uma proposta para o ensino de língua faz

notório considerar essa característica inerente à língua como esse sistema dinâmico para

construir sentidos nas situações de interação dos sujeitos histórico-sociais.

No entanto, ao pensarmos a língua na concepção estrutural, somos levados a

construir uma perspectiva de ensino de língua perpassado pela ideia de que os

elementos relevantes são caracterizados pela gramática, pelo léxico e pela fonética.

Transmitimos aos nossos alunos os traços de uma visão normativa tradicional, ou seja,

ensinamos apenas regras de gramáticas, tradução de palavras e formas “corretas” de

pronúncias. Esse aspecto, cabe dizer, tem sua função dentro do ensino de língua inglesa,

mas não é suficiente para abarcar toda a complexidade inerente aos usos dos enunciados

concretos. Ao reduzirmos o ensino de língua apenas aos aspectos estruturais, não damos

importância para os fatores extra-verbais, sendo que esses são, na verdade, parte

constitutiva do enunciado concreto e, portanto, dos usos da língua nas diversas esferas

de comunicação.

Desse modo, pensamos numa concepção de ensino de língua que transcende a

visão estruturalista imanente. Em sentido específico, pensamos numa concepção de

ensino não apenas fixada à estrutura linguística, mas àquela que apresenta essa estrutura

imbricada à estrutura social. Podemos denominar esse vislumbre como um recorte de

língua oriundo da enunciação pensada por Bakhtin e o Círculo. Conforme Bakhtin

(2010), os anglos e visões são diferentes entre a linguística e translinguística; contudo,

por mais que as relações dialógicas aconteçam extra-linguisticamente, esse núcleo duro,

materialidade estrutural da linguística, complementa as relações dialógicas e vice-versa,

pois esse produto da materialidade são resultados das relações dialógicas. Assim, a

Linguística (como disciplina) e a Translinguística (proposta por Bakhtin) se apresentam

não como sendo excludentes, mas em uma relação de complementaridade. Isso implica

dizer que a analise, o ensino, da estrutura linguística precisa recorrer aos achados da

translinguística porque essa última analisa os enunciados concretos, ou seja, os usos da

língua nas situações sociais, abarcando tanto o aspecto verbal quanto o não-verbal.

O enfoque teórico desse pensamento compreende a língua como um fato social

fundamentado na necessidade de comunicação que os indivíduos têm para interagir nas

diversas esferas de atividade social. Quando pensamos a língua como um fato social,

estamos diante de algo que apresenta esse fato como produto e como processo da ação

de dois indivíduos – nesse caso, não existe um sujeito passivo e um outro ativo,

enunciador e ouvinte: os dois, ao mesmo tempo, têm essa característica na sua

constituição de sujeitos que usam a língua para os seus projetos enunciativos.

Ao usar a forma normativa num determinado contexto concreto, os sujeitos

históricos materializam sua interação verbal. Assim, para expressar suas necessidades

de comunicação, esses sujeitos servem-se da língua. Isso implica que a forma linguística

usada, contextualizadamente, toma a forma de um signo que se adéqua às condições

P á g i n a | 858

concretas de uma situação (cf. FLORES, 2009). Quando percebemos a forma linguística

como esse signo dinâmico, percebemos o caráter ideológico da linguagem, bem como

apreendemos que essa ideologia é uma reprodução das estruturas sociais. Se a língua

está perpassada pela estrutura social, “os sistemas semióticos servem para exprimir a

ideologia e são, portanto, modelados por ela” (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2009, p.

115).

A língua não está calcada num sistema de regras imutáveis, contudo, esse

sistema de signos dinâmicos está relacionado, indissoluvelmente, às condições pelas

quais os indivíduos necessitam para agirem socialmente. No que diz respeito aos signos,

na concepção de Bakhtin e o Círculo, estes estão relacionados à ideologia, ou seja, isto

implica numa relação direta entre as unidades da língua e suas funções na sociedade.

O signo é perpassado pelo produto da criação ideológica, ou seja, pelas

concepções de mundo e pelas crenças que formulam as diversas esferas de atividades

sociais. Como afirma Medvedev (2012, p. 50) “cada produto ideológico é parte da

realidade social e material que circunda o homem”. Como um produto ideológico, o

signo está inserido na realidade social, pois, nesse caso, a língua, além de expressar,

está atravessada pelas relações e pelas lutas sociais e, naturalmente, serve de

instrumento e de material para essas lutas e expressões (cf. BAKHTIN

[VOLOCHÍNOV], 2009).

Se por um lado, “o locutor serve-se da língua para suas necessidades

enunciativas concretas”, por outro, esse locutor “utiliza as formas normativas num

contexto concreto” (Ibid, p. 95 e 96). Essa relação corrobora a dependência que existe

entre a estrutura linguística e a estrutura social. Para produzir sentido pelo uso concreto

da língua, é preciso agregar os sistemas semióticos aos sistemas ideológicos.

Ao pensarmos nessa proposta, retomamos a noção de enunciado, presente no

pensamento desenvolvido por Bakhtin e o Círculo. A noção de enunciado está

relacionada ao uso concreto da língua. Esse uso concreto diz respeito ao emprego da

língua nas diferentes esferas de atividades sociais. Isso compreende que a língua está

imersa na história, na cultura, na ideologia e em outros aspectos sociais. O enunciado,

nesse sentido, constitui a unidade real da comunicação verbal.

Considerando que a língua é empregada por enunciados concretos, o uso da

linguagem apresenta um caráter com muitas formas. Para isso ser realizado, os tipos de

enunciados estáveis são organizados em forma de gêneros discursivos que organizam e

constroem a forma da gramática e do estilo do enunciado. (cf. VOLOCHÍNOV, 1930).

Esses gêneros são as espessuras para a expressão dos fatos sociais e linguísticos,

elaboradas a partir de cada campo de uso da língua. De acordo com Bakhtin (2011, p.

268), “são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da

linguagem”, bem como expressam “o confronto de interesses sociais nos limites de uma

só e mesma comunidade semiótica” (BAKHTIN [VOLOCHÍVOV], 2009, p. 47).

As condições para a existência e a expressão da língua estão sob a existência de

uma dialogia marcada pela interação dos indivíduos socialmente organizados, pois, para

produzir comunicação, os sujeitos se posicionam num ambiente social e histórico,

determinado (i) pela situação: que apresenta e relaciona onde, quando, quem, o que – os

elementos determinantes da avaliação do evento, caracterizadores do tempo, do espaço,

do tema e dos interlocutores; (ii) pelo auditório social: que relaciona o ambiente social

onde ocorrem as deduções e as avaliações do evento.

P á g i n a | 859

Já que o uso da língua acontece por meio de enunciados, vejamos alguns pontos

relevantes, concernentes a essa unidade real da comunicação verbal. Em primeiro lugar,

o enunciado, para refletir e refratar as condições e finalidades dos campos de atividades

sociais, está ligado ao tema, ao estilo e à composição. Em segundo lugar, é

compreendido como uma unidade de comunicação discursiva que indica uma posição

ativa responsiva. Além disso, está repleto das tonalidades dialógicas. Por último,

apresenta uma parte verbal e outra extra-verbal (VOLOSHINOV, 1926).

Tema, composição e estilo são elementos do enunciado que, respectivamente,

indicam a expressão criativa e dialógica ligada à situação histórica concreta com sentido

diferente para cada enunciado; a organização parcial e total dos componentes de cada

enunciado; e, por último, a expressão particular dos indivíduos, construída através da

orientação social (cf. FLORES, 2009). Dessa forma, por esses elementos do enunciado,

percebemos uma relação fechada entre o sujeito usuário da língua, o seu ouvinte, o

contexto histórico-social, o diálogo entre os sujeitos, entre os enunciados e entre os

discursos, bem como a organização que cada sujeito atribui ao utilizar os signos no

processo de comunicação social. Percebemos que por esses elementos são determinadas

as infinitas possibilidades de uso da língua no processo de interação social.

Pela posição ativa responsiva, entendemos que, nas relações sociais, o locutor

apresenta uma forma avaliativa de percepção e isto, por sua vez, indica que esse locutor

apresenta uma avaliação presumida antes mesmo que este assuma a fala (cf. SOBRAL,

2009). Desse modo, podemos destacar que a orientação social do enunciado está

configurada por uma capacidade de compreensão que auxilia para gerar uma resposta

real ou virtual (cf. VOLOCHÍNOV, 1930).

Quanto às tonalidades dialógicas do enunciado, podemos destacá-las como uma

orientação em direção ao outro: a palavra é usada de um sujeito para outro. Nesse

sentido, é imprescindível destacar que, nessa orientação, existe um peso hierárquico que

categoriza a classe social na qual o indivíduo está inserido, bem como outros aspectos

referentes à situação financeira, à profissão, à função, dentre outros elementos (cf.Idem,

1930). Sendo assim, podemos conferir às tonalidades dialógicas como um produto da

interação entre os locutores.

Por último, destacamos a parte verbal e a extra-verbal do enunciado: a relação

entre a estrutura linguística e a estrutura social da linguagem. Dessa maneira,

percebemos que a interação dos sujeitos é ocorrida pelo prisma de um horizonte social,

bem como pelo horizonte da moral no tempo e no espaço da interação, pelo auditório

social, pela situação (as condições que dão forma a enunciação) e pelos participantes (a

determinação da forma ou da própria enunciação). Tanto a situação quanto o auditório

não são exprimidos, mas subentendidos (pelo espaço e tempo do evento, objeto ou tema

do enunciado e a posição dos interlocutores diante do fato: a avaliação) (cf.

VOLOCHÍNOV, 1930).

Na perspectiva da linguagem pelas vias da enunciação bakhtiniana e o Círculo,

os sujeitos não produzem sentenças, orações e frases – produzem enunciados concretos,

ou seja, tipos de comunicação orientada pelos fatores sociais atravessados pela ideologia

e pela história. Nesse sentido, o signo é constituído pelos aspectos verbais e não-verbais

materializados pela imagem, pela palavra e pelo movimento do corpo, que formam o

conteúdo semiótico ideológico da consciência. Dessa forma, o sentido do signo é

estabelecido, flexivelmente, pela avaliação ideológica expressa pela noção do falso e do

verdadeiro, do bom e do ruim, ou seja, pela oposição de aspectos que constituem a

validade da palavra (cf. BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2009).

P á g i n a | 860

A compreensão leitora, a qual pretendemos delimitar pela enunciação

bakhtiniana, é compreendida como uma condição que o estudante de Língua Inglesa

terá para compreender o uso dos signos ideológicos nas diversas esferas de atividades

sociais. Dessa forma, os alunos podem compreender os aspectos reproduzíveis e

repetíveis da língua (a língua como sistema de signos), bem como a língua na condição

de enunciados (manifesta nas estruturas sociais). Nesse segundo caso, serão

compreendidos (a) o projeto discursivo (o querer dizer do autor), e (b) a realização

desse projeto (a produção de enunciados). No plano da língua compreendem-se a

situação social e os interlocutores e no plano discursivo a situação social e os

interlocutores.

Feito esse apanhado teórico, passamos a discutir a compreensão leitora no

ensino de língua inglesa a partir do enfoque teórico da enunciação bakhtiniana. Para

isso, recorremos a alguns enunciados concretos para ilustrar como o ensino de língua

inglesa poderia ocorrer considerando uma visão enunciativa para promover o

desenvolvimento da competência leitora.

3. A compreensão leitora no ensino de língua inglesa na perspectiva da enunciação

bakhtiniana

Pensando nos conceitos advindos da enunciação bakhtiniana, que foram

abordados supracitamente, queremos retomá-los, nesse momento do trabalho, a partir de

possíveis análises em tópicos que são usados no ensino de Língua Inglesa.

Tomemos como base o Present Simple para esta primeira análise. Ao pensarmos

a língua a partir de uma concepção estrutural, esse tópico será abordado apenas pelas

vias das regras gramáticas em interface com os aspectos lexicais e fonéticos.

Especificamente, apresentaríamos aos nossos alunos as regras gramaticais, que

envolvem a combinação dos morfemas “s”, “es” e “ies” na terceira pessoa do singular

(he, she it), bem como sua regra geral. Além disso, poderíamos apresentar as regras

fonéticas para suas devidas pronúncias, e uma possível tradução entre os campos

lexicais que envolvem a língua nativa e a língua estrangeira.

Por outro lado, no que diz respeito à concepção de língua pelo plano da

enunciação bakhtiniana, o Simple Present seria tomado não como esse conjunto

descrito, mas como uma estrutura linguística perpassada pela estrutura social. Sendo

assim, deixaríamos de lado o foco apenas nas regras gramaticais e partiríamos para o

uso dessa estrutura nas diversas esferas de comunicação social. Poderíamos apresentar o

uso desse tempo verbal para aquelas situações que pretenderíamos falar de coisas em

geral e de coisas que acontecem repetidamente. Nesse caso, o que estaria em jogo não

era apenas a forma de como os interactantes usariam esse tempo verbal, mas as próprias

situações sociais em que essa forma estaria sendo usada no processo de interação de

sujeitos históricos. Estariam em jogo as diversas situações em que essa forma linguística

(única) seria retomada nas diferentes estruturas sociais, para produzir sentidos diversos.

Vejamos a seguinte figura:

P á g i n a | 861

http://www.slideshare.net/drusiliaygouache/frequency-adverbs-10037409

Nessa figura, percebemos que o interlocutor L (à esquerda) está usando a língua

para exprimir sua necessidade de comunicação sobre como (qual o meio de transporte,

qual a frequência de uso desse meio de transporte) o interlocutor M (à direita) vai ou

chega à escola. O interlocutor L está usando a estrutura do Simple Presente, atravessada

pelas intenções, pelas relações estabelecidas entre os interlocutores, pela estrutura social

que, presumidamente, pode apresentar uma avaliação ou julgamento sobre a possível

condição social do interlocutor M. Dessa forma, M, ao dizer que vai à escola sempre de

carro, está se inserindo àquela classe social na qual as pessoas têm um carro próprio

para ir à escola. E quando diz: “eu vou sempre de carro”, por este “sempre” podemos

entender que M não precisa tomar um ônibus para tal feito – isto implica que, no caso

da ida à escola, M não passa pelas mesmas situações (ônibus lotado, atraso, pessoas mal

educadas, etc.) que passam a maioria das pessoas que não pertencem a sua classe social.

Sendo assim, podemos perceber que essa materialidade estrutural, o linguística, não é

suficiente para estabelecer relações de sentidos, mas os sentidos desse enunciado são

construídos em decorrência dos fatores extra-linguísticos, daquilo que não é dito, mas

compõe o sentido.

Ao usar a língua para a realização de um projeto enunciativo, pensamos na ideia

de um contexto concreto e de sujeitos históricos que materializam enunciações verbais.

Na figura a seguir, podemos perceber essa relação:

P á g i n a | 862

http://www.cakechooser.com/500/cake-boss-frog

Se fôssemos apresentar aos nossos alunos o signo “love” inserido,

imanentemente, na estrutura linguística, estaríamos diante de alguns problemas. Em

primeiro lugar, partiríamos para a noção semântica do termo, oriunda de um conceito de

dicionários – assim, compreenderíamos “to Love” como o verbo amar. Em segundo

lugar, não faríamos um julgamento de valor desse signo em uma perspectiva extra-

verbal – isto deixaria de fora a noção dos presumidos, ou seja, aquilo que não é dito na

materialidade linguística. Quando pensamos na ideia de enunciado concreto e de

sujeitos históricos, nos deparamos com o uso desse signo (love) deslocado do

significado semântico da estrutura linguística. Ao analisarmos uma ocorrência de uso

desse enunciado em uma determinada situação, não partiríamos de categorias

gramaticais e sintáticas pré-estabelecidas, isso porque é o uso que determina a função de

cada elemento linguístico, logo um mesmo vocábulo pode exercer várias funções

sintáticas dependendo das situações de uso. Com isso, entendemos ser fundamental o

ensino de língua partir sempre de um gênero discursivo, tendo em vista que neles os

usos se manifestam, sendo os gêneros organizadores das esferas de ação comunicativa.

Nessa concepção de ensino, ainda, mostraria que o to love pode adquirir diversos

sentidos em decorrência de vários fatores como, por exemplo, os interlocutores

envolvidos na interação, a situação econômica dos interlocutores, a tonalidade de voz

e/ou o uso de determinados recursos linguísticos, a situação de uso, entre outros. Esses e

outros aspectos, embora não estejam estritamente inscritos na materialidade linguística,

são elementos constitutivos do sentido do enunciado concreto.

Com isso, no enunciado em análise, o sentido do signo linguístico é construído

em total relação com o conteúdo imagético (o não-verbal) e com outros elementos

linguísticos que estão presentes na cena, a saber, a palavra vírus grafada na tela do

computador de Garfield. Ademais, percebemos que o eu amo meu computador não

carrega o sentido corriqueiro da expressão, ou seja, o verbo amar agrega outros sentidos

àquele comumente conhecido. Esse sentido é construído ao consideramos os aspectos

imagéticos do enunciado – uma motorserra e a expressão facial do enunciador. Isso

sinaliza para o fato de que apenas o deslocamento do verbo da situação de uso,

explorando apenas o significado semântico do signo não faz jus ao sentido real do uso.

P á g i n a | 863

Nessa situação específica, o uso do signo em questão, será para dar sentido ao fato do

enunciador não gostar do seu computador – isso é contrário ao pensamento estrutural de

“to love”. Por assim dizer, percebemos o signo (love) como algo dinâmico, flexível, em

outras palavras: algo que se adéqua às condições concretas de uma situação.

Pensando na ideia de produção de sentido pelo uso da língua, retomamos a

noção de enunciado desenvolvida por Bakhtin e o Círculo. Nesse caso, pensemos em

tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, em gêneros do discurso. Isto

significa que os gêneros são formas que retocam e imprimem essa ideia de acabamento

no enunciado, pois, sendo assim, passamos a compreender que os gêneros do discurso

nos dão a ideia de enunciados particulares que são usados em uma dada esfera da

comunicação humana. Nisso reside a importância de trabalharmos não com os

elementos linguísticos extraídos dos contextos de uso, mas em trabalhar, em aulas de

língua inglesa, com os gêneros discursivos. Tomemos como exemplo uma tira de

Garfield, para apresentar como podemos usar um gênero do discurso no ensino de

Língua Inglesa. Vejamos a tira a seguir:

http://www.anglictina-snadno.estranky.cz/clanky/garfield/comics-3.html

Numa proposta de ensino de língua inglesa, primeiramente seria importante

entender o gênero e sua função. Desse modo, no caso em análise a tira cômica se

caracteriza como um gênero do discurso que, por sua vez, apresenta uma materialidade

verbal, geralmente, curta e uma materialidade não-verbal formada por diversos

elementos imagéticos nas suas mais amplas variedades. Apresenta uma linguagem

jocosa, pela qual predomina a crítica e o humor. A apresentação desses aspectos mais a

função que esse gênero exercer no meio social seria um dos primeiros passos no contato

com o gênero. Isso já abre a possibilidade de construção de um horizonte de

P á g i n a | 864

expectativas que o gênero pode preencher e, ao mesmo tempo, faz com que os alunos

adquiram essa competência de leitura, percebendo que cada gênero tem sua forma

composicional em função do uso.

Nesse segundo momento da análise, queremos apresentar o tópico gramatical

Modo Imperativo, para delimitarmos a influência da enunciação bakhtiniana sobre o

ensino de Língua Inglesa. Já que nessa concepção de língua compreendemos a estrutura

linguística perpassada pela estrutura social, percebemos que o professor de Língua

Inglesa pode usar nesse gênero do discurso a estrutura gramatical em questão, nas suas

formas negativa e afirmativa.

Através dessa estrutura gramatical, podemos usar a linguagem para pedir, dar

ordens, proibir, permitir, etc. Ao exprimir a materialidade linguística Do not drink my

water (não beba a minha água), o enunciador usa “Do not” para comunicar algo que não

deve ser feito. Ao usar drink e water, temos a certeza de que esse enunciador está

proibindo alguém de beber a sua água. Essa relação semântica pode ser vista, no modo

imperativo, pela relação dos componentes de negação (do not) e dos dois itens lexicais

drink e water.

A partir dessa relação entre os termos da estrutura linguística, podemos perceber

que essa materialidade significa, em sua especificidade, a proibição de algo. As demais

sequências da tira, só que de uma forma afirmativa no uso da estrutura linguística, no

campo da semântica também vão trazer a emissão de outras proibições. Isto pode ser

visto com o uso dos termos keep your paws off (tire suas patas) e stop linking (pare de

lamber).

No entanto, essa materialidade linguística não produz sentido apenas por sua

capacidade sintática, semântica e lexical. Tomando como exemplos apenas as

sequências materiais linguísticas, teríamos alguns problemas com relação à produção de

sentidos desse enunciado. Esses problemas acontecem porque não estamos falando

(ainda) de uma relação estreita entre o linguístico e o visual. No caso da proibição para

não beber a água, percebemos (pelo imagético) que ODIE (o cachorro) já está bebendo

a água e essa materialidade vai servir para expressar uma ordem (para ele parar de beber

a água) haja vista ele já está bebendo-a. No caso da proibição para tirar as patas da

batata, percebemos que GARFIELD, ao contrário de ODIE, não está pegando nas

batatas e essa materialidade além de exprimir uma ordem vai também exprimir uma

advertência. Sendo assim, compreendemos que só o uso da materialidade linguística

desprovida da materialidade não-verbal pode trazer alguns problemas no tocante à

produção de sentidos.

Ao mencionarmos a relação que existe entre o linguístico e o imagético,

adentramos ao campo da ideologia e, nesse sentido, passamos a perceber a organização

e a estrutura do gênero (tira cômica) como um todo. Nessa relação, a materialidade

imagética (ODIE bebendo a água e GARFIELD não colocando as mãos nas batatas) vai

produzir os sentidos que estão faltando ao plano linguístico. Percebemos que a

existência e a expressão da língua no plano dialógico estão sobre a condição da

interação dos sujeitos socialmente organizados, pois percebemos que, ao produzir

comunicação, os sujeitos se posicionam num ambiente histórico social, caracterizado

pela situação e pelo auditório social.

No que diz respeito à situação e ao auditório social, nessa tira percebemos que os

indivíduos estão em um local apropriado para se fazer uma refeição (numa cozinha);

que estão em número de três e que um deles (o menino) sobressai aos demais (ODIE e

GARFIELD).

P á g i n a | 865

Portanto, vemos que, assim como a estrutura linguística, o material não-verbal

também tem sua função nesse processo interativo de construção de sentidos. E a partir

da proibição já vista no material linguístico, percebemos que as expressões faciais de

expectativa, alegria, tristeza, ansiedade e medo, vão produzir, em harmonia com o

linguístico, os sentidos dessa enunciação. Dessa forma, no plano da enunciação

bakhtiniana, ao pensarmos uma proposta que vise desenvolver a competência leitora dos

alunos, pretendemos formar leitores não apenas de diferentes materialidades linguísticas

– um leitor de regras gramaticais. Nossa real intenção é fazer com que esses alunos

compreendam o uso dos signos ideológicos nas diversas esferas de atividades sociais. É

torná-los leitores que sejam capazes de perceber que os sentidos perpassam a

materialidade linguística. Leitores que sejam capazes de avaliar o projeto discursivo de

uma enunciação e a realização desse projeto.

4. Conclusão

A relação que existe entre o linguístico e o social constitui a base para que o

leitor possa construir sentidos dos enunciados concretos que circulam nas diversas

esferas de atividades sociais. Quando intencionamos formar um leitor é preciso levar até

ele o fato de que a língua vive imersa no plano ideológico, sendo ela produto e

produtora de posições sociais. Dessa forma, para conferir sentidos a uma dada

enunciação, o sujeito necessita ir além dos componentes da gramática, da fonética e do

léxico. Não podemos pensar nesse leitor como um sujeito que estanca seu processo de

leitura nos componentes estruturais. Contudo, se esse leitor direcionar a necessidade de

leitura apenas para essa materialidade, vai lhe faltar a materialidade não-verbal, o extra-

verbal, o não-dito, o pressuposto para ocasionar uma totalidade no processo de interação

e, posteriormente, causar a esse sujeito uma perda no que confere o sentido inserido na

ideologia e na história.

Como dissemos nas considerações introdutórias, este trabalho ainda não está

concluso. Por outro lado, com o desenvolvimento de nossas pesquisas, chegaremos cada

vez mais próximos de estabelecer conclusões mais coerentes no que diz respeito as

contribuições de Bakhtin e o Círculo para o ensino de língua, mas precisamente para o

ensino de língua inglesa. Ainda precisamos de mais reflexões sobre essa teoria e o

objeto de investigação do nosso estudo. Sendo assim, deixamos parcialmente em aberto

as conclusões sobre nossos achados nesse campo de estudo ainda tão complexo, pois,

como essa teoria é relevantemente ampla e não podemos encontrar e reunir tudo que

queremos em um compêndio manualístico, continuaremos nossas pesquisas e

procuraremos enxugar de forma mais pertinente nossas discussões.

Referências:

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. [prefácio à edição francesa Tzvetan

Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra]. 6. ed. São Paulo: Editora

WMF Martins Fontes, 2011. – (Coleção Ensino Superior). 476p.

______. (VOLOSHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas

fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.

P á g i n a | 866

______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. P. Bezerra. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2010.

FLORES, Valdir do Nascimento. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo,

Contexto, 2009.

MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch, 1891 – 1938. O método formal nos estudos

literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. [Pável Nikoláievitch

Medviédev; tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo]. São

Paulo: Contexto, 2012. 269 p.

SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de

Bakhtin. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2009, 175p.

VOLOCHINOV. [1926]. Discurso na vida e na arte: sobre a poética sociológica.

Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza da edição inglesa de TITUNIK, I. R.

“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”. In:

VOLOSHINOV, V. N. Freudism. New York: Academic Press, 1976.

_______. Estrutura do Enunciado. [1930]. 2005. Tradução de Ana Vaz para fins

didáticos.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Nababo.

P á g i n a | 867

A MARCA DE CRAIG THOMPSON NO CENÁRIO DOS ROMANCES

GRÁFICOS

Rossana Paulino de LUNA

Josilene PINHEIRO-MARIZ

Resumo: As Histórias em Quadrinhos (HQ), ou graphic novels, constituem-se em uma

categoria que vem se renovando dentro de uma produção que não tem mais apenas valor

de entretenimento, mas também literário. Um dos autores que vem se destacando nesse

âmbito da literatura é o premiado autor e desenhista Craig Thompson, cujas principais

obras são Retalhos (2003) e Habibi (2011) – ambos romances gráficos, sendo o

primeiro uma narrativa autobiográfica e o segundo um conto de fadas que se dá em um

ambiente ficcional islâmico. Mesmo levando-se em conta que as duas propostas dos

livros sejam diferentes, alguns temas da primeira obra são recorrentes na segunda,

como: laços afetivos, familiares, conflitos interiores religiosos e abuso sexual. Assim,

este trabalho se propõe a apresentar o autor Craig Thompson e comentar alguns de seus

principais temas, discutindo como as experiências pessoais do autor se refletem no seu

trabalho e, por sua vez, o que esses temas revelam sobre a sociedade em sua

configuração atual. Destacamos ainda o apelo desses temas para os jovens, principal

público alvo das obras de Thompson, culminando em uma reflexão sobre a relevância

de romances gráficos para os estudos da literatura para além da norte-americana,

confirmando como tais obras se constituem em um valoroso convite para o mundo

literário.

Palavras-chave: Romances gráficos, Craig Thompson, Retalhos, Habibi.

1. Introdução

“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou

que somos feitos de histórias", disse certa vez o renomado autor Eduardo Galeano

(2012); e a matéria que nos constitui – segundo Galeano – tem ganhado cada vez mais

espaço na arte sequencial estadunidense (na forma de HQ, também chamadas de

Graphic Novels). Porém, “[...] apenas aqueles que realmente pensam fora da caixa

podem transformar um agora tão comum método de comunicação em massa em uma

arte verdadeiramente excepcional” (HELLER, 2005, p. xvi).

Craig Thompson (21.09.1974) pode ser considerado um desses romancistas

gráficos que conseguem “pensar fora da caixa”. Em 2004, o autor recebeu como

reconhecimento pelo seu trabalho Retalhos (2003), o Eisner Award34

de melhor Best

Graphic Album e Best Writer/Artist. Pela mesma obra, ele recebeu dois Harvey Award e

dois Ignatz Award. Oito anos depois, Thompson foi mais uma vez premiado com um

Eisner Award dessa vez pela obra Habibi (2011).

Sendo Retalhos (2003) uma obra autobiográfica e Habibi (2011) um conto de

fadas que se dá em um ambiente ficcional islâmico – duas propostas, factualmente,

distantes uma da outra – talvez fosse difícil encontrar semelhanças nos dois escritos; E-mail: [email protected] - PET-Letras/UFCG E-mail: [email protected] - UFCG 34

Prêmio considerado pela crítica especializada como o Oscar da indústria dos Quadrinhos.

P á g i n a | 868

todavia, mais de um tema em comum pode ser identificado nas as duas obras, a exemplo

de: laços afetivos e familiares, conflitos interiores e religiosos; e, abuso sexual. O que

comprova que não há só muita vida na literatura, mas que há muito da vida na obra

literária. As experiências pessoais de Thompson se refletiram, então, para além do seu

romance autobiográfico, camuflando-se na trama do seu trabalho subsequente.

Com estas considerações, este trabalho se propõe a apresentar o autor Craig

Thompson e comentar alguns dos temas verificados em suas duas principais obras

(supracitadas), discutindo como as experiências pessoais do autor se refletem no seu

trabalho; e, por sua vez, o que esses temas revelam sobre a sociedade em sua

configuração atual. Ressaltaremos, também, o apelo que tanto os temas como o gênero

romance gráfico em si pode exercer sobre os jovens, ponderando acerca de como tais

obras podem ser um valoroso convite para o mundo da mimese.

Contextualizada a pesquisa, seguiremos com uma breve recuperação teórica no

tocante às HQ ou Romances Gráficos e apresentaremos, então, um resumo de Retalhos

(2003) e de Habibi (2011) – os quais constituem corpora do nosso artigo. Na sequência,

elencaremos os temas recorrentes nas duas obras e, enfim, traremos algumas discussões

quanto à relevância do gênero HQ para os estudos da literatura além da norte-

americana.

2. Decodificando imagens: o jovem leitor diante da multimodalidade dos textos

Muito tem se falado sobre o descaso dos jovens para com a leitura; no entanto,

acreditamos ser necessário refletir sobre essa ideia bastante difundida, sobretudo, na

academia. Acerca disso, Mendonça (2002) comenta:

Afirmações do tipo ‘O jovem não lê’ não encontram respaldo

empírico, quando se trata de determinados objetos de leitura. É fato

incontestável que jovens leitores (e nem tão jovens assim) deleitam-se

com as tramas narrativas de personagens diversos, heróis ou anti-

heróis, montados através do recurso da quadrinização. (MENDONÇA,

2002, p. 194).

Pelas palavras de Mendonça (2002) podemos concluir que a questão não é que

os jovens não leiam, mas que eles não leem o que (muitos) professores bem

intencionados ou exames como vestibulares e pais apregoam que seja uma leitura

válida. Muitos dos jovens de hoje – “esses que não leem” – são adeptos de leituras de

HQ, mangás e novelas gráficas. As novelas gráficas, bem como os demais gêneros

citados, “estão ainda lutando por aceitação como literatura e tudo que este rótulo

implica35

” (BRENNER, 2007, p. IX).

Brenner (op. cit.) coloca ainda que bibliotecários, ao lado de autores de

quadrinhos, editores, revisores e outros advogados do gênero em questão, estão

finalmente fazendo progressos no que diz respeito à comprovação da qualidade destas

35

“Graphic novels as a format are still struggling for acceptance as literature and everything that label

implies” 35

” (BRENNER, 2007, p. IX). Todas as passagens do texto de Brenner (2007) aqui apresentadas,

bem como as de Kress (1999), foram traduzidas por Rossana Luna para este trabalho.

P á g i n a | 869

obras, muitos alegando o fato de que a arte sequencial não é mais apenas para crianças.

De forma que, nos Estados Unidos: “[...] O crescente reconhecimento da variedade e da

qualidade do trabalho que é produzido no meio é animador” (BRENNER, id. ibid., p.

IX)36

.

Conquanto o debate acerca do valor literário de novelas gráficas ainda não tem

um fim, podemos (ao menos) deduzir o porquê do atrativo desse gênero para os jovens.

Esse atrativo jaz na multimodalidade da obra, uma vez que ainda que se constituam

como um gênero de tipo textual narrativo, os “... quadrinhos são uma narrativa gráfico-

visual, impulsionada por sucessivos cortes, cortes estes que agenciam imagens

rabiscadas, desenhadas e/ou pintadas” (CIRNE, 2000, apud MENDONÇA, 2002, p.

195); assim, os quadrinhos fazem uso de mais de um recurso semiótico para a

construção de histórias e sentidos.

É fato que todos os textos são multimodais, como Kress (1999, p. 187) pontua,

ainda que apenas alguns sistemas de comunicação e representação sejam amplamente

reconhecidos como multimodais, como é o caso dos quadrinhos que envolvem pelo

menos dois tipos de letramentos e modalidades comunicativas: o verbal e o visual.

Kress (1999) disserta:

Ao longo das últimas duas ou três décadas, uma revolução ocorreu na

área de comunicação, que nos obriga a repensar o panorama social e

semiótico das sociedades ocidentais "desenvolvidas". O efeito dessa

revolução foi desalojar a linguagem escrita da centralidade que tem

sido a ela atribuída na comunicação pública. Talvez o exemplo mais

óbvio seja a crescente proeminência - o domínio mesmo - do visual

em muitas áreas da comunicação pública também. Enquanto isso é

óbvio, as implicações dessa mudança não começaram, em nenhum

sentido, a serem delineadas ou avaliados em qualquer forma

totalmente consciente, consistente e coerente. (KRESS, 1999, p.

182).37

É possível que essa preferência dos jovens pela arte sequencial seja uma das

consequências ainda não exatamente traçadas que Kress (op. cit.) menciona.

Devemos considerar, então, a afirmativa de Brenner (2007):

Não há dúvida de que vivemos em um mundo multimídia. Crianças e

adolescentes crescem com habilidades que as gerações mais velhas

não têm, desde a navegação em um computador com instintiva

36

“…the growing recognition of the variety and quality of work that is produced in the medium is

heartening.” (BRENNER, id. ibid., p. IX) 37

“Over the last two or three decades a revolution has taken place in the area of communication which

forces us to rethink the social and the semiotic landscape of Western 'developed' societies. The effect of

this revolution has been ascribed to it, in public communication. Perhaps the most obvious example is the

increasing prominance - dominance even - of the visual in many areas of the public communication as

well. While this is obvious, the implications of that shift have not in any sense begun to be drawn out or

assessed in any coherent, overt, fully conscious, and consistent fashion.” (KRESS, 1999, p. 182)

P á g i n a | 870

facilidade, até criar uma história a partir de [...] imagens intermitentes

de vídeos musicais de dois minutos. (BRENNER, 2007, p. XIII).38

Brenner (2007, p.XIV) ainda traz a seguinte consideração: “Quadrinhos e

graphic novels são excelentes exemplos de uma fusão de letramento visual com o

letramento tradicional baseada em texto”.39

Assim sendo, é importante observar que não

só os jovens não estão lendo menos, mas que eles estão se engajando em diferentes

tipos de leituras: “A leitura de quadrinhos é uma habilidade adquirida para muitos, mas

é cada vez mais um conhecimento instintivo para as crianças e adolescentes que

crescem em um mundo que combina texto e imagem o tempo todo” (BRENNER, 2007,

p. XIV)40

.

Não se intenciona, ao apregoar a dinamicidade e valor das novelas gráficas,

negar qualquer valor contemporâneo à literatura tradicional baseado no texto verbal

escrito; ora, busca-se, sim, frisar que este gênero é válido e rico e pode ser a porta de

entrada para os jovens leitores vivenciarem cada vez mais as ofertas que o mundo

literário oferece, podendo inclusive instigar a curiosidade para os clássicos que as

gerações anteriores e os intelectuais tanto prezam, como Brenner (2007) explica:

[...] nenhuma dessas novas mídias livros substitui livros ou a leitura

tradicional, eles simplesmente acrescem à pilha do que está

disponível. Se os adolescentes acham valiosas as narrativas em

formatos que os bibliotecários raramente leem, como podemos

conectar com as gerações mais novas? Devemos encontrar os

adolescentes no meio do caminho [...] (BRENNER, 2007, p. XV) 41

.

A escola, portanto, deve suprir esse abismo entre o tipo de literatura que o jovem

busca e a que ela oferece, enxergando, nas novelas gráficas, a poderosa ferramenta

pedagógica que elas podem vir a ser. Considere-se também a complexidade das obras

do gênero a nossa disposição, atualmente, que encadeiam não só diversos tipos de

letramentos, permitindo a exploração de vários meios em que é possível produzir

sentidos; mas, também, diversas possibilidades de crítica e observação de fatos sociais

e, promover, assim, o desenvolvimento de estudantes não apenas como leitores, mas,

em especial, como seres humanos – afinal, o que não é a literatura se não a arte em

favor da nossa humanização e desenvolvimento?

38

“There is no doubt that we live in a multimedia world. Kids and teens grow up with skills that older

generations lack, from navigating a computer with instinctive ease to creating a story from the jump-cuts

and flashing images oftwo-minute music videos.” (BRENNER, op. cit, p. XIII). 39

“Comics and graphic novels are excellent examples of a melding of visual literacy with traditional text-

based literacy.” (BRENNER, id. ibid, p.XIII) 40

“Reading comics is a learned activity for many but is more and more an instinctive understanding for

children and teenagers growing up in a world that combines text and image all the time”. (BRENNER,

2007, p. XIV) 41

“[…] none of these new media replace books or traditional reading—they just add to the pile of what’s

available. If teens find valuable narrative in formats librarians rarely read, how are we to connect with

newer generations? We must meet teens halfway […]”. (BRENNER, 2007, p. XV)

P á g i n a | 871

3. A colcha de retalhos literária de Craig Thompson: Retalhos e Habibi

Como já foi anteriormente mencionado, Retalhos é um romance autobiográfico.

Nele, Thompson retrata episódios da sua vida, desde a infância até o começo da vida

adulta, na fria Winscosin, localizada no centro-oeste Estadunidense.

Na obra, ele transmite os seus

temores em relação a Deus, seus medos e

dúvidas acerca da religião em que foi

criado. Comenta sobre a relação conflitante

com o irmão mais novo e o afastamento

emocional que se implantou entre eles

enquanto cresciam.

Quando conhece Raina, uma garota

de espírito livre, Craig se apaixona pela

primeira vez. A descoberta do amor é tão

decisiva na vida dele, que finda por

modificar toda a suas perspectivas de vida,

de espiritualidade e do próprio amor –

destaque-se que não há como dissociar

nenhum desses elementos da sua própria

arte. Peagler (2011) pontua que Retalhos

(2003) vendeu milhares de exemplares e se

tornou a porta de entrada para muitos novos

leitores.

Já Habibi (2011) conta uma história

de amor, embora seja um pouco mais

cortante do que Retalhos. O livro retrata a

saga de dois escravos fugitivos, cujos

destinos parecem ser sempre o de se perder

um do outro, para (apenas depois de muita

contenda) encontrarem-se. Os protagonistas

são Dodola e Zam, que crescem juntos no

deserto em um navio naufragado na areia e,

com o tempo, uma relação que parecia ser

de mãe e filho vai ganhando uma face mais

conflituosa. Pelas narrativas de Dodola

para Zam, conhece-se um pouco da origem

do islamismo e suas tradições, em narrativas

que o que tem de mágicas também tem de

filosóficas. Conquanto seja ambientado nos

dias atuais, Habibi (2011) não se passa em

nenhum país do nosso globo, embora se

remeta a cultura oriental islâmica, a terra de

Dodola e Zam é ao mesmo tempo mágica e Figura 1 – Capa do livro Habibi, (THOMPSON, 2011).

Figura 1 – Capa do livro Retalhos, (THOMPSON,

2003)

P á g i n a | 872

verossímil, onde questões presentes, como questionamentos ecológicos, se misturam às

dúvidas humanas mais ancestrais acerca do amor e da religião.

3.1. Temas recorrentes

Não se pretende, nesta seção do trabalho, esgotar os temas contidos nos dois

romances gráficos, nem se intenta fazer uma análise esmiuçada dos temas elencados;

mas sim, registrar a recorrência deles nas duas obras produzidas por Craig Thompson,

evidenciando a matéria-prima que motiva a sua produção. Deve-se levar em

consideração também, que os temas são, inevitavelmente, engajados com as nossas

concepções de humanidade e com fatos sociais que devem ser pensados e debatidos, de

forma que a literatura produzida por Thompson também é extremamente reveladora da

sociedade atual.

3.1.1 Laços amorosos

Por certo, um dos principais temas de Craig Thompson está ancorado nos laços

afetivos e familiares. O próprio autor confessou em entrevista ao jornal Folha de São

Paulo que uma das suas principais motivações ao escrever romances gráficos era fazer

um livro que ressaltasse a beleza sutil das nuances singelas da vida. Afirma Thompson:

Estava frustrado com o predomínio das histórias de fantasia

bombásticas no meio da HQ. Queria fazer um livro longo que deixasse

de lado as sequências de ação para capturar uma experiência íntima e

silenciosa, como a de dividir a cama com alguém pela primeira vez.

(THOMPSON, 2009).

É interessante observar que mesmo havendo teor sexual em ambas as obras, pela

leitura destas e pela própria fala do autor, nós percebemos que uma relação sexual não é

o mesmo que intimidade para o autor. Tanto a intimidade que se cria entre Raina e

Craig e Dodola e Zam se dão de outras formas, em Retalhos, uma dessas formas de

estabelecer intimidade é pelo canto, em Habibi, é pela respiração.

No capítulo II, do romance de 2003, Raina confessa que não gosta de cantar nos

cultos da igreja: “Não tenho voz e levo a música muito a sério. Só canto quando estou

sozinha. Pra mim é sagrado” (THOMPSON, 2003, p. 125). E no Capítulo VII, ela canta

para Craig a música Just Like Heaven, da banda The Cure, evidenciando que eles

construíram uma relação “sagrada”; e, é assim que o jovem Thompson passa a enxergar

Raina também, como sendo um ser santificado, afastando dele a “culpa cristã” por tê-la

desejado fisicamente.

No caso do romance de 2011, a intimidade emocional se dá pela narração de

histórias, enquanto a física se dá pela respiração. É importante observar que a relação de

Dodola e Zam parece se dividir em dois momentos: no primeiro, ela o vê como um filho

e, no segundo (após o reencontro dos dois, anos após a separação) ela o vê como um

homem. Zam havia lutado desde sua adolescência contra o desejo carnal que sentia por

Dodola, de forma que isso o leva a optar por uma forma mais definitiva de se punir pelo

desejo: a castração. Após esse ato tão definitivo, Zam sente-se culpado de novo, quando

Dodola confessa que gostaria de ter um filho dele; e, nesse misto de alegria e dor, ele se

P á g i n a | 873

revolta por se ver impedido dar o prazer que Dodola desejava. É nesse momento que ela

afirma que o principal do sexo é a respiração (THOMPSON, 2011, p. 635).

Assim, tanto em Retalhos, quanto em Habibi, existe uma forte sensação de

culpa em relação ao desejo sexual, mas também há uma desmistificação de que a

intimidade física sempre deva enveredar por caminhos outros daquele da intimidade

emocional.

3.1.2. Laços familiares

Em Retalhos, o autor narra um pouco da sua relação com os próprios pais.

Porém, é sua relação com o irmão que mais se evidencia. Já foi anteriormente, frisado

que o relacionamento deles quando crianças era, até certo ponto, conflituoso, e que eles

se afastaram ao entrar na adolescência. Após passar uma temporada na casa de Raina,

Craig procura uma reaproximação com o irmão. Tal aproximação se deu até pela

própria dinâmica que ele vivenciou no lar da amada, que sempre se mostrava muito

solícita para com os irmãos, particularmente com Laura que era carente de cuidados

especiais, devido a uma doença neurológica, e para com os pais. Ao narrar

reminiscências dele com o irmão, Craig começar a perceber quão estranhos eles tinham

se tornado um para o outro e tenta reverter esse quadro.

No que concerne aos laços familiares, Habibi mostra a relação familiar entre

Dodola e Zam, tendo ela sido vendida como esposa, ainda criança, pelos pais, para um

escriba. Em se tratando de sua relação com os seus pais, essa é a única referência que se

faz aos pais de Dodola, pois parece ser no seu marido que ela encontra uma espécie de

modelo paternal. Embora ele não tenha se ausentado de reivindicar seus direitos como

esposo fisicamente, ele a ensina a ler e a escrever e, para todos os fins, a protege e cuida

do seu bem-estar físico.

Quando Dodola adota Zam, ela conta as histórias que aprendeu com seu marido,

o escriba, para o menininho. Também lhe ensina as letras e o protege, tal qual o seu

marido o fizera. Além disso, ela nunca o abandona e não mede esforços para conseguir

os meios de alimentá-los. O fato de não medir esforços para alimentar a criança é tão

desmedido, que a necessidade a leva à vida de prostituição.

3.1.3. Conflitos religiosos

Tanto em Retalhos, quanto em Habibi, conflitos religiosos internos são

evidentes. No primeiro, Craig vive sob um forte medo em relação à figura de Deus

transmitida por seus pais e seu pastor. Ele se questiona, bem como ao seu pastor acerca

de algumas passagens bíblicas que parecem se contradizer e questiona-se se a arte que

ele produz pode ser também uma forma de louvar a Deus.

Em Habibi, Zam é quem demonstra seus conflitos religiosos, pois sente muita

culpa por experimentar de uma intensa atração por Dodola e por isso resolve permitir ter

seu membro masculino extirpado, partindo da premissa que só assim ele poderia se

entregar a Deus, indo conviver com ascetas em um monastério.

Raina e Dodola são, ambas, símbolos do profano e símbolos do sagrado para os

personagens principais masculinos. Raina é envolta em uma luz sagrada para Craig, mas

também é objetificada sexualmente, e este fato também aflora a culpa do rapaz. Já

Dodola é totalmente humana, mas justamente na sua humanidade reside sua santidade,

P á g i n a | 874

embora Zam não tenha essa mesma percepção: para ele, desejar Dodola (aquela que

outrora lhe tratou como uma mãe) é agir contra Deus.

3.1.4. Abuso sexual

Craig, no romance de 2003, reporta a experiência traumática pela qual ele

passou quando criança: a do fato de que ele e seu irmão foram abusados sexualmente

pelo babá. Dodola também sofre abusos sexuais, um dos quais Zam presencia, mas nada

faz contra. Em outra entrevista, Thompson comenta:

Eu sempre quis fazer um livro sobre trauma sexual. Mesmo eu tendo

sido molestado quando criança, nunca achei isso tão prejudicial para

mim quanto o estupro de alguém muito próximo a mim. Eu tenho um

par de pessoas muito próximas a mim que foram vítimas de estupro.

Então eu experienciei um trauma de segunda mão da mesma forma

que Zam. Minha experiência foi menos grave e não tão traumática ou

violenta como as que meus amigos passaram. Levando essa

consciência comigo enquanto eu estava aflorando em minha própria

sexualidade - e também lutando com um monte de dogmas religiosos

em torno da sexualidade - é algo que eu sempre pensei em processar e

querer colocar em um livro. Não foi até que eu estar trabalhando em

Habibi que eu pensei que o personagem principal era como eu: uma

vítima de trauma sexual em segunda-mão. Que impôs o abuso a si

mesmo42

. (THOMPSON, 2012).

Assim, muito da vida do autor foi digerido e posto em Habibi. A forma como ele

trata o abuso sexual é intrigante, primeiro porque expõe que não só mulheres sofrem

abuso, mas também crianças e (além disso) crianças do sexo masculino. Ele também

não hesita em exibir as implicações do abuso sexual para a vida daqueles próximos a

quem sofreram o abuso.

É uma temática forte, perturbadora, mas a literatura não cumpre apenas o papel

de apaziguar os nervos, mas também de denunciar a sociedade os males que dentro dela

se dão. E não se pode vendar os olhos perante disso. Thompson, com certeza, não o fez.

4. Considerações finais

Diante do que foi aqui exposto, espera-se que tenha sido evidenciado que as

novelas gráficas há muito perderam seu cunho infantil, tendo se diversificado tanto

quanto aos seus temas quanto a seu público alvo. Craig Thompson escreve com

42

“I've always wanted to do a book about sexual trauma. Even though I was molested as a child I never

found that as damaging to myself as much as the rape of someone very close to me. I had a couple of

people very close to me who were victims of rape. So I did experience a second hand trauma around that

in the same way as Zam does. My experience was less severe and not as traumatic or violent as what my

friends had gone through. Carrying that awareness with me while I was coming into my own sexuality -

and also struggling with a lot of religious dogma around sexuality - it's something I've always thought

about processing and wanting to put into a book. It wasn't until I was working on Habibi that I thought

the main character was like me: a second-hand victim of sexual trauma. Who imposed abuse on

himself…” (THOMPSON, 2012)

P á g i n a | 875

sensibilidade e se mostra um artista ousado que não teme expor conflitos humanos

globais, posto que sua matéria prima é a vida, mesmo quando se trata de ficção – de

forma que é impossível caracterizar seus personagens fictícios sem atribuir tanta

tridimensionalidade a eles quanto aos de seu romance autobiográfico.

Craig Thompson é apenas um dentre vários autores que tem movimentado o

mercado de novelas gráficas para além dos Estados Unidos; e, seu lirismo visual e

verbal já é internacionalmente reconhecido, e mesmo trazendo a baila temas

controversos, sua popularidade entre os jovens é bastante significativa.

Deixa-se, então, registrado mais uma vez que a questão atual não é a falta de

leitura dos jovens, mas sim que os jovens se sentem mais atraídos por leituras

multimodais e isto é reflexo da contemporaneidade e dos muitos recursos tecnológicos à

disposição, nos quais os jovens habituam-se a fazer a leitura de diversos recursos

semióticos. Ignorar este fato pode ser prejudicial ao despertar de alguém para o mundo

literário, e sendo os romances gráficos a melhor “fusão de letramento visual com o

letramento tradicional baseada em texto” (BRENNER, 2007, XIV), essas obras podem

se constituir como um valoroso recurso de incentivo à leitura, ao invés de frustrar os

jovens leitores com as leituras tradicionais recomendadas logo de partida, deve-se

também dar a eles algo que os desperte para os encantos que a literatura mundial

contém, e instigá-los a procurar os tesouros escondidos do mundo literário; tesouros,

por vezes, escondidos sob possíveis máximas que denigrem sua imagem, tal como a de

que: HQ não é literatura.

Almeja-se que tenha ficado claro aqui, ainda, que não só existem HQ literárias,

mas que estas HQ são artística e socialmente importantes e reveladoras, que devem ser

exploradas e analisadas, inclusive (por que não?) como recurso pedagógico de forma a

despertar a consciência crítica dos alunos para importantes fatos sociais.

Referências

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2007.

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http://thequietus.com/articles/07766-habibi-craig-thompson. Acesso em: 03 de outubro

de 20013.

CRESTANI, G. Eduardo Galeano. Ficha Corrida, 23 de abril de 2012. Disponível em:

<http://fichacorrida.wordpress.com/2012/04/page/10/> Acesso em: 03 de outubro de

20013.

CRUZ, Leonardo. Em Retalhos, Craig Thompson reconta o primeiro amor. Folha

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<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u574047.shtml> Acesso em: 03 de

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MENDONÇA, M. R. de S. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In:

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WELDON, G. Mysterious 'Habibi' Cuts To The Core Of Humanity. NPR Books, 19

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humanity> Acesso em: 03 de outubro de 20013.

P á g i n a | 877

ENTRE VIDAS, ANJOS E LEIS UNIVERSAIS: OS ELEMENTOS DO

SAGRADO NO LIVRO A LEI DO AMOR DE LAURA ESQUIVEL

Raquel De Araújo SERRÃO (IFRN)

Nathalia Oliveira de BARROS (IFRN)

Resumo: Azucena e Rodrigo são almas gêmeas, mas por diversos acontecimentos

precisaram passar por evoluções espirituais ao longo de várias reencarnações até que

pudessem concretizar esse amor. Mas, além disso, Azucena tem uma missão maior, que

é ajudar a restabelecer o equilíbrio universal. É nesse contexto do romance A lei do

amor (1996), da escritora mexicana Laura Esquivel, que desenvolvemos o presente

estudo, buscando identificar e analisar os elementos do sagrado presentes na obra, uma

vez que se fala em almas gêmeas, vidas passadas, carma, reencarnação, anjos,

demônios, leis universais, que regem as existências. Dessa forma, realizamos um

trabalho de revisão bibliográfica e, a partir disso, traçamos uma breve caracterização da

obra literária, com o período em que foi escrita – pós-boom latino-americano – e as

implicações disso em sua estética literária híbrida. Tratamos ainda do uso de elementos

do sagrado na literatura e por fim delineamos nossa análise sobre a presença desses

elementos no livro de Esquivel, enfatizando como são apresentados e sua importância

para o desenvolvimento da narrativa. Para embasar as ideias que apresentamos,

consideramos referências como Shaw (2008), Gálvez Acero (1987), Barcelos (2001).

Palavras-chave: Literatura e sagrado; Pós-bom latino-americano; A lei do amor.

1. Introdução

O livro A lei do amor (1996), de Laura Esquivel, é uma obra literária com

inúmeras perspectivas de análise tanto no que se refere a sua materialidade estética

híbrida, quanto no que concerne aos seus aspectos temáticos.

Desse modo, definimos para estudo em nosso artigo, sobre este romance

produzido no contexto do pós-boom latino-americano, a presença do sagrado na obra

literária em questão, utilizado de modo peculiar pela escritora para construir sua

narrativa, dando corpo ao enredo que gira em torno do amor de Azucena e Rodrigo, mas

que representa mais do que o amor sexual entre um casal, está relacionado ao

restabelecimento da paz e do equilíbrio do cosmos.

Para tanto, tratamos dos aspectos gerais da obra, sua inserção no contexto do

pós-boom latino-americano e as relações que se estabelecem entre literatura e sagrado

na narrativa da escritora mexicana.

2. A obra A lei do amor

Almas gêmeas que se encontram e se perdem no mesmo dia, anjos e demônios

que se casam, leis universais que são quebradas e precisam ser restabelecidas, essa é a

trama de A lei do amor, de Laura Esquivel.

O livro da escritora mexicana (nascida em 1950), publicado no ano de 1996, é

apontado como o primeiro romance multimídia da literatura devido à combinação que

P á g i n a | 878

faz das linguagens literária, ilustrativa e musical, que desempenham todas papel de

grande relevância para a construção do sentido geral da obra.

A narrativa se passa no México e traz a história de Azucena e Rodrigo, que são

almas gêmeas, mas que devido à violação de leis universais no ano de 1527, quando

houve o estupro da princesa asteca Citlali pelo espanhol Rodrigo – subordinado de

Hernán Cortés – tiveram que ficar inúmeras encarnações sem poder se encontrar. Essa

permissão só é concedida no ano de 2200, quando ambos sanaram suas dívidas com o

cosmos e pagaram pelos pecados cometidos em suas existências anteriores por meio de

inúmeras reencarnações, chegando a um patamar mais elevado de evolução espiritual.

No decorrer dos 22 capítulos, Azucena e Rodrigo se encontram, concretizam seu

amor, se separam e se reencontram em meio a uma série de acontecimentos inicialmente

inexplicáveis, mas que eles vão entendendo gradativamente, à medida que fazem

regressões às suas vidas passadas e identificam pessoas que fizeram parte de suas outras

encarnações e que tem um papel direto na realidade atual.

Azucena e Rodrigo se encontram e concretizam seu amor em um momento que

enfatiza que o encontro de almas gêmeas não é algo meramente carnal, mas que envolve

sentimentos inexplicáveis de seres que se completam perfeitamente, chegando a ter a

sensação de não se tratam de duas almas, mas apenas uma. Entretanto, misteriosamente,

o rapaz desaparece e sua amada inicia uma busca incessante para encontrá-lo, pois não

aceita tê-lo perdido, após esperar tanto tempo para ter o direito de viver esse amor e

também não acredita que ele tenha ido embora por vontade própria, sem qualquer

explicação.

A protagonista recorre, então, a setores burocráticos para tentar descobrir o

paradeiro de Rodrigo e para isso utiliza recursos como um computador instalado em sua

cabeça para que fossem projetadas imagens faltas que garantissem sua contratação para

trabalhar como burocrata e assim, ter acesso a bancos de dados e músicas que pudessem

ajudá-la em sua missão e compreender tudo que estava acontecendo.

No fragmento a seguir, podemos verificar o momento em que Azucena se

submete à entrevista, estando com o computador instalado na cabeça para projetar

imagens diferentes das reais:

Os cientistas burocratas começaram a discutir calorosamente entre si.

Era de chamar a atenção a clareza das imagens que estavam

observando. Em geral, a mente recorda de maneira confusa e

desorganizada. Azucena era a primeira pessoa que conheciam que

tinha o passado bem claro. As imagens que projetava observavam

perfeita ordem cronológica. Não estavam fragmentadas, o que

significava que a moça era um gênio ou que havia introduzido

ilegalmente um microcomputador. (ESQUIVEL, 1996, p. 47.)

Como vemos, o objetivo foi alcançado e as imagens foram projetadas e, embora

tenham gerado desconfianças nos cientistas pela perfeição e organização, por fim, os

avaliadores aceitaram e confiaram no computador que estava coletando os dados da

mente da moça. E é relevante apontarmos que além de confiar na máquina, temos a

credibilidade atribuída aos eventos de outras encarnações, ou seja, ver o que uma pessoa

fez em outras vidas pode mostrar quem ela é, quais são os traços de sua personalidade e

P á g i n a | 879

isso é utilizado para traçar um perfil psicológico e definir se essa pessoa é, por exemplo,

adequada para executar determinados tipos de trabalho.

Dando continuidade a essa trajetória, Azucena troca sua alma de corpo, faz

amizade com pessoas que ela não imaginaria em outras circunstâncias, faz viagens

interplanetárias, descobre quem é sua mãe verdadeira (descoberta realizada através da

observação de imagens de recordações de vidas passadas de outra personagem do livro)

e encontra Rodrigo sem memória, sem sequer reconhecê-la. Porém, em meio a todos

esses acontecimentos, são feitas várias descobertas sobre suas outras encarnações e o

livro tem de fato um final feliz não somente pelo encontro finalmente definitivo da

protagonista com seu amado, mas também pelo restabelecimento do equilíbrio

universal, que havia sido comprometido desde 1527 por um erro grave cometido por

Rodrigo, no período da conquista do México.

Essa concepção da existência de vidas passadas, o processo de regressão para

recordar os acontecimentos de outras encarnações e a noção da importância disso para a

evolução espiritual são elementos de grande relevância para a trama, pois é a partir

disso, que os personagens entendem os fatos do presente e tomam decisões sobre ações

futuras o que dá os direcionamentos da narrativa.

Diante disso, toda a trama aparece envolta em uma esfera espiritualista que

utiliza elementos do realismo mágico – traço marcante do Boom que também se faz

presente no pós-boom latino-americano, auxiliando nas construções de narrativas

híbridas e na criação de novos gêneros literários – permitindo que seja criado um

ambiente com aspecto diferenciado, de outra realidade, afinal, parte-se do princípio de

que todos os seres humanos em 2200 têm consciência da existência de vidas passadas,

leis universais, anjos e demônios, e sabem da necessidade de passar por um processo de

evolução espiritual para não cometer os mesmos erros do passado, além de adquirir o

direito de encontrar suas almas gêmeas.

É nesse ponto que se concentra nossa análise, uma vez tratamos neste trabalho,

como esses elementos do sagrado aparecem na obra, como são entendidos e a

importância que assumem para a construção da narrativa.

Todavia, antes de passarmos a esse estudo propriamente dito, façamos uma

contextualização da obra no pós-boom latino-americano, algo que nos dá informações

sobre uma série de características do livro de Laura Esquivel.

Conforme apontamos, A lei do amor está inserida no contexto do pós-boom

latino-americano, estética literária que segundo, Shaw (2008), proporcionou a projeção

de inúmeras escritoras, após um período de predominância da escrita masculina no

Boom. O mesmo autor aponta ainda a ênfase no tratamento da temática do amor por

uma perspectiva mais otimista, considerando que através desse sentimento, a pessoa

pode se reencontrar e restabelecer seu equilíbrio próprio, diferentemente do que

predominava no Boom, que na maioria das vezes tratava o amor sob uma perspectiva

mais pessimista. E é nessa retomada da temática do amor em que reside, segundo Shaw

(2008) a importância da obra literária que aqui analisamos.

Podemos somar a isso a perspectiva de trabalho do pós-boom com as narrativas

de testemunho que partem da experiência individual para o contexto geral, ou seja, vai

do micro para o macro, delineando uma descrição da realidade. Evidentemente, o livro

de Esquivel analisado neste artigo não se enquadra como uma narrativa de testemunho,

mas é interessante pensarmos em seu aspecto de partir da experiência individual de

Azucena, que busca sua evolução espiritual para poder encontrar sua alma gêmea, mas

P á g i n a | 880

que isso não se limita à vivência individual, e sim está conectada com algo maior, ou

seja, o restabelecimento do equilíbrio do cosmos no momento em que ela vive, o ano de

2200. O microcosmos do indivíduo e de suas impressões particulares de vida elaboradas

ao longo de suas experiências. É a descoberta da dinâmica da vida, marcada na obra

através do processo sucessivo de reencarnações, no caso da obra em foco.

Porém, é interessante ressaltarmos que não há somente diferenças entre essas

estéticas há, por exemplo, a presença do realismo mágico, que embora seja uma

característica forte do Boom, também se faz presente no pós-boom, como é caso de A

lei do amor. Aqui, o uso de elementos do realismo mágico permite que a escritora possa

criar uma esfera espiritualista que se configura em uma realidade diferente da que

conhecemos, mas que para a obra se torna possível, noção esta que encontra

fundamento nas concepções de Gálvez Acero (1987) sobre o tema do realismo mágico.

O leitor é levado a mergulhar nesses elementos e buscar entender essa outra perspectiva,

que no caso faz uso de elementos do sagrado com os quais temos contato, seja por meio

de crenças próprias ou conhecimentos gerais de diferentes doutrinas religiosas.

Uma vez feitas essas considerações gerais, passaremos à análise desses

elementos do sagrado identificados na obra, buscando entender como ocorrem e como

podem ser entendidos na obra de Laura Esquivel.

3. A presença de elementos do sagrado em A lei do amor

3.1. O templo e a ordem cósmica

Segundo Mircea Eliade (2010) a consagração de um espaço sagrado perpassa

pela noção de Caos e Cosmos. A primeira vista, essa rotura no espaço entre Caos e

Cosmos parece consequência da oposição e do que se convencionou entender sobre

essas duas grandezas no que se refere à oposição entre território habitado, conhecido e

organizado, portanto “cosmizado” e o espaço desconhecido que se estende além de suas

fronteiras: o Caos.

Desse modo, tem-se de um lado o cosmos-espaço consagrado previamente,

porque de alguma forma esse território é obra dos deuses ou está em comunicação com

o mundo das deidades e do outro lado o restante, o espaço estrangeiro, caótico, uma

espécie de outro mundo povoado pelo desconhecido, isso inclui, espectros, demônios e

a alma dos mortos.

Assim, o Mundo (o nosso mundo) é um universo no interior do qual o sagrado já

se manifestou e, portanto, a rotura dos níveis Cosmos e Caos se torna possível. Dessa

forma, o momento religioso implica um “momento cosmogônico” por fundar o mundo

no sentido de se fixar nele os limites entre esse espaço “cosmizado” que habitamos e o

restante do espaço.

Dessa perspectiva é que nascem os espaços físicos sacralizados que são os

templos, pois eles tornam presentes a comunicação com o mundo dos

deuses, assegurando um intercambio comunicativo entre as criaturas e seus criadores

cósmicos.

O templo é assim a reprodução microcósmica da Criação, profanar um templo é

profanar a ordem cósmica. O templo é a abertura para o transcendente, não se podendo

P á g i n a | 881

viver no Caos. É, ele, o templo, a réplica do Universo criado e habitado pelos deuses.

Assim, seguindo essa linha de raciocínio, a destruição do templo da Deusa do Amor, na

cidade de Tenotchitlán, no ano de 1527 por Rodrigo, e para agravar a situação, o estupro

de Citlali em seu interior, decretava para os personagens, a destruição da ordem cósmica

e da comunicação com o transcendente. Parte desse momento em que Rodrigo vê Citlali

e a violenta, além de destruir o templo pode ser lido no seguinte fragmento:

Rodrigo soube no mesmo instante que o movimento que tanto o

alterava provinha de suas cadeiras. E sentiu-se completamente

desarmado. Não soube como enfrentar o desafio e caiu presa do feitiço

daquelas cadeiras. Isso tudo acontecia enquanto suas mãos estavam

concentradas em tirar a pedra que constituía o vértice da Pirâmide do

amor. Antes de consegui-lo, deu tempo para que a poderosa energia

que emanava da pirâmide começasse a circular por suas veias. Foi

uma descarga tremenda, foi um relâmpago incandescente que o

ofuscou e o fez ver Citlali já não como a simples índia que era, mas

como a própria Deusa do Amor.

Nunca havia desejado alguém tanto assim, muito menos uma índia.

Não sabia explicar o que estava acontecendo. Com ansiedade,

terminou de tirar a pedra, mais que tudo para que Citlali tivesse tempo

de chegar a seu lado. Quando a teve perto, não pôde se controlar,

mandou que os outros índios procurassem onde se instalar na parte

traseira do terreno e ali mesmo, no centro do que fora o templo, a

violentou. (ESQUIVEL, 1996, p. 10.)

Dessa maneira, era necessária a intervenção de um mecanismo que

restabelecesse essa ordem que foi quebrada. Esse mecanismo na trama ficcional é o

processo reencarnatório pelo qual Azucena e Rodrigo precisam passar não apenas uma,

mas diversas vezes até que o problema fosse solucionado e o equilíbrio cósmico

restabelecido.

O primeiro elemento de tradição sacra que nos é posto em relevo vem de

tradição hindu, que seria o ciclo dos nascimentos e das mortes, ou seja o fluxo

fenomenal da vida condicionado as ações. O movimento de ir e vir do espírito ao plano

da matéria para sanar seus karmas, transformando-os em darmas, que em sânscrito

significa “lei natural” ou melhor “caminho para a verdade superior”. A palavra karma

em sânscrito significa “ação”, mais precisamente se refere às ações praticadas durante a

vida e que terão efeitos futuros. O espírito está, assim, condicionado as suas ações para

evoluir e sair da roda de Samsara, a roda das reencarnações.

O budismo também usa o termo karma, mas para o budismo ele pode ser

positivo, negativo ou neutro, visto que karma para o budismo representa não nossas

ações, mas as intenções da ação. Contudo, isso irá também condicionar o ciclo das

reencarnações. O espírito reencarnará em outro corpo, também de forma humana, para

chegar a alcançar a pureza e a consciência do absoluto, libertando-se da Samsara.

Quando o espírito liberta-se dos grilhões da carne é sinal que ele respeitou o darma e

alcançou mais rapidamente o Nirvana.

Em ambas filosofias religiosas o fluxo da vida pode ser bom ou ruim e a

correnteza das existências segue o curso das ações e intenções, gerando as sucessivas

reencarnações. No livro esse panorama reencarnatório é explorado do começo ao fim da

P á g i n a | 882

trama. A desarmonia nasce com a quebra da lei do amor, do amor divino, do respeito a

si e ao outro, já no título temos uma referencia a uma das leis morais a serem

respeitadas – a lei do amor. Segundo O Livro dos Espíritos, codificado por Allan

Kardec, essa lei está associada a mais dois outros princípios morais, a justiça e a

caridade, quem não cumpri esses princípios, rompe-se uma trajetória de harmonia para a

elevação espiritual. Essa perspectiva é abraçada por todas as religiões

reencarnacionistas. A quebra da harmonia do amor universal, provoca uma onda de

sucessivas desarmonias.

Os vícios humanos espalham a dor e o desequilíbrio, e não foi diferente quando

na narrativa se descreve a ferocidade da chacina promovida em nome da coroa

espanhola para a conquista do México. Desse incidente repleto já de desalinho a lei

natural, lei do amor da justiça e caridade, a autora delimita nosso foco para o encontro

de uma nativa Citlali e um capitão da guarda de Hernán Cortés, Rodrigo. Esse encontro

servirá de exemplo do que acontece quando se rompe com a harmonia.

As vicissitudes humanas são teleguiadas pelas paixões: cobiça e desejo sensual;

orgulho, vaidade. E para evitá-las, o ser humano recebe a ajuda de anjos, assim como

acontece com os personagens da obra A lei do amor.

Os anjos por sua vez são dados como seres intermediários entre Deus e o mundo

material, que nos auxiliam aqui no orbe terrestre a enfrentar as tribulações. São

mensageiros, guardiães, protetores e executores de leis divinais e estão associados às

tradições judaico-cristãs, mas estão presentes também no budismo e hinduísmo, bem

como no Islamismo. Estão organizados por uma hierarquia de sete ordens ou três

tríades, conforme tradição judaico-cristã. A primeira tríade é de alta espiritualidade são

os Serafins Querubins e Tronos ou Ofenins, essa primeira está ligada diretamente a

Deus desempenhando suas funções junto ao Pai; a segunda tríade são as dominações,

virtudes e potestades, são os chamados príncipes da corte celeste; os de terceira ordem

são os principados, arcanjos e anjos. A 3ª Ordem é composta pelos anjos ministrantes,

que são encarregados dos caminhos das nações e dos homens e estão mais intimamente

ligados ao mundo material.

3.2. O sagrado e o dessacralizado

Seguindo com as ideias de Eliade (2010), o sagrado se dá no momento da rotura

do espaço, pois para o homem religioso o espaço não é homogêneo apresenta quebras,

para se estabelecer a que é sagrado e/ou produz uma comunicação com o que é sagrado

e o espaço neutro. Além disso, se estabelece também a revelação de uma “realidade

absoluta” advinda dos deuses.

O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus. O

homem das sociedades modernas, vive em um Cosmos dessacralizado. O homem

religioso acredita em uma verdade absoluta – o sagrado- que transcende esse mundo e

advém da realidade absoluta, que se manifesta no mundo santificando-o e tornando-o

real.

Reatualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem

instala-se e mantém-se junto dos deuses, quer dizer, no real e no significado. Assim,

transpondo isso para a narrativa da obra A lei de amor, entendemos que o ato de

violência praticado por Rodrigo, não só é tomado por Citlali como um ato a-religioso,

P á g i n a | 883

pois nega a transcendência do templo da deusa do amor, sua simbologia e seu

significado, mas sobretudo, podemos entender como um ato que desorganiza a ordem

harmônica do mundo, por ser uma brutal violência a destruição da cidade, o estupro, o

infanticídio e o genocídio no ato da conquista espanhola sobre a cidade de Tenochitlán.

Em 2200 o homem moderno é a–religioso assume uma nova situação

existencial: reconhece-se como o único modelo e agente da história e rejeita todo apelo

a transcendência. Por isso, na trama os processos reencarnatórios foram burocratizados,

não fazendo parte de nenhum complexo de crença. O indivíduo recebe a ficha para ir até

o CUVA (Controle Universal de Vidas Anteriores) para entender sua existência e

mudá-la conforme suas necessidades particulares de reajuste com a ordem universal.

Nada é sagrado, nada é uma hierofania.

A dessacralização está no descondicionamento de crença do processo

reencarnatório. Esse processo na narrativa é posto como um sistema de governo, foi

burocratizado e todos sabem que devem reencarnar e mudar de corpo para evoluir. Não

há, por exemplo, a morte, mas a mudança de corpos. Todos têm consciência de que são

espíritos que usam um corpo e não um corpo que usa um espírito para evoluir.

O que vemos são elementos do sagrado cuja existência é de conhecimento de

toda a população mundial, todos sabem que viveram vidas passadas e que devem

recordá-las para identificar os erros que cometeram e pagar por eles. Azucena, por

exemplo, descobre por fim que foi a maior assassina de todos os tempos; Rodrigo

violentou uma princesa asteca sobre o local onde havia o tempo de adoração a uma

deusa do amor, e por esses erros eles precisaram reencarnar inúmeras vezes até terem o

direito de se encontrar e ficar juntos. Mas o interessante disso é que não se trata de

considerar uma concepção religiosa especificamente, mas de um fato comprovado,

como um conhecimento científico dos quais se tem provas materiais.

Ao pensarmos, por exemplo, na noção de morte, temos que a morte do corpo não

implica a morte da alma, e a importância dada ao corpo é tão reduzida que há a

possibilidade de trocar de corpo sem dar um destino à matéria deixada de lado. Não há

no livro de Esquivel, menção a rituais em torno da morte, pois ela é simplesmente uma

etapa do processo de evolução espiritual. A protagonista da narrativa, para fugir dos

inimigos que aparecem em seu caminho tentando matá-la, troca de corpo, mas não se

preocupa com o destino dele, e até se sente satisfeita com novo corpo que assume.

Quando faz uma nova troca, apenas se lamenta porque assume um corpo doente e velho

o que dificultada a tentativa dela de cumprir sua missão de restabelecimento do

equilíbrio universal.

No momento em que tudo se resolve, ela recebe o direito de reassumir o seu

corpo original, entretanto, ele já havia sido ocupado por outra alma, mas esta, que

aparece denominada de “falsa Azucena” não se incomoda em devolvê-lo, pois entende

que sua missão nessa vida estava concluída e sua alma precisava agora renascer em

outro corpo e continuar sua evolução.

Outro ponto interessante a ressaltarmos no livro, é a menção a anjos da guarda

que interferem de algum modo na vida de seus protegidos para que eles possam seguir o

caminho correto. Mesmo quando o guardião de Azucena tenta ajudá-la e ela se recusa a

seguir suas orientações, ele recorre a subterfúgios para conseguir auxiliá-la e fazer com

que ela não desvie de sua missão maior – o restabelecimento do equilíbrio universal.

Para isso, Anacreonte, ora manipula outra personagem – Cuquita – para que esta sugira

o que Azucena pode fazer para solucionar seu problema - e de fato a protagonista acaba

aceitando a sugestão – ora usando assistentes como Teo: “Teo era um dos Anjos da

P á g i n a | 884

Guarda undercover com que Anacreonte trabalhava na Terra. Recorria a eles em caso de

extrema necessidade, e este era um deles. Não podiam deixar que Azucena se

deprimisse novamente.” (ESQUIVEL, 1996, p. 201).

O objetivo do anjo da protagonista, cuja existência era de conhecimento dela, era

evitar que a astroanalista desanimasse com tantas dificuldades e acontecimentos

inesperados e acabasse se desviando de sua missão de restauração da ordem universal.

Temos aqui, mais um elemento do sagrado que converte em algo desvinculado da fé,

pois não é preciso acreditar em anjos, simplesmente se sabe de sua existência.

Assim, com base nas observações da obra literária em foco, podemos estabelecer

uma relação com as ideias de Barcelos (2001) sobre a espiritualidade ser uma

experiência interpretada e sobre a possibilidade de debate da espiritualidade quando esta

aparece materializada no texto, neste caso literário. Verificamos os traços que

identificamos como elementos do sagrado como as noções de reencarnação, de

existência de almas gêmeas, de evolução espiritual, bem como a presença de anjos da

guarda, mas que tudo isso é entendido dentro da realidade que se propõe na narrativa e

somente nela fará sentido e poderá ser interpretado nesse contexto. É a forma como o

sagrado está presente em A lei do amor, uma realidade em que perde a sacralidade pelo

descondicionamento da crença, ou seja, uma forma distinta de entender todos os

aspectos mencionados. Todavia, uma vez que tudo isso se materializa no texto literário,

se torna passível de debate.

Enfim, esse debate acerca do texto de Laura Esquivel nos leva ao entendimento

de que nesta obra literária os elementos sagrados se fazem presentes em toda a narrativa

e, inclusive, determinam o comportamento dos personagens e suas ações, mas ao

mesmo tempo perdem sua sacralidade devido ao fato de estarem desconectados da

crença, isto é, não é preciso acreditar em reencarnação ou em anjos, pois isso é de certa

forma, tratado como um conhecimento científico, não depende de fé, o que não faz com

que seja perdida a esfera espiritualista e sobrenatural.

4. Considerações finais

O sagrado é um elemento inerente à constituição social das sociedades humanas

e esse aspecto passou a ser explorado em toda a narrativa. Na construção de A lei do

amor, de Laura Esquivel optou por criar um plano de realidade diferenciado, no qual faz

uso de elementos do sagrado como processo reencarnatório, almas gêmeas, leis

universais, anjos da guarda, etc., para criar uma esfera espiritualista, em certa medida

sobrenatural, mas que perde essa sacralidade no momento em que todas essas noções

são burocratizadas.

Em 2200, toda a população mundial tem consciência de suas vidas passadas e

que precisam trabalhar em função de sua evolução espiritual. Existem órgãos públicos

para auxiliar nesse processo, dar informações sobre vidas passadas e sobre quantas

vezes mais será preciso reencarnar até pagar todas as dívidas, pagar por todos os erros

cometidos no passado. E é em meio a essa realidade que Azucena encontra sua alma

gêmea, Rodrigo, se perde dela e faz de tudo para encontrá-la novamente.

É nessa caminhada que se concentrou nossa análise, pois ela revelou como os

elementos sagrados mencionados passam pelo processo de dessacralização por terem

sido desatrelados do condicionamento da crença. Não é preciso ter fé ou crer em vidas

P á g i n a | 885

passadas, pois isso é como um conhecimento científico no futuro em que a narrativa se

passa.

Portanto, essa obra inserida no pós-boom latino-americano tem aspectos bem

pontuais como: ter o amor como elemento de renovação e evolução da natureza

humana; ser de escrita feminina (o pós-boom se caracteriza como um período de maior

evidencia da escrita feminina); ser obra marcada pelo apelo ao espiritualismo e,

sobretudo, dar um tratamento diferenciado a representação da sexualidade.

Referências

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Espiritualidade: uma leitura de Jeunes

Années, de Julien Green. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

CHEVALIER, Jean/GHEERBRANT, Alan. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:

José Olympio. 1999.

ELIADE, Micea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério

Fernandes. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

ESQUIVEL, Laura. A lei do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

GÁLVEZ ACERO, Marina. La novela hispanoamericana contemporánea. Madrid:

Taurus, 1987.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,

2007.

SHAW, Donald Lewis. Nueva narrativa hispanoamericana: Boom. Posboom.

Posmodernismo. 9 ed. Madrid: Cátedra, 2008.

MACHADO, Cínthia Marítz dos Santos Ferraz. A representação da experiência

espiritual na literatura: Uma tentativa de aproximação entre literatura e teologia.

Darandina Revisteletrônica. Disponível em:

http://www.ufjf.br/darandina/files/2011/09/A_representa%C3%A7%C3%A3o_da_expe

ri%C3%AAncia_espiritual_na_literatura.pdf. Acesso em: 01 de outubro de 2013.

P á g i n a | 886

CHAPEUZINHO VERMELHO PÓS MODERNISTA: UMA ANÁLIDE DOS

CONTOS DE ANGELA CARTER

Luan Pereira CORDEIRO (PIVIC - UFCG/PB)43

Fernanda Aquino SYLVESTRE (UFU/MG)44

Resumo: O presente artigo tem como objetivo estudar os contos The Werewolf e The

Company of Wolves, de Angela Carter, pertencentes à obra The Bloody Chamber,

buscando verificar por que, como e em que medida a autora retoma e/ou subverte as

narrativas maravilhosas tradicionais dos séculos XVII e XVIII, ressaltando os aspectos

pós-modernistas impetrados nas obras de autora. Foi evidenciado um breve percurso

histórico dos contos de fadas na Literatura Fantástica; além das temáticas relacionadas ao

contexto pós-moderno, à literatura contemporânea e à intertextualidade. A partir da

análise dos dois contos escolhidos de Carter, puderam-se ser compreendidas diferenças

nas traduções de autores contemporâneos, em específico, Angela Carter, que retoma os

contos de fadas tradicionais transgredindo-os de forma irônica e mostra novas versões

“mais adequadas” ao mundo contemporâneo, questionando os valores sociais e

psicológicos da atualidade.

Palavras-chave: Literatura fantástica. Conto maravilhoso. Literatura pós-moderna.

Intertextualidade.

1. Introdução

A presente pesquisa consta na versão mais compacta do projeto de pesquisa O

estudo do maravilhoso em contos de Angela Carter que foi submetido ao PIVIC 2012 -

2013 pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, que teve como finalidade

apresentar os resultados obtidos a partir de um estudo de dois contos contemporâneos

tidos como uns dos mais importantes da autora Angela Carter. A partir da bibliografia

selecionada, pôde-se compreender o quanto a literatura fantástica está presente em

contos contemporâneos, em decorrência disso, o sobrenatural e o maravilhoso são

frequentes nos contos de fadas.

Além disso, Angela Carter é conhecida como uma autora pós-modernista, pelo

fato de contribuir com “versões contemporâneas”, feitas a partir de contos tradicionais

dos séculos XVII e XVIII, subvertendo-os, entre um jogo de críticas aos aspectos

culturais e costumes da sociedade burguesa da época, encontrados nos contos

“tradicionais” ou de origem. Com essas críticas implícitas, Carter busca aproximar mais

esses contos à nossa realidade atual.

Logo, ao analisar a natureza dos sentidos e a intertextualidade presentes na obra de

Angela Carter, é necessário que haja uma articulação com esses propósitos críticos para

promover o amplo entendimento de suas obras, com acréscimo da comparação de

versões traduzidas e provenientes de contos tradicionais.

43

Aluno do Curso de Licenciatura em Letras, com habilitação em Língua e Literaturas Inglesas na

Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-mail: [email protected] 44

Professora, Doutora, da Universidade Federal de Uberlândia – MG e orientadora do trabalho de

pesquisa. E-mail: [email protected]

P á g i n a | 887

2. Os contos de fadas

Uma série de contos populares surgiu entre os séculos XVII e XVIII na Europa,

muitos deles foram transmitidos de geração para geração e contados nas camadas

populares da sociedade "em torno às lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as

longas noites de inverno" (DARTON, 1986, p. 21), até que foram coletados da

oralidade, feitos os registros escritos e publicados em volumes únicos. Entre os

escritores mais conhecidos estão o francês Charles Perrault e os Irmãos Jacob e

Wilhelm Grimm na Alemanha.

Segundo Darton, os contos populares:

[...] são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e

sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais.

Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem,

sugerem que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar a

distância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos

imaginarmos pondo um filho nosso para dormir contando-lhe a primitiva

versão camponesa do conto Chapeuzinho Vermelho (DARTON, 1986, p.

26).

Na literatura contemporânea, há uma retomada dos contos de fadas advindos das

tradições orais. Muitos autores, dentre eles, o autor norte-americano Robert Coover e a

escritora inglesa Angela Carter retomam esses contos de fadas consagrados e transgrede-os

ironicamente, mostrando novas versões mais adequadas ao mundo contemporâneo e

questionando os valores sociais e psicológicos da atualidade. Devido à natureza deste

trabalho, apenas as obras da autora Angela Carter serão pesquisadas.

Com as leituras de Coelho (1987), Canton (1994) e Warner (1999), foi

verificado que alguns contos de fadas já haviam sido publicados antes mesmo de

Perrault publicar: Giovanni Boccaccio e Geoffrey Chaucer escreveram narrativas com

conteúdo folclórico, posteriormente presente também em contos de fadas. Além deles,

Giovani Francesco Straparola escreveu diversas histórias com temas que faziam parte

desse tipo de conto e, Giambattista Basile, publicou o primeiro conto de fadas artístico

moderno: “Lo cunto de li cunti”, por volta de 1634.

O conto de fadas nem sempre faz jus ao nome, as fadas podem ou não estar

presente. Além das fadas, o conto pode apresentar gnomos, gigantes, gênios, bruxas,

objetos encantados, mágicos, etc. Sylvestre (2008) complementa, defendendo que há:

um aproveitamento dos contos de fadas clássicos como forma de

subvertê-los, transformá-los, relê-los dentro de uma nova perspectiva,

que rompe com os valores do passado, apresentando novos valores

condizentes com a sociedade dita pós-moderna, em que já não faz

mais sentido pensar-se no real e em grandes narrativas diante de um

mundo repleto de simulacros, globalizado, povoado por excessivas

informações (SYLVESTRE, 2008, p. 42)

3. Chapeuzinho Vermelho e os contos Maravilhosos

P á g i n a | 888

Entre as narrativas dos séculos XVII e XVIII, está o conto maravilhoso

Chapeuzinho Vermelho, que ganhou uma de suas primeiras versões literárias nas mãos

de Perrault e, em sequência, a versão dos irmãos Grimm.

Podemos perceber que as diversas versões dessa narrativa apresentam alguns

elementos constantes nos personagens Chapeuzinho, a avó e o lobo, mas, de acordo

com o tempo e o público em que/para qual as novas versões foram criadas, houve

algumas alterações, como o enredo e o desfecho do conto.

Chapeuzinho Vermelho foi publicado inicialmente por Charles

Perrault, no final do século XVII, para a corte do rei Louis XIV, que

pretendia levar uma moral às moças, especialmente, as bonitas, finas e

educadas, para que não fossem enganadas em ouvir estranhos, mesmo

os que fingem ser gentis, representados pelo lobo. Mais

especificamente, uma possível leitura, tendo em vista que era

coloquialismo da época dizer que uma menina ao perder a virgindade

tinha “visto o lobo”, é a de cunho sexual, visto que as moças deviam

perceber os maus pretendentes, sedutores e perigosos que as

circundavam (CORDEIRO & SANTOS, 2012, p.7)

Na versão de Chapeuzinho Vermelho publicada pelo francês Charles Perrault, há

uma ênfase na linhagem feminina, estendida em três gerações: filha, mãe e avó, e a

presença de apenas um personagem do sexo masculino, representada unicamente pelo

lobo, que revela ameaça, terror e violência, dando sequência a um desfecho trágico do

enredo: “E assim dizendo, o malvado lobo se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a

comeu.”, dessa forma, o conto ganhou um cunho moralista e realista.

Ao considerarmos elementos contextuais, como por exemplo, a época em que as

obras foram escritas, os valores defendidos, e o público a quem se dirigia fica claro que

há uma distinção significativa com relação ao desfecho de cada obra. Na versão dos

irmãos Grimm, foi inserido o “caçador” no desfecho, personagem masculino tido como

o herói na narrativa, deixando transparecer o entendimento de que nem todos os homens

são maus e perigosos:

[...] o caçador passou em frente à casa da vovó, ouviu o barulho e

pensou: “Olha só como velhinha ronca! Estará passando mal!? Vou

dar uma espiada.”

[...] “Aposto que este danado comeu a vovó, sem nem ter o trabalho

de mastigá-la! Se foi isso, talvez eu ainda possa ajudar!”.

“Guardou a espingarda, pegou a tesoura e, bem devagar, bem de leve,

começou a cortar a barriga do lobo ainda adormecido. Na primeira

tesourada, apareceu um pedaço de pano vermelho, na segunda, uma

cabecinha loura, na terceira, Chapeuzinho Vermelho pulou fora.

(GRIMM, 1997)

Entretanto, percebemos que até mesmo os aspectos negativos presentes na

versão dos Irmãos Grimm foram “suavizados”, a exemplo do lobo não chegar a morrer,

após abrir sua barriga e colocar pedras dentro dela, fazendo surgir a temática de que o

amor e a solidariedade se sobrepõem ao mal, trazendo o efeito moral para a história,

P á g i n a | 889

descartando a hipótese de aterrorizar o público-alvo com a lição imposta a Chapeuzinho

Vermelho: “Não pare para conversar com ninguém, e vá em frente pelo seu caminho”.

[...] além de os irmãos Grimm escreverem a obra em um período em

que se reconhecia a sensibilidade da mentalidade de uma criança a

certas situações, havendo a preocupação de não traumatizar o leitor

infantil, o século XIX se destaca como o auge do Romantismo,

corrente estética que trouxe ao mundo um caráter mais sentimentalista

e humanitário [...] (CORDEIRO & SANTOS, 2012, p.7)

Chapeuzinho Vermelho é um conto que se tornou tradicional na literatura

brasileira e clássico da literatura mundial, enquadrado no gênero literário maravilhoso,

por apresentar o sobrenatural de forma natural em algumas situações. Tornou-se

bastante popular entre o público infanto-juvenil e acadêmico, é originário da Europa e

“já era uma história antiga” (BETTELHEIM, p. 204). Foi publicado pela primeira vez

no ano de 1697, pelo escritor francês Charles Perrault intitulada de Le Petit Chaperon

Rouge, sendo esta obra escrita “para a corte e não para as crianças” (SYLVESTRE,

2008, p. 39).

Por volta do ano 1812, foi publicada uma nova versão com algumas adaptações

pelos irmãos Grimm, com o nome de Rotkäppchen, voltada para adultos e crianças.

No entanto, pode-se considerar que Perrault seria apenas um coadjuvante no

sentido de recolher vários contos populares da época, entre eles Chapeuzinho Vermelho,

e publicá-los oficialmente em seu nome. Daí em diante, estes contos foram sendo

disseminados entre as diferentes classes sociais da época e ganhando popularidade, até

os dias hoje. Começaram a ser traduzidos para outras línguas/culturas e ganharam o

mundo.

Mais precisamente, no século XIX foram surgindo versões adaptadas a partir dos

contos tradicionais por diversos autores da literatura mundial, inclusive, autores

contemporâneos, entre eles Angela Carter, com os contos The Werewolf, The Company

of Wolves, Wolf-Alice, entre outros, publicados no livro The bloody chamber and other

stories, tais quais ganharam pontos em comum com a obra original, Chapeuzinho

vermelho, através da intertextualidade e parafraseamento de trechos – os dois primeiros

serão retomados na análise deste trabalho.

Em Morfologia do conto maravilhoso, Propp afirma que:

podemos chamar conto maravilhoso, do ponto de vista morfológico, a

qualquer desenrolar de ação que parte de uma malfeitoria ou de uma

falta, e que passa por funções intermediárias para ir acabar em

casamento ou em outras funções utilizadas como desfecho. A função

limite pode ser a recompensa, alcançar o objeto desejado ou, de uma

maneira geral, a reparação da malfeitoria, o socorro e a salvação

durante a perseguição, etc. Chamamos a este desenrolar de ação uma

sequência. Cada nova malfeitoria ou prejuízo, cada nova falta dá lugar

a uma nova sequência. Um conto pode ter várias sequências, e quando

se analisa um texto, é necessário em primeiro lugar determinar de

quantas sequências este se compõe. (PROPP, 1983, p. 144)

P á g i n a | 890

4. Angela Carter e o pós-modernismo

As obras de Carter possuem uma perspectiva considerada por críticos como pós-

moderna, pelo fato de muitos de seus contos serem paródias e subverterem as funções

originais desses elementos, característica comum de obras de escritores dos anos 1970

em diante.

[...] Carter is rewriting the tales within the strait-jacket of their original

structures. The characters she re-creates must to some extent, continue

to exist as abstractions. Identify continues by role, so that shifting the

perspective from the impersonal voice to inner confessional narrative

as she does in several of the tales, merely explains, amplifies and re-

produces rather than alters the original, deeply […]. (GAMBLE,

2001, p. 120)

As versões escritas por Carter foram feitas a partir de contos de fada e estão

povoadas de críticas implícitas, relacionadas à aspectos culturais, costumes da sociedade

burguesa da época, etc; fatores facilmente encontrados nos contos “tradicionais” ou de

origem.

Nessa perspectiva, tornou-se devidamente importante identificar as relações de

domínio e poder empregadas em certas culturas, além dos comportamentos emanados

de cada personagem que Carter “recria”.

Os contos de Carter criticam elementos basilares da sociedade capitalista no

momento de máximo consumo ditado pelos veículos de comunicação, trazendo à tona os

papéis “semelhantes” na contemporaneidade e alguns fundamentos da sociedade moderna,

tais como os costumes dos burgueses, modelos de relacionamento estabelecidos pela

família e pela religiosidade na sociedade burguesa, apresentados nos contos populares:

que “ditam, padronizam e determinam formas de comportamento e de relacionamento”

(SYLVESTRE, 2008, p. 42); a exemplo dos contos que foram recolhidos das tradições

orais e publicados por Perrault, pelos Irmãos Grimm, entre outros nomes. Vale salientar

que muitos destes contos sofreram alterações ao longo do tempo e foram adaptados ou, até

mesmo, foram feitas versões, tendo em vista a aceitação em diversas culturas, as quais

os contos foram inseridos.

5. A intertextualidade nos contos de Carter: Uma releitura parodística

A produção dos contos de Angela Carter gerou uma nova possibilidade de

releitura do tradicional conto de Chapeuzinho Vermelho. Por assim dizer, esse processo

de adaptação também é um processo de intertextualidade, uma vez que, tal como define

Marcuschi (2008), é uma “propriedade constitutiva de qualquer texto e o conjunto das

relações explícitas ou implícitas que um texto ou grupo de textos determinado mantém

com outros textos” (Dicionário de análise do discurso, 2004, p.190).

Maingueneau (1984) (apud MARCUSCHI, 2008) faz a distinção entre

intertextualidade e intertexto, considerando este como os “fragmentos discursivos” que

aparecem no texto, e aquele como “o princípio geral que rege as formas de isso

P á g i n a | 891

ocorrer”, isto é, as regras de o intertexto se incidir. Koch e Elias (2009) apresentam o

conceito de intertextualidade e intertexto de maneira intrínseca aos gêneros textuais,

sendo, portanto, o primeiro definido como um fenômeno que ocorre “quando aquele que

escreve produz um gênero em formato de outro, mantendo, contudo, a função do texto-

base” (p.62), e o segundo considerado como “o conjunto de gêneros de texto elaborados

por gerações anteriores e que podem ser utilizados em cada situação específica, com

eventuais transformações”, ou seja, determinado pelos contextos sociais de uso.

Na verdade, atualmente há uma tendência a se considerar que todo e qualquer

texto possui um caráter intertextual, pois nenhum texto é produzido sem embasamentos

de outros textos já existentes. No entanto, há textos que apresentam a intertextualidade

de maneira mais aparente, ainda que não seja através de citações ou alusões, de caráter

mais explícito. Devido a isso, alguns autores, como Marcuschi (2008), consideram que

quando há essa ocorrência, a ela dá-se o nome de hipertextualidade, que inclui

fenômenos como o pastiche, a paródia, etc.

Nessa perspectiva, uma das possibilidades a se considerar, é a de que Angela

Carter, em seus contos, faz uso de uma hipertextualidade, ou mais especificamente, de

uma paródia, tida como “efeito de deslocamento”, bem como defende Santanna (2008),

visto que, segundo o autor, “falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças”.

(p.29). A paródia possui um viés contestador, “colocando as coisas fora de seu lugar

certo”, denunciando ambiguidades, contradições e duplicidades, possibilitando que o

leitor construa uma leitura diferente do convencional, através de uma visão crítica.

Através da paródia, o escritor pode substituir e excluir alguns

elementos/situações da obra tida como referência, considerando também que “a paródia

de uma tragédia será uma comédia”, ao mesmo tempo em que quando há uma

motivação fortemente marcada ou com traços cômicos, a paródia desta poderá ser uma

tragédia. (TYNIANOV, In: SANTANNA, 2008).

6. Verificando dois contos de Angela Carter

A partir das concepções fundamentadas anteriormente, será iniciada uma análise

referente a dois, entre os principais contos da autora Angela Carter, The werewolf (C1) e

The company of wolves (C2), que fazem parte do livro The blood chamber.

Algo característico de Carter, em seus contos, é a apresentação ao leitor do que

está por vir. Os contos escolhidos trazem, já no título, algo típico dos contos

maravilhosos, que é a menção de seres que não condizem com a realidade na qual

vivemos: “The werewolf”, por exemplo, no português brasileiro equivale a

“lobisomem”, um ser que não é real e está muito presente em filmes e obras de

ficcionais. O título do conto C2: “The company of wolves”, pode ser traduzido para o

português brasileiro como: “Na companhia dos lobos”, algo que é humanamente

impossível. Entretanto, é a partir do título que o leitor obtém pistas, já criando uma

expectativa com relação à narrativa:

As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título,

das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua

configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num

sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é

P á g i n a | 892

um nó dentro de uma rede. (FOUCAULT, In: HUTCHEON, 1987, p.

167).

Além dos títulos, o início dos contos de Carter, geralmente nas primeiras linhas,

oferecem informações ou descrições daquilo que virá a ser parte constituinte do

entendimento global da trama, situando o leitor e oferecendo-lhe o cenário no qual as

ações são desencadeadas:

C1: “It is a northern country; they have cold weather, they have cold hearts.

Cold; tempest; wild beasts in the forest. It is a hard life. Their houses are built of

logs, dark and smoky within. […] A bed, a stool, a table. Harsh, brief, poor

lives.” (p.73)

C2: “The wolf is carnivore incarnate and he's as cunning as he is ferocious; once

he's had a taste of flesh then nothing else will do.” (p.74)

C2: “It is winter and cold weather. In this region of mountain and forest, there is

now nothing for the wolves to eat. Goats and sheep are locked up in the byre, the

deer departed for the remaining pasturage on the southern slopes--wolves grow

lean and famished”. (p. 74)

Nesses momentos iniciais que constam na “situação introdutória”, o leitor já se

apropria, em ambos os contos – C1 e C2 –, das informações correspondentes às

particularidades do espaço/cenário proposto; e são trazidas, de forma enfática, algumas

características do lobo (C2). Ao mesmo tempo, apesar de serem contos distintos, há

uma ligação entre ambos com a revelação de alguns pontos em comum nestes aspectos

citados e há, também, uma aproximação por meio do intertexto, proveniente dos contos

tradicionais do séc. XII.

De acordo com Hutcheon (1991, p. 166), “uma obra literária já não pode ser

considerada original”, pode ser considerada apenas “como parte de discursos anteriores

que qualquer texto obtém sentido e importância”. Os contos tradicionais são retomados

nas narrativas contemporâneas através da intertextualidade ou em forma de paródia. As

versões dos contos de Carter trazem vários aspectos que são similares às versões dos

Irmãos Grimm e Perrault do conto Chapeuzinho Vermelho, tais como: a inserção de

personagens similares à “Chapeuzinho Vermelho”, sua mãe, o lobo (lobisomem) e a

avó; o cenário é parecido, “ter que atravessar a floresta para chegar até a casa da avó” e,

no percurso, “se encontrar com o lobo” (lobisomem); o enredo lembra um pouco as

duas primeiras versões publicadas, pelo fato de envolver uma mesma contextualização,

Chapeuzinho Vermelho “levar algo para a sua avó”.

A intertextualidade é identificada de forma mais intensa nos diálogos entre

Chapeuzinho Vermelho, nos trechos a seguir do conto C2:

C2: - What big eyes you have.

- All the better to see you with.

- What big arms you have.

P á g i n a | 893

- All the better to hug you with.

- What big teeth you have!

- All the better to eat you with.

Essa parte do conto fica evidente a intertextualidade com o uso do diálogo entre

o lobo e chapeuzinho vermelho, presente nas versões tradicionais de Perrault e dos

irmãos Grimm no conto Chapeuzinho vermelho, que foram traduzidas para o Português

Brasileiro pelas tradutoras Regina Reis Junqueira e Nilce Teixeira, respectivamente,

conforme mostradas abaixo:

— Vovó, como são grandes os seus braços!

— É para melhor te abraçar, minha filha!

— Vovó, como são grandes as suas pernas!

— É para poder correr melhor, minha netinha!

— Vovó, como são grandes as suas orelhas!

— É para ouvir melhor, netinha!

— Vovó, como são grandes os seus dentes!

— É para te comer! (PERRAULT, 1999)

— Oh, vovozinha, que braços longos você tem!

— São para abraçá-la melhor, minha querida menina!

— Oh, vovozinha, que olhos grandes você tem!

— São para enxergar também no escuro, minha

menina!

— Oh, vovozinha, que orelhas compridas você tem!

— São para ouvir tudo, queridinha!

— Oh, vovozinha, que boca enorme você tem!

— É para engolir você melhor!!!. (GRIMM, 1997)

São poucas as diferenças e é notório que há o mesmo diálogo entre Chapeuzinho

Vermelho e o lobo na “tradução” da versão de Angela Carter por Luciano Vieira

Machado, encontrada no livro 103 Contos de fadas de Angela Carter:

Vovó, que braços grandes você têm!

São para te abraçar melhor, queridinha.

Vovó, que pernas grandes você tem!

São para correr melhor, queridinha.

P á g i n a | 894

Vovó, que orelhas grandes você tem!

São para te ouvir melhor, queridinha.

Vovó, que olhos grandes você tem!

São para te ver melhor, queridinha.

Vovó, que dentes grandes você tem!

São para te comer melhor, queridinha.

(MACHADO, 2007, p. 236)

É perceptível que a estratégia de tradução do Luciano Vieira Machado é

diferenciada pelo fato de não seguir à risca a tradução de todos os trechos que são

apresentados nos contos da autora Angela Carter, ou seja, não há a inclusão de alguns

trechos do texto fonte em inglês, exemplificado a seguir, com as respectivas traduções:

C2: “What big eyes you have.”

“All the better to see you with.”

“No trace at all of the old woman except for a tuft of white hair that had caught

in the bark of an unburned log. When the girl saw that, she was in danger of

death.”

“Where is my grandmother?”

“There’s nobody here but we two, my darling.” (CARTER, p. 80)

A partir desse trecho do conto, vemos que não há a inclusão da voz do narrador

entre o diálogo de Chapeuzinho Vermelho e o lobo, nem há a sequência de perguntas

como nas outras traduções supracitadas. Sendo, assim, consequentemente, a tradução de

Luciano Vieira Machado se aproxima mais das traduções do conto Chapeuzinho

Vermelho dos Irmãos Grimm e Perrault nas versões das tradutoras Regina Reis

Junqueira e Nilce Teixeira, e não se aproxima tanto das versões dos contos que

rebuscam elementos do conto tradicional “Chapeuzinho Vermelho”, presentes, por

exemplo, nas obras da autora Angela Carter.

No conto C1 há muitas similaridades – tomando como referência as versões dos

Grimms e Perrault traduzidas para o Português Brasileiro – quanto ao enredo, cenário e

contextualização, porém não há o diálogo entre os personagens “Chapeuzinho” e o

“Lobo” como no conto C2.

Como sabemos, os contos entre os séculos XVII e XVIII, tiveram influências da

cultura da civilização do tempo em que surgiram, podemos identificar aspectos que

estão vinculados à cultura de uma sociedade “patriarcalizada”, típicos nesse tempo.

Como podemos observar a seguir, em trechos do conto The werewolf, de Carter, esses

aspectos são modificados e/ou subvertidos de acordo com a realidade pós-moderna,

assim, traços de sociedades patriarcalizadas foram deixados de lado pela escritora:

C1: “Here, take your father’s hunting knife; you know how to use it.” (p.73)

P á g i n a | 895

C2: “The grave-eyed children of the sparse villages always carry knives with

them when they go out [...]. Their knives are half as big as they are, the blades

are sharpened daily.” (p. 75)

No momento anterior a esse, do conto C1, a mãe pede que a filha vá até a casa

da avó, que estava doente, para lhe levar comida e, logo após, oferece à filha algo que

ela pudesse se defender no caminho: “a faca de caça de seu pai”, retratando que os

costumes da época apresentados nos contos tradicionais foram deixados de lado, diante

dos traços da figura feminina como um ser “delicado”, caseiro e que não poderia

exercer certas funções impostas à figura masculina, costumes estes prezados no tempo

em que as duas primeiras versões do conto Chapeuzinho Vermelho foram publicadas.

Mais adiante, já no caminho para a casa de sua avó, “Chapeuzinho” se encontra

com o “lobo” – de acordo com o enredo dos contos de Carter, na tradução, seria mais

adequada a palavra lobisomem para os dois contos objetos de pesquisa deste trabalho –

e o encara:

C1: “It was a huge one, with red eyes and running, grizzled chops; any but a

mountaineer’s child would have died of fright” (p. 73)

O lobo a ataca, mas “Chapeuzinho” utiliza a faca de seu pai e consegue se livrar

dele:

C1: “It went for her throat, as wolves do, but she made a great swipe at it with

her father’s knife and slashed off its right forepaw.” (p. 73)

No conto C2, o enredo é um pouco diferente, ela escuta o lobo uivando ao longe

e não se encontra com um lobo, mas sim com um rapaz aparentemente atraente:

C2: “When she heard the freezing howl of a distant Wolf, her practised hand

sprang to handle of her knife, but she saw no sign of a wolf at all […] when she

heard a clattering among the brushwood and there sprang on to the path […] a

very handsome young one […] ” (p. 77)

A garota se assustou ao se encontrar com esse “jovem”, mas ao vê-lo ficou mais

tranquila e o jovem rapaz tratou de confortá-la fazendo algo engraçado:

C2: “[…] he laughed with a flash of white teeth when he saw her and made her

a comic yet flattering little bow; she’d never seen such a fine fellow before […]”

Os trechos acima mostram a diferença entre os enredos dos contos C1 e C2,

apesar de manterem aspectos semelhantes às versões tradicionais do conto Chapeuzinho

P á g i n a | 896

Vermelho, tais como a contextualização, o motivo pelo qual a garota (Chapeuzinho

Vermelho) tem de atravessar a floresta, o próprio cenário e o encontro. No entanto,

comprova que há traços advindos dos contos populares incorporados no enredo

contemporâneo da autora Angela Carter, já vistos anteriormente.

Os desfechos dos contos C1 e C2 também apresentam suas particularidades e

acontecimentos inéditos. No conto C1, quando a garota cortou a pata direita do lobo, ela

continuou seguindo para a casa da sua avó, carregando a pata dentro da cestinha onde

guardava a comida que seria entregue à avó. Ao chegar lá, encontrou a sua avó muito

doente:

C1: “She found her grandmother was so she had taken to her in bed fallen into a

fretful sleep, moaning and shaking so that the child guessed she had a fever

[…]” (p. 74)

Quando a garota se aproximou, colocou a mão na cabeça da avó e viu que estava

mesmo com febre:

C1: “She felt the forehead, it burned. She shock out the cloth from her basket, to

use it to make the old woman a cold compress, and the wolf’s paw fell to the

floor.” (p. 74)

No momento em que caiu a pata no chão, algo inusitado estava para acontecer; a

garota percebe que não se tratava de uma pata, mas de uma mão:

C1: “But it was no longer a wolf’s paw. It was a hand, chopped off at the wrist,

a hand toughened with work and freckled with old age. There was a wedding

ring on the third finger and a wart on the index finger. By the wart, she knew it

for her grandmother’s hand.” (p. 74)

Ela remove o lençol da velha a fim de verificar o motivo da febre:

C1: “She pulled back the sheet but the old woman woke up, at that, and began to

struggle, squawking and shrieking […] she managed to hold her grandmother

down long enough to see the cause of her fever. There was a bloody stump

where her right hand should have been […] (p. 74)

A garota se assusta e desperta a atenção da vizinhança, que descobriram se tratar

de uma feiticeira:

C1: “The child crossed herself and cried out so loud the neighbors heard her and

come rushing in. They knew the wart on the hand at once for a witch's nipple;

they drove the old woman out […], beating […] and pelted her with stones until

P á g i n a | 897

she fell down dead. Now the child lived in her grandmother's house; she

prospered.” (p. 74)

O conto C2, também apresenta um desfecho diferenciado e inusitado.

Começando pela sedução não só da garota, mas da avó da garota por parte do jovem de

boa aparência que encontrara com a menina no caminho da floresta; o momento no qual

a garota se encontrou com ele na floresta e conversaram bastante a caminho da casa de

sua avó, como se já se conhecessem por muito tempo. Em certo momento da conversa,

fizeram um tipo de aposta para ver quem chegaria mais rápido até a casa da avó da

garota. É importante salientar que nesse momento a autora insere o discurso direto, a

própria fala de cada personagem com a interferência do narrador (observador):

C2: “[…] aren't you afraid of the wolves?”

“He only tapped the gleaming butt of his rifle and grinned.”

“Is it a bet? he asked her. […] What will you give me if I get to your

grandmother's house before you?”

“What would you like? She asked disingenuously.”

“A kiss.” (p. 77)

Depois da aposta, mesmo ao anoitecer, a garota demorou um pouco no percurso

para ter a certeza de que o rapaz iria ganhar a aposta, enquanto isso, o rapaz não perdeu

tempo e foi até a casa avó da menina:

C2: “He rapped upon the panels with his hairy knuckles.

It is your granddaughter, he mimicked in a high soprano”

“Lift up the latch and walk in, my darling.” (p. 78)

O jovem tirou a roupa, a avó da menina presencia aquilo e ainda comenta:

C2: “He strips off his shirt. […] He strips off his trousers and she can see how

hairy his legs are. His genitals, huge.”

“ Ah! huge.” (p. 78)

Ele ataca a senhora e a devora sem que deixasse falar mais nada:

C2: “The last thing the old lady saw in all this world was a young man, eyes like

cinders, naked as a stone, approaching her bed.” (p. 78)

P á g i n a | 898

Logo se arruma e organiza o quarto, colocando os ossos da velha dentro de uma

caixa de madeira embaixo da cama, trocou os lençóis por outros limpos, e queimou os

cabelos dela na lareira para não deixar vestígios do que havia acontecido, para esperar a

garota que estava a caminho:

C2: “All was as it had been before except that grandmother was gone. [...] the

young man sat patiently, deceitfully beside the bed in granny's nightcap.” (p. 79)

Ao chegar na casa, nenhum sinal da velha, com exceção de uma mecha de

cabelos, provavelmente de sua avó; nesse momento a garota percebeu que estava em

apuros:

C2: “No trace at all of the old woman except for a tuft of white hair that had

caught in the bark of an unburned log. When the girl saw that, she was in danger

of death.”

“Where is my grandmother?”

“There’s nobody here but we two, my darling.” (p. 80)

Ela ficou aparentemente com medo, mas depois seu medo cessou e começou

tirar a roupa:

C2: “[…] her fear did her no good, she ceased to be afraid.”

“What shall I do with my shawl?”

Throw it on the fire, dear one. You won't need it again.

“What shall I do with my blouse?

“Into the fire with it, too […]” (p. 80)

E assim, a garota fez o que ele pediu, deu-lhe o beijo prometido na aposta que

fizeram anteriormente e acabou dormindo com o lobo:

C2: “[…] she sleeps in granny’s bed, between the paws of the tender wolf.”

(p.81)

Outras temáticas que podem ser caracterizadas como contemporânes são

abordadas no conto C2, a virgindade da garota, por exemplo, é mencionada com uma

linguagem metafórica, que pode estar relacionada à cor vermelha (símbolo da

virgindade) no capuz da personagem “chapeuzinho vermelho” proveniente dos contos

tradicionais de Perrault e dos Irmãos Grimm

P á g i n a | 899

C2: “She stands and moves within the invisible pentacle of her own virginity.”

(p. 76)

Além disso, alguns símbolos e superstições populares são encontrados em ambos

os contos:

C1: “Wreaths of garlic on the doors keep out the vampires” (p. 76)

C2: “She […] took off her scarlet shawl, the colour of poppies, the colour of

sacrifices, the colour of her menses” (p.80)

Essas temáticas não foram mencionadas, de forma explicitada, anteriormente nas

versões tradicionais, assuntos dessa natureza caracterizam os contos de Carter, ainda

mais, como pós-modernistas.

7. Considerações finais

Em seus contos, Angela Carter demonstra várias possibilidades de desfecho de

acordo com a ótica pós-modernista. Nos dois contos analisados, por exemplo, ficou

evidente que os padrões comportamentais apresentados pelos personagens mudaram

com o passar dos séculos, ao comparar com os desfechos das versões do conto

maravilhoso Chapeuzinho Vermelho do francês Charles Perrault e dos irmãos alemães

Jacob e Wilhelm Grimm. Além disso, são encontradas algumas temáticas que

dificilmente seriam inseridas e/ou publicadas nos contos dos séculos XII e XIII de

maneira mais explícita, comprovando, assim os traços contemporâneos permeados nos

contos da autora inglesa.

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P á g i n a | 901

O CAMINHO DA OBSESSÃO: DEGRADAÇÃO E DESEJO EM “BERENICE”

DE EDGAR ALLAN POE

Raynara Karenina Veríssimo CORREIA (UFCG)45

Ana Júlia Monteiro de ASSIS (UFCG)46

Resumo: A estrutura narrativa em “Berenice” representa perfeitamente a obra de Edgar

Allan Poe em que há a caracterização do horror como parte de seu elemento

constitutivo, e a abordagem de temas como a morte da mulher amada, doença mental,

catalepsia, e ser enterrado vivo. Haja vista à formação de um discurso interpretativo e

despretensioso de qualquer entendimento neutro, o presente estudo propõe uma análise

do conto supracitado, buscando descrever as doenças e símbolos que permeiam a

narrativa. Surge então uma problemática: Até que ponto a obsessão pode levar um ser

humano? Para responder a esta pergunta, seguimos classificando as estruturas da

narrativa, explicitando-as em dois momentos: 1-o plano da enunciação; 2- o plano do

enunciado, e focando na temática obsessão através de um olhar interpretativo, tomando

por base a Teoria de Platão, que conceitua o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.

As observações da nossa análise estão baseadas nas teorias de D’Onofrio (1995), Sá

(2003), Bellin (2010), entre outros.

Palavras-chave: Monomania; Obsessão; Epilepsia; Catalepsia; Dentes.

1. Introdução

É sabido que Edgar Allan Poe é um dos precursores da literatura de ficção

científica e fantástica modernas, sendo também considerado mestre do horror, pela sua

contribuição literária através de contos que imergem no estado psíquico dos seus

leitores, provocando estados de tensão e medo, em que é perceptível o perigo ou ameaça

sobre a preservação do indivíduo (Bellin, 2010; Sá, 2003; Doutor, 2010).

Na maioria dos seus textos, nos depararmos com ruínas e cemitérios, lugares

sinistros, e/ou tidos como mal assombrados, além de personagens solitários que

enfrentam destinos desconhecidos e tenebrosos e que normalmente são perturbados por

manias e obsessões (Bellin, 2010). Por apresentar tais características, além de abordar

temas considerados recorrentes nas obras de Poe, como a morte da mulher amada, ser

enterrado vivo e doenças como a catalepsia, “Berenice” enquanto narrativa de suspense

e horror, pode ser considerada um dos um dos contos mais violentos escritos por ele,

representando assim perfeitamente a sua obra.

Ao ler este conto, é possível efetuar uma prática da análise literária que aqui se

instala. Sob este viés, pretendemos oferecer ao leitor uma visão diferenciada sobre a

narrativa, desempenhando desta forma, mais do que uma leitura indutiva, enfatizando o

aspecto crítico e atentando para um aprofundamento inerente ao texto e as reflexões por

ele propostas.

45

Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-

mail: [email protected] 46

Aluna do Curso de Letras-Inglês, Unidade Acadêmica de Letras, UFCG, Campina Grande, PB, E-

mail: [email protected]

P á g i n a | 902

A fim de melhor compreender a obra e de instaurar nossa análise, nosso trabalho

foi desenvolvido de modo que, inicialmente, apresentamos o enredo e classificamos as

estruturas presentes no texto, a partir dos planos do enunciado e da enunciação,

propostos por D´onofrio (1995). Em seguida, apresentamos a teoria que rege nossa

análise e os elementos constitutivos da narrativa, a saber, as doenças dos personagens e

suas respectivas funções; a abordagem do maravilhoso; e os símbolos presentes no

conto, que fundamentam nossa análise interpretativa.

2. Componentes da narrativa: planos do enunciado e da enunciação

“Berenice” foi publicado em março de 1835, no South Literary Messenger, de

Richmond. É uma narrativa de horror e mistério constituída por dois personagens: Egeu,

o protagonista, e sua prima Berenice, que intitula o conto. Os demais (a mãe de Egeu e

os criados) não são nomeados, pois funcionam simplesmente como mediadores entre o

leitor e a história. História essa que não nos deixa a mostra um tempo determinado, nem

tampouco é constituído de ações ao longo de seu enredo, nos levando a concluir que,

por esta razão, a cronologia não se instala aqui como elemento distintivo.

O conto é narrado por Egeu, personagem que reúne em si o papel de sujeito da

enunciação e de sujeito do enunciado, sendo por meio de seu ponto de vista que o leitor

passa a ter contato com os sentimentos que constituem a narrativa (D´ONOFRIO,

1995). Este caracteriza-se portanto como narrador – personagem – protagonista, como

podemos observar na citação a seguir: “Berenice e eu éramos primos e crescemos

juntos, no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado

na minha melancolia; ela, ágil, graciosa e exuberante de energia” (POE, 2011, p.53).

Egeu é um homem solitário, portador de monomania, um transtorno focal da

mente que, segundo Tavares (2008), é responsável pela causa de delírios e obsessões.

Em virtude de tal doença, Egeu fixa sua atenção em sua prima Berenice, que de vital e

graciosa, passa a padecer de várias enfermidades, entre elas uma epilepsia que quase

sempre resultava num estado de catalepsia, o que causou nela uma metamorfose capaz

transformar suas condições física e moral. Devido a esse processo de degradação, a

doença de Egeu se agrava, de modo que sua monomania se volta de forma obsessiva

para os dentes de Berenice, visto que estes foram a única parte do seu corpo não

atingido pela doença. Berenice é enterrada, e ainda assim Egeu não para de vislumbrá-

los, devido a sua incontrolável obsessão, quando ele então se depara com um de seus

criados, e este o informa que o túmulo de Berenice havia sido violado e que ela ainda

estava viva. Ao observar Egeu, ele percebe que suas mãos estão arranhadas e suas

vestes cobertas de sangue, além de que perto dele havia uma caixa que continha trinta e

dois pequenos objetos de cor branca, parecendo ser de marfim, e um livro em que fora

sublinhado algo relacionado sobre visitar o túmulo de sua amada. Segue a citação

original: “Dicebant mihi sodales, si sepulchrumamicae visitarem, curas meas

aliquantulum fore levatas”. (POE, 2011, p.63)

3. Teoria de Platão: o mundo dos sentidos x o mundo das ideias

P á g i n a | 903

Na tentativa de entender o texto por uma perspectiva semântico-simbólica,

conjecturamos que Egeu evidencia o mundo das ideias, proposto pela teoria de Platão47,

que prega a existência de um determinado elemento na sua forma mais casta, mais

perfeita e integrada. O narrador por sua vez nos faz referencia a esse mundo ao

enunciar: “Aqui nasci eu. Mas é apenas uma afirmação ociosa dizer que eu não tinha

vivido antes. Há, no entanto, uma lembrança [...]” (POE, 2011, p.52). No conto, essa

lembrança refere-se a algo que ele ainda não viveu, por isso cremos que esta é a

primeira proeminência do mundo das ideias, uma vez que, Egeu se encontra no mundo

sensível, considerado por Platão imperfeito e limitado aos cinco sentidos.

Egeu descreve sua prima Berenice de maneira extremamente distante da sua

própria realidade, retratando-os como dois opostos. Berenice é até mesmo denominada

sílfide48 mostrando o quanto sua imagem é engrandecida pelo narrador, como vemos na

citação a seguir: “Ah, deslumbrante e fantástica beleza! Ah, sílfide entre os arbustos

[...]” (op.cit. p.53). Neste momento, segundo Bellin (2010), o narrador faz uma

idealização de sua prima e recorre a elementos da mitologia greco-latina,

transformando-a em um ser inatingível, de outro mundo, ou seja, habitante do mundo

das ideias.

Ao discorrer a narrativa, nos deparamos com a doença de Berenice, que a tira

automaticamente do mundo puro, e a traz para o mundo real, em virtude da sua

degradação. Com a suposição da morte de sua noiva, Egeu vê-se desesperado por não

estar mais tão perto de seu objeto de desejo, expedindo-o a sensação de que este agora

pertence mais do que nunca, ao mundo sensível.

O conto, portanto nos alude à ideia de que Berenice se encontrava em um plano

superior, o qual o narrador mostra-se determinado a alcançar, entretanto, como veremos

a seguir, tudo isto é predeterminado pelas próprias doenças dos personagens.

4. As doenças apresentadas e suas respectivas funções

A princípio, Berenice é apresentada ao leitor como uma personagem graciosa,

ágil e vital, mas no decorrer da narrativa somos introduzidos a uma nova imagem da

mesma, caracterizada por uma metamorfose49 de sua imagem e de seu psicológico, à

medida que esta passa a padecer de uma série de doenças, das quais só nos é explicitada

uma, a epilepsia que, dentro desse enredo, é atrelada à catalepsia:

Dentre a numerosa cadeia de doenças introduzidas por aquela primeira

fatal moléstia, pode ser mencionada uma em particular, que efetuou

47

Platão (428/7-348/7 a. C) é marcado em toda a História da Filosofia como sendo um grande propagador

das ideias de seu mestre, o também filósofo Sócrates (470/469-399 a. C). A sua obra literária, constituída

de diálogos, tem Sócrates como o personagem principal, sempre envolvido em discussões com os mais

diversos tipos de pessoas da Grécia (MARINQUE, 2003). 48

Sílfide segundo o dicionário online Aulete pode significar mulher esbelta, de aparência extremamente

delicada, além de ser um termo usado na mitologia, durante a idade média, para designar o gênio

feminino do ar nas mitologias céltica e germânica. 49

O termo metamorfose provém do latim metamorphōsis que, por sua vez, deriva de um vocábulo grego

que significa “transformação”. O sentido mais preciso da palavra, por conseguinte, diz respeito à

transformação de algo noutra coisa, ou ainda na passagem de um estado para outro, como o da pobreza

para o da riqueza ou o do celibato para o do casamento.

P á g i n a | 904

uma metamorfose de caráter tão horrível na condição física e moral de

minha prima: foi a mais obstinada e acabrunhante por sua natureza,

uma espécie de epilepsia, que muitas vezes terminava por um transe,

um estado de catalepsia [...]. (POE, 2011, p.53 e 54).

Segundo Stella e Pereira (2003), a epilepsia é uma desordem cerebral em que os

neurônios podem por algumas vezes realizar sinalizações de forma anormal. Desta

forma, o padrão normal da atividade neural torna-se perturbado, e pode causar estranhas

sensações, emoções e sentimentos que justificaram a completa mudança moral de

Berenice.

Como mencionado na citação acima, Berenice também entrava em um estado de

transe denominado catalepsia50. Esta se caracteriza por uma perturbação psicomotora

que consiste na cessação brusca dos movimentos involuntários, deixando o indivíduo

em um estado de plasticidade motora, conservando as posições que lhe são dadas

assemelhando-se a um boneco de cera, dando-nos a entender que aquele que sofrer uma

crise cataléptica pode ser facilmente confundido com um morto.

Segundo Bellin (2010), a degradação de Berenice apresenta uma função dentro

da narrativa: introduzir a doença do próprio narrador, a monomania, que conforme nos

explica Tavares (2008):

descreve pacientes que apresentam um transtorno focal da mente, que

em todos os outros aspectos encontrava-se intacta. A síndrome era

subdividida em três tipos: delirante, raciocinante e instintiva. As duas

primeiras são referências clássicas de dois diagnósticos atuais,

respectivamente transtorno delirante não esquizofrênico e transtorno

obsessivo-compulsivo (TOC). Mas o conceito de Monomania era

muito abrangente, reunindo ao mesmo tempo síndromes psicóticas e

não psicóticas, e por isso foi abandonado (TAVARES, 2008).

Por assim dizer, nos é revelado o motivo da idealização de Egeu por Berenice,

que desvestida de qualquer mancha de sexualidade, é transformada em seu objeto de

desejo.

Com a suposta morte de Berenice, a monomania de Egeu é ainda mais instigada,

e o faz ir em busca da sua cobiça, já que esta seria a única forma de fazer a Berenice

transformada pela doença tornar-se o ser que para Egeu era idealizado.

5. Encaminhamento para o clímax: o mote para o maravilhoso

Uma das particularidades sempre presente na maneira de escrever de Poe é a

grande incidência da escrita em planos espaciais: o dos fatos versus o da ficção/sonho.

Em virtude desse jogo ambíguo, é que cremos que a narrativa estrutura-se numa

perspectiva fantástica. Leão (2011) apresenta a definição de literatura fantástica

baseada em Todorov, mostrando que:

50

Fonte: Dicionário de psicologia Portal da Psique. Consultar bibliografia.

P á g i n a | 905

O fantástico se constrói no espaço literário da incerteza, enveredando

por espaços vizinhos ao “estranho” ou o “maravilhoso”, não sendo

mais que a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais

que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente

sobrenatural.(TODOROV apud Leão, 2011, p.44).

De acordo com Sá (2003), em vários contos de Edgar Allan Poe há uma

abordagem do fantástico que permite que o narrador se encontre entre dois mundos

conflitantes durante um momento instável ou perturbador, mostrando uma visão

deturpada da realidade que pode ser explicada no enredo e que são, normalmente,

oriundos de um estado sonolento e fantasioso, da loucura, ou do uso de drogas.

Ao lermos o conto, há a probabilidade de hesitarmos a respeito da veracidade

dos fatos narrados uma vez que eles são apresentados do ponto de vista do narrador-

personagem, que em muitos momentos se encontra em estados de delírio. Apesar disto,

é possível perceber clareza e honestidade por parte dele, à medida que este, mediante a

sua monomania, passa a duvidar de suas próprias visões. Isto acaba direcionando o

leitor a acreditar nos fatos narrados pelo personagem, mesmo que estes apresentem

aspectos sobrenaturais, pois, o mesmo não poderia mentir a respeito de algo que nem

ele mesmo tem certeza.

Quanto a isso, Sá (2003) alega que “Berenice” é um exemplo do fantástico

tradicional, e apresenta duas características que contribuem para por o mundo

maravilhoso em dúvida: a catalepsia que confunde a vida e a morte, fazendo com que a

própria ciência mascare a realidade; e a monomania, que deixa o narrador em um estado

intermediário entre sono e vigília, sanidade e loucura, consciência e inconsciência sendo

estes usados como justificativa para tornar reais os fatos que se apresentam

aparentemente como maravilhosos.

Sendo assim, a abordagem do maravilhoso em “Berenice”, configurada pelos

questionamentos colocados pelo narrador, acabam envolvendo o leitor e gerando uma

forte ligação entre ambos, de modo que a dúvida de um se torna a do outro. Por este

motivo, nos baseamos mais uma vez em Sá, para afirmarmos que o mote para o

maravilhoso surge em “Berenice” no momento em que Egeu vê o suposto cadáver se

mexer, e duvida sobre a morte de sua prima. Tal incerteza é evidenciada no conto

quando Egeu se pergunta: “Deus do céu! Seria possível? Meu cérebro se achava

transtornado ou o dedo da morta se movera dentro da mortalha que o envolvia?” (POE,

2011, p.61). Se observarmos bem, neste momento, há uma sugestão da credulidade do

retorno da vida após a morte, configurando desta forma um mundo maravilhoso no qual

seria possível a recessão da morte, através do retorno espiritual.

Neste momento, o leitor se depara novamente com a dúvida, que agora se

apresenta em sua forma mais instigante. Dessa forma, percebemos que o fantástico

enquanto elemento da narrativa constrói para o leitor um caminho sucinto, que o

direciona para o ponto de tensão culminante do conto: o clímax.

6. Símbolos – chave da leitura do desfecho

A partir das atuações discorridas no texto, pressupomos a ideia de que Egeu

visitou Berenice depois de enterrada, a fim de retirar seus dentes, que de acordo com o

P á g i n a | 906

dicionário de símbolos: “É um instrumento de tomada de posse, tendendo a assimilação:

é a mó que esmaga para fornecer um alimento ao desejo.” Esta ação retrata o cume da

obsessão de Egeu, por isso é a partir dela que o narrador encontra a calmaria para sua

alma ansiosa e perturbada, visto que pôde alcançar com êxito o mundo das ideias.

Bellin (2010) explica que Egeu, é o nome de um lendário rei ateniense que

comete suicídio ao ter a informação equivocada de que seu filho Teseu teria morrido ao

tentar matar o Minotauro. Este nome funciona de forma simbólica dentro da narrativa,

pois sugere ao mesmo tempo a força, o poder e a aniquilação do masculino. Por sua vez,

Berenice, em grego, significa “portadora da vitória”, além de ser uma personagem

trágica que prometeu seu cabelo a Afrodite caso o marido retornasse vivo da

guerra,.Berenice foi também o nome de várias rainhas egípcias e de algumas princesas

judias, o que poderia remeter a uma aura de realeza envolvendo a personagem.

Entendemos assim, que Egeu provido de todo o poder exaltado pelo seu nome,

foi vitorioso por conseguir alcançar com êxito o seu objeto de maior desejo, a própria

Berenice, que era a representação mais fina do mundo das ideias.

O desfecho do conto se inicia apresentando mais um importante símbolo dentro

da narrativa: uma pequena caixa, que assim como os demais não está presente no conto

por acaso, e é provido de um significado. A caixa é introduzida no conto da seguinte

forma: “Na mesa ao meu lado estava acesa uma lâmpada, e havia uma caixinha perto

dela. [...] Mas como se achava ela ali, sobre minha mesa e por que eu estremecia só de

olhá-la?” (POE, 2011, p.62). Segundo Chevalier e Gheerbrant (2008), “a caixa é um

símbolo feminino que contém sempre um segredo: encerra e separa do mundo aquilo

que é precioso, frágil ou temível”. Abrir uma caixa significa sempre um risco, o que nos

leva a entender o porquê do receio do narrador em abri-la.

Além da caixa, Egeu encontra em seu colo um livro aberto, com algo

sublinhado, do poeta Ebn Zaiat: “dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae

visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas” 51(POE, op.cit., p.51 e 62). O

interessante dessa citação é que ela é apresentada em dois momentos cruciais na

narrativa: no início, aparecendo como uma espécie de epígrafe52 que por ter sido

inserida logo abaixo do título do conto irá assumir a função de explicitar o assunto ou

mote principal da narrativa (SÁ, 2003), e no clímax constituindo mais uma prova do

acontecido.

O final do conto apresenta uma série de evidências que comprovam o ato de

improbidade de Egeu quanto à morte de Berenice: o livro que se encontra em seu colo,

as vestes enlameadas e cobertas de sangue, os arranhões em seus braços, a pá, e a caixa

que finalmente revela seu segredo ao cair e espalhar instrumentos de dentista juntos a

trinta e dois pequenos objetos brancos, que pareciam de marfim. Contudo, o desfecho

pode ser deduzido pelo leitor desde o início, através da epígrafe e da forte impressão

que os dentes de Berenice causam ao narrador ao longo da enredo: “Enquanto olhava

para os múltiplos objetos do mundo exterior, só tinha pensamento para os dentes.

Ansiava por eles com um desejo frenético” (POE, 2011, p.59). Quanto a isto, Furlan

(2007) nos diz que “a epígrafe que se segue, a mesma frase destacada do livro, revela já

no início da obra que a personagem conseguiria triunfar ao visitar o túmulo da amiga.”

Todavia, o que realmente torna a narrativa interessante é o poder de Edgar Allan Poe de

construir o conto com um toque especial revestido fantasticamente de mistério, horror e

51

“Meus amigos me garantiram que, se visitasse o sepulcro de minha amiga, obteria um certo alívio para

minha tristeza” em Latim no original. (N.T.) 52

“Definição sucinta e totalizadora de toda a narrativa” (BELLIN, 2010).

P á g i n a | 907

suspense que inevitavelmente prendem e geram uma grande expectativa no leitor ao

encontro do desfecho.

7. Considerações finais

Em “Berenice”, podemos enxergar de perto até onde a obsessão pode conduzir

um ser humano. O assassinato cometido por Egeu, instigado por sua doença, parte de

aspectos dualistas, fantásticos e sobrenaturais recorrentes dos contos de Poe. Estas

características aparecem com o desígnio de transformar a Berenice transfigurada, um ser

igual a Egeu, como parte do mundo real.

A forte obsessão pelos dentes de sua prima, única parte do corpo a não sofrer

degradação, o leva durante um momento de delírio a satisfazer seu desejo frenético, no

intuito de finalmente tranquilizar suas inquietações, e então, metonimicamente, ter

Berenice e tudo que ela sempre representou consigo; simbolizando-a através de objetos

eternizados, guardados em nada melhor que uma caixa para esconder o segredo do

homem que foi capaz do inesperado para alcançar seu objeto de desejo: Berenice como

parte do plano ideal.

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Feminina Em Três Contos De Edgar Allan Poe. Dissertação de mestrado Curitiba.

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com a colaboração de André Barbault...[et al.]; coordenação: Carlos Sussekind;

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P á g i n a | 909

A IMPORTÂNCIA DA TEORIA LINGUÍSTICA E DO MÉTODO DE ENSINO

PARA A APRENDIZAGEM DE UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Gracilene Felix Medeiros (UFPB)

Lucas Carlos de Souza Peixoto (UFPB)

Resumo: O uso da Língua Estrangeira tornou-se essencial para o cotidiano da

população de nosso mundo globalizado. Logo, entendemos que para aqueles que

precisam conhecer uma ou mais Línguas Estrangeiras, o interesse transforma-se em uma

obrigação. Essa situação é bastante peculiar hoje em dia, principalmente, na formação

de profissionais que trabalharão com o público estrangeiro. Por isso, temos como

objetivo analisar as teorias e métodos empregados pelos professores de LE dos alunos

do 1º ano do curso de Hotelaria de uma Escola da rede pública de ensino. Buscamos

explicar as habilidades linguísticas necessárias para profissão desses e se eles estão

sendo atendidos naquilo que é primordial para um profissional da área. Para isso,

aplicamos questionários com o intuito de identificarmos qual a concepção de língua dos

professores de LE da escola em questão, assim como, as teorias, estratégias e métodos

usados por esses. Pretendemos com essa pesquisa, demonstrar que como outras escolas

públicas, essa também ensina a Língua Estrangeira dando ênfase ao método Gramática-

Tradução e adotando uma visão estruturalista da língua. No entanto, a escola em estudo

precisa de outra teoria linguística e de um método mais adequado à finalidade a que essa

se propõe, pois, os alunos serão profissionais que usarão a Língua Estrangeira. Portanto,

procuramos apresentar, por meio de um workshop, aos professores de francês e inglês

desse estabelecimento de ensino a teoria sociocognitivista, baseando-nos em Lakoff e

Jhonson (2002), a teoria sociointeracionista, baseando-nos em Vygotsky (1987) e o

método da Abordagem Comunicativa, de acordo com os estudos de Richards e Rodgers

(1986), pois, os alunos ao saírem dessa escola entrarão no mercado de trabalho e

necessitarão do aspecto cognitivo, social e interacional da Língua Estrangeira para sua

realização profissional.

Palavras-chave: Teoria; Método; Língua Estrangeira.

1. Introdução

O estudo de uma Língua Estrangeira é hoje algo fundamental, e isso gera nas

pessoas a necessidade de aprender um novo idioma. A obrigação de conhecer um novo

idioma já é algo comum no nosso cotidiano, principalmente, para os profissionais da

área de turismo, os quais trabalharão diretamente com o público estrangeiro, logo, terão

um contato mais intenso com outros idiomas. Porém, entendemos que a língua não é

apenas um sistema de signos, mas, um meio cultural. Portanto, inquietamo-nos com a

forma de ensino de Língua Estrangeira direcionado para os profissionais de cursos

técnicos, como o curso de Hotelaria, cuja principal função é lidar com o público

estrangeiro.

Por isso, propomo-nos analisar o ensino de Língua Estrangeira, mais

precisamente das Línguas Francesa e Inglesa, que a partir de então serão chamadas de

LE, dos alunos do 1º ano do curso de Hotelaria de uma Escola da rede pública de

ensino. O nosso objetivo em visitar e analisar a concepção de língua, teoria linguística e

o método de ensino usado nesse estabelecimento de ensino parte da função final da

P á g i n a | 910

própria escola que é formar profissionais para o mercado de trabalho, os quais

empregarão a LE como um instrumento dentro da sua profissão.

Assim, pretendemos observar e analisar as teorias e os métodos adotados pelos

professores de LE dessa instituição e apresentar-lhes através de workshop, teorias e

métodos que permitam um ensino voltado para a influência cultural, social e

comunicativa de uma língua. Como é determinado em parte pelos PCN’S (2000) que

apesar de enfatizar um ensino voltado para a leitura e escrita da LE, defende que este

deve ocorrer considerando a língua dentro de um contexto cultural e significativo. Além

disso, o documento estabelece que nas regiões em que o turismo tem importância

socioeconômica o ensino de LE pode ser direcionado às quatro habilidades da língua,

ou seja, leitura, escrita, fala e escuta, ficando a decisão a cargo da escola e do professor.

O ensino de LE é direcionado pela LDB (1998) e pelos PCN’S (2000), contudo,

tanto a LDB (1998) quanto os PCN’S (2000) regem um ensino baseado na importância

da escrita, observando que o estudante não tem um contato direto com falante dessas

línguas. Porém, ainda de acordo com esses documentos, esse ensino deve formar o

aprendiz em relação à cultura da língua em estudo.

As leis nacionais direcionam o professor de LE a fundamentar suas aulas nas

habilidades de leitura e escrita, todavia, quando tratamos de uma escola

profissionalizante como é o caso da Instituição mencionada, essas habilidades devem

ser ampliadas, porque o aluno precisa de um ensino pautado nas quatro habilidades,

dando ênfase a fala e escuta da LE, visto que ele irá comunicar-se com falantes nativos.

Mediante a essa situação, faz necessário investigar as teorias linguísticas e os

métodos de ensino adotados nessa escola pelos professores de LE, com vistas a

compreender as habilidades linguísticas necessárias para profissão dos alunos de

Hotelaria desse estabelecimento de ensino e se eles estão sendo atendidos naquilo que é

primordial para um profissional da área. Por isso, partimos da hipótese de que o

emprego da teoria linguística e do método de ensino mais adequados à área de

Hotelaria, como o Sociocognitivismo, o Sociointeracionismo e a Abordagem

Comunicativa, implicariam em uma maior autonomia dos alunos no curso de Hotelaria,

visto que esses vivenciariam em sala e em visitas externas a aplicação da LE em

situações reais da sua área de trabalho.

A partir dos direcionamentos dados pela LDB (1998) e pelos PCNS (2000), os

quais direcionam as escolas a empregarem em sua maioria um método de ensino

fundamentado na visão sociocognitivista e sociointerativista de língua e de

aprendizagem, pretendemos com essa pesquisa, demonstrar em que medida a concepção

de língua e os métodos de ensino podem interferir na formação dos profissionais de

Hotelaria da escola em estudo.

Desse modo, questionamo-nos se essa Escola enquanto formadora de

profissionais, porém, vinculada as legislações da educação nacional que trabalha a LE

como meio de leitura e escrita, promove a autonomia de seus alunos e se estes estão

prontos para adentrarem ao mercado de trabalho. Diante disso, surgem algumas

questões, como por exemplo, qual é a concepção de língua dos professores de LE desse

colégio? Em que medida, a concepção de língua do professor dessa instituição pode

ajudar ou prejudicar na formação do aluno enquanto profissional? Como o professor de

LE pode contribuir em um curso profissionalizante? Os professores de LE da escola em

questão necessitam de constante capacitação linguística para ministrarem suas

disciplinas? Em que medida a capacitação linguística do professor de LE pode

contribuir para com o futuro profissional dos seus alunos no mercado de trabalho?

P á g i n a | 911

Dessa maneira, consideramos que a teoria sociocognitivista adotada por Lakoff e

Jonhson (2002) poderia ser uma forma possível de facilitar o ensino de LE no curso de

Hotelaria. Essa parte da teoria cognitiva desenvolvida por Chomsky, que observava em

sua essência a capacidade criativa da linguagem humana, deixando a teoria estruturalista

que enxergava a língua como apenas um sistema linguístico. No entanto, a teoria de

Chomsky se detinha simplesmente ao campo da subjetividade sem se expandir para a

ação da comunicação. Logo, partindo da escola Chomskyana, Lakoff e Jonhson, dentre

outros estudiosos, passam a viabilizar a língua como o resultado de um processo de

relações sociais, culturais e de expressão individual.

Contudo, percebemos a partir das visitas realizadas à instituição em estudo que a

teoria sociointeracionista baseada em Vygotsky (1987) e a Abordagem Comunicativa

seriam os meios mais indicados para direcionar os professores de LE dessa escola,

tendo em vista que os alunos do curso de Hotelaria usarão a comunicação como

instrumento de trabalho.

Portanto, o desenvolvimento dessa pesquisa está baseado na teoria

sociointeracionista de Vigotsky (1987) e na Abordagem Comunicativa, de acordo com

os estudos de Richards e Rodgers (1986), pois, temos como campo de pesquisa uma

escola que trabalha com a formação de profissionais de áreas que precisam da

comunicação como meio de trabalho.

Em todos os cursos técnicos dessa escola a teoria sociointeracionista e a

Abordagem comunicativa são fundamentais, no entanto, nos cursos que têm mais

contato com o público, essa teoria e método se tornam indispensáveis, como é o caso,

por exemplo, do curso de Restaurante, Bar e Serviços, do curso de Eventos.

Todavia, optamos pelo curso de Hotelaria, que assim como os outros cursos

citados também tem a fala como um instrumento de trabalho, mas, nesse, os alunos,

certamente, terão um contato constante com pessoas de lugares diversos e assim,

utilizarão a LE frequentemente. Dessa forma, é fundamental uma teoria linguística que

atenda às necessidades dos alunos desse curso e de um método que lhes garantam uma

aprendizagem direcionada para o seu futuro profissional, porque, ao saírem dessa

escola, esses alunos entrarão no mercado de trabalho e necessitarão do aspecto

cognitivo, social e interacional da Língua Estrangeira para sua realização profissional.

A metodologia empregada nesta pesquisa parte da necessidade estabelecida

pelos objetivos propostos, que estão fundamentados na análise dos dados obtidos a

partir de uma pesquisa de campo, norteada por meio de questionários, de conversas com

docentes de LE e um workshop na Escola em estudo. Destarte, desenvolveremos uma

pesquisa exploratória, descritiva e explicativa, sendo essa também qualitativa e uma

pesquisa-ação, pois, necessitamos ir a campo coletar os dados através do questionário

pré-tarefa, depois de analisarmos os resultados, voltamos à Escola para darmos o

workshop, fazendo dessa forma uma interferência no contexto de sala de aula dos

professores colaboradores e por fim, aplicamos um questionário pós-tarefa para analisar

os dados obtidos após o workshop. Para tanto, nos baseamos em Richardson (2003) e

em Strauss e Corbin (2008).

2. Método: Um tópico plural

P á g i n a | 912

A palavra método vem do grego méthodos e significa um caminho que visa

alcançar resultados. Rampazzo (2002:13) “afirma que atualmente a palavra método

refere-se a “um conjunto de etapas, ordenadamente dispostas, a serem vencidas na

investigação da verdade, no estudo de uma ciência, ou para um determinado fim”.”

(RAMPAZZO, 2002:13, apud VILAÇA, 2008, p. 75)

A obsessão por um método perfeito atingiu seu nível mais elevado na segunda

metade do século XX.

Entre os mais conhecidos, é possível citar o Método Áudio-lingual, o

Método Silencioso, a Sugestopedia, o Resposta Física Total e o

Método Comunicativo, também chamado, convenientemente, por

alguns autores, de Abordagem Comunicativa. (ALMEIDA FILHO,

1993, CELCE-MURCIA, 2001b, apud VILAÇA, 2008, p. 74)

Esses métodos foram desenvolvidos por teorias advindas de diversas áreas,

como por exemplo, da Linguística, da Psicologia, da Psicologia da Educação, da

Sociologia e da Sociolinguística.

Edward Anthony (1963) via o método de forma hierárquica, sendo o método,

para Anthony um estágio intermediário entre a abordagem de ensino e as técnicas

adotadas pelo professor. Logo, sua proposta era: Abordagem, Método e Técnica.

(ANTHONY, 1963, apud VILAÇA, 2008, p. 76)

Já na visão de Richards e Rodgers (1986) “um método é formado por três

componentes: a abordagem, o desenho (design) e os procedimentos.” sem uma ordem

hierárquica, porém, como um resultado. Logo, entendemos o método como o resultado

da relação entre: abordagem, design e procedimentos, que são respectivamente:

As concepções do professor sobre língua e aprendizagem [...], o

desenho é subdividido em: objetivos de ensino, programa de ensino,

papel do professor, papel do aluno, papel dos materiais instrucionais,

tipos de tarefas. [...] e os procedimentos referem-se às técnicas [...] e

estratégias didáticas que possibilitam a execução [...] de um método

na sala de aula. (VILAÇA, 2008, p. 78-79)

Entretanto, o conceito de método foi muito criticado devido a diversos fatores,

como por exemplo, por referir-se ao caráter prescritivo dos métodos de ensino, por o

método ser descontextualizado, por sua abrangência e pela polissemia do conceito de

método e por fim, os estudiosos não mais acreditavam na existência de um método

perfeito.

Conforme Duque (2004) destaca, a busca pelo “método perfeito” se transformou

na busca de um “método mais adequado”. Esta conclusão conduziu de certa forma, à

defesa do ecletismo no ensino de línguas estrangeiras como forma de liberdade e

flexibilidade metodológicas.

Nesse sentido, na era pós-método o professor recebe novos papéis e desafios,

pois,

P á g i n a | 913

Ao adotar um método eclético, o professor deve ser capaz de fazer

escolhas metodológicas que atendam às características e às

necessidades de seu contexto pedagógico. [...] deve ser formado para

compreender melhor o processo de ensino aprendizagem de uma

língua estrangeira. [...] e deve atuar como pesquisador em seu

contexto de ensino, especialmente na sua própria sala de aula.

(VILAÇA, 2008, p. 82 – 84)

2.1. As mudanças dos métodos e abordagens ao longo da história

Guimarães (2007) apresenta de maneira bastante didática alguns

direcionamentos sobre Métodos e Teorias linguísticas em relação ao ensino de Língua

Estrangeira. Para tanto, a autora inicia seu texto apresentando uma diferença peculiar

entre a aquisição de uma LE e da aquisição da Língua Materna. Após esclarecer essa

diferença, o texto segue procurando estabelecer um período para a laterialização, a qual

dificultaria a aquisição de uma LE, esse período ocorreria na puberdade, ou antes, disso,

mas, o texto não deixa essa fase clara.

Na sequência, obtemos uma breve explicação histórica para a inserção do

método Gramática-Tradução no começo do ensino LE. Segundo o texto de Guimarães

(2007), esse método vem sendo aplicado desde o ensino de Latim como LE e passa a ser

usado nas aulas de inglês de 1840 a 1940. Na metade do século XIX, esse método passa

a ser rejeitado por não desenvolver a capacidade comunicativa do aluno na língua-alvo.

Logo, o método direto começa a ser utilizado no ensino de LE, pois, esse tinha

como objetivo a comunicação na língua-alvo. O método surge procurando suprir as

necessidades deixadas pelo método Gramática-Tradução, porém, este ainda é utilizado

até os dias atuais.

O método direto recebeu este nome devido a sua intenção de inserir o estudante

de LE no estudo da língua-alvo sem o auxílio de tradução. Contudo, essa intenção do

método gerou muitas dificuldades dentre elas a não adequação desse método às escolas

secundárias e a demanda de muito tempo para que os alunos compreendessem um

conteúdo sem auxílio da língua materna. Esses empecilhos levaram ao declínio do

método em 1920.

No entanto, a partir dos estudos behavioristas, os quais estabeleciam o ensino

para buscar as manifestações externas do processo de aprendizagem e estruturalistas,

que definiam a língua como um sistema formado por meio da combinação de estruturas

gramaticais, surgiu o método Audiolingual por volta de 1950, o qual dominou o ensino

de LE até a década de 60, mas, ainda influencia muitos professores nos dias de hoje. O

método Audiolingual aparece em meio a esses novos estudos e contrapondo-se ao

método Gramática-Tradução.

O método Audiolingual tinha por objetivo desenvolver a capacidade auditiva do

aluno e estimulá-lo a adquirir uma pronúncia correta, tendo o professor um papel ativo

dentro do método, porque, a aprendizagem consistia em um sistema bastante fechado

partindo de Estímulo- resposta – reforço.

Com uma prática muito imitativa e sem priorizar a produção criativa do aluno.

Esse método passa a ser rejeitado no começo dos anos 60, quando Chomsky critica o

conceito behaviorista de que a língua fosse uma estrutura baseada em hábitos e

P á g i n a | 914

imitação, pois, para Chomsky, o homem tinha uma capacidade inata de aprender uma

língua através de inovação e da formação de novos modelos e novas frases.

Essa teoria proposta por Chomsky vai influenciar os métodos de ensino e a partir

de estudos de Dell Hymes, os quais foram aprofundados por Richards e Rodgers (1986),

vai surgir a Abordagem Comunicativa, que como Guimarães cita é uma abordagem,

porém, mesmo não se tratando de um método de ensino, essa Abordagem está inserida

no campo de métodos e é utilizada por muitos professores e muitas escolas. Ela tem

como objetivo desenvolver a capacidade comunicativa.

Neste método, o aluno tem um papel ativo, pois, ele tem a possibilidade de criar

e inovar sua aprendizagem algo que difere dos métodos anteriores, e o professor que nos

outros métodos tinha um papel de destaque, na Abordagem Comunicativa, tem um

papel de facilitador permitindo o desenvolvimento do aluno.

Entretanto, acompanhando o desenvolvimento de outras teorias como a

Abordagem Humanista, por exemplo, em meados dos anos 70, há o desenvolvimento do

método Community Language Learning, o qual propõe um ensino direcionado pelo

interesse dos alunos. Além desse método, surge também o Lexical Approach, que visa

distinguir vocabulário do léxico, este seria o resultado do armazenamento de palavras e

das combinações que guardamos em nossas mentes, já aquele seria apenas o estoque de

palavras com sentido fixo que amarzenamos ao longo do tempo.

Guimarães (2007) apresenta um breve histórico de cada método, seus objetivos,

a teoria que o desencadeou, as atividades recorrentes e o papel do professor e do aluno.

A autora faz essa exposição partindo da estrutura de método apresentada por Richards e

Rodgers (1986): Abordagem – design (desenho) – Procedimentos. De acordo com essa

estrutura, é no design que apresentamos todos os elementos que compõem a sala de aula

e os papéis desempenhados por cada um desses.

Essa estrutura apresentada na obra de Guimarães (2007) é corroborada pela o

texto Vilaça (2008), o qual tece comentários sobre a importância dos métodos e das

teorias, e faz uma análise histórica dos métodos de ensino, constatando em seu trabalho

que por ser o método um caminho que visa atingir uma meta, logo, não encontraremos

método perfeito, mas optaremos por aquele mais adequado ao nosso contexto.

Vilaça (2008) também apresenta em seu trabalho a visão de método de Richards

e Rodgers. Logo, entendemos que há uma consonância entre o trabalho de Guimarães e

o de Vilaça em relação aos argumentos que norteiam os dois trabalhos. No entanto, o

texto de Vilaça finaliza expressando a importância do ecletismo para o ensino de LE, o

que é justificado pela possibilidade de usar métodos diferentes dependendo do contexto.

Já o texto de Nair Guimarães (2007), não deixa transparecer uma opção de método em

detrimento da outra, são apresentados, nesse texto, os variados métodos e as atividades

e teorias que estão vinculadas a cada um deles sem nenhum juízo de valor específico, é

apenas elencado os pontos positivos e negativos de cada método em relação a cada

época.

3. O método e os PCN’s

Há muito o ensino de línguas estrangeiras no Brasil vinha ocorrendo de forma

avulsa, por não haver uma regulamentação, sendo de qualidade muito baixa e com

índices baixos de aprendizagem. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), então

P á g i n a | 915

passam a regular esta atividade, trazendo um norte a ser seguido pelos professores em

todo o país, definindo uma visão de língua e de aprendizagem a ser adotada, bem como

estabelecendo objetivos claros para o ensino de língua estrangeira (LE).

Vilaça (2008) traz a visão de Richards e Rodgers de método de ensino, o qual é

definido pela relação de três elementos: abordagem, desenho e procedimentos, que

interferem diretamente nas atividades de sala de aula, tendo em vista que o professor

precisa ter uma noção de língua e de aprendizagem de forma clara (Abordagem),

reconhecer os papéis desempenhados por cada personagem na sala de aula (desenho) e

definir técnicas coerentes com sua noção de língua e com o contexto no qual o professor

e o aluno estão inseridos (Procedimentos).

Ao estabelecer que a visão de língua, assim como a visão de aprendizagem a ser

adotas no país são a sociointeracional, os PCNS (2000) de língua estrangeira

estabelecem o primeiro elemento que compõem método, que é a abordagem. A partir

daí pode-se definir com mais clareza qual seria o papel do professor, o papel do aluno,

que tipo material didático deve ser adotado e qual o principal objetivo do ensino de

língua estrangeira, compondo-se assim, um desenho sobre como deveriam funcionar as

aulas nas escolas regulares, sejam elas públicas ou privadas.

Desta forma ocorre ao longo do texto, que embora defenda que não exista uma

metodologia ideal para todos os contextos de sala de aula, corroborando com a ideia de

Vilaça (2008), estabelece nitidammente que o ensino de LE no Brasil deve ser balizado

pela função social deste conhecimento em cada região, de modo a “envolver o aluno

com os processos sociais de criar significados por intermédio da utilização de LE”.

(PCNS, 2000).

Para tanto, o texto ressalta que o enfoque maior dever ser dado às habilidades

escritas, principalmente a leitura, posto que são poucos os brasileiros que terão uma real

necessidade de se comunicar oralmente com outras pessoas, ressalvando-se as regiões

turísticas. Contudo, levando em consideração as transformações sociopolíticas que vem

ocorrendo no mundo, os inúmeros convênios feitos com instituições de ensino

estrangeiras de modo a fomentar o intercambio científico entre brasileiros e

estrangeiros, percebe-se que não mais se pode desconsiderar a importância do ensino

das habilidades orais. Vê-se que sobram vagas para intercâmbio por falta de pessoas

preparadas (munidas do conhecimento das quatro habilidades da língua), para ocupar

estas vagas. Como um dado positivo, o documento deixa a cargo do professor, perceber

a necessidade de cada região, não sendo vedado o ensino das habilidades orais.

Essa é a necessidade dos alunos do curso de Hotelaria da Escola em estudo. Eles

precisam de acordo com Vygotsky (1987) de uma formação sociointeracionista,

focando a Abordagem Comunicativa e no ensino das quatro habilidades (escrita, leitura,

escuta, oralidade), principalmente, nas habilidades de fala e escuta, para que possam

desempenhar suas ações no campo de trabalho sem maiores dificuldades, visto que

esses alunos trabalharão, diretamente, com o público estrangeiro.

Como que buscando corrigir a parca formação dos professores de LE que por

muitas vezes, não compreendem a evolução dos métodos e técnicas de ensino ao longo

da história, o documento discorre de modo sucinto, mas claro sobre as diversas

metodologias existentes, logo em seguida trazendo as diretrizes de como devem ser

pautadas as aulas, na sessão de Orientações Didáticas, em que é ressaltado o ensino de

estratégias de aprendizagem. Ficam estabelecidos com detalhes então, como a língua

deve ser trabalhada, e como as aulas devem ser desenhadas, ficando à cargo do

professor a escolhas das técnicas adequadas para alcançar os objetivos de ensino.

P á g i n a | 916

O texto tenta modificar a estrutura de ensino de LE no Brasil que vinha

ocorrendo fundamentada numa visão sistêmica da língua, sendo ensinados aos alunos

apenas regras gramaticais que pouco ou nenhum significado possuíam, impossibilitando

que houvesse aprendizagem. É preciso agora, que os profissionais da área sejam bem

preparados para seguir as novas diretrizes, que estão em pleno acordo com os

movimentos internacionais de ensino de línguas estrangeiras. A mera publicação de tal

documento, já é um grande avanço na área, sendo necessária uma complementação na

adoção dos materiais didáticos e na instrumentalização dos magistrados.

4. Análise dos dados

A partir de visitas à escola supracitada e de conversas com os professores de LE,

que trabalham com o ensino de Língua Francesa e Língua Inglesa no primeiro ano do

curso de Hotelaria, aplicamos um questionário, o qual nos permitiu obter uma

compreensão mais precisa em relação ao ensino de LE naquele estabelecimento de

Ensino.

Destarte, após muitas análises do questionário pré-tarefa, percebemos que a

professora Annie53

e a professora Elizabeth compreendem a língua como um meio de

criação e manutenção de relações sociais, ou seja, a língua é percebida por essas

professoras como um meio de construção de sentido na língua-alvo.

No entanto, quando questionadas acerca do método de ensino utilizado nas aulas

de LE, percebemos uma dissonância nas respostas dadas em relação à concepção do que

vem a ser uma língua e em relação às respostas dadas sobre as atividades aplicadas em

sala. Por exemplo, Annie marcou no questionário uma opção que compreende a língua

como um meio comunicativo, afirma que usa a metodologia sociointeracionista, mas,

diz que não é adotado nem por ela e nem pela escola nenhum método de ensino. Além

disso, as atividades descritas em sua resposta fazem referência ao método Gramática-

Tradução, com aulas expositivas, álbum seriado e música, as únicas atividades que

poderiam partir de uma abordagem comunicativa seria simulações, projetos e jogos,

contudo, não foram descritas as finalidades dessas atividades.

De forma geral, observamos uma contradição entre as respostas de concepção de

língua, método de ensino e de atividades aplicadas, no entanto, aquilo que se apresenta

como mais preocupante é a mistura de informações que são apresentadas nas respostas,

pois, a professora conhece a teoria sociointeracionista, mas, entende-a como

metodologia, não reconhece os métodos de ensino em suas atividades apesar de

conhecê-los na definição.

Questionada sobre as interferências que prejudicam a aprendizagem do ensino

de LE, Annie diz que o desinteresse dos alunos e dos professores, como também, a falta

de material didático e de uma metodologia adequada são os maiores problemas para a

efetivação da aprendizagem do ensino de uma LE.

No entanto, no que diz respeito ao objetivo do ensino de LE no curso de

Hotelaria e como os conteúdos vistos em sala poderão ser aplicados em situações reais,

Annie foi bastante coerente. Ela afirma que o objetivo do ensino de LE é voltado para a

53

Manteremos em sigilo os nomes dos professores com os quais desenvolvemos nossa pesquisa, por uma

questão ética. No entanto, adotaremos nomes fictícios para esses professores de francês e de inglês, que

respectivamente, serão chamados de Annie e Elizabeth.

P á g i n a | 917

interação do aluno entre eles com seus futuros clientes francófonos, no ambiente de

trabalho, assim como, os conteúdos devem ser voltados para o desenvolvimento do

aluno enquanto um futuro profissional que trabalhará com o público estrangeiro.

Notamos algumas contradições nas respostas de Annie no questionário pré-

tarefa, todavia, podemos ser mais pontuais e afirmar que a dificuldade apresentada está

no processo de aplicação do conceito na prática e entender o que é teoria, o que é

método e o que é técnica.

Neste momento, entendemos que estrutura desenvolvida por Richards e Rodgers

para explicar método, contribui bastante para evitar esses equívocos, pois, eles

entendem que o método é a união da abordagem, desenho e procedimentos, assim como

fora citado, as abordagens são as concepções do professor sobre língua e aprendizagem,

o desenho é composto pelos objetivos de ensino, programa de ensino, papel do

professor, papel do aluno, papel dos materiais instrucionais, tipos de tarefas e os

procedimentos referem-se às técnicas de um método na sala de aula. (VILAÇA, 2008, p.

78-79)

As respostas que Elizabeth deu ao questionário pré-tarefa mantiveram-se

coerentes. Ela marcou, na primeira questão, a opção que caracteriza a língua como um

meio de interação e comunicação social, depois, afirmou que trabalha com variados

métodos Comunicativo, Direto e Tradicional, Gramática-Tradução. Entretanto, ela

também cita a teoria Interacionista como um método de ensino. No mais, suas respostas

estão consonantes, pois, percebemos que pelo fato dela utilizar vários métodos, ela

emprega o ecletismo citado em Vilaça (2008), e dessa maneira, as atividades aplicadas

também são ecléticas como: construção de diálogos cabíveis para o primeiro ano do

curso de Hotelaria e possíveis dentro de um hotel, ela também trabalha com a produção

de textos técnicos da área e encenações de diálogos ao telefone, entre outras.

Elizabeth, questionada acerca do papel do professor e do aluno, diz em suas

respostas que compreende que o papel do professor em sala é de facilitador e que o

aluno é o centro do processo de ensino-aprendizagem, e este deve ser orientado em sala

para área que irá atuar neste caso, na área de Hotelaria.

Depois, de alguns encontros com os professores, apresentamos um workshop

sobre o assunto tratado no questionário: teorias lingüísticas, métodos de ensino e

atividades práticas. Usamos para isso a concepção de método de Richards e Rodgers

citada em Vilaça (2008) e o estudo de Teorias e Métodos empregados em Guimarães

(2007).

Annie e Elizabeth interagiram bastante conosco e entre si durante o workshop,

indagaram perguntas sobre a diferença de método e material didático, que atividades

estariam condizentes com o método Comunicativo ou a Abordagem Comunicativa,

como a teoria sociointeracionista deveria ser aplicada em sala.

A postura das professoras esteve o tempo todo favorável à proposta que

estabelecemos para a aplicação do workshop, pois, preparamos uma apresentação

teórica do conteúdo e desenvolvemos atividades práticas usando o método da

Abordagem Comunicativa e a teoria Sociointeracionista.

Usamos os questionamentos sobre o método perfeito encontrados em Vilaça

(2008) até que a partir da exposição dos variados métodos: Gramática-Tradução,

Audiolingual, Direto, Abordagem Comunicativa, entre outros citados em Guimarães

(2007), as professoras reconheceram a importância de usar o ecletismo defendido no

texto de Vilaça, todavia, destacaram também a necessidade da Abordagem

P á g i n a | 918

Comunicativa para os alunos do curso de Hotelaria. Dentro dessa perspectiva, as

professoras apresentaram a criação de um blog que vai gerar uma situação real de

comunicação entre os alunos e os supostos hóspedes. Essa proposta foi nitidamente

enriquecida com o aporte teórico que passamos para os docentes.

A apresentação seguiu agora com a prática, a qual foi dividida em momentos da

aula: apresentação, prática e produção. Segundo Scrivener (2005), a Apresentação

consiste no momento em que o professor contextualiza o que será ensinado, apresenta o

vocabulário e depois a estrutura gramatical. Aqui, a participação do aluno é controlada,

sendo importante que haja muita repetição. Destacando a importância de sempre ensinar

o significado/ função, para depois ensinar a pronúncia e por último a forma (escrita); na

Prática, o aluno já começa a trabalhar mais. Este é o momento mais importante, pois é

quando o aprendizado ocorre de fato. O aluno é levado a fazer atividades controladas,

cujas respostas são predeterminadas pelo professor/material. São atividades de

preencher lacunas, organizar as frases, encontrar a alternativa correta, completar

diálogos... Durante as atividades o professor deve monitorar de perto, ajudar os alunos

com os erros e, perceber se há ou não necessidade de nova apresentação; e por fim

temos a Produção, este é o estágio final em que o aluno produz de forma mais

independente. Aqui o estudante faz atividades cujas respostas serão variadas, de acordo

com as escolhas que os alunos fizerem. Neste estágio, eles contam apenas com um

modelo, e algumas diretrizes para desenvolver sozinhos a linguagem alvo. Ex: construir

os próprios diálogos. É importante que antes de executar a tarefa propriamente dita, o

aluno tenha tempo para se preparar.

Após, esta explanação das atividades: sequência, tempo e intervalos entre elas.

Aplicamos uma atividade com as professoras seguindo, a teoria Sociointeracionista, a

Abordagem Comunicativa e o direcionamento de atividades dado por Scrivener (2005).

O resultado foi muito produtivo, o qual foi constatado através de um questionário Pós-

Tarefa.

Annie, nesse questionário, manteve sua percepção de língua como um meio de

construção e criação de sentido na língua-alvo, explicou que há atividade que criam

situações reais de comunicação, como: visitas a hotéis, encenações e entende o

professor como um facilitador do conhecimento e o aluno como o centro do processo de

ensino-aprendizagem. Com as novas respostas, Annie mantém uma coerência entre o

método Comunicativo, Abordagem Comunicativa, a teoria Sociointeracionista e as

atividades aplicadas em sala.

Já Elizabeth modificou a primeira resposta, marcando uma alternativa que

compreende a língua de maneira funcional, entendendo que deve haver um aprendizado

de funções necessárias para a comunicação dos alunos do curso de Hotelaria, sem

enfatizar a criação e a construção de uma comunicação na língua-alvo, no mais as

respostas dadas permanecem com o mesmo sentido, que o que atrapalha as aulas de LE

é o desinteresse do aluno, que os métodos usados são ecléticos: Comunicativo, Direto e

Gramática-Tradução, e que o professor exerce o papel de mediador entre o

conhecimento e o aluno, o qual exerce o papel central no curso de Hotelaria.

Diante disso, constatamos a necessidade de palestras e workshops na rede

pública de ensino, capacitando o professor, ensinando-o a ser um pesquisador e criar

propostas de trabalho possíveis e coerente com as teorias e métodos. Notamos que os

professores de LE têm grande interesse por formações, contudo, que essas sejam

práticas e objetivas, com teoria subjacente, contudo enfocando-se em técnicas a serem

P á g i n a | 919

utilizadas na sala de aula, transponde-se a abstração imposta pela teorização e

apresentando um uso prático da mesma.

5. Considerações finais

Compreendemos que os professores que ensinam LE necessita continuamente de

formação em relação aos aspectos lingüísticos de LE, aos métodos de ensino e suas

implicações na dinâmica de ensino e aprendizagem.

A partir do presente trabalho, percebemos que houve uma mudança no que diz

respeito ao papel do aluno e ao papel do professor no ensino de LE, porque, segundo

Vilaça (2008) “O aluno atual [...] precisa aprender mais e melhor em menos tempo.” e

“o professor precisa estar cada vez mais preparado para não só lecionar, mas também

administrar o processo de ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira.”, pois,

embora estejamos numa era que permite e, em muitas situações, exige o ecletismo, um

dos fundamentos necessários a esta formação é conhecimento e estudo crítico dos

métodos e das abordagens de ensino, para que a sua participação no ensino seja

fundamentada em princípios teórico-metodológicos, competências e conhecimentos

sólidos e compatíveis com a sociedade e o tempo em que vivemos.

Cabe, portanto, ao professor, em menor ou maior nível, fazer escolhas e adotar

estratégias e procedimentos adequados, sensatos e produtivos, ou seja, o professor de

LE precisa ser pesquisador e, principalmente, aqueles que trabalham com o ensino

técnico, como no curso de Hotelaria. Esses professores, mediante a tudo que foi visto e

analisado durante a pesquisa, necessitam de formação linguística e metodológica

constante, para que eles tenham um suporte para propor aos alunos atividades em que o

aluno reconheça situações reais de fala, de diálogo, enfim, situações de interação e

comunicação, as quais são imprescindíveis ao curso de Hotelaria.

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VILAÇA, M. L. C.. Método de ensino de línguas estrangeiras: fundamentos, críticas e

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Rio de Janeiro, Vol. VII. Nº XXVI. p. 73 – 88, jul – set, 2008.

VYGOTSKY. L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

SITES:

http://www.pucminas.br/destaques/index_interna.php?pagina=2520 - Acesso em

19/09/2013

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O CONTO E A TEORIA DA HISTÓRIA SECRETA

Maria Luiza Teixeira BATISTA (UFPB)

Resumo: Neste trabalho apresentaremos uma leitura dos contos de Horacio Quiroga e

Julio Cortázar à luz de uma das teses do escritor argentino Ricardo Piglia. Em seu texto

“Teses sobre o Conto” (2000), Piglia defende a ideia que o conto sempre conta duas

histórias: uma visível, que é facilmente absorvida pelo leitor, e uma secreta, que só é

revelada no final do relato e que depende de uma interpretação mais atenta por parte do

leitor. Tomando como base essa tese, analisaremos alguns relatos dos contistas aqui

mencionados na tentativa de verificar se a teoria da história secreta pode ser aplicada. A

escolha de Quiroga e Cortázar se deve ao fato de que ambos também se dedicaram a

reflexão do conto como gênero literário, estabelecendo suas próprias “teorias”. Quiroga

ficou conhecido por suas “máximas” nas quais, em um tom irônico, estabelece as regras

de composição para a produção de bons contos. Já os textos de Cortázar sobre o conto

ganharam transcendência ao expor certas características que dão forma ao gênero. Piglia

não desconsidera tais “teorias”, porém suas observações vão além do estabelecido por

seus compatriotas. Sua tese é o que mais se aproxima do que se considera uma teoria do

conto, por esse motivo pretendemos aqui avaliar se esta pode ser aplicada, qual o seu

alcance e sua vigência.

Palavras chave: Piglia; Quiroga; Cortázar; Teoria do conto.

Em verdade, será sempre conto aquilo que seu autor batizou

com o nome de conto.

Mário de Andrade

1. Introdução

Entre os gêneros literários narrativos, talvez o conto seja o mais misterioso e

instigante, visto que são muitas as tentativas de defini-lo e teorizá-lo. Desde as

primeiras considerações delineadas por Edgar Allan Poe nas suas conhecidas resenhas

sobre os contos de Nathaniel Hawthorne, o conto vem sendo objeto de constantes

estudos que, por um lado, buscam caracterizá-lo, apontando os elementos constitutivos

que o diferem de outros gêneros narrativos, e, por outro, tentam estabelecer uma espécie

de metodologia que permita analisar suas particularidades. Por essa razão, cada

estudioso, escritor ou contista acaba expondo sua forma pessoal de entender esse

gênero, por esse motivo, há quem diga que ainda não existe propriamente uma teoria

para o conto, o que existe são considerações sobre um gênero “tan poco encasillable”,

como adverte Cortázar (1994, p. 369). Outros apontam o texto de Ricardo Piglia, “Teses

sobre o Conto” (2004), como aquele que mais se aproxima do que se considera uma

teoria. Tentando nos colocar fora da polêmica sobre a existência ou não de uma teoria

própria para o conto, nossa proposta de trabalho é avaliar se as teses de Piglia podem ser

aplicadas a contos de dois contistas, Horacio Quiroga e Julio Cortázar, que, por sua vez,

também escreveram sobre o conto como gênero literário.

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2. Uma revisão da teoria

É comum considerar o escritor norte-americano Edgar Allan Poe como aquele

que deu o primeiro passo na direção de avaliar o conto como um gênero com

especificidades distintas daquelas presentes na poesia e no romance. A partir de seus

estudos, outros escritores também se aventuraram em escrever sobre o conto, entre eles

citaremos dois latino-americanos, Quiroga e Cortázar.

Começaremos avaliando os escritos do contista uruguaio Horacio Quiroga,

considerado discípulo de Poe por sua preferência por temas macabros e pela morte. No

entanto, esse não é o único ponto em comum entre ambos, já que compartilham a

mesma preocupação: entender o conto como gênero. Ambos os contistas tinham a

mesma opinião sobre o conto e sabiam que um conto bem escrito deveria atingir o leitor

de alguma maneira. Isto fica claro na definição que Quiroga dá ao conto, afirmando que

é como “una flecha que, cuidadosamente apuntada, parte del arco para ir a dar

directamente en el blanco” (QUIROGA, 1996, p. 1207). O alvo é o leitor, se o conto

não provocar nele nenhuma sensação, ou como diria Poe, nenhum efeito, o trabalho do

contista não alcançou seu objetivo.

São quatro os textos de Quiroga nos quais trata do conto como gênero. Nos dois

primeiros, intitulados Manual del perfecto cuentista (abril de 1925) e Los trucs del

perfecto cuentista (maio de 1925), escreve em resposta a algumas críticas publicadas

nos jornais da época e dirigidas ao trabalho do contista que, por tratar-se de ficção, não

podia ser comparado ao ensaio ou ao texto jornalístico quanto a sua “seriedade”.

Quiroga, ao entender que sua arte estava sendo depreciada e o trabalho do contista

desvalorizado, decide inventar uma espécie de fórmula, ensinando como escrever

contos, já que este é um trabalho pouco “sério” e que pode estar ao alcance de todos.

Seu texto é extremamente irônico e debochado, por isso não foi bem recebido por

muitos leitores e críticos.

Nestes textos, Quiroga aproveita para passar uma “receita caseira” de como

qualquer um, escritor ou não, pode escrever contos como um simples passatempo (Cf.,

QUIROGA, 1996, p. 1189). Começa recomendando iniciar a história pelo final, pois é

necessário que o contista saiba onde irá terminar seu relato. Depois aconselha utilizar

frases curtas, pois estas são indispensáveis para manter a emoção no leitor e para não

cansá-lo, já que ele não está disposto a perder tempo lendo o que não lhe interessa. Fala

também da audácia do contista como sua condição necessária, ele não deve explicar

demasiado, porque em um conto nunca se conta tudo. O contista nunca deve subestimar

a capacidade de interpretação do seu leitor, pois aquele “que no se atreve a perturbar a

su lector con giros ininteligibles para éste debe cambiar de oficio.” (QUIROGA, 1996,

p. 1193).

Ao longo desses textos, Quiroga tece comentários sobre o que ele considera

“truques” que permitem uma confecção rápida e eficaz de bons contos. Apesar de serem

textos irônicos, podemos resgatar algumas considerações importantes, tais como

questões relativas ao limite espacial e temporal e sobre a relação entre começo e final da

história.

No seu terceiro texto, Decálogo del perfecto cuentista (1927), Quiroga excede

na ousadia quando apresenta, em forma de mandamentos semelhantes aos da bíblia, as

normas a serem seguidas para que uma pessoa qualquer possa ser um “perfeito

contista”. As suas regras vão desde o cuidado com o excesso de adjetivação à posição

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que deve assumir o narrador (e por extensão o contista) diante da história que está

relatando.

Quiroga estabelece as regras: seu perfeito contista não deve adjetivar sem

necessidade, deve manter a história e a vida de seus personagens sob controle desde as

primeiras linhas até as últimas. Ele dita as normas, porém é o primeiro em não segui-las

a risca, talvez porque acreditasse que deveria aprimorar sua arte a cada conto.

Como foi de esperar, seu Decálogo causou, na sua época, muita polêmica, e é

até os dias atuais alvo de críticas e comentários. Apesar da ironia presente no texto, não

podemos desconsiderá-lo na hora de estudar sobre o conto, pois podemos aproveitar

algumas idéias que nos auxiliariam a entender esse gênero. Ademais, não podemos

esquecer que o Decálogo serviu de ponto de partida para que outros escritores

escrevessem sobre o conto, tal como aconteceu com o ensaio Del cuento breve y sus

alrededores de Julio Cortázar sobre o qual discutiremos adiante.

No seu quarto texto, La retórica del cuento (1928), o escritor muda de tom, de

irônico passa a reflexivo. Retoma a relação entre o conto literário e a tradição oral,

afirmando que o homem não nasceu contista, porém a arte de narrar é inerente ao ser

humano, por isso afirma que “mientras la lengua humana sea nuestro preferido vehículo

de expresión, el hombre contará siempre, por ser el cuento la forma natural, normal e

irreemplazable de contar” (QUIROGA, 1996, p. 1196). Mesmo longe de serem

considerados textos teóricos, esses quatro textos acabam fazendo uma análise crítica do

conto e, portanto, são fundamentais para o estudo desse gênero.

Como dissemos antes, Quiroga serviu de inspiração para outros escritores

tecerem comentários acerca do conto, esse é o caso de Cortázar que discutiremos aqui.

Começaremos com Algunos aspectos del cuento54

, texto lido em uma conferência na

Casa de las Américas em Cuba em 1963. Neste texto, Cortázar afirma que o conto é um

gênero esquivo e de difícil definição, por este motivo só consegue defini-lo através de

imagens: como um caracol de linguagem, enrolado em si mesmo, ou como um irmão

misterioso da poesia (Cf., CORTÁZAR, 1993, p. 149).

Na busca por caracterizar o conto, Cortázar acaba afirmando que não existem

leis que o regem, o que existem são “constantes”, ou seja, elementos que estão presentes

em diferentes tipos de contos e que dão estrutura ao gênero. Entre estas “constantes”

destacamos aquela que o escritor define como intensidade e tensão. A primeira

“consiste na eliminação de todas as idéias ou situação intermédias, de todos os recheios

ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige” (CORTÁZAR, 1993, p.

157), ou seja, o contista tem de eliminar tudo o que sobra e que não esteja direcionado

ao seu objetivo. A tensão, por sua vez, é a forma como o contista aproxima lentamente

o leitor do fato narrado, gerando com isso uma expectativa que vai crescendo até seu

desfecho final (Cf., CORTÁZAR, 1993, p. 158). Para o escritor, essas duas constantes

são fundamentais para a construção de um conto que se planta na memória do leitor

como uma semente eterna.

Outra constante importante está no limite físico, esse aspecto diferencia o conto

do romance. Para ilustrar seu ponto de vista, Cortázar compara o conto e o romance

com a fotografia e o cinema (ou o filme). Para ele, “um filme é em principio uma

‘ordem aberta’, romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma

justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e

54

Utilizaremos nas citações a tradução de Davi Arrigucci Jr e João Alexandre Barbosa, “Alguns aspectos

do conto”, publicado no livro Valise de Cronópio.

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pela forma que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação” (CORTÁZAR, 1993, p.

151). A fotografia, assim como o conto, capta um fragmento da uma realidade que é

muito mais ampla. Já no romance, semelhante a um filme, “a captação dessa realidade

mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos

parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese e que dêem o ‘clímax,

da obra” (CORTÁZAR, 1993, p. 151).

O outro texto de Cortázar sobre o conto se intitula Del cuento breve y sus

alrededores (1969)55

. Como dissemos antes, nesse texto o escritor argentino parte do

último mandamento do Decálogo de Quiroga que fala do conto como um pequeno

ambiente para desenvolver o conceito de esfericidade. Cortázar entende o pequeno

ambiente postulado por Quiroga como uma forma fechada, esférica, na qual se

desenvolve a situação narrativa. Afirma Cortázar:

A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao

conselho [de Quiroga], ao definir a forma fechada do conto, o que já

noutra ocasião chamei sua esfericidade; mas a essa noção se soma

outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido

uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve

nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o

exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como quem

modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da

esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto,

como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse

implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz

precisamente a perfeição da forma esférica. (CORTÁZAR, 1993, p.

228)

Para ele, o conto deve dar a impressão que se conta a si mesmo, sem muita

interferência do contista enquanto demiurgo, por isso defende a narração em primeira

pessoa, para reforçar essa suposta independência. Ainda defende que o contista deve

trabalhar com a máxima economia de meios e com a máxima tensão, porque seu

objetivo é fascinar o leitor desde as primeiras linhas.

Nesse texto, Cortázar mais uma vez aproxima o conto da poesia quando diz que

ambas nascem de “um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime

‘normal’ da consciência” (CORTÁZAR, 1993, p. 234). E isto se deve porque o conto

“depende destes valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a

tensão, o ritmo, a pulsação interna, o imprevisto dentro de parâmetros pré-vistos, essa

liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda irreparável. Os contos dessa

espécie incorporam-se como cicatrizes indeléveis em todo leitor que os mereça...”

(CORTÁZAR, 1993, p. 235)

É certo que ambos os textos de Cortázar não são o que se pode classificar de

uma teoria, mesmo porque seu objetivo ao escrevê-los não foi postular uma teoria para

o conto, mas expor sua concepção do que é um conto e compartilhar sua experiência

enquanto contista. Apesar de não serem textos teóricos, esses ensaios são essenciais

para o estudo do conto.

55

Utilizaremos nas citações a tradução de Davi Arrigucci Jr e João Alexandre Barbosa, “Do conto breve e

seus arredores”, publicado no livro Valise de Cronópio.

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3. A teoria da história secreta

Passamos aqui para a leitura das Teses sobre o conto (2002) de Ricardo Piglia.

Nesse texto, o escritor argentino defende duas teses: na primeira afirma que “um conto

sempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2004, p. 89) e na segunda defende que “a

história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes” (PIGLIA, 2004, p. 91).

O que nos interessa neste trabalho é analisar a primeira destas teses.

Piglia afirma que existem duas histórias presentes no conto: uma visível e uma

secreta, e a arte do contista está em saber cifrar uma na outra (Cf., PIGLIA, 2004, p.

90). A primeira história, a visível, é contada de modo explícito e, portanto, é facilmente

absorvida pelo leitor, enquanto que a outra, secreta, vai sendo contada nos interstícios

da primeira e só é revelada no final quando o “segredo” emerge na superfície,

provocando no leitor algum efeito, sensação ou estranhamento (Cf., PIGLIA, 2004, p.

90).

O escritor sustenta que esse caráter duplo do conto é a chave para compreendê-lo

enquanto gênero narrativo, mas é também uma forma de classificá-lo em conto clássico

ou moderno, dependendo do modo como a segunda história foi cifrada. No primeiro, a

história secreta aparece subitamente no final como uma revelação epifânica. Já no conto

moderno, as duas histórias aparecem entrelaçadas, há uma espécie de tensão entre

ambas, como se houvesse uma só história e seu desfecho não aparece de forma

conclusiva, fechada. A segunda história é contada de forma elusiva, porque “o mais

importante nunca se conta” (PIGLIA, 2004, p. 91), deixando no leitor a impressão de

que a história está inconclusa, aberta, ou que há algo escondido e que talvez não tenha

conseguido alcançar.

Apesar de afirmar que são teses sobre o conto, o que fica claro desde o título,

esse texto aparece em forma de notas nas quais o escritor parece registrar suas reflexões

sobre o gênero em busca de uma compreensão melhor. Em alguns momentos,

percebemos que seus postulados resgatam o que o conto herdou da tradição da narrativa

oral, do contador de histórias que sempre deixava o melhor para o final para não perder

a atenção da platéia. E em outros, especula sobre a técnica narrativa de vários contistas

com o intuito de ilustrar ou comprovar sua tese. Piglia finaliza seu texto sustentando a

ideia que existe uma história secreta em cada conto e este foi construído para revelar

algo que estava oculto, uma verdade secreta que estava escondida debaixo da superfície

opaca da vida (Cf. PIGLIA, 2004, p. 94).

Considerando que seu texto são notas dispostas em ordem numérica, podemos

pensar que o propósito de Piglia não era propor uma teoria para o conto. Porém seu

texto é o que mais se aproxima de uma teoria, uma vez que o escritor apresenta suas

teses e tenta defendê-la através de exemplos pertinentes.

Analisando a sua primeira tese, percebemos que Piglia é muito assertivo quando

defende que o conto sempre conta duas histórias. A palavra sempre nos leva a

questionar o absolutismo de tal afirmação. Será que todo conto conta sempre duas

histórias? Ou será que pode haver algum que conte mais de duas histórias? Ou ainda só

uma? Este questionamento vem atrelado a outro: Piglia afirma que a história secreta se

apresenta de forma enigmática, porém não depende da interpretação do leitor alcançar

seu sentido oculto. Pensamos que talvez não dependa exclusivamente da interpretação

subjetiva, mas se é uma narração cifrada, sua leitura convida o leitor a decifrá-la,

P á g i n a | 926

analisando e interpretando os signos, sinais, pistas, indícios, etc., na tentativa de

encontrar a solução, a chave secreta.

Levando em conta estes questionamentos, fomos buscar respostas analisando

dois contos dos escritores mencionados no início deste trabalho: Horacio Quiroga e

Julio Cortázar.

4. Um conto sempre conta duas histórias?

Nesta parte do nosso trabalho iremos investigar se a tese de Piglia pode ser

aplicada a dois contos, um deles é de autoria do escritor Horacio Quiroga. Escolhemos

Las rayas (1907) por tratar-se de um relato que se aproxima do modo fantástico e,

portanto, já deixa entrever que pode contar duas histórias.

Conto começa advertindo o perigo escondido na dupla significação de uma

palavra. Trata-se da palavra raya (em espanhol) que pode designar duas coisas

diferentes: como raia (linha ou listra) e como raia (animal marinho). Em seguida, ao

modo do relato oral, o narrador-testemunha começa a relatar a história de dois homens

obcecados por desenhar listras. Ambos eram empregados de uma pequena empresa, um

era vendedor e o outro cuidava da contabilidade, ou dos libros em espanhol. A

transformação nos dois personagens aconteceu aos poucos, os funcionários, antes

exemplares, começaram a mudar o comportamento e ficaram estranhos, a partir desse

momento surgem as primeiras raias (linhas). Elas estavam cuidadosamente pintadas no

livro de registro onde supostamente deveriam anotar as operações comerciais, depois

apareceram nas paredes e móveis do escritório. Por causa dessa loucura, ambos foram

despedidos. Os homens desaparecem do povoado, deixando a sua casa marcada de raias

por todos os lugares. O conto termina com uma revelação do narrador que afirma ter

encontrado duas raias negras num canal lamacento atrás da casa onde moravam.

Essa sinopse corresponderia à história visível, que está na superfície e que, a

primeira vista, pode parecer estranha e sem sentido. Porém essa suposta inocente

história pode guardar uma história secreta, se consideramos que todo conto sempre

conta duas histórias.

Se levarmos em conta a dupla ou múltipla significação da palavra raya, podemos

afirmar que a história secreta pode estar contida nessa palavra. Tomando a significação

metafórica do verbo rayar que significa enlouquecer no espanhol argentino, a segunda

história seria a de dois homens que rayaron, quer dizer enlouqueceram. Talvez por

causa da rotina extenuante do trabalho ou por causa da solidão, já que ambos eram

emigrantes de outras regiões e que vieram buscar trabalho em Laboulaye (povoado da

província de Córdoba na Argentina). Esta interpretação pode ser muito previsível, já que

o tema da loucura é bastante comum na contística de Quiroga.

Podemos considerar que a história secreta se revelaria no final do relato quando

o narrador insinua que os homens podem ter se metamorfoseado em raias. E aqui

percebemos uma sutil ironia presente na relação entre a palavra e o objeto (ou objetos)

que ela designa. Dario Puccini nos chama a atenção para essa particular metamorfose,

afirmando que esta “se realiza dentro de uma zona semántica, dentro del significado que

cobra la misma palabra em um mismo idioma” (PUCCINI, 1996, p. 1351). A obsessão

por desenhar raias acaba transformando os dois personagens em raias.

P á g i n a | 927

Ainda no plano da interpretação e buscando sentido nas entrelinhas da história

visível, podemos deduzir que a história secreta pode estar relacionada com o tema da

homossexualidade. Os dois homens, emigrantes solitários, travaram uma estreita

amizade, como nos afirma o narrador (Cf., QUIROGA, 1996, p. 470). Ambos moravam

juntos em uma casa nos arredores do povoado e estavam sempre na companhia um do

outro. Talvez estes sejam indícios de uma relação homoafetiva entre os personagens e as

linhas representam uma forma de expressar seus sentimentos.

Apesar de Piglia afirmar que a história secreta “não se trata de um sentido oculto

que dependa da interpretação” (PIGLIA, 2004, p. 91), é quase impossível desconsiderar

a interpretação subjetiva do leitor. Por esse motivo, a busca pela história secreta pode

levar a diferentes formas de ler a mesma história e cada leitor pode dar sentidos

diferentes a mesma história. Isto relativizaria a afirmação de Piglia quando diz que um

conto sempre conta duas história, quiçá possa contar mais de duas ou uma só.

Na nossa leitura do conto, falta destacar um aspecto que acreditamos ser a

história secreta mais interessante. Se considerarmos que é a história secreta é a chave

que define a forma do conto como nos indica Piglia, podemos pensar que esta guarda

uma relação muito estreita com a tradição do relato oral. O narrador-personagem não

conta todos os detalhes, tentando manter a atenção dos seus ouvintes, além disso deixa

uma interrogação no final que, por sua vez, aparece aberto, propiciando diversas

interpretações. Desde esta perspectiva, podemos afirmar que a história secreta pode

estar na própria forma de narrar e na capacidade inata do homem para narrar. O narrador

do conto de Quiroga “no era un viejo y sutil filósofo versado en la escolástica”

(QUIROGA, 1996, p. 469), é, de fato, um homem comum, mas que como bom contador

de história conhece os truques de como contar um bom conto.

Não podemos deixar de apontar também a sutil ironia expressada pelo contista

que aproveita para nomear um dos seus personagens como Tomás Aquino, clara

referencia ao representante da escolástica. Em oposição ao seu narrador principal que

não precisava ser um escolástico para poder narrar.

Na busca pela história secreta no conto Las rayas de Horacio Quiroga, acabamos

encontrando algumas possíveis histórias. Tal fato não invalida a teoria de Piglia, pelo

contrário, provoca a curiosidade de seguir procurando esse segredo tão bem guardado

no interior do conto.

Vejamos agora quais histórias encontraremos em um conto de Cortázar.

Escolhemos Continuidad de los parques (1956) para avaliar que histórias secretas se

desprendem desse relato. O conto narra a história de um personagem que, sentado na

sua poltrona favorita de veludo verde diante de um parque de carvalhos, lê um romance

no qual se conta a história de um casal de amantes que tramam a morte do marido. A

história do romance lido pelo personagem se converte na sua própria quando, no final

do relato, o amante-assassino surge com um punhal na mão pronto para matar um

homem que está lendo um romance, sentado em uma poltrona de veludo verde.

Como podemos perceber este relato já conta duas histórias: a do romance e a do

homem que lê o romance, ambas estão na superfície, são as histórias visíveis. Sendo

assim, nos deparamos com um problema: se há duas histórias visíveis, cada uma pode

conter uma história secreta. A história dos amantes que tramam a morte do marido pode

nos levar a várias interpretações. Podemos pensar que a história secreta está no motivo

do assassinato e tem a mulher como mentora. Ela, que não recebe atenção do marido

cujo tempo livre era dedicado as suas leituras, convence seu amante a matá-lo para ficar

com sua fortuna. Seguramente essa interpretação seria demasiado óbvia, mas não

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deixaria de ser válida, já que o narrador vai deixando pistas ao longo do seu relato que

leva o leitor a chegar a essa conclusão.

Se Analisarmos o conto desde o ponto de vista da metaficção, podemos dizer

que este funciona como bonecas russas que se encaixam uma dentro de outra, na

definição de Gustavo Bernardo (Cf., 2010, p. 31). O conto sugere, desde o título, uma

continuidade que segue ao infinito, uma ficção dentro de outra. Dessa forma, o nosso

problema para encontrar a história secreta se potencializa, porque as histórias secretas se

multiplicariam com o abrir uma boneca e encontrar outra igual.

Ainda tentando encontrar outras histórias secretas, chegamos a uma das funções

da literatura: a fruição. No conto, o personagem-leitor alheia-se do seu entorno e vive a

história que lê como se fosse a sua própria. Este processo de identificação nos remete a

outro texto de Cortázar mencionado no início do nosso trabalho, Algunos aspectos del

cuento, no qual fala que é mediante o uso de certas técnicas que o contista consegue

seqüestrar momentaneamente o leitor, atraindo sua atenção, isolando-o de tudo que o

rodeia para depois conectá-lo de novo com suas circunstancias (Cf. CORTÁZAR, 1993,

p. 153) Vemos essa técnica materializada nesse conto e ousamos dizer que o contista

conseguiu capturar dois leitores (ou infinitos leitores): aquele que lê o romance sentando

na sua poltrona de veludo verde e aquele que lê o conto que conta a história desse leitor.

5. Considerações finais

Como podemos observar, não foi uma tarefa simples aplicar a teoria da história

secreta aos contos escolhidos para análise neste trabalho. Muitas dúvidas surgiram na

busca pelas duas histórias, chegamos a pensar que elas podem ter sentidos diferentes

para leitores diferentes, já que inevitavelmente ele recorre ao mecanismo da

interpretação. Acreditamos que a interpretação é um aspecto determinante na hora de

avaliar que histórias estão presentes no conto. Ao fazer tal observação, não temos a

intenção de refutar a tese de Piglia, mas de refletir e avaliar suas frases terminantes.

Talvez a nossa dificuldade em encontrar nos contos escolhidos apenas uma

história secreta, se deva ao fato de ambos serem considerados fantásticos, que, por sua

vez, tem como característica principal implantar uma dúvida na consciência do leitor.

Diante de tal dificuldade, optamos, portanto, por destacar as possíveis histórias secretas

escondidas por trás da história visível, sem desconsiderar que estes relatos podem levar

a outras leituras, uma vez que ainda há a possibilidade de encontrar outros sentidos.

Apesar de acreditar que existam mais de uma história secreta nestes contos,

observamos também que ambos são construídos conforme Piglia descreve nas suas

notas, parte da história que consideramos visível não é contada. Tal técnica cria no leitor

uma expectativa, ou tensão, dando a impressão que há realmente algo escondido e que

deve ser desvendado. Esse sentimento o mantém “atado” ao conto até o final quando a

história secreta é revelada.

Após essa análise, concluímos que a tese de Piglia pode ser aplicada aos dois

relatos aqui avaliados, Las Rayas e Continuidad de los parques. Porém não

conseguimos afirmar com certeza se, em cada um deles, existe apenas uma história ou

se há outras ocultas atrás da história visível. Como nos limitamos a analisar nada mais

que dois relatos, estamos cientes que, para comprovar se a tese da história secreta é

aplicável a qualquer conto, seria necessário avaliar um corpus maior, com contos de

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diferentes escritores e de diferentes épocas. Assim sendo, podemos dizer que ainda há

um longo caminho a ser percorrido na investigação sobre a teoria da história secreta.

Referências

BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar

Editorial, 2010.

CORTÁZAR, Julio. Cuentos Completos/1. Buenos Aires: Alfaguara, 1996.

CORTAZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de Cronópio. São Paulo:

Editora Perspectiva, 1993.

CORTAZAR, Julio. Do conto breve e seus arredores. In: Valise de Cronópio. São

Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

CORTÁZAR, Julio. Algunos aspectos del cuento. In: Obra Crítica/2. Buenos Aires:

Alfaguara, 1994.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

PUCCINI, Dario. Horacio Quiroga y la ciencia. In: QUIROGA, Horacio. Cuentos

completos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1996.

QUIROGA, Horacio. Cuentos completos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,

1996.

QUIROGA, Horacio. Ante el tribunal. In: Cuentos completos. Buenos Aires: Fondo de

Cultura Económica, 1996.

QUIROGA, Horacio. Manual del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos

Aires: Fondo de Cultura Económica, 1996.

QUIROGA, Horacio. Los trucs del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos

Aires: Fondo de Cultura Económica, 1996.

QUIROGA, Horacio. Decálogo del perfecto cuentista. In: Cuentos completos. Buenos

Aires: Fondo de Cultura Económica, 1996.

QUIROGA, Horacio. La retórica del cuento. In: Cuentos completos. Buenos Aires:

Fondo de Cultura Económica, 1996.

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A MEMÓRIA DA FICÇÃO EM EL SIGLO DE LAS LUCES DE ALEJO

CARPENTIER

Igor de Serpa Brandão Pereira LEITE56

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo explorar a constituição da memória,

do imaginário e do simbólico na obra El Siglo de las Luces de Alejo Carpentier. Com

efeito, pretende-se especificar a memória na historicização da ficção, da qual permite

reconstituir os vestígios do passado histórico, e, por conseguinte, suscita uma releitura

desses vestígios para uma interpretação transcultural do continente americano. O

aspecto reivindicatório de identidade cultural que confere uma consciência americanista

só pode ser concebida sub specie metafórica, onde a memória condiciona a irrupção

simbólica da narrativa pelo imaginário.

Palavras-chaves: A memória; Imaginário; Simbólico; Transcultural; Identidade

cultural.

1. Introdução

O presente trabalho tem como objetivo explorar a constituição da memória, do

imaginário e do simbólico na obra El Siglo de las Luces de Alejo Carpentier. A

memória, a partir do relato ficcional, autentica o viés simbólico da criação poética desta

narrativa que assegura a reconstrução do passado histórico rumo à visão da América

Antilhana. O espaço do imaginário, como a Viagem e a noção de Ilha, atua sobre a

estética barroca da narrativa, da qual uma encruzilhada de culturas, experiências,

crenças e mitos, permite reinscrever o passado na dinâmica do presente.

O artifício poético do mundo das viagens, que conectam espaços incongruentes,

asseveram “conflitos, omissões, ausências e não poucas vezes configuram refúgios

míticos onde os sujeitos diaspóricos se encontram em uma memória habitada desde

dentro.” (BOLAÑOS, 2010, p.13). Com efeito, pretende-se especificar a memória na

formalização da ficção do relato histórico, da qual permite reconstituir os vestígios do

passado, e, por conseguinte, suscita uma releitura desses vestígios para uma

interpretação transcultural do continente americano.

A complementariedade entre ficção e história permite justificar a presença do

pensamento sincrético da narrativa que conduz a uma ampla variedade de assuntos que

formam os contextos essenciais das ilhas caribenhas.

O aspecto reivindicatório de identidade cultural que confere uma consciência

americanista só pode ser concebida sub specie metafórica, onde a memória condiciona a

irrupção simbólica da narrativa pelo imaginário.

A metodologia utilizada neste trabalho impulsiona uma análise do aspecto

ficcional a partir da conjuntura entre a memória, a ficção e a história.

2. A memória

56

Estudante do curso de especialização em Práticas docentes para o ensino de Língua Espanhola, na

Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE).

P á g i n a | 931

A memória tem uma função fundamental na configuração da narrativa em El

siglo de las Luces de Alejo Carpentier. O que vem a salientar uma série de

questionamentos: o que é memória? Qual é o papel da técnica mnemônica no espaço

ficcional? O que é a memória da ficção?

A memória surge a partir dos vestígios do passado e seu princípio primeiro é um

condicionamento biológico do ser humano. Contudo, além da nossa condição psíquica,

a memória vem a cumprir um papel elementarmente social, da qual se designa como

memória coletiva em detrimento da memória individual. O carácter teleológico da

memória coletiva é a origem que pode ser mítica ou não. Para os gregos da época

arcaica, a memória era representada como Mnemosine, deusa e mãe das nove musas,

fruto da sua relação com Zeus. A memória tinha um espaço sagrado no mundo grego,

não só na representação dos mitos gregos, mas principalmente na expressão literária por

meio da poesia. Aristóteles falava da poesia como composição que se deva dar aos

mitos. A concepção da poesia pelos gregos, portanto, identificada com a memória, é

uma forma de conhecimento, um saber. Nas doutrinas órficas e pitagóricas, a memória

seria o não-esquecimento, como fonte da longevidade.

Por outro viés, a memória, na concepção moderna, estaria mais vinculada às

ciências do espírito, como a fenomenologia. Para Bergson (1999), a realidade do

espírito e da matéria está intimamente relacionada com a memória. A teoria da memória

bergsoniana indica que o reconhecimento das imagens pela lembrança demonstra a

relação entre o espírito e a matéria. Para o pensador francês, o estado psicológico do

sujeito parece ultrapassar o estado cerebral que seria a matéria, pois as imagens geradas

pelo cérebro são representadas à consciência depois que os movimentos

desempenhariam no espaço a modo de esboço que imprime ao corpo uma atitude ou

movimento. Segundo esta concepção, os movimentos dos atores que representam uma

determinada peça, por exemplo, são intrinsicamente trabalhados na consciência a partir

da imagem-lembrança que esboçaria o movimento a ser executado. Muito além da

função cerebral, temos o espírito mesmo, ou seja, “a vontade de” que sugere o estado

psicológico.

Para Ricoeur (2007), a memorização “(...) consiste em maneiras de aprender que

encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados”( p.73).

Entendido deste modo a memória como bem efetuamos aqui a qual surge a partir de

uma necessidade do espírito do qual “a vontade de” indicada no sujeito psicológico nos

remete à fenomenologia da memória individual que vem a ser melhor esclarecida por

Husserl na quinta Meditação Cartesiana na qual a passagem do ego à intersubjetividade

é compreendido. Jean Paul Sartre (1997) considera o problema da intersubjetividade

através da concepção da empatia e ser-para-outrem, já que “Outrem apresenta-se [...],

num certo sentido, como a negação radical da minha própria experiência, pois ele é

aquele para quem eu sou não sujeito, mas objeto” (p.273).

Para entender a memória como “vontade de” nos leva a acrescentar a questão da

identidade. Por outro lado, deveríamos levantar outro questionamento: de que modo eu

entendo por identidade? Mais uma vez, retornamos à Bergson (1999). Sabemos que a

memória está subordinada ao estado cerebral, onde imagens-lembrança do passado

recente ou longínquo estão presentes em nós mesmos. Assim, existem as imagens-

lembranças que advém da percepção e da afecção. Levando isso em consideração, o

movimento das lembranças surge por uma relação de fora para dentro ou de dentro-

para-fora. A afecção do espírito convida o sujeito a agir. Daí que surge a necessidade da

P á g i n a | 932

identidade individual como modo de agir a partir da memorização. Mas não poderíamos

deixar de lado que a questão da identidade individual pressupõe a presença da

alteridade, onde a memorização é sempre memória de algo ou alguém. Então a nossa

identidade não surge a partir do nada, mas da nossa experiência de Mundo pelo Outro.

Mas de que modo deveríamos entender o espaço mnemônico na narrativa de

Alejo Carpentier? Antes, bastaríamos dizer que a memória é fruto da imaginação no

espaço ficcional e que, por sua vez, pressupõe a vontade do ser em legítima defesa da

sua identidade. Entretanto, não bastaria por si mesmo definir o espaço memorialística

em El Siglo de las Luces, uma vez que perguntaríamos de que memória individual ou

coletiva, assim como de que identidade individual ou coletiva iremos abordar aqui.

Paul Ricoeur havia dito sobre o problema da memória manipulada na narrativa a

partir de uma memória ferida ou até mesmo enferma. Para concretizar o seu

pensamento, o filósofo francês embasará em Freud sobre o trabalho da interpretação que

paira no processo da recordação das lembranças traumáticas. Sob esta concepção,

deveríamos considerar a questão do luto em relação “todas as situações evocadas na

cura psicanalítica terem a ver com o outro, não somente aquele do romance familiar,

mas o outro psicossocial e, por assim dizer, o outro da situação histórica” (2007, p. 91,

grifo do autor).

A presença das experiências traumáticas tanto da identidade individual quanto

da identidade coletiva no processo mnemônico justifica “estender a análise freudiana do

luto ao traumatismo da identidade coletiva” ( RICOEUR, 2007, p.92).

No caso da obra El Siglo de las luces, isso reverbera nas histórias individuais de

Sofía, Esteban e Victor Hughes, os três personagens protagonistas da obra ficcional. Por

outro lado, o contexto histórico das revoluções no continente europeu e americano tem

como ponto comum o paralelismo entre a História de Europa e a História da América

antilhana. O paralelismo entre a revolução francesa e as idéias do iluminismo na Europa

e na América Antilhana. O paralelismo entre os Francos-maçons na Europa e na

América. Assim, poderíamos sugerir outro questionamento: Com que fim a interface

entre memória, ficção e história vem a elucidar a questão da identidade individual e

coletiva?

Segundo Roland Walter (2009):

Ter uma identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter

uma história imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra

enquanto seu dono, significa ter uma não-identidade. Daí resulta que a

importância do espaço/paisagem e da memória enquanto elementos

narrativos e locais de cultura para se colocar como sujeito. É na

literatura enquanto espaço mnemônico (...) recriam os mitos

necessários para se enraizar como sujeitos autóctones. A

reapropriação do espaço via memória, portanto, possibilita a

colocação (...) na sua própria história. A renomeação do seu lugar e da

sua história significa reconstruir sua identidade, tomar posse de sua

cultura; significa, em última análise, resistir a uma violência

epistêmica que continua até o presente. (WALTER, 2009, p.63).

Estas breves considerações de Roland Walter será crucial para entender o fim

cujo propósito crítico de reinscrever a história da revolução francesa e o iluminismo na

P á g i n a | 933

América a partir desta obra. Para isso, o narrador utiliza a presença do personagem

histórico Victor Hughes, do qual justificará o próprio autor Alejo Carpentier na pós-

narrativa a cerca da historicidade deste personagem. Carpentier relata sobre a atuação

deste personagem em Port-au-Prince, Guadalupe e Guayana Francesa. Mas também

relata sobre:

sua ação hipostática-firme, sincera, heróica, em sua primeira fase;

desalentada, contraditória, ambiciosa e até cínica, na segunda- nos

oferecem a imagem de um personagem extraordinário que estabelece,

em seu próprio comportamento, uma dramática dicotomia. Daí que o

autor havia acreditado interessante revelar a existência desse ignorado

personagem histórico em um romance que abarcara, por sua vez, todo o

âmbito do Caribe. (CARPENTIER, 1980, p. 163, tradução nossa).

Este personagem contraditório, tal como nos relata o próprio autor a cerca da

dramática dicotomia de sua personalidade, nos impõe uma releitura da história da

América nas ilhas caribenhas de igual modo dramático na sua dicotomia. Porque a

memória deste personagem foi esquecido na historiografia tradicional e lembrado por

Alejo Carpentier? A memória na narrativa surge através de um critério de seleção na

ordem performática da linguagem literária. Isso leva em conta o seguinte aspecto crucial

da memorização na narrativa ficcional: o que devemos lembrar e o que devemos

esquecer para concretizar a práxis dos contextos latino-americanos. Para Ricoeur

(2007), “a memória é incorporada à constituição da identidade por meio da função da

narrativa. A ideologização da memória torna-se possível pelos recursos de variação

oferecidos pelo trabalho de configuração narrativa.” (p. 98). Poderíamos então justificar

que o critério de seleção e configuração da narrativa a partir da historicização da

ficção, sob o estatuto da técnica mnemônica, indica que voltar-se ao passado é uma

questão fundamental da necessidade potencial do presente histórico como compromisso

até o futuro pelo qual a consciência histórica e o conhecimento histórico andam lado a

lado sob o aspecto da diferença, da alteridade e da transculturação.

3. O imaginário

O mundo do imaginário legitimado pela barroquização da escrita, subsumido

numa cosmovisão das Ilhas Caribenhas, assim como o mundo visto através do ponto de

vista simbólico. Contudo, a esfera do simbólico busca algo valioso em si mesmo, não

apenas subordinado ao gosto estético, nem ao caráter mimético da obra. O sentido do

imaginário surge por meio de múltiplas imagens ressonantes e repercussivo, da mesma

maneira que nos certificou Gaston Bachelard em Poética do espaço:

Aquí debe sensibilizarse la duplicación fenomenológica de las

resonancias y de la repercusión. Las resonancias se dispersan sobre los

diferentes planos de nuestra vida en el mundo, la repercusión nos llama

a una profundización de nuestra propia existencia. En la resonancia

oímos el poema, en la repercusión lo hablamos, es nuestro. La

repercusión opera un cambio del ser. Parece que el ser del poeta sea

P á g i n a | 934

nuestro ser. La multiplicidad de las resonancias sale entonces de la

unidad de ser de la repercusión. ( 2000, p.14)

O ato poético na narrativa, engendrada pelo mundo fenomênico, não cria

imagens apenas como ecos do passado, mas as imagens criadas ecoam na profundidade

do ser mesmo, na qual os arquétipos presentes no fundo de nossa inconsciência sugere

um grande significado ontológico como modo de presença (dasein).

Que mundo é descoberto por Sofía e Esteban? E de que forma a memória destes

dois personagens são conflituosas em si mesmo? Por intermédio da estetização da

narrativa sob a barroquização da escrita e o mundo simbólico que ressoa na unidade do

ser como modo de presença (dasein), a partir de imagens que não ecoam apenas no

passado pela técnica mnemônica, mas o conjunto destas imagens repercussivas e

ressonantes, que abarcam o mundo das sensações e o mundo da transfiguração da

realidade, fazendo com que a linguagem poética da narrativa queira alcançar a

experiência do todo do mundo a partir do pertencimento da poética. Assim, o conjunto

das imagens poéticas formam o imaginário na narrativa a partir da memória. As

imagens têm um pertencimento de lugares, objetos, essências, cores e pessoas.

Esteban é apresentado na parte mais úmida e escura da casa como um

adolescente enfermo com um corpo magro, seu peito exalava um silvado surdo. De uma

criança enferma, logo Esteban misteriosamente é curado por Ogé, pois segundo este,

certas enfermidades estavam misteriosamente relacionadas com o crescimento de uma

erva, planta ou árvore. Esteban não só alcança uma cura, mas depois de curado, muitas

mudanças operam no seu caráter e comportamento. Aos poucos Esteban vai

descobrindo o mundo afora, as ruas dos garitos, as casas de baile, as mulheres recém

banhadas fumando tabacos nas portas giratórias, os lugares de diversão e prazer.

O imaginário através do mundo das crenças, dos modos e costumes do mundo

antilhano, do insólito, do cotidiano, da idéia de morte e da sexualidade através das

experiências de cruzes, sensações, simbiosis, nos impõe ainda outro aspecto essencial da

narrativa: a narrativa de viagens. Os relatos de viagens ou descobrimentos, da mesma

forma como um auto-descobrimento representado em Esteban e Sofía, podem

proporcionar:

as marcas das rotas mundanas e históricas que, por sua vez, limitam e

fortalecem os movimentos através de fronteiras e entre culturas. Sua

preocupação são as diversas práticas de cruzes, as táticas de tradução,

as experiências de apego ao dobro ou múltiplo. Estes exemplos de

cruzes refletem complexas histórias regionais e transregionais.

(CLIFFORD, 1997, p.17, tradução nossa).

Estas experiências de cruzes, complexas historias individuais e transindividuais;

a multiplicidade das imagens ambíguas; a alegoria, da mesma forma que histórias e

memórias convergentes, são abarcados por uma “multivocalização, cujas diversas

dimensões individuais e coletivas referem-se a complexos e entrelaçados mecanismos

cerebrais e socioculturais” ( WALTER, 2009, p.65).

As experiências de fronteiras e espaços fractais assumido no romance a partir da

presença inglesa, francesa, holandesa, espanhola e dos negros escravos; por outro lado,

a experiência antilhana que constitui um arquipélago maravilhoso, com pequenos

P á g i n a | 935

relatos que presencia huellas como signos índices do maravilhoso ou do imaginário,

que demonstram o processo transcultural como síntese cultural da América e das ilhas

caribenhas. Tal síntese transcultural do continente americano por intermédio da

episteme cultural (cosmovisão, ethos, identidade), é revelada através da memória

enquanto ela “tenta estruturar os contextos e conteúdos das nossas experiências em

termos de sua sequência no tempo e no espaço” (WALTER, 2009, p. 65).

A partir do imaginário pelo universo da viagem, a obra de Alejo Carpentier

justifica uma hermenêutica histórica e cultural das ilhas caribenhas para uma síntese da

visão de América como totalidade e totalização histórica. Segundo Walter Benjamin

(2012), o passado histórico é um índice secreto, pelo qual o passado dirige um apelo,

um apelo que não pode ser deixado de lado impunemente, já que o materialismo

histórico é uma consequência desse passado.

Desse modo, ainda ressoam as palavras de Walter Benjamin que “historicamente

o passado não significa conhece-lo tal como ele de fato foi. Significa apropriar-se de

uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo” (2012, p. 243, grifo do

autor).

4. O simbólico: o Barroco

Como definir o barroco na escrita de Alejo Carpentier em El siglo de las Luces?

Para José Lezama Lima (1957) em La curiosidad barroca, o barroco latino-americano

na modernidade é tenso na sua forma, é plutônico, que rompe os fragmentos e os

unifica, é um estilo pleno arraigado na aquisição de linguagem, formas de vida e

costumes do cotidiano, misticismo pleno, teocrático e misterioso, errante na forma e

arraigadíssimo nas suas essências. A arte do barroco na modernidade é

primordialmente, na visão de Lezama Lima, a arte da contra-conquista. O barroco

sugere assim uma legitimação estética alicerçada em um fazer histórico, sob o princípio

da síntese transcultural na América católica, incaica, andina, antilhana, asteca, afro-

descendente e etc. O que Lezama Lima nos deixou como legado é que o autêntico

senhor barroco já foi americano na sua forma, nas contradições além da contra-reforma,

muito além do contra-discurso da modernidade europeia, sob o princípio do dramático

processo civilizatório já impreterivelmente mundial.

Alejo Carpertier (1981) em Lo Barroco y Lo Real maravilloso definirá a

América como continente de simbiosis, mutações, vibrações e mestiçagens. O

continente americano começará, muito antes do Boom latino-americano, a pensar sobre

a sua trajetória social, política e estética, fundamentalmente enraizado no horizonte de

expectativas de cunho hermenêutico histórico. A linguagem barroca vem a aludir o que

seria a América através da curiosidade das formas de vida e morte, a natureza além da

condição humana e primordialmente a visão de América como espelhismo.

De outro modo, necessitaríamos avaliar a concepção do simbólico pelo espírito

barroco. O símbolo, segundo Gadamer (1999), não só se define através do seu conteúdo,

mas pela sua exibicionalidade no qual reconhecemos nele a sua representatividade ou

ser-manifesto. O nível de representatividade do símbolo poderá ser múltiplo quando nos

deparamos com a obra carpenteriana, visto que o símbolo nos remete a sua função

anagógica, conduzindo para um significado mais elevado.

P á g i n a | 936

O narrador, antes do primeiro capítulo da narrativa, no prólogo, justifica toda

obra a ser apresentada a partir de uma linguagem puramente alegórica através das

palavras: Oceano, Proa, Popa, nave, Tempo detido, Máquina, Porta aberta, ontem e

amanhã, implacável geometria, o gigantesco instrumento de marear, tragédia antiga.

Seguindo o raciocínio de Gadamer sobre o ser-manifesto do símbolo, deveríamos antes

verificar a questão da alegoria para depois voltar a noção das fases simbólicas de

Northrop Frye.

A palavra alegoria é etimologicamente de origem grega Alle-goria (dizer o

outro). Antes, alguns pensadores latinos a confundiam com uma metáfora ampliada. O

conceito de alegoria foi modificando durante o tempo à medida que começou a

distanciar-se do seu sentido figurativo ou ornatio para ser concebido em representações

imagéticas correspondentes. Além do seu sentido retórico, como era designado, o

conceito de alegoria é a própria formação do sentido estético, em correlação com o

simbólico.

Voltando ao prólogo da narrativa, cada palavra que designa uma determinada

imagem poética, poderá nos conduzir a uma linguagem puramente alegórica. Mas,

alegoria de que? O Oceano poderá nos conduzir a idéia do mundo empírico, a proa ou

popa pelo que está à frente ou atrás das nossas expectativas do mundo experiencial ou

histórico, a máquina pelo que é o tempo físico, a Porta aberta ao mundo da criação,

implacável geometria à natureza circundante das formas, o gigantesco instrumento de

marear à contingência do fazer histórico, a tragédia antiga à visão da América

colonizada.

Segundo Northrop Frye em Anatomia da Crítica (1973), existem várias fases do

símbolo: a fase literal, a fase formal (símbolo como imagem), fase mítica (os

arquétipos) e a fase anagógica (o símbolo como mónada). De acordo com Frye (1973), o

símbolo na fase mítica é a unidade comunicável ou social da linguagem poética, pois a

imagem arquetípica como imagem típica ou recorrente se torna comunicável devido ao

interesse social que esta ou aquela imagem arquetípica suscita. O interesse social do

símbolo não surge a partir do nada, mas a uma questão de valor ou identidade cultural,

assim como também a uma questão crítica. Demonstraremos desde os personagens

principais do romance de Alejo Carpentier: Sofía, Esteban e Victor Hugues. E

anteciparemos que estes personagens são símbolos.

Esteban é um personagem que ao longo do romance vai alcançando um maior

conhecimento de si mesmo; um personagem que gostava do fantástico, do imaginário,

que sonhava desperto diante de pinturas que o identificava; Esteban é o símbolo da

própria consciência estética através da intuição, pois a intenção do autor parece

legitimar a experiência do mundo antilhano e da Europa revolucionária a partir das

lentes deste personagem subversivo. Por outro lado, Sofía, como o próprio nome indica,

pode referir-se a divindade gnóstica Sophia que representa a sabedoria. Sofía é uma

personagem que descobre o valor de ser desejada como Mulher, embora a tensão de ser

desejada acabou trazendo os conflitos de sua personalidade materna e amorosa e a

concupiscência do corpo. Sofia é o símbolo do luto do qual havia sacrificado toda a sua

liberdade para conseguir libertar Esteban no presidio de Ceuta a quem verdadeiramente

sentia um grande afeto desde a infância. E quem seria Víctor Hughes? Este personagem

é um arquétipo do homem burguês. Há uma nota a cerca da historicidade de Victor

Hugues em que o autor da obra caracteriza este personagem histórico que “estabelece,

em seu próprio comportamento, uma dramática dicotomia” (CARPENTIER, 1980,

p.163, tradução nossa). Assim seria o protótipo do homem burguês ou da sociedade

P á g i n a | 937

burguesa, subsumido agora, na especulação do mercado, na parceria público-privada e

dos bens exploráveis.

Sofía e Esteban são dois personagens símbolos que são recordados a partir do

que representam moralmente e eticamente no momento de perigo a partir da memória,

do luto e da coragem.

5. Conclusão

Antes de falarmos em Memória é preciso saber de que memória estamos

falando. Antes de mencionar sobre o símbolo, é fundamental saber de que símbolo nos é

apresentado como ser manifesto. Antes de indicarmos a interface entre ficção e

memória ou ficção e história, precisaríamos antes saber a forma artística sobre a qual o

ato memorialístico se dá pela técnica mnemônica, a ficção pelo imaginário ou pacto da

ficcionalidade, a histórica pelas marcas no presente.

No entanto, é necessário não confundir o ato memorialístico com a História, nem

com a ficção. O contexto histórico está ali como referência à forma estética, a memória

é um ato reminiscente, mas não se confunde com a História, mesmo sabendo que um

dos personagens existiu de fato historicamente através de documentos pelos quais o

autor da obra se fundamentou. Na verdade, a intenção do autor se dá por meio da

ficcionalização dos personagens históricos e dos “ambientes” históricos.

Sob a problemática dos primeiros idealizadores da América iluminista, da

América libertária e da América abolicionista, não lograda por causa de inúmeros

fatores de ordem social, histórica e cultural que impulsiona a idéia que a Utopia

européia não havia concretizado nas Américas, pois o continente latino-americano não é

a Europa renascentista, iluminista e moderna, uma vez que os ideais da revolução

francesa sob o estatuto de uma nova ordem sócio-econômica e moral, ou seja, o triunfo

da burguesia, nem ao menos se concretizou no continente europeu, quanto mais em um

outro continente que ainda é grande, não só pela extensão territorial, mas por que a

América antilhana, andina, vulcânica e selvagem continua sendo desconhecida, onde a

civilização não existe. Certamente, a questão do atraso histórico em relação à Europa

como centro e a América como periferia de uma ordem mundial, é um aspecto abordado

pela obra de Alejo Carpentier.

Contudo, a tradução cultural através da transculturação que legitima os

processos da diferença cultural e da alteridade que dialoga com a mera questão da

Identidade cultural, tem como fundamento único: político. A política em legitimar a

cultura é reinscrever a nossa identidade através de estórias, memórias, personagens

autobiográficos, personagens históricos, personagens arquetípicos, ambientes barrocos e

etc.

Referências

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Champourcin. Argentina: Fondo de cultura económica, 2000.

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P á g i n a | 938

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Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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São Paulo: Editora Cultrix, 1973.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma

Hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes,

1999.

LEZAMA LIMA, José. La expresión americana. Madri: Alianza, 1969.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François.

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SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada:Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis:

Vozes, 1997.

WALTER, Roland. Afro-América: diálogos literários na diáspora negra das Américas.

P á g i n a | 939

O CONTEXTO SOCIAL NA PRODUÇÃO TEXTUAL EM UMA AULA DE

INGLÊS EM UM CURSO LIVRE DE IDIOMAS

Liane Velloso LEITÃO

Emny Nicole SOUSA

Resumo: O trabalho do professor é imprevisível. Podemos ter toda a atividade

planejada, esperando que os passos definidos sejam seguidos, mas o tempo, os alunos,

as aulas, a mudança de objetivo chegam e nos fazem repensar o que havíamos proposto.

Esse é o nosso trabalho. A atividade baseada no livro The Great Gatsby, de F. Scott

Fitzgerald para prática da oralidade de língua inglesa proposta em uma turma avançada

de língua inglesa de um curso livre de idiomas em João Pessoa, Paraíba, foi o nosso

objeto de pesquisa. A partir da reflexão da professora sobre a atividade com o livro e a

resposta dos alunos em sala de aula, uma nova direção foi tomada: a produção textual.

Trabalhando com o gênero de texto carta e analisando os mecanismos enunciativos

representados pelas modalizações e pelas vozes, pode-se perceber como a escrita reflete

a prática em sala de aula. Adotando o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) de

Bronckart (1999), analisamos a importância do trabalho de produção textual em um

ambiente onde ela não é o foco, na medida em que os cursos livres de idiomas

centralizam as suas atividades na prática oral da língua estrangeira. O resultado da

pesquisa mostrou como o desenvolvimento de cada etapa de uma atividade é muito

importante para a contextualização do trabalho bem como para um (re)direcionamento

do objetivo inicial proposto para o livro The Great Gatsby.

Palavras-chave: Gênero de texto; Interacionismo Sociodiscursivo; Modalizações;

Vozes.

1. Introdução

A escassez de atividades de escrita de gêneros de textos no ensino de língua

inglesa em um curso livre de idiomas em João Pessoa, na Paraíba foi o ponto de partida

para o desenvolvimento desse artigo. A partir de uma análise do material didático deste

curso, onde a pesquisadora era professora, percebeu-se que vários gêneros eram vistos,

em quase sua totalidade, apenas no livro texto do aluno, onde há a apresentação dos

conteúdos programáticos, com a apresentação do novo vocabulário, explicação

gramatical e informações culturais. Folheando o livro texto de alguns estágios verifica-

se que várias lições abordam diversos gêneros de textos, como por exemplo, artigos de

revistas, charges, piadas, manchetes de jornais, cartas, anúncios de propaganda e e-

mails. Contudo apenas alguns deles são objetos de estudo, sendo o foco especialmente a

interpretação de texto ou a leitura oral. O senso comum advoga que eles são suporte

para assimilação de novos vocabulários, visualização de formatação específica e

ampliação dos domínios culturais, sem que haja foco na sua produção. Partilhando da

ideia do professor da Universidade de São Paulo (USP) Manoel Luiz Gonçalves Corrêa

em um minicurso ministrado na Universidade Federal da Paraíba em maio de 2013,

defendemos que o processo de aquisição e de aprendizagem de uma língua se dá através

dos discursos, principalmente quando a heterogeneidade dos gêneros de textos é

explicitada, explorada e compreendida pelos alunos. Portanto, há a necessidade de se

promover a interação entre os gêneros. Marcuschi (2008) também enfatiza a

P á g i n a | 940

importância do texto no ensino de uma língua: “Que o ensino de língua deva dar-se

através de textos é hoje um consenso tanto entre linguistas teóricos como aplicados.”

O presente artigo foi desenvolvido a partir das impressões e análises da atividade

de leitura do romance The Great Gatsby (1925), de Francis Scott Fitzgerald e do filme

homônimo de 1974. Primeiramente, o foco estava na prática oral da língua inglesa, com

debates sobre os personagens, o contexto histórico e o enredo. Posteriormente a

atividade estendeu-se à prática da escrita, através do gênero de texto “carta”. As

discussões sobre os meios de comunicação nas décadas de 20 e 30 em comparação com

os atuais promoveram uma curiosidade nos alunos, porque alguns deles não estavam

familiarizados com a produção desse gênero, já que se utilizam das mensagens nas redes

sociais para se comunicar com os antigos.

A pesquisa ora apresentada tem como embasamento teórico o Interacionismo

Sociodiscursivo (doravante ISD). “O ISD visa demonstrar que as práticas linguageiras

situadas (ou os textos-discursos) são os instrumentos principais do desenvolvimento

humano, tanto em relação aos conhecimentos e aos saberes quanto em relação às

capacidades do agir e da identidade das pessoas” (BRONCKART, 2006, p.10). Daí a

importância do trabalho contextualizado dos gêneros de textos com os alunos, tanto no

ensino de língua materna quanto no de língua estrangeira.

Com embasamento na teoria sociointeracionista de Vygotsky, Schneuwly e Dolz

(2004, p.43 e 44) afirmam que,

“as práticas de linguagem são consideradas aquisições acumuladas

pelos grupos sociais no curso da história. Numa perspectiva

interacionista, são, a uma só vez, o reflexo e o principal instrumento

social. É devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam

na forma de gêneros, que as significações sociais são

progressivamente construídas.”

A partir da (re) configuração da atividade primeiramente proposta pela

professora, novos objetivos foram acrescentados ao objetivo inicial da prática oral.

Consequentemente outros resultados poderiam ser esperados.

Ao longo da pesquisa procuramos responder as três perguntas abaixo:

1) A pesquisa realizada pelos alunos para a preparação da atividade e a

interação em sala de aula contribuíram para a produção textual?

2) Por que a escolha da carta como gênero de texto nessa atividade?

3) Qual o resultado final obtido nessa atividade? Foi satisfatório? Caso

negativo, o que deveria ser reconfigurado?

Para uma melhor identificação, compreensão e análise do tema abordado, o

artigo está dividido em três seções. Na primeira seção, chamada de SEÇÃO I, a

metodologia estará exposta em duas subseções a fim de que os pressupostos teóricos

que nortearam o desenvolvimento e a reflexão sobre o assunto sejam conhecidos bem

como a apresentação do contexto sociointeracional de produção, onde as coordenadas

que envolveram a atividade serão explicadas. A segunda parte, SEÇÃO II, está dividida

em duas etapas. A primeira abordará a atividade em si por meio de um quadro

explicativo e a segunda, contemplará as análises sobre o corpus. E por fim, na última

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parte, as considerações finais resultantes da análise dos resultados dessa pesquisa, com

a(s) possível(eis) respostas sobre a atividade de produção textual em língua inglesa.

2. Seção I: a metodologia

2.1. As modalizações e as vozes

As referências sobre contexto de produção textual são essenciais para que o

agente-produtor se baseie para produzir o seu texto, seja ele oral ou escrito. “Todo texto

empírico é objeto de um procedimento de observação” (BRONCKART, 1999, p.80).

Nessa perspectiva da produção textual, trazemos um fragmento das reflexões de

Bronckart (1999) sobre a relação direta dos textos e das formações sociais.

“... no nível de um agente particular, a produção de um novo texto

empírico deve ser concebida como o resultado de uma colocação em

interface das representações construídas pelo agente sobre a sua

situação de ação (sobre os motivos, intenções, conteúdo temático a

transmitir, etc.) e das representações sobre os gêneros de textos

indexados disponíveis no intertexto.” (BRONCKART, 1999, p. 137 e

138)

A partir dos conteúdos temáticos encontrados nos textos produzidos, nossas

categorias de análise voltaram-se para as modalizações e as vozes, constituintes dos

mecanismos enunciativos do folhado textual proposto por Bronckart (1999). As

modalizações que fazem partem do folhado se dividem em: lógicas, deônticas,

apreciativas e pragmáticas.

Modalizações lógicas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo

objetivo com o julgamento do valor da verdade;

Modalizações deônticas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo

social com os valores sociais;

Modalizações apreciativas: avaliação do conteúdo temático a partir do mundo

subjetivo com um julgamento mais subjetivo.

Modalizações pragmáticas: relacionadas à “responsabilidade de um

personagem”. Exposição dos motivos, das intenções e da capacidade de agir.

As vozes podem ser categorizadas em: vozes do autor, vozes sociais e vozes dos

personagens. As vozes analisadas a partir dos recortes do corpus foram: as vozes sociais

e as vozes dos personagens. As vozes sociais procedem de personagens, grupos ou

instituições sociais que não atuam como agentes em determinados segmentos de texto,

enquanto que as vozes dos personagens podem ser as vozes de seres humanos ou

animais, implicados como agentes nos acontecimentos dos segmentos de texto.

O corpus da pesquisa é formado por quatro textos produzidos por alunos de

estágio avançado de inglês em uma escola particular de idiomas. Alguns recortes foram

P á g i n a | 942

selecionados para ilustrar os pontos abordados pela pesquisa, como veremos na outra

seção.

2.2. O contexto sociointeracional de produção

A comunicação é essencial para o homem interagir com o outro, expressando

suas ideias, seus questionamentos, suas críticas e sua percepção de mundo. Para isso

utilizamos os textos como ligação entre o mundo ao nosso redor, o outro e nós mesmos.

Imersos na nossa zona de conforto, como no nosso país de origem, com a língua

materna sendo falada e ouvida diariamente, não percebemos “racionalmente” como a

função da língua está sendo realizada nas mais diversas situações que naturalmente

ocorrem, fazendo parte do nosso cotidiano. Não temos tantas preocupações quanto ao

uso da língua materna, pois estamos acostumados a ela e sabemos como usá-la. O

contexto no qual estamos imersos diariamente apresenta um importante facilitador nesse

processo de comunicação. Porém o que acontece quando aprendemos outro idioma em

um lugar em que ele não é falado nem ouvido diariamente, onde as interações sociais

não são frequentemente realizadas nessa língua estrangeira?

Para explicar esse processo tomamos como aporte teórico o Interacionismo

Sociodiscursivo. O ISD tem o seu papel relevante no processo dialético da elaboração

dos textos-discursos, na medida em que analisa essas relações presentes no agir

linguageiro e, por muitas vezes, promovendo a sua reconfiguração.

A fim de sistematizar o leitor com a pesquisa abordada e com o questionamento

acima, apresentamos as condições nas quais o corpus foi produzido, com base em

Cristovão (2008), a partir de um dos níveis propostos pelo ISD: o contexto

sociointeracional de produção. Toda linguagem é situada, ou seja, o lugar de produção,

o momento de produção, os emissores, o receptor, o lugar social, o objetivo e o

conteúdo temático são dados vitais para a caracterização de tal contexto.

A atividade objeto dessa pesquisa teve como lugar de produção uma sala de aula

de uma escola particular de idiomas em João Pessoa, capital da Paraíba. A escola é

conhecida nacionalmente por possuir franquias espalhadas no Brasil e em outros países

e por utilizar metodologia audiovisual no ensino de Inglês e de Espanhol. Os momentos

de produção aconteceram em duas aulas: a primeira com duração de 90 minutos,

quando o livro foi debatido pela turma e trechos do filme foram apresentados. Antes

desse primeiro momento de produção a ideia de produção textual ainda não havia sido

cogitada. E o segundo e último momento com a mesma duração de 90 minutos, quando

o gênero de texto carta foi proposto pela professora a partir das reflexões sobre a

dinâmica da aula anterior, sendo aceito e produzido pelos alunos. Os emissores, ou seja,

os produtores das cartas foram seis alunos com idade variando de 16 a 46 anos de idade,

perfil este das turmas dos estágios mais avançados dessa escola, onde há adolescentes e

adultos na mesma classe. Representando o lugar social dos alunos, temos a sala de aula

onde a atividade se desenvolveu. Os conteúdos temáticos, que estavam relacionados

com o romance entre os protagonistas Gatsby e Daisy, foram: a continuação ou o

término do romance ou ainda a possibilidade de uma fuga. Encaminhar a carta para um

final feliz ou para um triste desfecho foi uma decisão individual, onde os alunos tiveram

total liberdade para desenvolver seus argumentos, ou melhor, os do personagem do

livro. O objetivo era escrever uma carta com todos os requisitos estruturais que a

P á g i n a | 943

compõem, tendo atenção ao uso da língua. Finalizando temos o receptor que era o seu

par romântico no livro, representado por um aluno do sexo oposto.

A seguir, explicaremos como a atividade foi conduzida pela professora e

analisada pela pesquisadora.

3. Seção II: a atividade e os procedimentos de análise

3.1) A atividade: literatura americana em sala de aula

A atividade desenvolvida nessa turma de estágio 2 do nível mais avançado de

Língua Inglesa em um total de quatro estágios, teve por primeiro objetivo o trabalho de

três das quatro habilidades na aquisição e aprendizagem da língua inglesa: speaking

(habilidade de falar), listening (habilidade de escutar, compreendendo) e reading

(habilidade de leitura). A quarta habilidade, writing (escrita), foi contemplada

posteriormente, como veremos a seguir. Por enquanto, nos deteremos na explanação

geral da atividade.

O ponto inicial deu-se com a escolha do livro. O lançamento no cinema da

versão mais moderna do livro “The Great Gatsby”, escrito por F. Scott Fitzgerald em

1925 foi a motivação para essa atividade. Os constantes comentários em sala de aula

sobre a estreia do filme com Leonardo di Caprio permitiram que a leitura do livro fosse

vista de forma prazerosa e com um objetivo: debater em sala todo o conteúdo extra que

havíamos visto sobre guerras e sobre cultura norte-americana e fazer uma relação entre

ambos com os acontecimentos narrados no livro. O próximo passo deu-se com a leitura

do livro em inglês e de material, também em inglês, pesquisado na internet sobre os

eventos históricos relacionados com a ambientação do livro (anos 20 e 30), como “A

Grande Depressão”, “A Quebra da Bolsa de NY” (1929) e a “Época do Jazz”. A internet

foi o instrumento utilizado pelos alunos para essa pesquisa por sugestão da professora.

Após a exploração prévia, os alunos assistiram a algumas cenas da adaptação

cinematográfica americana de 1974 do romance homônimo de Fitzgerald, com Robert

Redford no papel de Jay Gastby. A versão antiga foi preferida porque assim os alunos

teriam mais um parâmetro para comparar com a mais atual, além do livro.

Ao todo, foram apresentadas quatro etapas divididas em dois momentos de

produção, citados anteriormente.

As etapas 1 e 2 ocorreram uma semana antes da atividade em sala de aula,

quando o panorama geral foi apresentados assim como qual preparação era necessária

para a discussão a ser realizada na semana seguinte.

Etapa 1: Warm-up

O “aquecimento” para a atividade com o livro “The Great Gatsby” iniciou-se

com a apresentação pela professora dos seguintes aspectos: breve comentário sobre a

vida e as obras de F. Scott Fitzgerald, o enredo, os personagens e os fatos históricos do

romance. A professora fez um esquema no quadro onde os nomes dos personagens

principais se relacionavam, bem como algumas de suas características.

P á g i n a | 944

O objetivo era situar o aluno espacial e historicamente no contexto e

compreender o propósito da atividade. Uma observação importante sobre a realização

dessa primeira etapa: a interação em língua inglesa entre os alunos e a professora era

constante, pois além de alguns assuntos explanados já haverem sido debatidos em outras

aulas durante o semestre, como a crise de 1929, os alunos recuperaram as suas

memórias das aulas de História e Geografia do Ensino Fundamental e Médio, expondo

suas ideias e conhecimentos.

Etapa 2: Homework

A professora deu instruções de como a pesquisa poderia ser realizada em casa.

Ela consistia em leituras de alguns capítulos e resenhas do livro, principalmente com

informações sobre o perfil dos personagens e os acontecimentos mais marcantes além

dos acontecimentos históricos que caracterizam o pano de fundo da sociedade

americana retratada.

Os alunos receberam o roteiro abaixo, com perguntas em inglês, sem tradução, a

fim de nortear a busca pelas informações. Para efeito de compreensão deste artigo, as

perguntas em inglês foram traduzidas.

OUR DIRECTION

1. Describe “The Great Depression” (Descreva “A Grande Depressão”.)

2. Describe “The Jazz Age”. ( Descreva a “Era do Jazz”.)

3. What is Nick Carraway’s role in the book? (Qual o papel de Nick Carraway na

estória?)

4. Describe the way of life in West Egg, district of Long Island. (Descreva o estilo de

vida em West Egg, distrito de Long Island.)

5. Describe Gatsby’s Saturday’s nights’parties. (Descreva as festas dadas por Gatsby

sábado à noite.)

6. Why do you think Jay Gatsby just appeared from SEÇÃO 3 on? (Por que você

acha que Jay Gatsby somente apareceu a partir do capítulo 3?)

7. What happened in the Plaza Hotel’s room? (O que aconteceu no quarto do Hotel

Plaza?)

8. How can you compare Gatsby and the USA? (Como você pode comparar Gatsby e

os Estados Unidos?)

9. Explain the two sides of Fitzgerald: (Explique os dois lados de Fitzgerald:)

- Nick Carraway

- Jay Gatsby

10. What are some differences between the life style in New York and in

Minnesota? (Quais são algumas diferenças de estilo de vida entre Nova Iorque e

Minnesota?)

Etapa 3: Classroom Discussion

P á g i n a | 945

Primeiro momento de produção. A partir do roteiro de perguntas as primeiras

discussões sobre o livro começaram a surgir. O ponto abordado inicialmente foi o

contexto histórico no qual a estória se passava. Os alunos expuseram os seus

conhecimentos sobre o tema, com ampla interação de todos. O próximo passo foi a

caracterização dos personagens baseada na leitura e na interpretação dos alunos. Eles

tiveram liberdade para criticar o comportamento, defender e recriminar certas atitudes

dos personagens, principalmente as de Jay Gatsby, de Daisy Buchanan e de seu marido,

Tom Buchanan. Após esta discussão prévia, algumas cenas do filme foram

apresentadas, com o objetivo de contextualizar todas as informações obtidas, a partir da

visualização das imagens.

Etapa 4: Writing

Refletindo sobre a configuração dessa aula e a resposta dos alunos sobre o

conflito na relação entre Gatsby e Daisy, a professora resolveu se apropriar de um

gênero de texto escrito e reconfigurar a atividade inicial.

Qual era o meio de comunicação bastante utilizado naquela época? A carta. E

como duas pessoas que se amavam nas décadas de 20 e 30 se comunicavam? Através de

telefonemas e de cartas. Se o gênero emerge da prática social, por que não fazer o uso

da carta com o objetivo de praticar a escrita desses alunos?

Uma carta de amor ou de despedida possibilitava uma transposição da realidade

tecnológica e virtual de hoje (o e-mail, nesse caso) para a realidade dos papéis e dos

telefonemas da década de 20. Segundo Bronckart (2006, p.143), “qualquer produção de

texto implica, consequente e necessariamente, escolhas relativas à seleção e à

combinação dos mecanismos estruturantes, das operações cognitivas e de suas

modalidades de realização linguística.” Os aspectos estruturais que compõem a carta

foram retirados do livro trabalhado e dentro de um contexto de produção: local, data,

saudação, emissor, receptor, assunto (motivo) e assinatura.

Na segunda aula, a turma foi dividida em dois grupos: os alunos deveriam

escrever uma carta assumindo o papel de Jay Gatsby, enquanto que as alunas

assumiriam o da personagem Daisy. A carta era endereçada ao seu par romântico no

livro/filme depois do momento decisivo na estória do casal: o acidente provocado por

Daisy que culminou com a morte da amante de seu marido, Myrtle. Aos alunos algumas

opções de conteúdo temático foram propostas: continuação ou término do romance ou

uma proposta de fuga. Estes tiveram liberdade para desenvolver tais conteúdos bem

como propor novos. Os alunos escreveriam a carta com uma proposta e as alunas, a

resposta de Daisy.

3.2) A análise das cartas

Quatro textos foram selecionados: dois escritos por alunos e dois escritos por

alunas. Como a ambientação da obra é os Estados Unidos, escolhemos nomes de

estados americanos para nomear os autores de cada carta. Os alunos serão chamados de

Texas e Minnesota e as alunas, New York e Virginia. Todos esses alunos estudam há

mais de quatro anos nessa escola de idiomas. A faixa etária dos alunos selecionados é a

seguinte: Texas e New York, 16 anos, estudantes do Ensino Médio, Minnesota, 18 anos,

P á g i n a | 946

estudante de Engenharia na UFPB e Virginia, 23 anos de idade, estudante de Jornalismo

na UFPB.

Primeiramente partimos da análise dos conteúdos temáticos mais presentes nas

quatro cartas selecionadas.

Conteúdos Temáticos

Carta

New

York

Carta

Virginia

Carta

Texas

Carta

Minnesota

1. Acidente X X X X

2. Declaração de amor/ memórias

sobre o amor vivido X X X

3. Comparação entre o amor de

Gatsby e Tom X

4. Responsabilidade pelo acidente X

5. Possível ida para a prisão X

6. Agradecimento pela atitude

tomada X

7. Esperança por um mundo melhor X

8. Término do romance X X

9. Proposta de fuga X

10. Decisão final nas mãos de

Daisy X

Analisando os conteúdos temáticos, percebe-se que os alunos se utilizaram de

várias informações retiradas das discussões prévias para desenvolver a sua produção

textual. O traço comum a todos os textos foi como o amor de Gatsby e Daisy era forte,

porém as circunstâncias não eram favoráveis. As cartas das alunas eram claras sobre o

término do romance ser o ideal, enquanto que Texas via a fuga como uma forma de

manutenção desse amor e Minnesota deixava para Daisy a decisão final.

Alguns segmentos de texto foram selecionados para analisar as modalizações:

Modalizações Trechos Autor da

Carta

1. Apreciativa

“I’d never imagine that you’d have done something

like that for me.” New York

“You have my heart, but I can’t have yours.” Virginia

“I know you are sad after the disaster.” Texas

2. Deôntica “Probably I will go to prison.” Minnesota

“[ ] see everybody judging you is killing me.” New York

P á g i n a | 947

3. Pragmática

“And I am here to propose you a deal.” Texas

“[ ] that I will assume the murder, because I do not

want anything happen with you, baby.” Texas

“I can’t see you, that’s why I am writing this letter

now.” Minnesota

4. Lógica

“If the world was a fair place we could stay together

and be happy. But it´s not.” Virginia

“Secondly, Myrtle jumped in front of the car.” Texas

A tabela abaixo mostra as vozes sociais e as vozes dos personagens no corpus

analisado:

A partir desses dados, percebe-se como as modalizações e sobretudo, as vozes

estão presentes, confirmando as representações que os alunos realizaram sobre o

propósito de escrever uma carta como o personagem do livro e com conteúdo temático

romântico.

4. Considerações finais

Quando a atividade começou a se desenvolver em sala de aula e refletiu-se que

novas perspectivas poderiam ser expandidas, essa possibilidade não foi desperdiçada:

houve uma reconfiguração da atividade. Esse tipo de sensibilidade precisa existir para

que novas práticas sejam criadas ou para que outras sejam reutilizadas, agora

reconfiguradas.

Vozes Trechos Autor da

Carta

Vozes sociais

Sociedade: “[ ] see everybody judging you is killing

me.” New York

Justiça: “Probably I will go to prison.” Minnesota

Voz de

Personagem

Daisy Buchanan

“ I really like Tom, but my love for you is so

different, you know?”

New York

“I love you too, Jay.” Virginia

“It´s time to say good-bye, Gatsby.”

Voz de

Personagem

Jay Gatsby

“[…] you do not need to be upset about it, honey

[…]” Texas

“Talk to Tom and send me a letter.”

“Think about our history.”

Minnesota “ The first time we saw each other, our first trip, our

old dreams, our meeting at Nick´s home…”

P á g i n a | 948

Infelizmente o tempo não era o aliado. É muito provável que esse tipo de

situação aconteça com a grande maioria dos professores que fazem da docência o seu

trabalho diário, com dedicação e comprometimento. Um melhor aproveitamento do

tempo durante o semestre pode permitir ao professor algumas aulas para a prática de

escrita em sala.

Só aprendemos quando praticamos. E essa foi uma experiência que ampliou os

horizontes para o trabalho de gênero de texto, seja ele oral ou escrito e mostrou que

trabalhar um texto é um estudo dinâmico que exige uma cooperação mútua entre aluno e

professor.

Referências

BRONCKART, Jean Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um

interacionismo sociodiscursivo. 2ª edição, São Paulo: EDUC, 1999.

_______. Atividade de Linguagem, textos e discursos: por um interacionismo

sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves. Letramento e heterogeneidade da escrita no ensino

do português. In: Luiz Antonio Marcuschi ... [et al]; Inês Signorini (org.). Investigando

a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 2ª edição, Campinas: Mercado de

Letras, 2001

CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Estudas da Linguagem à luz do ISD. Campinas:

Mercado das Letras, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão. 1ª

Edição - 5ª reimpressão, São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SCHNEUWLY, Bernard e DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. 3ª

edição, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004

TOGNATO, Maria Izabel Rodrigues. A (re) construção do trabalho do professor de

inglês pela linguagem. 2008. 335 p. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e

Estudos da Linguagem) – PUC São Paulo, São Paulo, 2008

P á g i n a | 949

INSTRUMENTAL OU COMUNICATIVO: REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A

OPÇÃO POR ABORDAGENS NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA

ESTRANGEIRA

Fabrícia ANDRADE (IFBA – Campus Salvador)

Resumo: Durante muitos anos, o ensino de língua inglesa desde a Escola Técnica

Federal até o atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia –

IFBA – foi orientado pelos pressupostos da abordagem do ensino de línguas para fins

específicos (abordagem instrumental para leitura de textos). Entretanto, as mudanças

políticas e sociais dos últimos vinte anos têm ocasionado também um repensar sobre as

práticas de ensino de língua estrangeira, em especial de língua inglesa nos institutos

federais, que têm por missão “promover a formação do cidadão histórico-crítico,

oferecendo ensino, pesquisa e extensão com qualidade, socialmente referenciada,

objetivando o desenvolvimento sustentável do país”. Em consonância com esse novo

direcionamento, observamos também uma ampla discussão no plano teórico envolvendo

a questão do ensino de leitura em língua inglesa, com base nos pressupostos da

documentação oficial que rege o ensino de línguas estrangeiras no país – PCN e

OCNEM. Esse trabalho apresenta, primeiramente, uma análise sobre os argumentos

apresentados por diferentes correntes teóricas para a escolha de uma determinada

abordagem para o ensino de inglês. Após essa análise, contemplamos a aplicabilidade,

os desafios e resultados obtidos a partir da escolha pela abordagem comunicativa para o

ensino de inglês no contexto técnico-profissionalizante, buscando ressaltar a

importância dos professores em assumir, conforme explicita Giroux (1997),

“responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam,

como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando”.

Palavras-chave: Ensino/aprendizagem; Inglês; Abordagens.

1. Introdução

A rede federal de ensino técnico e tecnológico atravessa um momento de ajustes

após a nova estruturação pela qual passou em 2008: a criação dos institutos federais de

ensino técnico e tecnológico. Para além de uma série de mudanças estruturais, as quais

não são o foco desse trabalho, a principal mudança, que tem uma relação direta com o

processo de ensino/aprendizagem, foi a substituição do ensino médio pelo ensino

técnico profissionalizante integrado ao ensino médio. Se o objetivo agora é o de formar

técnicos para o mercado de trabalho e aliar isso a uma formação histórico-crítica dos

alunos, muito deve ser discutido sobre o papel das disciplinas propedêuticas, em

especial daquelas que envolvem ciências humanas, artes e linguagens nesse contexto.

Correlacionando o processo de mudança do ensino do inglês no IFBA – Campus

Salvador com o aporte teórico da Linguística Aplicada (doravante LA), esse trabalho

apresenta algumas considerações e reflexões sobre a nova abordagem de ensino

proposta, com a finalidade de compreender o impacto causado por ela e buscar

alternativas para aprimorar o processo de ensino/aprendizagem dessa disciplina no

contexto pesquisado. A escolha pelo aporte da LA tem como base a sua configuração

como uma área de estudos voltada para a pesquisa sobre questões da linguagem

colocadas na prática social, apresentando uma taxonomia e tradição de pesquisa

P á g i n a | 950

próprias (Almeida Filho, 2005). Além disso, o caráter interdisciplinar da LA corrobora

para uma análise mais pertinente da situação estudada, a qual envolve não somente

questões da Linguística, mas também da Educação e das Ciências Sociais.

Apontamos também a figura do professor-pesquisador, como aquele mais

adequado para compreender seu contexto de atuação e as questões inerentes ao mesmo,

bem como propor as mudanças que julgar necessárias a partir de sua análise, alçando

esse profissional à categoria de intelectual, cuja utilidade nos apresenta Giroux (1997,

p.161):

A categoria de intelectual é útil de diversas maneiras. Primeiramente,

ela oferece uma base teórica para examinar-se a atividade docente

como forma de trabalho intelectual, em contraste com sua definição

em termos puramente instrumentais ou técnicos. Em segundo lugar,

ela esclarece os tipos de condições ideológicas e práticas necessárias

para que os professores funcionem como intelectuais. Em terceiro

lugar, ela ajuda a esclarecer o papel que os professores desempenham

na produção e legitimação de interesses políticos, econômicos e

sociais variados, através das pedagogias por eles endossadas e

utilizadas. [...]

É importante enfatizar que os professores devem assumir

responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do

que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas

pelas quais estão lutando.

Portanto, na busca pelo aprimoramento da nossa prática docente e legitimados

como professores-pesquisadores, apresentamos a seguir a análise do contexto e das

características do ensino de língua estrangeira na atualidade que motivaram as

mudanças de orientação metodológica e seus impactos.

2. A questão da leitura em LE nas escolas públicas brasileiras

Em 1998, são publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o

Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental de Línguas Estrangeiras. O texto desse

documento incluiu temáticas importantes como cidadania, letramento, hipertexto,

inclusão social, identidade, direitos linguísticos, globalização, dentre outros,

anteriormente não mencionados de maneira tão explícita no ensino de LE. De acordo

com Leffa (1999, p. 16):

Amplos em seus objetivos, os parâmetros estão baseados no princípio

da transversalidade, destacando o contexto maior em que deve estar

inserido o ensino das línguas estrangeiras e incorporando questões

como a relação entre a escola e a juventude, a diversidade cultural, os

movimentos sociais, o problema da violência, o tráfico e uso de

drogas, a superação da discriminação, educação ambiental, educação

para a segurança, orientação sexual, educação para o trabalho,

tecnologia da comunicação, realidade social e ideologia.

P á g i n a | 951

Nesse pormenor, Leffa (1999, p.22) aponta que “enquanto a própria lei baseia-se

no princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, os Parâmetros

restringem o espaço de ação do professor”, o que, inclusive, não corrobora para o

grande objetivo do ensino de LE nas escolas, proposto pelo mesmo documento:

[...] a aprendizagem de Língua Estrangeira é uma possibilidade de

aumentar a autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão.

Por esse motivo, ela deve centrar-se no engajamento discursivo do

aprendiz, ou seja, em sua capacidade de engajar outros no discurso, de

modo a poder agir no mundo social. (BRASIL, 1998, p.15)

Muitos professores e pesquisadores em Linguística Aplicada se posicionaram em

relação ao trabalho com ênfase na habilidade da leitura, o que gerou uma polêmica, que

será abordada mais detalhadamente em outra seção. Essa polêmica, porém, foi

extremamente positiva no sentido de rever o texto dos PCN no momento da publicação,

em 2006, de outro instrumento norteador do ensino de LE nas escolas – as Orientações

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM). O texto apresenta por

objetivos:

[...] retomar a reflexão sobre a função educacional do ensino de

Línguas Estrangeiras no ensino médio e ressaltar a importância

dessas; reafirmar a relevância da noção de cidadania e discutir a

prática dessa noção no ensino de Línguas Estrangeiras; discutir o

problema da exclusão no ensino em face de valores “globalizantes” e

o sentimento de inclusão frequentemente aliado ao conhecimento de

Línguas Estrangeiras; introduzir as teorias sobre a linguagem e as

novas tecnologias (letramentos, multiletramentos, multimodalidade,

hipertexto) e dar sugestões sobre a prática do ensino de Línguas

Estrangeiras por meio dessas. (BRASIL, 2006, p. 87)

O grande avanço trazido pelas OCNEM diz respeito ao trabalho com as demais

habilidades linguísticas, que ficaram em segundo plano nos PCN em detrimento da

habilidade de leitura, como podemos perceber na citação abaixo, contida no documento:

Propomos o desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da

escrita como práticas culturais contextualizadas. Imaginamos que a

proporcionalidade do que deve ser trabalhado nas escolas de cada

região deva ser avaliado regionalmente/localmente, levando em conta

as diferenças regionais/locais no que tange às necessidades.

Recomendamos que todas essas habilidades comunicativas sejam

trabalhadas ao longo dos três anos do ensino médio. Os trabalhos de

leitura devem ter continuidade, embora com mudanças de

perspectivas. (BRASIL, 2006, p. 111)

Observo, portanto, que as leis que orientam o ensino de LE, absorvendo as

críticas sofridas, caminham no sentido de propiciar bases legais que vão ao encontro das

P á g i n a | 952

necessidades atuais do contexto educacional, o que, desde o início, revelou-se como o

maior objetivo dos documentos norteadores mais recentes sobre o ensino de LE nas

escolas brasileiras.

Entretanto, Cruz (2006, p. 50) aponta para uma questão mais específica sobre o

ensino de língua estrangeira nas escolas públicas, frente a essas novas propostas

epistemológicas sugeridas nos documentos oficiais. Segundo o autor:

Os próprios órgãos centrais dirigentes dos princípios edcuacionais do

país em nível estadual e federal reconhecem a precariedade do ensino

das escolas públicas e o despreparo de seus professores para o ensino

de línguas estrangeiras. Em vez de solucionar o problema

devidamente, esses órgãos buscam paliativos, retirando ou

consolidando a obrigatoriedade do ensino dessa ou daquela língua

estrangeira, aumentando ou diminuindo a sua carga horária ou

estabelecendo normas acerca da(s) habilidade(s) que deve(m) ser

trabalhada(s) em sala para solucionar problemas de falta de

equipamentos, professores capacitados e número excessivo de alunos

na sala.

Devemos entender, portanto, o desafio do professor de LE. O seu (in)sucesso

depende de uma série de fatores que, muitas vezes, fogem ao seu alcance. Ele deve ser

proficiente na língua para ser capaz de ensiná-la em todas as suas dimensões. Deve

também ser capaz de refletir sobre sua prática, adequando-a às novas propostas de

produção do conhecimento delineadas pela documentação oficial sobre o ensino de LE

no Brasil. Isso exige uma capacitação constante por parte desse profissional.

Um entrave à formação de alunos bem sucedidos no que tange a aprendizagem

de LE diz respeito à fragmentação do conhecimento sobre essa língua, fato que acontece

ao se estudar habilidades linguísticas de maneira não integrada. Mas isso, de fato,

acontece em muitas escolas. Analisamos, a seguir, as razões para a eleição da leitura

como habilidade primordial em sala de aula, bem como as críticas a esse viés para o

trabalho com LE, o que nos orientou para realização das mudanças propostas na seção

seguinte.

3. Argumentos pró e contra o trabalho com leitura m LE nas escolas públicas:

embasamento teórico para reflexão e mudança

Retomando os princípios dos PCN, a leitura deve ser o primeiro foco do ensino

de língua estrangeira, sendo atribuída uma posição periférica às outras habilidades

linguísticas (escuta, fala e escrita). Cabe ao professor ampliar esse foco, porém, o que é

considerado com mais ênfase é o engajamento discursivo do aluno por meio de leitura

em língua estrangeira. Santos (2001) tece uma crítica nesse sentido, pois argumenta que,

para o pleno exercício da cidadania, o aluno deve ter a oportunidade de desenvolver as

quatro habilidades em LE dentro da escola, e não fora dela. A função social da LE

estaria ligada à possibilidade de o aluno sair capacitado a receber e produzir textos orais

e escritos em língua estrangeira. A mesma crítica é ainda corroborada por Klee, Férrua e

Moor (2001). As autoras afirmam que a abordagem comunicativa é “a teoria que melhor

atende a uma das características naturais da comunicação, qual seja, a de estabelecer

P á g i n a | 953

relações sociais” (Klee, Férrua e Moor , 2001, p.144). Tais críticas, porém, são o

resultado de um processo de discussão intenso, motivado a partir da publicação dos

PCN. Retomemos, então, todo esse processo.

Para Moita Lopes (1996), a abordagem que privilegia a leitura parece ser a mais

socialmente justificada. Segundo o autor, as necessidades de se aprender uma língua

estrangeira como o inglês, geralmente, devem-se a dois fatores: leituras de textos em

inglês em certos campos acadêmicos e exames de seleção para programas de pós-

graduação. Podemos acrescentar a esses dois fatores os exames para ingresso nas

universidades – vestibular e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O autor

registra, ainda, que a produção científica, nas diversas áreas do conhecimento, é escrita

em inglês, muitas vezes por falantes não-nativos, portanto, a habilidade da leitura deve

ser privilegiada, para que o ensino de LE de fato atinja o seu objetivo de ter uma função

social. Para além dos argumentos apresentados, Moita Lopes (1996, p, 131) ressalta

que:

No contexto das escolas públicas brasileiras é irreal se advogar o foco

nas chamadas quatro habilidades linguísticas, tendo em vista as

condições existentes no meio de aprendizagem: carga horária

reduzida; um grande número de alunos por turma; domínio reduzido

das habilidades orais por parte da maioria dos professores; ausência de

material instrucional extra além do livro e do giz etc.

Ao argumentar, ainda, sobre o ensino da língua inglesa nas escolas públicas,

Moita Lopes (1996), sugere que, o ensino com foco na leitura, este ensino instrumental,

colabora com o desenvolvimento da habilidade em língua materna, assim como faz

desenvolver a capacidade de letramento global. Ele pontua ainda que, a única

justificativa social para a aprendizagem da língua inglesa no Brasil tem a ver com a

leitura, tendo em vista ser essa a única habilidade que atende as necessidades

educacionais e que o aprendiz pode usar em seu próprio meio e que “considerar o

ensino de Inglês no Brasil como um recurso para a comunicação oral parece negar

qualquer relevância social para a sua aprendizagem” Moita Lopes (1996, pg. 130).

Schimitz (2009, p. 17) ressalta que uma política de ensino de línguas que

enfatiza somente a leitura enfraquece o papel do professor de língua estrangeira.

Segundo o autor:

[...] se o profissional de LE não fizer uso do idioma na sala de aula,

estará abrindo mão da qualificação que mais o caracteriza e que mais

o distingue dos professores de outra matéria: a sua condição de ser

bilíngue, de poder transitar entre duas culturas. O que nós esperamos

de um professor de inglês, espanhol ou japonês? Que fale o referido

idioma estrangeiro e que tenha uma competência profissional na

metodologia de ensino de língua estrangeira.

Dessa forma, de maneira complementar, encontramos sinais desse

“enfraquecimento” em Tomitch (2009, p. 193) o qual propõe,

P á g i n a | 954

tornamos a leitura uma ferramenta para que os nossos alunos possam

exercer sua cidadania com mais propriedade e passamos a colocar a

compreensão leitora na LE como o objetivo principal a ser atingido. A

partir daí, buscamos meios para instrumentalizar o nosso aluno para

compreender textos em LE. Nessa perspectiva, o ensino de estratégias

de leitura, e/ou o ensino de gramática e/ou de vocabulário são vistos

apenas como “ferramentas” ou como “meios” para se atingir o

objetivo final e não como “fins” em si mesmos.

Paiva (2003, p. 4) aponta uma tendência mundial para um ensino de LE, em que

essa língua seja vista e estudada como poderoso instrumento para as relações entre as

pessoas e entre as nações (conforme exemplos citados da própria autora sobre a

realidade do ensino de LE em países como a China, Rússia, África do Sul e Estados

Unidos). Portanto, restringir a aprendizagem à habilidade de leitura seria um retrocesso.

Apesar disso, a autora não deixa de reconhecer a importância da leitura em LE:

Não há a menor dúvida de que a leitura é um dos componentes

mais relevantes no ensino de uma LE. Além disso, a leitura é a

maior fonte de exposição ao idioma em contextos como o

nosso, onde há pouco contato com falantes nativos. Pesquisa

realizada na UFMG com alunos bem sucedidos do curso de

Letras da UFMG revelou que a estratégia individual de

aprendizagem mais utilizada por esses aprendizes é a leitura

(Paiva, 1994), o que demonstra a necessidade de se buscar

espaço para as habilidades orais na sala de aula, pois

dificilmente os aprendizes encontram oportunidades para

exercitar a fala.

Os motivos mais utilizados para defender a ênfase na habilidade de leitura

giram, basicamente, em torno dos seguintes fatores: (i) tempo para o ensino, grade

curricular, (ii) exames vestibular e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), (iii)

falta de qualificação do professor, (iv) oportunidades de uso do idioma, e (v) escolas

mal equipadas. Para cada um desses argumentos, Paiva (2003) pondera questões que os

refutam, como vemos a seguir.

A questão do tempo para ensino de LE na escola não pode ser considerada um

fator que favoreça a ênfase na leitura, pois o estudante tem, atualmente, sete anos, no

mínimo, de ensino dessa língua na escola. Esse tempo é mais que necessário para que

sejam trabalhadas e aprendidas as demais habilidades linguísticas, formando um

aprendiz capaz de comunicar-se oralmente em LE.

Os exames de ingresso nas universidades brasileiras também não podem ser

argumentos favorecedores do trabalho, quase que exclusivo, com leitura em LE.

Recorro novamente a Paiva (2003, p. 6), que expõe as razões para que isso não

aconteça.

(O ingresso na universidade) não pode ser visto como o objetivo final

do ensino médio, pois isto significaria uma visão empobrecida do

processo educacional. O ensino básico não pode ser entendido como

mero caminho para o vestibular, mas como espaço privilegiado para a

P á g i n a | 955

formação da cidadania. No mundo globalizado, ser cidadão do mundo

implica, necessariamente, o conhecimento de pelo menos um idioma

em todas as suas dimensões.

Atribuir a culpa ao despreparo dos professores e à falta de recursos audiovisuais

para justificar a ênfase com o trabalho de leitura é sinônimo de se acomodar à realidade

em vez de tentar transformá-la (Paiva, 2003). Muitas escolas já possuem uma série de

equipamentos que são, na maioria das vezes, pouco ou quase nunca utilizados. A

questão da formação de professores perpassa uma reformulação dos currículos dos

cursos de Letras, movimento esse que já vem ocorrendo, mesmo timidamente, em

algumas realidades. Utilizo, portanto, a fala de Paiva (2003, p. 7) para advogar a não

conformidade com a realidade descrita.

Acredito que como lideranças acadêmicas que somos devemos propor

programas de educação continuada para melhorar a qualificação dos

professores e não uma política de educação que se submeta às

distorções do sistema de formação de professores e proponha uma

opção de ensino que perpetuará essa má formação. É sempre bom

lembrar que os alunos do ensino médio e fundamental cujo contato

com o idioma ficaria restrito à leitura são possíveis candidatos aos

inúmeros cursos de Letras que existem no país.

Quanto às oportunidades para o uso do idioma, defendo a ideia de que não existe

uma garantia de que o aluno egresso do ensino fundamental e médio não possua

oportunidades de utilizar outras habilidades da língua. O acesso à informação, o uso de

novas tecnologias e a expansão das redes sociais são realidades que, pela configuração

que apresentam, exigem o conhecimento para além da habilidade de leitura. Outro

argumento é a necessidade do mercado de trabalho quanto ao domínio de língua(s)

estrangeira(s). Concordo com Paiva (2003, p. 5) que utiliza o seguinte argumento:

Ninguém pergunta a ninguém “Em quantas línguas você lê?”, mas

“Quantas línguas você fala?” Anúncios de jornais requerem, em

profissões diversas, pessoas que falem inglês. Eu nunca vi um anúncio

procurando alguém que leia em inglês, mas que fale inglês.

Apesar dos argumentos contrários ao trabalho exclusivo com a leitura nos níveis

de ensino fundamental e médio, cabe pontuar a concepção de leitura que norteia essa

defesa.

Para Moita Lopes e Rojo (2004), o texto escrito em LE e a conversa sobre ele

em língua materna têm como objetivo fornecer aos alunos uma experiência significativa

de engajamento na construção do significado. Apesar da boa intenção, Schimitz (2008,

p. 42) questiona:

Quais seriam as consequências desta política para os departamentos de

língua inglesa e de educação no ensino superior? Os futuros

professores de inglês deveriam ser preparados para falar o idioma?

P á g i n a | 956

Não existe o perigo de que as escolas particulares, com o intuito de

atrair alunos, contratem professores competentes nas quatro

habilidades?

Outro dado que leva ao questionamento sobre a não eficácia do ensino de leitura

em LE é dado pelos próprios defensores da prática. Segundo Rojo e Moita Lopes (2004,

p.25) “apenas 5,35% dos jovens apresenta capacidades de leitura compatíveis com o que

seria de se esperar ao término do Ensino Médio”. Se esse dado é verdadeiro, cabe o

questionamento de Schimitz (2008, p.42):

O enfoque em leitura em aulas de língua inglesa com a discussão a

respeito dos respectivos textos feita em língua portuguesa não

colocaria a LE a serviço da língua materna com base no fato de os

alunos simplesmente não serem leitores competentes na língua

materna? As línguas estrangeiras não seriam “reféns” da língua

materna?

Quando pensamos em uma escola pública de qualidade, onde o ensino de língua

estrangeira possa estar a serviço da formação do estudante, não somente para a sua

colocação no mercado de trabalho, mas também para a sua formação crítica e reflexiva,

devemos repensar a questão da ênfase na leitura em LE. Sabemos que existem

condições desfavoráveis para o desenvolvimento de todas as habilidades na língua

estrangeira nas escolas públicas, conforme já explicitado nesse mesmo capítulo. Porém,

uma política de restrição do ensino a uma única habilidade, como a que é recomendada

por Rojo e Moita Lopes (2004), tende a aumentar o abismo de qualidade que existe

entre o ensino de inglês nas escolas públicas, e o mesmo ensino nas escolas particulares

e cursos de idiomas. Esse fato pode contribuir para o reforço da crença de que “inglês

não se aprende na escola”.

Diante dos argumentos a favor e contra ao trabalho exclusivo com a habilidade

de leitura, reflito, a seguir, sobre a introdução, aplicabilidade e atual momento do ensino

de inglês na educação profissionalizante, com ênfase na modalidade de curso (técnico

integrado ao ensino médio) contemplada nessa pesquisa.

4. O desafio da mudança: opção pela abordagem comunicativa

Palmer (apud Borges, 2009) possivelmente tenha sido um dos primeiros

estudiosos a destacar uma possível diferença entre um ensino de línguas para fins

específicos (instrumental) e um ensino de línguas para fins gerais (comunicativo).

Krashen (2002) retoma essa noção ao utilizar os termos aprendizagem, para o primeiro

tipo de ensino, e aquisição, para o segundo. Muitos autores têm se dedicado aos pontos

convergentes e divergentes entre essas duas tendências para o ensino de línguas, o que,

inclusive, foi tema da pesquisa (BORGES, 2009). A autora questionou diversos

linguistas aplicados a respeito da seguinte questão: “Contemporaneamente, é possível

falarmos em paradigmas distintos de ensino de língua quando discutimos sobre o

P á g i n a | 957

comunicativo e o instrumental?” Dentre as respostas obtidas57

, não existe um consenso,

o que é, no meu entendimento, bastante favorável ao desenvolvimento da ciência. O que

a autora considera um “afrouxamento no tratamento da divisão das abordagens

contemporâneas” pode ser uma característica positiva no momento do desenvolvimento

de uma abordagem própria para um determinado contexto. Primeiramente, o fato

proporciona autonomia ao professor no momento da escolha por características

provenientes de diferentes abordagens para a confecção da sua própria maneira de

ensinar. Essa autonomia, entretanto, deve ser embasada em uma cuidadosa análise das

teorias e a adequação de partes delas ao contexto em que esse professor atua. Em

segundo lugar, ao buscar diferentes abordagens, o professor de LE está diretamente

atendendo às necessidades variadas dos seus alunos, considerando o papel ativo dos

aprendizes, suas crenças, seus estilos e estratégias de aprendizagem, seus objetivos e

seus interesses.

Outro aspecto a ser considerado no repensar das práticas de ensino de inglês no

contexto dessa pesquisa é a mudança das relações de trabalho na sociedade ao longo do

século. Nas últimas décadas, ao lado do modelo de produção taylorista/fordista (ainda

não extinto), um novo paradigma se instala, decorrente das mudanças na base técnica,

com ênfase na microeletrônica, e vai provocando novas demandas para a formação dos

trabalhadores. É principalmente para essas novas demandas que se volta uma questão de

especial relevância que atinge a educação brasileira e particularmente a educação

profissional e tecnológica: a carência de trabalhadores qualificados. (BRASIL, 2008,

p.32). Como pode o ensino de inglês ir ao encontro da qualificação desses

trabalhadores? Qual a abordagem, ou abordagens, que melhor atenderia(m) essa

demanda? O trabalho com as habilidades linguísticas de maneira fragmentada

certamente não representa a melhor maneira de qualificação de um trabalhador. O relato

de muitos estudantes no momento das entrevistas para estágio aponta para o nível de

conhecimento da língua (básico, intermediário ou avançado) que eles possuem, e não

para o nível de conhecimento de uma determinada habilidade, no caso, a leitura.

Ferramentas como tradutores online e a própria tradução da maioria dos manuais em

língua inglesa para o português evidencia que compreender um texto em inglês não se

põe como uma necessidade premente como o era há vinte anos. Além disso,

independente da metodologia ou abordagem escolhida pelo professor, uma forte

tendência no ensino de LE tem sido a adoção de pedagogias críticas e culturalmente

sensíveis. Elas contemplam não somente o estudo da cultura da língua alvo, mas

também da cultura do aprendiz, promovendo o entendimento e respeito às diferenças.

De acordo com Rajagopalan (2003, p. 105) a pedagogia crítica emerge das

“inquietações vividas ou reproduzidas na sala de aula”. Nesse sentido, o pedagogo

crítico tem como principal compromisso a comunidade na qual a sua sala de aula de

insere, como elemento representativo de experiências, práticas, conflitos e tensões entre

os atores sociais envolvidos.

Relacionando a necessidade de um trabalho mais abrangente com ênfase na

abordagem comunicativa e o embasamento desse trabalho em pedagogias críticas para o

ensino de línguas, justifica-se uma mudança no plano da disciplina inglês,

contemplando o ensino das quatro habilidades sob a égide de pedagogias críticas.

57

Dados apresentados em sua tese de doutorado intitulada Uma reflexão filosófica sobre abordagens e

paradigmas na constituição da subárea Ensino-Aprendizagem de LE/L2 na Linguística Aplicada.

P á g i n a | 958

Diante desses argumentos é impossível não pensar em mudanças. Certo? Isso

depende daqueles que podem viabilizar tais mudanças: os professores.

Mesmo sendo um desafio devido às questões estruturais (salas de aulas que não

favorecem a acústica), à escassez de equipamentos audiovisuais, à não adequação do

material didático fornecido pelo MEC e à configuração de turmas com alunos em níveis

diversos de proficiência em LE, um determinado grupo de professores optou por

trabalhar desde 2012 com a abordagem comunicativa.

Após um ano da implementação dessa nova abordagem, tentamos, à luz da

análise de nossos erros e acertos, apresentar os resultados preliminares da opção pela

abordagem comunicativa.

5. Considerações finais: é possível fazer diferente?

Ao longo de todo o ano letivo, e, em especial no momento em que passamos da

condição de professor para a condição de intelectual e pensamos sobre a nossa prática,

nos deparamos com questões que não podem deixar de ser levantadas, discutidas e,

possivelmente, mudadas em relação a esse “fazer diferente”, que já é uma realidade no

campus Salvador em no que tange o ensino de inglês na modalidade integrada.

Primeiramente, a mudança de abordagem foi feita apenas por um grupo de

professores, o que provavelmente não colabora no sentido de proporcionar a todos os

alunos do ensino médio integrado do campus iguais condições em termos de conteúdos

e oportunidades de prática da língua. Por exemplo, se o professor opta pela abordagem

instrumental com ênfase em leitura e compreensão de textos, o aluno terá acesso a uma

visão fragmentada de língua. Por outro lado, uma crítica também deve ser feita aos

professores que elegem a abordagem comunicativa – seus alunos pouco têm trabalhado

com leitura e interpretação, o que é bastante valorizado em exames seletivos e de

ingresso em universidades como o ENEM. Além dessa questão, como se dará a

continuidade da abordagem no ano seguinte, caso o professor não trabalhe dentro da

mesma perspectiva que aquele do ano anterior? Esse é um fator muito grave, pois não se

trata de um consenso entre os docentes. As mudanças não foram feitas nos planos de

disciplina e isso ocasiona problemas sérios de sobreposição e/ou repetição de conteúdos

estudados em séries e turmas diferentes.

Outra questão é a grande diversidade de níveis de proficiência dentro de uma

mesma turma. Para contemplar os alunos que tiveram uma formação deficitária em

inglês no ensino fundamental, os assuntos elencados pelos professores que optam pela

abordagem instrumental são bastante básicos. Ao longo de dois anos letivos de estudo, o

alunos podem chegar, no máximo, ao nível intermediário de proficiência. Esse fato pode

gerar um desestímulo entre aqueles estudantes que já se comunicam e utilizam a língua

nesse nível. E mesmo para os demais alunos, a possibilidade de chegar ao nível

intermediário fica comprometida devido à reduzida carga horária da disciplina no

currículo escolar (100 minutos de aula por semana). Os cursos livres de idioma têm, em

geral, 180 minutos de aula por semana, quase o dobro. Além disso, diferente da maioria

das escolas de ensino médio, em virtude do extenso currículo dos cursos

profissionalizantes, a disciplina Inglês só é oferecida em dois dos quatro anos dos

cursos técnicos.

P á g i n a | 959

Mesmo cientes dessas questões, alguns fatores proporcionam a realização desse

trabalho: as turmas da disciplina Inglês são divididas a partir de 25 alunos, o que

favorece a aprendizagem e proporciona um trabalho de melhor qualidade; os

professores são todos fluentes e com excelente domínio da língua; os alunos recebem

livro didático da disciplina, mas não existe obrigatoriedade por parte do professor

quanto ao uso do mesmo; e é assegurado ao professor um tempo de preparação de aulas

bastante satisfatório, pois a carga horária máxima semanal em sala de aula é de 20

horas.

Cabe também registrar aqui algumas impressões e depoimentos colhidos ao

longo dessa experiência. Muitos alunos, apesar de já estudarem a língua inglesa desde o

6º ano do ensino fundamental, relatam que quase nunca ouviam a língua sendo falada

por seus professores. Também citam o fato de eles mesmos nunca serem estimulados a

se comunicar em inglês. O fato de serem capazes de utilizar a língua na fala e na escrita

é bastante estimulante. Muitos alunos se assustam, ao princípio, com o uso da língua na

sala de aula, mas, em pouco tempo, já se sentem mais estimulados e confiantes,

chegando, inclusive, a realizar exames orais sem maiores dificuldades. E isso desperta a

importância daquele conteúdo e a vontade de prosseguir nos estudos fora do ambiente

escolar.

Então, ciente dos prós e contras, acertos e desacertos na opção pela abordagem

comunicativa, respondemos à questão com uma reflexão e um convite. Como reflexão,

devemos promover um intenso debate entre todos os professores para que todos

compreendam a importância da implementação dessa nova abordagem e possam

trabalhar dentro de uma unidade, a partir da mudança total dos planos de disciplina.

Apesar das boas intenções e da garantia de um ensino de melhor qualidade, aqueles que

optaram pela abordagem comunicativa o fizeram, infelizmente, de maneira equivocada,

deixando de lado a questão da uniformidade e sintonia entre os planos de disciplina e

todos os docentes.

Por fim, como um convite, respondemos que, apesar das dificuldades aqui

colocadas, não só é possível fazer diferente, como se trata de uma orientação que vai ao

encontro das mudanças sociais, políticas e educacionais da atualidade. Temos qualidade

e um mínimo de condições para isso. Aceitar o convite é o primeiro passo.

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P á g i n a | 962

A ANÁLISE LINGUISTICA A SERVIÇO DO GÊNERO, O QUE É, COMO SE

FAZ: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O CONTO THE NUN’S

PRIEST TALE

John Hélio Porangaba de OLIVEIRA (UNEAL – CAMPUS III)58

Maria Verônica Tavares Neves CARDOSO (UNEAL – CAMPUS III)59

Resumo: A imensa variedade de gêneros textuais existentes manifesta, verbalmente, as

nossas diversas necessidades de interação social mediada pela linguagem, oral e escrita.

Sendo assim, devemos explorar o estudo dos gêneros em nossas aulas de língua materna

ou estrangeira. No entanto, para selecionar um desses gêneros e explorá-lo

pedagogicamente em sala de aula devemos ter familiaridade com ele, com suas formas

de circulação, funcionamento e função. A partir do exposto surge o nosso problema de

estudo: o trabalho com o gênero conto aliado a análise linguística pode ser um atrativo

positivo para o ensino- aprendizagem da língua? A nossa hipótese é que um trabalho

com gênero bem organizado didaticamente e aliado a AL, deve funcionar como uma

importante proposta de trabalho que pode auxiliar o ensino- aprendizagem da língua.

Sendo assim, este estudo objetiva em termos gerais, apresentar uma proposta de

trabalho com o gênero conto no qual procuramos mostrar a estrutura e funcionamento

desse gênero; instigar os alunos a entrarem em contato com esse tipo de gênero e a

reconhecerem as características da tipologia narrativa presente; desvendar a função dos

recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da AL (analise

linguística). Como embasamento teórico teve: Bakhtin (1981); Dolz e Schneuwly

(2004); Marcuschi (2002); Oliveira e Castro (2008); Dionísio, Machado, Bezerra

(2005).

Palavras-chave: Análise Linguística. Gêneros textuais. Conto.

1. Introdução

A imensa variedade de gêneros textuais existentes manifesta, verbalmente, as

nossas diversas necessidades de interação social mediada pela linguagem, oral e escrita.

Sendo assim, devemos explorar o estudo dos gêneros em nossas aulas de língua materna

ou estrangeira. No entanto, para selecionar um desses gêneros e explorá-lo

pedagogicamente em sala de aula devemos ter familiaridade com ele, com suas formas

de circulação, funcionamento e função.

Essa proposta de trabalho com a linguagem se insere num paradigma

sociointeracionista de língua, que toma o gênero não como simples estrutura formal,

mas como parte da atividade humana e, portanto, organizado em função de seus

objetivos comunicativos que ajudam a cumprir nos diversos contextos de interação

social (MARCUSCHI, 2002).

Assim pretende-se saber se o trabalho com o gênero conto aliado a análise

linguística pode ser um atrativo positivo para o ensino - aprendizagem de língua? Uma

vez que a importância de se conhecer um gênero (conto) e suas especificidades pode ser

58

Acadêmico do 6º período de Letras, do campus III, UNEAL - CAMPUS III ([email protected]). 59

Professora Mestra do curso de Letras da UNEAL – CAMPUS III

([email protected] ).

P á g i n a | 963

interessante para aguçar o gosto pela leitura e a discussão dos aspectos da Analise

Linguística a serviço desse gênero, ajudando aos alunos a entenderem a dinâmica de sua

construção, facilitando assim também o processo de produção e uso da língua.

Em função do problema deste estudo, hiposteniza-se que um trabalho com

gênero bem organizado didaticamente e aliado a Analise Linguística, deve funcionar

como uma importante proposta de trabalho que pode auxiliar o ensino- aprendizagem da

língua.

Desse modo, objetiva-se apresentar uma proposta de trabalho com o gênero

conto no qual mostra-se a estrutura e funcionamento do gênero, de modo a instigar o

contato com tipo e as características da tipologia narrativa presente, onde se desvenda a

função dos recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da

análise linguística ao passo em que pode-se perceber e compreender a intergenericidade

presentes nos contos de Chaucer.

Nesse sentido, são utilizadas as sequências didáticas produzidas a partir do que

propunha Dolz e Schneuwly (2004); com discussões e definição de gêneros na

perspectiva de compreender onde e como acontecem os gêneros a partir de

(MARCUSCHI, 2008); (BAZERMAN, 2005); (BAKHTIN, 2003) e outros que

contribuem para o desenvolvimento deste estudo.

Nessa perspectiva, tem-se como objeto estudo a análise linguística do gênero

conto “The Nun’s Priest’s Tale” (O Conto do Padre da Freira), que constitui uma fábula

por conferir um debate entre animais. Interessante também para o trabalho com

intergenerecidade.

2. Análise linguística

Compreendemos por análise linguística, como o processo reflexivo de léxico e

gramático na construção composicional - concretizada em textos pertencentes a

determinados gêneros textuais, considerando seu suporte, meio e época de circulação e

produção comunicativa veiculada ao processo de leitura, de construção e de escrita

textual.

Desse modo, se sugere, pois, que siga-se as sequências didáticas de Dolz e

Schneuwly (2004), para que possa ser levada a efeito a análise linguística em dois

momentos, dentro do esquema da figura 1 na parte da apresentação geral para a

proposta de trabalho, um na mobilização dos recursos linguístico e expressivos,

causando assim a produção de sentidos no processo de leitura na abordagem dos

gêneros textuais em que o texto se apresenta, e dois no momento da escrita de texto,

local de aplicação dos elementos composicionais, formais e coesivos das características,

recurso e estilo do gênero textual selecionado para o processo de análise e elaboração de

texto como produção final do gênero trabalhado, sempre de acordo com a situação de

comunicação, socialmente produzida.

Nesse sentido, como este estudo é uma proposta de trabalho de caráter

linguístico voltado para a língua inglesa, o qual aborda o gênero conto The Nun’s

Priest’s Tale da referida língua, cabe ao professor, em sala de aula, estimular esses

momentos, trabalhando como mediador, no sentido de contribuir para ampliar a

competência dos seus alunos nas práticas discursivas, como se pode ver a partir da

perspectiva de Lima (2009), que através do uso da língua, como se espera que faça, o

P á g i n a | 964

professor realize um trabalho coerente, atingindo assim a função de mediador do ensino

aprendizagem:

Se o profissional de língua estrangeira não fizer uso do idioma na sala

de aula, ele estará abrindo mão da qualificação que mais o caracteriza

e que o distingue de professores de outras matérias: a sua condição de

ser bilíngue, de poder transitar entre duas culturas, a materna e a

estrangeira. O que nós esperamos de um professor de inglês, espanhol

ou japonês? Que ele fale o referido idioma estrangeiro e tenha uma

competência profissional na metodologia de ensino de língua

estrangeira (LIMA, 2009, p.17).

Dessa forma, o domínio da linguagem gramatical, lexical, discursiva e

fonológica ganha propriedades de sentido na e pela comunicação real voltada para a AL,

uma vez que o professor estará trabalhando o referido gênero oral e escrito nas

sequências didáticas, mais adiante descritas.

Dessa maneira, a AL deve ser uma proposta que deve ser posta em prática, pois

proporciona uma nova orientação para o ensino, baseado na leitura e escrita de textos,

da análise dos problemas encontrados nos textos, em vez de apenas exercícios

estruturais de gramática.

Assim, no que se pode conferir nas discussões de Mendonça (2006), a AL é

conveniente a uma reflexão das questões tradicionais de gramática de produção textual

no que diz respeito à coesão e coerência dentro do texto, adequação do texto aos

objetivos pretendidos pelo professor, objetivo este, proposto neste trabalho, de levar os

alunos a desvendar a função dos recursos linguísticos na construção de sentidos do

gênero conto através da AL (análise linguística), bem como a organização e inclusão de

informações.

Sendo assim, a AL engloba os estudos gramaticais, mas a partir de um novo

modelo, na medida em que os objetivos alcançados se adequam a outros aspectos não

condizentes ao proposto pela gramática, como descreve Mendonça (2006, p.103), “O

termo análise linguística não foge à regra, ou seja, surgiu para denominar uma nova

perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os usos da língua, com vistas

ao tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos”.

Dessa forma, para considerar o ensino de língua inglesa na expectativa de um

trabalho com a análise linguística a serviço do gênero, busca-se em Mendonça (2006),

referente a AL na língua materna um caminho de eixo comum, numa perspectiva

sociointeracionista de língua, onde a AL constitui um dos três eixos básicos de língua

materna, ao lado da leitura e da produção textual. Por isso, a análise linguística

apresenta como objetivo central refletir sobre os elementos e fenômenos linguísticos,

considerando o desenvolvimento das habilidades de falar, ouvir, ler e escrever os textos

na língua alvo como visto em Lima (2009), o professor ao transitar entre a língua

materna e estrangeira seja capaz de assumir seu papel de mediador.

Nesse aspecto, a posição do professor não pode ser centrada unicamente em

regras gramaticais e exercícios de memorização. O ensino exige um exercício prático

pautado na comunicação e na interação entre os indivíduos com papel de trabalhar o

sentido, como propõe as OCEM (2006), no desenvolvimento de sujeitos letrados.

P á g i n a | 965

3. Gêneros textuais

A origem dos gêneros se desenvolve a partir da necessidade de comunicação

humana, de principio com a comunicação oral e com o tempo surge à escrita para

registrar os acontecimentos. Assim a fala e a escrita são componentes fundamentais da

língua, por serem ricos em gêneros primários e secundários.

Assim, nesse contexto, a divisão dos gêneros discursivos apresenta uma

diferença que vale dizer importante e essencial apresentada por Bakhtin (2003, p.263)

como gêneros primários (simples) “que se formaram nas condições da comunicação

discursiva imediata”, ou seja, do cotidiano, descritos como “determinados tipos de

diálogo oral – de salão, íntimo, de círculo, familiar – cotidiano, sociopolítico, filosófico,

etc.” (p.268) e, gêneros secundários descritos como:

(complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie,

os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um

convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido

e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico,

sociopolítico, etc. (BAKHTIN, 2003, p.263).

Essa diferença entre os gêneros primários e secundários, segundo Bakhtin

(2003), mostra a importância da distinção da extrema heterogeneidade dos gêneros

discursivos e entendimento da natureza geral do enunciado. Sendo a extrema

heterogeneidade entendida como a distância dos gêneros no sentido e forma, ligados um

ao outro como um só.

No entanto, a diferença entre os gêneros primários e os gêneros secundários está

no tipo de contato com a ação, ação linguística ou não. É na ação da linguagem que os

gêneros primários se estabelecem e é através de outros mecanismos que os gêneros

secundários se fixam, assim, o processo de formação dos gêneros (primários e

secundários), ao se associarem produz outros gêneros, um sustenta o outro, formando a

natureza geral do enunciado, como pontua Bakhtin (2003, p.263), “No processo de sua

formação eles se incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se

formaram nas condições de uma comunicação discursiva imediata”.

Assim, portanto, Bakhtin (2003), diz que os gêneros se originam como estruturas

ou partes fundamentais do enunciado, sendo, portanto, de infinita heterogeneidade

devido às necessidades de comunicação humana, ricos em quantidades para os diversos

fins da atividade comunicativa, onde cada campo de utilização da língua elabora

diversos tipos de gêneros para determinados contextos e utilidades. Assim eles são ricos

e infinitos

Porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade

humana e porque cada campo dessa atividade é integral o repertório

de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se

desenvolve e se complexifica um determinado campo (BAKHTIN,

2003, p.262).

P á g i n a | 966

A origem dos estudos dos gêneros discursivos começou na antiguidade como

uma qualidade típica de lavor primoroso, sem nunca ser estudado em sua abrangência

linguística geral e tipos enunciativos, local onde Bakhtin (2003, p.263) diz que se

estudavam os gêneros retóricos jurídicos e políticos, o que encobria sua natureza

linguística geral.

Marcuschi (2008), diz que o estudo dos gêneros “surgiu com Platão e Aristóteles,

tendo origem em Platão a tradição poética e em Aristóteles a tradição retórica”, no que

Bakhtin (2003), diz que tais estudos seguiram ate os dias atuais numa perspectivos de

estudo artísticos literário, no âmbito da literatura, sendo delimitado na Idade Média e

ganhou espaço nos dias atuais, a partir de diversas linhas de estudo, como é apresentado

por Marcuschi (2008).

E muitos estudiosos de áreas diversas estão se interessando cada vez

mais por ele, tais como: Teóricos da literatura, retóricos, sociólogos,

cientistas da cognição, tradutores, linguistas da computação, analistas

do discurso, especialistas no ensino de inglês para Fins Específicos e

professores de língua (MARCUSCHI, 2008, p.148-149).

Assim, para complementar, Bakhtin (2011, p.264), diz que os trabalhos com a

língua em seus modos de uso oral escrito faz parte de quase todos os campos da

linguística e da filologia.

Nessa perspectiva, faz-se importante dizer que os gêneros em sua grande

diversidade são restritos a uma tipificação ou tipologias textuais, as quais Koch, Boff,

Marinello (2010, p.19), dizem que “as tipologias textuais são ferramentas essenciais a

serviço dos gêneros textuais, e seu domínio é fundamental no trabalho com leitura e

produção de texto”, onde são apresentadas as tipologias textuais: narrativa, descritiva,

injuntiva, dissertativa, preditiva, explicativa e dialogal como as mais usadas, como são

resumidas:

Narrativa: relata situações, fatos, acontecimentos, reais ou

imaginários;

Descritiva: apresenta propriedades, qualidades, características de

objetos, ambiente, ações, ou estados;

Dissertativa: constrói uma opinião de forma progressiva,

utilizando uma argumentação coerente e consistente;

Injuntiva: objetiva incitar à realização de uma situação;

Explicativa: faz compreender um problema da ordem do saber, a

partir da investigação de uma evidência;

Preditiva: é uma descrição, narração ou dissertação futura em

que o enunciador antecipa situações cuja realização será

posterior ao tempo da enunciação;

Dialogal: concretiza-se nos discursos interativos dialogados

(KOCH; BOFF; MARINELLO, 2010, p.28).

P á g i n a | 967

Para Marcuschi (2002), Tipologia Textual é um termo que deve ser usado para

designar uma espécie de sequências teoricamente definida pela natureza linguística de

sua composição, no entanto, todos os gêneros textuais se inserem em cada uma dessas

tipologias. No entanto, através dos tipos de gêneros podem-se indicar além das

produções textuais, as atividades humana como organização de trabalhos, realizações

diversas, esporte, trabalho de sala de aula etc. como aponta Bazerman (2005, p.31), ao

dizer que “os gêneros tipificam muitas coisas além da forma textual. São partes do

modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”.

4. O gênero conto

O conto é uma das formas de narrativas mais antigas. Desenvolvido na

transmissão de mitos, fábulas e lendas através da oralidade, esteve presente

ininterruptamente na produção de literatura de diferentes povos e culturas, assim,

também tornou o desenvolvimento de diversas línguas possíveis, como podemos ver em

Burgess (1996), ao tratar do tema “a literatura inglesa”, ele diz que a língua se

desenvolve pela literatura e traz as considerações para Geoffrey Chaucer (1340-1400),

que de certa forma criou a língua inglesa a partir dos contos de Canterbury, autor do

qual não poderia deixar de falar, uma vez que a proposta de trabalho a partir deste

estudo é feita com uma das rescritas dos contos de Chaucer.

O gênero conto apresenta uma historia curta e simples, o qual Gotlib (2003, p.

16), dizer que “O conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente

predominante e um só personagem principal, contém um só assunto cujos detalhes são

tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só

impressão”.

Desse modo, o gênero conto apresenta características que a partir de uma

estrutura que é essencialmente objetiva, horizontal e narrado em 3ª pessoa, que foge de

sua forma física para a realidade viva, presente, concreta. A linguagem é objetiva,

normalmente utilizando-se de metáforas de imediata compreensão para o leitor, não

sendo necessárias abstrações e preocupar-se com o rebuscamento. A trama é linear e

objetiva, a qual segue uma cronologia, de modo que os fatos se sucedem numa

continuidade semelhante à vida real. Das características ainda tem o foco narrativo em

1ª e 3ª pessoas que transmite uma única impressão. Esta apresentação das características

foi fita com base no texto do sit. (http://www.asesbp.com.br/literatura/conto.htm).

Assim, Gotlib (2003), diz que o conto literário não tem compromisso fixo com a

realidade, misturando-se, pois com o fictício e que o escritor pode inventar modos de

representar a realidade, onde os modos de se contar uma história, responde apenas as

técnica e estilo da tipologia narrativa. Considerando que o conto é o gênero de menor

tamanho, em questão da brevidade.

5. Brief considerations on The Canterbury Tales and the Nun's Priest's Tale

The Canterbury Tales is a collection of stories written in Middle English by

Geoffrey Chaucer in the 14th century (two of them in prose, the rest in verse). The

tales, some of which are originals and others not, are contained inside a frame tale and

P á g i n a | 968

told by a group of pilgrims on their way from Southwark to Canterbury to visit the

shrine of Saint Thomas Becket at Canterbury Cathedral.

The themes of the tales vary, and include topics such as courtly love, treachery,

and avarice. The genres also vary, and include romance, Breton lay, sermon, beast

fable, and fabliau. The characters, introduced in the General Prologue of the book, tell

tales of great cultural relevance.

Genre: a beast fable, of the sort best known to us in the collection attributed to

the Hellenistic African slave, Aesop. The antagonist in this tale has his own "series" of

beast fables, the "Reynard the Fox" tradition, which exists in many manuscripts in both

French and English. In effect, he's doing a "guest shot" here, but his character would

have been extremely well known to Chaucer's audience and his "modus operandi" as a

chicken thief and liar fits the type perfectly. What makes this a beast fable for adults,

and how does the debate between Chaunticleer the rooster and Pertelote his "wife"

parody human attitudes and values? Would you consider C and P to be "round" or

"flat" characters, and what does that do to your feelings and thoughts about this fable?

Characters: the poor but self-sufficient and honest widow; Chaunticleer, the

handsomest, best-educated, and most perceptive rooster yet seen in life or literature;

Pertelote, his favorite consort among the hens; a murdered traveler who appears in a

dream to his friends in Chaunticleer's inset tale to prove dreams really do foretell the

future; the col-fox, a sometime "dinner host" of Chaunticleer's father and mother; the

dogs, Colle, Talbot and Gerland; Malkyn the maid-servant.

Summary: The rooster, dreaming of an attack by a large, furry, red animal, is

advised by his wife not to worry because a little laxative will put things right. The

rooster, proud of his learning, decisively defeats his wife's argument by citing classical

authors, including one author's anecdote about a murdered traveler who, in a dream,

tells his companions where his killers have hidden his body. The rooster, satisfied, has

a little "whoopee" with Pertelote and then goes to the barnyard where he encounters the

fox. The fox, asking the rooster to sing so he can experience the rapture of hearing

him, nabs the rooster by the throat and is chased by the entire household. The rooster,

thinking quickly, tells the fox that if he were in the fox's position, he should surely turn

and shout defiance at the pursuers. The fox, proud of his success, does so and the

rooster flies away into a tree. The fox tries to trick him again, but the wily bird

triumphs.

6. Apresentação geral para a proposta de trabalho

Seguindo o modelo das sequências didáticas de Dolz & Schneuwly (2004), da

figura 1 logo abaixo, desenvolve-se, pois, a proposta de trabalho com a perspectiva de

trabalhar o conto “The Nun’s Priest’s tale”, o qual constitui uma fábula por conferir um

debate entre animais, apresentando-se neste dialogo três contos curtos, de onde será

retirado um para apresentar uma breve análise linguística.

FIGURA 1

P á g i n a | 969

Fonte: Esquema da sequência didática (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p.83).

Na apresentação da situação faz-se um levantamento a respeito do gênero

conto, com sua definição e estruturação dos aspectos composicionais, apresentando as

sequências narrativas com estrutura e característica do conto, divulgando o que será

realizado.

Como produção inicial fazer uma atividade de observação e de análise do

conto, o qual se mostra um modelo ao fim deste trabalho, em seguida fazer uma leitura

de modo que os alunos entrem em contato com a língua e assim escutando o modelo do

gênero, reconheçam os temas trabalhos.

No modulo 1 fazer uma seleção de temas para que os alunos escrevam um

conto.

No modelo 2 fazer um levantamento de vocabulário com adjetivos,

advérbios,verbos, preposições e substantivos, conferindo assim um desenvolvimento

enciclopédico e cultural da respectiva língua.

No modelo 3 desenvolver estudo com os elementos gramaticais, estabelecendo

os tempos verbais de presente, passado e futuro com suas respectivas formas sintáticas.

Na Produção final produzir a escrita de um texto que se aproxime do gênero

estudado podendo ainda ser feito um momento de socialização onde os alunos poderão

fazer a leitura e ou apresentação de seu texto em perspectivas diversas.

Esse modelo de sequencias didática está de acordo com Lima (2009, p.30),

referente ao ensino aprendizagem de língua inglesa, uma vez que este é de natureza

social e responde a legalidade do Ministério da Educação (MEC), como determina os

PCN. No entanto, o professor contribui para o desenvolvimento do estudante no

processo de leitura e conhecimento dos meios linguísticos presentes no texto,

reconhecendo ainda os gêneros e as tipologias, tornando assim as atividades fácil de ser

realizada

.

6.1 Apresentação prática da análise linguística em um fragmento do conto

Fragment

Two men wanted to sail across the sea, but they had to wait for the right wind. They

went to stay in a city near the sea, and decided to sail early the next day. They went to

bed in the same room. They were happy that they could start their journey soon.

P á g i n a | 970

But in the night one of the men dreamed that he saw a man in their room. This man

said to him, ‘If you sail tomorrow, you’ll die. Stay here, in the city, for one more day.

Then you’ll be safe.’

The man woke up and told his friend the story, but his friend laughed at him. He

didn’t believe that the dream was true.

‘the wind’s right today,’ he said. ‘You stay here if you want to wait. I’m

leaving. Dreams mean nothing! Goodbye!’

He walked away and the man never saw his friend again.

The ship sailed onto some rocks, and all the men in it were killed.

1. SOME ASPECTS OF LINGUISTIC ANALYSIS, WHICH CAN BE

HIGHLIGHTED ON THIS GENRE

The first sentence in bold presents aspects of the tale as a possible topic, the

presentation, which is also a phrase referring to the past tense.

• The second sentence in bold represents a dialogue or actions, according to the

grammar shows a first conditional sentence.

•Third sentence in bold is the complication of the story, finding themselves in the form

of negative simple past and past of verb to be.

• The fourth sentence in bold shows the climax of the story through the past simple

sentence and possessive pronouns.

• The fifth and last sentence in bold shows the outcome with prepositions, simple past

• The presence of past tense is a outstanding characteristic of the tale genre, such as:

(wanted, had, went, decide, were, said, dreamed, saw, walked, woke up, laughed, sailed,

did not believe.

P á g i n a | 971

7. Apresentação de como trabalhar o plano de ensino com o genero seguindo o

modelo das sequências didáticas de Dolz & Schneuwly

Modalidade / Nível de Ensino: Ensino Médio

Componente Curricular: Língua Inglesa e Literatura

Tema: Gêneros textual conto e a análise linguistica

DADOS DA AULA

O que o aluno poderá aprender com esta aula

O aluno poderá aprender o que é o gênero conto, a estrutura e funcionamento,

reconhecer as características da tipologia narrativa presente no conto, desvendar a

função dos recursos linguísticos na construção de sentidos desse gênero através da

análise linguística, ou seja, dos elementos gramaticais e ainda perceber e compreender a

intergenericidade presente no conto.

Duração das atividades

Esta atividade pode durar de 6 aulas até todo um semestre, dependendo de como o

professor queira abordar cada modalidade de execução das sequencias didáticas

referente ao esquema de Dolz & Schneuwly (2004).

Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno

É importante que os alunos já possuam os conhecimentos básicos sobre o gênero

narrativo conto e estes devem ser estimulados e acrescentados pelo professor, através de

conversas informais, pesquisas orientadas.

Estratégias e recursos da aula

- Conversa informal sobre o autor do conto, Geoffrey Chaucer;

- Situar historicamente e geograficamente o período vivido por Chaucer e sua

importância para o desenvolvimento do inglês moderno, por isso ser conhecido como o

pai do inglês moderno.

- proposta de leitura silenciosa do conto selecionado: The Nun’s Priest’s Tale (O Conto

do Padre da Freira), Geoffrey Chaucer;

- contextualização da época histórica (desenvolvimento da língua inglesa) sobre a qual

escreve o autor, no texto selecionado (The Nun’s Priest’s Tale);

P á g i n a | 972

- pesquisa dos assuntos debatidos, em livros, internet e outros meios de comunicação

disponíveis;

-explorar os temas destacados no conto;

-comparar situações e ações vivenciadas pelos personagens com situações atuais.

- explorar os elementos gramaticais, adjetivos, advérbios, substantivos, vocabulário etc.,

com o auxilio de gramática e dicionário.

AULA 1: APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO: AS CARACTERÍSTICAS DO

GÊNERO CONTO

- fazer um levantamento a respeito do gênero conto, com sua definição e estruturação

dos aspectos composicionais, apresentando as sequências narrativas com estrutura e

característica do conto, divulgando o que será realizado.

- Para desenvolver esta aula, o professor deverá conversar com os alunos, procurando

sondar o conhecimento que já possuem, e, solicitando-lhes exemplos de contos já

conhecidos por eles; isso em língua materna, para que através disto o professor possa

desenvolver a aula de maneira mais compartilhada.

- no laboratório de informática, os alunos poderão acessar sites para conhecerem um

pouco mais sobre o gênero literário, revendo os seguintes aspectos deste gênero

literário: histórico, enredo, elementos estruturais: apresentação, complicação,

clímax e desfecho.

AULA 2: PRODUÇÃO INICIAL: O CONTO

- fazer uma atividade de observação e de análise do conto, o qual se mostra um modelo

ao fim deste trabalho, em seguida fazer uma leitura de modo que os alunos entrem em

contato com a língua inglesa e assim escutando o modelo do gênero.

AULA 3: MODULO 1

- Fazer uma seleção de temas para que os alunos escrevam um conto, baseado no conto

ouvido e discutido.

- Nesta aula, o professor pedirá a leitura individual e silenciosa do conto: The Nun’s

Priest’s Tale, de Geoffrey Chaucer, disponível no texto que será dado;

- identificar no conto os elementos estudados na aula anterior (histórico, enredo,

elementos estruturais);

- discutir o conteúdo do texto com efeito de trabalhar as funções de sentido exibido no

enredo, como aspecto da língua inglesa.

AULA 4: MODELO 2 CONHECENDO MAIS SOBRE O AUTOR

- Visando conhecer mais sobre Geoffrey Chaucer (biografia, estilo, obra), o professor

poderá fazer jogos de vocabulários, gramática e figuras interessantes relacionadas ao

texto e trabalhar com eles em sala de aula;

- o conteúdo a ser explorado poderá se referir também ao contexto histórico do conto.

AULAS 5: MODELO 3

P á g i n a | 973

- desenvolver estudo com os elementos linguísticos mais presentes no texto,

estabelecendo os tempos verbais de presente, passado e futuro com suas respectivas

formas sintáticas, referente a aula anterior.

- fazer um levantamento de vocabulário com adjetivos, advérbios e substantivos,

conferindo assim um desenvolvimento enciclopédico e cultural da respectiva língua.

- revisar todo o conteúdo para a próxima aula.

AULA 6: Produção final

- produzir a escrita de um texto que se aproxime do gênero estudado de acordo com o

vocabulário e estruturas formais do conto, com o auxilio de dicionários, gramática e a

orientação do professor;

- pode ainda ser feito em outra aula um momento de socialização onde os alunos

poderão fazer a leitura e ou apresentação de seu texto em perspectivas diversas.

RECURSOS COMPLEMENTARES

Nos recursos complementares, o professor pode usar a criatividade e apresentar recortes

de filmes retirados da internet com áudio na referida língua para mostrar outros aspectos

da representação do conto em áudio e vídeo.

AVALIAÇÃO

- No decorrer das atividades, o professor deverá verificar o envolvimento dos alunos nas

atividades desenvolvidas, dando atenção para os aspectos selecionados e as construções

de análise, sempre enfatizando as habilidades do speak, listen and write.

8. Considerações finais

A grande manifestação dos estudos com gêneros textuais possibilita uma grande

quantidade de teorias e diversas formas de trabalho, assim a análise linguística a serviço

do gênero o que é como se faz é um caminho interessante, pois no trabalho com gênero

conto, se bem organizado didaticamente funciona como um importante mecanismo

didático – pedagógico auxiliador do ensino- aprendizagem de uma língua, como

também incentiva o aluno a ler, a fazer o reconto e a retextualização, como também

aprender a gostar de um tipo de gênero literário especifico, sendo conhecedor dos

aspectos formais e linguísticos que o compõem.

O conto em inúmeras vertentes e autores pode ser trabalhado em vários

caminhos, assim como o trabalho com a análise linguística a serviço do gênero conto

The Nun’s Priest’s Tale por ser um clássico vem sendo relido e sempre pode ser

abordado em inúmeras perspectivas, uma vez que este gênero é uma arte que como toda

arte se alimenta da mitologia, do subjetivismo, do social, do histórico, etc., faz-se

P á g i n a | 974

necessário saber criar, recontar o que já foi contado, usando a magia infinita das

ferramentas da linguagem, sempre em evolução.

Assim, a coerência de estudar este tema como uma importante ferramenta de

ensino aprendizagem de língua, abre caminho paro um rico repertório de conhecimentos

culturais, enciclopédico, de vocabulário e também de gêneros, uma vez que o estudo dos

gêneros em todos os seus aspectos e características nos diversos processos de

comunicação real e atual, fazem do individuo um sujeito altamente letrado.

Este estudo foi bastante proveitoso, pois nos revelou as muitas formas de

entender a importância dos gêneros para a formação do homem. Assim quando

oportunidades de encontrar temas, personagens, situações semelhantes ou já vistos em

contos já lidos ou já ouvidos surgirem, tornará possível perceber a presença de

fenômeno linguístico discursivo, característica de todas as criações literárias, nos

aspectos de intertextualidade.

Diante do exposto, foi possível perceber que os resultados obtidos com esse

estudo podem contribuir para o ensino e aprendizagem e também enquanto graduando e

pessoa que utiliza diariamente os diversos gêneros discursivos. Assim, o aprendizado é

um caminho constante de desenvolvimento de sistemas e estratégias, sendo pois vivido

e realizado diariamente por nós estudantes quer na vida diária, quer nos estudos e

trabalho.

Referências

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Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Judith (Orgs.). Gêneros textuais, tipificações e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

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[Tradução e organização: ROJO, Roxane & CORDEIRO, Glaís Sales]. Campinas, SP:

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GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do Conto. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios,

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KOCH, Vanila, BOFF, Odete, MARINELLO, Adriane. Leitura e produção textual.

Gênero textual do argumentar e expor. Rio de janeiro: vozes, 3ed, 2010.

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NASPOLINI, Ana Tereza. Tijolo por tijolo: práticas de ensino de português. V.

único: livro do professor. São Paulo: FTD, 2009.

P á g i n a | 976

OS EFEITOS DO TRABALHO COLABORATIVO NO PROCESSO ENSINO-

APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: ANÁLISE DE UMA

ATIVIDADE DE SALA DE AULA

Cristina Vasconcelos PORTO (UFPA)60

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da análise de uma

atividade em sala de aula realizada com alunos de Letras/Inglês de uma universidade

federal. A análise fundamentou-se nos pressupostos de que é por meio da aprendizagem

colaborativa que aprendizes de uma língua estrangeira (LE) ou de uma segunda língua

(L2) tem oportunidades para interagir na língua-alvo. O instrumento utilizado para

coleta e dados foi gravação em áudio das interações. A análise teve como objetivo

principal buscar exemplos de scaffolding, ou seja, os mecanismos de apoio mútuo que

promoveram a co-construção do conhecimento e sua internalização durante a atividade

realizada. A partir da análise dos dados, foi possível concluir que os alunos, por meio do

diálogo colaborativo, sentiram-se motivados e ajudaram-se mutuamente na execução da

tarefa, trocando não somente informações, mas também estratégias de aprendizagem

(SWAIN, 2000).

Palavras-chave: Ensino de Línguas Estrangeiras; Interação; Sociointeracionismo.

1. Introdução

Muitos estudos no campo da Linguística Aplicada (LA) tem mostrado a

importância de fazer do aprendiz de LE/L2 agente de sua própria aprendizagem

(MICOLLI, 2007). Sabemos que alunos autônomos e motivados aprendem mais e

melhor. Assim, é importante engajá-los em atividades de sala de aula que oportunizem

situações que os levem a pesquisar, a conversar, a perguntar, a refletir, ou seja, fazer

desse ambiente um lugar em que possam negociar sentidos, e, dessa forma, desenvolver

cada vez mais sua autonomia e sua competência comunicativa.

Tal competência não pode ser alcançada somente com o conhecimento de regras

gramaticais. Aprende-se a língua fazendo uso dela (MITCHELL, MYLES E

MARSDEN, 2013) e seu ensino, portanto, deve levar em conta as "funções sociais de

uso da linguagem para fins de comunicação efetiva, em que todos os envolvidos na

interação se compreendam e construam significados" (RODRIGUES-JÚNIOR, 2013, p.

21).

Partindo da perspectiva de que a interação em sala "é um dos principais meios de

promover a aprendizagem" (HALL, 2002, p. 187), podemos afirmar que, ao interagir

com o colega, as possibilidades de uso da língua e de aprendizagem surgirão de uma

forma mais natural e mais espontânea do que as interações que tradicionalmente

acontecem entre professor e aluno, em que as tomadas de turno61 de fala, são, na maioria

das vezes, determinadas pelo professor, deixando pouco espaço para a participação dos

alunos. Nessa perspectiva, o professor deve planejar suas aulas de modo a propiciar o

1 Letras-Inglês, Professora. Aluna do Curso de Doutorado em Letras e Linguística da Universidade

Federal de Goiás.

2 Segundo Rosa (2008, p. 12), a tomada de turnos " é um conjunto de orientações normativas da

interação social humana para a distribuição, manutenção ou transferência dos turnos de fala entre os

participantes de uma interação".

P á g i n a | 977

trabalho colaborativo, mas deve também oferecer alternativas para aqueles alunos que

preferem trabalhar sozinhos.

Neste trabalho, apresento os resultados da análise de uma atividade colaborativa

realizada com alunos de língua inglesa de uma universidade federal. A análise teve

como objetivo verificar os efeitos do diálogo colaborativo na aprendizagem desses

alunos, ou seja, de que forma o conhecimento foi co-construído por meio da ajuda

mútua ocorrida em sala de aula, buscando exemplos de scaffolding e suas funções.

Objetivou, também, identificar os padrões de interação (STORCH, 2002), os possíveis

fatores que influenciaram na forma como os alunos interagiram uns com os outros, e

suas percepções sobre a atividade realizada, visto que, dar voz aos alunos é importante

para compreender melhor como as habilidades cognitivas, sociais e linguísticas são

desenvolvidas quando engajados em uma atividade colaborativa (CRANDALL, 1999).

Apresento, a seguir, os principais fundamentos teóricos da teoria sociocultural.

2. A teoria sociocultural: o papel da interação e a Zona de Desenvolvimento

Proximal.

Em sua revisão teórica sobre a interação social e o desenvolvimento humano,

Aranha (1993) observa que as relações sociais interpessoais e reflexões sobre os efeitos

sociais no comportamento humano foram foco de interesse de pesquisadores ainda no

século XIX. Segundo a autora, o pensamento da época sobre essas relações coloca a

experiência de grupo como uma das mais relevantes e determinantes da natureza do

homem. Avançando na história, já na década de 60, poucos estudos foram feitos com

relação às questões interpessoais, e os estudos sobre interação tinham como propósitos a

investigação de como se estabelece o comportamento humano e o que contribui para a

sua manutenção e mudança.

Citando Aldous (1977), Aranha (1993) registra que, nos anos 1970, os

estudiosos não mais se preocupavam com os resultados da interação. O foco de

interesse voltou-se para o delineamento do próprio processo interativo. Nessa época, a

teoria socioconstrutivista do desenvolvimento humano surgiu como uma grande área de

estudos realizados principalmente por Vygotsky e Leontiev, importantes estudiosos da

antiga União Soviética.

A teoria sociocultural de Vygotsky e seus colaboradores tem como ponto central

a premissa de que "cognição e conhecimento são dialogicamente construídos".

(SWAIN, BROOKS e TOCALLI-BELLER, 2002, p. 171). Para Vygotsky (1998), a

atividade humana acontece no contexto cultural em que o indivíduo está inserido e tem,

na linguagem, um dos mais importantes instrumentos de mediação. Tal importância

deve-se ao fato de ser por meio da linguagem que o indivíduo desenvolve suas funções

psíquicas superiores (como planejamento, memorização, raciocínio dedutivo), na

medida em que organiza o pensamento, favorecendo, dessa forma, a interação entre as

pessoas e o ambiente que as cercam. Nessa perspectiva, a língua é concebida como "o

mais importante instrumento de desenvolvimento do indivíduo, tanto no domínio

cognitivo quanto no comportamental" (AHMED, 1994, p. 138).

Segundo Vygotsky (1998), a criança possui dois níveis de desenvolvimento: o

real e o potencial. O primeiro refere-se a tudo aquilo que a criança é capaz de fazer por

si mesma e o segundo refere-se àquilo que ela consegue fazer com o auxílio de outras

P á g i n a | 978

pessoas mais capazes. A diferença entre os níveis real e potencial é chamada de Zona de

Desenvolvimento Proximal (ZDP) e é definida por Vygotsky (1998, p. 112) como

"a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma

determinar através da solução independente de problemas, e o nível de

desenvolvimento potencial, determinado através da solução de

problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com

companheiros mais capazes".

Sob a perspectiva da ZDP, o adulto ou o companheiro mais experiente passa a

exercer a função de andaime, também conhecida metaforicamente na literatura como

estruturas de apoio (scaffolding). Wood, Bruner e Ross (1976, p. 90) definem

scaffolding como um "processo que capacita a criança ou principiante a resolver um

problema, realizar uma tarefa ou atingir um objetivo que estaria além de sua

capacidade". O conceito de ZDP é fundamental para identificar "o estágio atual e futuro

do desenvolvimento do aprendiz, revelando não só o que já foi alcançado em seu

desenvolvimento, mas o que está em processo de maturação (...)" (VIEIRA-

ABRAHÃO, 2012, p. 465).

Antón e Dicamilla (1999) apontam seis funções do scaffolding: 1) engajar o

aluno na tarefa; 2) simplificar a tarefa; 3) manter a motivação para a busca do objetivo

da tarefa; 4) identificar pontos importantes durante a realização da tarefa; 5) reduzir o

stress; e 6) explicar e dar soluções parciais para a finalização da tarefa.

Na interpretação de Lantolf e Apel (1994) não é a realização da tarefa que mais

importa, mas sim, os processos cognitivos que são desencadeados nas interações.

Segundo Lantolf e Apel (1994) e Lantolf e Thorne (2006), a ZDP favorece o

engajamento entre o adulto e a criança em um processo dialógico podendo ser utilizado

por educadores como um instrumento conceitual para compreender o que os alunos

conseguem fazer em seus estágios iniciais de maturação.

Nessa breve discussão, apontamos a importância da interação e do conceito da

ZDP no contexto educacional. Vimos que o desenvolvimento deve ser concebido

prospectivamente, ou seja "para além do momento atual, com referência ao que está

para acontecer na trajetória do indivíduo" (OLIVEIRA, 2000, p. 12.), que esse

desenvolvimento é co-construído nas interações sociais, e que o único bom ensino é

aquele que se adianta ao desenvolvimento (VYGOTSKY, 1991).

Para Swain et al. (2011), a teoria de Vygotsky tem contribuído muito para a

pesquisa em sala de aula em várias áreas, nas quais podemos incluir a área de ensino-

aprendizagem de L2/LE. A seguir, veremos algumas dessas contribuições.

3. A teoria sociocultural e suas contribuições para a sala de aula de L2/LE

Muitos estudos que se preocuparam em investigar a interação em sala de aula

(JENKS, 2012; PARK, 2012; TOTH ET AL, 2013; PARK, 2013) e os efeitos do

trabalho colaborativo numa perspectiva sociocultural tem apontado grandes

contribuições para a pesquisa de sala de aula de L2/LE. O campo de investigação é

vasto, abrangendo vários temas como o uso da abordagem colaborativa no meio virtual

(Lee, 2004; Souza, 2006; Salomão, Silva e Daniel, 2009), na interação face a face com

P á g i n a | 979

foco em atividades comunicativas (Silva, 1999; Swain e Lapkin, 1998; Junior, 2006;

Figueiredo, 2006); nas habilidades de compreensão e produção escrita (Sabota, 2006;

Wobeto, 2012; Carvalhes, 2013); em atividades de correção com pares (Carvalho, 2006;

Figueiredo, 2001), entre outros.

Discutindo sobre a importância da interação em sala de aula, Swain e Lapkin

(1998, p. 320) observam que as dificuldades que os aprendizes encontram na

decodificação de mensagens em eventos de comunicação os levam a "modificar e a

reestruturar sua interação para que ambos alcancem a compreensão". Para que essa

compreensão seja alcançada, os aprendizes, em um processo de negociação, procuram

fazer ajustes linguísticos, como, por exemplo, mudar palavras, modificar suas formas e

significados, entre outros (PICA, 1994).

Central para essa discussão é o conceito de diálogo colaborativo, definido por

Swain (2000, p. 97) como "o diálogo que constrói o conhecimento linguístico". Para a

autora, é por meio do diálogo colaborativo que o uso da língua e sua aprendizagem são

co-construídos, criando oportunidades para que os aprendizes não apenas troquem

ideias ou informações, mas também estratégias de aprendizagem. A língua é, pois, uma

importante mediadora do processo de construção do conhecimento, constituindo-se em

uma ferramenta cognitiva e social. Cognitiva, pois favorece a produção de sentidos e

social, na medida em que permite a comunicação entre as pessoas (SWAIN ET. AL,

2002).

Vale destacar, aqui, o estudo de Storch (2002) sobre a natureza da interação.

Nesse estudo, Storch (ibid) investigou a natureza da interação entre dez pares de

aprendizes adultos de inglês como segunda língua em uma universidade da Austrália.

As interações com os pares foram gravadas em áudio e os resultados apresentaram

quatro modelos de interação: 1) colaborativo; 2) dominante/dominante; 3)

dominante/passivo e 4) mais experiente/menos experiente. No modelo colaborativo, os

participantes colaboram uns com os outros em todos os momentos da tarefa e fornecem

soluções que são discutidas e aceitas por ambos. No modelo dominante/dominante, por

sua vez, ambos os participantes contribuem para a realização da tarefa, mas há

dificuldades na aceitação da contribuição do outro, discordâncias e dificuldades de se

chegar a um consenso. Já no modelo dominante/passivo, um dos participantes domina e

controla a tarefa. Por fim, no modelo mais experiente/menos experiente, um dos

participantes possui um maior controle da tarefa, mas encoraja a participação do outro.

Uma importante implicação do estudo de Storch (2002) foi evidenciar que os

modelos 1 e 4 são os que mais favorecem a ocorrência de scaffolding nas interações

com pares. O autor conclui, portanto, que a natureza da interação é um importante fator

a ser considerado pelo professor, visto que sua compreensão favorece as oportunidades

de aprendizagem quando os alunos estão trabalhando colaborativamente com seus

pares.

Para Figueiredo (2001), o trabalho colaborativo aumenta a motivação e a

autonomia dos alunos e os auxilia a refletir sobre sua aprendizagem, contribuindo, dessa

forma, para o aumento da autoestima, na medida em que percebem sua capacidade de

escrever em inglês e o fato de que o cometimento de erros é algo normal e que faz parte

da aprendizagem (FIGUEIREDO E ASSIS, 2006). Além disso, Figueiredo (2012, p.

154) observa que, ao trabalhar com o colega, os alunos tem "a oportunidade de discutir

sobre suas próprias dúvidas e de compartilhar com os outros seu conhecimento."

Os benefícios da aprendizagem colaborativa são também observados em

pesquisas realizadas no ambiente virtual. Em um estudo realizado sob o regime de

P á g i n a | 980

tandem62

, Souza (2003, p. 90) observou um entusiasmo nas interações dos participantes

pelo fato de poderem trocar informações culturais e pelas oportunidades de

aprendizagem que vão "além das proporcionadas nos livros didáticos".

O trabalho colaborativo tem-se mostrado também benéfico na promoção da

autonomia. Em suas reflexões sobre esse conceito, ainda no regime tandem, Salomão,

Silva e Daniel (2009, p. 91) sugerem que a autonomia é "uma ação co-construída entre

o par, dado que ambos trabalham juntos no entendimento da delimitação de suas

necessidades, bem como na definição de práticas e/ou procedimentos que os levarão ao

alcance mútuo de suas metas".

Em seu estudo, Lee (2004) observou os efeitos do trabalho colaborativo nas

discussões on-line entre falantes de espanhol e alunos americanos. Os resultados

mostraram que os alunos americanos aprenderam muitas palavras e expressões novas,

contribuindo não apenas para o desenvolvimento de sua competência comunicativa,

como também para o aumento da motivação para aprender espanhol. Entretanto, ao

discutir as limitações de seu estudo, o autor adverte que a proficiência linguística, a

idade e o conhecimento do uso do computador são importantes fatores a serem

considerados nas interações online, uma vez que esses fatores afetam diretamente a

qualidade das interações e a motivação dos aprendizes.

Outros fatores podem contribuir para dificultar as interações mediadas pelo

computador, como, por exemplo, a falta de recursos da internet e problemas de conexão

(PAIVA, 1999), a ansiedade de alunos e professores por não saberem utilizar o

computador (LEFFA, 2003) e o não comprometimento com a colaboração mútua, como

observa Figueiredo (2006, p. 27),

"(...) uma das limitações existentes na aprendizagem colaborativa

mediada pelo computador é, a meu ver, justamente a falta de

colaboração que o meio virtual pode ocasionar. O fato de a interação

não ser face a face pode fazer com que os interlocutores não sejam tão

comprometidos e colaboradores uns com os outros e, devido a isso,

não darem termo a alguma tarefa pela qual são responsáveis".

Salomão, Silva e Daniel (2009), em consonância com o pensamento de

Figueiredo (2006) afirmam que "trabalhar colaborativamente implica comprometer-se

na tarefa de aprendizagem e, concomitantemente, comprometer-se com o outro e de

maneira mútua."

As dificuldades de interação no ambiente virtual é uma realidade, no entanto,

compartilho da opinião de Paiva (2001) de que, uma vez superadas, esse ambiente trará

grandes contribuições para a aprendizagem de línguas. Além disso, acredito que as

dificuldades nos processos de ensino e aprendizagem sempre estarão presentes, tanto

nas interações em sala de aula quanto no meio virtual. É preciso que nós, professores,

estejamos sempre na busca de aprimoramento de nossa prática em sala de aula,

conhecendo melhor nossos alunos e suas necessidades para aprender quais ferramentas

utilizar e junto com eles construir um ambiente favorável para que a aprendizagem

aconteça.

3 De acordo com Cavalari (2009, p. 22), o regime tandem "envolve pares de falantes nativos (ou

competentes) de línguas diferentes, trabalhando de forma autônoma e colaborativa para aprenderem a

língua um do outro".

P á g i n a | 981

4. O estudo

Conforme mencionado anteriormente, este estudo apresenta a análise de uma

atividade realizada com alunos de língua inglesa de uma universidade federal e teve

como objetivos verificar os efeitos do diálogo colaborativo por meio de exemplos de

scaffolding e suas funções identificar os padrões de interação e seus possíveis efeitos na

aprendizagem e investigar as percepções dos participantes sobre a atividade proposta.

A atividade foi realizada em pares, em uma disciplina de Língua Inglesa II e foi

gravada em áudio. Segundo a professora, os alunos são muito participativos e possuem

o mesmo nível de proficiência.

A atividade baseou-se no tema "shopping" do livro Touchstone 1(MC CARTHY

ET AL, 2005) e foi realizada em dois momentos. No primeiro momento, os alunos

deveriam simular o recebimento de uma bolsa de estudos para fazer um curso de verão

na Duke University. Eles receberiam um cartão-presente de $10.000,00 de um shopping

center que fica em Durham, cidade onde fica a Duke University. Com esse cartão, os

alunos deveriam, em pares, visitar os sites das lojas do shopping e decidir o que

comprar e onde fariam suas compras. Deveriam ler os comentários das lojas (reviews),

fazer as compras e falar sobre os motivos que os levaram a comprar nesses lugares,

sendo que as compras não poderiam exceder o valor do cartão-presente.

No segundo momento, os alunos postariam as lojas, as compras e seus

comentários no facebook da turma.

A análise dos dados está organizada em duas partes. Na primeira, é feita a

análise das interações com os objetivos de buscar exemplos de scaffolding e suas

funções e identificar os padrões de interação e seus possíveis efeitos na aprendizagem.

Os dados foram organizados em Protocolo A (fase de preparação da tarefa), Protocolo B

(fase de execução da tarefa) e Protocolo C (fase de finalização da tarefa). Na segunda

parte é feita a análise das percepções dos alunos participantes da pesquisa sobre a

atividade realizada.

5. Análise e discussão das interações

A análise dos dados revelou exemplos de scaffolding no momento em que os

alunos estão se preparando para escolher os sites das lojas, como veremos no Protocolo

A.

Protocolo A - Fase de preparação

A01: Flávio: So, which stores would you like to buy? hum....so many....difficult...

A02: Lola: Ah, no, let´s find the category first...wait...you go here and here..

A03: Flávio: Ah...

A04: Lola: Music, books and entertainment? Would you like to see?

A05: Flávio: Hum..yes, ok, music, books and entertainment.

P á g i n a | 982

A06: Lola: (Pausa longa) I just loved this store.

A07: Flávio: Yes, I just loved this. Would you wear this dress?

A08: Lola: If I would? yes, it´s beautiful, I would, but many things...it´s...many..

A09: Flávio: Ok, ok, ladies first (risadas)

A10: Lola: Do you know this band?

A11: Flávio: Blood? No, No, is it old?

A12: Lola: Not really...I forgot....they started the band when I was first year.

A13: Flávio: I have a friend who draws on t-shirts, so she makes my t-shirts....not this

one...

A14: Lola: ...Ok, a...first let´s find the reviews. Where is it? (pausa longa) where is it? is

it here? (baixinho)

A15: Flávio: Reviews, reviews...where are the reviews..(longa pausa)

A16: Lola: Let´s see if we get something here...(longa pausa)

Em (A01), Flávio inicia a interação perguntando quais lojas Lola gostaria de

comprar. Ao invés de responder à pergunta de Flávio (A06), que sente dificuldades na

busca das lojas, Lola acha melhor procurar a categoria primeiro (A02) e em seguida,

ela mesma dá três sugestões (A04): música, livros e entretenimento. As sugestões são

avaliadas e acatadas por Flávio, como podemos observar na sequência de sua fala

hum...yes...ok em (A05). Acreditamos que Lola, ao sugerir essas categorias, esteja

simplificando sua execução, o que constitui uma das funções do scaffolding

(simplificação da tarefa).

Outra função do scaffolding (engajar o aluno na tarefa) pode ser encontrada em

(A14) quando Lola interrompe Flávio e sugere procurar os reviews. Podemos observar

que nessa fase de preparação da tarefa, em geral, é Lola quem toma a iniciativa de

retomar a tarefa, direcionando e dando sugestões, principalmente após as longas pausas

(A06, A14 e A15). Podemos observar, também, que as intervenções de Lola procuram

envolver Flávio ao usar a expressão let´s, sempre que sugere fazer algo.

Protocolo B - Fase de execução

B01: Flávio: I just love this store. Is it dollars or reais?

B02: Lola: Dollar.

B03: Flávio: Why is...they use cifrão in dollars?

B04: Lola: Yeah, .....yes, for sure...teacher? we use cifrão in dollar?

B05: Teacher: Yes, because it´s the symbol for money.

B06: Lola: (pausa longa) Humm...you can look at the man´s t-shirt

B07: Flávio: Thank you. (risadas) (pausa longa) what´s this?

B08: Lola: I guess it´s a t-shirt for girls.

B09: Flávio: Oh, ok.

P á g i n a | 983

Durante a fase de execução da tarefa, podemos observar vários exemplos de

scaffolding quando Lola esclarece as dúvidas de Flávio com relação ao uso do cifrão

(B02) e com relação a um item não identificado por Flávio (B07). O próximo trecho

mostra como o conhecimento foi co-construído a partir da ajuda mútua dos alunos, na

tentativa de compreender figuras e uma expressão encontrados em um site da internet.

B18: Flávio: Cats...I don´t understand.

B19: Lola: Neither did I.

B20: Flávio: Cats plus bacon equals (incompreensível).

B21: Lola: Which element is this?

B22: Flávio: No, like cats, cats.

B23: Lola: I know but which element is this?

B24: Flávio: Gold.

B25: Lola: Oh. ....You got it?

B26: Flávio: No.

B27: Lola: Cats plus bacon equal gold. It´s expression. It´s unique, something like that.

B28: Flávio: I didn´t get it.

B29: Lola: You know, gold is rare and everybody likes.

B30: Flávio: Yes...

B31: Lola: And so does cats and bacon...not rare but everybody likes.

B32: Flávio: Cats and bacon? Ok, but I don´t like cats.

B33: Lola: Yeah, but it´s more like a general thing (risadas), there´s always exception

(risadas) (pausa longa). This one is for books. I don´t know if I would buy

books at first. .. you can see. I guess I wouldn´t bring a lot of books. I guess

I would buy books I really really wanted to read. Would you?

B34: Flávio: (começa a cantar)

B35: Lola: Ok, a...what else? (baixinho) (pausa longa). Technology and electronics?

There´s no clothes here....a... (pausa longa)...160 gb.. you know that classic

ipod has 160 gb?

B36: Flávio: Really? and how much does it cost?

B37: Lola: I have no idea. Let´s check....just like here...I would buy. and would you?

B38 Flávio: Yeah, I would buy.

B39: Lola: (pausa longa) do you usually buy at the shopping mall?

B40: Flávio: Sometimes, I really don´t like to go there. I don´t like to go and search

clothes..maybe I guess I should buy on the internet now at home, it´s more

interesting. (laughs)

Observamos em (B18) que Flávio não compreende o uso da palavra cats. Lola

(B19) também sente a mesma dificuldade. Dessa vez, Flávio e Lola não recorrem ao

professor em busca de auxílio. Ao invés disso, eles mesmos procuram chegar a uma

compreensão e resolver suas dificuldades. Em (B020), Flávio lê a expressão,

P á g i n a | 984

procurando fazer sentido do que está lendo. Lola (B21), por sua vez, pede auxílio à

Flávio para identificar um elemento que seria importante para a construção de sentido

da expressão que ambos não conseguem compreender. Flávio responde gold (B24), um

scaffolding importante que ajuda Lola a compreender o significado da expressão. Isto

pode ser observado pelo uso de Oh... seguido da pergunta you got it? em (B25). Na

sequência, Flávio (B26) responde que ainda não compreendeu a expressão. Lola (B29)

explica que gold é algo raro e todo mundo gosta. O mesmo acontece com cats. Flávio,

no entanto, discorda parcialmente da explicação, visto que ele não gosta de gatos. Lola

(B33) procura solucionar o impasse explicando que trata-se de uma expressão usada de

forma genérica, podendo haver exceções.

Os exemplos mostrados em (B18 a B33) mostram a co-construção do

conhecimento favorecida pelo apoio e esforço mútuo dos alunos. Com a ajuda do

colega, os alunos conseguiram compreender uma expressão que possivelmente não

conseguiriam se tentassem compreendê-la sozinhos. O esforço empreendido pelos

alunos na tentativa de resolver o problema e a solução encontrada está de acordo com a

afirmação de Swain et al (2002, p. 171) de que "cognição e conhecimento são

construídos dialogicamente". Esses exemplos confirmam, também, a importância do

diálogo colaborativo no engajamento dos alunos em situações reais de comunicação, na

medida em que a língua é usada para esclarecer dúvidas, fazer hipóteses, trocar idéias,

demonstrar sentimentos etc.

Analisando a fala Lola (B33), observamos que ela, após uma pausa longa,

retoma a tarefa e tece alguns comentários sobre livros. Flávio (B34), por sua vez,

começa a cantar, não demonstrando muito interesse pelo assunto. Lola, no exemplo

(B35), tenta engajá-lo na tarefa sugerindo dois temas como pontos de partida para uma

nova busca na internet: technology e electronics. Após outra pausa, Lola (B35) dá

informações sobre a capacidade de memória do Ipod. Essas tentativas, ao nosso ver,

ilustram duas funções do scaffolding: engajar o outro na tarefa e manter sua motivação.

A reação de Flávio em (B36), mostra que Lola foi bem-sucedida em suas tentativas. Isto

fica claro pelo uso do Really? que, no contexto dessa interação, tem a função de

demonstrar interesse por parte do ouvinte. A pergunta de informação how much does it

cost? seguida do uso do Really? reforça o interesse de Flávio, contribuindo, assim, para

a manter a fluidez da conversação.

Com relação ao interesse de Flávio pela atividade, a análise de dados mostrou

que seu nível de interesse foi mais baixo que o de Lola. Isto pode ser explicado pelo

fato de ele não gostar muito de fazer compras, como ilustra o exemplo (B40). No

entanto, ele admite a possibilidade de fazer suas compras pela internet por achar mais

interessante fazê-las no mundo virtual. Isto pode ser um indício de um movimento de

passagem de regulação pelo outro para a auto-regulação. Nessa tarefa, consideramos

que a regulação pelo outro é caracterizada pela discussão, negociação e compra dos

itens pela internet com o auxílio de Lola e a auto-regulação, por sua vez, pode ser

caracterizada pela possibilidade de Flávio fazer suas compras pela internet em casa. É

importante ressaltar que estamos falando de possibilidades, pois, conforme observa

Liberali (2010, p. 73, citando Vygotsky, 2001), "não existe a determinação do que o

outro constrói, mas a criação de possibilidades para as escolhas que ele fará."

No protocolo C, podemos observar a co-construção de scaffolding quando

Flávio engaja-se mais na tarefa, deixando transparecer que seu nível de interesse pela

atividade aumentou. Isto ocorre quando Flávio: a) sugere a loja Sears (C02); b) pede

explicações sobre algo que não compreendeu: I don´t understand this...on be (C04); c)

procura pelos reviews: And the reviews? (C08); d) pede informações sobre o preço dos

P á g i n a | 985

sapatos para Lola: Hum..how much it would cost if I buy here on the internet ?(C10) e

sobre o valor das taxas de transporte para a professora: Professor? I have doubts about

the price of transportation. (C16).

Protocolo C - Fase de finalização

C01: Lola: Ok let´s go to other stores.

C02: Flávio: Try Sears.

C03: Lola: Sears..I don´t know..there isn´t Sears here...let me check..shoes?

C04: Flávio: Shoes..yes, nice. I don´t understand this...on be

C05: Lola: I guess the mall is here here on be...here...you can click here... divided.

C06: Flávio: Hum...I understood.

C07: Lola: I don´t want to see it anymore. (risadas) (pausa longa)

C08: Flávio: Hum..this one. And the reviews? no reviews.

C09: Lola: I guess this time the reviews are individual, I´m going check the red... yes,

individual, you know, you go to the product and there are the reviews..

C10: Flávio: Oh, yes, hum... I´d buy it. Nice. Hum, how much it would cost if I buy

here on the internet?

C11: Lola: It depends the transport, but it´s not too expensive anyway. It´s $25,00 it

would be like, I mean the dollar isn´t costing R$2,00, so it would be forty

and something.

C12: Flávio: Including the price of the transportation?

C13: Lola: No. That´d be the thing. I don´t know how much it costs, it´s probably

expensive. So it´d be fine...if...

C14: Flávio: If we go there and buy.

C15: Lola: Not go there and buy but if you buy more than one thing.

C16: Flávio: Yes, I understand. I understand. I think I´ll see this on the internet later

(pausa longa) I´m hungry.... Professor? I have doubts about the price of

transportation.

C17: Teacher: The shipping? (a professora explica como funciona as taxas de transporte)

Ok people, let´s go...

Durante a realização da atividade, pudemos observar que Lola, em geral, é

quem tinha o controle da tarefa, ao iniciar, retomar e manter o scaffolding construído

com Flávio. No entanto, é interessante notar que na fase de finalização, é Flávio quem

restabelece e mantém o interesse de Lola pela tarefa após manifestar seu desejo de parar

a atividade (C07). Isto sugere que não há uma sequência linear das funções do

scaffolding. Ele é construído a partir dos interesses, das necessidades e dos níveis de

motivação dos interlocutores.

Com base na atividade proposta neste trabalho, podemos afirmar que o diálogo

colaborativo é dinâmico, imprevisível e rico de oportunidades de uso da língua em

situações de comunicação real que vão além dos diálogos dos livros didáticos que se

restringem às simulações e repetições artificiais, muitas vezes sem sentido para o aluno.

P á g i n a | 986

Isto parece estar de acordo com as próprias percepções dos participantes, como veremos

a seguir.

6. Análise e discussão das percepções dos participantes

Um dos objetivos deste trabalho foi investigar as percepções dos participantes

sobre a atividade realizada em pares. Na entrevista, Flávio declarou ter gostado da

atividade pela oportunidade de usar a língua em um contexto real, além de poder trocar

ideias com seu par, o que não seria possível se tivesse realizado a atividade sozinho.

Pesquisadora: Você gostou da atividade que você realizou?

Flávio: Sim porque eu pude ter uma exposição real com a língua inglesa a partir de

um site que foi feito por pessoas...por nativos.

Pesquisadora: E você preferiria ter feito sozinho?

Flávio: Não porque eu pude compartilhar ideias com meu par...Gosto mais das

atividades de grupo porque há várias opiniões...é melhor.

Da mesma forma que Flávio, Lola gostou da atividade por ter favorecido o uso

da língua no cotidiano e também por ter promovido a interação com o colega.

Podemos depreender da fala de Lola que a interação com o seu par foi

importante não apenas para a sua aprendizagem, mas também para a sua motivação,

quando ela fala que achou a atividade interessante e que ela e Flávio riram e se

Pesquisadora: Então Lola, você gostou da atividade?

Lola: Sim gostei, achei bem interessante.

Pesquisadora: Por que?

Lola: Porque me fez trabalhar o inglês com meu colega e às vezes eu até penso

melhor em inglês então me fez ver alguma coisa do inglês do dia-a-dia. Muito

bom!

Pesquisadora: Você preferiria ter feito essa atividade sozinha?

Lola: Não...não.

Pesquisadora: Por que?

Lola: A interação pra mim foi essencial, estar ali falando com ele e ele respondendo

e a gente até ria, se divertia. Isso foi bastante interessante.

Pesquisadora: Você gosta de realizar suas atividades em grupo ou sozinha?

Lola: Mais em grupo.

Pesquisadora: Por que?

Lola: Porque eu gosto dessa interação, de todo mundo dar sua opinião, a gente chega

num consenso. Eu gosto de estar no meio das pessoas, trabalho melhor assim.

P á g i n a | 987

divertiram. Esses dados confirmam os resultados de Figueiredo (2001). Para esse autor,

o trabalho colaborativo aumenta a motivação dos alunos, auxiliando-os também, a

refletir sobre sua aprendizagem.

7. Considerações finais

Realizamos este trabalho com o intuito de buscar exemplos de scaffolding e suas

funções (ANTÓN E DICAMILLA, 1999) e identificar os padrões de interação

(STORCH, 2002) e seus possíveis efeitos na aprendizagem. Buscamos, também,

investigar as percepções dos participantes sobre a atividade realizada.

A análise dos dados mostrou uma maior ocorrência de quatro, das seis funções

do scaffolding: 1) engajar o aluno na tarefa; 2) simplificar a tarefa; 3) manter a

motivação para a busca do objetivo da tarefa; e 4) explicar e dar soluções parciais para

a finalização da tarefa.

Com relação ao padrão de interação, os dados evidenciaram o modelo mais

experiente/ menos experiente, visto que um dos pares apresentou um maior controle da

atividade (Lola), fornecendo scaffolding constante ao longo de sua execução,

permitindo uma participação mais ativa na interação com o colega. Isto pôde ser

observado nas seguintes ações: retomada da tarefa após longas pausas, explicações,

tomada de decisão na escolha dos itens a serem comprados e orientações na busca dos

sites.

Embora Lola realizasse a maior parte dessas ações, ela procurava envolver o seu

colega na atividade, estimulando-o a participar da interação. Isto ficou claro nos

exemplos em que Lola fazia perguntas, pedia opiniões e usava a expressão let´s. O uso

dos modais can e would e de expressões como I guess também são indícios de que

Lola manifestava suas opiniões, mas não de forma impositiva, valorizando, dessa forma,

as contribuições de seu colega. Esses dados confirmam a importância do diálogo

colaborativo no sentido de promover o desenvolvimento cognitivo e social dos alunos

(ANTÓN E DICAMILLA, 1999). No plano cognitivo, podemos observar a construção

do diálogo nos exemplos de (B18) a (B33), que mostra o esforço mútuo para a

compreensão da expressão. Já no plano social, como já dito, observamos o uso de

formas polidas como os modais que ajudam a criar um ambiente social favorável para a

participação do par menos participativo.

Do ponto de vista pedagógico, acreditamos que a atividade promoveu a

participação dos alunos de forma significativa, conforme sugere Swain (1995, apud

FIGUEIREDO, 2003) por envolvê-los em situações de uso real da língua. Isto foi

observado pelos participantes quando disseram que gostaram de realizar a atividade

pelo fato de ela ter promovido a interação entre eles e por favorecer o uso da língua com

um objetivo real de comunicação a ser atingido (WILLIS, 1996, apud LIMA, 2010).

Pudemos perceber que, ao receber o auxílio do colega, o diálogo colaborativo se

construiu, possibilitando a negociação de significados e o desenvolvimento de novas

habilidades e de novos conhecimentos.

Para concluir nossas considerações, os dados deste estudo reforçam a

importância do diálogo colaborativo como ferramenta para o desenvolvimento

cognitivo, social e comunicativo dos alunos. O professor deve, portanto, incluir em seu

planejamento, atividades de sala de aula que promovam a participação e a colaboração

P á g i n a | 988

dos alunos, visto que o trabalho colaborativo possibilita a construção de scaffoldings

importantes para que os alunos, independentemente de seus níveis de proficiência

linguística, possam aprender uns com os outros.

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P á g i n a | 992

O TEXTO LITERÁRIO E A ABORDAGEM DO INTERCULTURAL: UMA

ANÁLISE DAS ATIVIDADES PROPOSTAS NOS MANUAIS DIDÁTICOS DE

FLE

63

Divaneide Cruz Rocha LUNA (POSLE-UFCG)

64

Josilene PINHEIRO-MARIZ (POSLE-UFCG)

1. Introdução

Refletindo a respeito da necessária abordagem de textos literários desde o início

da formação do aprendiz de língua francesa, percebemos o quanto o material didático

ocupa um papel determinante no ensino da língua em contexto exolingue. Essa

abordagem se faz preponderante, uma vez que a literatura literária é caminho para novas

descobertas e para a expansão de horizontes. Considerando esse aspecto, observamos

que entre os principais documentos utilizados para o ensino do FLE (Francês como

língua estrangeira), seja no Brasil ou em outras realidades, o peso didático do livro

didático, que é mais conhecido entre os especialistas de FLE como “le manuel

didactique” ou “méthode de français”. Essa perspectiva é ativada, pois, de uma maneira

geral, é o livro que impõe as diretrizes para o ensino da língua francesa; isto é: trata-se

de um dos principais apoios pedagógicos para o ensino, tornando-se base para o

professor no ensino do FLE65

.

Cabe dizer que, muito provavelmente, o fato de não se encontrar textos

literários, de modo sistemático, em livros didáticos deve-se a uma história não muito

recente que vê na obra literária apenas o lugar do cânone, não permitindo com isso, que

aprendizes iniciantes da língua tenham acesso à língua na sua mais bela expressão: a

literatura.

Ressaltamos que os textos literários se caracterizam como uma “poderosa

ferramenta”, segundo a afirmação de Albert e Souchon (2000); e, também sob essa

ótica, o professor, como mediador no processo de ensino/aprendizagem pode

sensibilizar o seu aprendiz desde cedo, à leitura literária. O processo de sensibilização

deverá iniciar, primeiramente, no professor, quebrando o primeiro tabu de que a

literatura é intocável e para poucos.

Sabe-se que o trabalho com o texto literário (TL) não é uma tarefa fácil, pois o

aprendiz estará diante de um texto produzido em uma língua que ele está em vias de

aquisição e, portanto, ainda pouco conhecida para ele. Essas dificuldades podem ser

uma das razões enfrentadas pelos professores de FLE, e mesmo de outras línguas

estrangeiras, para não se sentirem seguros ao trabalhar com essa ferramenta. Com

relação a essa ideia, Pinheiro-Mariz afirma que:

63

Divaneide Cruz Rocha Luna é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da

Universidade Federal de Campina Grade. 64

Josilene Pinheiro Mariz é Professora da graduação em Língua Francesa e Língua Portuguesa do

Programa de Pós-Graduação e Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande. 65

Os dados analisados neste artigo fazem parte da Dissertação de Mestrado defendida em fevereiro de

2013, sob o título A Abordagem do Intercultural em Atividades com textos literários nos Livros Didáticos

de FLE.

P á g i n a | 993

/.../ trabalhar com texto literário em aula de FLE com iniciantes

implica desafios tais como: o limitado conhecimento de vocabulário e

aspectos gramaticais como tempos verbais, etc.; vencer as dificuldades

impostas pela própria estrutura da língua e, sobretudo, a polissemia

desse tipo de texto, pois em alguns casos uma primeira leitura não

permitia aos alunos a compreensão imediata de aspectos como a

linearidade da narrativa, assim como a identificação de alguns

elementos constituintes da obra literária. (PINHEIRO-MARIZ, 2007,

p. 121).

Sabemos também que as atividades com base na literatura são desafiadoras e

prazerosas, sobretudo quando os resultados positivos são observados na sala de aula.

Essa dificuldade talvez ocorra porque alguns aprendizes chegam à sala de aula, em

alguns casos, com uma espécie de aversão à literatura, mesmo sem ter tido sequer um

primeiro contato. Isso acontece de modo geral, por que eles não foram sensibilizados à

leitura literária em língua materna. Por esse motivo, o professor deverá ter cautela e

paciência na escolha do TL que será abordado, pois deve existir um texto adequado para

cada nível de aprendizagem.

2. A abordagem do texto literário como uma ferramenta no ensino de FLE

Hoje em dia, através dos meios de comunicação, o contato com outras culturas

tornou-se mais acessível. No âmbito do ensino de LE, também ficou mais comum o

acesso a documentos diversos, sejam eles multimodais ou não. Na nossa ótica, no

ensino de LE, o TL é um documento especial, uma vez que, além de ser autêntico, ele é

um material muito rico para ser trabalhado em sala de aula de LE, por conter

peculiaridades que o diferenciam dos demais gêneros textuais. Em consonância com

essa ideia, especialistas como Papo e Bourgain (1989), Peytard (1982), Peytard e

Moirand (1992), Séoud (1997) e Albert e Souchon (2000) chamam a atenção para o

texto literário como um documento capaz de trazer consigo os múltiplos sentidos da

língua e, por essa razão, deve também estar presente na sala de aula de modo

incondicional.

De acordo com Papo e Bourgain (1989, p. 8), o texto literário é um laboratório.

É nele que a língua se revela e exibe as suas estruturas, sejam elas simples ou

complexas. Através dele, o professor tem a oportunidade de mostrar aos aprendizes a

materialização da língua, ou seja, como ela se manifesta em um contexto real,

considerando-se desde as construções mais simples até as mais rebuscadas.

Na concepção de Séoud (1997), a literatura é ao mesmo tempo língua e cultura.

Assim, o ensino de uma língua não pode ser direcionado apenas para sua gramática

padrão, pois as atitudes, os costumes e os diferentes modos de viver também fazem

parte da língua. Por isso, esses elementos fazem da literatura o terreno mais favorável e

propício à expressão intercultural, pois vemos a cultura do outro através da nossa. Nessa

perspectiva, De Carlo (1998) afirma que:

As obras literárias são consideradas o maior nível de expressão

artística e cultural de um país / ... / A França ocupa o primeiro lugar

nesse domínio /... / Encontramos, mais um vez uma unidade

P á g i n a | 994

inseparável entre língua e a civilização, unidade que garante a

superioridade de cada um destes dois elementos. (DE CARLO, 1998,

p. 29)66

.

Ao utilizar um TL em sala de aula, o professor tem a oportunidade de realizar

diversas atividades complementares, além de incentivar possíveis leitores no ambiente

da sala de aula. Dessa forma, quanto mais cedo os TL forem introduzidos nas aulas,

mais fácil será trabalhar com esse recurso ao longo da aprendizagem, pois a literatura

serve tanto para ensinar a ler e a escrever, quanto para formar culturalmente o indivíduo.

Acrescente-se, ainda, que, quanto mais o aprendiz for exposto à leitura, mais a sua

capacidade de comunicação será progressivamente desenvolvida (COSSON, 2006, p.

21-22). Entretanto, para que esse desenvolvimento ocorra, cabe ao professor ter a

sensibilidade de escolher o texto adequado para cada nível de aprendizagem, pois uma

escolha inadequada pode comprometer o processo de aprendizagem, além de

desmotivar o aprendiz.

Muitos professores não conseguem abordar o TL em sala de aula de língua por

terem uma visão sacralizada da literatura e por pensarem que ela é intocável, que a

prática da leitura literária não se ensina, que não se decifra e que é para poucos. Nesse

sentido, Moirand e Peytard (1992) desmistificam esta ideia, mostrando que o TL pode

ser trabalhado como auxílio no ensino de LE. Para os referidos autores:

/.../ percebe-se, esquematicamente, uma dupla tendência, quanto à

utilização da literatura. Tendência à sacralizar o texto literário o qual

não se toca, digamos, que com um cuidado, um recuo: repouso do

aprendiz, oferece-se a ele, o texto para ler, para aspirar, saborear,

comunicar com ele por ingestão místico-pedagógica; o texto literário

repousa com os mistérios do seu templo, para ser comtemplado. Sob

outra tendência: o texto literário é um texto-testemunho, um texto-

produto, como qualquer outro documento "autêntico"; serve de base e

fonte para inúmeras atividades de língua, encontramos recursos

lexicais, exemplos de frases-modelo, expressões orais ou de análise de

ritmo, o texto literário é, então, uma fonte esplêndida de exercícios

obrigatórios (PEYTARD; MOIRAND, 1992, p. 58, aspas dos

autores)67

.

Segundo esses especialistas, a literatura se articula na e sobre a língua e é a

construção concreta, a manifestação das palavras e da sintaxe. Ao utilizar o TL é

possível trabalhar as competências linguísticas primordiais, no que se refere ao

66

Les oeuvres littéraires sont considérées comme le degré le plus élevé de l’expression culturelle et

artistique d’un pays/.../la France se place au premier rang dans ce domine/.../ Nous retrouvon encore une

fois une unité indissociable entre langue et civilisation, unité qui garantit la superiorité de chacun de ces 67

/.../ on peut schématiquement apercevoir une double tendance, quant à l’usage de la littérature.

Tendance à sacraliser le texte littéraire auquel on ne touche, si l’on peut dire, qu’avec recul: repos de

l’apprenti, on le lui offre à lire, à humer, à goûter, à communier avec; le texte littéraire ne se discute pas,

il se savoure, par ingestion mystico-pédagogique; le texte littéraire repose aux arcanes de son temple:

contemplation recommandée.Tendance autre, ou contraire: le texte littéraire est um texte-témoin, un

texte-produit, comme tout autre document “authentique”; on ne fait base et source d’innombrables

activités de langue; on y trouve des ressources lexicales, des exemples de phrases-types, des occasions

d’expression orale ou d’analyse de rythme; le texte littéraire est alors un splendide réservoir: exercices

obligatoires (PEYTARD; MOIRAND, 1992, p. 58).

P á g i n a | 995

ensino/aprendizagem de LE, de ouvir, falar, ler e escrever, além de promover a

motivação e a interação em sala de aula. Séoud (1997) afirma que, ao ser integrado

como forma progressiva de aquisição da língua, o TL pode ser decifrável a partir do

conhecimento de mundo. Essas aquisições linguísticas habilitam os aprendizes a

construírem o sentido do texto.

Conforme Papo e Bourgain (1989, p. 8), se o TL é o laboratório da língua,

dentro dele podemos encontrar todas as formas gramaticais, expressões idiomáticas e

construções linguísticas desde a mais simples até as mais complexas, ele é decifrável a

partir das aquisições linguísticas anteriores. Também para Séoud (1997, p. 28), a

construção dos sentidos é efetuada a partir do vocabulário que o aprendiz já conhece,

por isso, ele, o aprendiz, decifra as informações contidas no TL. É importante destacar

que o TL é uma fonte inesgotável tanto de aquisição cultural, quanto de múltiplos

sentidos da própria língua, uma vez que o TL é a língua na sua melhor materialização.

Ainda segundo Papo e Bourgain (op. cit.), quanto mais cedo se levar os TL aos

aprendizes, melhor será a sua aceitação. O TL pode ser inserido como uma introdução

ao estudo da língua estrangeira, a fim de se adquirir um mais amplo cerne vocabular e,

também, como uma maneira de se conhecer a sintaxe da língua-alvo. Esse tipo de

exercício é proposto nos manuais, com os documentos do tipo anúncios, receitas,

histórias em quadrinhos (HQ) etc. Os autores referidos acima indicam, também, que se

utilizem excertos de textos já conhecidos pelos leitores/aprendizes para se estabelecer

uma ponte entre a língua materna e a língua em estudo. Essa utilização seria, segundo os

estudiosos, uma iniciação modesta, mas enriquecedora, para o TL em sala de língua

estrangeira.

Na concepção de Moirand e Peytard (op. cit.), para se ensinar literatura, ou se

abordar o TL em sala de aula, é preciso ter um conhecimento mínimo da língua alvo,

pois as várias manifestações da língua são reveladas através da leitura literária. Por esse

motivo é que o ensino com o TL deve ser inserido desde o início do processo de

aprendizagem de LE. Por essa razão, o livro didático para o ensino do FLE obtém um

papel determinante, uma vez que se apresenta como um dos primeiros documentos

didáticos com os quais o aprendiz tem contato, configurando, assim como um recurso

primordial utilizado pelos professores de FLE.

Com essas considerações, investigamos, através de pesquisa bibliográfica e

documental, a presença do TL em alguns livros didáticos (LD) já utilizados ou ainda em

utilização na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) ou em escolas de

idiomas da cidade de Campina Grande-PB.

3. Descrição do corpus e do contexto da pesquisa

O corpus da presente pesquisa consta de cinco livros didáticos de língua

francesa, volumes 1 e 2, totalizando dez LD que já foram e são utilizados em escolas de

idiomas da cidade de Campina Grande e na UFCG. A escolha por esses livros baseou-se

nos seguintes critérios: livros elaborados segundo as diretrizes do QECRL (2001);

utilizados pelas instituições de ensino de FLE e indicados para iniciantes.

Assim, o corpus é composto por volumes 1 e 2 dos LD Tout va bien (2005),

Alter ego (2006) e Métro Saint-Michel (2006) e propõem atividades de

ensino/aprendizagem da língua francesa em carga horária que varia entre 120 e 140

P á g i n a | 996

horas. Os demais, Alors? (2007) e Mobile (2012), propõem de 80 a 90 horas de

aprendizagem intensiva da língua. Cada volume possui um CD de áudio para que o

estudante possa praticar sua aprendizagem sem o auxílio do professor, possibilitando,

assim, a sua autonomia nas atividades de fala e escuta.

Levando-se em conta os propósitos deste trabalho, nosso olhar está atento para

as seguintes percepções: identidade cultural e linguística, tomada de consciência do eu e

do outro e estereótipos, clichês e representações.

3.1 Procedimentos para análise dos dados

A análise dos dados desta pesquisa é de natureza qualitativa e investigou a

presença do TL, identificando como as atividades propostas favorecem as trocas

interculturais bem como a sua contribuição para a aprendizagem do FLE. Para executar

essa etapa, usamos a técnica da descrição detalhada de cada LD, destacando a

quantidade de lições, ou unidades, nas quais a rubrica intercultural surge, com qual

objetivo e se as propostas seguem o QECRL (2001).

A partir dessas descrições, selecionamos os textos, e as atividades que se

enquadravam em nossos objetivos, fazemos a análise e a interpretação dos dados, à luz

das teorias apresentadas anteriormente. Em seguida fizemos a quantificação das

atividades que apresentaremos através de quadro.

Em nossa análise, priorizamos três categorias para discussão: identidade cultural

e linguística; consciência do eu e do outro e estereótipos, clichês e representações.

Antes de prosseguir com as análises, vejamos o quadro com a quantificação das

atividades propostas para os textos selecionados e analisados por categorias.

Quadro I: Quantificação das atividades propostas para o texto literário

LIVRO TÍTULO DO TEXTO

/ATIVIDADE

QUANTIDADE DE

ATIVIDADES

Métro Saint-Michel

1

(2006, p. 21)

Sem título

0

Alter Ego 1

(2006, p. 127)

Sept couler magiques

(Mymi Doinet)

2

Alter Ego 2

(2006, p. 84)

Le tour du monde em

famille (Jèróme Bourgine)

L’enfant des neiges

(Nicolas Vanier)

3

Alter Ego 2

(2006, p. 150)

Le Petit Poucet

(Charles Perrault)

3

P á g i n a | 997

Tout va bien! 2

(2005, p. 138)

Le pots de contes 1

Métro Saint-Michel

1

(2006, p. 31)

C’est ça la vie

0

Tout va bien! 2

(2005, p. 62)

Le Petit Prince

(Antoine de Saint-

Exupéry)

4

Métro Saint-Michel

2

(2006, p. 67)

La Société de la peur

(Christophe Lambert)

2

Métro Saint-Michel

2(2006, p. 57)

La Conversation

amoureuse (Alice Ferney)

1

Métro Saint-Michel

2 (2006, p. 113)

Laissées-pour-compte

(Robert Bober)

1

Métro Saint-Michel

2 (2006, p. 137)

Dernières Nouvelles des

oiseaux

(Érik Orsenna)

1

Alter Ego 1 ( 2006,

p. 94)

Le (s) plus grand (s)

Français de tous les temps

3

Fonte: Divaneide Cruz Rocha Luna (2013, p. 83)

Os textos escolhidos para análise foram selecionados de acordo com os critérios

de inclusão de nossa pesquisa e optamos pelos textos que se enquadravam nas

categorias priorizadas. Identificamos que para cada texto selecionado a quantidade de

atividade proposta é variada. Constatamos, também, que o foco das atividades aponta

para o desenvolvimento das competências linguísticas: oral e escrita, possibilitando que

os aprendizes recorram às informações e expressões adquiridas no decorrer da

aprendizagem. Deparamo-nos apenas com uma atividade que aborda efetivamente o

tema intercultural no excerto do texto Le Petit Poucet, de Charles Perrault e na atividade

Le pots de contes. Constatamos que a presença do TL ainda é sutil nos LD e as

atividades propostas não tem como foco as trocas interculturais elas estão direcionadas

para sondagem de aquisição das competências linguísticas. A análise de tais dados serão

apresentados na sequência deste texto.

4. Identidade Cultural e Linguística

Iniciaremos nossa leitura e com o poema intitulado Sept couleurs magiques, de

Mymi Doinet, o qual nos parece ser um texto literário autêntico, isto é, um texto

literário não didatizado.

P á g i n a | 998

Figura 1: Sete cores mágicas

Fonte: Alter Ego 1 (2006, p.127)

As cores e seus significados fazem parte de diversas culturas. De maneira geral,

nas culturas ocidentais, o branco significa a paz, a pureza; enquanto o preto é sinal de

luto e o vermelho significaria amor, paixão. Essas representações, nas culturas orientais,

podem ter outros significados como: a cor branca seria luto e morte, no Japão e na

China; e na Índia, representaria a infelicidade e o vermelho significaria vida, pureza e

alegria, respectivamente, no Japão e na Índia. Enquanto na China é alegria e o preto, na

China, é a cor favorita para a vestimenta dos adolescentes.

Esse poema, Sept couleurs magiques, revela as cores do arco-íris e, com elas, as

particularidades de alguns países. Ele nos abre portas para realizar trocas interculturais,

indo-se além da cultura da língua em estudo. Considerando-se que as cores fazem parte

de representações de várias culturas, de acordo com Zarate (1986, p. 30), a sala de aula

de língua estrangeira é o lugar onde duas ou mais culturas entram em relação umas com

as outras e, por isso, as representações sociais constróem os limites que definem as

proximidades e afinidades, distanciamento e incompatibilidades.

No livro Alter Ego 1 (2006), duas propostas de atividades são apresentadas para

o poema Sept couleurs magiques: a primeira pede que o aprendiz associe as cores

mencionadas a um animal, um alimento e a um elemento da natureza. A outra sugere a

escrita de um poema seguindo o modelo do poema lido. Na nossa ótica, sugeriríamos,

para esse TL, mais uma atividade que se pode iniciar com a apresentação da fruta

vermelha do México68

, o que seria o ponto de partida para motivar o grupo às

descobertas das particularidades das regiões e países mencionados no texto. Dessa

forma, estaríamos confirmando que aprender uma língua estrangeira é também uma

forma de conhecer o mundo. O objetivo dessa atividade seria também promover a

interação entre os aprendizes, além de, evidentemente, trabalhar as quatro

compentências línguísticas, além da intercultural.

68

Algumas das frutas vermelhas do México são: a pitaya (hylocereus undulatus), fruta de cor

avermelhada, cultivada no México, Guatemala, Belize, Honduras e El Salvador, e utilizada pelos Maias,

há milhares de anos. (www.maya-ethnlgumasobotany.org); e, o capulim cereja ou cereja tropical (prunus

salicifolia), uma fruta de cor vermelho-escura, cultivada no México, América Central, Peru e Equador.

No México, serve-se uma panqueca chamada “Talmal” recheada com geleia de capulim. (www.e-

jardim.com)

P á g i n a | 999

Outra proposta seria apresentar as cores da bandeira da França e pedir para que

os estudantes descobrissem o que representa cada uma delas e, na sequência pedir, para

que eles comententassem o que representam as cores da bandeira do Brasil, desde a sua

idealização e qual semelhança teria com outros países citados no poema. Essa é uma

atividade que fortalece a ideia que se encontra, ao se trabalhar na perspectiva do

intercultural, uma importante via para o conhecimento de nossa própria cultura, e que

promove a interação entre culturas através das representações das cores das bandeiras.

Assim, ao compartilhar com os colegas de sala as suas descorbertas, uma parte do grupo

poderá praticar a escrita e a fala, enquanto a outra parte, também, participa ouvindo e

interagindo com os colegas por intermédio das perguntas. Nessa perspectiva, além de

explorar as competências, promove-se a autonomia.

4.1. Consciência do eu e do outro

No manual Tout va bien! 2, identificamos excertos de textos de autores célebres

como Charles Baudelaire, Jules Verne e de autores contemporâneos como Daniel

Pennac. Para nossa análise, entretanto, selecionamos o excerto do livro Le Petit Prince,

de Antoine de Saint-Exupéry, obra que foi traduzida em vários idiomas.

Figura 2: O pequeno príncipe

Fonte: Tout va bien! 2 (2005, p. 62)

O excerto acima refere-se ao capítulo XX, no qual o personagem que dá título ao

romance se encontra com a raposa que ensina a ele o ritual da amizade, ou seja, como se

conquista um amigo. Depois que o Pequeno Príncipe aprende como se conquista um

amigo, reconhece o outro e, então, a raposa deixa lições, por assim dizer, interculturais:

a primeira é olhar para o outro com o coração, porque “o essencial é invisível aos

olhos”. Nesse sentido, esse trecho nos apresenta uma lição de alteridade, ressaltando-se

o respeito ao outro, isto é, aceitar o outro sem se prender ao que se vê, ou aos

estereótipos negativos que muitas vezes nos afastam. A segunda lição é a importância

do tempo que se leva para conhecer o outro, pois, a descoberta do outro é constante,

assim como o prendizado de uma LE, quando a cada dia se aprende algo novo. A

terceira lição ensina sobre a responsabidade de se cuidar daquilo que se cativa,

conforme nos sinaliza a raposa nos dando uma lição de respeito ao outro.

P á g i n a | 1000

A respeito do excerto acima, constatamos que o LD Tout va bien! 2 sugere

quatro atividades: uma de escuta, outra de produção oral, nas quais os aprendizes, em

grupo, devem comentar o texto de acordo com algumas questões previamente

formuladas; uma atividade de produção escrita; e a leitura do texto, feita em voz alta

pelo aprendiz. A partir desse excerto todas as compêtencias são trabalhadas e a proposta

de pontes interculturais, sugestão nossa, poderia ser mediada pelo professor, pois o tema

está implícito no texto.

4.2 clichês e representações

Enquanto o LD Métro Saint-Michel 1 tem a proposta de sensibilizar os

aprendizes para a leitura literária, o Métro Saint-Michel 2 já traz excertos de romances

na rubrica Le coin des livres (O canto dos livros) destinada à leitura. Cada excerto vem

com uma nota sobre o autor, bem como noções gerais a respeito da obra e um breve

resumo do romance. Esse detalhe pode aguçar a curiosidade do aprendiz dando a ele a

liberdade para escolher entre ler a obra completa ou não. Seguindo com a nossa análise,

selecionamos o texto La société de la peur, de Christophe Lambert.

Figura 6: La société de la peur

P á g i n a | 1001

Fonte: Métro Saint-Michel 2 (2006, p. 67)

Nesse excerto, identificamos um livro cujo autor é presidente de uma grande

agência publicitária, e esse romance tenta trazer respostas às perguntas que os franceses

se fazem, em um período conturbado. Longe de ser fatalista, o romance propõe as

soluções para curar os franceses de suas fobias. A partir do título, podemos fazer várias

inferências como, por exemplo, de qual sociedade estamos falando? Percebemos que a

violência nas ruas pode aproximar culturas de forma determinante, por se tratar de um

tema comum vivenciado por muitos povos. Logo, aquela imagem de que o país do

“outro” é o lugar ideal por ser tranquilo pode começar a se desfazer a partir da leitura de

um excerto como esse. Ao fazer tal leitura, o aprendiz tem a oportunidade de descobrir

que o costume de ficar conversando com os vizinhos na calçada é o mesmo dos tempos

em que as noites eram seguras. Esse costume não é mais percebido nos dias de hoje,

posto que tal hábito cedeu seu lugar ao medo de quem vive nas cidades, como nas

páginas do romance de Christophe Lambert.

Pela leitura do excerto, percebe-se que, para escapar da violência em suas mais

variadas formas, os comportamentos dos sujeitos parecem ser os mesmos tanto na

cultura do aprendiz, quanto na cultura da língua alvo. O texto mostra que, em tempos

passados, nas cidades do interior da França, as pessoas tinham o costume de esperar a

P á g i n a | 1002

noite chegar para ficarem, nas calçadas, conversando com os vizinhos. Essa prática

também era costume nosso. No entanto, nos dias atuais, as pessoas estão mais reclusas

em suas casas, esperando o jornal das 20h para, no dia seguinte, comentar as notícias

com os vizinhos. Após o jornal, assistem à série que é exibida semanalmente e cujo

episódio também é tema das conversas no dia seguinte. A internet, igualmente, parece

ser responsável pelo isolamento das pessoas. Esse tema está tão próximo de nossa

realidade, que o aprendiz é facilmente conduzido a fazer as suas comparações, baseado

em nossa sociedade, fazendo-se a ressalva de que, no Brasil, a diferença está apenas no

fato de que, depois do jornal, não há uma série semanal, mas uma telenovela que,

segundo muitos estudos sociológicos, é um elemento da cultura e da identidade

brasileira, uma vez que o espectador se identifica com as personagens das telenovelas

que, por essa razão, é um gênero muito popular no Brasil.

Como podemos ver, uma proposta de atividade a partir do TL além de aproximar

os aprendizes da outra cultura, pode mostrar o quanto há de aproximações e como os

problemas vivenciados em uma sociedade também são vivenciados pela outra. Isso

reforça as trocas interculturais, mostrando que o intercultural pode, por certo, ser o

encontro com o outro.

Quanto à proposta de atividade, sugerida no LD Métro Saint-Michel 2, há duas

questões: uma, de interpretação de texto voltada para as causas do isolamento das

pessoas; e, a outra, em que se pede a opinião do aprendiz-leitor quanto ao uso da rede

mundial de computadores. Como sugestão, acrescentaríamos ainda as seguintes

questões: a) Você acredita que existe alguma semelhança entre o comportamento dos

franceses e o dos brasileiros, no que diz respeito ao medo da violência? Para responder a

esse questionamento, o aprendiz precisa descrever ou fazer uma comparação entre os

programas de TV que os brasileiros assistem e também elencar os motivos que tiram as

pessoas das ruas à noite. Assim, consequentemente, terá a oportunidade de se expressar

na língua alvo; b) O uso da internet aproxima ou isola as pessoas?

Sob nossa ótica, essas atividades podem auxiliar no desenvolvimento dos

aprendizes e promover a interação entre eles, tornando o ambiente da sala de aula bem

mais dinâmico. Isso se torna possível porque o grupo tem a oportunidade de se

expressar na língua alvo expondo suas ideias sobre um tema tão atual.

5. Considerações finais

Ainda hoje, parece existir certo tabu ao se usar o texto literário como ferramenta

para o ensino de FLE. Talvez a falta de experiência ou uma escolha inadequada do texto

deixem o professor inseguro ao utilizá-lo em sala de aula.

Embora seja um caminho lúdico para a aprendizagem da língua e da cultura,

confirma-se que propor TL nos LD parece ser uma atividade muito complexa, e por esse

motivo, os autores dos LD ainda parecem negligenciar o uso do TL para o ensino de

FLE, provavelmente, diante do fato de a obra literária demandar competências múltiplas

e leituras variadas, tais como a contextualização da obra, vocabulário para decodificar e

ajudar na construção de um sentido para o texto, além da habilidade do professor para

conduzir a aula.

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P á g i n a | 1003

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P á g i n a | 1005

VARIABILIDADE NA PRONÚNCIA DO INGLÊS BRASILEIRO E EFEITOS

NA INTELIGIBLIDADE

Neide Cesar Cruz (UFCG)

Resumo: Aspectos da pronúncia que caracterizam o protótipo do inglês brasileiro têm

sido apresentados na literatura há décadas, em estudos desenvolvidos por Mascherpe

(1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993), Rebello (1997) e Baptista (2001). Esses

aspectos, reconhecidos com sendo previstos, estão agrupados em cinco categorias: (1)

acentuação de palavras; (2) consoantes; (3) vogais; (4) inserção de vogais; e (5)

interferência da grafia. Devido à variabilidade linguística, a previsibilidade desses

aspectos é questionada na presente pesquisa, que apresenta dois objetivos: (1) identificar

aspectos da pronúncia do inglês na fala espontânea de aprendizes brasileiros não

previstos na literatura; e (2) investigar como esses aspectos afetam a inteligibilidade da

fala desses aprendizes para ouvintes britânicos. Dados coletados para um estudo anterior

(CRUZ, 2006) foram revisitados. A coleta de dados para o referido estudo ocorreu com

dois grupos de participantes. O primeiro envolveu 10 aprendizes brasileiros

participantes dos cursos extracurriculares da UFSC, que foram entrevistados. Trinta

amostras contendo aspectos de pronúncia que caracterizam o protótipo do inglês

brasileiro previstos na literatura produzidas pelos aprendizes foram selecionadas e

apresentadas ao segundo grupo de participantes: vinte e cinco ouvintes britânicos não

familiarizados com o falar em inglês dos brasileiros. Os ouvintes foram solicitados a

ouvir cada amostra uma vez e a escrever o que tinham ouvido. A fim de alcançar os

objetivos propostos para a presente pesquisa, as trinta amostras produzidas pelos

aprendizes brasileiros e os dados dos ouvintes foram revisitados. Os resultados revelam

que o protótipo do inglês brasileiro apresenta mais variações do que é sugerido na

literatura, e que os aspectos não previstos podem afetar a inteligibilidade da fala dos

aprendizes brasileiros para ouvintes britânicos.

Palavras-chave: Pronúncia; Aprendizes brasileiros; Inteligibilidade.

1. Introdução

Uma vez que variabilidade é inerente à linguagem humana, é impossível estudar

uma língua sem considerar a variabilidade linguística (REPPEN et al., 2002).

Variabilidade pode ocorrer no nível gramatical, morfológico e fonológico.

Variação no nível fonológico refere-se ao sotaque. Um sotaque estrangeiro é uma

variação na pronúncia de um falante não nativo de uma língua estrangeira. Falantes

brasileiros de inglês, por exemplo, apresentam variação na pronúncia, e essa variação

revela o protótipo do inglês brasileiro ou o sotaque brasileiro.

Características desse sotaque têm sido descritas na literatura há décadas, em

estudos desenvolvidos por Mascherpe (1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993),

Rebello (1997) e Baptista (2001). Elas são, portanto, previsíveis.

Em estudo anterior (CRUZ, 2006), essas características previsíveis foram

identificadas na fala espontânea de aprendizes brasileiros de inglês, e os seus efeitos na

inteligibilidade foram investigados. Considerando a variabilidade linguística,

questionamos a previsibilidade dessas características de pronúncia, e decidimos revisitar

os dados dos aprendizes brasileiros do estudo anterior, a fim de identificar

P á g i n a | 1006

características de pronúncia não previstas na literatura e os seus efeitos na

inteligibilidade da pronúncia de aprendizes brasileiros para ouvintes britânicos. Este

estudo, portanto, apresenta dois objetivos: (1) identificar características de pronúncia na

fala espontânea de aprendizes brasileiros de inglês não previstas na literatura69

; e (2)

investigar quais dessas características afetam a inteligibilidade da fala dos aprendizes

brasileiros de inglês para ouvintes britânicos70

.

2. Coleta de dados

Como os dados coletados para o estudo anterior foram revisitados, uma

descrição dessa coleta é apresentada aqui.

A coleta ocorreu em duas etapas. Na primeira, dez aprendizes brasileiros de

inglês matriculados nos cursos Extracurriculares da UFSC (Universidade Federal de

Santa Catarina),71 foram entrevistados por um falante nativo da língua inglesa de

origem britânica. O nível de proficiência dos aprendizes variou entre o nível 5

(correspondendo ao intermediário) e o nível 8 (equivalente ao pós intermediário), e as

idades variaram entre 18 e 24 anos. Nenhum deles tinha tido experiência com a língua

inglesa no exterior. Portanto, todo o conhecimento de inglês dos participantes, bem

como a pronúncia dos mesmos, tinha sido adquirido no Brasil.

Trinta amostras contendo características do protótipo do inglês brasileiro, e não

contendo desvios no nível gramatical e lexical, uma vez que inadequações lexicais e

gramaticais também podem interferir na inteligibilidade (TOMYIAMA, 1980; WANG,

1987), foram selecionadas das entrevistas, através de edição no programa Cool Edit. Em

seguida, foram transferidas para um CD áudio, e apresentadas em um aparelho de CD

para o grupo de ouvintes, que participou da segunda etapa da coleta de dados.

A segunda etapa incluiu vinte e cinco ouvintes nativos do inglês, residentes em

Birmingham, Inglaterra, não familiarizados com o falar em inglês dos brasileiros. A

idade dos ouvintes variou entre 20 e 65 anos, sendo 11 do sexo feminino e 14 do sexo

masculino. Nenhum deles tinha profissão relacionada ao ensino de línguas e linguística.

Através de respostas dadas a um questionário, a falta de familiaridade dos ouvintes com

o falar em inglês dos brasileiros foi confirmada, uma vez que brasileiros não foram

incluídos entre os falantes de inglês que todos os ouvintes informaram ter contato.

Portugueses também foram excluídos. Os ouvintes relataram que tinham contato

principalmente com asiáticos e europeus falantes de inglês.

Os nativos ouviram cada amostra uma vez, já que inteligibilidade é considerada

aqui como sendo a primeira impressão, e foram solicitados a: (1) avaliar o grau de

inteligibilidade das amostras em uma escala de 1 a 6, onde 1= impossível de entender e

6 = muito fácil de entender; e (2) escrever as amostras.

69

Este objetivo foi motivado por um questionamento feito durante o debate do Simpósio “Fonética,

Fonologia e ensino de línguas”, realizado no IX CBLA, Rio de Janeiro, 2010, após a apresentação do meu

trabalho intitulado “Inteligibilidade de pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês”. 70

A possível razão que justifica a ocorrência das características de pronúncia não é discutida neste estudo.

Meu principal interesse é a identificação dessas características e até onde a ocorrência das mesmas na

pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês afeta a inteligibilidade da fala desses aprendizes para

ouvintes britânicos.

71Cursos extracurriculares são cursos livres de línguas oferecidos pela UFSC. Cada nível do curso tem a

duração de um semestre, e inclui três horas de aulas semanais.

P á g i n a | 1007

Para o presente estudo, a fim de responder ao primeiro objetivo, as trinta

amostras selecionadas da fala dos brasileiros foram revisitadas; a fim de responder ao

segundo objetivo, os dados dos ouvintes concernentes a segunda atividade foram

revisitados.

3. Características de pronúncia previstas na literatura

A fim de identificar as características de pronúncia previstas na literatura nas

trinta amostras selecionadas, adotamos como guia os fonemas do inglês que são

considerados difíceis para aprendizes brasileiros produzirem, e os sons que esses

aprendizes pronunciam devido a essas dificuldades. Esses sons são identificados em

cinco estudos: Mascherpe (1970), Lessa (1985), Lieff e Nunes (1993), Rebello (1997), e

Baptista (2001). As características de pronúncia previstas foram agrupadas em cinco

categorias: (1) acentuação de palavras; (2) produção de consoantes; (3) produção de

vogais; (4) inserção de vogal; e (5) interferência da grafia. A seguir, apresentamos um

sumário dessas características.

(1) Acentuação de palavras

A palavra comfortable tende a ser pronunciada com o acento primário na sílaba ‘-ta’

(LIEFF; NUNES, 1993).

(2) Consoantes

// e // são pronunciados com uma articulação dental (MASCHERPE, 1970).

A fricativa dental desvozeada // tende a ser produzida como //, // ou //, e a

fricativa dental vozeada // como //, // ou // (MASCHERPE, 1970; LIEFF;

NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).

As nasais //, // e // podem ser omitidas em posição final de sílaba e de vocábulo,

causando a nasalização da vogal que precede (MASCHERPE, 1970; BAPTISTA,

2001).

(3) Vogais

As vogais anteriores // e // podem ser pronunciadas como //, e // e // como //

(MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).

As vogais posteriores // e // tendem a ser pronunciadas como //, e // e //

como // (MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).

A vogal central // pode ser difícil de pronunciar, especificamente na fala

espontânea (LIEFF; NUNES, 1993).

(4) Inserção de vogal

A vogal [] tende a ser adicionada em posição final de palavras depois das oclusivas,

das fricativas //, //, // e //, e das africadas // e //. [] ou [] podem ser

P á g i n a | 1008

inseridos no início de grupos consonantais com // (MASCHERPE, 1970; LIEFF;

NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).

Sonorização da fricativa // pode ocorrer no início de grupo consonantal com //

(REBELLO, 1997).

(5) Interferência da grafia

A lateral velar [], quando em final de sílaba ou de palavra, tende a ser substituída pela

semi-vogal [] (MASCHERPE, 1970; LESSA, 1985), ou pela vogal [] (BAPTISTA,

2001).

A terminação < ed > do passado pode ser pronunciada como [], [] ou como

[] (LESSA, 1985; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001).

4. Características de pronúncia não previstas na literatura e seus efeitos na

inteligibilidade

Entre as 30 amostras selecionadas, 14 contêm características de pronúncia não

previstas na literatura, e foram divididas em dois grupos: (1) características inseridas

nas três das categorias mencionadas na seção anterior, denominadas sistemáticas; e (2)

características que não pertencem a nenhuma das categorias mencionadas, denominadas

não sistemáticas.

Características sistemáticas

As características sistemáticas não previstas são inseridas em 3 categorias: (1)

acentuação de palavras; (2) produção de vogais, especificamente schwa; e (3) inserção

de vogal. Cada uma será apresentada separadamente e seus efeitos na inteligibilidade

descritos.

(1) Acentuação de palavra

Entre os cinco estudos mencionados anteriormente, apenas o de Lieff e Nunes

(1993), identificam acentuação de palavras. As autoras mostram desvio do acento

primário, que deveria ser produzido na primeira sílaba, como na palavra comfortable, e

tende a ser pronunciado por brasileiros com o acento na sílaba ‘ta’.

Além da ocorrência desse desvio de acentuação previsto, em palavras como

vegetables, interesting e hamburger (CRUZ, 2006), dois outros foram encontrados: (1)

acento na primeira sílaba ao invés da segunda; e (2) acento na primeira ao invés da

terceira sílaba. Exemplos do primeiro caso incluem terrific [ki], e do

segundo university [junivsiti].

Efeito na inteligibilidade

P á g i n a | 1009

Ambos terrific [ki] e university [junivsiti] foram

compreendidos incorrretamente.

Terrific, foi escrito de 7 formas: terrible (3 vezes); stuck (uma vez); stealth (4

vezes); itself (uma vez); terrifying (uma vez); dark (uma vez) e stark (uma vez). Um

total de 12 ouvintes escreveu terrific diferentemente. Duas transcrições ortográficas dos

ouvintes são “in the winter, it’s terrible” e “in the winter it’s dark”.

University, com acento na primeira sílaba ao invés da terceira, foi entendido de 2

maneiras: useless e universe, uma vez cada.

(2) Produção da vogal schwa //

Como mencionado por Lieff e Nunes (1993), aprendizes brasileiros têm

dificuldades em produzir o schwa, especificamente na fala conectada. Essas autoras, no

entanto, não especificam o contexto específico em que essas dificuldades podem

ocorrer. Nas amostras revisitadas, a pronúncia da vogal schwa dos aprendizes

brasileiros está relacionada principalmente à pronúncia de formas fracas de palavras

gramaticais onde fonemas diferentes são produzidos ao invés de //. Exemplos

incluem: (1) a vogal [], em at //, pronunciado como [], e em and //,

produzido como []; (2) a vogal [], nas produções do artigo definido the //,

produzido como []; e (3) a vogal [] em a //, pronunciado como [].

Efeito na inteligibilidade

O único caso identificado como tendo interferido na inteligibilidade ocorreu em

and, que imediatamente segue o vocábulo sit, em “just sit and talk with friends”,

pronunciado com a vogal [] ao invés de schwa. Cinco ouvintes escreveram sitting ao

invés de sit and. Uma vez que a pronúncia inapropriada prevista na literatura da vogal

[] em sit (MASCHERPE, 1970; LIEFF; NUNES, 1993; BAPTISTA, 2001) não causou

incompreensão, esses ouvintes podem ter sido influenciados pela produção da vogal em

and, já que sitting, comparado a sit, tem uma sílaba extra.

(3) Inserção de vogal

A adição da vogal [] em posição final de vocábulo após as oclusivas vozeadas e

desvozeadas, as fricativas //, //, // e //, e as africadas // e // é o único caso

identificado nos estudos realizados por Mascherpe (1970) e Baptista (2001),

mencionados anteriormente.

Nas trinta amostras revisitadas, além da vogal [], prevista na literatura, dois

outros casos foram identificados: (1) a adição de outras duas vogais em posição final de

vocábulo; e (2) uma ocorrência de assimilação, onde a fricativa desvozeada // no grupo

consonantal // em posição inicial de vocábulo é pronunciada como vozeada. Uma das

P á g i n a | 1010

vogais inseridas é [], adicionada em posição final de vocábulo após as oclusivas

alveolares // e //. Exemplos incluem great [gi], com inserção de vogal após //,

e food [fu] com a vogal [] adicionada após []. A outra vogal é referida como a

vogal reduzida [], adicionada após a oclusiva velar [] em [wk

i].

Quanto à ocorrência de assimilação, onde a fricativa desvozeada //, no grupo

consonantal // em posição inicial de vocábulo é pronunciada como vozeada, como

em smallest [st], há uma diferença do que é previsto na literatura. De acordo

com Rebello (1997), como mencionado anteriormente, a sonorização da fricativa // em

início de grupo consonantal // com //, // ou // tende a ocorrer se a vogal é inserida.

Nos dados deste estudo, como também em Rauber (2002) e Cornelian Jr. (2003),

nenhuma vogal é inserida neste grupo consonantal, mas a sonorização da fricativa //

ocorre: smallest [st].

Efeito na inteligibilidade

Incompreensões ocorreram com a inserção de [] em great [gi] e food

[fu], e com a sonorização da fricativa // em smallest [st]. A inserção da

vogal reduzida [] não causou problema de inteligibilidade.

Great, foi escrito como greatest por três ouvintes, e grateful por um ouvinte. A

inserção de schwa é interpretada aqui como tendo influenciado a percepção dos ouvintes

por duas razões: (1) uma sílaba é adicionada a great; e (2) essa sílaba contém schwa:

greatest //, e grateful //. As transcrições ortográficas dos ouvintes

são “our greatest pollution of rivers” e “I’m grateful to”.

Food pronunciado como [fu] foi mal compreendido por dezenove ouvintes:

oito escreveram diferentemente da palavra pretendida pelo aprendiz, e onze deixaram o

espaço em branco. Algumas das transcrições dos ouvintes não têm nenhum sentido:

“you book holiday” e “you took him up all day”.

Smallest, foi escrito das seguintes formas por cinco ouvintes: (1) “I think that

there’s more than through you”; (2) I think it is more of a cattle group”; (3) “I think that

there’s more, there’s cattle”; e (4) “I think it’s the – more in the capital Brazil”.

Reconhecemos a dificuldade em identificar as palavras que foram escritas em

lugar de smallest. No entanto, uma comparação entre as transcrições fonéticas de “the

smallest” e das palavras “there’s more” nas transcrições (1) e (3) sugere uma provável

interpretação. As transcrições são as seguintes:

“the smallest” [] “there’s more” //

Considerando as sequências de sons em negrito em the smallest e aquelas na

transcrição dos ouvintes, dois aspectos são identificados: (1) sons semelhantes, tais

como [] estão na mesma ordem; e (2) a fricativa vozeada [] ocorre em ambas as

transcrições. Os ouvintes, portanto, podem ter ouvido essa fricativa, e,

consequentemente, escreveram as sequências de palavras que fizeram sentido para eles.

Quanto à (4), o ouvinte escreveu “it’s the – more”, um traço escrito entre the e more.

Uma vez que more pode ser considerado como correspondendo aos sons [] de

smallest, esse traço pode provavelmente indicar a dificuldade do ouvinte em entender a

fricativa vozeada. Em (2), o ouvinte escreveu it is more; a única interpretação possível é

P á g i n a | 1011

que, assim como em (4), more pode também ser considerado como correspondendo aos

sons [] de smallest, indicando a dificuldade do ouvinte em entender a fricativa

vozeada.

Características não sistemáticas

As características não sistemáticas são agrupadas em duas categorias: (1) o

vocábulo culture; e (2) sinal de hesitação. As categorias e seus efeitos na inteligibilidade

são descritos separadamente.

(1) O vocábulo culture

Entre as 14 amostras contendo características de pronúncia não previstas na

literatura, quatro contêm o vocábulo culture, pronunciado por quarto participantes

diferentes das seguintes formas:

(1) [kjutS];

(2) [ju]

(3) [kjut]

(4) [jut]

Uma semelhança na pronúncia da primeira sílaba cul pode ser identificada nas

quatro produções: a pronúncia de [] ao invés de / /. Esse tipo de pronúncia pode

sugerir que houve interferência da grafia, isto é, as letras < ul > sendo pronunciadas

como []. No entanto, a ocorrência nos dados do vocábulo agriculture, em que as

letras < ul > são pronunciadas como [], [a], pode ser considerada

como uma ocorrência que não valida a inclusão de [] como sendo interferência da

grafia. A inclusão em uma categoria da forma como o vocábulo culture foi pronunciado

é, portanto, difícil de ocorrer.

Efeito na inteligibilidade

Nenhum dos ouvintes foi capaz de compreender culture corretamente. A maioria

ficou surpresa quando foi informada que o vocábulo era culture, e reconheceu a

dificuldade em compreendê-lo.

Culture, na amostra “I say sometimes that I don’t have culture”, foi escrito de

três formas diferentes: (1) future por 19 ouvintes; (2) children por três; e (3) chew por

um ouvinte. Dois ouvintes deixaram o espaço em branco. Quatro exemplos de

transcrições incluem: (1) “I think sometimes that I don’t have a future”; (2) “I say

sometimes I don’t have a future”; (3) “It seems sometimes I don’t like children”; e (4) “I

think sometimes I don’t like to chew”.

P á g i n a | 1012

Na amostra “we learn about the other culture” culture foi escrito de oito formas

distintas. Um total de nove ouvintes escreveu o vocábulo children, em transcrições tais

como “we learn about the other children”. Oito deixaram o espaço em branco, e os oito

restantes escreveram uma palavra diferente. Quatro delas - catering, tutor, tutoring e

countries – fazem parte do léxico do inglês. Dois exemplos incluem: (1) “we learn

about the other countries and now”; e (2) “we learn about the order of catering and

now”.

As quatro restantes – cutarian, cuterin, ater terain, e cuter – não existem no

léxico da língua inglesa. Quando solicitados a explicar o significado dessas palavras, os

ouvintes não souberam explicar e informaram que escreveram o que tinham ouvido.

Na amostra “it’s not bringing a lot of culture to people”, dez ouvintes deixaram o

espaço em branco. Os quinze restantes escreveram palavras diferentes: (1) cute port três

ouvintes, como em “it’s not really a lot of cute people”; (2) future, queues e kill por dois

ouvintes cada, como em “it’s not a law to kill people”; e (3) cue, children, clear, cuta e

cutar por um ouvinte cada. As duas últimas palavras não fazem parte do léxico da língua

inglesa, e as transcrições, como em “bring a lot of cuta to people”, não fazem sentido.

Finalmente, na amostra “Na Itália a cultura romana” onze ouvintes deixaram o

espaço em branco. Os quatorze restantes escreveram palavras diferentes: (1) queue,

como em “In Italy the Roman queue to …”; e (2) use them, queued, came, kill me, like

you, cuter, children, queues, kill them, e queu (não existentes). Dois exemplos incluem:

(1) “In Italy they run like you”; e (2) “In Italy the women are cuter”.

É possível perceber que as formas como os aprendizes brasileiros participantes

pronunciaram o vocábulo culture fizeram tal vocábulo ininteligível para todos os

ouvintes.

(2) Sinal de hesitação

O sinal de hesitação identificado referre-se à eh72

, pronunciado por quarto

participantes diferentes. Esse sinal foi percebido e interpretado como sendo semelhante

à hesitação em português produzida por falantes brasileiros em interações. Isso pode ser

confirmado através de dados de fala espontânea envolvendo brasileiros apresentados em

Marcuschi (1986).

Transcrições de fala espontânea autêntica de falantes de inglês de partes

diferentes da Grã Bretanha apresentadas em Cauldwell (2002), incluem er, erm, e em

como sinais de hesitação. O eh pronunciado por aprendizes brasileiros, e que foi

percebido como sendo semelhante ao sinal de hesitação do português, é transcrito

foneticamente como [], e como []. Tais tipos de pronúncia são claramente

diferentes de er, erm em identificadas em Cauldwell (2002); er sendo a única

apresentada em transcrições que seguem RP e GA: [], sendo referente ao RP, e [],

ao GA. Apesar desse sinal de hesitação ser uma característica de fala espontânea, é

discutido e incluído aqui com uma característica de pronúncia não prevista, uma vez que

diverge da norma usada como referência aqui, RP e GA, e é um fator indicado em

inteligibilidade.

72

A transcrição ortográfica eh segue as notações sugeridas por Marcuschi (1986).

P á g i n a | 1013

Efeito na inteligibilidade

Na amostra “meat eh fish vegetables”, o sinal de hesitação eh não foi transcrito

por nenhum ouvinte. No entanto, uma vez que esse sinal segue imediatamente o

vocábulo meat, já que nenhuma pausa é identificada entre eh e meat, e tal palavra foi

escrita diferentemente por 16 ouvintes, [] provavelmente interferiu a percepção dos

mesmos. Isso pode ser corroborado pelo comentário feito pelo ouvinte 23, a seguir: “I

didn’t really understand meat as such. I didn’t. but then he said fish. and then I

thought … oh, he must have said meat first, because I linked, because it sounded like a

list erm and then he said vegetables, so the meat part wasn’t very clear. that word

wasn’t very clear. but I guessed. and it sounded it was an i sound”

Esse ouvinte explica que realmente não entendeu meat, e que meat não foi muito

claro, mas ela percebeu o som [i]. Uma vez que esse som foi percebido em meat, é

possível inferior que a pronúncia do sinal de hesitação serviu como um obstáculo para

essa ouvinte reconhecer meat corretamente.

Na amostra “eh we don’t have time to read”, o sinal de hesitação pronunciado

como [] foi escrito como and por seis ouvintes, e como ah por dois. Duas das

transcrições ortográficas são “and we don’t have time to read” e “ah we don’t have time

to read”. O sinal [], portanto, foi escrito tanto como and quanto como ah.

5. Considerações finais

Os resultados deste estudo revelam que o protótipo do sotaque brasileiro

apresenta mais variabilidade do que tem sido sugerido na literatura, e que os aspectos de

pronúncia não previstos que caracterizam essa variabilidade podem afetar a

inteligibilidade da pronúncia de aprendizes brasileiros de inglês para ouvintes

britânicos. Esses aspectos de pronúncia não previstos são denominados aqui como

sistemáticos e não sistemáticos. Os sistemáticos incluem: (1) acentuação de palavras na

primeira sílaba ao invés da segunda e da terceira; (2) ausência de schwa // em formas

fracas de palavras gramaticais; e (3) vogais [] e [] inseridas em posição final de

vocábulos e sonorização da fricativa // no grupo consonantal //. As características

não sistemáticas compreendem: (1) a pronúncia do vocábulo culture; e (2) a pronúncia

de sinais de hesitação. Com base nos resultados encontrados neste estudo, sugerimos

que as características não previstas devem ser focalizadas no ensino da pronúncia do

inglês para brasileiros, já que elas podem interferir na inteligibilidade.

Este estudo apresenta limitações quanto ao tipo de características de pronúncia

investigadas. Devido ao tipo de dados elicitados, fala espontânea ao invés de leitura em

voz alta, foi impossível selecionar das entrevistas um maior número de amostras sem

conter inadequações gramaticais e lexicais (ver coleta de dados), e obter dados que

poderiam revelar outros tipos de características não previstas. Sugerimos que outros

estudos incluindo dados de fala de aprendizes brasileiros podem auxiliar a caracterizar

aspectos do protótipo do inglês brasileiro que não foram revelados na literatura até o

momento.

O presente estudo também é limitado quanto ao tipo de ouvintes participantes:

britânicos, não familiarizados com a forma que brasileiros pronunciam vocábulos em

inglês. Devido a essa limitação, sugerimos que outros estudos envolvendo ouvintes

P á g i n a | 1014

diferentes podem revelar se as características de pronúncia não previstas na literatura

que foram mal compreendidas neste estudo podem ser ininteligíveis para outros grupos

de ouvintes.

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