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1 O currículo de História e a sala de aula da escola pública Thelma C. F. de Oliveira USP/Cnpq [email protected] O sociólogo François Dubet criou um termo que considera não muito bonito, porém adequado para diagnosticar as mudanças na sociedade contemporânea, que é o de desinstitucionalização. Através deste conceito, Dubet (1998) analisa as instituições modernas mais importantes – a família, a religião e a escola – e as transformações nos paradigmas de sua constituição nos tempos atuais. Durante a modernidade, os papéis sociais e institucionais eram bem definidos em torno de um senso de valores tidos como universais e estáveis. No caso da escola, estes valores forjaram dois tipos de instituição: aquela na qual seriam educadas as camadas altas para tornarem-se os cidadãos cultos e de bom nível sócio-econômico, e aquela que formaria a mão-de-obra menos qualificada, cujo trabalho possui menor prestígio social. Esse panorama foi alterado substancialmente a partir da escolarização de massas, quando se passou a perseguir a conformação de uma escola que torne a cultura homogênea, forme a personalidade e o caráter do aluno, assim como o prepare para o mercado de trabalho. Dessa forma, a seleção que antes se fazia previamente, pela possibilidade de cursar um determinado tipo de escola, direcionando as camadas favorecidas para o mundo da cultura e as camadas baixas para o mundo da mão-de-obra desprestigiada, hoje se faz ao longo do percurso escolar. Na busca por melhores condições de competir no mercado de trabalho, acabam por se destacar os alunos de camadas médias e altas, que estão mais próximos da cultura escolar e, portanto, mais aptos a aproveitá-la na sua formação, garantindo a capacidade de atingir uma melhor qualificação profissional. A escola – nos seus conteúdos, métodos, disciplinas e rotinas – se encontra mais próxima desse aluno do que daquele das camadas baixas, para quem os métodos educacionais e alguns conteúdos disciplinares chegam, às vezes, a soar como uma violência 1 . A escola pública não é mais, então, uma instituição, pois não consegue “administrar as relações entre o interior e o exterior, entre o mundo escolar e o mundo juvenil” (DUBET, 1998, p. 28). Os papéis – do aluno, do professor e da escola como instituição – 1 Para o ensino de história, Merchán Iglesias (2005) realiza uma avaliação com base em pesquisas feitas nas escolas espanholas, na qual detecta a aprendizagem da história como um processo de aculturação na escola de massas, pois resulta de uma transmissão do conteúdo da disciplina desconectado de sentido para os alunos, pois em sua maior parte este não apresenta relação com os seus interesses e perspectivas, nem com o acervo cultural que eles possuem.

Thelma C. F. de Oliveira - HISTEDBR · que daquele das camadas baixas, para quem os métodos educacionais e alguns conteúdos disciplinares chegam, às vezes, a soar como uma violência1

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O currículo de História e a sala de aula da escola pública

Thelma C. F. de OliveiraUSP/[email protected]

O sociólogo François Dubet criou um termo que considera não muito bonito, porém

adequado para diagnosticar as mudanças na sociedade contemporânea, que é o de

desinstitucionalização. Através deste conceito, Dubet (1998) analisa as instituições

modernas mais importantes – a família, a religião e a escola – e as transformações nos

paradigmas de sua constituição nos tempos atuais. Durante a modernidade, os papéis

sociais e institucionais eram bem definidos em torno de um senso de valores tidos como

universais e estáveis. No caso da escola, estes valores forjaram dois tipos de instituição:

aquela na qual seriam educadas as camadas altas para tornarem-se os cidadãos cultos e de

bom nível sócio-econômico, e aquela que formaria a mão-de-obra menos qualificada, cujo

trabalho possui menor prestígio social. Esse panorama foi alterado substancialmente a

partir da escolarização de massas, quando se passou a perseguir a conformação de uma

escola que torne a cultura homogênea, forme a personalidade e o caráter do aluno, assim

como o prepare para o mercado de trabalho.

Dessa forma, a seleção que antes se fazia previamente, pela possibilidade de cursar

um determinado tipo de escola, direcionando as camadas favorecidas para o mundo da

cultura e as camadas baixas para o mundo da mão-de-obra desprestigiada, hoje se faz ao

longo do percurso escolar. Na busca por melhores condições de competir no mercado de

trabalho, acabam por se destacar os alunos de camadas médias e altas, que estão mais

próximos da cultura escolar e, portanto, mais aptos a aproveitá-la na sua formação,

garantindo a capacidade de atingir uma melhor qualificação profissional. A escola – nos

seus conteúdos, métodos, disciplinas e rotinas – se encontra mais próxima desse aluno do

que daquele das camadas baixas, para quem os métodos educacionais e alguns conteúdos

disciplinares chegam, às vezes, a soar como uma violência1.

A escola pública não é mais, então, uma instituição, pois não consegue “administrar

as relações entre o interior e o exterior, entre o mundo escolar e o mundo juvenil”

(DUBET, 1998, p. 28). Os papéis – do aluno, do professor e da escola como instituição – 1 Para o ensino de história, Merchán Iglesias (2005) realiza uma avaliação com base em pesquisas feitas nas escolas espanholas, na qual detecta a aprendizagem da história como um processo de aculturação na escola de massas, pois resulta de uma transmissão do conteúdo da disciplina desconectado de sentido para os alunos, pois em sua maior parte este não apresenta relação com os seus interesses e perspectivas, nem com o acervo cultural que eles possuem.

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não oferecem mais guarida, certezas, nem estabilidade. Os papéis hoje são múltiplos e não

há qualquer garantia fixa de uma melhor condição de vida que possa ser conquistada após

a conclusão do tempo escolar ou universitário.

Nesse sentido, para Dubet, a desinstitucionalização é um caminho progressivo

traçado em dois eixos: da escola elementar até a universidade e das camadas sociais altas

até as mais baixas. A escola elementar, tanto pública quanto privada, ainda dá conta de

certa formação básica na alfabetização e socialização de crianças, seguindo seu papel de

instituição. Porém, na medida em que se avança no conhecimento e na idade dos alunos,

mais difícil fica manter o sentido da educação e a motivação para se permanecer na escola

pública. O aluno de camada média e alta segue a sua formação enxergando mais chances

de se colocar profissionalmente através de um diploma universitário. Visão bastante

distanciada da realidade daqueles menos favorecidos que acabam, na sua maioria, por

encontrar o seu modelo de vida em outras atividades não ligadas à educação.

Nesse “contexto social que distribui desigualmente os recursos culturais e sociais”

(DUBET, 1998, p. 29), é notável que a escola pública se encontra dissociada do seu papel

institucional moderno, porém sem encontrar uma nova referência que a oriente. Há, então,

a percepção de uma crise. Contudo, uma crise é sempre estabelecida a partir de uma

situação que seria tida como a ideal. Para Veiga-Neto, essa percepção é sempre relacional,

pois “se notamos que a escola atravessa uma crise é porque há um descompasso entre

como ela está se apresentando (para nós) ou funcionando e como pensamos que ela deve

ser ou como ela foi até pouco tempo atrás” (In: COSTA, 2003, p. 110).

Para o autor, antes de aceitar esta constatação e sair à procura de soluções, é mais

interessante examinar a questão em todas as suas faces e determinar “o percurso histórico

daquilo que está acontecendo, buscando a gênese das situações”. Gênese, no sentido que

Michel Foucault lhe atribui quando trabalha com o conceito de genealogia, não se refere à

origem de algo, mas à trajetória histórica que permeia a sua construção, “isto é, uma forma

de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto,

etc” (FOUCAULT, 1989, p.7).

De certa forma, foi isso que busquei realizar na pesquisa de mestrado em torno do

ensino de História, centrando a análise no currículo dessa disciplina, procurando

compreender as relações que tornam tão complexo o microcosmo presente em uma sala de

aula. Para isso, realizei uma pesquisa de campo qualitativa, baseada na etnografia,

observando as aulas de uma professora de história de uma escola pública da cidade de São

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Paulo, que permitiu que eu assistisse às suas aulas durante o ano de 2006. As observações

aconteceram em duas salas de aula, uma de 5ª e uma de 7ª séries, com conteúdos de

História Geral (Antiga e Moderna, respectivamente). As anotações das observações foram

feitas em um diário de campo e fotografei quatro cadernos de dois alunos de cada série

observada, assim como alguns de seus trabalhos e os planos de ensino da Professora.

Para a compreensão de como o material coletado na pesquisa de campo foi

analisado, voltemos ao tema da dissociação entre a concepção moderna da educação que

ainda prevalece nos discursos educacionais, com o seu sentido emancipatório e libertador,

e a já assinalada disparidade na sua capacidade de produzir uma significação de mundo

para o aluno na contemporaneidade. Estas questões se tornaram muito vivas ao longo das

observações de campo (e já estavam presentes durante a minha atuação como professora de

história) e foram os pontos que orientaram a proposta teórica do trabalho na direção de

uma perspectiva híbrida, que procurou preservar certo horizonte utópico das teorias críticas

do currículo, porém avançando em uma análise que buscou desnaturalizar os sentidos da

educação contemporânea através do pensamento radical realizado pelo pós-estruturalismo.

Essa opção não se distancia do que está posto no campo de pesquisa em Currículo

no Brasil (cf. MOREIRA, 2004), que se vale de análises realizadas por diferentes vertentes

do pensamento contemporâneo, procurando compreender uma realidade que é marcada

também por ser polissêmica e híbrida. Dessa forma, percebe-se que nos estudos recentes

realizados no campo do Currículo existe uma abertura bastante significativa a teorizações

de vertente crítica, “com base neo-marxista e/ou fenomenológica e interacionista”, que

podem associar-se “a princípios de teorias pós-críticas, vinculadas aos discursos pós-

moderno, pós-estrutural e pós-colonial” (LOPES, 2005, p. 51), no que caracteriza o

chamado hibridismo teórico. Nessa perspectiva, há uma tendência a se preservar o

horizonte de mudança social das abordagens críticas, mas com uma ampliação trazida pelo

pensamento pós-crítico, que refina e dilata as fronteiras das possibilidades analíticas de

conceitos como poder, cultura, linguagem. Para Alice Casimiro Lopes, o importante ao

pensarmos em hibridismo teórico é compreender qual é a produtividade dessas

associações. Para a autora:

A análise política em uma perspectiva crítica permite a ancoragem nas idéias de justiça, igualdade e liberdade individual. O pós-estruturalismo permite o entendimento de textos e discursos que transitam na produção das instituições e da cultura, bem como da análise de seus nexos com as relações de poder. Os métodos etnográficos, por sua vez, permitem a investigação dos efeitos das políticas em

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contextos locais, favorecendo situar os discursos em táticas e relações de poder específicas. (LOPES, 2005, p. 56)

Esta definição expressa àquilo que, para muitos que transitam por essas questões

teóricas, é o fundamental. Sem dúvida, a análise pós-estruturalista depura e aprofunda

conceitos, mas ainda não estamos prontos – e tomara nunca estejamos – para abrir mão

completamente das utopias. As relações de poder são capilarizadas, ninguém está fora

delas. Os sentidos estão naturalizados, vivemos como se tudo estivesse desde sempre aí,

sem percebermos o quanto estamos envolvidos em construções históricas da modernidade

que nada tem de natural. Nesse sentido, a opção por uma perspectiva teórica híbrida é,

então, a busca por uma potência analítica que permita historicizar as questões postas no

ensino de História e na área de Currículo, possibilitando obter uma visão desnaturalizada

do tema, seguindo a perspectiva de Thomas Popkewitz (1997; 2002), mas ainda buscando

possibilidades de realizar construções afirmativas em relação à História e o seu ensino.

A partir desses referenciais teóricos, os objetivos da pesquisa giraram em torno de

perceber as relações estabelecidas na prática com o currículo de História para

compreender: como este funciona na sala de aula e através de quais mecanismos; que tipo

de conhecimento se produz através desse currículo e quais são as relações que ele instaura;

como ele funciona nos diferentes níveis em que se estabelece; que silêncios e que discursos

são produzidos através dele (OLIVEIRA, 2008). Para que a análise do material que

resultou da observação abarcasse as questões acima, trabalhei com os dados obtidos na

dissertação realizando o mapeamento das diferentes camadas e trajetórias pelas quais

trafega o currículo de História partindo de sua ponta final, o caderno utilizado pelos alunos,

passando pelo livro didático, pelos discursos da sala de aula e chegando até o âmbito

institucional e acadêmico no qual as propostas curriculares são elaboradas e o

conhecimento de referência é produzido.

Para este texto, optei por fazer um recorte e desenvolver o tema do funcionamento

do currículo de História na sala de aula através dos cadernos escolares fotografados,

evitando apresentar um resumo do conjunto dos capítulos que resultasse muito superficial.

O currículo de História no caderno escolar

Por menos que nos demos conta, os cadernos escolares que hoje são utilizados com

tanta naturalidade possuem uma historicidade que determina o sentido e a materialidade

das práticas nele realizadas, práticas essas que se constroem e se modificam em diferentes

tempos e circunstâncias. Das tabuletas de argila mesopotâmicas até a difusão do papel na

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modernidade, a maneira de trabalhar com a escrita e os seus suportes vem se modificando

ao longo do tempo. Da mesma forma, o uso do papel no formato de caderno empregado a

partir da época moderna, possui também uma história que está diretamente vinculada aos

processos de escolarização. Assim, já que aprender a tomar notas, a redigir textos e a

organizar as idéias para dispô-las nesse espaço concreto vem sendo uma atividade

normalizada pela escola, no caderno é que podemos distinguir alguns aspectos do dia-a-dia

escolar e da configuração que o currículo toma nesse cotidiano.

Portanto, o caderno tem uma história que apresenta os entrelaçamentos das

atividades desenvolvidas nos processos de escolarização e da construção das normas que

passaram a regular essas atividades e os conteúdos nelas trabalhados. Seguindo esse

raciocínio, uma abordagem interessante é aquela que possibilita pensar que o caderno não

apenas sofre os efeitos da escolarização, mas igualmente produz efeitos nesse processo.

Entre eles, é possível perceber as relações de poder que são estabelecidas através do

controle da realização das atividades de aula pelo professor e da produção do autocontrole

do aluno através do aprendizado das normas para lidar com esse material. Também é

possível traçar uma analogia entre a normalização do caderno e o conteúdo que se expressa

nele, portanto, do que está sendo produzido em sala de aula a partir do currículo de

História, tema do nosso estudo. Para desenvolver melhor as idéias acima, utilizei as autoras

Silvina Gvirtz e Anne-Marie Chartier, que localizam o caderno como um dispositivo2

escolar, conforme o conceito de Foucault.

Para Gvirtz, o conceito de dispositivo permite que se considere o caderno não como

uma idéia ou representação dos conteúdos e programas seguidos pela escola, mas “como

um conjunto de práticas discursivas escolares que se articulam de um determinado modo

produzindo um efeito” (GVIRTZ, 1999, p.14). Entre os seus efeitos, Gvirtz entende que o

caderno produz o saber de como ocupar o seu espaço, como lidar com as tarefas na

sucessão de folhas, com as margens, com o lugar das datas, dos títulos, das lições, dos

textos – produção que, como vimos, vem se construindo ao longo da história da

escolarização. Nesse sentido, se pode observar como estas idéias se traduzem no corpo dos

2 A acepção mais citada desse conceito pelos autores que o empregam é aquela estabelecida por Foucault em uma entrevista transcrita no livro Microfísica do Poder, em que ele aborda as questões levantadas pelo primeiro volume da obra História da Sexualidade. Nessa entrevista esse autor o define como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1989, p.244).

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cadernos analisados neste trabalho, onde a normalização é perceptível e indicativa do

controle exercido sobre as atividades dos alunos.

Já Chartier aponta ainda que outra característica do dispositivo é a sua não autoria.

Esse conceito é tirado das experiências comuns e cotidianas, pois está onde menos se

percebe e só passa a ser um dispositivo quando sua existência está naturalizada: não se

pensa sobre ele a não ser “quando ele é atualizado, reformado ou ‘desmobilizado’”, e essas

mudanças “provocam acontecimento, discursos, resistências, o imprevisto, conflitos”.

(CHARTIER, 2002, p.13). O dispositivo, então, tem de ser assimilado e praticado a ponto

de tornar-se uma realidade tida como atemporal e ahistórica, perene no tempo e no espaço.

E daí vem o seu poder: unir, de forma tida como natural, diferentes realidades, de

diferentes tempos e lugares, como se houvessem estado sempre ali. A sua força vem da sua

transparência. Não os enxergamos com clareza como dispositivos de controle, mas os

sentimos como películas invisíveis que dão forma e sentido às diferentes coisas do mundo.

Este é o caso do caderno escolar, cujas práticas de seu manuseio são assimiladas a

ponto de se tornarem invisíveis, pois tanto professores como alunos operam com as regras

da sua normalização e com as formas de fiscalização desses procedimentos de forma

absolutamente natural. Essas práticas, entre outras, geram efeitos no que é produzido na

disciplina de História e na forma como o currículo é resignificado nessa que é a sua ponta

final, a sala de aula.

Além do seu aspecto normalizador, no caderno circula uma rede onde se cruzam as

diferentes normas estabelecidas pelos currículos das diversas disciplinas, desde o currículo

institucional – os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – ao currículo presente nas

aulas planejadas pelos professores, ou ao que está presente nos conteúdos selecionados

pelos livros didáticos. Do mesmo modo, no caso da disciplina que aqui nos interessa,

podemos perceber a intersecção das diferentes concepções teóricas da História presentes na

academia, nos currículos oficiais, na concepção da Professora, e que acabam por

conformar a visão dos alunos em relação a essa matéria escolar. Dessa forma, tomei os

cadernos analisados como dispositivos curriculares por expressarem os cruzamentos de

diferentes proposições de currículos de História que perpassam muitas camadas até chegar

a eles. E é a partir desses pressupostos que analisei os quatro cadernos de História

fotografados (dois da 5ª e dois da 7ª séries).

Portanto, iniciei a análise por um dos efeitos da utilização do caderno, que é a

conformação da escrita na folha. Nesse aspecto, é perceptível a diferença no processo de

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absorção das normas da disposição das datas, dos textos e dos exercícios entre a 5ª e a 7ª

série. Nos cadernos analisados da 5ª série, existe uma mudança na sua organização quando

o professor rubrica as páginas e quando interrompe esse processo. A desordem na

seqüência do conteúdo e na disposição deste na folha torna-se perceptível quando não há

rubrica: os alunos copiam parte de textos que ficam incompletos, em outros momentos o

mesmo texto é copiado duas vezes e, ainda, alguns questionários ficam sem respostas.

Aparentemente, isso não representa uma dificuldade para o aluno, pois o resto do caderno

segue organizado (onde há rubrica), inclusive ganhando um excelente do professor.

Isso nos leva a pensar que esses alunos de 5ª série ainda estão pouco ambientados

com a utilização desse espaço gráfico nas matérias específicas do Ensino Fundamental II.

E a sua organização exige um esforço que só vale a pena se o professor for exercer a sua

prerrogativa de fiscalização. Essa análise encontra um respaldo maior ao se comparar os

cadernos da 5ª com os da 7ª série, onde as normas de como lidar com esse dispositivo

parecem já estar bem assimiladas, pois o aluno está mais independente no seu uso e,

conseqüentemente, a seqüência das atividades apresenta maior regularidade. Fica,

inclusive, mais fácil comparar os dois cadernos de 7ª série, cujas datas das atividades

realizadas e/ou a sua ordem coincidem entre si, ficando pouca coisa destoante entre eles. Já

na 5ª série, são poucos os momentos em que se consegue comparar as atividades nos dois

cadernos, o que passa a impressão de falta de organização dos alunos.

Também se pode pensar em outro sentido da rubrica, muito presente nos dias

atuais, que é o do acompanhamento do trabalho do professor. Não podemos esquecer que

hoje a autonomia do professor se encontra bastante restrita pela burocratização do ensino.

São planejamentos a cumprir, tarefas a solicitar, provas e trabalhos a avaliar e, dessa

forma, o processo de fiscalização que antes se dava somente sobre o aluno, amplia-se

atualmente também sobre o professor. Diretores, coordenadores pedagógicos e pais de

alunos possuem no caderno um importante balizador do que se passa, pelo menos na sua

parte visível, na sala de aula.

Já outras questões, como a aprendizagem dos conteúdos registrados, não são

significativas para a atividade de rubricar, pelo menos na atualidade. O professor, por uma

questão de tempo e número de alunos, apenas verifica se as atividades foram realizadas e

se o caderno está em ordem, de uma maneira geral. A verificação do aprendizado parece se

restringir apenas aos momentos de avaliação escrita, na forma das interpretações de texto

devolvidas para a Professora ou nas provas bimestrais, no caso observado.

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Assim, a rubrica marca – como um dispositivo de controle – que o processo foi

realizado, mas sem se preocupar com os seus fins. E parece-nos, portanto, que a rubrica

normaliza as atividades dos alunos, acostumando-os ao processo de vigilância por um

mecanismo rápido de homogeneização da forma como se deve compor o espaço do

caderno. E mesmo o professor não escapa dessa norma, assim como quem observa as

diferentes atividades de uma sala de aula, todos nós acostumados com essa forma

aparentemente tão banal de controle exercida nas atividades escritas dos alunos, inclusive

por termos passado pelo mesmo processo na escola.

Somando-se esse fato às observações das aulas, parece haver uma desconexão entre

aquilo que a Professora trabalha em sala e aquilo que realmente fica como registro que será

manuseado em algum outro momento, como em uma revisão no período de provas, por

exemplo. O que reforça o argumento da análise sobre o significado da produção e

utilização desse material: o que se torna mais importante é que as regras sejam observadas,

pelo menos quando há a vigilância materializada na rubrica, e que ocorra o autocontrole

por parte do aluno ao incorporá-las. O poder que se estabelece no controle e realização das

atividades de aula e a aprendizagem das normas para lidar com esse dispositivo escolar

acabam por gerar a uniformidade tão desejada, naquilo que denominei efeitos gráficos do

uso do caderno escolar.

Na análise de outro efeito produzido pela utilização do caderno na disciplina, que

denominei de efeito de conteúdo, temos um dado interessante que são as indicações dadas

pela Professora, no quadro de giz, a respeito do número de linhas que devem ser deixadas

para as respostas dos questionários, no caso da 5ª série. Nos seus cadernos, os alunos não

copiam e não seguem a indicação dada pela Professora ao final de cada pergunta. No

entanto, embora o número de linhas que utilizaram para as respostas não tenha variado

muito daquilo que a Professora determinou no quadro, existem alguns pontos interessantes.

Para perguntas simples, como “O que é o papiro?”, é indicado o mesmo número de

linhas que aquele para responder questões mais complexas, como a que fornece uma

explicação importante sobre a composição social e política dos egípcios, que é “Defina o

que é uma monarquia teocrática” (5 linhas). E para a pergunta ainda mais complexa sobre a

caracterização da monarquia egípcia como despotismo oriental são indicadas menos linhas

ainda (4 linhas). Se as linhas são definidoras da quantidade de termos utilizados para

explicar a complexidade de um assunto, seria de se esperar que a Professora indicasse uma

quantidade maior para assuntos mais complexos. Mas não é isso o que ocorre com o tema

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da vinculação entre política e religião no Egito Antigo. Então vemos aí um efeito sobre o

conteúdo trabalhado, pois já há uma predefinição do que os alunos devem responder, a

qual eles parecem estar acostumados, mas nem sempre atendem integralmente, pois

acabam por utilizar os seus próprios parâmetros. Além disso, é perceptível que o número

de linhas para a resposta fornecida pela Professora é feita de forma bastante aleatória, se

pensada em termos da significação das informações.

Ainda em outras partes dos cadernos observei as possibilidades dos alunos de

realizarem um trabalho mais aprofundado com o conteúdo. Em um dos cadernos da 7ª série

há um trabalho no qual é solicitada a escolha de três temas estudados na disciplina como os

mais importantes vistos no ano. O aluno deve definir esses temas e justificar

historicamente por que os escolheu. Justificar uma escolha de conteúdo explicando a sua

importância histórica é uma habilidade bastante sofisticada de raciocínio, pois envolve

capacidade de inferir as conseqüências de determinado acontecimento pelo seu significado

em determinado contexto histórico. E, embora em uma resposta haja repetições de fatos já

citados na pergunta (o que chamamos coloquialmente de “enrolação”), algumas

informações são acrescentadas e formam o sentido daquilo que foi solicitado. Em outras

respostas a aluna não apenas analisa o fato escolhido, como também define a sua

importância em um sentido mais amplo.

Em termos de seleção de conteúdo, embora o trabalho seja em cima do

conhecimento formal presente na maioria dos currículos, a atividade solicitada foge ao

padrão de repetição de informações da maioria das atividades desenvolvidas até então. E é

interessante notar que isso acontece em novembro, sugerindo que tenha sido uma atividade

pensada como um resultado do que foi trabalhado ao longo do ano. E a aluna não se saiu

mal, demonstrando que algo acontece além do caos que não poucas vezes associamos à

escola pública brasileira.

Nesse mesmo sentido, é possível analisar os apontamentos feitos no final do outro

caderno da 7ª série. É um resumo da matéria, realizado sem a menor preocupação com as

normas aprendidas (espaço para datas, títulos, etc). O que traz um caráter muito especial a

essas folhas, que foram fotografadas com a expressa autorização da sua proprietária, mas

que, nesse momento, é quase como se a expiássemos no seu processo de estudo através de

uma porta entreaberta. O tema é a Revolução Industrial inglesa. A diagramação da página é

pessoal (com partes escritas a lápis, outras a caneta e com divisões feitas à mão livre no

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meio da página), mas indicativa do raciocínio que ela desenvolve ao longo do conteúdo

trabalhado.

O conteúdo aparece na sua forma tradicional, mas uma coisa foi corrigida. O

Tratado de Methuen, que várias vezes foi escrito nas cópias do caderno como Tratado dos

Panos ficou com uma denominação que esquece que também haviam os vinhos exportados

por Portugal, o que gerava o déficit na balança comercial portuguesa pelo baixo valor

arrecadado com sua venda comparado à compra dos tecidos manufaturados ingleses. Esse

lapso se repete em exercícios propostos sobre as razões do pioneirismo inglês na

Revolução Industrial e na revisão da matéria do caderno e, embora o vinho tenha sido

acrescentado pela aluna no título do tratado (Tratado dos Panos e Vinhos), na sua revisão

pessoal a análise deste tratado não foi aprofundada.

Isso talvez se deva ao fato de que uma explicação mais detalhada sobre o tema

esteja em um capítulo anterior no livro didático, que trata sobre a mineração no Brasil. Mas

a parte do livro que estava sendo trabalhada em aula é o capítulo “A Revolução Industrial”.

E nessa parte a definição do tratado é exatamente a que a aluna copiou no caderno: “De

acordo com esse tratado, os ingleses forneciam tecidos a Portugal, que pagava com o ouro

extraído de Minas Gerais. Todo o lucro obtido com essas exportações foi investido na

indústria.” (VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª série, p. 177). Nesse caso, a falta se deve mais a

necessidade de uma explicação ou retomada do assunto pelo professor. E podemos

perceber aí um aligeiramento na maneira de abordar os conteúdos, pois o tema é

importante para a compreensão da dependência econômica de Portugal em relação à

Inglaterra. Da forma como ficou, nada garante que ela conseguiu entender o significado

dessa relação. Apenas se pode inferir, pela estrutura geral do resumo, que ela compreendeu

o texto que copiou – a maior parte do livro didático – até pela seleção das partes

importantes para a composição de um esquema explicativo da matéria.

Outro exemplo que identifica a compreensão do texto por parte da aluna aparece no

mesmo resumo quando ela aborda o tema da origem da mão-de-obra inglesa e da definição

de proletariado e burguesia, assim como o das difíceis condições de trabalho e as

conseqüentes reações dos proletários a essa situação. Há uma boa síntese da matéria,

levantando as principais questões sobre o assunto. Do mesmo modo, o entendimento do

sentido geral do conteúdo pode ser inferido pelo acréscimo de informações que ela fez,

colocando-as no contexto correto. Essas informações podem ter sido obtidas nas

explicações da Professora ou nos próprios textos copiados no caderno. Contudo, nas duas

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situações, não temos como saber se essa compreensão acontece pelo sentido do texto e da

sua lógica intrínseca, ou se chega a atingir o conteúdo histórico nas suas relações e

complexidade.

Sobre a questão do aligeiramento dos conteúdos, visível nas situações apontadas

acima, lançamos mão da análise realizada por Julio Groppa Aquino para pensar mais

amplamente sobre esse tema. Em uma discussão dura, mas consistente, Aquino avalia as

condições do ensino no Brasil demonstrando as tensões que atravessam o meio escolar.

Entre elas, as diferenças entre o ensino público, “de qualidade indigente”, e o “privado de

qualidade farsesca”, mas em ambos os casos um ensino deficiente. Para Aquino, e é o que

interessa para esse trabalho, o ensino público é um “trabalho escolar convertido em

assistencialismo para pobres, por meio de uma oferta pedagógica aligeirada, fracionada e

diluída” (AQUINO, 2007, p.22). Embora eu tenha tido a oportunidade de evidenciar que

existem trabalhos importantes e diferenciados sendo oferecidos por professores da escola

pública, o que está sendo analisado aqui ainda representa a situação geral das aulas de

História3. Esse fato fica bastante evidente nesse caso, ao percebermos que os conteúdos de

História são trabalhados de forma a cumprir etapas mais ligadas à burocracia, como seguir

o livro e realizar as avaliações, que a questões pedagógicas. Afinal o Tratado de Methuen

foi dado em aula, e isso é o que está programado no currículo oficial e é o que fica

registrado em planos de ensino e no caderno de chamada.

Contudo, não estou falando aqui de desinteresse por parte da Professora, mas sim

da estrutura geral na qual o trabalho em sala de aula se insere e se realiza (a situação geral

do ensino público brasileiro, amplamente analisada por vários autores), que conformam as

características de aligeiramento e superficialidade no tratamento do conteúdo – e já

adquiriram um caráter de normalidade em todos os discursos que ouvimos na escola.

A diluição e o fracionamento citados por Aquino, no caso dos conteúdos da

História que observei nas aulas e nas atividades do caderno, não permitem que se

desenvolvam as relações que tornam a disciplina significativa para a compreensão do

presente. Perceber as relações entre diferentes aspectos de um acontecimento histórico é

3 Em um curso que ministrei para professores da rede municipal de São Paulo, tomei contato com projetos interessantes desenvolvidos pelos professores de História da rede. Já no acompanhamento de relatórios desenvolvidos pelos alunos da disciplina de Metodologia do Ensino de História da Faculdade de Educação da USP, dentro do projeto PAE (Programa de Aperfeiçoamento do Ensino) do qual participei, aparece uma realidade mais diversificada, com uma minoria de professores interessados e preparando boas aulas, dentro de um universo bem maior de professores desestimulados e realizando o estritamente necessário na sua atividade profissional.

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um dos fatores que possibilita compreendê-lo de forma mais ampla. Seria através desse

tipo de abordagem que o aluno poderia desenvolver a capacidade de observar o entorno

com maior amplitude na avaliação dos acontecimentos e, conseqüentemente, desenvolver a

visão crítica do presente, tão propagada nos diferentes discursos sobre o conhecimento

histórico escolar. Porém, da forma como foi abordado, há um empobrecimento do

conteúdo que certamente o relegará ao pronto esquecimento terminado o momento da

necessidade da sua memorização.

A partir das duas atividades analisadas, o trabalho de selecionar os três temas mais

importantes do ano e o resumo do conteúdo no final do caderno, há espaço para se inferir

sobre a possibilidade de realização de um trabalho mais aprofundado com os alunos em

cima do conteúdo estabelecido no currículo de História. Independentemente do que está

sendo prescrito pelo currículo oficial, ou pela seqüência do livro didático ou pelo plano

estabelecido pelo professor, é perceptível que, em relação aos alunos, existe um potencial

para ser explorado em uma situação de aprendizagem que fosse mais favorável em todo o

contexto da escolarização.

Porém, a formação do aluno crítico, tão propagada em diversas instâncias, torna-se

uma quimera maior ainda na medida do esvaziamento do potencial explicativo dos

conteúdos da disciplina, assunto que foi recorrente ao longo da pesquisa, na proporção em

que são recorrentes os apelos à possibilidade crítica da História em todas as instâncias

analisadas (PCN, texto para o professor no Apoio Pedagógico do livro didático, discurso

da Professora reproduzido no caderno).

Avançando na direção da percepção que a Professora tem da disciplina e que

aparece na análise do conteúdo nos cadernos, percebe-se uma preocupação nos textos

passados por ela para a 5ª série (nas aulas iniciais em que são trabalhadas questões de

cunho teórico) com a história dos excluídos e em desenvolver a noção de uma História

crítica que se concentra na visão dos vencidos. Essa concepção foi bastante utilizada na

década de 80, no momento pós-ditadura no Brasil, quando se passou a discutir os motivos

pelos quais apenas os personagens ligados ao poder eram tratados pela História, e a quais

interesses esse tipo de abordagem servia. Era um questionamento à História política, dos

heróis nacionais e dos grandes feitos, como as guerras.

Esses debates advinham de uma renovação historiográfica que buscava incorporar

algumas idéias e abordagens teóricas de autores estrangeiros e discutir a produção nacional

aproveitando o momento, propiciado pela abertura política no Brasil, de troca de idéias e

13

informações. E foi, igualmente, um momento de reaproximação entre a academia e os

professores das escolas em torno da luta pelo retorno da autonomia das disciplinas de

História e Geografia, unidas como Estudos Sociais durante o período da ditadura militar, e

em torno das reformulações curriculares que estavam sendo propostas em todo o país4.

Contudo, as discussões do período pós-ditadura também representavam certa autocrítica,

pelo tipo de saber histórico que foi veiculado pelos professores durante a ditadura,

obrigatoriamente ou não. Em todos os sentidos, podemos afirmar que foram momentos de

participação intensa por parte dos professores no processo de redemocratização. Daí

provavelmente advém a permanência dessas concepções hoje tão esvaziadas do seu

significado original.

Outro aspecto presente nesses debates, e que permanecem visíveis nos textos

passados pela Professora, é o da renovação do discurso legitimador da História como

disciplina constante dos currículos escolares, que buscava afastar-se de uma visão de

conhecimento enciclopédico e memorialista, e marcar a sua significação e validade para

constar no currículo regular das escolas. A partir de então, com o retorno da História como

uma matéria independente, o discurso da necessidade de superar o ensino dito tradicional e

alcançar um ensino que possibilite formar cidadãos críticos e conscientes, tem sido uma

constante tanto entre professores quanto entre os acadêmicos que pesquisam o Ensino da

História.

E podemos perceber que essas dimensões persistem sem retoques na visão da

História transmitida pela Professora através dos escritos dos cadernos. Provavelmente pelo

fato da sua formação ter ocorrido na época em que essas discussões estavam mais em voga.

E, como comentado acima, pela necessidade contínua por parte de acadêmicos e

professores, de renovar o discurso legitimador sobre a presença da História nos currículos

escolares, tema abordado por Ivor Goodson (1995) e retomado por F. Javier Merchán

Iglesias (2002) e por Rafael Valls (2006).

Contudo, para Merchán Iglesias o discurso não corresponde necessariamente a uma

prática dentro da sala de aula, como se vê a seguir:

4 Discussões sobre esse momento do ensino de História no Brasil e as propostas curriculares daí advindas podem ser encontradas, entre outros autores, em: ABUD, Kátia Maria. Conhecimento histórico e Ensino de História: a produção do conhecimento histórico escolar. In: XIV Encontro Regional de História - Sujeitos na História: práticas e representações. Bauru, SP: EDUSC, 2001. v 2. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Capitalismo e cidadania em propostas curriculares de História. In: Anais do II Encontro Perspectivas do Ensino de História. São Paulo: 12 a 15 de fevereiro de 1996.

14

el análisis de las declaraciones de profesores y profesoras sobre la importancia,objetivos y valor formativo de la historia nos permite reseñar los elementos mássignificativos de este nuevo discurso y destacar, al mismo tiempo, su carácterretórico, desvelando la existência de una historia imaginaria que alimenta el ethos profesional y la literatura oficial sobre la enseñanza de la asignatura, un imaginário que contrasta fuertemente com la realidad a la que diariamente se enfrentan los mismos docentes en el interior de las aulas (MERCHÁN IGLESIAS., 2002, p.46).

Esse contraste do discurso com a realidade cotidiana das aulas fica nítido ao se

percorrer o conjunto dos cadernos, onde não se encontra nos conteúdos trabalhados

qualquer abordagem que parta do referencial citado. Claro que a História não é apresentada

como a vida dos heróis e a narração dos grandes feitos, mas segue-se privilegiando os

conteúdos com importância política, econômica e social geral, nos quais pouco ou nada se

fala a partir da visão dos vencidos. Quando se aponta as dificuldades do proletariado e sua

exploração por parte do capital, por exemplo, é uma referência a partir da crítica histórica

formal.

Outro aspecto característico do discurso da validação da disciplina é o que procura

superar a percepção de que a História é o estudo do passado. A homilia é que ela estuda o

passado, mas tem uma utilidade atual, pois serve à compreensão do presente e essa

compreensão auxiliará na modificação do futuro, como vemos nas definições citadas nos

cadernos:

Caderno da 7ª série:

“História é a ciência que estuda os fatos do passado (causas) e suas aplicações no futuro

(conseqüências)”.

Caderno da 5ª série:

“A importância da História [título]

Porque estudar História?

R: Estudando o passado podemos entender melhor o nosso presente e podemos modificar o

nosso futuro.

O que é a História?

R: A história é a ciência que estuda os fatos do passado (causa) e suas implicações no

futuro (conseqüências)”.

Essa é uma concepção bastante difundida em sala de aula e nos livros didáticos. E

demonstra a contradição vivida pelos professores entre as discussões teóricas, as inovações

didáticas e a realidade do seu trabalho. E novamente fica clara a proposição de Merchán

Iglesias sobre a distância entre o imaginário dos professores e a realidade das suas

15

experiências cotidianas, pois nos cadernos os conteúdos não apresentam conexão com os

fatos que nos cercam na atualidade. Seguindo uma linha de análise semelhante à

desenvolvida por Merchán Iglesias, Rafael Valls considera que, além de compreender o

presente, entre os objetivos do ensino dessa disciplina levantados pelos professores, está

“el desarrollo del razonamiento lógico de los alumnos y también la de suministrarles un

saber humanístico válido para la formación de las personas em valores tales como la

tolerancia y la capacidad crítica” (VALLS, 2006, p.257). Seguindo a hipótese levantada

nos cadernos – de que, tratada dessa forma (como estudo do passado para compreender o

presente e modificar o futuro) a História, implicitamente, despertaria o espírito crítico dos

alunos – se deduz que uma das tarefas primordiais da disciplina no currículo escolar não se

concretiza, pois ali não ficou registrado qualquer trabalho que levasse a consolidar a

proposição citada.

Outra questão que é possível levantar é que o discurso de conhecimento do passado

já enfrentou questionamentos nos meios acadêmicos e escolares, chegando-se inclusive a

um uso da História do tempo presente como uma “negação do tempo seqüencial e a

valorização do cotidiano e da participação” dos alunos (ABUD, 2001, p. 134)5. Entretanto,

por mais que tenha havido uma pretensão nas discussões teóricas acadêmicas e entre os

próprios professores para renovar essa visão de “ciência do passado”, nesse caso essa

percepção ainda permanece visível no seu produto final, o registro escrito das atividades.

Nas aulas expositivas a Professora procura fazer algumas conexões com o presente, e são

momentos que despertam a atenção dos alunos e nos quais eles próprios fazem

comentários a respeito do assunto tratado, mas elas não se materializam nas suas

anotações, como já foi observado.

A permanência dos discursos que procuram validar a disciplina encontra ainda

outro aspecto a ser pontuado, que é a procedência dos valores formativos relacionados a

ela, e a apreciação da historicidade desse aspecto talvez auxilie a compreensão a respeito

desse tema. Raimundo Cuesta Fernández, ao estudar as origens do código disciplinar da

História, fornece indicações das raízes dessas concepções, indicando que “recuperar su

gênesis como disciplina escolar equivale a una labor de ‘redescubrimiento’ de los niveles

5 Outra análise a respeito da utilização e da validade dessa abordagem também se encontra em BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005.

16

más lejanos a nuestra propia conciencia del presente” (CUESTA FERNÁNDEZ, 1997, p.

26).

Nesse sentido, volta até a concepção clássica greco-romana da História, tida como

narrativa da sucessão dos fatos importantes e dos feitos das pessoas ilustres do passado,

feita com elegância e rigor, aproximando-a da oratória e ocupando um lugar junto à

literatura. Na verdade, a História era vista como um gênero literário que permitia

aprendizagens de estilo e recitação, assim como desenvolvia a capacidade de memorização

e o cultivo de qualidades morais. Essas características não se perdem com o tempo, mas

são acrescidas, no medievo, de uma perspectiva universalista cristã e de uma percepção

teleológica da evolução humana, assim como de uma organização cronológica baseada nos

períodos antes e depois do nascimento de Cristo.

Dependente de outras disciplinas como a Teologia e a Retórica, baseada na

memória (faculdade mental secundária) e, pelo seu caráter de resgatar exemplos morais do

passado, sendo a “mestra da vida”, a História seguiu por um longo período como um saber

secundário. Mesmo entre os jesuítas e a sua organização da rotina do ensino como

conhecemos ainda hoje, não se pode situá-la como uma matéria formal, pois seu

conhecimento se fazia através do estudo dos autores clássicos em um espaço mais próximo

à literatura. Portanto, é somente na segunda metade do século XIX que é possível falar da

História como disciplina escolar, de forma mais generalizada e não apenas como educação

dos nobres.

Temos a partir de então, a História como uma construção da revolução burguesa

que a incorporou ao sistema de educação estatal, onde irá servir como uma das bases para

se edificar a idéia de nação. Mas a estrutura “memoria-erudición-literatura, trilogia

asociativa que inexorable e indefectiblemente comparece cuando buscamos la genealogia

de la Historia escolar” permanece bastante audível nos diversos discursos presentes no

caderno escolar (CUESTA FERNÁNDEZ, 1997, p. 72). Esses ecos são ouvidos na

permanência dos discursos sobre os valores da História e a conseqüente necessidade da sua

presença nos currículos escolares, assim como na prática das atividades registradas onde se

continua a trabalhar com a disciplina basicamente no nível da erudição e da memória.

Essas observações trazem uma série de questões relevantes ao voltarmos à nossa

pergunta inicial: o que os cadernos nos revelam sobre o que se produz em sala de aula a

partir do currículo de História? Essa é uma análise que só concluí efetivamente ao fim do

trabalho, após seguir o fio condutor que iniciou nos cadernos escolares e seguiu o currículo

17

até a sua formulação institucional nos PCN. Mas em alguns aspectos há a possibilidade se

fazer uma análise inicial.

Em termos das normas de uso do caderno, voltamos a Silvina Gvirtz que nos traz a

idéia de que essas normas são produtos culturais e, como tal, só podem ser construídas no

aprendizado dentro da escola (GIVIRTZ, 1999). E retomando a idéia de que estas

produzem efeitos, observamos os efeitos gráficos, que determinam para o aluno a forma

como os conteúdos devem aparecer no caderno e cujo controle se materializa no uso da

rubrica pelo professor. O que acaba produzindo uma grande diferenciação nos cadernos

dos alunos menores, entre as partes que são rubricadas pelo professor e as que não o são.

Além disso, os efeitos produzidos pelas normas de uso dos cadernos, como o lugar

dos títulos, a organização das perguntas, ou o número de linhas predeterminado para as

respostas, acabam por influir na formação do texto e na escolha dos conteúdos que devem

ser relevantes para a resposta das atividades. Assim, “el cuaderno que parece operar como

contexto, termina por contribuir a la formación del texto” (GVIRTZ, 1999, p.16), criando

efeitos de conteúdo. Porém, nesse texto-efeito produzido nos cadernos observados não são

incluídas operações que levem o aluno a elaborar um pensamento próprio, estabelecendo

relações ou tirando conclusões a respeito de um assunto da disciplina. Esse fator acaba por

determinar um automatismo onde a habilidade que mais se desenvolve é a de localizar

rapidamente as informações solicitadas e reproduzi-las no espaço determinado para isso.

Temos, então, como apontado na proposição de Gvirtz, o caderno como parte da

“administración de los saberes curriculares”, com o sentido de criar uma padronização que

elimine as ambigüidades, torne homogêneo e estabilize “aún más su universo discursivo”

(GVIRTZ, 1999, p. 136).

Os momentos em que o caderno é trabalhado com autonomia por parte dos alunos

são raros, mas interessantes por indicarem a possibilidade de se realizar um trabalho mais

aprofundado com o conteúdo. Porém, uma interpretação pessoal da História feita pelos

alunos fica mais aparente quando assistimos às aulas, nas suas falas, como foi apontado.

Outra questão sobre a qual podemos pensar, é que a estrutura do caderno se

adequou perfeitamente ao conteúdo de História, pela sua própria configuração espacial. Ao

contrário de um fichário, ou das anotações em folhas costuradas no período moderno, no

caderno atual as folhas são fixas e a sua escrituração se desenrola ao longo do tempo

escolar. Gvirtz coloca que “en el cuaderno se puede llegar a marcar y delimitar de esta

forma también una unidade temporal. Esta última se caracteriza porque señala los tiempos

18

sucesivos de trabajo” (GVIRTZ, 1999, p.31). E esse tempo também corresponde à

sucessão do tempo característico da disciplina de História. E, para Gvirtz, esse dado limita

a geração de produtos diferentes, como se faz no computador ou em um fichário, por

exemplo. Assim, causa estranheza um dos cadernos da 5ª série, quando a aluna copia

conteúdos fora da ordem do tempo histórico e do tempo do caderno. Embora isso pareça

afetar mais quem já está completamente adestrado nessas normalizações (como a

observadora) do que o próprio aluno de uma 5ª série. E esse me pareceu um ponto muito

importante – a capacidade de fugir às normas apresentada pelos alunos menores e

entrevista no resumo da aluna da 7ª série – o que, muitas vezes, é visto como

desorganização, ou até incapacidade de compreender o conteúdo, por quem trabalha com

eles ou os acompanha em uma observação.

Nesse caso, é pertinente pensar: o que aconteceria se eles não fossem exercitados

para cumprir regras? Que tipo de pensamentos, inquietações, perguntas, conclusões ou

deduções poderiam surgir? Que movimentos, que deslocamentos seriam produzidos? Qual

seria a sua relação com o conteúdo expresso no caderno? Que tipo de visão da História

esses alunos construiriam? Seria muito diferente daquela que se apresenta hoje? Essas

possibilidades parecem bastante inquietantes para sistemas normalizados da forma como a

escola como um todo, o currículo de História e os cadernos em particular, se apresentam.

Por isso todas as constrições e esquadrinhamentos. Assim, o produto final é sempre

previsível e não há espaço para dúvidas ou inovações que desacomodem o que está

estabelecido e já se tornou tão natural.

Dessa forma, os alunos correspondem, de forma geral, a uma análise da produção

do autocontrole no uso do caderno e na assimilação das noções básicas da disciplina

trazidas por um currículo regulado pela concepção histórico-crítica acadêmica da década

de 80/90, com uma seleção de fatos vinculados às suas causas e conseqüências no tempo

histórico formal. É um currículo forjado através do cruzamento da seleção de teorias e

temáticas da História, que estão presentes no planejamento e nas aulas da Professora, assim

como nos conteúdos do livro didático.

Em se tratando dos conteúdos curriculares da História, estes são apresentados aos

alunos, em muitos momentos, de forma aligeirada e empobrecida, impossibilitando a

aquisição de um conhecimento histórico pleno das relações que o tornariam passível de

suscitar questões que fossem significativas para a compreensão do presente, o que é tido

como um dos objetivos da disciplina. O que é um acontecimento limitado e, por

19

conseguinte, um desperdício de energia e material humano por parte de todos os

envolvidos no processo. Pois é possível entrever possibilidades muito ricas de trabalho nos

momentos em que os alunos se manifestam em aula, quando respondem questões de

acordo com a sua percepção do significado do conteúdo, ou quando realizam atividades

com maior autonomia, como um resumo de estudos.

Assinalei também a permanência dos discursos legitimadores da História. A

justificativa para a permanência da História nos currículos escolares é uma questão

bastante incômoda por não ser clara nem para os próprios protagonistas do ofício, os

professores. É tão incômoda que os alunos dela muito usufruem como último recurso para

atormentar o professor e desviar o tema da aula, e se resume na pergunta sobre a finalidade

da História. Analisei brevemente a conjuntura histórica brasileira onde esses discursos

legitimadores se produziram e cabe agora pensar na situação atual.

Após as mudanças históricas da década de 90 e suas conseqüentes transformações

socioeconômicas, como a globalização, a derrocada do Estado como promotor de bem-

estar social e a reorganização neoliberal da economia houve um reordenamento dos

caminhos da educação. Esta foi direcionada para a inserção de mão-de-obra no mercado de

trabalho, atuando no treinamento do uso de novas tecnologias e possibilitando uma

formação mais flexível dos futuros profissionais. O aluno deve sair da escola treinado em

múltiplas habilidades e com capacidade de adaptação a diferentes situações de vida e de

trabalho. Para Abud, “objetivos como transformar a sociedade, fazer do aluno agente da

história, foram substituídos por verbos como reconhecer, identificar, respeitar, analisar

conhecer” (ABUD, 2001, p. 138). E o professor participativo do processo de

redemocratização, se vê hoje completamente afastado das discussões sobre o seu campo de

conhecimento e de trabalho. A ele cabe o cumprimento de inúmeras tarefas burocráticas,

como suprir carências afetivas e formativas dos alunos, identificar e encaminhar alunos

“problema”, entre tantas outras atribuições que entraram perniciosamente no lugar do

trabalho com o conhecimento.

Assim, só resta ao professor repetir o discurso de uma época na qual,

provavelmente, se sentia mais alinhado com as questões que ainda lhe diziam respeito em

termos de atuação pessoal e profissional. Voltamos à análise de Abud, para quem:

o sistema educativo descarta a importância dos valores regionais e da participação dos excluídos no processo de transformação social. Concebe a idéia de uma sociedade pronta, na qual devem ser inclusos aqueles que estão excluídos. A inclusão do aluno na sociedade é concebida como inclusão como força de trabalho,

20

não como agente transformador, pois a idéia de transformação desapareceu (ABUD, 2001, p. 137).

Nesse sentido, pensar a disciplina na sua acepção de formadora de valores e do

espírito crítico dos alunos encontra problemas. Se os alunos não são mais colocados como

agentes transformadores da História, para quê desenvolver neles a capacidade crítica?

Assim, há um esvaziamento do sentido desses discursos nos tempos que vivemos. E como

ficou claro nos textos passados pela Professora, nenhuma outra reflexão foi realizada que

superasse essa anterior. E os alunos poderão usufruir por mais tempo ainda deste tema tão

precioso no seu catálogo de idéias sobre “Perguntas para Desestruturar o seu Professor” –

para que devemos estudar História?

Outro ponto importante é o valor retórico dos discursos em prol da disciplina, como

trata Mérchan Iglesias, que pouca ligação apresenta com a prática vivida pelos professores,

pois se está discutindo uma situação que nem se concretiza no material analisado. O

aspecto crítico da História está colocado em termos de uma formulação acadêmica que não

necessariamente produz uma visão crítica por parte dos alunos. Ao chegar ao caderno de

forma que o aluno copie o tema proposto, faça o exercício com perguntas cujas respostas

são diretamente encontradas no texto e com número de linhas predeterminadas, o aspecto

crítico, que muitas vezes já se perdeu em um desses cruzamentos – proposta do PCN, livro

didático, planos de aula, aulas expositivas – não é perceptível para qualquer um dos

envolvidos no processo educativo. Fica apenas o aprendizado das normas relativas ao trato

com a disciplina.

No sentido de auxiliar a elaborar melhor essas idéias, Ivo Mattozzi aborda questões

interessantes na discussão sobre os valores formativos da História. Para ele, a História só

educaria em valores se houvesse uma continuidade entre àquela praticada pelos

historiadores e a escolar. Entre os pontos que ele levanta para fundamentar o seu

pensamento, está que a História ensinada “não possui a riqueza de referências, de

conceptualizações, de teorias, de argumentações que poderiam favorecer aquelas funções

educativas” (MATTOZZI, 1998, p.23). O nível de aprofundamento e a quantidade de obras

historiográficas sobre um mesmo tema são muito maiores na área de referência do que os

desenvolvidos em um livro escolar, e permitem a ampliação de concepções formativas.

Para ele, é necessário admitirmos que a História ensinada possa não causar qualquer efeito

na promoção de uma visão crítica ou compreensão dos fatos do presente ou mesmo na

formação de valores éticos. Pelo contrário, a História ensinada pode contribuir para formar

21

idéias indesejadas e fornecer a base para pensamentos autoritários, preconceituosos,

nacionalistas, entre outros, como já se viu acontecer.

Se não estiver profundamente vinculada à formação cognitiva em relação ao

conhecimento histórico, a disciplina pode servir a qualquer tipo de apropriação de seus

conteúdos. Se estes estiverem afastados da sua inserção teórica e conceitual, que os situam

como um conhecimento que tem um arcabouço interpretativo, tudo pode passar a ser

História, e daí advém tantas aberrações na redução de conteúdos e teorias acadêmicas.

Mattozzi reivindica uma retomada do sentido da disciplina, menos ingênua, como se vê:

Estamos, pois, empenhados em estabelecer uma forte coerência entre os valoresafirmados nas finalidades e nos objetivos, o sistema de conhecimentos históricos, a qualidade dos textos historiográficos escolares, a formação de estruturas cognitivas e as formas de mediação didáctica e dos processos de aprendizagem.Tentei descobrir na formação cognitiva a gênese dessa coerência. Mas seja qual for o critério fundador dessa coerência, considero-o capaz de formar não só cidadãos democráticos esclarecidos como também um número cada vez maior de bons conhecedores da História, o que pode contribuir para o progresso dos estudos históricos, numa ligação virtuosa de história erudita e história escolar (MATTOZZI, 1998, p.48).

Para Mattozzi, não há garantias nem que a História seja a melhor disciplina para

formar valores. Temos outras dentro das ciências humanas, como a Antropologia e a

Filosofia, por exemplo, que cumpririam muito bem essa função, talvez até com mais

sucesso. Porém, colocado esse papel para a História, pensar um currículo que atinja

realmente os objetivos formadores da disciplina é uma atividade que se faz necessária,

mediante o esvaziamento das propostas colocadas até aqui. Partindo do pressuposto de que

é preciso usar as capacidades cognitivas para fazer escolhas entre as diferentes maneiras de

encarar o mundo posta pelos vários conteúdos disciplinares, penso que uma opção

interessante é fazer uma retomada do conhecimento histórico e da sua validade por si

mesmo. E só então, a partir e através do conhecimento dos conteúdos e fundamentos da

História, traçar o que é possível construir em termos de perspectivas éticas para o presente,

em um currículo formulado através de uma visão mais próxima da sala de aula.

Considerações finais

Essas foram as primeiras apreciações em relação ao currículo de História praticado

em uma escola pública, que analisei através do caderno escolar. Porém, de acordo com a

perspectiva teórica proposta para orientar o estudo como um todo, a consideração que deve

resultar das observações é a de como o currículo de História funciona na sala de aula e

através de que mecanismos, quais são as relações que ele instaura, como ele funciona nos

22

diferentes níveis em que se estabelece, que silêncios e que discursos são produzidos através

dele.

A percepção final é de que há vários currículos presentes em uma sala de aula de

História, que buscam atender às muitas demandas que estão postas no ensino público na

atualidade. No entanto, essa idéia só se desenvolve ao longo de toda a pesquisa e, embora

tenha centrado esta análise nos cadernos, gostaria de nesse momento final apontar para

alguns dos aspectos mais amplos do estudo, para indicar alguns pontos que respondam as

indagações levantadas no seu início. Portanto, farei uma breve apreciação das aulas

assistidas, do livro didático e da esfera acadêmica e institucional, para dar um sentido

conclusivo mais abrangente ao texto.

No conjunto das análises realizadas, foi possível perceber a heterogeneidade das

formulações curriculares e dos usos feitos nas diferentes instâncias avaliadas. Na

academia, há os currículos pensados tanto na área de Currículo quanto na de História. Em

termos de legislação, existe um currículo proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCN) em torno dos temas transversais e outro que está no programa das disciplinas, com a

proposição de ensino temático. Ainda na legislação, existem as diretrizes de currículo

colocadas nas normas do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que geram

direções nas quais os livros didáticos terminam por se encaixar. No livro didático existem

vários currículos que buscam atender a demandas do PNLD, de um ensino tradicional mais

acessível ao professor nos textos de conteúdo e das inovações teóricas presentes nos box e

nas leituras complementares.

Nas aulas da Professora, o currículo é selecionado de acordo com inúmeras

situações ligadas ao aspecto do gerenciamento imediato das demandas trazidas pelas novas

acepções profissionais do professor/funcionário burocrático e do professor/administrador

da conduta e dos problemas cognitivos/afetivos dos alunos. Assim, as aulas situam-se em

torno da explicação dos fatos, com a inclusão de exemplos explicativos da atualidade com

abordagens às vezes superficiais. Já nos cadernos, existe o currículo fruto das escolhas e

seleções possíveis realizadas pela Professora, com a abordagem de alguns temas mais

teóricos desenvolvidos na década de 80/90, enquanto os conteúdos formais são

desenvolvidos em torno do aspecto político e socioeconômico, seguindo a cronologia, com

uma abordagem aligeirada.

Em todos esses currículos o único discurso que é recorrente é aquele ligado ao

caráter formativo da disciplina, trazido pela necessidade de legitimar a presença desta nos

23

currículos escolares. A História forma tanto os aspectos humanísticos do caráter dos

alunos, quanto os instrumentais para o desenvolvimento do seu raciocínio lógico. É um

discurso que aparece nos textos da área de História dos PCN, na seção de Apoio

Pedagógico escrito pelas autoras do livro didático, nos textos do caderno passados pela

Professora, numa tal quantidade de vezes que leva a pensar se a repetição é para o

convencimento de todos. O consenso é que a disciplina desenvolve o espírito de cidadania,

através da construção do conhecimento histórico, estuda o passado para compreender o

presente e desenvolver o raciocínio crítico e preventivo de erros futuros, desenvolve a

capacidade reflexiva, comparativa e relacional. Com um tema tão propagado, seria de se

esperar que o currículo da disciplina fosse construído em cima desses aportes, o que não

acontece na prática, como foi observado.

Esses discursos realizados em espaços formais são incompatíveis com o que se

houve e se vê no dia a dia escolar, onde o corrente é aquele do aluno desinteressado e sem

capacidade ou vontade de aprender. Entre uma fala e outra, se observa que existe tanto a

capacidade quanto a vontade de vários alunos em se envolver com a escola e com o que ela

tem a oferecer. Eles fazem perguntas nas aulas, se interessam pelos temas desenvolvidos

quando estes se vinculam a eles de alguma forma, e apresentam as suas opiniões

eventualmente. O problema maior, considero, é o que a escola tem a oferecer. E aí são

muitos os trabalhos realizados que procuram dar conta desse assunto sem, entretanto,

lograr que a prática se modifique.

Na prática, ao contrário dos valores apregoados sobre a capacidade da escola em

desenvolver a autonomia, a independência e a responsabilidade, os alunos são formados

nas regras de adaptação e funcionamento das normas, como acontece com os cadernos.

Mais importante que o conhecimento ali estabelecido, é o aprendizado das normas de como

lidar com aquele material, produzindo um sujeito particular dentro de uma média aceitável,

num processo de homogeneização tão acentuado que nos permite estudar poucos cadernos

como indicativo do que acontece com a maioria deles. Essas normas são produções

culturais que visam estabelecer um lugar social para esse aluno, remetendo-o a uma

estrutura moral. Ele deve se encaixar no padrão exigido, senão passa a ser o aluno

problema, desorganizado, desinteressado, que não tem capacidade.

Quanto aos professores, esses foram completamente deslocados do seu

protagonismo da década de 80/90, período de retomada das funções democráticas no

Brasil. Esse protagonismo foi interessante no momento em que era necessário acreditar que

24

a participação traria as mudanças sociais tão almejadas e esperadas por um longo tempo.

Contudo, os novos ventos da ordem econômica já não precisam mais desse tipo de atitude

com a democracia consolidada, pois hoje a grande inovação é a produtividade e as

mudanças sociais se dão pela capacidade que o cidadão tem, em sendo produtivo, de

alcançar o consumo daquilo que não necessita.

Os professores foram, então, afastados das discussões sobre o seu campo de

trabalho, a ponto de não validarem mais o seu próprio conhecimento. As verdades sobre o

seu ofício estão em outros lugares: no MEC, na academia, nas inúmeras tarefas

burocráticas de relatórios a preencher e planos a entregar, na psicologia para lidar com os

problemas dos inúmeros alunos-problemas, na exigência da afetividade como padrão

profissional. Os professores estão desautorizados como sabedores do seu ofício em todas

as instâncias. Assim, algumas possibilidades de desenvolver um trabalho mais pessoal e

efetivo, que foi entrevisto em alguns poucos momentos das observações, não são sequer

cogitadas pela Professora como recursos que ela poderia empregar em sala para alcançar

um trabalho mais efetivo com o conhecimento. A Professora não consegue validar aquilo

que sabe e se engessa atrás de práticas rotineiras e esvaziadas, nada desafiadoras para ela

muito menos para os alunos.

Vemos as conseqüências de todos esses fatores no aligeiramento dos conteúdos,

pois estes acabam fazendo parte dos discursos dispersos da sala de aula. Há um

encadeamento de assuntos tratados de forma mecânica em alguns momentos, sem

considerar o potencial tanto da disciplina quanto dos alunos. Além disso, há ainda os

problemas de disciplina e da estrutura da escola sobrepondo-se muitas vezes àquilo que

poderia ser efetivado na aula de História.

Assim sendo, as escolhas curriculares que a Professora realizou no uso que fez do

livro didático, nos textos que passou para os alunos na lousa (copiados nos cadernos) e nas

suas aulas expositivas, determinam um novo plano de análise que desloca as previsões a

respeito da sua adesão às diferentes propostas curriculares, oficiais ou pedagógicas. O

currículo de História se apresenta, então, bastante poroso e aberto na sua pulverização e

nas várias instâncias que percorre até chegar ao caderno escolar, permitindo todo o tipo de

uso do seu conteúdo heterogêneo, mas permanece impermeável a modificações na prática

da sala de aula.

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