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Ver é dar a luz a algum tesouro Parece a entrada de algum brinquedo de parque de diversões. É tudo escuro – então deve ser de terror. Entro com o segundo grupo, o primeiro, ao sair, reclama que fomos muito barulhentos. Levamos, então, todo esse nosso barulho para dentro. Entramos já passando por cima de um tesouro – quantos serão os tesouros que perdemos por não conseguir aquietar às vezes? Raul: “das mensagens que nos chegam sem parar, ninguém há de notar, estão muito ocupados...” É difícil achar os tesouros, temos só uma pequena lanterna e ela se move muito rapidamente. Nos foi sugerido que permanecêssemos sempre juntos em grupo. Três minutos lá dentro e já estávamos cada um por si. – Achei um tesouro!. Dizia alguém animado. – Esse nós já achamos. Respondia um outro, frustrado. Já incrédulos da existência de tantos tesouros naquele espaço, mais barulhentos do que entramos, conseguimos achar os últimos quadros. Saímos vitoriosos apressadamente. Ao abrir a porta, a luz que parecia fazer tanta falta lá dentro, cegou a todos lá fora. “Antes de existir a voz, existia o silêncio” Estamos divididos em grupos pequenos, de quatro pessoas mais ou menos. Cada grupo tem seu instrutor, que nos comunica que serão três etapas quando entrarmos dentro do espaço. É enfatizado que o silêncio deve estar presente ao longo de todas elas. Nos é dito que ao entrarmos veremos instrumentos musicais e em algum momento iremos testar suas possibilidades e improvisar com ele. Também é dito que em uma etapa vindoura, essa improvisação individual seria organizada em uma composição coletiva. – Porque será que temos que formalizar uma vivência sempre? Penso eu. Entramos no espaço. Ele não é muito claro, tem muitas penumbras, mas é possível se deslocar nele sem ajuda de lanterna, e é também possível reconhecer os objetos presentes nele. Não encontro nenhum instrumento

Textos a Partir Da Vivencia Dos 5 Sentidos (Turma D2015)

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Textos escritos para uma devolução à prática desenvolvida pelos grupos da Turma D2015, do Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo.

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Ver é dar a luz a algum tesouro

Parece a entrada de algum brinquedo de parque de diversões. É tudo escuro – então deve ser de terror. Entro com o segundo grupo, o primeiro, ao sair, reclama que fomos muito barulhentos. Levamos, então, todo esse nosso barulho para dentro. Entramos já passando por cima de um tesouro – quantos serão os tesouros que perdemos por não conseguir aquietar às vezes? Raul: “das mensagens que nos chegam sem parar, ninguém há de notar, estão muito ocupados...”

É difícil achar os tesouros, temos só uma pequena lanterna e ela se move muito rapidamente. Nos foi sugerido que permanecêssemos sempre juntos em grupo. Três minutos lá dentro e já estávamos cada um por si. – Achei um tesouro!. Dizia alguém animado. – Esse nós já achamos. Respondia um outro, frustrado.

Já incrédulos da existência de tantos tesouros naquele espaço, mais barulhentos do que entramos, conseguimos achar os últimos quadros. Saímos vitoriosos apressadamente. Ao abrir a porta, a luz que parecia fazer tanta falta lá dentro, cegou a todos lá fora.

“Antes de existir a voz, existia o silêncio”

Estamos divididos em grupos pequenos, de quatro pessoas mais ou menos. Cada grupo tem seu instrutor, que nos comunica que serão três etapas quando entrarmos dentro do espaço. É enfatizado que o silêncio deve estar presente ao longo de todas elas. Nos é dito que ao entrarmos veremos instrumentos musicais e em algum momento iremos testar suas possibilidades e improvisar com ele. Também é dito que em uma etapa vindoura, essa improvisação individual seria organizada em uma composição coletiva. – Porque será que temos que formalizar uma vivência sempre? Penso eu.

Entramos no espaço. Ele não é muito claro, tem muitas penumbras, mas é possível se deslocar nele sem ajuda de lanterna, e é também possível reconhecer os objetos presentes nele. Não encontro nenhum instrumento musical, e sim jornais impressos. – Jornais? Ah, são instrumentos do Tom Zé....

Sentamos em uma pequena roda em volta de uma dessas pilhas de jornal. Nosso instrutor pega uma folha com muito cuidado para não fazer nenhum barulho nessa ação. A folha faz um pequeno ruído e nosso instrutor lamenta. Seguimos a ação dele e cuidadosamente pegamos uma folha de jornal para cada um. É soado um sinal de sino (redundância interessante: “sinal de sino”).

Começamos a explorar sons com o papel. Não aparecem muitas possibilidades: estico e amasso, esfrego a folha usando as mãos, por fim, tento assoprar o papel tentando conseguir algum som, lembrando de Tom Zé e o que ele faz com uma folha de fícus. Obviamente, não consigo um som nem parecido com o da folha da árvore executado pelo compositor, aliás, não consigo quase nenhum som.

Mais alguns testes e ouvimos mais um sinal. Os instrutores ficam de pé, nós também, forma-se uma grande roda. É dada mais uma instrução, que mostrássemos uma após o outro na roda, os sons que descobrimos na relação com a folha de jornal. Estava no final da roda, portanto ia repetidamente ia vendo

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as possibilidades que tinha descoberto no “instrumento” já aparecendo com os outros colegas. Quando chega minha vez, decido improvisar algo que ainda não tinha feito, começo a rasgar vagarosamente o papel. Talvez procurando por sons em volumes mais baixos, já que a tendência estava sendo procurar por sons de volume alto.

Terminada essa rodada, vem uma instrução de compor uma música com alguns elementos que surgiram na roda. Quatro elementos são escolhidos, a instrutora sugere uma ordem para eles. Concordamos e tentamos tocar todos juntos essa música. Uma vivência para os ouvidos? Uma aula introdutória de percepção musical? Uma prática de improvisação com limites específicos? Uma dinâmica para crianças? Interrogações.

Olfato: memória de algum lugar

Estamos com os olhos fechados, sentados em um semi-círculo. Nos foi dito que aromas passarão ali por nossos narizes, e enquanto isso um texto será lido em voz alta. Ao invés de tentar decifrar os cheiros, é pedido que nos deixemos levar para os lugares que eles nos levam, novos, ou perdidos nos cantos da memória. Estou ansioso.

Sinto passar por mim um primeiro aroma. O texto também começa a soar, e vai me parecendo um texto do Discovery Channel, com um locutor bem peculiar. É inevitável não tentar adivinhar o cheiro e é bem difícil manter os olhos fechados e não ceder à vontade de ver o que se tem à sua frente. Mas tento resistir a essas tentações e começo a ser levado embora por alguns cheiros, ou melhor, trazido muito para dentro de mim.

Acho que era um cheiro de banheiro que me lembrou muito uma sensação de estar na minha antiga escola. Sinto também o aroma de alguns temperos que passei a conhecer melhor só mais velho. Vem uma canela que me lembra um bolo que minha mãe sempre faz. Tem chás, café e cigarro. Alguns cheiros entram bem suave nas narinas, alguns entram com tudo, causando algum desconforto.

Entre um cheiro e outro, haviam alguns intervalos. E como estávamos com os olhos fechados, não dava para saber se estava ou não se aproximando algum novo aroma. A sensação que isso criava era de um espaço vazio para o nariz querer cheirar tudo à sua volta com mais intensidade, cuidado e atenção. Deixando mais sutil a ação do olfato, pois queríamos sentir logo se estava vindo algum cheiro novo proposto pelo grupo.

Como é marcante esse sentido. Como nos desperta memórias e sensações. Como é bom fechar os olhos às vezes e sentir o que está ao nosso redor. – “Escolhemos nossos parceiros e parceiras pelo cheiro”. Lembro de ouvir isso da voz do leitor a la Discovery, e também lembro de ter ouvido isso em outros lugares.

Às vezes nosso nariz na vida fica muito tapado. Muita fumaça.

A gente só se toca com o toque

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Entramos já vendados, conduzidos delicadamente por uma pessoa. Ela nos encaminha a um canto do espaço e com um movimento nos sugere sentar. Sentados, esperamos algum tempo. Então, surge um mão e coloca em nossa mão um objeto. A curiosidade faz com que os dedos se apressem em percorrer toda a sua extensão, procurando decifrá-lo e descobrir do que se trata. De tempos em tempos, a mão que trouxe o primeiro objeto, vem trazer um novo para explorarmos. Novamente a mão curiosa diante dos olhos cegos, percorre todo ele.

Passado algum tempo, a mão que trazia objetos novos, traz um que logo reconheço. – Já toquei esse, penso eu. A curiosidade já não se assanha tanto em percorrê-lo e o toque já não se dá com tanta disposição. Seguidamente, os objetos que chegam a minha mão já me são conhecidos. Começo a perder interesse no que estou fazendo, noto que alguns sons pelo espaço indicam que está acontecendo também uma outra atividade. Quero descobrir o que é.

Finalmente, a mão que me trazia os objetos me levanta e me conduz pelo espaço. Descalço, piso em folhas, terra, areia e por fim, pouso meus pés na água. Que diferente levar a exploração do toque agora para os pés. Parece que as mãos estão mais acostumadas a tocar. Os pés ficam mais esquecidos, quando levamos a atenção até eles, que alegria que surge no corpo. Uma euforia da descoberta. Por que não apreciamos mais essa delicadeza do toque com os pés? Só os usamos para ficar de pé e andar? Tem pele no pé, tem poros, tem tato.

Depois dessa caminhada sensível, a pessoa que me conduz, me deita no chão. Logo, sinto outras mãos percorrerem o meu corpo. Minha camiseta é levantada e algum objeto é posto sobre meu umbigo. Este mesmo objeto, de um peso considerável, textura lisa e fria é colocado também em meus braços. Meu corpo se contrai um pouco, é difícil ser tocado. Mas como o corpo gosta do toque. O corpo gosta de se descobrir pelo toque, principalmente do outro. O toque parece fazer despertar coisas que adormeceram em nosso corpo. Tensões, mágoas, grandes alegrias são reveladas (revividas) por um corpo a partir do toque.

Sinto também nesse momento, alguma pressa no ar e corpos se movendo mais apressadamente pelo espaço. Imagino que já estávamos passando do horário da aula. Talvez esse final tenha ficado corrido. Pena. As coisas profundas que nos tocam pedem tempo.

O sabor das coisas

Estamos do lado de fora do teatro. A entrada se dará em pequenos grupos, eu entro com o segundo, vendado, conduzido por outra pessoa. Ela me leva para dentro e após uma pequena caminhada, indica para eu me sentar em uma cadeira. Um tempo se passa, imagino que estão trazendo os outros do meu grupo. É quando uma voz desata a falar. Fala sobre a repetição desgastante de uma rotina com gosto de fast-food. Quando termina, sinto uma mão tocar a minha, me oferecendo um pequeno copo de plástico. Viro o copinho em minha boca, bebo, é cerveja, mas o gosto está esquisito. Sinto o que bebo se espalhar por meu corpo.

Outra voz inicia um discurso. Agora, fala de festas de criança, sabor de brincadeira, brigadeiro, doçura. Recebo outro copinho, viro na boca, bebo, é

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limão espremido, azedo. Me lembro na hora de uma ação que fiz em uma aula de interpretação no terceiro ano da faculdade, em que me propunha dançar a partir do azedo do limão e depois do doce da maçã. Repeti essa ação recentemente quando minha amiga perdeu o pai, nessa ocasião, eu dei um doce para ela comer, enquanto eu comia um limão, no sentido de adoçar um pouco mais a vida dela, nesse momento tão amargo, azedo, que eu iria saborear naquele momento no lugar dela. Aliás, essa amiga era a professora da aula que acabei de contar, não foi à toa que escolhi de novo a brincadeira do limão. MAS, saindo de 2008, voltando à prática do paladar com a turma D2015....

Fiz todo o percurso na memória quando virei aquele copinho. Uma terceira voz começa a falar, eu não lembro muito bem o que ela disse, mas quando virei o copinho que me deram em seguida, senti que não era líquido. Comi alguns salgadinhos Torcida.

A quarta voz soa bem próxima de meus ouvidos – Está falando para mim!, penso eu. Essa voz forte está questionando sobre o sabor de nossa vida, questionando se é amarga, ela pede para eu provar o amargo. Rapidamente sinto em meus lábios uma colher com chocolate. Silêncio.

- O amargo está no doce e o doce está no amargo?- O sabor das coisas pode ser mais legal que o saber das coisas?

Tiram nossas vendas, pedem que nos sentemos ao fundo da plateia e que façamos silêncio. Vemos agora toda nossa trajetória sendo feita por um outro grupo. Nos dá distância da ação – O distanciamento!, alguns dirão. Vejo toda a estrutura da minha vivência. Como se dá a organização dos copinhos, a distribuição das falas. Uma delas, na verdade, era uma leitura. Vejo a reação das pessoas ao provarem o que eu provei. São reações parecidas e também outras reações. A voz que falou ao meu ouvido, falava aos ouvidos de todos. Eu vi a forma que eu tinha vivenciado ser criada diante dos meus olhos, nesse sentido, vi ela desmontada. Vi a composição da coisa.