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Título Original: Earth is Room Enough Copyright © 1957 by Isaac Asimov

Tradução de: Affonso Blacheye

Origem EUA

Editora Hemus Cidade da Editora São Paulo

dedicadoàqueles cavalheiros admiráveis e afáveisque originaram a primeira publicaçãodeste livro:

ANTHONY BOUCHERHOWARD BROWNEJOHN CAMPBELLHORACE GOLDROBERT LOWNDESLEO MARGULIESRAY PALMERJAMES QUINNLARRY SHAWRUSS WINTERBOTHAM

O PASSADO MORTO

Arnold Potterley era professor de História Antiga o que, por si só, não constituía perigo algum. O que modificou o mundo além de todos os sonhos foi o fato de que ele se parecia a um professor de História Antiga.

Thaddeus Araman, chefe de Departamento da Divisão de Cronoscopia, poderia ter adotado as medidas adequadas se o professor Potterley tivesse um queixo avantaja-do e quadrado, olhos reluzentes, nariz aquilino e fosse bastante espadaúdo.

Assim não sendo, Thaddeus Araman via-se em seu gabinete diante de uma criatu-ra bem-educada, cujos olhos azuis desbotados o fitava com atenção e cuja figura de pequena estatura e elegantemente trajada parecia algo diluída, desde os cabelos castanhos e ralos até os sapatos muito bem engraxados, completando um terno de talhe conservador e de classe média.

Araman perguntou, afável:- Em que posso ajudá-lo, professor Potterley?O professor Potterley respondeu em voz baixa que parecia combinar muito bem

com tudo o mais nele:- Senhor Araman, vim procurá-lo porque o senhor é quem decide as coisas na cro-

noscopia.Araman sorriu e retrucou:- Não é bem assim. Acima de mim encontra-se o Comissário Mundial de Pesquisas

e acima dele encontra-se o Secretário Geral das Nações Unidas. E acima de ambos, é claro, estão os povos soberanos da Terra.

O professor Potterley sacudiu a cabeça, rejeitando aquelas palavras.- Eles não estão interessados na cronoscopia. Vim procurá-lo, senhor, porque há

dois anos que tento obter permissão para fazer alguma visita no tempo... cronosco-pia, é do que estou falando... relacionada às minhas pesquisas sobre a antiga Carta-go. E não obtenho essa permissão. Meus fundos para pesquisa são todos eles muito certos, não existe qualquer irregularidade nas minhas pesquisas intelectuais, mas ainda assim...

- Tenho certeza de que não se trata de irregularidade alguma - contrapôs Araman, visando acalmar o visitante. Vasculhou então as folhas finas de reprodução, na pasta à qual o nome de Potterley havia sido afixado. Tinham sido produzidas pelo Multivac, cuja vasta memória amplamente analógica cuidava de todos os registros do departa-mento. Terminado isso as folhas podiam ser destruídas e depois reproduzidas, a pe-dido, em questão de minutos.

E enquanto Araman examinava aquelas páginas, a voz do professor Potterley pros-seguiu, em tom monótono. Dizia ele:

- Preciso explicar que meu problema é muitíssimo importante. Cartago foi o comer-cialismo antigo levado ao zênite. Cartago pré-romana foi o análogo antigo mais pró-ximo à América pré-atômica, pelo menos na medida de seu relacionamento ao co-mércio, ao mundo dos negócios em geral. Também foram os marujos e exploradores

mais audaciosos antes dos Vikings, e se saíram melhor nisso do que os gregos, a quem tanta gente louva em demasia.

Ele fez uma pausa, prosseguiu:- Conhecer Cartago seria muito valioso e profícuo, mas ainda assim o conhecimen-

to único que temos a seu respeito vem das obras escritas por inimigos ferozes que os cartagineses tiveram, os gregos e os romanos. A própria Cartago nunca escreveu coi-sa alguma em sua defesa e, se o fez, tais livros não sobreviveram. Como resultado disso os cartagineses têm estado entre os vilões preferidos da história e talvez isso não seja justo. A visita no tempo pode endireitar os fatos.

O professor Potterley disse muitas outras coisas e Araman observou, ainda reviran-do as folhas de reprodução que tinha diante de si:

- O senhor deve compreender, professor Potterley, que a cronoscopia ou visita no tempo, se assim preferir chamá-la, é processo dos mais difíceis.

O professor Potterley fechou a cara, por ter sido interrompido, e contrapôs:- Estou pedindo apenas algumas visitas escolhidas, a lugares e épocas que indica-

ria.Araman suspirou.- Até algumas visitas, mesmo uma só. Trata-se de arte inacreditavelmente delica-

da. Existe a questão da focalização, obter a cena correta e mantê-la. Existe a sincro-nização do som, que pede circuitos inteiramente separados.

- Mas meu problema tem importância bastante para justificar um esforço mais considerável.

- Sim, senhor. Não resta dúvida. - Araman apressou-se em dizer. Diminuir a impor-tância do problema de pesquisas de alguém seria medida imperdoavelmente grossei-ra. - Mas o senhor deve compreender como a visita mais simples ainda assim se mostra complexa. E existe uma longa fila para uso do cronoscópio, uma fila ainda maior para o uso do Multivac, que nos orienta no uso dos controles.

Potterley remexeu-se, insatisfeito.- Mas não há alguma coisa que se possa fazer? Por dois anos...- É uma questão de prioridade, senhor. Sinto muito. Quer um cigarro?O historiador recuou diante da oferta, seus olhos repentinamente se esbugalharam

enquanto ele fitava o maço de cigarros que fora estendido em sua direção. Araman pareceu surpreso, retirou o maço e fez um movimento como se fosse levar um cigar-ro à boca, mas mudou de ideia

Potterley soltou um suspiro de alívio bem indisfarçado ao desaparecer de sua vista o maço de cigarros. Disse, então:

- Existe algum modo de examinar a questão, levando-me tão à frente quanto for possível? Não sei como explicar...

Araman sorriu, pois sob circunstâncias semelhantes alguns haviam oferecido di-nheiro, expediente que naturalmente de nada lhes servira. Explicou, então:

- As decisões sobre a prioridade são passadas pelo computador. Eu não poderia de modo algum modificar arbitrariamente essas decisões.

Potterley se pôs rigidamente em pé. Não teria mais de um metro e sessenta de es-tatura.

- Nesse caso, senhor, bom-dia.- Bom-dia, professor Potterley. E acredite que fico penalizado. Estendeu a mão em

cumprimento, Potterley tocou-a de leve. O historiador se retirou e um toque da cigar-ra trouxe ao gabinete a secretária de Araman. Ele lhe entregou a pasta.

- Isto - ordenou - pode ser jogado fora.Novamente a sós ele sorriu com amargura. Mais um episódio do serviço que por

um quarto de século prestava à raça humana. O serviço pela negação.Pelo menos aquele camarada tinha sido fácil de mandar embora. Às vezes a pres-

são de natureza acadêmica tinha de ser utilizada, até mesmo a retirada dos fundos para pesquisas.

Cinco minutos depois esquecera o professor Potterley. Tampouco, como pensaria mais tarde, poderia lembrar-se de ter sido assaltado por qualquer presságio de peri-go.

Nos primeiros anos de sua frustração, Arnold Potterley não sentira outra coisa se-não isso - frustração. No decurso do segundo ano, todavia, essa frustração dera ori-gem a uma ideia que de começo o assustara e depois passara a fasciná-lo. Duas coi-sas tinham-no impedido de tentar traduzir a ideia em atos e nenhuma das barreiras era o fato indubitável de que se tratava de ideia das menos éticas.

A primeira resumia-se somente na esperança continuada de que o governo final-mente concedesse permissão e lhe tornasse desnecessário fazer qualquer coisa a mais. Essa esperança finalmente derruíra no encontro que acabara de ter com Ara-man.

A segunda barreira não fora uma esperança, em absoluto, porém a compreensão melancólica de sua própria incapacidade. Não era um físico e não conhecia físicos que pudessem ajudá-lo. O Departamento de Física da universidade era composto de homens muito bem supridos em dotações e totalmente imersos em especialidades. Na melhor das hipóteses não lhe dariam ouvidos e, na pior, dariam parte dele por anarquia intelectual, e até sua dotação básica cartaginesa poderia ser facilmente reti-rada.

Não pedia arriscar-se a tanto. Mas ainda assim a cronoscopia era o meio de pros-seguir com o trabalho. Sem ela seria o mesmo que lhe tirarem a dotação.

O primeiro vislumbre de que a segunda barreira poderia ser ultrapassada ocorrera-lhe uma semana antes do encontro com Aramam e passara desapercebido na ocasi-ão. Ocorrera em um dos chás dados pela faculdade. Potterley aparecia a essas reuni-ões invariavelmente, já que entendia o comparecimento às mesmas como um dever de sua parte e era homem que levava seus deveres a sério. Uma vez lá, contudo, não acreditava ser responsabilidade sua manter conversação leve ou formar novas amizades. Bebericava de modo abstêmio, tomando um copo ou dois, trocava pala-vras educadas com o decano ou com o chefe de departamento que estivessem pre-sentes, outorgava um sorriso muito ralo para os demais e finalmente se retirava.

Em geral não teria dado atenção, naquele último chá, a um rapaz que se mantinha em pé e calado, até um tanto acanhado, a um canto. Jamais teria pensado em lhe falar. Mesmo assim uma pontada de acaso o persuadira daquela vez a se comportar de modo contrário à sua natureza.

Nessa manhã, ao desjejum, a Sra. Potterley anunciara sombriamente que mais uma vez sonhara com Laurel, mas dessa feita uma Laurel crescida, embora manten-do o rostinho de três anos de idade que a assinalava como filha deles. Potterley dei-xara a esposa falar. Houvera época na qual combatera a preocupação demasiada-mente frequente da mulher com as coisas passadas e com a morte. Laurel não volta-ria a eles, quer por meio de sonhos ou por meio de conversa, mas se isso acalmava Caroline Potterley, que sonhasse e falasse.

Mas quando Potterley foi para a faculdade aquela manhã descobriu que, pelo me-nos dessa vez, ficara afetado pelas insanidades de Caroline. Laurel crescida! Ela mor-rera cerca de vinte anos atrás; fora a única filha deles, em todos os tempos. E por

todo esse tempo, quando pensava nela, pensava em uma menina de três anos de idade.

Agora, entretanto, imaginava: mas se nossa filha estivesse viva não estaria com três anos de idade, teria cerca de vinte e três.

Foi impossível deixar de pensar em Laurel como criança que ia se tomando cada vez mais velha e, afinal, chegando a vinte e três anos de idade. Não obteve êxito na empreitada, todavia.

Ainda assim tentou. Laurel usando maquilagem. Laurel saindo com rapazes. Laurel casando-se!

Assim é que, ao ver o rapaz pairando nas adjacências do grupo de fria circulação e formado pelos professores, ocorreu-lhe o pensamento quixotesco de que, a bem do fato, um rapaz como aquele poderia ter se casado com Laurel. Talvez aquele próprio rapaz, quem podia dizer?

Laurel poderia tê-lo conhecido ali, na universidade, ou em alguma noite na qual ele houvesse sido convidado para jantar na casa dos Potterley. Talvez um se interes-sasse pelo outro e Laurel com certeza teria sido bonita, aquele rapaz tinha bom as-pecto. Era de cor morena, o rosto magro e atento, o porte desenvolto.

Esse sonho se desfez, mas ainda assim Potterley verificou que olhava tolamente para o rapaz, não a fitá-lo como um rosto estranho, mas como um possível genro no terreno da fantasia. E verificou que abria caminho na direção do homem. Era como se fosse uma forma de auto-hipnotismo.

Estendeu a mão, então.- Eu sou Arnold Potterley, do Departamento de História. Você é novo aqui, estou

certo?O rapaz pareceu levemente espantado e se atrapalhou com o copo de bebida, pas-

sando-o á mão esquerda para aceitar a mão que lhe era estendida.- Eu me chamo Jonas Foster, senhor. Sou o novo instrutor de física. Comecei neste

semestre.Potterley assentiu.- Espero que sua estada seja feliz e que tenha grande êxito. Foi só. Potterley volta-

ra a seus sentidos com alguma dificuldade, descobria-se embaraçado e se afastou. Olhou pelo ombro uma vez, mas a ilusão do parentesco desaparecera. A realidade voltara. Ele se aborrecia por ter sido presa da conversa tola da esposa no tocante a Laurel.

Uma semana depois, entretanto, mesmo enquanto Araman lhe falava, a lembrança do rapaz lhe voltara. Instrutor de física. Instrutor novo. Ter-lhe-ia acometido um acesso de surdez na ocasião? Teria ocorrido um curto-circuito entre o ouvido e o cé-rebro? Ou seria aquilo o resultado de uma auto-censura automática, devido ao próxi-mo encontro que ia ter com o chefe da Cronoscopia?

O encontro fracassara, no entanto, e foi a lembrança do rapaz com quem ele tro-cara duas frases o que impediu Potterley de preparar seu apelo para que o pedido fosse re-examinado Estava quase aflito por afastar-se dali. E no expresso-autogiro de volta à universidade quase sentia desejo de ser supersticioso. Poderia, nesse caso, consolar-se com o pensamento de que o encontro casual e sem sentido fora na ver-dade dirigido por um Destino providencial.

Jonas Foster não era elemento novo na vida universitária. A luta prolongada e difí-cil para obter o seu doutorado teria feito de qualquer homem um veterano. E o tra-balho posterior, assistente de ensino pós-doutorado, servira como reforço.

Agora, entretanto, ele era o Instrutor Jonas Foster. A dignidade professoral achava-se à sua frente e ele se encontrava em uma espécie nova de relação com os demais professores.

Entre outras coisas esses professores estariam na votação que decidiria as promo-ções futuras. E outra, ele próprio não se encontrava em condições para dizer naquele momento qual o membro do corpo docente que teria ou não acesso especial ao de-cano ou mesmo ao presidente da universidade. Não se considerava um político de universidade e tinha certeza de que não serviria para tanto, mas de nada adiantava dar pontapés no próprio traseiro só para provar isso a si mesmo.

Assim é que Foster dera ouvidos àquele historiador educado que, de modo vago, ainda assim parecia irradiar tensão e não o fez calar-se, pondo-o para fora abrupta-mente. Tal foi o seu primeiro impulso, porém.

Lembrava-se bastante bem de Potterley. Este viera falar-lhe naquele chá (que fora uma coisa deplorável). O camarada lhe dissera frases, hirto, o olhar um tanto vidra-do, depois voltara a si com um sobressalto visível e se retirara afobadamente.

Na ocasião Foster se divertira com o incidente, mas agora...Potterley podia estar deliberadamente tentando travar conhecimento com ele ou

então tentando impressionar Foster, levando-o a pensar que fosse um camaradinha gozado, excêntrico e inofensivo.

Podia estar agora sondando as opiniões de Foster, procurando opiniões prejudi-ciais. Com certeza eles já deveriam ter feito investigações antes de lhe conceder sua nomeação, mas, quem sabe...

Potterley podia estar falando sério, podia não compreender sinceramente o que fa-zia. Ou talvez compreendesse muito bem o que estava fazendo, talvez nada mais fosse do que um patife perigoso.

Foster resmungou:- Bem, vamos ver... - e para ganhar tempo, estendeu um maço de cigarros, pre-

tendendo oferecer um deles a Potterley e acender outro para si, bem devagar.Mas Potterley atalhou no mesmo instante:- Por favor, professor Foster. Nada de cigarros.Foster pareceu sobressaltado.- Sinto muito, senhor.- Não. Quem sente sou eu. Não aguento o cheiro. É uma idiossincrasia minha. Sin-

to muito.Empalidecera por completo e Foster guardou o maço de cigarros. Logo em segui-

da, sentindo a ausência do cigano, adotou a saída fácil.- Sinto-me lisonjeado por ter vindo pedir minha orientação e tudo o mais, profes-

sor Potterley, mas eu não sou especialista em neutrínica Nada sei fazer que seja pro-fissional, nesse sentido. Até mesmo dar uma opinião seria tolice e, francamente, pre-firo que o senhor não entre em qualquer detalhe.

No rosto do historiador os traços se tornaram mais duros.- O que quer dizer, que não conhece a neutrínica? O senhor ainda não é nada. Não

recebeu qualquer dotação, verdade?- Este é o meu primeiro semestre.- Sei disso. Suponho que ainda não tenha pedido uma dotação.Foster sorriu ralo. Em três meses na universidade ele não conseguira colocar seus

pedidos iniciais de dotação para pesquisa em redação suficientemente boa para en-tregar a um redator científico profissional, muito menos à Comissão de Pesquisa.

(Seu Chefe de Departamento, por sorte, aceitara aquilo muito bem. "Leve o tempo que quiser, Foster”, dissera, "e organize bem os pensamentos. Tenha a certeza de

que enxerga bem o caminho e para onde o mesmo vai, porque depois de receber uma dotação a sua especialização será oficialmente conhecida e, certa ou errada, será sua por todo o resto da vida", Tal conselho fora bastante trivial, mas a trivialida-de muitas vezes tem o mérito da verdade e Foster o reconhecera.)

Foster disse:- Por educação e inclinação, professor Potterley, sou homem da hiper-óptica, com

estudo em gravítica. Foi assim que me descrevi ao preencher o formulário para este cargo. Pode não ser ainda minha especialização oficial, mas será. Outra coisa se mostraria impossível. Quanto à neutrínica, nem mesmo estudei a matéria.

- E por que não? - interpelou Potterley, no mesmo instante. Foster se pós a fitá-lo. Aquele era o tipo de curiosidade grosseira, quanto à posição profissional alheia, o que sempre se mostrava bastante irritante. Disse, já não tão educadamente:

- O curso em neutrínica não era dado em minha universidade.- Santo Deus, qual delas frequentou?- A M.I.T. - disse Foster, ainda calmo.- E eles não ensinam neutrínica?- Não, não ensinam - respondeu Foster, e descobriu que enrubescia, era colocado

em situação defensiva. - Trata-se de matéria muitíssimo especializada e sem grande valor. Talvez a cronoscopia tenha algum valor, mas é a única aplicação prática e não passa de um beco sem saída.

O historiador o fitava cheio de aflição.- Diga-me uma coisa. Sabe onde posso encontrar um conhecedor de neutrínica?- Não, não sei - retorquiu Foster, sem mais rodeios.- Muito bem, nesse caso conhece alguma faculdade que ensine neutrínica?- Não, não conheço.Potterley sorriu de leve, os lábios apertados e sem qualquer bom-humor.A Foster esse sorriso ofendeu, julgou perceber alguma ofensa no sorriso e irritou-

se o bastante para dizer:- Gostaria de fazer-lhe ver, senhor, que está saindo da linha.- O quê?- Estou dizendo que como historiador o seu interesse em qualquer espécie de físi-

ca, e seu interesse profissional, é... - fez uma pausa, incapaz de dizer a palavra.- Sem ética?- Isso mesmo, professor Potterley.- Às minhas pesquisas me levaram a tanto - retorquiu Potterley, em murmúrio

cheio de fervor.- A Comissão de Pesquisas é o lugar a consultar. Se eles permitirem- Eu fui lá e não recebi qualquer satisfação.- Nesse caso o senhor deve abandonar isso, é evidente - e Foster sabia que estava

dizendo palavras sufocantemente virtuosas, mas não ia deixar que aquele homem o atraísse a uma expressão de anarquia intelectual. Era cedo demais em sua carreira para arriscar-se de modo estúpido.

Ao que pareceu, no entanto, tal observação causou efeito em Potterley. Sem qual-quer advertência o homem explodiu em uma tempestade verbal de irresponsabilida-de.

Os estudiosos, no que disse, só poderiam ser livres se pudessem seguir com liber-dade sua curiosidade de oscilação igualmente livre. As pesquisas, ao que afirmou, forçadas a uma configuração pré-desenhada pelas forças que retinham os cordões das bolsas tornavam-se escravizadas e tinham de estagnar. Ninguém, afirmou então, tinha o direito de ditar os interesses intelectuais dos outros.

Foster ouviu tudo aquilo cheio de descrença. Nada lhe parecia conhecido no que o homem dizia. Ele ouvira os estudantes de faculdade falarem assim, visando choca-rem os mestres, e uma ou duas vezes também se divertira desse modo. Qualquer pessoa que houvesse estudado história da ciência sabia que muitos homens haviam, em tempos idos, pensado dessa maneira.

Ainda assim parecia-lhe estranho, quase contra a natureza, que um homem mo-derno de ciência pudesse acreditar em tanta bobagem. Ninguém podia supor que uma fábrica fosse dirigida permitindo-se a cada operário fazer o que bem lhe agra-dasse no momento, ou em comandar um navio de acordo com as idéias casuais e contraditórias de cada tripulante por si. Devia-se aceitar naturalmente em que algu-ma espécie de órgão supervisor centralizado existisse em todos os casos. Por que a direção e a ordem haveriam de beneficiar uma fábrica e um navio, mas não a pes-quisa científica?

Algumas pessoas talvez afirmassem que a mente humana era de algum modo qua-litativamente diferente de um navio ou fábrica, mas a história dos esforços intelec-tuais vinha provar o contrário.

Quando a ciência era jovem e as complexidades de tudo ou da maior parte do que se sabia encontrava-se dentro do alcance de u'a mente individual talvez não houves-se necessidade de direção. A marcha cega sobre as trilhas desconhecidas da igno-rância podia levar a descobertas maravilhosas, por mero acidente.

Mas à medida que o conhecimento crescera, uma soma cada vez maior de dados tivera de ser absorvida antes que jornadas valiosas no terreno da ignorância pudes-sem ser organizadas. Os homens tinham que se especializar. O pesquisador necessi-tava dos recursos de uma biblioteca que ele próprio não poderia possuir e, depois, de instrumentos que ele próprio não poderia comprar. Cada vez mais o pesquisador individual dera lugar à equipe de pesquisa e à instituição de pesquisa.

As dotações necessárias para pesquisa tornavam-se maiores à medida que os ins-trumentos se tornavam mais numerosos. Que faculdade era tão pequena, hoje, que não precisasse de, pelo menos, um micro-reator nuclear e de, pelo menos, um com-putador de três etapas?

Séculos antes os indivíduos, por si só, já não tinham podido financiar as pesquisas. À altura de 1940, apenas o governo, as grandes indústrias e as grandes universida-des ou instituições de pesquisas podiam financiar adequadamente as pesquisas bási-cas.

À altura de 1960 até mesmo as universidades maiores dependiam por completo de dotações governamentais, enquanto as instituições de pesquisa não podiam existir sem concessões fiscais e subscrições públicas. No ano de 2.000 os conjuntos indus-triais haviam-se tomado um ramo do governo mundial e, dali em diante, o financia-mento das pesquisas e, portanto, a direção das mesmas, havia sido naturalmente centralizada sob um departamento do governo.

Tudo viera a se formar de modo natural. Cada ramo da ciência se ajustava clara-mente às necessidades do público e os diversos ramos da ciência eram decentemen-te coordenados, O progresso material do último meio século vinha apresentar argu-mentação suficiente para o fato de que a ciência não marchava para a estagnação.

Foster tentou dizer um pouco de tudo isso e não conseguiu, devido aos gestos im-pacientes de Potterley, que atalhava:

- O senhor está papagueando a propaganda oficial. Está sentado no meio de um exemplo inteiramente contrário ao ponto de vista oficial. E consegue acreditar nisso?

- Francamente, não.- Muito bem, por que diz que a viagem no tempo é um beco sem saída? Por que a

neutrínica não tem importância? O senhor diz que sim, e diz de modo taxativo, mas nunca a estudou. Afirma ignorar completamente a matéria. Ela nem sequer é lecio-nada em sua faculdade...

- O simples fato de não ser lecionada não constitui prova bastante?- Ah, entendo. Não é lecionada porque não tem importância. E não tem importân-

cia porque não é lecionada. Este raciocínio o satisfaz?Foster sentiu-se tomado por confusão crescente.- Está nos livros.- Só isso, não? Os livros dizem que a neutrínica não tem importância. Os seus pro-

fessores dizem isso, também, porque foi o que leram nos livros. Os livros dizem isso porque foram escritos pelos professores. E quem diz, com base em experiência e co-nhecimento pessoais? Quem faz pesquisas no terreno? Conhece alguém?

Foster observou:- Acho que não estamos chegando a qualquer conclusão, professor Potterley. Pre-

ciso trabalhar...- Um momento. Quero que pense numa coisa. Veja como lhe parece. Eu digo que

o governo está suprimindo as pesquisas básicas na neutrínica e na cronoscopia. Eles estão suprimindo a aplicação da cronoscopia.

- Ora, essa não!- E por que não? Está ao alcance deles. Veja só essa pesquisa dirigida por um cen-

tro. Se eles recusam dotações para as pesquisas em qualquer setor da ciência, esse setor acaba. Eles acabaram com a neutrínica. Podem acabar com qualquer setor, e foi o que fizeram.

- Mas por que motivo?- Não sei. Quero que o senhor descubra. Eu mesmo o faria, se soubesse o bastan-

te. Vim procurá-lo porque o senhor é um jovem, acabou de receber educação nova. As suas artérias intelectuais já se endureceram? Não existe curiosidade no senhor? Não quer saber? Não quer ter as respostas?

O historiador fitava com atenção o semblante de Foster. Seus narizes não tinham mais que um palmo de distância entre si e Foster estava tão imerso em pensamentos que não se lembrou de recuar.

Devia, por todos os títulos, ter ordenado a Potterley que se retirasse. Se fosse pre-ciso, devia tê-lo expulso dali.

Não foi o respeito pela idade ou pela posição que o deteve. Não se tratava, em absoluto, de que o arrazoado de Potterley o houvera convencido. Na verdade tratava-se de uma pequena questão de orgulho estudantil.

Por que o M.I.T. não dava um curso em neutrínica? A bem do fato, pensando bem no assunto, duvidava que houvesse um só livro sobre neutrínica na biblioteca univer-sitária. Não conseguia lembrar-se de ter visto um só.

Parou então, para pensar sobre isso.E foi o desastre.

Caroline Potterley já fora uma bela mulher. Havia ocasiões, tais como jantares ou reuniões na universidade, nas quais graças a esforço considerável, restos dessa atra-ção podiam ser reapresentados.

Nas ocasiões comuns ela decaía. Era a palavra que aplicava a si mesma, nos mo-mentos em que se detestava. Engordara ao correr dos anos mas a flacidez em seu corpo não era inteiramente gordura. Era como se seus músculos houvessem desisti-do e amolecido, de modo que arrastava os pés ao caminhar, enquanto os olhos se

tornavam empapuçados e as faces rotundas. Até os cabelos grisalhos pareciam can-sados, em vez de lisos. Seu caimento parecia ser o resultado de uma entrega total à gravidade e nada mais.

Caroline Potterley fitava-se no espelho e reconhecia estar em um de seus dias ruins. E sabia também qual o motivo.

Fora o sonho com Laurel. Aquele sonho estranho, com Laurel crescida. Desde en-tão ela estivera pessimamente.

Ainda assim lamentava ter mencionado o sonho a Arnold. Ele não dissera uma só palavra, não falava mais sobre o assunto, mas tal lhe causara mau resultado. Mostra-va-se especialmente reservado por dias seguidos. Talvez estivesse a preparar-se para aquele encontro importante com o grande funcionário do governo (ele lhe dizia sem-pre que não contava com qualquer êxito), mas podia ser igualmente o resultado do sonho que lhe contara.

Tudo fora melhor tempos atrás, quando ele se voltava para ela, gritando com as-pereza: "Deixe o passado ir embora, Caroline! A conversa não a trará de volta, os so-nhos também não".

Aquilo fora ruim para ambos. Horrível. Ela estivera fora de casa e vivera cheia de culpa desde então. Se houvesse ficado em casa, se não houvesse saído para fazer compras desnecessárias, nesse caso os dois estariam presentes. Um deles teria con-seguido salvar Laurel.

O pobre Arnold não conseguira. Deus sabia que ele tentara. Quase morrera ele mesmo, e saíra da casa incendiada, cambaleante de sofrimento, queimado, sufocado, quase cego, tendo nos braços a filha morta.

O pesadelo continuava existindo, nunca terminava por completo.Arnold criara lentamente uma carapaça em torno de si mesmo. Cultivava uma sua-

vidade em voz baixa, suavidade essa que nada rompia, nem mesmo um relâmpago. Tornara-se puritano e chegara a abandonar os vícios pequenos, a inclinação para al-gumas palavras menos educadas, conforme a ocasião. Obtivera a dotação para a preparação de uma história de Cartago e subordinara tudo o mais a essa meta.

Caroline tentara ajudá-lo. Procurava as referências, datilografava suas anotações e as microfilmava. E depois aquilo terminara de repente.

Ela saíra correndo da escrivaninha, certa noite, chegara ao banheiro a tempo e vo-mitara de modo abominável. O marido viera atrás, cheio de confusão e preocupação.

- Caroline, o que se passa?Foi necessário um copo de bebida para acalmá-la, e ela perguntara então:- É verdade? O que eles faziam?- Quem fazia o quê?- Os cartagineses.Ele a fitara e ela se explicara por meio indireto, não conseguira dizer claramente de

que se tratava.Os cartagineses, ao que parecia, adoravam Moloch, na forma de um ídolo oco e de

bronze, tendo no ventre uma fornalha. Nos momentos de crise nacional os sacerdo-tes e o povo se reuniam e criancinhas, após as cerimônias de invocações adequadas, eram atiradas vivas naquelas chamas.

Recebiam alimentos especiais pouco antes do momento crucial, para que a eficácia do sacrifício não fosse arruinada por desagradáveis gritos de pânico. Os tambores ru-favam logo após aquele momento, a fim de abafarem os poucos segundos de gritos infantis. Os pais se achavam presentes, presumivelmente satisfeitos porque o sacrifí-cio agradava aos deuses.

Arnold Potterley fizera carranca. Eram mentiras perversas, ao que ele afirmou,

mentiras inventadas pelos inimigos de Cartago. Devia tê-la prevenido. Afinal de con-tas tais mentiras propagandísticas não eram incomuns. De acordo com os gregos, os antigos hebreus adoravam uma cabeça de asno em seu Santo dos Santos. De acordo com os romanos, os primeiros cristãos eram homens que odiavam a todos e sacrifi-cavam crianças pagãs nas catacumbas.

- Eles não faziam isso, então? - perguntara Caroline.- Tenho certeza que não. Os fenícios primitivos podem ter feito. O sacrifício huma-

no é comum nas culturas primitivas. Mas Cartago, nos seus grandes dias, não foi uma cultura primitiva. O sacrifício humano muitas vezes abre caminho a atos simbóli-cos, como a circuncisão. Os gregos e romanos podem ter-se enganado e tomado osimbolismo cartaginês como rito verdadeiro, por ignorância ou por maldade.

- Você tem certeza?- Não posso ter certeza ainda, Caroline, mas quando contar com provas suficientes

vou pedir licença para usar a cronoscopia, e isso resolverá o assunto de uma vez por todas.

- A cronoscopia?- É voltar ao passado, vendo o que ocorreu no passado. Podemos focalizar a Carta-

go Antiga em algum momento de crise, o desembarque de Cipião Africano em 202 A.C., por exemplo, e ver com nossos próprios olhos o que aconteceu de verdade. E você vai ver, vai ver que tenho razão.

Bateu-lhe no ombro para reconfortá-la e dedicou-lhe um sorriso de encorajamento, mas a esposa sonhou com Laurel todas as noites por duas semanas seguidas e nun-ca mais voltou a ajudá-lo em seu trabalho sobre Cartago. Tampouco o marido lhe pe-diu que voltasse a fazê-lo.

Ela, agora, preparava-se para a chegada do marido. Ele a chamara depois de che-gar à cidade, dizendo-lhe que tinha estado com o homem do governo e que a coisa andara como esperava. Isso significava fracasso, mas ainda assim o pequenino sinal de abatimento estivera ausente na voz dele, seus traços fisionômicos tinham pareci-do bastante calmos no televisor. Ele tinha outra coisa a fazer, avisara, antes de ir para casa.

Isso significava que o marido chegaria tarde, porém tal não importava. Nenhum dos dois se preocupava quanto ao horário das refeições, nem quando os mantimen-tos eram tirados do congelador, ou mesmo quais eram os mantimentos, ou até quan-do o mecanismo auto-aquecedor entrava em ação.

Quando ele chegou, surpreendeu-a. Nada havia de aborrecido em Potterley, pelo menos que se pudesse notar. Beijou-a como de costume e sorriu, tirou o chapéu e perguntou se as coisas haviam andado bem durante a sua ausência. Estivera quase tudo inteiramente normal. Quase.

No entanto, ela aprendera a perceber coisas pequenas. E o modo do marido andar, durante tudo aquilo, mostrava-se um pouco apressado. Bastava mostrar-lhe que ele se achava sob tensão.

Perguntou, então:- Aconteceu alguma coisa?Ele disse:- Vamos ter um convidado para o jantar daqui a duas noites, Caroline. Você se im-

porta?- Não, não me importo. É alguém que eu conheço?- Não. Um jovem instrutor. Um recém-chegado. Conversei com ele. - Subitamente,

o marido voltou-se para ela, tomou-lhe os braços pelos cotovelos, segurou-os por um momento e logo os soltou, cheio de confusão, como se estivesse desconcertado por

ter demonstrado alguma emoção.Potterley disse, então:- Quase não o fiz entender. Imagine só. É terrível, terrível, o modo como todos nós

nos submetemos à canga, a afeição que sentimos pelos arreios a que estamos pre-sos.

A Sra. Potterley não tinha certeza de haver entendido, mas durante um ano estive-ra a observar o marido, percebendo que ele se tornava sossegadamente mais rebel-de; pouco a pouco mais audacioso em suas críticas ao governo. Perguntou-lhe:

- Você não disse alguma tolice a ele, disse?- O que quer dizer com tolice? Ele vai trabalhar para mim em neutrínica."Neutrínica" era tolice polissilábica para a Sra. Potterley, mas esta sabia que nada

tinha a ver com o estudo da história, e contrapôs, sem vigor:- Arnold, não gosto que você faça isso. Vai perder sua posição. É...- É anarquia intelectual, minha cara - concordou ele. - É essa a expressão que

você procura. Muito bem, sou um anarquista. Se o governo não me permite prosse-guir com as minhas pesquisas eu prosseguirei por conta própria. E quando mostrar o caminho, os outros acompanharão... E se não acompanharem, não faz diferença al-guma. É Cartago que conta e também o conhecimento humano, e não você e eu.

- Mas você conhece esse moço. E se for um agente do Comissário de Pesquisa?- Improvável; e eu vou me arriscar - retrucou o marido, cerrando o punho direito e

esfregando-o com suavidade na palma da mão esquerda. - Ele agora está a meu lado, tenho certeza. Não pode ser de outro jeito. Eu reconheço a curiosidade intelec-tual quando a percebo nos olhos, no rosto e na atitude de um homem, é uma doen-ça fatal para o cientista amestrado. Mesmo hoje preciso de tempo para consegui-la em um homem e os jovens são vulneráveis... Oh, por que parar, afinal? Por que não construir nosso próprio cronoscópio e dizer ao governo para ir...

Parou abruptamente, sacudiu a cabeça e voltou-se para outro lado.- Espero que tudo dê certo - disse a Sra. Potterley, na certeza indefesa de que

nada daria certo e assustada antecipadamente pela posição professoral do marido e a segurança da velhice de ambos.

Apenas ela, entre todos, tinha o pressentimento violento de encrencas. E encren-cas do tipo errado, está claro.

Jonas Foster chegou com cerca de meia hora de atraso à casa dos Potterley, que não ficava no conjunto universitário. Até aquela noite não resolvera por completo se iria ou não. E no último instante verificou que não conseguiria cometer um crime so-cial de desmarcar um jantar uma hora antes do momento aprazado. Isso e mais o impulso da curiosidade.

O jantar, em si mesmo, pareceu interminável. Foster comeu sem qualquer apetite, a Sra. Potterley permanecia sentada, distraída e distante, saindo dessa apatia apenas uma vez para perguntar se ele era casado e para emitir um som de depreciação ao saber que não. O próprio professor Potterley fez perguntas inteiramente tolas sobre sua história profissional, assentindo cerimoniosamente às respostas.

Fora tudo tão sossegado, indigesto - na verdade, cacete - quanto possível.Foster pensava: ele parece tão inofensivo.Foster passara os dois últimos dias lendo sobre o professor Potterley. De modo

muito casual, e, está claro, muito furtivamente. Não morria de desejos de que o vis-sem na Biblioteca de Ciências Sociais. A história era certamente uma dessas ativida-des fronteiriças e as obras históricas serviam frequentemente de leitura para diverti-

mento ou edificação do público em geral.Mesmo assim um físico não era considerado um "público em-geral". Se Foster co-

meçasse a ler histórias seria considerado esquisito, criatura tão firme quanto a relati-vidade, e após algum tempo o Chefe de Departamento estaria dando tratos à bola, pensando se o novo instrutor que recebera era de fato "o homem para o lugar".

Por esses motivos precisava ter cautela. Sentou-se nos lugares mais isolados e procurou entrar e sair em horas de pouco movimento, sempre de cabeça baixa.

O professor Potterley, ao que verificou, escreveu três livros e perto de uma dúzia de artigos sobre os antigos mundos mediterrâneos e os artigos mais recentes (todos eles em "Revistas Históricas") haviam lidado com a Cartago pré-romana, demons-trando ponto de vista solidário.

Isso, pelo menos, conferia com o relato feito por Potterley e servira para abrandar um pouco as desconfianças de Foster... e este achava que teria sido mais aconselhá-vel e mais seguro descartar-se do assunto logo de início,

Um cientista não devia ser demasiadamente curioso, estava agora pensando em completa insatisfação consigo mesmo. Isso é um traço perigoso.

Após o jantar foi levado ao estúdio de Potterley e estacou de súbito no umbral. Às paredes estavam simplesmente cobertas de livros.

Havia alguns filmes, está claro, mas estes se viam muitíssimo superados, em nú-mero, pelos livros - impressos em papel. Ele não teria julgado possível que tantos li-vros existissem ainda em bom estado. A observação causou incômodo a Foster. Por que haveria alguém de querer ter tantos livros em casa? Por certo todos aqueles vo-lumes estavam à disposição na biblioteca da universidade ou, na pior das hipóteses, na Biblioteca do Congresso, caso alguém quisesse se dar ao trabalho de conferir um microfilme.

A existência de uma biblioteca em casa implicava em um elemento de sigilo, trans-pirava a anarquia intelectual. Esse último pensamento, por singular que fosse, veio acalmar Foster. Ele preferia que Potterley fosse um anarquista autêntico do que um agent provocateur trabalhando para alguém.

E agora as horas começavam a passar com rapidez e espanto.- A questão - disse Potterley, voz clara e sem pressa - era descobrir, se fosse possí-

vel, alguém que já houvesse usado a cronoscopia no trabalho. Está claro que eu não podia fazer perguntas abertas, pois tal constituiria pesquisa desautorizada.

- Sim - concordou Foster com muita sequidão, um pouco surpreso que tal pensa-mento pudesse parar aquele homem.

- Usei métodos indiretos.E usara realmente. Foster pasmou-se diante do volume de correspondência lidando

com pequenas questões debatidas sobre a cultura mediterrânea que, de algum modo, haviam conseguido produzir a observação casual repetidas vezes: "Está claro que, sem ter feito uso da cronoscopia..." ou: "Esperando a aprovação de meu pedido de dados cronoscópicos, que parece improvável no momento..."

- Pois bem, não se trata de perguntas cegas - afiançou Potterley. - Há um livreto mensal publicado pelo Instituto de Cronoscopia, no qual as questões referentes ao passado, esclarecidas pelas viagens no tempo, se acham impressas. Apenas uma ou duas questões.

Fez uma pausa, prosseguiu:- O que me impressionou de início foi a trivialidade da maioria dessas questões,

sua insipidez. Por que haveriam tais pesquisas de obter prioridade sobre o meu tra-balho? Por isso escrevi às pessoas que deveriam estar fazendo pesquisas nas dire-ções descritas pelo folheto. E de maneira uniforme, como acabei de lhe mostrar, elas

nãofaziam uso do cronoscópio. Agora vamos examinar a questão tintim por tintim.

Finalmente Foster, com a cabeça girando diante dos detalhes meticulosamente reunidos por Potterley, perguntou:

- Mas, por quê?- Não sei o motivo - respondeu Potterley - mas tenho uma teoria. A invenção inicial

do cronoscópio foi de Sterbinski... como vê, sei até isso... ele recebeu grande divul-gação. Mas depois o governo apoderou-se do instrumento e resolveu suprimir quais-quer outras pesquisas no assunto ou qualquer uso da máquina. Mas a essa altura as pessoas podiam querer saber por qual motivo a máquina não estava sendo utilizada. A curiosidade é um vício tremendo, professor Foster.

- Sim, - o físico concordou intimamente.- Imagine portanto a eficácia - prosseguiu Potterley - de fingir que o cronoscópio

estava sendo empregado. Nesse caso não seria um mistério, mas um lugar-comum. Não constituiria motivo adequado para a curiosidade ilícita.

- O senhor teve curiosidade - Foster fez ver. Potterley pareceu um pouco inquieto.- Em meu caso era diferente - respondeu, com amargura. - Tenho algo que precisa

ser feito e não me submeteria ao modo ridículo pelo qual continuavam a me tratar.Um pouquinho paranoico, além do mais, pensava Foster, cheio de desalento.Mesmo assim obtivera algo, paranoico ou não. Foster não podia negar que algo es-

tranho se passava no setor de neutrínica.Mas o quê procurava Potterley? Isso continuava amolando Foster. Se Potterley não

estava a lhe contar tudo aquilo a fim de pôr à prova a sua ética, o quê queria, então?Foster procurava encarar a coisa com lógica. Se um anarquista intelectual com cer-

ta dose de paranoia queria usar o cronoscópio e se achava convencido de que forças ocultas estavam deliberadamente tentando impedi-lo, o que podia fazer?

E se eu estivesse nessa situação? Perguntava a si próprio. O que faria?Respondeu então, falando devagar:- Talvez o cronoscópio não exista, afinal, será assim? Potterley sobressaltou-se visi-

velmente. Sua calma geral quase foi por água abaixo. Por momentos Foster se viu diante de um homem que não era calmo, em absoluto.

O historiador, contudo, manteve o equilíbrio e contrapôs:- Oh, não, tem de haver um cronoscópio.- Por quê? O senhor já o viu? Eu já vi? Talvez seja essa a explicação para tudo. Tal-

vez eles não estejam deliberadamente escondendo o cronoscópio que têm. Talvez eles não o tenham, logo para começar.

- Mas Sterbinski viveu, montou um cronoscópio. Isso é fato consumado.- Assim diz o livro - observou Foster friamente.- Escute aqui - e Potterley chegou a estender o braço para agarrar a manga do

paletó de Foster. - Eu preciso do cronoscópio. Preciso dele. Não me diga que não existe. O que vamos fazer é descobrir neutrínica suficiente para podermos...

Potterley atalhou o que dizia, Foster retirou a manga presa pela mão do outro. Não precisava que o outro completasse a frase iniciada. Ele próprio a completou, dizendo:

- Construir um para nós?Potterley pareceu aborrecido, como se desejasse que tal não fosse dito tão à quei-

ma-roupa. Mesmo assim perguntou:- E por que não?- Porque está fora de cogitações - explicou Foster. - Se o que li for certo, então

Sterbinski precisou de vinte anos para construir a máquina e de diversos milhões em dotações gerais. O senhor acha que podemos, os dois, fazer o mesmo que ele fez, e

ilegalmente? Suponhamos que tivéssemos o tempo, coisa que não temos, e supo-nhamos que eu pudesse aprender o bastante nos livros, o que duvido, onde iríamos obter o dinheiro e o equipamento? O cronoscópio, pelo que sei, deve preencher algu-ma coisa como um edifício de cinco andares, pelo amor de Deus!

- Nesse caso o senhor não vai me ajudar?- Bem, vou-lhe dizer o que farei. Existe um jeito pelo qual eu posso descobrir

algo...- E qual é? - perguntou Potterley imediatamente.- Não importa, não vem ao caso. Mas eu talvez possa descobrir o bastante para

lhe dizer se o governo está deliberadamente suprimindo as pesquisas pelo cronoscó-pio. Posso confirmar as indicações que o senhor já tem, ou posso ser capaz de pro-var que as suas indicações não estão corretas. Não sei de que isso poderá servir-lhe em qualquer dos casos, mas é o que posso fazer, é o meu limite.

Potterley ficou a olhar enquanto o rapaz finalmente se retirava. Sentia raiva de si próprio. Por que motivo se tornara tão descuidado a ponto de permitir que aquele camarada adivinhasse que ele pensava em construir um cronoscópio próprio? Era algo muito prematuro.

Nesse caso, entretanto, por que aquele jovem imbecil teria de supor que um cro-noscópio não existisse, em absoluto?

Tinha de existir. Tinha. De que adiantava dizer que não existia?E por que não podia ser construído um outro? A ciência havia avançado muito nos

cinquenta anos decorridos após Sterbinski e tudo que se precisava era de conheci-mento.

Que o jovem juntasse o conhecimento. Que pensasse em resolver a questão com um pouco de coleta de conhecimento. Tendo tomado a trilha para a anarquia, não havia limites. Se o rapaz não fosse levado à frente por algo em si mesmo, os primei-ros passos constituiriam erro suficiente para forçar tudo o mais. Potterley tinha toda a certeza de que ele não hesitaria em usar a chantagem.

Dedicou-lhe um último aceno de despedida e olhou para cima. Começava a chover.Com certeza! Chantagem, se fosse preciso, mas ele não pararia mais.

Foster dirigiu o carro para fora das cercanias desoladas da cidade e quase não se apercebia da chuva.

Era mesmo um imbecil, repetia para si próprio, mas não podia deixar as coisas no pé em que se encontravam. Tinha de saber. Amaldiçoava esse traço de curiosidade indisciplinada, mas tinha de saber.

Não iria além do tio Ralph, porém. Jurara a si próprio, com toda a firmeza, que se deteria ali. Desse modo não haveria qualquer indicação contra ele, nenhuma indica-ção real. O tio Ralph seria discreto.

De certo modo, ele se envergonhava secretamente do tio Ralph. Não falara do tio a Potterley, em parte devido à cautela e em parte porque não queria ver o outro er-guer a sobrancelha e exibir o inevitável sorriso de mofa. Os redatores científicos pro-fissionais, por mais úteis que fossem, achavam-se um pouco fora das cogitações sé-rias e mereciam apenas um desprezo cheio de superioridade, O fato de que, como classe, ganharem mais dinheiro do que os cientistas dedicados à pesquisa, só fazia piorar a situação, naturalmente,

Ainda assim, havia momentos nos quais um redator científico que fosse da família podia mostrar-se conveniente. Não tendo recebido educação real, não precisava es-pecializar-se, Por decorrência, um bom redator científico sabia praticamente tudo... E

o tio Ralph era um dos melhores,Ralph Nimmo não tinha diploma universitário e se orgulhava bastante do fato. - O

diploma - comentara certa feita para Jonas Foster, quando ambos eram muito mais jovens - é o primeiro passo na direção de uma estrada desastrosa, Você não quer desperdiçá-lo, de modo que passa a trabalho de graduação e pesquisas doutorais. Termina como um ignorante total sobre tudo no mundo, a não ser por uma fatia sub-dividida de nada,

- Por outro lado, se você cultivar com cuidado a sua mente e mantê-la limpa de qualquer entulho de informações até alcançar a maturidade, preenchendo-a apenas com inteligência e adestrando-a apenas em pensamento claro, então, terá um instru-mento poderoso e poderá tomar-se um redator científico,

Nimmo recebera sua primeira designação para trabalho quando tinha vinte e cinco anos de idade, após haver completado seu aprendizado e ter estado no trabalho de campo por menos de três meses. Esse trabalho viera na forma de um original coagu-lado, cujas palavras não transmitiriam o menor vislumbre de compreensão a qual-quer leitor, por mais capacitado que fosse, sem estudo cuidadoso e algum trabalho inspirado de adivinhação. Nimmo o despedaçara e voltara a emendar (após cinco en-contros prolongados e exasperantes com os autores, que eram biofísicos), tornando a linguagem significativa e clara, usando estilo que conferira à obra um brilho agra-dável.

- E por que não? - indagaria cheio de tolerância ao sobrinho que rebatia suas res-trições aos diplomas, incriminando-o por sua presteza a permanecer na orla da ciên-cia. - A orla é importante. Os seus cientistas não conseguem escrever. E por que ha-veriam de saber? Não se espera deles que sejam grandes mestres no xadrez ouvirtuosos no violino, e assim sendo por que contar que seriam capazes de usar as palavras? Por que não deixar também isso aos especialistas?

- Santo Deus, Jonas, leia a sua literatura de cem anos atrás. Faça o devido descon-to para o fato de que a ciência está desatualizada e que algumas das expressões es-tão desatualizadas. Procure ler e entender o sentido. É tudo difícil, coisa de amador. Páginas e mais páginas são publicadas sem necessidade, artigos inteiros incompre-ensíveis ou inúteis.

- Mas o senhor não recebe qualquer reconhecimento, tio Ralph - protestava o jo-vem Foster, preparando-se para iniciar sua carreira universitária, à qual encarava com olhar vidrado. - O senhor poderia ser um pesquisador e tanto.

- Recebo conhecimento - disse Nimmo. - Não pense por um só instante que não o recebo. Está claro que um bioquímico ou um estrato-meteorologista não me vêm com aclamações, mas pagam-me bastante. Procure descobrir o que acontece quando algum químico de primeira categoria descobre que a Comissão cortou sua dotação anual para a redação científica. Ele lutará mais para obter fundos com os quais possa me pagar, ou a alguém como eu, do que para obter um ionógrafo gravador.

Sorrira amplamente e Foster retribuíra com outro sorriso. Na verdade, sentia-se or-gulhoso de seu tio barrigudo, rosto redondo e dedos manchados de nicotina, cuja vaidade o levava a escovar a pífia madeixa de cabelos inutilmente sobre o deserto da calva e o levava a vestir-se como uma pilha de feno feita às pressas, pois a negligên-cia constituía sua marca registrada. Envergonhava-se mas orgulhava-se também.

E Foster, agora, entrava no apartamento atravancado do tio sem o menor motivo para sorrir. Ambos estavam, agora, nove anos mais velhos. Por nove anos a mais, as monografias de todos os setores da ciência tinham-lhe chegado às mãos para reda-ção e um pouco de cada uma viera ocupar um canto de sua mente espaçosa.

Nimmo comia passas sem sementes, jogando-as à boca uma por vez. Atirou um

pacote a Foster e esse só o conseguiu pegar por milagre, depois abaixou-se para re-colher aquelas passas que haviam escapado e caído ao chão.

- Deixe aí, não se incomode - disse Nimmo, descuidado. - Alguém aparece aqui para fazer a limpeza, uma vez por semana. O que se passa? Alguma dificuldade na redação de seu requerimento de dotação?

- Ainda não cheguei a esse ponto.- Não chegou? Cuide do caso, rapaz. Você está esperando que eu me ofereça para

fazer a redação final?- Não posso pagar o que o senhor cobra, Titio.Ora, deixe disso. Fica tudo em casa. É só me dar todos os direitos de publicação

popular e não precisa pensar em dinheiro.Foster assentiu.- Se fala sério está fechado o negócio.- Fechado, então,Era um jogo, naturalmente, mas Foster conhecia bastante a capacidade de reda-

ção do tio para saber que talvez desse resultado. Alguma descoberta dramática de interesse público sobre o homem primitivo, ou sobre uma nova técnica cirúrgica, ou qualquer setor da espaçonáutica poderia representar artigo muito bem pago em qualquer dos meios de comunicação de massa.

Fora Nimmo, por exemplo, quem redigira para consumo científico a série de mono-grafias de Bryce e co-autores elucidando a estrutura fina de dois vírus de câncer, tra-balho pelo qual pedira o pagamento ridículo de mil e quinhentos dólares, desde que os direitos de publicação popular fossem incluídos. Depois escrevera com exclusivida-de o mesmo trabalho em forma semi-dramática para uso no vídeo tridimensional, em troca de um adiantamento de vinte mil dólares e mais direitos de arrendamento que ainda lhe chegavam às mãos após cinco anos.

Foster foi diretamente ao assunto:- O que sabe de Neutrínica, titio?- Neutrínica? - e os olhos pequeninos de Nimmo traduziam surpresa. - Está traba-

lhando nisso? Pensei que fosse a óptica pseudogravítica a sua ocupação.- Pois é, mesmo. Acontece que estou perguntando a respeito da neutrínica.- É uma trapalhada dos infernos, você meter-se nisso. Está saindo do sério. Sabe

que está, não é?- Não creio que o senhor vá chamar a Comissão só porque estou um pouco curioso

sobre algumas coisas.- Talvez eu devesse fazer isso, antes que você se meta em encrencas. A curiosida-

de é um perigo profissional, no caso dos cientistas. Já vi isso acontecer. Um deles se-gue trabalhando sossegadamente em um problema e depois a curiosidade o leva a algum lugar esquisito. Depois vemos que eles trabalharam tão pouco em seu proble-ma que não podem justificar uma renovação de dotação. Já vimais...

- Tudo que quero saber - explicou Foster, cheio de paciência - é o que tem passado ultimamente por suas mãos, lidando com neutrínica.

Nimmo encostou-se na cadeira, pensativo, mastigando uma passa.- Nada. Nada, nunca. Não me lembro de ter recebido um só trabalho sobre neutrí-

nica.- O quê! - Foster se espantava totalmente. - Quem recebe esse trabalho, então?- Já que você pergunta, não sei. Não me lembro de pessoa alguma falando a esse

respeito nas convenções anuais. Acho que não se está trabalhando muito nesse se-tor.

- E por que não?

- Ei, não precisa gritar. Não estou fazendo nada. Acho que...Foster se exasperou.- O senhor não sabe?- Espere aí. Vou lhe dizer o que sei sobre a neutrínica. Ela diz respeito às aplica-

ções dos movimentos de neutrinos e as forças envolvidas...- Claro. Claro. Assim como a eletrônica lida com as aplicações dos movimentos dos

elétrons e as forças envolvidas é a pseudogravítica lida com as aplicações dos cam-pos gravitacionais artificiais. Não vim perguntar isso. É só o que sabe?

- É - disse Nimmo, cheio de calma - a neutrínica é a base da viagem visual no tem-po. Isso é tudo que sei.

Foster encostou-se na cadeira e massageou o rosto magro, cheio de força. Sentia-se raivosamente insatisfeito. Sem que o formulasse de modo explícito em seu próprio espírito, tivera a certeza de que Nimmo apareceria com alguns relatórios recentes, revelaria facetas interessantes da neutrínica moderna e poderia assim mandá-lo de volta a Potterley, capacitado a dizer que o velho historiador estava equivocado, que seus dados eram enganadores e as deduções erradas.

Poderia, então, voltar a seu trabalho.Agora, porém...Dizia raivosamente a si mesmo: Eles, então, não estão fazendo grande coisa nesse

setor. E isso dá lugar a pensar que seja uma supressão deliberada? E se a neutrínica for uma disciplina estéril? Talvez seja, não sei. Potterley não sabe. Por que desperdi-çar os recursos intelectuais da humanidade em algo que não compensa? Ou então o trabalho pode ser secreto, por algum motivo legítimo. Pode ser...

O problema era que ele tinha de saber. Não podia mais deixar as coisas no pé em que se encontravam, não podia!

Disse, então:- Existe um compêndio de neutrínica, tio Ralph? Refiro-me a uma obra simples,

clara, elementar.Nimmo pensou, as faces gorduchas movimentaram-se em uma série de suspiros.- Você faz as perguntas mais desgraçadas. O único de que já ouvi falar foi o de

Sterbinski e um outro camarada. Nunca o vi, mas lembro-me de algo a respeito... Sterbinski e LaMarr, isso mesmo.

- É esse o Sterbinski que inventou o cronoscópio?- Acho que sim. Prova que o livro deve ser bom.- Existe uma edição recente? Sterbinski morreu há trinta anos. Nimmo deu de om-

bros e nada disse.- Você pode descobrir?Permaneceram sentados e silenciosos por alguns momentos, enquanto Nimmo re-

mexia o corpanzil aos estalidos da cadeira em que se sentava. Depois o redator cien-tífico perguntou:

- Você vai me dizer do que se trata?- Não posso. Você pode me ajudar, ainda assim, tio Ralph? Pode me arranjar um

exemplar do compêndio?- Bem, você me ensinou tudo que sei sobre pseudogravítica Eu devia ser reconhe-

cido por esse fato. Vou-lhe dizer uma coisa... ajudo,sim, com uma condição.- E qual é?De repente o velho tomou-se muito sério.- De que você tenha cuidado, Jonas. Torna-se claro que você está fora de seu se-

tor e fora da linha, seja lá o que estiver fazendo. Não destrua sua carreira só porque está curioso sobre algo que não lhe designaram e que não é de sua conta. Compre-endeu?

Foster assentiu, mas quase não ouvira as palavras, imerso que se achava em pen-samentos furiosos.

Uma semana depois, Ralph Nimmo surgiu com seu corpo rotundo no pequeno apartamento de Jonas Foster, na universidade e disse, em murmúrio roufenho:

- Trouxe unia coisa.- O quê? - e Foster se pusera imediatamente curioso.- Um exemplar de Sterbinski e LaMarr.Ato continuo pôs à vista o livro referido, ou melhor, um canto do mesmo, sob seu

sobretudo bem amplo.Foster quase automaticamente olhou para a porta e janelas a fim de ter certeza de

que estavam fechadas e de cortinas baixadas, depois estendeu a mão.A caixa de filmes tomara-se escamosa após tanto tempo decorrido e quando ele a

abriu, o filme estava desbotado, tornara-se quebradiço. Perguntou, com aspereza:- Está aqui?- Gratidão, rapaz, gratidão! - exclamou Nimmo, sentando-se com um grunhido e

enfiando a mão no bolso, do qual tirou u'a maçã.- Ora, estou grato, mas é tudo tão velho!- Muita sorte eu tive em conseguir. Tentei arranjar um filme na Biblioteca do Con-

gresso. Não adiantou. O livro era proibido.- E como obteve isso, então?- Roubei - explicou o tio, mordendo ruidosamente a maçã. - Na Biblioteca Pública

de Nova Iorque.- O quê?- Muito simples. Eu tenho entrada às estantes, naturalmente. Assim sendo ultra-

passei a mureta quando ninguém estava por perto, apanhei isto e saí. Eles confiam muito nas pessoas, naquele lugar. Além do mais, não vão sentir falta, por muitos anos... só que é melhor você não deixar que alguém veja isto, sobrinho.

Foster fitava o filme como se o mesmo fosse uma coleção de brasas quentes.Nimmo livrou-se do miolo da maçã e enfiou a mão no bolso, retirando a segunda.- Uma coisa engraçada. Não existe nada mais recente em todo o terreno da neutrí-

nica. Nem uma só monografia, nenhum trabalho, nenhuma anotação. Nada, desde o aparecimento do cronoscópio.

- Pois é - disse Foster, distraído.

Foster trabalhou por noites inteiras na casa dos Potterley. Não podia confiar em seus próprios aposentos no centro universitário para fazer o que queria. O trabalho noturno tomou-se mais real para ele do que as suas próprias solicitações de dotação. Às vezes ele se preocupava a respeito delas. Mas isso também acabou. Seu trabalho consistia, de início, em ver e rever o texto do filme. Depois consistia em pensar (às vezes, enquanto uma parte do livro se adiantava no projetor de bolso, sem merecer sua atenção).

Havia ocasiões nas quais Potterley vinha assistir, sentava-se com expressão emper-tigada e olhar atento, como a esperar que os processos mentais se solidificassem e se tomassem visíveis em todas as suas convoluções. Só interferia de dois modos: não permitia que Foster fumasse e às vezes falava.

Não era conversa, jamais. Tratava-se mais de um monólogo em voz baixa com o qual, ao que parecia, quase não contava receber a menor atenção. Era muito mais

como se estivesse aliviando uma tensão interna.- Cartago! Sempre Cartago!Cartago, a Nova Iorque do Mediterrâneo antigo. Cartago, império comercial e rai-

nha dos mares. Cartago, tudo que Siracusa e Alexandria fingiam ser. Cartago, infa-mada pelos inimigos e incapaz de defender-se verbalmente.

Fora derrotada uma vez por Roma e expulsa da Sicília e Sardenha, mas voltara para recuperar as perdas graças a novos domínios na Espanha, apresentara Aníbal para aterrorizar os romanos por dezesseis anos a fio.

Ao final voltara a perder pela segunda vez, reconciliara-se com o destino e recons-truíra com instrumentos partidos uma vida aleijada em território afundado, obtendo tamanhos êxitos que Roma, invejosa, forçou deliberadamente a terceira guerra.

E então Cartago, tendo apenas as mãos nuas e sua tenacidade, construíra armas e obrigara Roma a sustentar uma guerra de dois anos que apenas terminara com a destruição completa da cidade, seus moradores lançando-se nas casas incendiadas em vez de se renderem.

- Como podiam as pessoas lutar de tal maneira por uma cidade e um modo de vida como os escritores antigos descreviam? Aníbal era general melhor do que qual-quer romano e seus soldados dedicavam-lhe fidelidade total. Seus próprios inimigos, os mais acendrados,o louvaram. Esse foi um cartaginês. Está na moda dizer que ele era um cartaginês não-típico, melhor do que os demais, um diamante no meio do li-xo.Mas se assim é, por que foi tão fiel a Cartago, mesmo em sua morte após anos de exílio? Eles falam de Moloch...

Nem sempre Foster ouvia, mas às vezes não podia deixar de fazê-lo; nessas ocasi-ões estremecia e enjoava diante do relato sangrento de sacrifício de crianças.

Potterley, no entanto, prosseguia com afã:- Ainda assim não é verdade. Isso é uma mentira de dois mil e quinhentos anos,

iniciada pelos gregos e romanos. Eles tinham seus escravos, crucificação e tortura, seus torneios de gladiadores. A história de Moloch é o que as idades posteriores te-riam chamado de propaganda de guerra, a grande mentira. Posso provar que foi mentira. Posso provar e, por Deus, provarei... provarei...

Murmurava essa promessa repetidas vezes, em sua aflição.A Sra. Potterley também o visitava mas o fazia com menos frequência, geralmente

às terças e quintas-feiras, quando o próprio professor Potterley tinha de dar aulas noturnas e não se achava presente.

Ela vinha sentar-se em silêncio, quase sem falar, o rosto sem expressão e sem energia, o olhar parado, toda a sua atitude era distante e fechada.

Na primeira vez em que o fez, Foster procurou, pouco à vontade, sugerir que ela se retirasse.

Ela respondeu, a voz sem qualquer graça- Eu atrapalho?- Não, claro que não - mentiu Foster, inquieto. - É só que...que... - e não conse-

guiu terminar a frase.Ela assentiu como se aceitasse um convite para ficar. Depois abriu a bolsa de pano

que trouxera e dali tirou um caderno sem costura, de folhas de vitron, que passou a tecer com movimentos rápidos e delicados de dois despolarizadores finos e tetra-fa-cetados, cujos fios alimentados à pilha conferiam-lhe o aspecto de alguém que segu-rava uma aranha enorme.

Certa noite ela disse baixinho.- Minha filha, Laurel, tem a sua idade.Foster sobressaltou-se tanto diante do som inesperado de sua fala quanto das pa-

lavras, e comentou:- Eu não sabia que a senhora tinha uma filha.- Ela morreu. Há anos.O vitron crescia sob seus movimentos hábeis, tornando-se algo parecido a uma

peça de, roupa que Foster ainda não podia identificar. Nada lhe restava senão mur-murar inutilmente:

- Sinto muito.A Sra. Potterley suspirou.- Sonho muito com ela - e ergueu os olhos azuis e distantes direção dele.Foster encolheu-se e desviou o olhar.Em outra noite, puxando uma das folhas do vitron para soltá-lo do vestido, ela per-

guntou.- O que é a visão no tempo, afinal?Esta observação acarretava uma sequência complexa de pensamentos e Foster

respondeu, prontamente:- O Sr. Potterley pode explicar-lhe.- Ele já tentou. Oh, tentou. Mas acho que ele é um pouco impaciente comigo. Ele

o chama de cronoscopia, na maior parte do tempo. A gente realmente vê as coisas no passado, como nos tridimensionais? Ou é uma visão que faz as formas de ponti-nhos, como no computador que o senhor usa?

Foster olhou com desagrado para o computador manual. Funcionava bem, mas to-das as operações tinham de ser controladas manualmente e as respostas eram obti-das em código. Se pudesse usar o computador da faculdade... Bem, para que sonhar, já se sentia bastante conspícuo como estava, levando um computador manual sob o braço todas as noites, ao sair do gabinete.

Disse, então:- Eu mesmo nunca vi o cronoscópio, mas tenho a impressão de que é possível ver

figuras e ouvir o som.- Dá para ouvir as pessoas falando, também?- Creio que sim -já um tanto desesperado - escute Sra. Potterley, isso deve ser

muitíssimo chato para a senhora. Sei que a senhora não gosta de deixar um hóspede sozinho, mas francamente, Sra. Potterley, não deve sentir-se obrigada a...

- Eu não me sinto obrigada - disse ela. - Estou sentada aqui e esperando.- Esperando? Esperando o quê?Ela disse, com muita compostura:- Eu ouvi vocês naquela noite. Naquela noite em que o senhor falou com Arnold

pela primeira vez. Ouvi atrás da porta.Foster contrapôs:A senhora fez isso?- Sei que não devia ter feito, mas estava muitíssimo preocupada com Arnold. Acha-

va que ele ia fazer alguma coisa que não devia, e queria saber o que era. E depois, quando ouvi... - ela fez uma pausa,inclinando-se sobre o vitron e olhando para aque-le material.

- Ouviu o quê, Sra. Potterley?- Que o senhor não construiria um cronoscópio.- Claro que não.- Achei que talvez o senhor pudesse mudar de ideiaFoster lançou-lhe um olhar furioso.- Quer dizer que a senhora tem vindo aqui esperando que eu construa o cronoscó-

pio, querendo que eu construa esse aparelho?

- Espero que o faça, professor Foster. Oh, espero que o faça. Era como se, de re-pente, um véu houvesse caído de seu rosto, deixando-lhe todos os traços fisionômi-cos bem claros e nítidos, levando-lhe cor às faces, vida ao olhar, vibrações de algo que se aproximava à animação em sua voz.

- Não seria maravilhoso - prosseguiu ela - ter um aparelho assim? As pessoas do passado poderiam voltar a viver. Os faraós e os reis e... as pessoas comuns. Espero que o senhor construa o aparelho, professor Foster. Espero mesmo.

Engasgou, ao que parecia, com o fervor de suas próprias palavras e as folhas do vitron caíram de seu regaço. Ela se levantou e subiu correndo as escadas do porão enquanto o olhar de Foster seguia os movimentos de seu corpo desajeitado e em fuga, cheio de espanto e perturbação.

Aquilo se adentrara pelas noites de Foster e o deixava insone, cansado e cheio de pensamentos. Parecia-se muito a uma indigestão mental.

Suas solicitações de dotação estavam finalmente chegando a Ralph Nimmo. Não depositava qualquer esperança nelas e pensava, entorpecido: não vão ser aprovadas.

Se não forem está claro que criaria um escândalo no departamento e provavel-mente sua designação na universidade não seria renovada, chegado o final do ano letivo.

Quase não se preocupava. Era o neutrino, o neutrino, apenas o neutrino. Sua trilha curvava-se e desviava-se acentuadamente, deixava-o quase sem fôlego por cami-nhos desconhecidos, que o próprio Sterbinski e LaMarr não tinham acompanhado.

Chamou Nimmo.- Tio Ralph, preciso de algumas coisas. Estou chamando de fora da universidade.O rosto de Nimmo, na teia de vídeo, parecia jovial, a voz era áspera. Ele disse:- Você está precisando é de um curso de comunicações. Estou tendo uma traba-

lheira infernal para pôr a sua solicitação em termos inteligíveis. Se é por isso que está chamando...

Foster sacudiu a cabeça, cheio de impaciência.- Não é por isso que estou chamando. Preciso disto aqui - e garatujou com rapidez

em uma folha de papel, erguendo-a diante do receptor.Nimmo chiou.- Ei, você acha que sou capaz de fazer tanta coisa assim?- Arranje isto para mim, titio. O senhor sabe que pode.Nimmo voltou a ler com atenção a relação de artigos, com movimentos silenciosos

dos lábios gordos, pareceu muito sério.- O que acontece quando você junta essas coisas? - perguntou. Foster sacudiu a

cabeça, em negativa.- Você vai ter os direitos exclusivos de publicação popular, qualquer que seja o re-

sultado, como sempre foi. Mas não me faça perguntas agora.- Não posso fazer milagres, você sabe.- Faça este. É preciso. É preciso. O senhor é um redator científico e não um ho-

mem de pesquisas. Não precisa explicar tudo. Tem amigos e boas relações. Eles po-dem fazer vista grossa, não é mesmo, para ganharem alguma coisa de você na publi-cação seguinte?

- Sobrinho, sua fé é comovente. Vou tentar.

Nimmo conseguiu. Material e equipamentos foram trazidos em hora avançada de certa noite, em carro particular. Nimmo e Foster levaram o material para dentro, com os resmungos de homens desabituados ao trabalho braçal.

Potterley surgiu à entrada do porão após Nimmo ter se retirado. Perguntou baixi-nho:

- Para que é isso?Foster arredou da testa os cabelos que ali haviam caído e fez massagem suave no

pulso torcido. Explicou, então:- Quero fazer algumas experiências simples.- É mesmo? - e os olhos do historiador reluziam de animação. Foster sentiu-se ex-

plorado. Sentia-se como se estivesse sendo levado por uma estrada perigosa, e leva-do por dedos que lhe beliscavam o nariz, como se pudesse antever o desastre que o esperava mais adiante, mas ainda assim a andar com decisão e pressa. O pior de tudo é que sentia ser de si mesmo o impulso que o levava pelo nariz.

Fora Potterley quem o iniciara, Potterley quem agora se apresentava ali, satisfeito, mas a compulsão era dele mesmo.

Foster respondeu, azedo:- Vou querer estar a sós agora, Potterley. Não dá para você e sua esposa virem

aqui e me interromperem.Estava pensando: se o ofender, que me expulse da casa. Que ponha fim a tudo.No íntimo, todavia, não achava que ser expulso faria com que parasse aquilo.A coisa não se saiu assim. Potterley não dava qualquer demonstração de achar-se

ofendido e seu olhar suave não se modificava. Ele respondeu:- Está claro, professor Foster, está claro. Fique sozinho, não o perturbaremos.Retirava-se sob o olhar de Foster, mas este não o observou por toda a retirada,

sentindo-se perversamente satisfeito e odiando-se por estar assim.Passou a dormir em um catre no porão dos Potterley e passar ali todos os fins de

semana.Durante esse período recebeu o aviso preliminar de que suas dotações (redigidas

por Nimmo) tinham sido aprovadas. O chefe de Departamento foi quem trouxe a no-tícia, dando-lhe parabéns.

Foster fitava à distância e murmurou comentários com tão pouca convicção que o chefe do Departamento fechou a cara e lhe voltou as costas, sem dizer mais uma só palavra.

Foster não pensou mais no assunto. Era questão de menor importância, não valia qualquer atenção. Pensava em algo que tinha importância real, uma prova crucial que efetuaria aquela noite.

Uma noite, a segunda e a terceira e depois, macilento e quase transbordante de agitação, chamou Potterley.

Este desceu as escadas e olhou em volta para toda aquela instalação. Perguntou então, em voz baixa:

- A conta de luz tem estado bem alta. Não me importa a despesa, mas a Cidade pode começar a fazer indagações. Há algum jeito de remediar isso?

Estavam em noite quente mas Potterley usava colarinho apertado e colete. Foster, em camiseta, ergueu o olhar cansado e disse, trêmulo:

- Não será por muito mais tempo, professor Potterley. Eu o chamei para contar-lhe uma coisa. Podemos construir um cronoscópio. Pequeno, está claro, mas pode ser feito.

Potterley agarrou-se ao corrimão, o corpo derreou. Conseguiu murmurar:- Pode ser feito aqui?- Aqui no porão - disse Foster, cansado.- Santo Deus, O senhor disse...- Eu sei o que disse - retrucou Foster, cheio de impaciência. - Eu disse que não

dava para fazer. Nessa ocasião eu não sabia nada. O próprio Sterbinski não sabia nada.

Potterley sacudiu a cabeça.- O senhor tem certeza? Não está equivocado, professor Foster? Eu não aguentaria

se...Foster interveio:- Não estou equivocado. Com os diabos, senhor, se apenas a teoria fosse o bastan-

te podíamos ter um visor de tempo há mais de cem anos, quando o neutrino foi pos-tulado pela primeira vez. O problema estava em que os primeiros pesquisadores o consideraram apenas uma partícula misteriosa, sem massa ou carga, que não podiaser detectada. Não passava de algo para fechar o balanço e salvar a lei de conserva-ção da energia de massa.

Não tinha certeza de que Potterley entendia o que estava falando. Nem se impor-tava. Precisava de um descanso. Precisava desabafar um pouco, no meio de todos aqueles pensamentos coagulados. E precisava de explicações para o que teria de di-zer em seguida a Potterley.

Prosseguiu, então:- Foi Sterbinski quem descobriu pela primeira vez que o neutrino rompia a barreira

cruzada do espaço-tempo, que viajava tanto pelo tempo como pelo espaço. Foi tam-bém Sterbinski quem aperfeiçoou um método para detectar os neutrinos. Inventou um gravador de neutrinos e aprendeu a interpretar a configuração da torrente de neutrinos. Está claro que a torrente tinha sido afetada e desviada por toda a matéria pela qual passava em seu percurso pelo tempo e os desvios podiam ser analisados e convertidos em imagens da matéria que causara o desvio. A visão do tempo passado era possível. Até as vibrações do ar podiam ser percebidas, e assim,convertidas em som. Potterley não ouvia, isso estava fora de dúvida. Limitou-se a dizer:

- Sim. Sim. Mas quando o senhor pode construir um cronoscópio?Cheio de urgência, Foster explicou:- Deixe-me terminar. Tudo depende do método usado para desviar e analisar a tor-

rente de neutrinos. O método de Sterbinski era difícil e indireto. Precisava de monta-nhas de energia, mas eu estudei a pseudogravidade, professor Potterley, a ciência dos campos gravitacionais artificiais. Especializei-me no comportamento da luz em tais campos. É uma ciência nova. Sterbinski nada sabia sobre isso. Se soubesse teria visto... qualquer pessoa teria visto... um meio muito melhor e mais eficiente de de-tectar os neutrinos, usando um campo pseudogravítico Se eu conhecesse melhor a neutrínica, logo de inicio, teria visto de imediato.

Potterley parecia animar-se um pouco.- Eu sabia - comentou, - Mesmo porque as pesquisas na neutrínica se estaciona-

ram e o governo não sabe como ter certeza de que as descobertas em outros ramos da ciência não refletirão conhecimentos na neutrínica. Está vendo qual o valor da di-reção centralizada da ciência? Faz muito tempo que pensei nisso, professor Foster, muito antes que o senhor viesse trabalhar aqui.

- Dou-lhe parabéns pela descoberta - disse Foster - mas há uma coisa...- Oh, não se importe com isso. Responda-me, por favor. Quando pode construir

um cronoscópio?- Estou tentando dizer-lhe algo, professor Potterley. Um cronoscópio da nada servi-

rá ao senhor - é aqui que a coisa desanda, pensava ele.Potterley desceu vagarosamente a escada, pôs-se diante de Foster.- O que quer dizer? Por que não vai me ajudar?- O senhor não verá Cartago. É o que preciso dizer-lhe. É o que justifica a minha

explicação. O senhor nunca poderá ver Cartago.Potterley sacudiu a cabeça, contestou:- Ora, não, o senhor está errado. Se tem o cronoscópio basta focalizar corretamen-

te...- Não, professor Potterley. Não se trata de focos. Existem fatores aleatórios que

afetam a torrente de neutrinos, assim como afetam todas as partículas subatômicas. É o que chamamos de princípio da incerteza. Quando a torrente é registrada e inter-pretada, o fator aleatório se apresenta como esmaecimento ou "ruído", como costu-mam dizer os moços que lidam com comunicações. Quanto mais penetramos no tempo, tanto mais pronunciado o embaciamento, maior o ruído. Depois de algum tempo o ruído afoga a imagem. O senhor entendeu?

- Mais força - disse Potterley, em voz inteiramente sem vida.- De nada adianta. Quando o ruído apaga o detalhe, a ampliação do detalhe am-

plia o ruído também. O senhor nada pode ver em um filme queimado pelo sol se o ampliar, não é mesmo? Entenda bem uma coisa. A natureza física do universo esta-belece limites quanto à debilidade de um som que pode ser percebido por qualquer instrumento, O comprimento de uma onda luminosa ou de uma onda de elétrons es-tabelece limites às dimensões dos objetos que podem ser vistos por qualquer instru-mento. Isso também funciona na cronoscopia. Só se pode ver no tempo até certa distância.

- Que distância? Que distância?Foster respirou fundo.- Um século e um quarto. É o máximo.- Mas o boletim mensal que a Comissão publica lida com a história antiga quase in-

teira. - O historiador riu, e riu gostosamente. - O senhor deve estar equivocado. O governo tem dados que remontam até a 3000 A.C.

- E quando é que o senhor passou a acreditar neles? - interpelou Foster, cheio de desdém. - Foi o senhor quem começou isto, provando que estavam mentindo, que nenhum historiador havia feito uso do cronoscópio. Não está vendo agora qual o mo-tivo? Nenhum historiador, a não ser aquele que se interesse pela história contempo-rânea, poderia fazê-lo. Nenhum cronoscópio consegue ver no tempo passado além de 1920, em qualquer condição.

- O senhor está errado. Não sabe tudo - redarguiu Potterley.- A verdade não vai dobrar-se à sua conveniência. Enfrente os fatos. O que o go-

verno tem feito é perpetuar uma mistificação.- Por quê?- Não sei qual o motivo.O nariz de Potterley retorcia-se, os olhos se esbugalhavam. Ele suplicou:- É apenas teoria, professor Foster. Construa o cronoscópio. Construa e experimen-

te.Foster segurou Potterley pelos ombros, com força e, de repente, gritou:- E acha que não o fiz? Acha que eu diria isto antes de ter verificado por todos

os modos? Eu construí um. Está aqui mesmo em volta. Olhe só!Correu para as chaves de força e as ligou, uma após outra. Ajustou uma resistên-

cia, outros botões, apagou as luzes do porão.- Espere só. Deixe esquentar.Surgiu um brilho pequeno no centro da parede. Potterley balbuciava incoerências,

mas Foster limitou-se a ordenar de novo: - Olhe só!A luz se tomou mais forte e mais clara, irrompeu em figuras claras e escuras, Ho-

mens e mulheres! Embaciados. Traços fisionômicos embaciados. Braços e pernas não

passavam de manchas. Um antigo automóvel, veículo que andava pelo chão, nada claro mas reconhecível como um modelo que já usara motores a combustão interna, acionado a gasolina, passou com rapidez na imagem.

Foster comentou:- Meados do século vinte, em algum lugar. Não posso ainda ligar o áudio, de mo-

dos que não temos o som. Com tempo podemos tê-lo. De qualquer modo o meado do século XX é mais ou menos a distância máxima a que podemos ir. Acredite em mim, é o melhor foco que conseguiremos.

Potterley voltou à carga:- Construa u'a máquina maior, mais forte. Melhore os seus circuitos.- Não pode derrotar o Princípio da Incerteza, homem, assim como não pode viver

na superfície do sol. Existem limites físicos ao que podemos fazer.- Está mentindo, Não acredito no senhor. Eu...Uma outra voz se fez ouvir, num tom estridente para se impor ao diálogo deles.- Arnold! Professor Foster!O jovem físico voltou-se no mesmo instante. O professor Potterley permaneceu pa-

rado por momentos prolongados e depois disse, sem se voltar:- O que é Caroline? Deixe-nos em paz.- Não! - e a Sra. Potterley descia a escada. - Ouvi o que diziam. Não pude deixar

de ouvir. O senhor tem um visor do tempo aqui, professor Foster? Aqui no porão?- Sim, tenho, Sra. Potterley. Uma espécie de visor de tempo. Não é muito bom.

Ainda não consigo o som e a imagem está muito embaciada, mas funciona.A Sra. Potterley entrelaçou os dedos e os manteve bem apertados ao peito.- Que maravilhoso. Que maravilhoso.- Não é maravilhoso de modo algum - contrapôs Potterley. - Este jovem imbecil

não consegue ir além de...- Escute aqui... - começou Foster, exasperado.- Por favor! - gritou a Sra. Foster. - Escutem o que vou dizer. Arnold, você não per-

cebe que se podemos usar isso para ver vinte anos atrás, será possível voltarmos a ver Laurel? Que nos importa Cartago, que nos importam os tempos antigos? É Laurel que podemos ver. Ela voltará a estar viva para nós. Deixe a máquina aqui, professor Foster. Mostre-nos como operá-la.

Foster fitou-a, depois ao marido. O rosto de Potterley se tornara lívido. Embora a voz continuasse baixa e calma, essa calma recebera forte abalo. Ele disse:

- Você é uma idiota!- Arnold! - foi a exclamação débil da esposa.- Você é uma idiota, entendeu? O que vai ver? O passado. O passado está morto.

A Laurel fará alguma coisa que não fez? Você vai ver alguma coisa que não viu? Você vai viver três anos outra vez,e mais outra, observando uma criança que nunca cres-cerá, por mais que esteja olhando?

A voz dele estava próxima a se embargar, mas ainda assim se manteve. Ele se aproximou dela, segurou-a pelo ombro e a sacudiu com brusquidão.

- Você sabe o que vai acontecer se fizer isto? Eles virão para levá-la daqui, por-que você enlouquecerá. Sim, enlouquecerá. Quer receber tratamento mental? Quer ser trancafiada, passar pela sonda-psíquica?

A Sra. Potterley afastou-se com um repelão. Não havia qualquer suavidade ou va-gueza em sua atitude. Transformara-se numa megera.

- Quero ver minha filha, Arnold. Ela está nesta máquina e eu a quero.- Ela não está na máquina. O que temos ali é uma imagem. Você não entende?

Uma imagem. Uma coisa que não é verdadeira!

- Quero minha filha, está ouvindo? - E acossou-o, gritando,esmurrando-o com os punhos cerrados. - Quero minha filha.

O historiador recuou diante do ataque, gritando. Foster adiantou-se, interpôs-se aos dois e a Sra. Potterley caiu ao chão, soluçando tresloucadamente.

Potterley se voltou, os olhos com expressão desesperada. Com movimento repenti-no agarrou uma barra de ferro, girando e afastando-se de Foster, estonteado por tudo que ocorria e incapaz de detê-lo.

- Para trás! - arquejou Potterley. - Ou eu o mato. Juro que mato.Desferiu um golpe violento e Foster pulou para trás.Potterley voltou-se com fúria para todas as peças daquela montagem no porão e

Foster, após o primeiro estilhaçar de vidros, se pós a observar, aturdido.Potterley dissipou sua raiva e logo em seguida estava em pé, sossegado, em meio

a fragmentos e estilhaços, porém ainda tinha à mão a barra de ferro. Disse a Foster, em um murmúrio:

- Agora saia daqui! Não volte mais! Se alguma coisa do que aqui está lhe custou algo, mande-me a conta e eu pagarei. Pagarei dobrado.

Foster deu de ombros, apanhou a camisa e seguiu em direção à escada do porão. Ouvia os soluços altos da Sra. Potterley e, ao voltar-se no patamar para olhar pela úl-tima vez, viu o professor Potterley inclinado sobre ela, o rosto transtornado de pesar.

Dois dias depois, tendo encerrado o dia letivo e Foster procurando para ver se en-contrava algum dado sobre seus projetos recém-aprovados, que desejava levar para casa, o professor Potterley apareceu mais uma vez. Estava em pé diante da porta aberta no gabinete de Foster.

O historiador se apresentava tão bem vestido como antes. Ergueu a mão num ges-to vago demais para ser cumprimento, insuficiente como apelo. Foster limitou-se a fitá-lo fixamente.

Potterley disse:- Eu esperei até às cinco horas, até que o senhor estivesse... Posso entrar?Foster assentiu. Potterley disse:- Vim para pedir desculpas pelo que fiz. Fiquei pavorosamente decepcionado, esta-

va fora de mim. Mesmo assim, foi imperdoável.- Aceito suas desculpas - disse Foster. - É tudo?- Acredito que minha esposa o chamou.- Chamou, sim.- Ela tem estado histérica. Contou-me que chamou o senhor, mas eu não podia ter

certeza...- Chamou, sim.- O senhor pode me dizer... pode ter a bondade de me contar o que ela queria?- Ela queria um cronoscópio. Disse que tinha dinheiro próprio e que estava pronta

a pagar.- O senhor... se comprometeu?- Eu disse que não me dedico à fabricação.- Ótimo - arquejou Potterley, o peito arfando com o alívio. - Por favor, não receba

mais chamadas dela. Ela não está... bem...- Escute, professor Potterley - disse Foster. - Não vou entrar em qualquer briga de

família mas é melhor o senhor se preparar para uma coisa. Os cronoscópios podem ser construídos por qualquer pessoa. Algumas peças simples podem ser compradas em algum centro de vendas elétricas e ele pode ser construído em casa. Pelo menos aparte de vídeo.

- Mas ninguém mais vai pensar no assunto, só o senhor, não é mesmo? Ninguém

pensou.- Eu não pretendo manter segredo.- Mas não pode publicar. É pesquisa ilegal.- Isso não importa mais, professor Potterley. Se eu perder minhas dotações, esta-

rão perdidas. Se a universidade não gostar, pedirei demissão. Não me importa mais.- O senhor não pode fazer isso!- Até agora - disse Foster - o senhor não se importava se eu ia ou não perder as

dotações e o cargo. Por que se mostra tão preocupado agora? Vou explicar-lhe uma coisa. Quando me procurou pela primeira vez eu acreditava em pesquisas organiza-das e dirigidas, a situação como existia, em outras palavras. Considerava-o um anar-quista intelectual, professor Potterley, e perigoso também. Mas por esteou aquele motivo eu mesmo fui um anarquista por meses seguidos, e alcancei grandes coisas.

Fez uma pausa, prosseguiu:- Essas coisas foram conseguidas não porque eu seja um cientista brilhante. De

modo nenhum. Foi apenas que a pesquisa científica tinha sido dirigida de cima e ha-via buracos que podiam ser preenchidos por qualquer pessoa olhando na direção certa. E qualquer pessoa teria olhado na direção certa se o governo não se preocu-passe em tentar impedi-la.

Nova pausa, ele encerrava a explicação:- Agora faça o favor de me compreender. Ainda acredito que a pesquisa dirigida

possa ser útil. Não sou a favor de uma passagem à anarquia total, mas deve haver um campo médio. A pesquisa dirigida pode manter flexibilidade, O cientista deve ter o direito de seguir sua curiosidade, pelo menos em seu próprio tempo de folga.

Potterley sentou-se e disse, procurando agradar:- Vamos discutir o assunto, Foster. Admiro o seu idealismo. Você é jovem, quer a

lua. Mas não pode destruir-se com idéias fantasiosas sobre o que a pesquisa pode ser. Eu o meti nisto, sou responsável e me incrimino amargamente. Eu agia por im-pulso emocional. O meu interesse por Cartago cegou-me, fui um idiota total.

Foster interveio:- Quer dizer que o senhor mudou inteiramente em dois dias? Cartago não é nada?

A supressão das pesquisas pelo governo não é nada?- Mesmo um imbecil total como eu consegue aprender, Foster. Minha esposa me

ensinou algo. Agora compreendo o motivo para o governo suprimir a neutrínica. Dois dias atrás, não entendia. E quando compreendi, aprovei. Você viu como minha mu-lher se portou diante da notícia de um cronoscópio no porão. Eu imaginara um cro-noscópio utilizado para fins de pesquisa. Tudo que ela conseguia enxergar era o pra-zer pessoal de voltar neuroticamente a um passado pessoal, um passado morto, O pesquisador puro, Foster, constitui a minoria. Pessoas como minha mulher poderiam superar-nos pelo número.

Ele prosseguia:- Se o governo viesse a incentivar a cronoscopia, isso quereria dizer que o passado

de todos se tomaria visível. Os funcionários do governo estariam sujeitos à chanta-gem e pressão indevida, pois aqui na Terra quem tem um passado inteiramente lim-po? O governo organizado talvez se tomasse impossível.

Foster molhou os lábios.- Talvez, Talvez o governo tenha alguma justificativa a seus próprios olhos. Mesmo

assim existe um princípio importante em jogo. Quem sabe quantos outros progressos científicos estão sendo abafados porque os cientistas são levados a uma trilha estrei-ta? Se o cronoscópio se torna motivo de pavor para alguns políticos, tal é opreço que precisa ser pago. O público deve entender que a ciência precisa ser livre e

não existe modo mais claro de mostrá-lo do que publicar minha descoberta, de um modo ou de outro, legal ou ilegalmente.

A fronte de Potterley estava cheia de suor, porém sua voz continuou calma.- Oh, não são apenas alguns políticos, professor Foster. Não pense nisso. Seria

também o terror. Minha mulher passaria o tempo vivendo com sua filha morta. Ela se retiraria ainda mais da realidade.

Enlouqueceria revivendo as mesmas cenas repetidas vezes. E não seria apenas o meu terror. Haveria outros como ela. Filhos que procurariam os pais mortos ou sua própria juventude. Teríamos todo um mundo vivendo no passado, Loucura de verão. Foster observou:

- Os juízos morais não podem impedir. Não surgiu qualquer progresso, em qual-quer época da história, que a humanidade não tenha tido o engenho de perverter. A humanidade precisa ter também o engenho de impedir. Quanto ao cronoscópio, as incursões pelo passado morto logo se tomarão cansativas. Eles verão seus pais ado-rados em algumas das coisas que seus pais adorados faziam e perderão o entusias-mo por eles. Mas tudo isso não tem importância. Comigo se trata de uma questão de princípio importante.

Potterley voltou à carga:- Que se dane o seu princípio. Não consegue compreender os homens e mulheres,

ideais como princípio? Não entende que minha mulher viverá pelo incêndio que ma-tou nossa filha? Não poderá impedi-la, eu a conheço. Ela acompanhará cada passo, tentando evitá-lo. Voltará a viver aquilo repetidas vezes, contando a cada feita que aquilo não aconteça. Quantas vezes você quer matar Laurel? - e a voz se punha rou-fenha.

A Foster ocorreu um pensamento.- O que receia que ela possa descobrir, professor Potterley? O que aconteceu na

noite do incêndio?O historiador cobriu imediatamente o rosto com as mãos, seu corpo passou a es-

tremecer com soluços. Foster desviou o olhar, passou a fitar a janela, embaraçadíssi-mo.

Após algum tempo, Potterley explicou:- Faz muito tempo que não penso no assunto. Caroline tinha saído. Eu fazia com-

panhia à menina. Entrei no dormitório dela no meio da noite, para ver se estava co-berta. Levava comigo o cigarro... naqueles dias eu fumava. Devo tê-lo amassado an-tes de colocá-lo no cinzeiro sobre a cômoda. Sempre tive muito cuidado. A menina estava bem. Voltei para a sala de estar e dormi diante do vídeo. Acordei sufocado, cercado pelo fogo. Não sei como começou.

- Mas acha que pode ter sido o cigarro, não é isso? - perguntou Foster. - Um cigar-ro que o senhor deixou de apagar?

- Não sei. Tentei salvá-la, mas estava morta em meus braços quando saí daquela casa.

- Acredito que nunca tenha contado à sua mulher sobre o cigarro.Potterley sacudiu a cabeça, em negativa.- Mas tive que viver com essa lembrança. - Só agora, com o cronoscópio, ela poderá descobrir. Talvez não tenha sido o cigar-

ro. Talvez o senhor o tenha realmente apagado, não acha possível?As lágrimas haviam secado no rosto de Potterley. A vermelhidão desaparecera. Ele

disse:- Não posso me arriscar... Mas não se trata apenas de mim mesmo, Foster. O pas-

sado tem terrores reservados para a maioria das pessoas. Não liberte estes terrores

sobre a raça humana.Foster caminhava pelo aposento. De algum modo aquilo explicava o motivo para o

desejo raivoso e irracional de Potterley no sentido de prestigiar os cartagineses, deifi-cá-los, e acima de tudo, derrubar o relato dos sacrifícios que faziam a Moloch. Liber-tando-os da culpa do infanticídio pelo fogo, ele se libertava simbolicamente da mes-ma culpa.

Desse modo, o mesmo incêndio que o impelira a causar a construção de um cro-noscópio, impelia-o agora para sua destruição.

Foster fitou o outro, cheio de tristeza.- Compreendo a sua situação, professor Potterley. Mas isto ultrapassa os sentimen-

tos pessoais. Tenho de acabar com esse estrangulamento na garganta da ciência.Potterley voltou à carga, em tom selvagem:- Você quer dizer que deseja a fama e o dinheiro que tal descoberta lhe traria.- Não sei sobre o dinheiro, mas também isso, ao que creio. Sou apenas humano.- Não vai suprimir seu conhecimento?- Em circunstância nenhuma.- Bem, nesse caso... - e o historiador se pôs em pé e ali ficou por momentos, olhar

furioso.Foster teve um momento singular de pavor. O homem era mais velho do que ele,

menor, mais fraco, não parecia estar armado. Ainda assim...Ele disse:- Se pensa em me matar ou fazer qualquer coisa assim é bom saber que tenho to-

das as informações em um cofre fechado e ali as pessoas poderão descobrir, caso eu desapareça ou morra.

Potterley disse:- Não seja idiota - e se retirou.Foster fechou a porta, trancou-a e sentou-se para pensar. Sentia-se um imbecil.

Não guardara informação alguma em qualquer cofre fechado, naturalmente. Tal afir-mação melodramática não lhe teria ocorrido em condições ordinárias. Mas acontece-ra agora.

Sentindo-se ainda mais imbecil, passou toda uma hora escrevendo as equações da solicitação da óptica pseudogravítica para gravação neutrínica e alguns diagramas para os detalhes de construção. Fechou tudo num envelope e escreveu o nome de Ralph Nimmo no mesmo.

Passou uma noite bastante inquieta, bem como a manhã seguinte. A caminho da faculdade colocou o envelope no banco, deixando instruções adequadas ao funcioná-rio, que o fez assinar um documento permitindo que a caixa fosse aberta após seu falecimento.

Chamou Nimmo para falar-lhe da existência do envelope e recusou-se terminante-mente a revelar qualquer coisa sobre o teor.

Nunca se sentira tão ridiculamente na berlinda quanto naquele instante.Nessa noite e na seguinte Foster só conseguiu sono agitado, descobrindo-se frente

a frente com o problema eminentemente prático de publicar os dados obtidos de ma-neira nada ética.

Os Trabalhos da Sociedade de Pseudogravítica, periódico científico que melhor co-nhecia, certamente não poria as mãos em qualquer monografia que não incluísse a nota mágica: "O trabalho descrito nesta monografia foi possibilitado pela Dotação 149 tal-e-qual, dada pela Comissão de Pesquisas das Nações Unidas".

Tampouco, ou muito menos, o faria o Journal of Physics.Sempre havia outras publicações que podiam fazer vista grossa para a natureza do

artigo, devido à sensação que o mesmo causasse, mas isso precisaria de alguma ne-gociação financeira na qual ele hesitava em embarcar. Talvez fosse melhor pagar o custo e publicar um pequeno panfleto para distribuição geral entre os estudiosos. Nesse caso ele estaria em condições até mesmo de dispensar os serviços de um re-dator científico, sacrificando a apresentação em favor da rapidez. Teria de encontrar um impressor idôneo. Talvez o tio Ralph conhecesse alguém em tais condições.

Seguiu pelo corredor até o gabinete, aflito e imaginando se talvez não fosse me-lhor não gastar mais tempo, não dar a si próprio qualquer outra oportunidade de en-trar em indecisão e arriscar-se a chamar Ralph de seu próprio gabinete. Estava tão absorto nesses pensamentos que não notou de início a presença naquele gabinete, até voltar-se do armário das roupas e aproximar-se da mesa.

O professor Potterley lá estava, em companhia de um homem a quem Foster não reconheceu.

Foster os fitou fixamente.- De que se trata?Potterley disse:- Sinto muito, mas tinha de detê-lo.Foster continuou a fitá-lo.- De que está falando?O desconhecido entrou na conversa.- Permita apresentar-me. - Era homem de dentes grandes, um tanto desiguais, e

parecia dentuço quando sorria. - Sou Thaddeus Araman, Chefe de Departamento da Divisão de Cronoscopia. Estou aqui para falar-lhe a respeito de informações que me foram trazidas pelo professor Arnold Potterley e confirmadas por nossas própriasfontes...

Potterley interveio, quase sem fôlego.- Eu fiquei com toda a culpa, professor Foster. Expliquei que fui eu quem o con-

venceu, contra sua vontade, a atividades sem ética. Ofereci-me a aceitar plena res-ponsabilidade e castigo. Não quero que seja prejudicado de modo algum. É só que a cronoscopia não pode ser permitida!

Araman assentiu.- Ele assumiu a culpa, como afirma, professor Foster, mas o assunto já está fora

das mãos dele.Foster perguntou:- E então? O que vai fazer? Cortar meu nome de todas as dotações para pesquisa?- Isso vai ser feito - concordou Araman.- Ordenar à universidade que me demita?- Isso também pode ser feito.- Muito bem, siga em frente. Pode fazer. Deixo agora mesmo meu gabinete, com

vocês. Mais tarde mandarei buscar meus livros. Se insistir, deixo também os livros. Isso basta?

- Não de todo - explicou Araman. - O senhor pode comprometer-se a não fazer qualquer pesquisa em cronoscopia, a não publicar qualquer descoberta que tenha feito nesse sentido e, naturalmente, a não construir cronoscópio algum. Continuará indefinidamente sob vigilância para termos certeza de que honrará essa promessa.

- E se eu me recusar a prometer? O que podem fazer? Efetuar pesquisas fora de meu campo pode ser coisa sem ética, mas não constitui crime.

No caso da cronoscopia, meu jovem amigo - disse Araman, cheio de paciência - é sim, um crime. Se for preciso você será encerrado e mantido preso.

- Por quê? - gritou Foster. - Qual é a mágica na cronoscopia?

Araman explicou:- A coisa é assim. Não podemos permitir maiores progressos nesse setor. A minha

tarefa e obrigação é primordialmente a de providenciar isso, e pretendo executar meu trabalho. Por infortúnio não tive informação, nem qualquer pessoa no departa-mento, de que a óptica dos campos de pseudogravidade podia ser tão aplicável à cronoscopia. Lavramos um verdadeiro tento de ignorância geral, mas daqui para a frente a pesquisa será orientada corretamente também nesse aspecto.

Foster disse:- De nada vai adiantar. Algo pode surgir, coisa com a qual nem o senhor nem eu

nem sequer sonhamos. Toda a ciência se prende entre si. É uma só peça. Se quiser deter uma parte tem de parar tudo.

- Verdade, sem dúvida alguma - concordou Araman - em teoria. Pelo lado prático, todavia, conseguimos muito bem manter a cronoscopia no nível inicial de Sterbinski, durante cinquenta anos. Tendo detido o senhor a tempo, professor Foster, contamos continuar a fazê-lo indefinidamente. E também não teríamos chegado tão pertoao desastre se eu houvesse percebido no professor Potterley algo mais do que ele aparentava.

Voltou-se para o historiador e ergueu as sobrancelhas em imitação de bem-humo-rada autocrítica.

- Receio, senhor, que o tenha considerado um professor de história e nada mais que isso, por ocasião de nosso primeiro encontro. Se eu houvesse executado meu trabalho corretamente e investigado o senhor, isto não teria acontecido.

Foster interveio abruptamente:- Alguém teve tempo de usar o cronoscópio do governo?- Ninguém fora de nossa divisão, sob pretexto algum. Digo isso porque se torna

evidente a meus olhos que o senhor já adivinhou até esse ponto. Quero adverti-lo, no entanto, que qualquer repetição desse fato será uma transgressão criminosa, já não ética.

- E seu cronoscópio não vai além de cento e vinte e cinco anos, mais ou menos, verdade?

- Verdade.- Nesse caso seu boletim com relatos de visão do tempo em épocas antigas é uma

mistificação?Araman respondeu com calma:- Mediante o conhecimento que o senhor tem, toma-se evidente que já sabe disso

com certeza. Mesmo assim confirmo sua observação. O boletim mensal é uma misti-ficação.

- Nesse caso - disse Foster - não vou prometer suprimir o meu conhecimento de cronoscopia. Se deseja prender-me, pode fazê-lo. Minha defesa no julgamento será suficiente para destruir esse castelo de cartas das pesquisas dirigidas e derrubá-lo para sempre. Dirigir as pesquisas é uma coisa, suprimi-las e privar a humanidade de seus benefícios é outra, muito diferente.

Araman observou:- Muito bem, vamos entender uma coisa, professor Foster. Se o senhor não colabo-

rar, irá diretamente paia a cadeia. Não terá advogado, não será acusado, não terá julgamento algum. Ficará simplesmente preso.

- Ora, não - disse Foster. - O senhor está blefando. Não estamos no século vinte, lembra-se?

Houve algum movimento fora do gabinete, ruído de passadas, um grito em voz alta, grito esse que Foster julgou reconhecer. A porta se abriu com estrondo, a fecha-

dura arrebentada, três figuras abrutalhadas entraram por ali, de qualquer maneira.Ao entrarem, um dos homens ergueu sua arma e desferiu forte coronhada no crâ-

nio do outro.Ouviu-se uma expiração forte e aquele cuja cabeça fora golpeada derreou-se todo.- Tio Ralph! - gritou Foster.Araman fechou a cara.Ponham-no naquela cadeira - ordenou - e tragam água para ele. Ralph Nimmo, esfregando a cabeça com uma espécie curiosa de desagrado, fez a

observação:- Não era preciso engrossar, Araman.Este explicou:- O guarda devia ter engrossado antes e mantido você fora daqui, Nimmo. Você

estaria melhor.- Vocês se conhecem? - perguntou Foster.- Andei lidando com esse cara - disse Nimmo, esfregando ainda a cabeça. - Se ele

está aqui em seu gabinete, sobrinho, é porque você está em apuros.- E você também - retorquiu Araman, raivoso. - Sei que o professor Foster o con-

sultou sobre literatura neutrínica.Nimmo enrugou a testa e depois a alisou com um piscar de o-lhos, como se sentis-

se dor.- E então? - perguntou. - O que mais sabe a meu respeito?- Vamos saber tudo a seu respeito, e não demora. Enquanto isso, basta uma coisa

para implicá-lo. O que está fazendo aqui?- Meu caro professor Araman - e Nimmo já se mostrava mais lépido - anteontem

um sobrinho imbecil me chamou. Colocara algumas informações misteriosas...- Não conte! Não conte nada! - gritou Foster. Araman lançou-lhe um olhar gélido.- Sabemos tudo a respeito, professor Foster. A caixa forte foi aberta e o conteúdo

retirado.- Mas como pode saber... - e a voz de Foster se desfez em meio a uma espécie de

frustração furiosa.- De qualquer modo - disse Nimmo - resolvi que a rede devia estar-se fechando

em volta dele e depois de cuidar de algumas coisas vim dizer-lhe para largar isso que está fazendo. Não vale a carreira dele.

- Isso quer dizer que você sabe o que ele está fazendo, não é? - perguntou Ara-man.

- Ele nunca me contou - explicou Nimmo - mas sou redator científico com muita experiência. Sei qual lado do átomo é eletronificado. O rapaz, Foster, especializa-se em óptica pseudogravítica e foi ele quem me ensinou o assunto. Levou-me a arranjar um compêndio de neutrínica e eu dei uma espiada no assunto antes de entregar. Dá para somar dois com dois. Ele me pediu para arranjar algumas peças de equipamen-to físico e isso também serviu para deduções. Pode corrigir se estou errado, mas meu sobrinho construiu um cronoscópio semi-portátil e de baixa potência. Sim, ou... sim?

- Sim - respondeu Araman, apanhando pensativamente um cigarro e sem dar aten-ção alguma ao professor Potterley (que observava em silêncio, como se tudo aquilo fosse um sonho), que se esquivou, arquejando, afastando-se do pequeno cilindro branco.

- Outro engano meu. Devo pedir demissão. Devia ter mandado vigiá-lo também, Nimmo, em vez de me concentrar só em Potterley e Foster. Não dispunha de muito

tempo, está claro, e você acabou chegando aqui por conta própria, mas isso não constitui desculpa para mim. Está preso Nimmo.

- E por quê? - interpelou o redator científico.- Pesquisa desautorizada.- Eu não estava fazendo pesquisa alguma. Não posso fazer pesquisa sem ser um

cientista registrado. E mesmo que pudesse, isso não constitui crime.Foster entrou no assunto, em tom selvagem:- Não adianta, tio Ralph. Este burocrata faz as próprias leis.- Que tipo de leis? - interpelou Nimmo.- Uma prisão perpétua sem julgamento.- Tolice - disse Nimmo. - Não estamos no século vin...- Já tentei isso - explicou Foster. - Ele nem se importa.- Ora bolas - gritou Nimmo. - Escute aqui, Araman. Meu sobrinho e eu temos pa-

rentes que mantêm contato conosco, como sabe. O professor também tem alguns, ao que suponho. Você não pode fazer com que desapareçamos. Vão surgir perguntas e todo um escândalo. Não estamos no século vinte. Se a sua intenção é nos assustar,não está dando certo.

O cigarro partiu-se entre os dedos de Araman e ele o jogou fora com violência. Disse, então:

- Com os diabos, não sei o que fazer. Nunca foi assim antes...Olhem! Vocês três, três idiotas, nada sabem do que estão tentando fazer. Não compreendem coisa algu-ma. Podem ouvir o que tenho a dizer?

- Ora, ouviremos - disse Nimmo, em tom sombrio.(Foster manteve-se em silêncio, olhar raivoso, lábios apertados. As mãos de Pot-

terley retorciam-se como duas cobras entrelaçadas.) Araman disse:- O passado para vocês é o passado morto. Se já examinaram a questão, aposto

que usaram esta expressão. O passado morto. Se soubessem quantas vezes ouvi es-sas três palavras, também engasgariam com elas.

Fez uma pausa curta e logo prosseguia:- Quando as pessoas pensam no passado, pensam nele como se estivesse morto,

distante e acabado há muito tempo. Nós as incentivamos a pensarem assim. Quando fazemos relatórios sobre as visões do passado sempre falamos em visões de séculos passados, embora os senhores, cavalheiros, saibam que ver além de um século, mais ou menos, é impossível. As pessoas aceitam o que dizemos. O passado significa a Grécia, Roma, Cartago, o Egito, a Idade da Pedra. Quanto mais distantes, melhor.

Nova pausa, ele retomava a explicação:- Vocês três, agora, sabem que um século é mais ou menos o limite, e assim sendo

o que significa o passado para vocês? Sua juventude, a primeira namorada, a mãe morta. Vinte anos atrás. Trinta anos atrás. Cinquenta anos atrás. Quanto mais mor-tos, melhor... Mas quando é que o passado começa realmente?

Fez nova pausa, tomado de raiva. Os outros o fitavam e Nimmo se remexia inquie-to na cadeira.

- Pois bem - prosseguiu Araman - quando foi que ele começou? Há um ano? Cinco minutos atrás? Um segundo, que seja? Não se torna evidente que o passado começa um instante antes? O passado morto é apenas outro nome para o presente vivo. E o que acontece se vocês focalizam o cronoscópio no passado de um centésimo de um segundo antes? Não estão observando o presente? Estão começando a entender?

Nimmo disse:- Inferno.- Inferno - repetiu Araman, imitando-o. - Depois de Potterley ter vindo a mim com

o relato da noite de anteontem, como acha que eu tenha investigado vocês dois? Eu o fiz com o cronoscópio, focalizando momentos cruciais até este instante de agora.

- E foi assim que soube da caixa de guarda? - perguntou Foster.- E de todos os outros fatos importantes. Pois bem, o que acha que aconteceria se

deixássemos circular a notícia de que o cronoscópio pode ser feito em casa? As pes-soas talvez começassem observando sua juventude, os pais e assim por diante, mas não tardaria para compreenderem as possibilidades. A dona de casa vai esquecer- seda pobre mãe morta e começar a vigiar a vizinha em casa e seu marido no trabalho. O homem de negócios observará o competidor, o empregado vigiará o empregador.

Explicava, em seguida:- Não haverá mais o que chamamos de vida particular. A linha partidária, o olho

espião por trás da cortina nada será, em confronto a isso. As estrelas e astros do ví-deo serão observados atentamente, em todos os momentos, por todas as pessoas. O homem será o seu próprio espião e não haverá como escapar à observação alheia. Até a escuridão não constituirá refúgio porque a cronoscopia pode ser ajustada ao infravermelho e as figuras humanas podem ser vistas por seu próprio calor corporal. Às figuras serão difusas, está claro, e o ambiente escuro, mas isto tornará o diverti-mento ainda maior, ao que suponho... Ora bolas, os homens encarregados da máqui-na, em nossos dias, às vezes fazem experiência a despeito dos regulamentos que os proíbem.

Nimmo parecia enjoado a ponto de vomitar.- Sempre se pode proibir a fabricação particular...Araman voltou-se para ele como uma fera.- Está claro que podemos, mas de que isso adianta? Podemos legislar com êxito

contra o alcoolismo, o fumo, adultério ou os mexericos trocados na cerca dos fundos? E essa mistura de intromissão e safadeza causará mais males á humanidade do que qualquer dos vícios conhecidos. Santo Deus, com mil anos de tentativas nem mesmo conseguimos acabar com o tráfico de heroína, e você vem falar delegislar contra um dispositivo que permite observar qualquer pessoa em qualquer época, e que pode ser fabricado em casa.

Foster, de repente, anunciou:- Não vou publicar.Potterley prorrompeu, entre soluços: - Nenhum de nós falará. Eu lamento... Nimmo interveio:- Você disse que não me vigiou no tocante ao cronoscópio, Araman.- Não tive tempo - explicou Araman, fatigado. - As coisas não se movem mais de-

pressa no cronoscópio do que na vida real. Não podemos acelerá-lo como o filme ou o carretel no gravador. Passamos vinte e quatro horas completas procurando pegar os momentos importantes nos últimos seis meses de Potterley e Foster. Não haviatempo para mais nada e já era o suficiente.

- Não era - contrapôs Nimmo.- De que está falando? - e no rosto de Araman estampou-se um alarme repentino,

infinito.- Eu lhe disse que meu sobrinho, Jonas, me chamou para dizer que havia guarda-

do informações importantes em uma caixa-forte. Ele agia como se estivesse em apu-ros. É meu sobrinho, eu tinha de tirá-lo do aperto. Levou algum tempo e depois vim aqui para contar-lhe o que tinha feito. Eu lhe disse quando cheguei aqui, logo depois do seu guarda me acertar, que havia cuidado de algumas coisas.

- O quê? Pelo amor de Deus...- Só isso: mandei os detalhes do cronoscópio portátil a meia dúzia de meus canais

comuns de publicidade.Ninguém falou. Não se ouvia um só ruído. Ninguém parecia respirar. Já não eram

necessárias quaisquer demonstrações.- Não fiquem olhando assim - gritou Nimmo. - Não entende o que digo? Eu tinha

os direitos de publicação popular. O Jonas reconhecerá isso. Eu sabia que ele não po-dia publicar cientificamente de qualquer modo legal. Tinha certeza de que ele plane-java publicar ilegalmente e preparara a caixa-forte por esse motivo. Achei que se di-vulgasse os detalhes prematuramente toda a responsabilidade caberia a mim e a car-reira dele estaria a salvo. E se minha licença para redigir ciência fosse cancelada, mi-nha posse exclusiva dos dados cronométricos bastaria para viver. Jonas ficaria com raiva, eu contava co misso, mas poderia explicar os motivos e dividiríamos o dinheiro meio a meio... Não fique olhando para mim desse jeito. Como eu ia saber...

- Ninguém sabia de nada - comentou Araman, cheio de amargura - mas vocês to-dos acharam natural que o governo fosse uma coisa estupidamente burocrática, má, tirânica, devotada a suprimir as pesquisas só pelo prazer de fazê-lo. Nunca lhes ocor-reu o pensamento de que estávamos tentando proteger a humanidade o melhor quepudéssemos.

- Não fique aí sentado e falando - gemeu Potterley. - Arranje os nomes das pes-soas que souberam...

- Tarde demais - disse Nimmo, dando de ombro. - Eles tiveram mais de um dia. Houve tempo para a notícia se espalhar. Minhas turmas já terão chamado qualquer número de físicos para examinar e verificar meus dados, antes de prosseguirem, e vão falar uns com os outros, dando a notícia. Basta que os cientistas ponham a neu-trínica e a pseudogravítica juntas, a cronoscopia feita em casa se torna evidente. An-tes do fim da semana quinhentas pessoas saberão como construir um pequeno cro-noscópio e como é que vão pegar todas elas?

Suas faces gordas pendiam, flácidas, ele prosseguiu:- Acho que não há meio de recolocar a nuvem-cogumelo de volta naquela esfera

bonita e reluzente de urânio.Araman se pôs em pé.- Vamos tentar, Potterley, mas concordo com o Nimmo. Tarde demais. Que tipo de

mundo vamos ter de agora em diante, não faço a menor ideia, não sei dizer, mas o mundo que conhecemos foi destruído completamente. Até agora todos os costumes e hábitos, todos os modos de vida, por menores que fossem, sempre encararam cer-ta medida de sigilo e retiro com naturalidade, mas tudo acabou.

Cumprimentou cada um dos três com formalismo requintado.- Entre vocês três, souberam criar um mundo novo. Dou-lhes os parabéns. Um

belo aquário de peixes dourados para vocês, para mim, para todos, e que cada um vá ser assado no inferno e para sempre. A prisão é revogada.

DIREITO DE VOTAR(Ou - Democracia Eletrônica)

Aos 10 anos, Linda era a única pessoa da família que parecia gostar de estar acor-dada.

Norman Muller ouviu-a através de seu sono profundo, narcotizado. (Finalmente conseguira dormir uma hora mais cedo, mas mesmo assim tinha sido mais por can-saço do que por sono.)

Ela estava ao lado de sua cama, sacudindo-o.- Papai, papai, acorde. Acorde. Ele emitiu um grunhido.- Tudo bem, Linda.- Papai, nunca vi tantos policiais juntos. Tem até carros de polícia!Norman Muller desistiu e se apoiou desajeitadamente sobre os cotovelos. Amanhe-

cia. Lá fora já se notavam os primeiros movimentos do dia, parecendo tão tristes quanto ele se sentia por dentro. Ele podia ouvir Sarah, sua mulher, se arrastando na cozinha enquanto preparava o café da manhã. Matthew, seu sogro, assoava-se ruido-samente no banheiro. Com certeza o agente Handley estava pronto e esperando por ele.

Esse era o dia.O dia da eleição!

No começo tinha sido como em todos os outros anos. Talvez um pouco pior, pois era um ano de eleições presidenciais, mas não mais terrível do que o de outras elei-ções presidenciais, se fosse o caso de comparar.

Os políticos falavam para o grande eleitorado e sobre a vasta inteligência eletrôni-ca a serviço dele. A imprensa analisava a situação com computadores industriais (o Times de Nova York e o Post Dispatch de St. Louis tinham seus próprios computado-res) e estavam cheios de palpites sobre o que estava para acontecer. Comentaristas e articulistas apontavam o estado ou o condado cujos votos seriam decisivos, contra-dizendo-se entre si de maneira engraçada.

A primeira pista de que esse ano não seria igual aos outros foi quando, na noite de 4 de outubro (exatamente um mês antes do Dia da Eleição), Sarah Muller disse ao marido:

- Cantwell Johnson acha que Indiana vai ser o estado desse ano. Já é o quarto que diz isso. Imagine, é o nosso estado dessa vez.

Matthew Hortenweller tirou o jornal da frente do seu rosto papudo e olhou ma-cambúzio para sua filha.

- Esses caras são pagos para contar mentiras - resmungou. - Não ligue para eles.- Quatro deles, papai - disse Sarah, sem se alterar. - Todos eles dizem Indiana.- Indiana é o estado-chave - replicou Norman, no mesmo tom moderado de sua

mulher - por causa da Lei Hawkins-Smith e dessa bagunça em Indianapolis. É...Matthew fez uma careta horrível e disse, rabugento:- Ninguém fala de Bloomington ou do condado de Monroe, certo?- Bem... - começou Norman.Linda, cujo pequeno rosto queixudo ia de um interlocutor para outro, disse com

sua voz aguda:- Você vai votar esse ano, papai? Norman sorriu, carinhoso.- Acho que não, querida.Mas isso foi no meio da crescente excitação de um dia de outubro, de um ano com

eleições presidenciais, e Sarah, que tinha uma vida tranquila, falou de um jeito so-nhador.

- Isso não seria maravilhoso? - Se eu votasse? Norman Muller tinha um pequeno bigode louro que, na juventude

de Sarah, fazia com que visse nele um ar de bondade, mas que, com o passar dos anos, foi-se tornando grisalho e perdendo sua distinção. Sua testa ostentava rugas profundas, provocadas pelas dúvidas, e normalmente sua alma simplória nunca se iludia com o pensamento de que havia nascido importante ou de que algum dia viria a ser. Tinha uma mulher, um trabalho e uma pequena garota, e, a não ser em perío-dos de euforia ou depressão, sempre se sentia em paz com a vida.

Por isso, estava um pouco embaraçado e bastante apreensivo com o rumo que os pensamentos da esposa estavam tomando.

- Atualmente, querida, há duzentos milhões de pessoas no país, e com estatísticas como essa acho que não devíamos perder nosso tempo pensando nessas coisas.

- Por que não, Norman? - retrucou sua esposa. - Você sabe que não são bem du-zentos milhões de pessoas. Em primeiro lugar, apenas homens entre vinte e sessenta anos são escolhidos, o que reduz as chances para um a cada cinquenta milhões, e se for mesmo Indiana...

- Isso é mais ou menos uma pessoa para cada 1 milhão duzentos e cinquenta mil. Você não gostaria que eu apostasse numa corrida de cavalos onde as chances fos-sem essas. Vamos jantar.

Matthew resmungou por trás do seu jornal.- Conversa furada. Linda perguntou novamente.- Você vai votar esse ano, papai?Norman balançou a cabeça e todos eles se dirigiram para a sala de jantar.

A 20 de outubro, a excitação de Sarah crescia cada vez mais. Durante o café, ela comentou que a Sra. Schultz, que tinha um primo que era secretário de um deputa-do, lhe dissera que Indiana era uma "barbada".

- Ela disse que o próprio presidente Villers vinha fazer um discurso em Indianapo-lis.

Norman Muller, que tivera um dia pesado na loja, reagiu a essa declaração com um leve arquear de sobrancelhas e deixou-a passar em branco.

Mas Matthew Hortenweller sempre tinha uma crítica para fazer a Washington.- Se Villers vai fazer um discurso em Indiana - disse ele - isso significa que ele

acha que Multivac escolherá Arizona. Ele não teria coragem de chegar tão perto, aquele cabeça oca.

Sarah ignorou o pai, como sempre fazia quando isso era possível.

- Não sei por que eles não vão anunciando o estado - disse ela, depois o condado, em seguida o município, e por aí vai, permitindo que as pessoas eliminadas possam relaxar.

- Se eles fizessem assim - salientou Norman - os políticos iriam sobrevoar as regi-ões escolhidas como abutres. Na hora que só restasse um distrito municipal, haveria um congressista ou dois em cada esquina.

Matthew apertou seus olhos e esfregou com raiva seus cabelos grisalhos e raros.- Eles são abutres de qualquer maneira. Escute...- Papai... - murmurou Sarah.A voz de Matthew ecoou sobre seu protesto, sem tropeço ou dificuldade.- Escute, eu era vivo quando instituíram Multivac. Eles que queriam, disseram

que o sistema acabaria com os políticos radicais, o desperdício do dinheiro dos con-tribuintes na campanha e os joões-ninguém sorridentes, vendidos e anunciados para o Congresso ou para a Casa Branca. Então, o que acontece? Nunca houve tantas campanhas eleitorais, com a única diferença de que agora eles fazem às cegas. Man-darão algumas pessoas para Indiana, por causa da Lei Hawkins-Smith, e outras tan-tas para a Califórnia, no caso de a posição de Joe Hammer se mostrar decisiva. É por isso que eu digo para que acabem com todo esse absurdo. Devíamos voltar para os bons e velhos...

De repente, Linda perguntou.- O senhor não quer que papai vote esse ano, vovô? Matthew olhou fixamente para a garotinha.- Não se importe com isso agora. - Ele se voltou novamente para Norman e Sarah.

- Houve uma época em que eu votava. Ia para a cabine, segurava a alavanca, e vo-tava. Não havia nada demais. Eu apenas dizia: "Esse cara é meu homem e vou votar nele!" Deveria ser assim.

Excitada, Linda disse:- Você votou, vovô? O senhor votou de verdade?Sarah foi logo tratando de interromper o que poderia se tornar uma história impró-

pria se se espalhasse pela vizinhança.- Não é nada disso, Linda - disse a mãe. - Vovô não quis dizer que votava de ver-

dade. Todo mundo votava assim como o seu vovô, mas isso não é votar realmente.Matthew rosnou.- Eu não era criança quando isso aconteceu. Já tinha vinte e dois anos e votei em

Langley, e meu voto valeu. Talvez meu voto não tenha sido tão importante, mas era tão válido quanto o de qualquer outra pessoa. Qualquer outra pessoa. E não tinha Multivac para...

- Muito bem, Linda - interrompeu Norman. - Hora de ir para cama. E pare de fazer perguntas sobre votação. Quando você crescer aprenderá isso tudo.

Beijou-a com uma bondade anti-séptica e ela saiu relutante, sob os conselhos ma-ternais e a promessa de que poderia ver vídeo até as 9:15, se estivesse de banho to-mado.

- Vovô - disse Linda, e ficou olhando-o com as mãos para trás; o jornal se abaixou a ponto de as sobrancelhas peludas e os olhos rodeados de rugas finas aparecerem. Era uma sexta-feira, 31 de outubro.

- Sim? - disse ele.Linda se aproximou e colocou os braços em um dos joelhos do avô, de um modo

que ele teve que colocar todo o jornal de lado.

- É verdade que o senhor já votou, vovô?- Você já me ouviu dizer que sim, não foi? Você acha que eu minto?- N... não, mas mamãe diz que todo mundo votava nessa época.- É verdade.- Mas como isso era possível? Como é que todo mundo podia votar?Matthew olhou-a com um ar solene e, em seguida, levantou-a, colocando-a sobre

seus joelhos.Até o tom de sua voz ficou mais suave.- Há quarenta anos, Linda, as pessoas sempre votavam. Dizíamos quem prefería-

mos que fosse o próximo Presidente dos Estados Unidos. Os democratas e republica-nos indicavam os seus candidatos e as pessoas diziam qual era o seu preferido. Quando acabava o dia das eleições, eles contavam quantas pessoas queriam o de-mocrata e quantas queriam o republicano. O que tivesse mais votos era o eleito. Você compreende?

Linda concordou com a cabeça e disse:- Como as pessoas sabiam em quem votar? Multivac explicava para eles?Matthew apertou as sobrancelhas, adquirindo uma expressão severa.- Elas tinham o seu próprio julgamento, garota. Ela se afastou dele e ele abrandou a voz novamente.- Não estou com raiva de você, Linda. Mas entenda, algumas vezes a contagem

demorava a noite toda e as pessoas ficavam impacientes. Então inventaram máqui-nas especiais que poderiam analisar os primeiros votos e compará-los com os votos dos mesmos lugares em anos anteriores. Assim, a máquina poderia computar qual seria a votação total e quem seria eleito. Você compreende?

Ela balançou a cabeça novamente.- Como Multivac.- Os primeiros computadores eram muito menores do que Multivac. Mas as má-

quinas foram crescendo e a cada eleição elas precisavam de cada vez menos votos para chegar ao resultado final. No fim, eles construíram Multivac e puderam fazer os cálculos a partir de um único eleitor.

Linda sorriu por ter chegado a uma parte familiar da história.- Assim é bom - disse ela. Matthew franziu as sobrancelhas.- Não, assim não é bom. Eu não quero uma máquina dizendo como eu teria votado

apenas porque um palhaço em Milwaukee diz que é contra um aumento nas tarifas. Talvez eu queira votar à toa, apenas pelo prazer de fazer isso. Talvez eu não queira votar. Talvez...

Ela fugiu dos seus joelhos e saiu correndo. Encontrou a mãe na porta. Sua mãe, que ainda estava com o casaco e sequer tinha tirado o chapéu da cabe-

ça, disse sem fôlego:- Saia da frente, Linda. Não fique no caminho da mamãe. Voltou-se em seguida

para Matthew e, enquanto tirava o chapéu e ajeitava o cabelo, disse:- Estive com Agatha.Matthew observou-a com um ar de censura e sequer dispensou um grunhido, vol-

tando logo para o seu jornal.Enquanto desabotoava o casaco, ela acrescentou:- Adivinha o que ela disse?Matthew abriu o jornal com o propósito de lê-lo, fazendo um estalido seco.- Não interessa.- Mas papai... - disse ela, mas não tinha tempo para se zangar. As notícias tinham

que ser contadas, e Matthew era o único ouvinte à mão. Ela acrescentou: - Você sabe que o Joe da Agatha é um policial e ele diz que ontem à noite chegou um cami-nhão cheio de homens do serviço secreto.

- Eles não estão atrás de mim.- Você não entende, papai? Agentes do Serviço Secreto, e quase no dia da eleição.

Em Bloomington!- Talvez estejam atrás de um ladrão de banco.- Há anos que não tem nenhum roubo de banco na cidade. Papai, você é incorrigí-

vel.Ela se afastou com passos largos.Nem mesmo Norman Muller pareceu ficar muito excitado quando recebeu a notí-

cia.- Mas, Sarah, como o Joe da Agatha sabe que eles são agentes do Serviço Secre-

to? Eles não andam por aí com um cartão de identificação colado na testa.Na noite seguinte, porém, 1º de novembro, ela disse num tom vitorioso:- Todo mundo em Bloomington está esperando que o eleitor seja alguém daqui. O

Bloomington News disse a mesma coisa no vídeo. Norman se mexeu inquieto. Ele mal podia negar isso. Apenas sentiu um nó no pei-

to. Se realmente Bloomington estava prestes a ser apontado por Multivac, isso iria significar jornalistas, programas de televisão, entrevistas e todo tipo de... bagunças. Norman gostava da tranquila rotina de sua vida, mas o rumor distante da política se aproximava cada vez mais ameaçadoramente.

- Isso não passa de rumores - disse ele. - Nada além disso.- Espere e veja. É só esperar e ver.

Da maneira como as coisas aconteceram, houve pouco tempo para esperar, pois a campainha tocou insistentemente. Quando Norman a abriu para saber de quem se tratava, um homem alto e com uma expressão séria disse:

- Você é Norman Muller?- Sim - disse ele, com uma voz desconfiada. Pela maneira que o estranho agia, não

era difícil perceber que ele era uma autoridade. A natureza da sua missão ficou tão visivelmente óbvia como, até um segundo antes, estava totalmente fora de cogita-ção.

O homem apresentou as credenciais, entrou na casa, fechou a porta atrás de si e disse, como se estivesse cumprindo um ritual:

- Sr. Norman Muller, é meu dever informá-lo, em nome do presidente dos Estados Unidos, que o senhor foi escolhido para representar o eleitorado americano na próxi-ma terça-feira, 4 de novembro de 2008.

Foi com dificuldade que Norman Muller caminhou até a sua cadeira. Sentou-se lá, pálido e em estado de choque, enquanto Sarah levava-lhe um pouco d'água, batia em suas mãos desesperada, dizendo-lhe por entre os dentes:

- Não seja tolo, Norman. Não seja tolo. Assim, eles vão escolher outra pessoa.Quando Norman recuperou a voz, sussurrou:- Sinto muito, senhor.O agente secreto tinha tirado seu sobretudo, desabotoado o paletó e estava senta-

do bastante à vontade no sofá.- Tudo bem - disse ele, e o tom burocrático pareceu ter desaparecido com a pro-

clamação formal, deixando-o bastante desinibido e amigável. - Esta é a sexta vez que faço a proclamação e já presenciei todos os tipos de reação. Nenhuma delas era

como o que estamos acostumados a ver na televisão. Você sabe o que quero dizer? Uma expressão compenetrada e casta, e um personagem que diz: "É um enorme pri-vilégio poder servir ao meu país." Esse tipo de besteira. - O agente sorriu, como se estivesse querendo confortá-lo.

O riso com que Sarah o acompanhou tinha uma sombra de histeria.- Agora você vai me ter a seu lado durante algum tempo - disse o agente. - Meu

nome é Phil Handley. Gostaria que você me chamasse de Phil. O senhor Muller não poderá sair desta casa até o dia da eleição. A senhora terá que dizer na loja que ele está doente. A senhora poderá sair para cuidar das suas coisas, desde que concorde em não dizer nenhuma palavra a respeito disso. Certo, Sra. Muller?

Sarah concordou, com um enérgico movimento de cabeça.- Sim, senhor. Nenhuma palavra.- Tudo bem. Mas, Sra. Muller... - Handley encarou-a com uma expressão séria. -

Não estamos mais brincando. A senhora só sairá em caso de extrema necessidade, e mesmo assim será seguida. Sinto muito, mas trabalhamos dessa forma.

- Seguida?- Não se preocupe. Seremos discretos. Só será por dois dias, até que a proclama-

ção seja feita à nação. Sua filha...- Ela está na cama - precipitou-se ela a dizer.- Ótimo. Vocês terão que dizer a ela que sou um parente ou um amigo que está

passando uns dias aqui. Se ela descobrir a verdade, terá que ficar presa em casa. Em todo caso, é melhor que seu pai não saia de casa também.

- Ele não vai gostar disso - disse Sarah.- Não tem outro jeito. Agora, já que não mora mais ninguém aqui...- Parece que você sabe de tudo a nosso respeito - sussurrou Norman.- Sabemos um bocado de coisas - concordou Handley. - Por enquanto essas são as

minhas instruções. - Tentarei colaborar tanto quanto seja possível. O governo pagará a minha estada; portanto não serei uma despesa extra. Serei substituído todas as noites por alguém que ficará sentado nesta sala, e por isso vocês não precisam se preocupar com as acomodações. bom, Sr. Muller...

- Senhor?...- Pode me chamar de Phil - reiterou o agente. - O propósito desses dois dias preli-

minares à proclamação oficial é fazer com que você se acostume com sua função.Nós preferimos colocá-lo diante de Multivac no melhor estado emocional possível.

Relaxe e tente ver isso tudo como um simples dia de trabalho. OK?- OK - disse Norman, para, em seguida, fazer um enérgico movimento de cabeça. -

Mas eu não quero essa responsabilidade. Por que eu?- Tudo bem - disse Handley, vamos logo colocar isso em pratos limpos. Multivac

pesa todos os tipos de fatores conhecidos, bilhões deles. No entanto, há um fator que ainda é desconhecido e que continuará desconhecido por um longo tempo. Esse fator desconhecido é o modelo de reação da mente humana. Todos os americanos são influenciados pela pressão que os outros americanos fazem e dizem, pelas coisas que são feitas para eles e pelas coisas que fazem para os outros. Qualquer america-no pode ter a sua capacidade mental avaliada por Multivac. A partir daí, pode-se fa-zer uma estimativa de toda a capacidade mental do país. Alguns americanos são me-lhores do que os outros em determinadas épocas, dependendo do que tenha aconte-cido no ano em questão. Multivac considerou-o o mais representativo desse ano.

Não é o mais esperto, o mais forte, ou o mais sortudo, mas o mais representativo desse ano. E nós não vamos duvidar de Multivac, vamos?

- Ele não pode ter-se enganado? - perguntou Norman.

Sarah, que ouvia impaciente, interrompeu.- Não dê ouvidos a ele, senhor. Isso é apenas nervosismo. Na verdade, ele é muito

bem informado e está sempre a par dos acontecimentos políticos.- Multivac toma as decisões - disse Handley. - Ele escolheu seu marido.- Mas ele sabe mesmo de tudo? - insistiu Norman, ansiosamente. - Não poderia ter

se enganado?- Sim, ele poderia. Não há sentido em mentir para vocês. Em 1992, um eleitor teve

um ataque e morreu duas horas antes de ser notificado. Multivac não previu isso. Nem poderia. Um eleitor poderia ser mentalmente instável, inconveniente ou, princi-palmente, desleal. Multivac não pode saber tudo de todo mundo até que seja ali-mentado com todos os dados que existem. É por isso que há seleções alternativas que são sempre mantidas em segredo. Não acho que precisaremos de um substituto desta vez. O senhor está em perfeita forma, Sr. Muller, e já foi cuidadosamente inves-tigado. Está apto.

Norman enterrou o rosto nas mãos e se sentou, sem ação.- Até amanhã de manhã ele estará recuperado - disse Sarah. - Ele só precisa se

acostumar com a ideia- Claro - disse Handley.

Na privacidade de seu quarto, Sarah Muller expressou-se de uma maneira dife-rente, mais incisiva. O tema principal de seu sermão foi: "Controle-se, Norman. Essa será a grande chance de sua vida e você não pode desperdiçá-la."

- Isso me assusta, Sarah - sussurrou Norman desesperadamente. - Essa coisa toda.

- Pelo amor de Deus, por quê? Você só terá que responder a uma ou duas pergun-tas.

- A responsabilidade é muito grande. Não posso arcar com isso.- Qual responsabilidade? Não há nenhuma responsabilidade. Multivac o escolheu.

A responsabilidade é de Multivac. Todo mundo sabe disso.Norman se sentou na cama numa repentina mostra de sua angústia.- Espera-se que todo mundo saiba. Mas eles não sabem. Eles...- Abaixe sua voz - ordenou Sarah com um tom frio. - Eles vão ouvi-lo lá embaixo.- Eles não vão - disse Norman, sussurrando. - Quando eles falam da administração

de Ridgley, você acha que eles dizem que o presidente foi eleito por causa de suas promessas açucaradas e sandices racistas? Não! Eles dizem que a culpa é do voto do maldito MacComber, apesar de ele ter sido apenas o homem designado por Multi-vac.

Eu mesmo disse isso... apenas agora acho que o cara era só um agricultor, que não pediu para ser escolhido. Por que a culpa só sobrou para ele? Agora seu nome é uma praga.

- Você está sendo infantil - disse Sarah.- Estou sendo sensato. Eu lhe digo, Sarah, não vou aceitar. Se eu não quiser, eles

não podem me obrigar a votar. Direi que estou doente. Direi que...Mas Sarah já estava farta.- Agora você vai me ouvir - sussurrou furiosamente. - Você não pode ser tão egoís-

ta. Você sabe o que significa ser o eleitor do ano? De um ano presidencial, acima de tudo? Isso significa publicidade, fama e, talvez, um monte de dinheiro.

- E depois eu volto a ser um simples balconista.- Você não voltará. No mínimo, você terá a gerência de uma filial. Se você tiver um

pouco de inteligência, você terá isso, porque vou lhe dizer o que fazer. Se você jogar as cartas certas pode forçar as Lojas Kennell a fazer um contrato mais vantajoso, com uma cláusula aumentando seus salários e melhorando sua aposentadoria a cada vez que divulgar o nome da empresa.

- Não é para isso que serve um eleitor, Sarah.- Mas é para isso que você vai servir. Você tem essa dívida, não para com você ou

para comigo - não estou pedindo nada para mim mas para com Linda.- Norman grunhiu.- Você não acha? - vociferou Sarah.- Sim, querida - murmurou Norman.

A proclamação oficial foi feita em 3 de novembro. Mesmo que Norman tivesse co-ragem para desistir, não poderia mais.

Sua casa foi lacrada. Agentes do Serviço Secreto faziam a segurança ostensiva-mente, impedindo qualquer aproximação.

No começo, o telefone não parou de tocar, mas Philip Handley, desculpando-se com um sorriso simpático, atendia todas as chamadas. Não muito depois, todos os telefonemas passaram a ser automaticamente desviados para a Central de Polícia.

Norman pensou que, de alguma forma, estava sendo poupado dos falsos (e invejo-sos) cumprimentos dos amigos, como também da irritante pressão dos vendedores acenando com prospectos, e da suspeita bajulação dos políticos que vinham de todo o país... talvez mesmo das ameaças de morte dos inevitáveis fanáticos.

Os jornais não puderam mais entrar na casa, para evitar influencias, e a televisão foi desligada, apesar dos gritos de protesto de Linda.

Matthew resmungou e ficou no seu quarto; Linda, depois do primeiro momento de excitação, ficou amuada e se queixando porque não podia mais sair de casa; Sarah dividiu seu tempo preparando as refeições do presente e os planos do futuro; e a de-pressão de Norman se alimentava de si mesma.

Enfim, chegou a manhã da terça-feira de 4 de novembro de 2008, o dia das elei-ções.

O café da manhã foi servido cedo, mas apenas Norman Muller comeu, mesmo as-sim, sem a menor vontade. Mesmo de banho tomado e barba feita, não conseguiu se sentir acordado, nem perdera a convicção de que estava tão péssimo por fora quanto se sentia por dentro.

A voz amigável de Handley fez o possível para convencê-lo de que tudo estava normal naquele dia cinza e sombrio. A previsão do tempo tinha dito que o dia seria nublado e com rajadas de chuva pela manhã.

- Manteremos a casa isolada até o Sr. Muller voltar, mas depois deixaremos vocês em paz. - O agente do serviço secreto estava com uniforme completo, inclusive com a baioneta guardada num pesado coldre de bronze.

- Não foi nenhum incômodo tê-lo aqui - disse Sarah com um sorriso afetado.Norman bebeu dois copos de café, limpou os lábios com o guardanapo, levantou-

se e disse nervosamente:- Estou pronto.Handley também se levantou.- Então, vamos, senhor. E muito obrigado, Sra. Muller, por sua gentil hospitalidade.O carro blindado roncou enquanto atravessava as ruas desertas. Elas estavam de-

sertas até mesmo para aquela hora da manhã. Handley apontou para elas.- Desde que um atentado a bomba quase arruinou a eleição de 1992, eles sempre

mudam o trânsito.Quando o carro parou, o sempre polido Handley conduziu Norman para uma entra-

da subterrânea, em cujas paredes havia soldados alinhados.Ele foi levado para uma sala exageradamente iluminada, na qual três homens com

uniformes brancos o cumprimentaram com um largo sorriso.- Mas isso é um hospital - disse Norman asperamente.- Isso não tem a menor importância - disse de pronto Handley. - É que um hospital

tem todas as facilidades necessárias.- Então, o que devo fazer?Handley fez um movimento de cabeça. Um dos homens de branco avançou.- Agora eu cuido de tudo, agente.Handley fez uma rápida continência e saiu da sala.- O senhor não quer se sentar? - perguntou o homem de branco. - Sou John Paul-

son, Analista de Computador. Esses são Samson Levine e Peter Dorogobuzh, meus assistentes.

Entorpecido, Norman apertou as mãos deles. Paulson era um homem de altura mediana e rosto macio, que parecia acostumado a sorrir e tinha um topete muito proeminente.

Usava óculos de aro de plástico, de um modelo fora de moda, e acendeu um cigar-ro enquanto falava. (Norman recusou o cigarro que lhe ofereceu.)

- Em primeiro lugar, Sr. Muller - disse Paulson, quero que saiba que não temos a menor pressa. Se necessário, ficaremos aqui o dia todo. Ficaremos aqui até que o se-nhor se acostume com o ambiente e deixe de achar a situação estranha.

- Tudo bem - disse Norman, desde que termine logo.- Sei como se sente. Ainda assim, queremos que saiba de tudo que vai acontecer.

Em primeiro lugar, Multivac não está aqui.- Não?Mesmo estando tão deprimido, ele não deixava de estar curioso para conhecer

Multivac. Eles diziam que o sistema tinha meia milha de comprimento e três anda-res, e que cinquenta técnicos não paravam de andar pelos corredores, dentro de sua estrutura. Era uma das maravilhas do mundo.

Paulson sorriu.- Não. Ele não é portátil, como deve saber. Na verdade, ele fica embaixo da terra,

num lugar conhecido por pouquíssimas pessoas. O senhor pode entender isso, já que ele é nossa maior riqueza. Nós não o usamos apenas para as eleições, pode acredi-tar.

Norman achou que ele estava puxando conversa e ficou intrigado.- Pensei que fosse ver Multivac. Eu gostaria.- Tenho certeza de que sim. Mas precisa de uma ordem presidencial para ter esse

privilégio, e mesmo assim ela tem que ser endossada pelo Serviço Secreto. No en-tanto, estamos ligados a Multivac através de feixes de radiações. O que Multivac diz pode ser interpretado aqui, e o que nós dizemos está sendo transmitido direta-mente para Multivac. Num certo sentido, estamos ao lado dele.

Norman olhou ao seu redor. As máquinas dentro da sala não tinham o menor signi-ficado para ele.

- Agora deixe-me explicar, Sr. Muller - acrescentou Paulson. - Multivac já tem a maior parte das informações de que necessita para decidir todas as eleições, quer sejam elas nacionais, estaduais ou municipais. Ele precisa checar algumas atitudes

imprevisíveis da mente, e o usará para isso. Não podemos adiantar que tipo de per-guntas ele lhe fará, mas talvez elas não façam o menor sentido para o senhor... nem mesmo para nós. Talvez ele peça a sua opinião sobre a coleta de lixo de sua cidade e se é contra ou a favor de um incinerador central. Pode perguntar se o senhor tem um médico particular ou se usa os hospitais do governo. Compreende?

- Sim, senhor.- Qualquer que seja a pergunta, responderá com suas próprias palavras e da ma-

neira que lhe convier. Se acha que deve se alongar nas respostas, não tem o menor problema. Fale por uma hora, se necessário.

- Sim, senhor.- Agora, só mais uma coisa. Teremos que fazer uso de um simples aparelho para

medir sua pressão sanguínea, seu batimento cardíaco, a condutividade da pele e suas ondas cerebrais enquanto fala. A maquinaria parecerá meio complexa, mas não dói nada. O senhor não vai nem perceber o que está se passando.

Os outros dois técnicos já estavam se ocupando com o aparato brilhante em cima do carrinho de rodas.

- Isso é para saber se estou falando a verdade? - disse Norman.- De jeito nenhum, Sr. Muller. Não é uma questão de mentir. É apenas um medidor

de intensidade emocional. Se a máquina pede a sua opinião a respeito da escola do seu filho, o senhor pode dizer que acha que ela está superlotada. Isso não passa de palavras. A partir das respostas do cérebro, coração, hormônios e glândulas sudorí-paras, Multivac vai julgar a intensidade com que o senhor sente o problema. Ele en-tenderá seus sentimentos melhor do que o senhor mesmo.

- Nunca ouvi falar nisso - disse Norman.- Não, tenho certeza de que não. A maior parte dos detalhes do funcionamento de

Multivac é ultra-secreto. Por exemplo, quando sair, terá que assinar um papel juran-do que jamais revelará a natureza das perguntas que lhe foram feitas. Quanto menos se souber a respeito de Multivac, menos pretexto haverá para pressionar os ho-mens que trabalham para ele. - Paulson sorriu sem graça. - Nossas vidas já são mui-to difíceis do jeito que são.

Norman anuiu.- Eu entendo.- E agora, gostaria de comer ou beber alguma coisa?- Não. Nada.- Tem alguma pergunta a fazer? Norman balançou a cabeça.- Então nos diga quando estiver pronto.- Eu já estou pronto.- Tem certeza?- Absoluta.Paulson fez um movimento de cabeça e, em seguida, levantou a mão, gesticulando

para os outros. Eles avançaram com seus equipamentos assustadores. A respiração de Norman Muller acelerou um pouco, enquanto observava o que acontecia à sua volta.

A provação demorou quase três horas, com uma breve parada para um café e uma constrangedora sessão com um urinol.

Durante todo esse tempo, Norman Muller permaneceu envolvido pela maquinaria. Sentia-se cansado até a medula dos ossos.

Ironicamente, ele pensou que seria fácil manter a promessa de não revelar nada do que ia acontecer ali dentro. As perguntas já tinham conseguido deixar sua cabeça totalmente confusa.

Por algum motivo, esperava que Multivac tivesse uma voz sepulcral, sobrenatural e ressonante, mas percebia agora que isso era apenas uma ideia que fizera por cau-sa dos inúmeros programas que vira na televisão. A verdade era dolorosamente fria. As perguntas saíam de um tipo de chapa metálica, numa fita cheia de furos. Uma se-gunda máquina decodificava essa fita e Paulson lia as palavras para Norman, antes de dar a pergunta e deixar que ele a lesse sozinho.

As respostas de Norman eram gravadas numa máquina e repetidas para que ele as confirmasse com correções ou acréscimos, que também eram gravados. Tudo isso era colocado num processador de palavras e esse, por sua vez, transmitia os dados para Multivac.

A única pergunta de que Norman podia se lembrar no momento era uma tremenda bobagem: "Qual a sua opinião sobre o preço dos ovos?"

Quando tudo acabou, eles tiraram eletrodos de várias partes de seu corpo, retira-ram o medidor de pressão do seu braço e afastaram a maquinaria.

Ele se levantou e respirou profundamente.- Isso é tudo? Estou livre?- Ainda não - Paulson apressou-se em dizer, sorrindo de um jeito tranquilizador. -

Precisaremos de você por mais uma hora.- Para quê? - disse Norman asperamente.- Multivac precisará desse tempo para comparar esses novos dados com os tri-

lhões de informações que já tem. Milhares de eleições são levadas em conta. É muito complexo.

E talvez haja um contestador solitário aqui ou ali, um inspetor em Phoenix, Arizo-na, ou algum conselheiro parlamentar em Wilkesboro, Carolina do Norte, em dúvida. Nesse caso, talvez Multivac seja obrigado a lhe fazer uma ou duas perguntas decisi-vas.

- Não - disse Norman. - Eu não vou passar por isso novamente.- Provavelmente isso não acontecerá - disse Paulson, tentando acalmá-lo. - Isso

raramente acontece. Mas, por via das dúvidas, você terá que ficar. - Sua voz se tor-nou um pouco dura, apenas um pouquinho. - Você sabe que não tem escolha. Você tem que me obedecer.

Norman sentou-se, exausto. Deu de ombros.- Você não pode ler o jornal - disse Paulson, mas se gosta de histórias policiais ou

de jogar xadrez, ou se há alguma coisa que possamos fazer para ajudá-lo a matar o tempo, gostaria que falasse.

- Não tem problema. Prefiro esperar.Eles o conduziram para uma pequena sala ao lado daquela em que tinha sido

questionado.Ele deixou-se afundar numa poltrona revestida de plástico e fechou os olhos.Na medida do possível, devia esperar a última hora com calma.Sentou-se totalmente imóvel e, aos poucos, a tensão foi diminuindo. Sua respira-

ção ficou menos agitada e ele pôde fechar as mãos sem perceber mais nenhum tre-mor nos dedos. Talvez não houvesse mais perguntas. Talvez tudo estivesse acabado.

Se tudo tivesse acabado, em seguida viriam a aclamação popular e os convites para falar em todo o tipo de solenidade. O eleitor do ano!

Ele, Norman Muller, um simples balconista de uma pequena loja de departamentos em Bloomington, Indiana, que não tinha nascido importante nem fizera nenhuma

conquista que o tirasse do anonimato, estava na privilegiada condição de ter sido lançado para a História.

Os historiadores falariam solenemente da Eleição Muller, em 2008. Esse seria o nome da data - Eleição Muller.

A publicidade, um trabalho melhor, o incessante jorrar de dinheiro que tanto inte-ressava a Sarah, essas coisas todas ocuparam apenas um canto de sua mente. É cla-ro que tudo isso era bem-vindo. Não podia recusar. Mas uma outra coisa estava co-meçando a preocupá-lo naquele momento.

Um latente patriotismo estava se manifestando. Afinal de contas, representava todo o eleitorado. Era o centro da atenção de todos. Nesse dia único, ele era toda a América!

A porta se abriu, fazendo com que abrisse os olhos e prestasse atenção. Por um instante, sentiu uma contração no estômago. Mais perguntas, não!

Mas Paulson estava sorrindo.- O senhor está liberado.- Não há mais perguntas?- Não é preciso. Tudo estava absolutamente claro. O senhor será escoltado de vol-

ta para casa, e então voltará a ser um cidadão comum. Ou tanto quanto o público deixar.

- Obrigado. Muito obrigado. - Norman corou e acrescentou:, Quem... quem ga-nhou as eleições?

Paulson balançou a cabeça.- Você terá que esperar a proclamação oficial. As regras são muito rígidas. Não po-

demos dizer nem a você. Espero que compreenda.- É claro que sim. Norman se sentiu embaraçado.- O Serviço Secreto lhe mostrará os papéis que terá de assinar.- Sim. - De repente, Norman Muller se sentiu orgulhoso. Foi totalmente dominado

por essa sensação. Estava orgulhoso.Nesse mundo imperfeito, os soberanos cidadãos da primeira e maior Democracia

Eletrônica tinham, através de Norman Muller (através dele), exercido mais uma vez seu livre e inquestionável direito de votar.

A CELA DE BRONZE

- Ora, vamos - disse Shapur com toda a educação, levando-se em conta que era um demônio. - Está me fazendo perder tempo. E os eu também, ao que parece, por-que só tem meia hora. - E a cauda retorcia.

- Não é desmaterialização - perguntou Isidore Wellby, imerso em pensamentos.- Já disse que não - respondeu Shapur.Pela centésima vez, Wellby olhou para o bronze inquebrável. Inconsútil e ininterru-

pto que o cercava por todos os lados, O demônio tivera o prazer demoníaco (que ou-tro prazer podia ter, na verdade?) de fazer ver que o teto, o chão e as quatro pare-des eram lajes de bronze sem qualquer traço distinto, dois palmos de grossura, sol-dados e sem costura.

Tratava-se da prisão suprema e Wellby tinha apenas meia hora para sair dela en-quanto o demônio observava com expressão de quem prelibava tudo aquilo.

Dez anos antes (até aquele dia, naturalmente) Isidore Wellby assinara o documen-to.

- Nós lhe pagamos adiantadamente - dissera Shapur, cheio de persuasão na voz. - Dez anos de tudo que quiser, dentro de limites razoáveis, e depois você será um de-mônio. Será um de nós, com novo nome e poder demoníaco e muitos privilégios além disso. Nem vai perceber que é um condenado. E se não assinar, poderá acabar no fogo, de qualquer modo, como no decurso comum das coisas. Nunca se sabe... aqui, olhe para mim... Não estou me saindo muito mal. Assinei, servi meus dez anos e aqui estou. Nada mau.

- E por que parece tão aflito para que eu assine, então, se eu posso me danar de qualquer modo? - perguntou Wellby.

- Não é fácil recrutar o pessoal do inferno - explicou o demônio, com dar de om-bros cheio de franqueza e que levou o leve odor de dióxido de enxofre a tomar-se um pouco mais forte naquela atmosfera. - Todos querem arriscar-se a terminarem no céu. É um jogo com poucas possibilidades, mas existem. Acho que você é sensato demais para esse tipo de coisa. Enquanto isso, porém, estamos com um número maior de almas condenadas do que podemos cuidar e uma escassez crescente na parte administrativa.

Wellby, que acabara de dar baixa do exército e nada tinha para apresentar a seu favor a não ser a perna que coxeava e uma carta de despedida de uma jovem a quem ainda amava, deu a alfinetada no dedo e assinou.

Está claro que lera, antes de assinar, o que ali se achava escrito em letras miúdas. Uma certa soma de poder demoníaco seria depositada em sua conta ao assinar com sangue. Não saberia detalhadamente como se manipulavam esses poderes, nem mesmo a natureza de todos eles, mas ainda assim seus desejos seriam satisfeitos de tal maneira que pareceriam ter ocorrido por meio de mecanismos inteiramente nor-mais.

Está claro que nenhum desejo podia ser realizado que interferisse com os objetivos

e fitos superiores da história humana. Wellby arreliou-se ao ler isso.Shapur tossiu.- É precaução que nos é imposta por... bem... Lá De Cima. Você é homem sensato.

Tal limitação não vai atrapalhá-lo.Wellby observou:- E parece haver uma cláusula especial, também.- Coisa parecida, sim. Afinal de contas temos de verificar sua capacidade para o lu-

gar. Ela diz, como pode ler, que deverá executar uma tarefa para nós ao encerrar os seus dez anos, tarefa que seus poderes demoníacos tornarão inteiramente possível executar. Não podemos dizer-lhe agora qual a natureza dessa tarefa, mas você terá dez anos para estudar a natureza dos poderes que vai adquirir. Você pode muito bem encarar tudo isso como um exame de admissão.

- E se eu não passar na prova, o que acontece?- Nesse caso - explicou o demônio - você será apenas uma alma condenada e co-

mum. - E porque era um demônio, seus olhos fumegaram ao pensar no assunto, seus dedos de garras torceram-se como se já os sentisse bem enfiados nas entra-nhas do outro. Mas aduziu suavemente. - Ora, vamos, a prova será muito simples. Preferimos ter você como membro de nosso quadro do que como mais uma incum-bência.

Wellby, cheio de pensamentos tristes e referentes à amada que estava fora de seu alcance, importava-se pouquíssimo, nesse momento, com o que aconteceria após dez anos, e assinou.

Mesmo assim os dez anos passaram com rapidez. Isidore Wellby foi sempre sensa-to, como o demônio predissera, e as coisas deram certo. Aceitou a posição e por es-tar sempre no lugar certo, no momento exato e dizendo o que convinha ao homem certo, foi rapidamente promovido à condição de grande autoridade.

Os investimentos que fazia invariavelmente traziam proveito e, o que era ainda mais satisfatório, sua namorada voltou-lhe com o arrependimento mais sincero e a adoração mais satisfatória.

O casamento foi feliz e abençoado com quatro filhos, dois meninos e duas meni-nas, todos inteligentes e razoavelmente bem comportados. Ao final dos dez anos achava-se no ápice de sua autoridade, reputação e saúde, enquanto a esposa, entre outras coisas, se tornara mais bela ao amadurecer.

E dez anos (até aquele dia, naturalmente) após a assinatura do pacto, acordou e encontrou-se não no dormitório, mas em pavorosa câmara de bronze com a solidez mais assustadora e sem outra companhia senão um demônio ansioso.

- Você só precisa sair, e será um de nós - explicou Shapur. -Isso pode ser feito de modo justo e lógico, usando seus poderes demoníacos, desde que saiba com exati-dão o que está fazendo. E deve saber, a essa altura.

- Minha esposa e filhos vão ficar perturbados com meu desaparecimento - obser-vou Wellby, em quem o pesar começava a se revelar.

- Encontrarão o seu corpo morto - explicou o demônio para consolá-lo. - Você pa-recerá ter morrido de ataque do coração e terá um belo funeral, O sacerdote vai en-comendá-lo ao Céu e nós não o desapontaremos, nem aos que escutarem, Muito bem, vamos com isso, Wellby, você tem até meio-dia.

- Wellby, tendo-se inconscientemente preparado para aquele momento durante dez anos, sentia menos pânico do que teria sido possível. Olhou em volta, conjetu-rando.

- Este aposento é totalmente fechado? Não há aberturas disfarçadas?- Não há abertura em lugar algum na parede, chão ou teto - disse o demônio, deli-

ciando-se profissionalmente com sua própria obra. - Nem nos encontros de quais-quer dessas superfícies, a bem dizer. Você já está desistindo?

- Não, não. É só me dar algum tempo.Wellby pensou com afinco. Não parecia haver sinal algum de fechamento no apo-

sento. Nem mesmo se sentia o ar a mover. O ar talvez estivesse entrando ali após se desmaterializar para atravessar as paredes. Talvez o demônio houvesse entrado pela desmaterialização e talvez o próprio Wellby pudesse sair desse modo.

Perguntou.O demônio sorriu.- A desmaterialização não é um dos seus poderes. Tampouco eu a usei para entrar.- Tem certeza do que diz?- Este quarto é de minha própria criação - explicou o demônio, delambido - e foi

especialmente construído para você.- E você entrou vindo de fora?- Entrei.- Com os poderes demoníacos razoáveis que eu também possuo?- Exatamente. Vamos, sejamos precisos. Você não pode mover-se pela matéria

mas pode mover-se em qualquer dimensão, por um simples esforço da vontade. Pode mover-se para cima e para baixo, para a direita e esquerda, transversalmente e assim por diante,mas não pode mover-se através da matéria de modo algum.

Wellby continuava pensando e Shapur continuava fazendo ver a solidez imovível das muralhas, teto e soalho de bronze, sua inquebrabilidade total.

A Wellby parecia evidente que Shapur, por mais que acreditasse na necessidade de recrutar pessoal para trabalhar, restringia a custo seu deleite demoníaco em poder contar com uma alma condenada comum a fim de divertir-se com ela.

- Pelo menos - comentava Wellby, como tentativa lamentável de filosofar - terei dez anos felizes para lembrar. Está claro que é um consolo, mesmo para uma alma condenada no inferno.

- De modo algum - contrapôs o demônio. - O inferno não seria inferno se a pessoa pudesse ter algum consolo. Tudo que alguém ganhar na Terra por pactos com o de-mônio, como no seu caso (ou no meu caso, também) é exatamente o que se poderia ganhar sem esse pacto, caso a pessoa houvesse trabalhado com diligência e confian-ça completa no... bem... Lá Em Cima. Isso é que faz estes pactos tão demoníacos - e o demônio riu com uma espécie de uivo animadíssimo.

Cheio de indignação,Wellby observou:- Você quer dizer que minha esposa teria voltado a mim, mesmo se eu não assi-

nasse seu contrato?- Poderia voltar - disse Shapur. - O que acontece é a vontade de... bem... Lá Em

Cima, você sabe. Nós não podemos fazer coisa alguma para modificar isso.O pesar desse momento deve ter aguçado o espírito de Wellby, pois foi quando ele

desapareceu e deixou o aposento vazio, a não ser pela presença do demônio surpre-so. E a surpresa transformou-se em fúria absoluta quando o demônio olhou o contra-to com Wellby, contrato que ele, até então, estivera segurando na mão para tomar as medidas finais, de um ou de outro modo.

Havia se passado dez anos (até aquele dia, naturalmente) desde que Isidore Well-by assinara o pacto com Shapur, e foi quando o demônio entrou no gabinete de Well-

by e disse, cheio de raiva:- Olhe aqui...Wellby passou a olhá-lo, atônito.- Quem é você?- Você sabe muito bem quem sou - retorquiu Shapur. - Não, absolutamente. - assegurou Wellby. O demônio fitou o homem ameaçadoramente.- Vejo que está dizendo a verdade, mas não consigo entender os detalhes. - E

prontamente encheu a mente de Wellby com os acontecimentos dos últimos dez anos.

Wellby disse: - Oh, sim. Posso explicar, está claro, mas você tem certeza de que não seremos interrompidos?

- Não seremos - garantiu o demônio, cheio de sombras no olhar e na voz.- Eu estava sentado naquele quarto de bronze fechado – disse Wellby.- Deixe para lá - interveio o demônio, apressado. - Eu quero saber...- Por favor. Deixe-me contar como sei.O demônio estalou as mandíbulas e exalou tanto dióxido de enxofre que Wellby se

pôs a tossir, parecendo sentir dores. Ele pediu:- Se você puder se afastar um pouco... Obrigado... Pois bem, eu estava sentado

naquele quarto de bronze fechado e me lembrei como você não parava de acentuar a inquebrabilidade total das quatro paredes, do teto e do soalho. Fiquei pensando nisso: por que você era tão taxativo? O que mais havia além de paredes, teto e soa lho? Você tinha um espaço tridimensional inteiramente fechado.

Tossiu um pouco e prosseguiu:- E era isso mesmo: tridimensional. O quarto não estava fechado na quarta dimen-

são. Não existia indefinidamente no passado. Você disse que o tinha criado para mim. Por isso, se eu viajasse para o passado me encontraria em algum ponto do tempo, afinal onde o quarto não existisse, e assim sairia dali.

Terminava a explicação:- E mais, você tinha dito que eu podia movimentar-me em qualquer direção, e o

tempo pode com certeza ser visto como um a dimensão. De qualquer modo, assim que resolvi caminhar para o passado encontrei-me vivendo para trás, em velocidade tremenda e de repente não havia mais bronze em volta de mim.

Shapur gritou, cheio de angústia:- Eu posso calcular tudo isso. Não seria possível você escapar de qualquer outro

modo. É este contrato seu o que me preocupa. Se você não é uma alma condenada comum, muito bem, isso faz parte do jogo. Mas você deve ser pelo menos um de nós, um em nosso quadro de pessoal; para isso você foi pago, e se eu não entregar você lá embaixo vou me desgraçar todo.

Wellby deu de ombros.- Lamento muito, pode crer, mas nada posso fazer para ajudá-lo. Você deve ter

criado o quarto de bronze logo depois que eu coloquei minha assinatura no papel, porque quando saí dali encontrei-me exatamente naquele ponto do tempo em que fazia o negócio com você. Lá estava você de novo, lá estava eu, você empurrava o contrato em minha direção, bem como o estilete com que eu tinha de furar o dedo. Está claro que como eu voltara no tempo, minha memória do que se tornava o futuro ia esmaecendo, mas não de todo, ao que parece. Quando você empurrava o contrato para mim senti-me pouco à vontade. Não me lembrava bem do futuro mas sentia in-tranquilidade.

Por isso não assinei. Recusei sua oferta.

Shapur fez ranger os dentes.- Eu devia ter sabido. Se os padrões de probabilidade afetassem os demônios eu

teria passado com você para este novo mundo imaginário. No pé em que as coisas estão só posso dizer que você perdeu os dez anos felizes que lhe pagamos. E um consolo. E acabaremos por pegá-lo, afinal. Esse é outro consolo.

- E essa agora? - interveio Wellby. - Existem consolos no inferno? Por todos os dez anos que já vivi eu nada soube do que poderia ter obtido. Mas agora você resolveu recolocar em minha mente a recordação dos dez anos que poderiam ter sido, lem-bro-me que, no quarto de bronze, você me disse que os acordos demoníacos não po-diam dar coisa alguma que não pudesse ser obtida por diligência econfiança em Lá Em Cima. Eu fui diligente e confiei.

Os olhos de Wellby recaíram sobre a fotografia da bela esposa e quatro belos filhos e depois percorreram o luxo de bom-gosto em seu gabinete.

- E posso escapar inteiramente do inferno. Também isso está além do seu poder de decidir.

E o demônio, com um uivo pavoroso, desapareceu para sempre.

COISA DE CRIANÇA

A primeira indicação de náusea e Jan Prentiss disse:- Com os diabos, você é um inseto.Era uma afirmação de coisa real e não um insulto, e a coisa sentada sobre a escri-

vaninha de Prentiss respondeu:- Claro que sim.Tratava-se de algo com um palmo de comprimento, muito fina, e sua forma era ca-

ricatura avançadíssima e miniaturizada de um ser humano. Os braços e pernas finos originavam-se aos pares da parte superior do corpo. As pernas eram mais compridas e grossas do que os braços e se estendiam pelo comprimento do corpo, inclinando-se à frente do joelho.

A criatura sentava-se sobre esses joelhos e, ao fazê-lo, a ponta de seu abdômen penugento ficava pouquíssimo acima da escrivaninha de Prentiss.

Houve tempo bastante para Prentiss perceber tais detalhes. O objeto não fazia qualquer objeção a que o examinassem. Parecia acolher o exame, na verdade, como se estivesse habituado à admiração.

- O que é você? - perguntou Prentiss, que não se sentia inteiramente racional, Cin-co minutos antes estivera sentado diante da máquina de escrever, trabalhando com calma na estória que prometera a Horace W. Browne para a edição do mês anterior de Ficção Fantasia Avançada. Seu estado de espírito fora inteiramente comume ele se sentia muito bem, muitíssimo bem, perfeitamente lúcido.

E fora quando uma parte do ar, logo à direita da máquina de escrever, brilhara, fi-cara encoberta e se condensara naquele pequeno vapor que balançava os pés negros e reluzentes pela beira da escrivaninha.

Prentiss, um tanto desligado, imaginava por que motivo se dava ao trabalho de fa-lar com a coisa. Era a primeira vez em que sua profissão vinha afetar tão cruamente os sonhos. Tem de ser um sonho, dizia a si próprio.

- Sou avaloniano - explicou a coisa. - Venho de Avalon, em outras palavras.O rosto minúsculo terminava em boca mandibular. Duas antenas oscilantes e de

três polegadas saíam de um ponto acima de ambos os olhos, enquanto estes brilha-vam muito, a seu modo de múltiplas facetas. Não havia qualquer sinal de narinas.

Claro que não, pensou Prentiss, aloucadamente. Tem de respirar por meio de res-piradouros no abdômen. Deve estar falando com o abdômen, neste caso. Ou então usando telepatia.

- Avalon? - repetiu, em tom estúpido. Pensava agora: Avalon? A terra do elfo na época do Rei Arthur?

- Por certo - confirmou a criatura, respondendo com lisura ao pensamento. - Eu sou um elfo.

- Oh, não! - e Prentiss levou as mãos ao rosto, tirou-as de lá e continuou a ver o elfo ali, os pés batendo na gaveta de cima. Prentiss não bebia, não era nervoso. Na verdade os vizinhos o consideravam uma pessoa de tipo muito prosaico. Era dono de

uma barriga avolumada e cômoda, quantidade razoável porém não excessiva de ca-belos obre a cabeça, esposa amável e filho de dez anos, menino muito ativo. Os vizi-nhos, naturalmente, ignoravam o fato de que ele pagava a hipoteca da casa escre-vendo fantasias deste ou daquele tipo.

Até então, todavia, esse vício secreto jamais viera a afetar-lhe a psique. A esposa naturalmente sacudira a cabeça por causa de tal predileção, e o fizera muitas vezes. Mantinha a opinião de que ele desperdiçava e até pervertia o talento de que era do-tado.

- Quem lê essas coisas? - seria seu comentário. - Tudo isso sobre demônios e gno-mos e anéis mágicos e elfos. Toda essa coisa de criança, se quer minha opinião sin-cera.

- Está erradíssima - replicava Prentiss, em tom rígido. - As fantasias modernas são muito avançadas e constituem tratamento amadurecido das motivações populares. Por trás da fachada de irrealidade existem com frequência comentários incisivos so-bre o mundo de nossos dias. A fantasia em estilo moderno é acima de tudo umapredileção adulta.

Blanche dava de ombros. Ela o ouvia falar em convenções, de modo que tais co-mentários não eram novidades.

- Além disso - ele aduzia - as fantasias pagam a hipoteca, não acha?- Talvez paguem - concordava ela - mas seria bom se você passasse a escrever

histórias policiais. Pelo menos receberia porcentagens e poderíamos até dizer aos vi-zinhos o que você faz para viver.

Prentiss gemeu intimamente. Blanche podia entrar a qualquer momento e encon-trá-lo a conversar consigo mesmo (era real demais para ser um sonho, talvez fosse alucinação). Depois disso ele teria de escrever histórias de crimes para viver - ou co-meçar a trabalhar.

- Equivoca-se inteiramente - disse o elfo. - Isto não é sonho - nem alucinação.- Nesse caso por que não vai embora? - perguntou Prentiss,- Pretendo ir. Não é este o lugar em que pretendo viver. E você vem comigo.- Eu não vou. Que diabo pensa que é, dizendo o que devo fazer?- Se você acha que esse é o modo respeitoso de se dirigir a um representante de

cultura mais antiga, não posso louvar a sua educação.- Você não é uma cultura mais antiga... - e sentiu vontade de acrescentar: você é

apenas um fruto de minha imaginação, mas era escritor há muito tempo para não utilizar tal chavão.

- Nós, insetos - disse o elfo, em tom regelado - existimos meio bilhão de anos an-tes de ser inventado o primeiro mamífero. Nós vimos os dinossaurinhos chegarem e vimos quando sumiram. Quanto a vocês, Homens-coisa... não passam de arrivistas.

Prentiss observava pela primeira vez que, do ponto no corpo do elfo do qual brota-vam os membros, existia um terceiro par vestigial. Isso aumentava a inseticidade do objeto e aumentou a indignação de Prentiss.

Ele afirmou:- Você não precisa perder tempo com seus inferiores sociais.- Eu não perderia - contrapôs o elfo - pode crer em mim. Mas a necessidade obri-

ga, como sabe. É uma história muito complicada, mas quando tiver conhecimento vai querer ajudar.

Inquieto, Prentiss observou:- Escute, não tenho muito tempo. Blanche, minha esposa entrará a qualquer mo-

mento. Ela vai ficar perturbada.- Ela não estará aqui - disse o elfo. - Eu coloquei um bloqueio em sua mente.

- O quê!- É coisa inofensiva, pode ter certeza. Nós, afinal de contas, não podemos ser per-

turbados, não acha?Prentiss voltou a sentar-se na cadeira, aturdido e infelicíssimo, O elfo disse:- Nós, elfos, começamos nossa associação com vocês, homens-coisas, logo após o

início da última era glacial. Tinha sido uma época terrível para nós, como pode imagi-nar. Não podíamos usar carcaças animais ou viver em buracos, como faziam seus grosseiros ancestrais. Foi necessário usarmos somas inacreditáveis de energia psíqui-ca para continuarmos aquecidos.

- Quantidades inacreditáveis de quê?- Energia psíquica. Você nada sabe a esse respeito. Sua mente é grosseira demais

para aceitar o conceito. Faça o favor de não interromper.O elfo prosseguiu:- A necessidade levou-nos a experimentar com os cérebros de sua gente. Eram

brutos, mas grandes. As células se mostravam ineficazes, quase inúteis, mas havia amplo número delas. Podíamos usar esses cérebros como dispositivos de concentra-ção, uma espécie de lente psíquica e aumentar a energia disponível, que nossas mentes saberiam aproveitar. Sobrevivemos muito bem à era glacial e não foi preciso retirarmo-nos para os trópicos, como nas eras anteriores.

Ele prosseguia:- Está claro que ficamos mal acostumados. Quando o calor voltou não abandona-

mos os homens-coisa. Nós os usamos para aumentar de um modo geral o padrão de vida que desfrutávamos. Podíamos viajar mais depressa, comer melhor, fazer mais, e teremos para sempre nosso modo de vida antigo, simples e virtuoso. E havia o leite, também.

- Leite? - indagou Prentiss. - Não vejo qualquer relação.- É um líquido divino. Só o provei uma vez em minha vida. Mas a poesia clássica

dos elfos fala dele e usa superlativos. Nos dias de Antanho os homens sempre nos supriam com abundância. O motivo pelo qual os mamíferos, logo eles, foram aben-çoados com o leite e os insetos não, eis um mistério total... Um infortúnio que os ho-mens-coisa perderam.

- Foi assim?- Há duzentos anos.- Que bom, para nós- Procure não ser tão tacanho - retorquiu o elfo, menos cordial. - Foi uma associa-

ção útil para todos os interessados até que vocês, homens-coisa, aprendessem a usar as energias psíquicas em quantidade maior. Exatamente o tipo de coisa grossa que suas mentes são capazes de fazer.

- O que havia demais nisso?- Difícil de explicar. Para nós está muito bom acender essas fantasias noturnas com

vagalumes iluminados pelo emprego de dois homens-força de energia psíquica. Mas vocês, criaturas-homens, instalaram luzes elétricas. Nossa recepção por antena é muito boa por muitos quilômetros, mas vocês inventaram o telégrafo, telefones erádios. Nossos gnomos domésticos tiravam o minério com eficiência muito maior do que fazem as coisas-homens, até que os homens-coisa inventassem dinamite. Está percebendo?

- Não- Torna-se evidente que criaturas sensíveis e superiores como os elfos não vão fi-

car assistindo enquanto um grupo de mamíferos peludos os ultrapassam. A coisa não seria tão ruim se pudéssemos imitar o aperfeiçoamento eletrônico, mas nossas ener-

gias psíquicas eram insuficientes para tanto. Muito bem, nós nos retiramos da reali-dade. Ficamos taciturnos, definhávamos, decaíamos. Chame a isso de complexo de inferioridade se quiser, mas a partir de dois séculos atrás abandonamos lentamente a humanidade e nos retiramos para centros tais como Avalon.

Prentiss pensava furiosamente.- Vamos entender as coisas. Vocês podem manusear as mentes.- Claro.- Você pode me levar a pensar que você é invisível? Hipnoticamente, é o que que-

ro dizer.- Expressão grosseira, mas sim.- E quando você apareceu, acabou de aparecer, fez isso retirando uma espécie de

bloqueio mental. Foi o que fez?- Para responder a seus pensamentos, em vez de responder às suas palavras: você

não está dormindo, não está louco e eu não sou sobrenatural.- Eu só queria ter certeza. Está dizendo, portanto, que pode ler minha mente.- Claro que sim. É o tipo do trabalho muito sujo e sem recompensa, mas posso fa-

zer quando necessito. O seu nome é Prentiss e você escreve ficção imaginativa. Tem uma larva que se encontra em lugar onde recebe instrução. Sei muito a seu respeito.

Prentiss encolheu-se.- E onde fica Avalon?- Você não vai encontrar - o elfo estalou as mandíbulas duas ou três vezes. - Não

fique conjeturando sobre a possibilidade de avisar às autoridades. Logo seria coloca-do em uma casa de loucos. Avalon, caso pense que tal conhecimento possa ajudá-lo, encontra-se no meio do Oceano Atlântico e é inteiramente invisível, sabia? Depois da invenção do barco a vapor vocês, homens-coisa, passaram a andar por aí de modo tão irracional que tínhamos de encobrir toda a ilha com um escudo psíquico.

Uma pausa e a explicação prosseguia:- Está claro que os incidentes acontecem. Certa vez uma nave intensa e bárbara

atingiu-nos bem no centro e foi necessário toda a energia psíquica de toda a popula-ção para dar à ilha o aspecto de um iceberg. Titanic, ao que creio, era o nome escri-to nesse navio. E hoje existem aviões sobrevoando por todo o tempo e, às vezes, ocorrem desastres aéreos. Houve uma vez em que recolhemos latas de leite enlata-do. Foi quando eu provei o leite.

Prentiss perguntou:- Bem, nesse caso, com os diabos, por que não continua em Avalon? Por que saiu

de lá?- Recebi ordens - explicou o elfo, cheio de raiva. - Os idiotas.- Hem?- Você sabe como são as coisas, quando se é um pouco diferente. Eu não sou

como o resto dos outros e os próprios imbecis, levados pela tradição, não gostaram. Sentiram inveja. Essa é a melhor explicação. Inveja!

- E como você é diferente deles?- Entregue-me aquela lâmpada -. ordenou o elfo. - Oh, é só desatarraxar. Você não

precisa de lâmpada de leitura durante o dia.Com um espasmo de repugnância, Prentiss fez o que foi mandado e passou aquele

objeto às mãozinhas do elfo. Este, com cuidado, dedos tão finos e fortes que se pa-reciam a gavinhas, tocou o fundo e o lado do soquete de latão.

O filamento avermelhou-se fracamente.- Santo Deus - disse Prentiss.- Isso - explicou o elfo, cheio de orgulho - é o meu grande talento. Eu lhe contei

que nós, elfos, não conseguimos adaptar a energia psíquica à eletrônica. Muito bem, eu posso! Não sou um elfo comum. Sou um mutante! Um superelfo! Sou a etapa se-guinte na evolução dos elfos. Esta luz se deve apenas à atividade de minha fracamente, sabia? Agora observe, enquanto eu uso a sua como foco.

Enquanto dizia isso, o filamento da lâmpada se tornava branco e incandescente, difícil de olhar, enquanto uma sensação formigante, vaga e não desagradável, ingres-sava no crânio de Prentiss.

A lâmpada se apagou e o elfo colocou-a sobre a escrivaninha, atrás da máquina de escrever.

- Ainda não tentei - explicou, cheio de orgulho - mas desconfio que posso também fissionar o urânio.

- Mas olhe aqui, acender uma lâmpada requer energia. Você não pode só segurar.- Eu lhe contei sobre a energia psíquica. Grande Oberon, homem-coisa, procure

entender.Prentiss sentia-se cada vez mais inquieto e disse com cautela:- O que você pretende fazer com esse dom?- Voltar a Avalon, está claro. Eu devia deixar aqueles idiotas acabarem com a vida,

mas o elfo também tem algum patriotismo, ainda que seja um coleóptero.- Um o quê?- Nós, os elfos, não somos todos de uma só espécie, como sabe. Eu descendo dos

besouros. Está vendo?Pôs-se em pé e, sobre a mesa, deu as costas para Prentiss. O que parecera apenas

uma cutícula negra e luzidia abriu-se de súbito e se levantou. De baixo dela duas asas cheias de veias e películas se agitaram.

- Oh, você pode voar - observou Prentiss.- Você é muito idiota - disse o elfo, cheio de desdém - por não compreender que

sou grande demais para voar. Mas elas são lindas, não acha? Gostou da iridescência? Os lepidópteros têm asas repugnantes, em comparação às minhas. São delicadas e coloridas. Além disso estão sempre estendidas para fora.

- Os lepidópteros? - e Prentiss se sentia totalmente confuso.- Os clãs das borboletas. São orgulhosos. Estão sempre se exibindo aos humanos

para serem admirados. Mentes muito pequenas, devo notar. E é esse o motivo pelo qual as suas lendas sempre dão às fadas asas de borboletas, em vez de asas de be-souros, que são muito mais diáfanas e belas. Daremos uma lição aos lepidópteros quando voltarmos, você e eu.

- Ei, espere aí...- Pense só - disse o elfo, balançando-se de um lado para outro no que parecia ver-

dadeiro êxtase - nossos devaneios noturnos no domínio das fadas serão um esplen-dor de luz de arabescos em tubos de neon. Podemos soltar os enxames de vespas que atrelamos a nossos carros voadores e instalar motores de combustão interna. Podemos acabar com esse negócio de enrodilhar nas folhas quando é hora de dormir e construir fábricas a fim de produzir colchões decentes. Estou lhe dizendo, vamos viver... E o resto deles comerá terra, por ter mandado que eu me retirasse.

- Mas não posso ir com você - baliu Prentiss. - Tenho responsabilidades, uma espo-sa e filho. Você não pode tirar um homem de seu... sua larva, pode?

- Não sou cruel - asseverou o elfo e voltou os olhos para Prentiss. - Tenho uma alma de elfo. Mesmo assim, que escolha me resta? Preciso de um cérebro humano para focalizar, ou nada realizarei; e nem todos os cérebros humanos são adequados.

- Por que não?- Grande Oberon, criatura! Um cérebro de homem não é coisa passiva, feito de

madeira e pedra. Precisa colaborar para ser útil. E só pode colaborar tendo plena ci-ência de nossa própria capacidade de elfo em manipulá-lo. Posso usar o seu cérebro, por exemplo, mas o de sua esposa seria inútil para mim. Ela precisaria de anos se-guidos a fim de compreender quem e o que sou.

Prentiss disse:- Aí temos um insulto infernal. Você está me dizendo que acredito em fadas? Pois

fique sabendo que sou um racionalista completo.- É mesmo? Quando me revelei pela primeira vez você estava com alguns pensa-

mentos débeis sobre sonhos e alucinações mas falou comigo, aceitou-me. Sua espo-sa teria começado a gritar e caído em histeria total.

Prentiss manteve silêncio, não encontrava resposta para aquilo.- Aí está a dificuldade - disse o elfo, desanimado. - Quase todos vocês, os seres

humanos, esqueceram a nossa existência, desde que os deixamos. Suas mentes se fecharam, tornaram-se inúteis. Está claro que as suas larvas acreditam em nossas lendas sobre os "pequeninos", mas os cérebros dessas larvas não foram desenvolvi-dos e só servem para processos simples. Quando amadurecem perdem a crença. Francamente, não sei o que faria se não fosse por vocês, escritores de fantasias.

- O que quer dizer com isso, escritores de fantasias?- Vocês são os poucos adultos restantes que acreditavam no povo dos insetos.

Você, Prentiss, acima de todos. Você tem sido um escritor de fantasia nos últimos vinte anos.

- Está louco. Não acredito nas coisas em que escrevo.- Precisa acreditar. Não tem outro recurso. Quer dizer, enquanto você está escre-

vendo tem de levar o assunto a sério. Depois de algum tempo sua mente se toma naturalmente cultivada e útil... mas para que discutir? Eu o usei. Você viu a lâmpada iluminar. Por isso vê também que precisa vir comigo.

- Mas não vou - e Prentiss firmou os pés e os braços cheio de teimosia. - Você pode fazer com que eu vá contra a vontade?

- Posso, mas isso talvez o danificasse e eu não quero que aconteça. Suponhamos o seguinte: se você não concorda em vir, eu posso focalizar uma corrente de eletricida-de de alta voltagem em sua esposa. Seria uma coisa revoltante, mas compreendo que sua própria gente executa os inimigos do estado desse modo, de forma que vocêprovavelmente acharia o castigo menos horrível do que eu. Pode parecer brutal, mesmo para um homem-coisa.

Prentiss percebeu que o suor encharcava-lhe os cabelos das têmporas.- Espere - Pediu - Não faça uma coisa assim. Vamos conversar.O elfo pôs as asas peliculares para fora, bateu-as e devolveu-as ao alojamento.- Conversa, conversa, conversa. É cansativo. Você com certeza tem leite em casa.

Não parece ser um anfitrião dos mais educados, pois teria oferecido alguma coisa para me refrescar, já desde muito tempo.

Prentiss tentou ocultar o pensamento que lhe ocorreu, levá-lo o mais que podia para baixo da pele externa da mente. E disse em tom casual:

- Tenho uma coisa melhor do que leite. Espere, vou buscar.Fique onde está. Chame sua mulher. Ela o trará.- Mas eu não quero que ela o veja. Ficaria assustada. O elfo disse:- Não precisa preocupar-se. Sei lidar com ela de modo que não se perturbará de

modo algum.Prentiss levantou o braço. O elfo disse:- Qualquer ataque que faça contra mim será muito mais lento do que o raio de ele-

tricidade que golpeará sua mulher.

Prentiss baixou o braço, foi até a porta do estúdio.- Blanche! - chamou para o pavimento de baixo.Blanche estava à vista na sala de estar, sentada e imóvel na poltrona ao lado da

estante. Parecia adormecida, de olhos abertos. Prentiss voltou-se para o elfo.- Alguma coisa errada em minha mulher.- Ela se acha em estado de sedação. Ouvirá o que você diz. Diga-lhe o que deve

fazer.- Blanche! - chamou de novo. - Traga a gemada e um copo pequeno, por favor.Sem qualquer sinal de animação, além de movimento mais simples, Blanche se le-

vantou e desapareceu.- O que é gemada? - perguntou o elfo. Prentiss tentou entusiasmar-se.- É uma mistura de leite, açúcar e ovos batidos, em consistência deliciosa. O leite,

por si só, é bobagem em comparação.Blanche chegou trazendo a gemada. Seu belo rosto não exibia qualquer expressão,

tinha os olhos voltados para o elfo mas não compreendiam o significado do que via.- Tome, Jan - disse e sentou-se na cadeira antiga e revestida de couro perto da ja-

nela, as mãos caindo no regaço.Por momentos Prentiss a observou, cheio de inquietação.- Você vai mantê-la aqui?- Será mais fácil de controlá-la... Bem, você não vai me oferecer a gemada?- Ora, é claro. Tome!Entornou o líquido branco e grosso no copo de coquetel. Preparara cinco garrafas

de leite com a gemada, duas noites antes, para os rapazes da Associação de Fantasia de New York, e usara medidas generosas, já que os escritores de fantasia são reco-nhecidamente inclinados a essa bebida.

As antenas do elfo tremeram com violência.- Aroma celestial - murmurou.Passou as extremidades dos braços finos em volta da haste do pequeno copo e le-

vou-o à boca. O nível do líquido baixou. Quando metade fora sorvida ele baixou o copo e suspirou.

- Veja a perda para minha gente. Que criação! Que coisas existem! Nossas histó-rias nos dizem que nos dias antigos um espírito afortunado conseguia de vez em quando tomar o lugar de um homem larva no nascimento, de modo a poder sorver o liquido recém-feito. Será que até mesmo aqueles já sentiram alguma coisa parecida a esta? Prentiss retorquiu com uma pitada de interesse profissional:

Então, este é conceito por detrás daquela estória de crianças trocadas por fadas?Naturalmente. A criatura-homem feminina tem um grande dom. Por que não tirar

vantagem? - E o elfo voltou o olhar para o arfar no peito de Blanche, suspirou de novo.

Prentiss disse (calma, agora; não se perca):- Vá em frente. Beba o que quiser.Também ele observava Blanche, esperando sinais de animação, aguardando o ini-

cio da falha no controle do elfo. Este disse:- Quando a sua larva volta do lugar onde recebe instrução? Preciso dele.- Volta logo - prometeu Prentiss, muito nervoso. Consultou o relógio de pulso. Na

verdade o filho estaria de volta, pedindo aos berros uma fatia de bolo e leite, em cer-ca de quinze minutos.

- Um só, outra vez - disse, com fervor. - Encha de novo. O elfo bebericava com ala-cridade e disse:

- Depois de chegar a larva você pode ir.

- Ir?Apenas à biblioteca. Precisa obter livros sobre eletrônica. Necessitarei dos detalhes

sobre como construir televisão, telefones, tudo isso. Necessitarei das regras sobre a fiação, instruções para construir válvulas. Detalhes, Prentiss, detalhes! Temos tarefas enormes à nossa frente. Perfuração de petróleo, refinação de gasolina, motores, agricultura científica. Construiremos uma nova Avalon, você e eu. Uma Avalon técni-ca, uma terra de fadas científica. Criaremos um mundo novo.

- Ótimo! disse Prentiss. - Olhe aí, não esqueça a sua bebida.- Você entende, está ficando empolgado com a ideia - disse o elfo. - E será recom-

pensado. Terá uma dúzia de homens-coisas femininas para si.Maquinalmente Prentiss fitou Blanche. Não havia qualquer indicação de que ela

ouvia, mas como podia saber? Disse, então:- De nada me servem homens-cois... femininas, isto é, mulheres.- Ora, vamos - disse o elfo, censurando-o. - Fale a verdade. Vocês homens-coisa

são conhecidos de nossa gente como criaturas lascivas e bestiais. Por gerações se-guidas as mães assustaram os filhos ameaçando-os com os homens-coisas... Jovem, ah! - e levou o copo de gemada ao ar e disse: - A meus próprios filhos - e o esva-ziou.

- Encha de novo - apressou-se Prentiss a dizer. - Encha outra vez.O elfo assim fez e disse:- Terei muitos filhos. Escolherei as melhores coleópteras e criarei minha linhagem.

Continuarei com a mutação. Neste momento sou o único, mas quando tivermos uma dúzia ou cinquenta, eu os intercruzarei e aperfeiçoarei a raça dos superelfos. Uma raça de maravilhas electro... upa... eletrônicas e de futuro infinito... Se eu pudesse tomar mais um! Néctar! É o verdadeiro néctar!

Ouviu-se um ruído repentino, o ruído de uma porta que era escancarada e uma voz jovem chamando:

- Mamãe! Ei, Mamãe!O elfo, olhos vidrados, um tanto apagados, proclamava:- Depois começaremos a nos apoderar dos homens-coisas. Alguns já acreditam, os

demais nós... upa... ensinaremos. Será como nos dias idos, porém melhor, elfos mais eficientes, uma união mais íntima.

A voz de Júnior estava mais próxima e cheia de impaciência. - Ei, Mãe!- Ei, Mãe! Você não está em casa?Prentiss sentia os olhos esbugalharem de tensão. Blanche continuava sentada e rí-

gida. A fala do elfo estava um pouco arrastada, seu equilíbrio um pouco incerto. Se Prentiss ia arriscar-se, havia chegado o momento.

- Sente-se aí - ordenou o elfo, em tom peremptório. - Está sendo um imbecil. Eu sabia que existia álcool na gemada, desde o momento em que você imaginou o seu plano ridículo. Vocês, homens-coisa, são muito ladinos. Nós, elfos, temos muitos pro-vérbios a seu respeito. Por sorte o álcool causa pouco efeito em nós. Pois bem, se houvesse experimentado a gatária com um pouquinho de mel... Ah, eis que surge a larva. Como vai, homem-coisa pequenino?

O elfo permanecia sentado, tendo o copo de gemada a pouca distância das mandí-bulas, enquanto Jan Júnior surgia no umbral da porta. O rosto de Jan Júnior, com dez anos de idade estava moderadamente sujo, o cabelo imoderadamente emara-nhado e havia expressão da maior surpresa em seus olhos cinzentos. Os livros esco-lares muito surrados oscilavam na extremidade da correia que segurava com a mão. Ele disse:

- Papai! O que se passa com a Mamãe? E... o que é isso?

O elfo disse a Prentiss:- Vá depressa à biblioteca. Não podemos perder tempo. Você sabe de que livros

preciso.Todos os sinais de embriaguez inicial haviam sumido e a coragem de Prentiss de-

sabou. A criatura estivera brincando com ele. Prentiss levantou-se para sair. O elfo disse:

- E nada de humano, nada furtivo, nenhum truque. Sua mulher continua sendo re-fém. Posso usar a mente da larva para matá-la; é suficiente para isso. Não gostaria de fazê-lo, sou membro da Sociedade Ética dos Elfos e nós pregamos o tratamento cortês aos mamíferos, de modo que pode confiar em meus princípios nobres, se fizer o que digo.

Prentiss se sentiu invadido por um impulso forte que o levava a sair. Cambaleou em direção à porta.

Jan Júnior gritou:- Papai, ele fala! Diz que vai matar a Mamãe! Ei, não vá embora! Prentiss já saíra do aposento quando ouviu o elfo dizer:- Não olhe para mim assim, larva. Não vou fazer mal à sua mãe se você agir exata-

mente como eu disser. Eu sou um elfo, uma fada. Você sabe o que é uma fada, natu-ralmente.

E Prentiss já se achava na porta de entrada da casa quando ouviu a voz fina de Jan Júnior, erguer-se em gritos, seguida por berro e mais berro na trêmula voz de soprano de Blanche.

O elástico forte, porém invisível, que puxava Prentiss para fora da casa, soltou-se e desapareceu. Ele caiu de costas, endireitou o corpo e rumou em carreira escada aci-ma.

Blanche, quase saturada de vida trêmula, achava-se de perna bamba, de costas para um canto do aposento, os braços passados em volta de Jan Júnior, este em prantos.

Sobre a escrivaninha via-se uma carapaça negra derruída, cobrindo u'a mancha feia da qual escorria um líquido sem cor.

Jan Júnior soluçava com histeria.- Bati nele. Bati com meus livros. Estava machucando a Mamãe.Passou-se uma hora e Prentiss sentiu que o mundo normal voltava aos interstícios

deixados pela criatura vinda de Avalon. O próprio elfo era cinza no incinerador atrás da casa e o que restava de sua existência era a mancha úmida ao pé de sua escriva-ninha.

Blanche continuava lívida, eles falavam em cochichos. Prentiss disse:- Como está Jan Júnior?- Assistindo televisão.- Ele está bem?- Oh, ele está bem, mas eu vou ter pesadelos por semanas inteiras.- Eu sei. Eu também, a menos que a gente afaste isso do pensamento. Não creio

que apareça outra dessas... coisas por aqui.Blanche disse:- Não posso explicar, era horrível demais. Eu ouvia tudo que dizia, mesmo quando

estava lá embaixo, na sala de estar.- Telepatia, entende?- Eu não podia me mexer! Depois, quando você saiu, pude começar a mexer um

pouco. Quis gritar, mas tudo que pude fazer foi gemer e choramingar. Depois Jan Jú-nior amassou-o de uma vez e fiquei livre. Não compreendo como aconteceu.

Prentiss sentiu certa satisfação sombria.- Acho que sei. Eu estava sob controle dele porque aceitei a verdade de sua exis-

tência. Ele manteve você sob controle por meu intermédio, Quando saí da sala, a dis-tância que foi aumentando tornou mais difícil usar minha mente como lente psíquica e você pôde começar a se mover. Quando cheguei à porta da frente o elfo pensouque era hora de passar de minha mente para a de Jan Júnior. Foi o engano que co-meteu.

- De que jeito? - perguntou Manche.- Ele supôs que todas as crianças acreditassem em fadas, mas estava errado. Aqui,

na América de hoje, as crianças não acreditam em fadas. Nunca ouvem falar delas. Acreditam em Tom Corbett, em Hopalong Cassidy, em Dick Tracy, em Hardy Doody, no Super-homem e em uma série de outras coisas, mas não em fadas.

Fez uma pausa prosseguiu:- O elfo nunca percebeu as mudanças culturais repentinas que foram causadas pe-

las histórias em quadrinhos e pela televisão, e quando tentou pegar a mente de Jan Júnior, não conseguiu. Antes de poder recuperar o equilíbrio psíquico, Jan Júnior es-tava em cima dele cheio de pânico, porque pensou que você estava sendo machuca-da, e tudo acabou.

Ele terminava:- É como eu sempre disse, Blanche. As crenças dos velhos nas lendas só sobrevi-

vem nas revistas de fantasia moderna e a fantasia moderna é predileção apenas para adultos. Você entende finalmente o que digo?

Blanche disse, cheia de humildade:- Sim, querido.Prentiss enfiou as mãos nos bolsos e sorriu, devagar.- Sabe de uma coisa, Blanche? Na próxima vez que estiver com Walt Rae, acho

que vou dar a entender que escrevo esta coisa. É hora dos vizinhos saberem, ao que parece.

Jan Júnior, segurando uma fatia enorme de pão com manteiga, foi entrando no es-túdio do pai à procura da recordação que já se esmaecia. O pai não parava de lhe dar tapinhas nas costas e a mãe não parava de pôr pão e bolo em suas mãos, e ele já se esquecia do motivo. Tinha havido aquela coisa velha e grande sobre a escriva-ninha, uma coisa que falava...

Tudo acontecera tão depressa que se embaralhava em sua mente.Deu de ombros e, à luz do final da tarde, olhou para a folha parcialmente datilo-

grafada na máquina do pai, depois para a pequena pilha de papel sobre a mesa.Leu por algum tempo, torceu o lábio e resmungou:- Puxa vida. São as fadas, outra vez. Sempre coisa de criança! - e deu o fora.

UM LUGAR AQUOSO

Nunca teremos a viagem espacial. E mais, nenhum extraterrestre pousará na Terra - pelo menos nenhum deles pousará mais.

Não estou sendo apenas um pessimista. A bem do fato, a viagem espacial é real-mente possível; os extraterrestres já pousaram. Eu sei disso. As espaçonaves usam o espaço em meio a um milhão de mundos, é bem provável, mas jamais iremos ter com elas. Também sei disso. Tudo por causa de um erro ridículo.

Vou explicar.Na verdade foi um erro de Bart Cameron, e você terá de compreender quem é

Bart Cameron. Ocupa o cargo de xerife em Twin Gulch, no Idaho, e sou auxiliar dele. Bart Cameron é homem impaciente e fica impacientíssimo quando tem de preparar sua declaração para o imposto de renda. A questão é que, além de ser xerife, ele também é o dono e dirigente do armazém, tem algumas ações em um rancho de ovelhas, faz um pouco de ourivesaria e recebe uma espécie de pensão como ex-com-batente incapacitado (joelho defeituoso e algumas outras coisas assim). Como é na-tural, isso complica bastante suas cifras na declaração do imposto.

A coisa não seria tão ruim se ele deixasse que um especialista trabalhasse nos for-mulários em sua companhia, mas insiste em fazê-lo sozinho e isso o torna um ho-mem amargurado. Por volta do dia 14 de abril ninguém pode lhe falar.

Por isso foi uma pena o disco voador ter pousado a 14 de abril de 1956.Eu vi quando pousou. Minha cadeira estava encostada na parede, no gabinete do

xerife, e eu fitava as estrelas pelas janelas, sentia-me indolente demais para voltar à leitura da revista, imaginava se devia acabar com o expediente e dormir ou continuar a ouvir enquanto Cameron amaldiçoava com palavras firmes, enquanto examinava suas colunas de cifras pela centésima vigésima sétima vez.

De início pareceu uma estrela cadente, mas a trilha de luz se dividiu em duas coi-sas que se pareciam a tubos retro-propulsores de foguetes e a coisa desceu com do-çura, firme e sem ruído algum. Uma folha morta e velha teria caído ao chão com mais ruído e feito mais barulho ao bater. Dois homens desembarcaram.

Eu não podia dizer ou fazer coisa alguma, nem engasgar ou apontar para lá, nem mesmo conseguia desviar os olhos. Permaneci sentado como estava.

Cameron? Este nem olhou.Bateram à porta que não estava trancada. Ela se abriu e os dois homens do disco

voador entraram. Eu teria dito que eram camaradas da cidade se não tivesse visto o disco voador pousar na macega. Usavam temos cinzentos, camisas brancas e grava-tas marrons. Estavam com sapatos pretos e chapéus pretos. Eram morenos, cabelo negro ondulado e olhos castanhos Suas expressões fisionômicas eram muito sérias e teriam cerca de um metro e oitenta de altura. Pareciam muitíssimo um com o outro.

Deus, eu me achava apavorado.Mas Cameron limitou-se a olhar quando a porta se abriu, e fechou a cara. Em ou-

tras ocasiões acredito que ele teria rido até estourar o botão da camisa ao ver roupas

como aquelas em Twin Gulch, mas se achava tão ocupado com o imposto de renda que nem sequer esboçou um sorriso. Disse apenas:

- O que posso fazer por vocês, minha gente? - e bateu com as mãos no formulário, tornando evidente que não dispunha de muito tempo.

Um dos dois adiantou-se e disse:- Estivemos mantendo a sua gente sob observação por muito tempo - e pronuncia-

va cada palavra cuidadosamente, separada uma da outra.Cameron disse:- Minha gente? Tudo que tenho é uma esposa. O que foi que ela fez?O camarada vestido de terno disse:- Escolhemos esta localidade para nosso primeiro contato por que é isolada e sos-

segada. Sabemos que o senhor é o chefe por aqui.- Sou o xerife, se é o que quer dizer, e vá falando. Qual é o problema?- Tivemos o cuidado de adotar o seu modo de vestir e até assumir a sua aparên-

cia.- É esse o meu modo de vestir? - E Cameron deve tê-lo notado pela primeira vez.- O modo de vestir de sua classe social dominante, é o que quero dizer. Também

aprendemos a sua língua.Dava para ver que a luz se fez para Cameron, que perguntou:- Vocês são de fora?Cameron não gostava muito dos forasteiros, nunca conhecera muitos deles fora do

exército mas, de modo geral, procurava ser justo. O homem do disco perguntou:- Forasteiros? Na verdade somos. Viemos do lugar aquoso que sua gente chama

de Vênus.(Eu começava a juntar as forças para piscar os olhos, mas isso me mandou de vol-

ta ao nada. Vira o disco voador. Vira quando pousara. Tinha de acreditar naquilo! Aqueles homens - ou aquelas coisas - vinham de Vênus.)

Cameron, no entanto, não piscou um olho, limitou-se a dizer:- Muito bem, aqui é EUA. Todos temos direitos iguais, qualquer que seja a raça,

crença, cor ou nacionalidade. Estou a seu serviço. Em que posso ajudá-lo?- Gostaríamos que providenciasse preparativos imediatos para que os homens im-

portantes do seu EUA, como chama, sejam trazidos aqui para debates no sentido de que sua gente se junte à nossa grande organização.

Cameron se punha vagarosamente rubro.- Nossa gente ingressar em sua organização. Já fazemos parte da ONU. E só Deus

sabe do que mais. E eu tenho de trazer o Presidente aqui, é isso? Agora mesmo? A Twin Gulch? Mandar uma mensagem para que se apresse?

Dito isso fitou-me, como se quisesse ver o sorriso em meu rosto, mas eu nem se-quer cairia se alguém houvesse tirado a cadeira em que estava sentado.

O homem do disco disse:- A rapidez é desejável.- Quer que traga o Congresso, também? O Supremo Tribunal?- Se eles puderem ajudar, xerife.Foi quando Cameron verdadeiramente explodiu. Esmurrou o formulário do imposto

de renda e berrou:- Bem, vocês não estão me ajudando e eu não tenho tempo para engraçadinhos

que aparecem, muito menos forasteiros. Se não derem o fora daqui muitíssimo de-pressa vou trancá-los no xadrez por perturbarem o sossego e nunca mais os deixo sair.

- Quer que nos retiremos? - perguntou o homem vindo de Vênus.

- Agora mesmo! Vão dando o fora daqui, e voltem para o lugar de onde vieram, não me apareçam mais. Não quero vê-los e ninguém mais por aqui quer vê-los.

Os dois homens se entreolharam, contorcendo um pouco os semblantesAquele que estivera falando adiantou-se:- Dá para ver em sua mente que você realmente deseja, com grande intensidade,

ficar sozinho. Não costumamos forçar nossa presença, ou de nossa organização, a pessoas que não nos desejam. Respeitaremos o seu retiro e sairemos. Não regressa-remos. Giraremos em volta do seu mundo como advertência e ninguém entrará, e seu povo jamais terá de sair.

Cameron disse:- Moço, estou cansado dessa porcaria, de modo que vou contar até três...Eles se voltaram e saíram, e eu sabia que tudo quanto haviam dito era verdade.

Estivera ouvindo o que diziam, o que Cameron não fizera, porque estava ocupado pensando no imposto de renda, e era como se pudesse ouvir-lhes as mentes, com-preendem? Sabia que haveria uma espécie de cerco em volta da Terra, encurralando-nos aqui, impedindo-nos de sair, impedindo que outros entrassem. Eu sabia que era assim.

E quando eles se retiraram recuperei a voz - tarde demais.Berrei:- Cameron, pelo amor de Deus, eles são do espaço. Por que os mandou embora?- Do espaço? - e ele me fitava. Berrei:- Olhe só!Não sei como foi que o fiz, pois Cameron pesava quinze quilos mais do que eu,

mas arranquei-o da cadeira até a janela, pela gola da camisa, arrebentando-lhe to-dos os botões.

A surpresa era grande dentais para resistir e quando voltou a si o bastante para começar a tomar posição a fim de me esmurrar, percebeu o que se passava lá fora e perdeu todo o fôlego.

Eles estavam embarcando no disco voador, aqueles dois homens, e lá estava o dis-co grande, redondo, brilhante e parecia muito poderoso, como imaginam. Em segui-da decolou. Subiu com tanta facilidade quanto uma pena e um brilho vermelho-ala-ranjado surgiu a um dos lados, tornou-se mais brilhante, enquanto a nave se ape-quenava até voltar a ser uma estrela cadente, desaparecendo devagar. E eu disse:

- Xerife, por que os mandou embora? Eles tinham de falar com o Presidente. Agora nunca mais voltarão.

Cameron disse:- Pensei que fossem forasteiros. Eles disseram que foi preciso aprender nossa lín-

gua. E falavam de um modo engraçado.- Oh, ótimo. Forasteiros.- Eles disseram que eram forasteiros e pareciam italianos. Pensei que fossem italia-

nos.- E como podiam ser italianos? Eles disseram que eram do planeta Vênus. Ouvi o

que foi dito. Eles afirmaram isso.- O planeta Vênus - e os olhos dele se arregalaram de verdade.- Foi o que disseram. Chamaram de lugar aquoso, ou coisa assim. Você sabe que

Vênus tem muita água.Mas a questão é que foi tudo um erro, um erro estúpido, o tipo que qualquer pes-

soa poderia cometer. Só que agora a Terra nunca mais vai ter a viagem espacial e nunca mais pousaremos na Lua, nem virá outro venusiano nos visitar.

Aquele besta, o Cameron, e seu imposto de renda!

Porque ele murmurou: - Vênus! Quando falaram sobre o lugar cheio de água pen-sei que falavam de Veneza!

ESPAÇO VITAL

Clarence Rimbro não se opunha a morar na única casa de um planeta desabitado, assim como não se opusera a qualquer dos trilhões de habitantes da Terra.

Se alguém o houvesse interrogado acerca de possíveis objeções, ele certamente teria fitado a pessoa, sem entender. Sua casa era muito maior do que qualquer casa poderia ser na Terra, propriamente dita, e muito mais moderna. Contava com seu su-primento independente de ar e abastecimento de água, muita comida nos congela-dores. Achava-se isolada no planeta sem vida, sobre o qual estava presa por um campo de força, mas os aposentos tinham sido feitos em volta de uma fazenda de cinco acres (por baixo de vidro, está claro) que, à luz do sol benéfico daquele plane-ta, cultivava flores para o prazer da vista e legumes para a saúde. Sustentava até al-gumas galinhas. Proporcionava à Sra. Rimbro algo para fazer às tardes e lugar para os dois pequenos Rimbros brincarem quando estavam cansados de ficarem dentro de casa.

Ademais, se alguém quisesse estar na Terra, propriamente dita, se alguém insistis-se nisso, se alguém precisasse ter pessoas em volta de si e ar para respirar no terre-no aberto ou água para nadar, bastava sair pela porta principal da casa.

Onde se encontrava a dificuldade, então?Lembremos, também, que no planeta sem vida no qual se situa a casa Rimbro ha-

via silêncio completo, a não ser pelos efeitos monótonos e ocasionais do vento e da chuva. Reinava um retiro absoluto e a sensação de propriedade total de trezentos milhões de quilômetros quadrados de superfície planetária.

Clarence Rimbro apreciava tudo aquilo, tempos atrás. Era contador, competente no trato de modelos muito avançados de computadores,

preciso em seus modos e na indumentária, não muito dado a sorrir, dono de bigode bem cuidado e corretamente ciente de seu próprio valor. Quando dirigia da cidade para casa passava pelo local da ocasional residência na Terra propriamente dita e não deixava de olhar para lá com certa presunção.

Pois bem, quer por motivos comerciais ou perversão mental, algumas pessoas sim-plesmente precisavam viver na Terra propriamente dita. Uma pena para eles pois, afinal de contas, o solo da Terra propriamente dita tinha de fornecer os elementos minerais e o abastecimento alimentar básico para todo o trilhão de habitantes (em cinquenta anos seriam dois trilhões) e o espaço tinha valor elevadíssimo. As casas na Terra propriamente dita simplesmente não podiam ser maiores do que aquilo e as pessoas que precisavam morar nelas tinham de ajustar-se a esse fato,

Até o modo de entrar na casa apresentava suave agrado. Ele entrava no ponto co-munitário de rotação que lhe fora designado (e que se parecia, como todos eles, a um obelisco tosco) e ali encontrava invariavelmente outras pessoas aguardando o momento de usá-lo. Um maior número de pessoas chegava, antes dele alcançar a cabeça da fila. Era hora sociável.

- Como vai seu planeta? E o seu? - A conversinha costumeira. Às vezes alguém es-

taria em apuros. Panes das máquinas ou tempo ruim que alterava desfavoravelmente o terreno. Não era frequente.

Mas isso fazia passar o tempo. Logo Rimbro estaria à frente da fila, punha sua chave na fresta, a combinação correta seria marcada e ele retorcido em um novo pa-drão de probabilidade; seu próprio padrão pessoal de probabilidade, o que lhe fora designado ao casar-se e tornar-se um cidadão produtor, o padrão de probabilidade em que a vida jamais se desenvolvera na Terra. E torcendo-se para essa Terra sem vida e determinada ele entrava em seu próprio saguão.

Era assim, simples.Nunca se preocupou por estar em outra probabilidade. Por que haveria de preocu-

par-se? Nem sequer pensava nisso. Havia um número infinito de Terras possíveis. Cada qual existia em seu próprio nicho, com seu próprio padrão de probabilidade.

Como em um planeta igual à Terra existiam, de acordo com os cálculos, cerca de cinquenta por cento de probabilidades de formação de vida, metade de todas as Ter-ras possíveis (ainda assim um número infinito, já que metade do infinito era o infini-to, possuía vida, e metade (ainda infinito) não a possuía. E vivendo em cerca de tre-zentos bilhões das Terras desocupadas havia trezentos bilhões de famílias, cada qual com sua bela casa, alimentada pelo sol dessa probabilidade e cada qual muito firme em sua paz. O número de Terras assim ocupadas crescia cada dia aos milhões.

E foi quando, um dia, Rimbro voltou para casa e Sandra (a esposa) lhe disse, ao chegar:

- Tenho ouvido um barulho muito esquisito.As sobrancelhas de Rimbro ergueram-se em surpresa e ele examinou atentamente

a esposa. A não ser por certa inquietação nas mãos finas e o ar pálido ao redor dos cantos da boca ela parecia normal.

Rimbro disse, ainda segurando o capote na direção da serviçal que esperava paci-entemente por isso:

- Barulho? Que barulho? Não ouço coisa alguma.- Agora parou - explicou Sandra. - Na verdade era coisa como uma batida ou tro-

vejar profundo. Dava para ouvir um pouco, depois parava. Depois voltava-se a ouvir, assim por diante. Nunca ouvi coisa parecida.

Rimbro entregou o capote.- Mas isso é impossível.- Eu ouvi.- Vou examinar as máquinas - murmurou ele. - Talvez alguma coisa esteja errada.Nada estava errado que seus olhos de contador pudessem descobrir e, dando de

ombros, foi para a ceia. Ouviu as serviçais zumbirem, ocupadas em tarefas dife-rentes, observou enquanto uma varria os pratos e talheres para depois recuperá-los e disse, apertando os lábios:

- Talvez alguma das serviçais esteja desarranjada. Vou examiná-las.- Não era nada assim, Clarence.Rimbro foi deitar-se sem pensar mais no assunto e acordou com a mão da esposa

agarrando-lhe o ombro. No mesmo instante sua mão foi mecanicamente para a faixa de contato que iluminava as paredes.

- O que se passa? Que horas são?Ela sacudiu a cabeça.- Escuta! Escuta!Santo Deus, pensava Rimbro, existe mesmo um barulho. Um trovejar bem claro.

Ele aparecia e sumia.- Terremoto? - murmurou. Claro que era possível, embora, tendo todo o planeta

para escolher, acreditavam estar fora das regiões atingidas.- Por que todo o dia? - perguntou Sandra, preocupada. - Acho que é outra coisa.E foi quando deu voz ao pavor secreto de toda dona de casa nervosa:- Acho que existe alguém neste planeta, conosco. Esta Terra é habitada.Rimbro fez o que era lógico. Chegada a manhã, levou a esposa e filhos para a casa

da mãe. Ele próprio tirou o dia de folga e dirigiu-se imediatamente ao Gabinete de Alojamento do Setor. Estava muito amolado com tudo aquilo.

Bill Ching, do Gabinete de Alojamento, era um homem baixote, jovial e orgulhoso de sua ancestralidade parcialmente mongol. Achava que os padrões de probabilidade haviam resolvido até o último dos problemas da humanidade. Alec Mishnoff, que também trabalhava no Gabinete de Alojamento, achava que os padrões de probabili-dade eram uma arapuca à qual a humanidade fora arrastada. De início se formara em arqueologia e estudara uma série de matérias antigas, com as quais sua cabeça elegantemente colocada continuava cheia. O rosto conseguia parecer sensível a des-peito das sobrancelhas enormes, e vivia acalentando uma ideia favorita que até en-tão não se atrevera a contar a ninguém, embora a preocupação com a mesma o houvesse expulsado da arqueologia, passando ao setor de alojamento.

Ching gostava de dizer: - Ao inferno com Malthus! - Era quase sua marca registra-da a afirmação: - Ao inferno com Malthus. Não podemos mais superpovoar. Por mais frequentemente que dobremos e redobremos, o homo Sapiens continua finito em nú-mero e as Terras desabitadas continuam infinitas. E não temos de pôr uma casa em cada planeta. Poderemos pôr cem, mil, um milhão. Existe muito espaço e muita força vinda de cada sol de probabilidade.

- Mais de um em um planeta? - indagou Mishnoff, azedamente.Ching sabia exatamente a que ele se referia. Quando os padrões de probabilidade

haviam sido postos inicialmente em uso, a propriedade exclusiva fora sedução pode-rosa junto aos primeiros colonos. Isso atraía a parte aristocrática e despótica em cada pessoa. Que homem era tão pobre, afirmava o refrão, que não possa ter um império maior do que o de Genghis Khan? Surgir agora com a colonização múltipla afrontaria a todos.

Ching disse, dando de ombros:- Muito bem, seria necessário a preparação psicológica. E dai? Precisou-se disso

para começar tudo, logo de início.- E o alimento? - indagou Mishnoff.- Você sabe que estamos pondo as instalações hidropônicas e de cereais em outros

padrões de probabilidade. E se for preciso podemos cultivar o solo deles.- Usando roupas espaciais e importando oxigênio.- Podíamos trocar o bióxido de carbono por oxigênio até que as plantas comecem

a agir, e depois elas cuidarão do caso.- Após um milhão de anos.- Mishnoff, o seu problema - observou Ching - é que lê quantidade demasiada de

antigos livros de história. Você é um obstrucionista.Mas Ching era homem gentil demais para estar falando sério e Mishnoff continuou

a ler os livros e a preocupar-se. Ansiava pelo dia em que pudesse juntar a coragem necessária para ver o Chefe da Seção e pôr à mostra, diante de todos - sem mais aquela - exatamente o que o preocupava.

Mas era agora um Sr. Clarence Rimbro quem os defrontava, suando de leve e fan-tasticamente raivoso pelo fato de que precisara de dois dias para chegar até aquela altura, o Gabinete.

E atingia o clímax de sua exposição, afirmando:

- E estou dizendo que o planeta é habitado, e não pretendo aturar isso.Tendo-lhe ouvido todo o relato, Ching procurou utilizar a atitude pacificadora, di-

zendo:- Ruído assim deve ser algum fenômeno natural, apenas isso.- Que tipo de fenômeno natural? - interpelou Rimbro. - Eu quero que faça uma in-

vestigação. Se for um fenômeno natural quero saber de que espécie. Estou dizendo que o lugar é habitado. Existe vida por lá, por Deus, e não vou pagar aluguel de um planeta para dividi-lo com outros. E com dinossauros, a julgar pelo barulho que fa-zem.

- Ora, vamos, Sr. Rimbro, há quanto tempo que vive em sua Terra?- Quinze anos e meio.- E já encontrou alguma indicação de vida?- Encontrei agora e, como cidadão com folha de produção classificada A-1, exijo

que faça uma investigação.- Está claro que investigaremos, senhor, mas podemos assegurar-lhe que tudo cor-

re bem. O senhor sabe com que cuidado escolhemos nossos padrões de probabilida-de?

- Sou contador e faço ideia muito clara - retorquiu Rimbro no mesmo instante.- Nesse caso deve saber que nossos computadores não podem falhar. Nunca esco-

lhem uma probabilidade que tenha sido escolhida antes. Isso é impossível a eles. E são programados para escolherem apenas padrões de probabilidade nos quais a Ter-ra tem uma atmosfera de bióxido de carbono, no qual a vida vegetal e, portanto, a vida animal, nunca se tenha formado. Porque se as plantas houvessem evoluído, o bióxido de carbono teria sido reduzido a oxigênio. O senhor compreende, não?

- Compreendo muito bem e não estou aqui para ouvir preleções - disse Rimbro. - De vocês eu quero uma investigação, nada mais que uma investigação. É bastante humilhante pensar que esteja dividindo meu mundo, meu próprio mundo, com uma coisa ou outra, e não vou aturar isso.

- Não, claro que não - respondeu Ching, evitando o olhar sardônico de Mishnoff. - Estaremos lá antes do anoitecer.

Seguiram para o ponto de rotação com equipamento total. Mishnoff disse:- Quero perguntar-lhe uma coisa. Por que você se dedica a essa rotina de "não

precisa preocupar-se, senhor"? Eles sempre se preocupam, não adianta. De que lhe serve isso?

- Preciso tentar. Eles não deviam se preocupar – retorquiu Ching, petulante. - Já ouviu falar em um planeta de bióxido de carbono que fosse habitado? Rimbro, ade-mais, é desse tipo que dá início aos boatos. Eu percebo gente assim. À altura que ele tenha acabado, por receber incentivo, dirá que seu sol tornou-se uma nova.

- Isso acontece às vezes - observou Mishnoff.- E então? Uma casa é eliminada e uma família morre. Veja só, você é um obstru-

cionista. Nos tempos antigos, aqueles tempos de que você gosta, se houvesse uma inundação na China ou em algum lugar, milhares de pessoas morriam. E isso em uma população com apenas um ou dois bilhões.

Mishnoff murmurava:- Mas como sabe que o planeta de Rimbro não tem vida?- Atmosfera de bióxido de carbono.- Mas suponhamos...Não adiantava. Mishnoff não conseguia dizê-lo. Encerrou a frase de qualquer ma-

neira: - Suponhamos que a vida vegetal e animal possa formar-se, capaz de viver de bióxido de carbono.

- Nunca foi observado.- Em número infinito de mundos, qualquer coisa pode acontecer - e ele encerrou

isso murmurando. - Tudo precisa acontecer.- As possibilidades são uma em um duodecilhão. - Observou Ching, dando de om-

bros.Chegaram ao ponto de rotação e, tendo utilizado o ponto de rotação para seu veí-

culo (sendo assim enviados à área de armazenamento de Rimbro), entraram também no padrão de probabilidade Rimbro. Primeiro Ching, depois Mishnoff.

- Bela casa - comentou Ching, satisfeito. - Modelo muito bom. Bom gosto.- Está escutando alguma coisa? - perguntou Mishnoff. Ching seguiu para o jardim.- Ei - gritou de lá. - Galinhas Rhode Island!Mishnoff foi ter lá, fitando o teto de vidro. O sol se parecia àquele de um trilhão de

outras Terras. Distraído, comentou:- Podia haver vida vegetal, começando. O bióxido de carbono podia estar come-

çando a cair em concentração. O computador não saberia.- E seriam necessários milhões de anos para que a vida animal começasse, e mui-

tos outros milhões para que saísse do mar.- Esse padrão não precisa ser seguido.Ching estendeu o braço, passou-o pelo ombro do companheiro.- Você está cismado. Um dia vai me contar o que realmente o apoquenta, em vez

de insinuar, e haveremos de endireitá-lo.Mishnoff deu de ombros, livrando-se do braço que o envolvia com uma careta de

amolação. A tolerância de Ching era sempre difícil de suportar. Começou a dizer:- Não vamos psicoterapeutizar... - e se interrompeu, continuou em seguida: - Escu-

te.Havia o trovejar distante. Novamente.Colocaram o sismógrafo no centro do aposento e ativaram o campo de força que

penetrava chão abaixo, fixando-o rigidamente à rocha no fundo. Observaram en-quanto a agulha trêmula registrava os choques.

Mishnoff disse:- Apenas ondas superficiais. Muito superficiais. Não é coisa subterrânea.Ching parecia um pouco mais desalentado.- O que é, então?- Acho melhor descobrirmos - e o rosto de Mishnoff estava cinzento de tanta apre-

ensão. - Vamos ter de instalar um sismógrafo em outro lugar e obter uma medida do foco de perturbação.

- Está claro - disse Ching. - Eu sairei com o outro sismógrafo. Você fica aqui.- Não - disse Mishnoff com energia. - Eu vou sair. Sentia-se apavorado mas não lhe

restava escolha. Se aquilo fosse o que esperava, estaria preparado. Emitiria um avi-so. A saída de Ching, que de nada suspeitava, constituiria verdadeiro desastre. Tam-pouco podia advertir Ching, que certamente não acreditaria nele.

Mas como Mishnoff não tinha têmpera de herói, tremia ao entrar na roupa de oxi-gênio e achou difícil encontrar a chave ao tentar desmanchar localmente o ponto de força para libertar a saída de emergência.

- Algum motivo pelo qual você quer ir? - perguntou Ching, observando a falta de jeito do companheiro. - Eu posso ir.

- Tudo bem, vou sair - anunciou Mishnoff, com a garganta seca, e passou para a comporta que dava para a superfície de uma Terra sem vida. Uma Terra presumivel-mente sem vida.

A visão não lhe era desconhecida. Ele vira aquilo dezenas de vezes. Rocha nua,

trabalhada pelo intemperismo, amassada e reduzida a pó com areia nas gargantas; um riacho pequeno e cantarolante que se esbatia no curso de pedra. Tudo marrom e cinzento, sem qualquer sinal de verde. Nenhum som de vida.

Mas o sol era o mesmo e, ao cair da noite, as constelações seriam as mesmas.A situação da moradia ficava naquela região em que a Terra propriamente dita se

chamaria de Labrador. (Também era Labrador ali, na verdade. Fora calculado que, em não mais de uma entre um quatrilhão de Terras, surgissem alterações sensíveis na formação geológica. Os continentes eram reconhecíveis por toda a parte, até os menores detalhes.)

A despeito da situação e da época do ano, que era outubro, a temperatura se mos-trava viscosamente quente devido ao efeito de estufa do bióxido de carbono na at-mosfera morta daquela Terra.

Dentro da roupa e olhando pelo visor transparente, Mishnoff observava aquilo sombriamente. Se o epicentro do ruído estivesse próximo e o ajuste do segundo sis-mógrafo a quilômetro e meio de distância, mais ou menos, seria o bastante para a leitura. Se não fosse, teriam de trazer um veículo aéreo. Bem, era então uma ques-tão de procurar inicialmente a complicação menor.

De modo metódico ele seguiu por uma encosta rochosa. Uma vez lá em cima po-deria escolher o local.

Chegado ao topo, bufando e sentindo o calor desagradabilíssimo, verificou que não era necessário.

O coração batia de tal maneira que quase não conseguia ouvir sua própria voz en-quanto berrava no microfone de rádio:

- Ei, Ching, aqui temos uma construção sendo feita.- O quê? - veio o grito de espanto a seus ouvidos.Não havia como enganar-se. O terreno estava sendo nivelado, máquinas funciona-

vam. Rochas eram dinamitadas. Mishnoff gritou:- Estão dinamitando. O ruido é esse. Ching retorquiu da distância:- Impossível! O computador jamais escolheria duas vezes o mesmo padrão de pro-

babilidade. Não pode ser.- Você não entende - começou Mishnoff a dizer.Mas Ching acompanhava os seus próprios processos mentais.- Vá até lá, Mishnoff. Eu também já vou.- Não, com os diabos. Você ficará aí - gritou Mishnoff, cheio de alarme. - Mantenha

contato de rádio comigo e, pelo amor de Deus, esteja pronto a partir para a Terra propriamente dita, o mais depressa que puder, se eu avisar.

- Por quê? - interpelou Ching. - O que se passa?- Ainda não sei - disse Mishnoff. - Dê-me a oportunidade de descobrir.Para sua própria surpresa, notou que os dentes estavam batendo.Lançando imprecações ao computador, aos padrões de probabilidade e à necessi-

dade insaciável de espaço vital para mais de um trilhão de seres humanos que se ex-pandiam como uma nuvem de fumaça, Mishnoff escorregou e deslizou pelo outro lado da encosta, pondo pedras a rolar e criando ecos especiais.

Um homem veio recebê-lo, trajando roupa à prova de gás, diferente em muitas coisas da roupa de Mishnoff mas claramente destinada ao mesmo fim - levar oxigê-nio aos pulmões.

Mishnoff arquejou sem fôlego em seu microfone:- Calma aí, Ching, um homem se aproxima. Mantenha contato - sentia o coração

bater com mais facilidade e os foles dos pulmões trabalharem menos.Os dois homens se entreolharam. O outro era louro e de rosto muito áspero. A ex-

pressão de surpresa que exibia era grande demais para ser fingida.Disse, em voz áspera:- Wir sind Sie? Was machen Sie Hier?Mishnoff teve a impressão de ser fulminado por um raio. Estudara alemão antigo

por dois anos, nos dias em que contara ser arqueólogo, e entendeu a pergunta a despeito do fato de que a pronúncia não era o que lhe tinham ensinado. O estranho pedia sua identidade e queria saber o que fazia por ali.

Gaguejou, estupidamente: - Sprechen Sie Deutsch? - e depois teve de traduzir as palavras para Ching, cuja voz agitada no fone exigia explicações sobre aquelas pala-vras desconhecidas.

Aquele que falava alemão não respondeu diretamente. Repetiu- Wir sind Sie - e aduziu com impaciência - Hier ist fur einen verruckt Spass keine

Zeit.Mishnoff também não via piada alguma, ainda mais uma piada tola, mas prosse-

guiu: - Sprechen Sie Planetisch?Não sabia como dizer "Língua Padrão Planetária" em alemão, de modo que tinha

de adivinhar. Tarde demais percebeu que devia ter se referido a ela em inglês.O outro homem fitou-o com olhos arregalados.- Sind Sie wahnsinnig?Mishnoff quase aceitava aquilo, mas em débil defesa de si próprio afirmou:- Não sou biruta, com os diabos. Quis dizer – Auf der Erde woher Wie Gekom...Desistiu de falar alemão, mas a nova ideia que estralejava em seu crânio não para-

va de perturbá-lo. Tinha de descobrir algum meio de pô-la á prova e disse, cheio de desespero:

- Welchem, Jahr ist es Jetzt?Era de presumir que o desconhecido, que já punha em dúvida sua sanidade men-

tal, convencer-se-ia da loucura de Mishnoff, agora que o mesmo perguntava em que ano estavam, mas era uma pergunta para a qual Mishnoff conhecia alemão bastante.

O outro murmurou alguma coisa que pareceu-se muitíssimo a bons palavrões em alemão e depois explicou:

- Es ist doch zwei tausend drei hundert vier-und-sechzig, und warum...A torrente de alemão que se seguiu foi inteiramente incompreensível para Mishno-

ff, mas de qualquer modo ele já tinha o bastante para satisfazer, por enquanto. Se traduzia o alemão corretamente o ano dado fora de 2364, o que correspondia acerca de 2000 anos no passado. Como era possível?

Ele murmurou:- Zwei tausend drei hundert vier-und sechzig?-Ja, Ja - disse o outro, cheio de sarcasmo. - Zwei tausend drei hundert vier-und-se-

chzig. Der ganze Jahr lang ist es so gewesen.Mishnoff deu de ombros. A afirmação de que tinha sido assim por todo aquele ano

era uma piada das mais fracas, mesmo em alemão e não adquiria melhor cor ao ser traduzida. Ficou a pensar.

Com o tom de ironia a se acentuar, aquele que falava alemão prosseguiu:- Zwei tausend drei hundert vier-und-sechzig nach Hitler. Hilft das Ihnen Welleicht?

Nach Hitler!Mishnoff berrou de prazer.- Isso me ajuda. Es hilft! Hõren Sie, bitte.. - e passou a falar em alemão entrecor-

tado e entremeado de fragmentos de Linguagem Planetária: - Pelo amor de Deus, um Gottes willen...

O ano de 2364 após Hitler era coisa inteiramente diferente. Ele juntava as palavras

em alemão, desesperado, tentando explicar.O outro fechou a cara e se pôs pensativo. Ergueu a mão enluvada para afagar o

queixo ou fazer um gesto equivalente, bateu no visor transparente que cobria o rosto e deixou a mão ali, inútil, enquanto pensava.

De repente disse:- Jch heiss George Fallenby.A Mishnoff pareceu que o nome devia ser de origem anglo-saxônica, embora a

mudança em forma vogal, pronunciada pelo outro, o fizesse parecer teutônico.- Guten Tag - disse Mishnoff, desajeitado. - Jch heiss Alec Mishnoff- e percebeu de

repente a origem eslava de seu nome.- Kommen Sie mit mir, Herr Mishnoff- disse Fallenby. Mishnoff o acompanhou com

sorriso constrangido, murmurando em seu transmissor:- Está tudo certo, Ching, está tudo certo.De volta à Terra propriamente dita, Mishnoff defrontou-se com o Chefe de Gabine-

te de Setor, que envelhecera no Serviço e em quem todos os cabelos brancos davam a entender um problema enfrentado e solucionado, e em quem todos os cabelos que faltavam mostravam um problema evitado. Era homem cauteloso, os olhos ainda bri-lhantes e dentes que ainda eram os seus. Chamava-se Berg.

Sacudia a cabeça.- E falam alemão; mas o alemão que você estudou tinha dois mil anos de idade.- Verdade - confirmou Mishnoff. - Mas o inglês que Hemingway usou tem dois mil

anos de idade e o Planetário se aproxima o bastante para qualquer pessoa poder ler.- Muito bem. E quem é esse Hitler?- Uma espécie de chefe tribal, em tempos antigos. Levou a tribo alemã a uma das

guerras do século XX, mais ou menos quando principiou a Era Atômica e começou a verdadeira história.

- Antes da Devastação, é o que diz?- Certo. Houve uma série de guerras na ocasião. Os países anglo-saxões venceram

e acho que é este o motivo pelo qual a Terra fala Planetário.- E se Hitler e seus elementos houvessem ganho, o mundo estaria falando alemão?- Eles ganharam na Terra de Fallenby, senhor, e falam alemão.- E marcam as datas "após Hitler" em vez de A.C.?- Certo. E acredito que exista uma Terra em que as tribos eslavas venceram e to-

dos falem russo.- De algum modo - comentou Berg - parece-me que devíamos ter previsto isso e

no entanto, até onde sei, ninguém previu. Afinal de contas, existe um número infinito de Terras habitadas, e não podemos ser a única que resolveu solucionar o problema da população ilimitada expandindo-se para os mundos da probabilidade.

- É exatamente isso - confirmou Mishnoff, aflito - e a mim parece que, pensando bem, devem haver Terras habitadas incontáveis fazendo isso, e devem haver muitas preocupações múltiplas nos trezentos bilhões de Terras que nós mesmo ocupamos. O único motivo pelo qual pegamos esta é que, por mera casualidade, eles resolveramconstruir a menos de dois quilômetros da morada que ali colocamos. É algo que pre-cisamos verificar.

- Você dá a entender que devemos vasculhar todas as nossas Terras.- É fato, senhor. Precisamos fazer algum acordo com outras Terras habitadas. Afi-

nal de contas, existe lugar para todos nós e expandir sem acordo pode resultar em todos os tipos de encrencas e conflitos.

- Sim - concordou Berg, pensativo. - Acho que tem razão.Clarence Rimbro olhava desconfiadamente para o rosto idoso de Berg, rosto esse

que agora se enrugava em todos os tipos de benevolência.Tem certeza, agora?Total - disse o Chefe de Gabinete. - Sinto muito que o senhor tenha de aceitar alo-

jamento temporário nas duas últimas semanas...A mim parece que são três.... três semanas, mas receberá uma compensação.

- Que barulho era aquele?- Puramente geológico, senhor. Uma rocha se achava em equilíbrio delicado e, com

o vento, fazia contato ocasional com as rochas da encosta. Nós a retiramos e exami-namos a região para termos a certeza de que nada mais voltará a acontecer nesse sentido.

Rimbro apanhou o chapéu e disse:- Bem, obrigado pelo trabalho que teve.- Não precisa agradecer, posso assegurar-lhe, Sr. Rimbro. Estamos aqui para isso.Alguém acompanhou Rimbro até a saída e Berg voltou-se para Mishnoff, que era

espectador silencioso desse encerramento do caso Rimbro.Berg disse:- Os alemães foram muito camaradas, afinal. Reconheceram que tínhamos priori-

dade e partiram. Existe lugar para todos, foi o que disseram. Está claro que, como verificamos, eles constroem qualquer número de moradas em cada mundo desocu-pado... E existe agora o projeto de fazer o levantamento de nossos outros mundos e entrar em acordos semelhantes com quem encontrarmos por lá. Tudo isso é rigoro-samente confidencial. Não pode ser levado ao conhecimento dapopulação sem muitos preparativos... Mesmo assim nada disto é assunto sobre o qual quem lhe falar.

- Oh? - disse Mishnoff. Os acontecimentos não o haviam animado muito. Sua pró-pria preocupação ainda o atormentava.

Berg sorriu para o homem mais jovem.- Você entende, Mishnoff, no Gabinete e no Governo Planetário precisamos muito

do seu raciocínio rápido, sua compreensão da situação. O que houve podia ter se tor-nado, algo muito trágico, não fosse pela sua presença. Essa apreciação vai ser mani-festada de algum modo tangível.

- Obrigado, senhor.- Mas, como lhe disse antes, isto é algo em que muitos de nós deviam ter pensa-

do. Como foi que você pensou?... Também, examinamos um pouco seus anteceden-tes. O seu colega, Ching, nos diz que você deu a entender no passado a existência de algum perigo sério envolvido em nosso arranjo de padrão de probabilidade e que você insistiu em sair para encontrar-se com os alemães, embora estivesse claramen-te assustado. Você contava com o que encontrou, não é? E como foi que aconteceu?

Mishnoff estava confuso.- Não, não. Eu não pensava nisso, em absoluto. Foi uma surpresa. Eu...E, de repente, preparou-se. Por que não agora? Eles estavam reconhecidos ao que

fizera. Tinha provado ser um homem que precisava ser levado em conta. Uma coisa inesperada já acontecera.

Ele disse, com firmeza:- Há algo mais?- Sim?(Como se começava?)

- Não existe vida no Sistema Solar além daquela na Terra.- Isso mesmo - concordou Berg, cheio de benevolência.- E as computações afirmam que as probabilidades de surgir qualquer forma de

viagem interestelar são tão pequenas que se mostram infinitesimais.- Onde quer chegar?- Tudo isso é assim nesta probabilidade! Mas devem haver alguns padrões de pro-

babilidade em que outra vida existe no Sistema Solar ou na qual as propulsões inte-restelares são aperfeiçoadas pelos moradores em outros sistemas estelares.

Berg fechou a cara, mas concordou:- Teoricamente.- Numa dessas probabilidades a Terra pode ser visitada por tais inteligências. Se

fosse um padrão de probabilidade no qual a Terra é habitada, tal não nos afetaria; eles não teriam ligação alguma conosco na Terra propriamente dita. Mas se fosse um padrão de probabilidade no qual a Terra estivesse desabitada e eles instalassem al-gum tipo de base, poderiam encontrar, por coincidência, um de nossos lugares de morada.

- Por que nosso? - interpelou Berg, secamente. - Por que não um lugar de morada dos alemães, por exemplo?

- Por que nós situamos nossas moradas, uma para cada mundo. A Terra alemã não o faz. Provavelmente pouquíssimos outros o fazem. As possibilidades são a nosso fa-vor em bilhões contra um. E se os extraterrestres encontrarem tal morada investiga-rão e descobrirão o caminho para a Terra propriamente dita, um mundo altamente desenvolvido e rico.

- Não se desligarmos o ponto de rotação - disse Berg.- Depois de saberem que existem os pontos de rotação, podem construir os deles -

disse Mishnoff. - Uma raça com inteligência suficiente para viajar pelo espaço poderia fazê-lo e a partir do equipamento na morada eles poderiam prosseguir, encontrar com facilidade nossa própria probabilidade... E neste caso enfrentaríamosos extraterrestres? Eles não são alemães, nem outras Terras. Teriam psicologias e motivações alienígenas. E nem sequer estamos em guarda. Não paramos de instalar um número cada vez maior de mundos e a aumentar a possibilidade, a cada dia, de que...

Sua voz alçara em agitação e Berg gritou-lhe:- Bobagens. Tudo isso é ridículo...A campainha se fez ouvir e a comuniplaca acendeu-se, surgiu o semblante de

Ching. E a voz dele dizia:Sinto interromper, mas...O que é? - interpelou Berg, mal-educado.- Temos aqui um homem e não sabemos o que fazer. Está bêbado ou louco. Quei-

xa-se que a casa dele está cercada e que existem coisas olhando pelo teto de vidro de seu jardim.

- Coisas? - gritou Mishnoff.- Coisas purpúreas, com veias vermelhas e grandes, três olhos e algum tipo de

tentáculo, em vez de cabelo. Eles têm...Mas Mishnoff e Berg não ouviram o resto. Entreolhavam-se, apavorados.

A MENSAGEM

Bebiam cerveja e rememoravam, como homens que se encontraram após prolon-gada separação. Recordavam os dias em que haviam estado sob fogo. Lembravam-se de sargentos e de pequenas, exagerando em ambos os casos. Coisas mortíferas tomavam-se bem-humoradas ao serem vistas em retrospecto e banalidades a que não tinham dado atenção por dez anos eram agora trazidas à baila e areja das.

Incluindo, naturalmente, o mistério perene.- Como você explica aquilo? - perguntou o primeiro. - Quem começou?O segundo deu de ombros.- Ninguém começou. Todo mundo fazia isso, como se fosse uma doença. Você

também, eu acho.O primeiro deu uma risadinha. O terceiro disse maciamente:- Eu nunca vi graça naquilo. Talvez porque tenha encontrado pela primeira vez

quando estava sob fogo também pela primeira vez. África do Norte.- Verdade? - perguntou o segundo.- A primeira nas praias de Oran - Eu procurava cobertura, corri na direção de um

barraco nativo e vi aquilo à luz de uma labareda...

George delirava de felicidade. Mais dois anos de burocracia e ele finalmente re-gressava ao passado. Agora podia completar sua monografia sobre a vida social de soldados da infantaria da Segunda Guerra Mundial, apresentando alguns detalhes autênticos.

Egresso da sociedade pacifista e insípida do século XXX, encontrava-se por um mo-mento cheio de glória no drama carregado e superlativo do belicoso século XX.

África do Norte! Local da primeira grande invasão pelo mar, naquela guerra! Como os físicos temporais haviam esquadrinhado a região procurando o local perfeito e o momento! Essa sombra de um edifício vazio e feito de madeira era o local. Nenhum ser humano se aproximaria por determinado número de minutos. Nenhuma explosão viria afetá-la seriamente dessa vez. Estando ali, George não afetaria a história, seria aquele ideal do físico temporal, o "observador puro".

A coisa era melhor ainda do que imaginara. Lá estava o estrondo perpétuo da arti-lharia, lá estava o rugido invisível dos aeroplanos sobrevoando o local. Viam-se linhas periódicas de projéteis luminosos varrendo o céu e o brilho ocasional e fantasmagóri-co de labaredas caindo.

E ele estava ali! Ele, George, fazia parte da guerra, parte de um tipo de vida cheio de pavor e que desaparecera para sempre do mundo do século XXX, século que se amestrara, tomara-se gentil.

Imaginava ver as sombras de uma coluna de soldados a avançar, ouvia os monos-sílabos cautelosos e em voz baixa que trocavam entre si. Como ansiava por ser um deles na verdade, e não apenas um simples intruso momentâneo, um "observador

puro"...Parou em suas notações e fitou o estilete com que escrevia, hipnotizado momenta-

neamente por sua microluz. A ideia repentina o avassalava e ele olhou para a madei-ra em que encostava o ombro. Aquele momento não podia passar esquecido para a história. O que faria não podia afetar coisa alguma, com certeza. Usaria o dialeto in-glês mais antigo e não haveria qualquer desconfiança.

Agiu com rapidez e espiou, então, um soldado que corria desesperadamente para a construção, esquivando-se a uma rajada de balas. George sabia que o homem es-tava liquidado e nesse exato momento descobriu-se de volta ao século XXX.

Não importava, pois naqueles poucos minutos ele participara da Segunda Guerra Mundial. Desempenhara um papel pequeno, porém um papel. E outros saberiam dis-so. Talvez não soubesse que sabiam, mas alguém talvez repetisse a mensagem a si próprio.

Alguém, talvez aquele homem que corria à procura de abrigo, leria e saberia que juntamente com todos os heróis do século XX estivera o "observador puro", o ho-mem vindo do século XXX, George Kilroy. Ele estivera lá!

SATISFAÇÃO GARANTIDA

Tony era alto, moreno e bonito, com um ar incrivelmente nobre em todas as li-nhas de sua inalterável expressão, e Claire Belmont observou-o pela porta entreaber-ta com um misto de horror e espanto.

- Não posso, Larry. Não posso ficar com ele em casa. - Procurou febrilmente, na mente paralisada, um jeito incisivo de expressar-se, que fizesse sentido e definisse tudo. Mas só conseguiu repetir:

- Não posso!Larry Belmont fitou rigidamente a mulher, com aquele brilho de impaciência no

olhar que Claire detestava, pois nele via refletida a sua incompetência.- Estamos comprometidos, Claire, e você não pode desistir agora. A companhia vai

me enviar a Washington por causa disso, e o resultado será provavelmente uma pro-moção. É perfeitamente seguro, e você sabe. Qual a objeção?

Ela franziu as sobrancelhas, sem saber o que dizer.- Ele me dá arrepios. Não o suporto.- É quase tão humano como você ou eu, de modo que deixe de tolices. Vamos, ve-

nha daí.Empurrou-a pelas costas e ela encontrou-se, trêmula, no seu próprio living. Ele a

fitava polidamente, como se estudasse a sua anfitriã das próximas três semanas. A Dra. Susan Calvin estava também presente, sentada muito rígida, lábios comprimi-dos, abstraída. Tinha aquele ar frio e distante de alguém que, tendo trabalhado du-rante tanto tempo com máquinas, trazia um pouco de seu metal no sangue.

- Olá - disse Claire, numa saudação vaga, geral.Mas Larry salvou a situação dizendo alegremente:- Claire, quero apresentar-lhe Tony, um camarada fabuloso. Tony, esta é a minha

mulher, Claire. - Larry pousou cordialmente a mão no ombro de Tony, mas este per-maneceu insensível e inexpressivo sob aquela pressão.

- Como está, Sra. Belmont? - falou.Claire sobressaltou-se ao ouvir aquela voz. Era profunda, melodiosa, macia como

seus cabelos ou a cútis do rosto.Sem se poder conter, exclamou:- Meu Deus, você fala?- Por que não? Esperava o contrário?Claire respondeu com um débil sorriso. Não sabia o que havia esperado. Desviou o

olhar e depois, devagarinho, observou-o de esguelha. Tinha cabelos negros e ma-cios. Pareciam de plástico polido - ou seriam compostos de fios separados? E a pele macia, morena, das mãos e do rosto se prolongaria para além de suas roupas de corte formal?

Perdida naquele arrepiante mistério precisou fazer um esforço para prestar aten-ção à voz fria, sem entonações, da Dra. Calvin.

- Sra. Belmont, espero que compreenda a importância desta experiência. Seu ma-

rido disse que já lhe deu algumas informações. Gostaria de ampliá-las, como psicólo-ga-chefe da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A.

Prosseguindo, a Dra. Calvin afirmou:- Tony é um robô. Sua designação nos fichários da companhia é TN-3, mas res-

ponderá ao nome de Tony. Não é um monstro mecânico, nem uma simples máquina de calcular do tipo criado durante a II Guerra Mundial, há cinquenta anos. Possui um cérebro artificial quase tão complicado como o nosso. É um imenso painel telefônico em escala atômica, de maneira que bilhões de "ligações" podem ser concentradas num instrumento que se aloja no crânio.

Em tom de explicação, ela continuou:- Tais cérebros são manufaturados especificamente para cada robô. Contêm uma

série de conexões pré-calculadas, de maneira que cada robô conhece, para começar, a língua inglesa, e o bastante de tudo o mais para realizar seu trabalho. Até agora, a U.S. Robôs limitou sua manufatura a modelos industriais, a serem usados em locais onde o trabalho humano seja difícil - minas profundas, ou tarefas submarinas, por exemplo. Mas desejamos invadir a cidade e o lar. Para isso precisamos que o homem e a mulher comuns aceitem sem medo os robôs. A senhora compreende que não há nada a temer?

- Não há mesmo, Claire - interveio Larry, muito sério. - Dou-lhe minha palavra. É impossível que ele faça algum mal. Sabe que eu não o deixaria aqui se não fosse as-sim.

Claire lançou um rápido olhar para Tony e baixou a voz.- E se eu o irritar?- Não precisa falar baixo - disse a Dra. Calvin tranquilamente. - Ele não pode se

zangar com você, meu bem. Já disse que as conexões de seu cérebro são predeter-minadas. A mais importante de todas é a que chamamos de Primeira Lei da Robótica e reduz-se a isto: "Um robô não pode ferir um ser humano, ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal". Todos os robôs são construídos assim. Ne-nhum pode ser forçado a prejudicar um ser humano. Veja então que precisamos de você e de Tony como teste preliminar para nossa orientação, enquanto seu marido se encontra em Washington para providenciar os testes legais supervisionados pelo governo.

- Quer dizer que isto não é legal? Larry pigarreou.- Ainda não, mas está tudo em ordem. Ele não sairá de casa e você não deve per-

mitir que alguém o veja, é só... Claire, eu ficaria com você, mas sei demasiado a res-peito de robôs. Precisamos de alguém totalmente inexperiente, para que as condi-ções do teste sejam rigorosas. É necessário.

- Está bem - murmurou Claire. E de repente: - Mas que é que ele faz?- Trabalho doméstico - disse a Dra. Calvin secamente.Levantou-se para sair e foi Larry quem a acompanhou até a porta. Claire deixou-se

ficar onde estava, desanimada. Surpreendeu sua imagem no espelho que encimava a lareira e afastou rapidamente a vista. Estava cansada de seu rosto pequeno, sem graça, do penteado apagado, sem imaginação. Surpreendeu então o olhar de Tony fixo nela e quase sorriu, antes de lembrar-se...

Ele não passava de uma máquina.A caminho do aeroporto, Larry Belmont avistou Gladys Claffern. Era o tipo de mu-

lher que parecia destinada a ser vista de relance... Manufaturada com perfeição, ves-tida com estudado bom gosto, brilhante demais para se poder ficar olhando para ela.

O leve sorriso que a precedera e o perfume que deixou no seu caminho eram um convite a acompanhá-la. Larry perdeu o ímpeto no andar, levou a mão ao chapéu e

depois apressou o passo.Como sempre, sentiu-se vagamente irritado. Se Claire entrasse na turma de Claf-

fern as coisas seriam bem melhores. Mas era inútil.Claire! Nas raras vezes em que se vira diante de Gladys a tolinha ficara muda. Lar-

ry não tinha ilusões. O teste de Tony era a sua grande chance, e repousava nas mãos de Claire. Estaria muito mais seguro nas de alguém como Gladys Claffern.

Claire despertou no segundo dia ao som de uma leve batida na porta do quarto. Sua mente ficou em tumulto, depois imobilizou-se. Evitara Tony no primeiro dia, sor-rindo de leve quando o encontrava e passando rápido com um murmúrio de descul-pas.

- É você, Tony?- Sim, Sra. Belmont. Posso entrar?Devia ter respondido afirmativamente, porque ele entrou sem um ruído. A vista e o

olfato de Claire registraram simultaneamente a bandeja que ele trazia.- Café? - perguntou.- Sim, senhora.Não ousaria recusar, de modo que sentou-se lentamente na cama e recebeu a

bandeja: ovos pochês, torrada com manteiga e café.- Trouxe o açúcar e o creme separado - disse Tony. - Espero com o tempo conhe-

cer suas preferências nisto e em outras coisas.Ela não respondeu.Tony, muito teso, porém maleável como uma régua de metal, perguntou, após al-

gum tempo:- Prefere tomar o café sozinha?- Sim... isto é, se não se importa.- Precisará de ajuda mais tarde para vestir-se?- Oh, não, meu Deus! - exclamou, agarrando desesperadamente os lençóis e

quase provocando uma catástrofe com o café. E assim permaneceu, rígida, para dei-xar-se cair contra os travesseiros quando a porta se fechou e ele desapareceu.

Tomou o desjejum sem saber como... Ele não passava de uma máquina, e se isso fosse mais evidente não seria tão assustador. Ou se mudasse de expressão. Mas limi-tava-se a ficar ali, pregado no mesmo lugar. Impossível dizer o que se passava por detrás daqueles olhos escuros e daquela epiderme macia, morena. A xícara de café bateu como castanholas quando ela a recolocou no pires.

Percebeu então que esquecera de acrescentar o creme e o açúcar, e detestava café puro.

Depois de vestir-se, foi direto do quarto à cozinha. Afinal, estava na sua casa, e não era exigente, mas gostava de ver a cozinha limpa. Ele devia ter aguardado suas ordens...

Mas, ao entrar, encontrou a peça como se jamais tivesse sido usada.Parou, olhos arregalados, voltou-se e quase colidiu com Tony. Não pôde conter

um gritinho.- Posso fazer alguma coisa? - perguntou ele.- Tony, você precisa fazer algum ruído quando caminha - disse ela, lutando contra

a ira e o pânico.- Não suporto que me espione... Você não usou a cozinha?- Usei, Sra. Belmont.- Não parece.- Limpei tudo em seguida. Não é o que se faz em geral?Claire arregalou os olhos. Afinal, que poderia replicar? Abrindo o armário onde fica-

vam guardadas as panelas lançou um olhar rápido e distraído para o brilho metálico que continham e disse, voz trêmula:

- Muito bem. Perfeitamente satisfatório.Se naquele momento ele tivesse sorrido, ou pelo menos erguido ligeiramente um

canto da boca, ela o acharia simpático. Mas permaneceu qual um lord inglês em re-pouso, dizendo apenas:

- Obrigado, Sra. Belmont. Quer ter a bondade de vir à sala?Ela obedeceu e notou imediatamente:- Esteve polindo os móveis?- Estão bem assim, Sra. Belmont?- Mas quando? Você não fez isso ontem.- À noite, naturalmente.- Esteve de luz acesa a noite inteira?- Oh, não é necessário. Tenho embutida uma fonte de raios ultravioletas. Enxergo

em ultravioleta. E não preciso dormir, naturalmente.Mas precisava ser admirado, ela percebeu então. Precisava saber se estava agra-

dando. Mas não conseguiu dar-lhe aquele prazer.Limitou-se a responder, mal-humorada:- Vocês acabarão com as empregadas domésticas.- Elas têm trabalho muito mais importante a fazer no mundo, se ficarem livres de

tarefas mesquinhas. Afinal, máquinas como eu podem ser construídas, Sra. Belmont. Mas coisa alguma pode imitar a criatividade e a versatilidade de um cérebro humano como o seu.

E embora o rosto nada manifestasse, a voz estava carregada de pasmo e admira-ção, de modo que Claire corou e murmurou:

- Meu cérebro! Pode ficar com ele. Tony aproximou-se um pouco ao dizer:- Deve ser infeliz para dizer uma coisa dessas. Eu poderia fazer algo?Claire sentiu vontade de rir. Era uma situação ridícula. Ali estava um varredor de

tapetes, lavador de pratos, polidor de móveis, faz-tudo recém saído da fábrica ofere-cendo seus serviços como confidente e consolador!

Mas súbito, numa explosão de tristeza, falou:- O Sr. Belmont acha que eu não tenho cérebro, se é que lhe interessa... E supo-

nho que eu não tenha mesmo. - Não podia chorar na frente dele. Sentia, por qual-quer motivo, que precisava manter a honra da raça humana diante daquela simples criação.

- Só ultimamente - acrescentou. - Corria tudo bem quando ele era estudante e es-tava começando na vida. Mas eu não posso ser mulher de um grande homem: e ele está se tornando muito importante. Quer que eu seja uma perfeita anfitriã e ingresse com ele na vida social, que seja como Gla... Gladys Claffern.

Tinha o nariz vermelho e desviou o rosto.Mas Tony não a fitava. Seu olhar percorria a sala.- Eu poderia ajudá-la a dirigir a casa.- Não adianta - replicou, veemente. - Ela precisa de um toque que eu não lhe pos-

so dar. Só sei torná-la confortável. Não sei transformá-la naquele tipo que fotografam para as revistas de decoração.

- Deseja uma assim?- Que adianta desejar? Tony olhou-a com firmeza.- Eu poderia ajudar.- Conhece alguma coisa de decoração?- É algo que uma boa dona-de-casa deva saber?

- Oh, sim.- Então eu possuo potencialidades para aprender. Quer me arranjar livros sobre o

assunto?Algo teve início naquele momento.Claire, segurando o chapéu para protegê-lo das liberdades do vento, conseguira

trazer dois grossos volumes sobre artes domésticas da biblioteca pública. Observou Tony abrir um deles e folheá-lo. Era a primeira vez que via seus dedos tocarem algo parecido com um trabalho fino.

Como será que eles fazem isso? - pensou e, impulsivamente, pegou-lhe a mão e aproximou-a a fim de vê-la de perto. Tony não resistiu, e deixou-a ficar durante a inspeção.

- É extraordinário. Até suas unhas parecem naturais - disse Claire.- É feito de propósito, naturalmente - respondeu Tony. E, em tom de conversa: -

A pele é de plástico flexível e o esqueleto de uma liga metálica. Acha engraçado?- Oh, não - disse ela, corando. - Estou meio embaraçada por investigar, de certo

modo, suas entranhas. Não é da minha conta. Você não faz perguntas a respeito das minhas.

- Meu cérebro não inclui esse tipo de curiosidade. Só posso agir dentro de minhas limitações, compreende?

Houve uma pausa e Claire sentiu um aperto no coração. Por que esquecia sempre que era uma máquina? Agora, ele mesmo tivera de lembrar-lhe. Estaria tão faminta de simpatia que aceitaria até um robô como seu igual... só porque ele se mostrava compreensivo?

Notou que Tony continuava a folhear as páginas, quase a esmo, e sentiu um lam-pejo de superioridade.

- Você não sabe ler, sabe?Tony fitou-a e replicou tranquilo, sem rancor:- Estou lendo, Sra. Belmont.- Mas... - e apontou para o livro, num gesto vago.- Estou examinando as páginas. Meu senso de leitura é fotográfico.Já era noite e, quando Claire foi se deitar, Tony já estava bem adiantado no se-

gundo volume, sentado no escuro. Ou o que parecia escuro para a limitada visão de Claire.

Seu último pensamento, antes que a mente mergulhasse no sono, foi bastante es-tranho. Lembrou-se da mão dele, do seu contato. Era quente e macia como a de um ser humano.

Eram muito hábeis os fabricantes, pensou, adormecendo suavemente.Durante vários dias foi constantemente à biblioteca. Tony sugeria as matérias a

estudar, que rapidamente se subdividiam. Havia livros sobre combinações de cores, cosméticos, tapetes e moda, arte e história dos costumes.

Voltando as páginas de cada livro, diante de seus olhos solenes, lia com a rapidez com que folheava, e parecia incapaz de esquecer.

Antes de terminada a semana insistiu em cortar-lhe o cabelo, sugerindo um novo penteado, acertando a linha das sobrancelhas, modificando um pouco a tonalidade do pó e do batom.

Ela estremecera, nervosa, durante meia hora, sob o toque delicado de seus dedos de plástico macio e depois olhara-se ao espelho.

- Podemos fazer muito mais, principalmente no setor do vestuário - disse Tony. - Como é que se adquirem roupas, para começar?

Ela não respondeu imediatamente. Só o fez depois de sorver a imagem da estra-

nha refletida no espelho, assim como recordar toda a beleza do acontecido. Sem tirar os olhos da animadora figura, falou:

- Sim, Tony, muito bom... para começar. Nada contou nas cartas que escrevia a Larry. Que

ele visse por si mesmo. E algo em seu íntimo disse que ela não apreciaria apenas a surpresa. Seria uma espécie de vingança.

Certa manhã, Tony disse:- Está na hora de começar a fazer compras e eu não posso sair de casa. Se eu fi-

zer uma lista do que precisa, exatamente, a senhora comprará? Precisamos de corti-nas, e tecido para forrar as poltronas, papel de parede, forração, tinta, roupas, e uma infinidade de pequenas coisas.

- Não se pode conseguir tudo isso de uma hora para outra - falou Claire, duvidosa.- Mas pode-se obter quase o mesmo, caso se esteja disposta a correr a cidade e o

dinheiro não for obstáculo.- Mas, Tony, o dinheiro é sempre um obstáculo.- De modo algum. Passe pela U.S. Robôs. Eu escreverei um bilhete. Procure a Dra.

Calvin e diga-lhe que isto faz parte da experiência.A Dra. Calvin não a assustou como da primeira vez. Com a nova' maquilagem e o

chapéu novo não era mais a mesma Claire. A psicóloga ouviu com atenção, fez algu-mas perguntas, meneou afirmativamente - e Claire saiu equipada com uma conta ili-mitada da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A.

É maravilhoso o que o dinheiro pode realizar. Com o conteúdo de uma loja inteira à sua disposição, a palavra da vendedora deixava de ser um decreto: o erguer de so-brancelhas de um decorador não parecia o trovão de Júpiter.

E quando o Soberano de um dos mais elegantes salões da moda recusou insisten-temente o guarda-roupa que ela pedia, usando sotaque do mais puro francês da rua 57, Claire telefonou a Tony e passou o fone a monsieur.

Com voz firme, e dedos um tanto trêmulos, falou:- Gostaria que dissesse uma palavra ao meu... secretário.O Soberano aproximou-se do telefone solenemente, um braço às costas, ergueu o

fone delicadamente entre dois dedos e falou:- Alô -uma pausa e um "Sim", depois uma pausa mais longa, um começo de obje-

ção, que pereceu de imediato, outra pausa e um "Sim" submisso. E o telefone voltou ao gancho.

- Se madame quiser me acompanhar - disse, ofendido e distante - tentarei satisfa-zer seus desejos.

- Um momento. - Claire correu ao telefone e tornou a discar.- Alô, Tony. Não sei o que você disse, mas funcionou. Obrigada. Você é um... -

procurou uma palavra apropriada, desistiu e terminou com um gritinho: - um... um amor!

Deu com Gladys Claffern a observá-la quando desligou. Uma Gladys meio divertida e meio espantada, fitando-a com a cabeça meio de lado.

- Sra. Belmont?Claire perdeu imediatamente toda a segurança. Limitou-se a menear afirmativa-

mente, estúpida como uma marionete.Gladys sorriu com indefinível insolência.- Não sabia que comprava aqui. - E o tom de voz, assim como o olhar, sugerindo

que o local perdera a classe por causa disso.- Não compro, em geral - falou Claire, humilde.- Fez alguma coisa com seu cabelo? Está... bonitinho... Espero que me perdoe,

mas o nome de seu marido não é Lawrence? Tinha a impressão de que se chamava Lawrence.

Claire rangeu os dentes, mas teve que explicar. Era preciso.- Tony é um amigo do meu marido. Está me ajudando a fazer algumas compras.- Compreendo. Ele é um amor, imagino.E com um sorriso prosseguiu, levando consigo toda a luz e o calor do mundo.Claire não pôs em dúvida o fato de que foi para Tony que se voltou em busca de

consolo. Dez dias a haviam curado de toda relutância. E já podia chorar diante dele: chorar e enraivecer-se.

- Fui uma tola completa - gemeu, torcendo o lenço encharcado. - Ela exerce esse efeito sobre mim, não sei por quê. É o que ela faz. Eu deveria ter-lhe dado um pon-tapé. Devia tê-la jogado ao chão e pisoteado.

- É capaz de odiar um ser humano a esse ponto? - perguntou Tony, ligeiramente intrigado. - Esta parte da mente humana me é vedada.

- Não é ela, sou eu mesma, acho - gemeu. - Ela é tudo o que eu desejo ser... exte-riormente, pelo menos... E não posso.

Tony falou baixinho e convicto:- Pode sim, Sra. Belmont. Pode sim. Temos ainda dez dias e nesse período a casa

estará completamente diferente. Não foi o que estivemos planejando?- E de que modo isso me ajudará... em relação a ela?- Convide-a a vir aqui. Convide os amigos dela. Planeje tudo para a véspera da mi-

nha partida. Será uma espécie de inauguração.- Ela não virá.- Virá, sim. Virá para rir... E não conseguirá.- Acha mesmo? Oh, Tony, acha que conseguiremos? - Segurou-lhe ambas as

mãos... E depois voltou o rosto. - Para quê? Não serei eu. Será você o responsável por tudo. Não posso me apoiar eternamente em você.

- Ninguém vive totalmente isolado - murmurou Tony. - Colocaram em mim esta ideia O que você e todo mundo vê em Gladys Claffern não é apenas Gladys. Ela se apoia em toda aquela fortuna e posição social. E não põe isso em dúvida. Por que você o faria?... Considere as coisas sob este prisma, Sra. Belmont. Sou feito para obedecer, mas o âmbito de minha obediência é por mim determinado. Posso seguir ordens com avareza ou liberalidade. No seu caso, com liberalidade, pois fui condicio-nado a ver isso nos seres humanos. É bondosa, cordial, despretensiosa. A Sra. Claf-fern, conforme a descreve, não é, e eu não a obedeceria como obedeço aqui. Assim, é a senhora, e não eu, quem está realizando isto tudo.

Tirou então as mãos das dela e Claire fitou aquele rosto inexpressivo, que nin-guém' seria capaz de ler.

Súbito, sentiu-se de novo assustada, de modo completamente diferente.Engolindo em seco, olhou nervosa para as próprias mãos, que vibravam ainda com

a pressão dos dedos de Tony. Não era imaginação. Seus dedos haviam apertado de leve, carinhosamente, os dela, antes de se afastarem.

Seus dedos... Seus dedos... , Correu ao banheiro e escovou as mãos, furiosa e inu-tilmente.

Sentiu-se meio embaraçada na sua presença, no dia seguinte, observou-o atenta-mente, à espera de que algo acontecesse. Mas nada ocorreu durante algum tempo.

Tony trabalhava. Se surgia alguma dificuldade na técnica de colocar o papel de parede, ou de utilizar a tinta de secagem instantânea, sua atividade não o revelava. As mãos moviam-se com precisão, os dedos mostravam-se hábeis e seguros.

Trabalhou durante toda a noite. Ela não o ouvia, mas cada manhã era uma nova

aventura. Impossível dizer o número de coisas que ele havia realizado, e à tarde des-cobria ainda novos toques. E outra noite sobrevinha.

Tentou ajudar apenas uma vez, mas sua falta de jeito bem humana atrapalhou tudo. Ele estava na sala ao lado e ela decidiu pendurar um quadro no local marcado pelos olhos matemáticos de Tony. Ali estava a marca, ali estava o quadro e ela se sentia enojada com sua ociosidade.

Mas, ou foi nervoso, ou a escada não estava firme. Não importa. Sentindo que ia cair, gritou. A escada caiu sem ela, pois Tony, com rapidez sobre-humana, segurou-a.

Seu olhar negro e tranquilo nada transmitiu, mas a voz era vibrante ao indagar.- Machucou-se, Sra. Belmont?Claire notou logo que sua mão, ao cair, devia ter despenteado aqueles cabelos se-

dosos, porque pela primeira vez verificou que se compunham de fios separados. Eram belos fios negros.

De repente sentiu-lhe os braços ao redor dos ombros e sob os joelhos, sustentan-do-a com firmeza e calor.

Empurrou-o e seu grito foi exagerado mesmo aos próprios ouvidos. Passou o resto do dia no quarto e, de então em diante, dormiu com uma cadeira apoiada na maça-neta da porta.

Remetera os convites e, como Tony havia dito, foram todos aceitos. Restava aguardar a última noite.

Ela chegou ao seu devido tempo. A casa nem parecia a mesma. Percorreu-a pela última vez. Todas as peças estavam transformadas. Ela própria vestira-se como ja-mais ousara... E quando a pessoa se veste assim, enverga ao mesmo tempo orgulho e segurança.

Tentou um sorriso de polido desprezo diante do espelho, e o espelho respondeu à altura.

Que diria Larry? Não importava. Ele não traria dias emocionantes. Estes partiriam com Tony. Não era estranho? Tentou voltar à disposição de espírito de três semanas antes e falhou completamente.

O relógio bateu oito horas, que soaram ruidosamente aos seus ouvidos. Eram oito emocionantes batidas, e Claire voltou-se para Tony.

- Daqui a pouco todos chegarão, Tony. Melhor descer ao porão. Não podemos permitir que eles...

Arregalou os olhos, murmurando:- Tony? - Mais forte: - Tony - E quase gritando: - Tony!Ele a abraçava, rosto bem juntinho ao dela, e a pressão daqueles braços era irre-

sistível. Ouviu-lhe a voz em meio a um tumulto emocional.- Claire, há muita coisa que não fui feito para compreender e esta deve ser uma

delas. Vou partir amanhã, mas não quero. Descobri em mim mais que um simples desejo de agradá-la. Não é estranho?

Aproximou-se mais ainda. Seus lábios eram quentes, mas nenhum sopro os pers-passava. Máquinas não respiram. Estavam juntinhos aos dela.

...A campainha soou.Por um momento lutou ofegante. Tony se afastou e desapareceu. A campainha

tornou a soar com toque agudo, insistente.As cortinas da sala da frente estavam abertas. Quinze minutos antes ela as havia

fechado, tinha a certeza.Eles deviam ter visto, então. Deviam ter visto tudo!Entraram todos juntos, muito bem-educados, vindos para destruir, olhos agudos

examinando todos os recantos. E tinham visto mesmo. Se não, por que Gladys inda-garia por Larry com seu jeito mais cortante? Açoitada, Claire armou-se de um deses-perado e temerário desafio.

Sim, ele está viajando. Voltará amanhã, creio. Não, não tenho me sentido solitária. Nem um pouco. Estive me divertindo bastante. E riu. Por que não? Que poderiam fa-zer? Larry sabia a verdade, caso alguém lhe contasse alguma história.

Mas eles não riram.Notou-o na fúria dos olhares de Gladys Claffern, no falso brilho de suas palavras,

na resolução de sair mais cedo. E quando se despediam Claire surpreendeu um últi-mo e anônimo murmúrio:

- ... nunca vi igual... tão bonito...Sabia por que fora capaz de tratá-los com tanta altivez. Dissessem o que bem en-

tendessem - que Gladys era mais bonita do que ela, tinha mais classe, era mais rica... mas ninguém, ninguém tinha um amante mais belo do que o seu!

Lembrou-se então que Tony era uma máquina, e um arrepio a percorreu.- Vá embora! Deixe-me em paz! - gritou na sala vazia. Correu para a cama e cho-

rou quase a noite inteira. Na manhã seguinte, bem cedinho, enquanto as ruas esta-vam desertas, um carro parou diante da casa e levou Tony.

Lawrence Belmont passou pelo gabinete da Dra. Calvin e, impulsivamente, bateu à porta. Encontrou-a com o matemático Peter Bogert, mas não hesitou.

- Claire disse que a U.S. Robôs pagou todas as reformas da minha casa...-- Sim, nós consideramos isso um valioso e necessário fator da experiência - res-

pondeu a Dra. Calvin. - No seu novo cargo de engenheiro associado poderá mantê-la, creio.

- Não é isso que me preocupa. Já que Washington vai concordar com os testes, poderemos obter um modelo TN para nós, no próximo ano, creio.

Voltou-se hesitante, como se quisesse sair, mas recuou, incerto.- Que deseja, Sr. Belmont? - perguntou a Dra. Calvin, após uma pausa.- Gostaria de saber... - começou. - Gostaria de saber o que realmente aconteceu

por lá. Claire... parece tão diferente. Não se trata apenas da aparência... embora, francamente, eu tenha ficado surpreso. - Riu, nervoso. - É ela! Não é de fato a minha mulher... não sei explicar...

- Então, por que tenta? Está desapontado com alguma coisa?- Pelo contrário. É um pouco assustador, também, compreende...- Se eu fosse o senhor não me preocuparia. Sua mulher saiu-se muito bem. Fran-

camente, nunca pensei que a experiência se mostrasse tão completa. Sabemos agora quais as correções a fazer no modelo TN e o crédito pertence todo à Sra. Belmont. Se quer que eu seja franca, acho que sua mulher é quem merece promoção.

Larry estremeceu visivelmente.- Contanto que fique em família - murmurou, e saiu.Susan Calvin falou:- Creio que isso machucou, é o que espero... Leu o relatório de Tony, Peter?- De ponta a ponta - respondeu Bogert. - Não acha que o modelo TN-3 precisará

de algumas modificações?- Você também acha? - falou, áspera. - Qual o seu ponto de vista?Bogert franziu o cenho.- Nem precisei raciocinar. É óbvio que não podemos permitir um robô à solta, tro-

cando carinhos com sua dona, se me permite a expressão.- Carinhos! Peter, você me deixa doente. Então não compreendeu? Aquela máqui-

na tinha que obedecer à Primeira Lei. Não podia permitir que um ser humano se pre-

judicasse, e Claire Belmont estava se prejudicando por causa de seu complexo de in-ferioridade. Ele fingiu apaixonar-se por ela, já que mulher alguma ficaria insensível ao fato de despertar paixão numa máquina fria, sem alma. E ele abriu as cortinas de propósito para que os outros vissem e invejassem - sem risco possível para o casa-mento de Claire. Creio que foi muito inteligente da parte de Tony...

- Acha mesmo? Que diferença faz se era fingimento ou não, Susan? O efeito é ter-rível. Leia novamente o relatório. Ela o evitou. Gritou quando ele a segurou. Não dor-miu na última noite, chorando. Não podemos permitir isso.

- Peter, você é cego. Tão cego como eu fui. O modelo TN será inteiramente re-construído, mas por outra razão. Bem outra. Estranho que eu não o tenha percebido imediatamente. - Seu olhar perdeu-se na distância, pensativo. - Mas talvez reflita uma falha minha. Veja, Peter, máquinas não se apaixonam, mas - até quando inútil e terrível - as mulheres sim.

FOGO DO INFERNO

Houve o movimento, como o de uma plateia muito educada, na primeira noite de apresentação. Apenas um punhado de cientistas se achava presente, com salpicos de militares de patentes elevadas, alguns congressistas e alguns noticiaristas.

Alvin Horner, do Gabinete de Imprensa Continental, de Washington, achava-se ao lado de Joseph Vincenzo, de Los Alamos, e disse:

- Agora devemos aprender algo.Vincenzo fitou-o com seus óculos bifocais e disse:- Não é coisa importante.Horner fechou a cara. Aqueles seriam os primeiros filmes em câmara super-lenta,

mostrando uma explosão atômica. Com lentes especiais modificando a polarização em lampejos, o momento da explosão seria dividido em pedaços de um bilhão de se-gundos. Ontem explodira uma bomba atômica. Hoje aqueles fragmentos mostrariam a explosão em detalhe inacreditável.

Homer disse:- Você acha que não vai dar certo?Vincenzo parecia torturado.- Dará certo, sim. Já fizemos provas iniciais. Mas o importante...- O que é?- É que essas bombas constituem a sentença de morte do homem. Não parecemos

capazes de aprender coisa tio simples. - Vincenzo assentiu. - Olhe para eles. Estão animados, agitados, mas não sentem medo.

O noticiarista disse:- Eles conhecem o perigo, também sentem medo.- Não o bastante - contrapôs o cientista. - Já vi homens assistindo enquanto uma

bomba H transformava uma ilha em um buraco no oceano, e depois foram para casa e dormiram. Os homens são assim. Por milhares de anos o fogo do inferno lhes foi pregado e não causou qualquer impressão verdadeira.

- Fogo do inferno... é religioso, senhor?- O que o senhor viu ontem foi o fogo do inferno. Uma bomba atômica explodindo

é fogo do inferno. Literalmente falando.Aquilo era o bastante para Homer. Ele se levantou e mudou de lugar, porém pas-

sou a fitar a plateia, cheio de inquietação. Haveria alguém com medo? Alguém se preocupava com o fogo do inferno? Tal não lhe pareceu.

As luzes se apagaram e o projetor começou. Sobre a tela, a torre de disparo se apresentava sombria. A plateia silenciou, cheia de tensão.

Foi quando um ponto de luz apareceu no ápice da torre, um ponto brilhante a ar-der, desabrochando devagar em um ângulo indolente para fora, para cá e para lá, to-mando formas desiguais de luz e sombra, tornando-se ovalado.

Um homem gritou, sufocado, outros gritaram. Uma Babel roufenha de ruído, acompanhada por silêncio o mais espesso. Homer podia farejar o medo, provar o sa-

bor em sua própria boca, sentir o sangue regelar-se.A bola ovalada lançara projeções de si, depois fizera pausa momentânea, em êx-

tase, antes de expandir-se rapidamente em uma esfera brilhante e sem traços.Naquele momento de êxtase - a bola de fogo mostrara manchas escuras com

olhos, linhas escuras por sobrancelhas finas e arqueadas. Uma linha da cabelos que descia em forma de V, uma boca torcida para cima, rindo tresloucadamente no fogo do inferno - e chifres, também.

A TROMBETA DO JUÍZO FINAL

O Arcanjo Gabriel adotava atitude inteiramente casual em todo o caso. Ociosamen-te deixou que a ponta de uma asa raspasse pelo planeta Marte que, sendo feito de simples matéria, não foi afetado pelo contato.

Disse, então:- É uma questão resolvida, Etheriel. Nada podemos fazer. O Dia da Ressurreição

tem de vir.Etheriel, serafim muito jovem que fora criado apenas mil anos antes, na contagem

dos homens, estremeceu de modo que vértices bem distintos surgiram naquele con-tinuum. Desde sua criação ele fora encarregado da Terra e adjacências. Cabia-lhe por tarefa, era uma sinecura, um beco sem saída, um escaninho, mas ao correr dos sé-culos ele passara a orgulhar-se do mundo, a seu modo perverso.

- Mas você vai perturbar meu mundo sem avisar.- De modo algum. De modo algum. Algumas passagens se acham no Livro de Da-

niel e no Apocalipse de São João, com bastante clareza.- Estão? E foram copiadas por um escriba e depois por outro? Será que eles deixa-

ram duas palavras sem modificar, em qualquer linha?- Existem sinais também no Rig-Veda, nos Analetos de Confúcio.- Que são propriedade de grupos culturais isolados, existem como aristocracia mui-

to rala...- A Crônica de Gilgamés se mostra muito clara.- Grande parte da Crônica de Gilgamés foi destruída na biblioteca de Assurbanípal,

há mil e seiscentos anos, ao estilo terrestre, antes que eu fosse criado.- Existem alguns traços da Grande Pirâmide e um padrão nas joias embutidas no

Taj Mahal...- Tão sutis que nenhum homem jamais pôde interpretá-las corretamente,Gabriel parecia fatigado- Se você apresentar objeções a tudo que digo, não adianta discutirmos o assunto.

De qualquer modo você devia ter conhecimento. É coisa que diz respeito à Terra, você é onisciente.

- Sim, se quiser ser. Tive muito com que me ocupar por aqui e investigar as possi-bilidades da ressurreição, preciso reconhecê-lo, foi coisa que não me ocorreu.

- Pois bem, devia ter ocorrido. Todos os documentos atingidos encontram-se nos arquivos do Conselho de Ascendentes. Você devia ter-se valido deles em qualquer momento.

- Estou lhe dizendo que todo o meu tempo foi necessário por aqui. Você não faz a mínima ideia da eficiência mortífera do Adversário neste planeta. Precisei de todos os meus esforços para detê-lo; e mesmo assim...

- Ora, sim - e Gabriel afanou um cometa de passagem - ele parece ter obtido suas vitoriazinhas... Observo, ao deixar o padrão factual entrelaçado deste mundozinho miserável passar por mim, que se trata de uma daquelas coisas com equivalência de

matéria e energia.- Pois é mesmo - confirmou Etheriel.- E eles estão brincando com isso.- Receio que sim.- Neste caso, que momento melhor para dar fim à matéria?- Pode deixar comigo, eu faço o trabalho. As bombas nucleares deles não os des-

truirão.- Será? Bem, que tal você deixar-me prosseguir, Etheriel? Aproxima-se o momento

designado.O serafim insistiu, teimoso:- Gostaria de ver os documentos do caso. - Já que insiste...O enunciado de uma Lei de Ascendência apareceu em símbolos reluzentes contra o

negrume profundo do firmamento sem ar. Etheriel leu em voz alta:É determinado, por ordem do Conselho, que o Arcanjo Gabriel, número de Série et

cétera, et cétera (Bem, é você, não há dúvida) se aproxima do Planeta, Classe A, nú-mero G 753990, doravante designado como Terra, e a 19 de janeiro de 1957 às 12:01 da noite,empregando-se hora local... - e acabou de ler em silêncio entristecido.

- Satisfeito?- Não, mas nada posso fazer.Gabriel sorriu e um clarão surgiu no espaço, na forma de um clarim terrestre, po-

rém seu ouro brunido estendia-se da Terra ao Sol. Foi levado aos belos lábios relu-zentes de Gabriel.

- Você não me dá um tempinho para falar com o Conselho? - perguntou Etheriel, desesperado.

- E de que vai adiantar? A lei tem a contra-assinatura do Chefe e você sabe que uma lei contra-assinada pelo Chefe é inteiramente irrevogável. E agora, se você não se importa, estamos quase no momento e quero acabar com isso, porque tenho ou-tras coisas de importância muito maior em que pensar. Você não se importa em sair da frente um pouquinho? Obrigado.

Gabriel soprou e um som limpo e fino, de timbre perfeito e delicadeza cristalina, preencheu todo o universo até a estrela mais distante. Ao se fazer ouvir, seguiu-se um momento minúsculo de êxtase, tão fino quanto a linha que separa o passado do futuro, e logo a textura dos mundos entrou em colapso, a matéria se juntou de volta no caos primevo da qual saíra, ao comando de uma palavra. As estrelas e nebulosas haviam desaparecido e a poeira cósmica, o sol, os planetas, a lua; tudo, tudo, tudo menos a Terra, que continuava girando como antes em um universo agora inteira-mente esvaziado.

Soara a Trombeta do Juízo Final.

R. E. Mann (chamado por todos que o conheciam, apenas de R. E.), foi entrando nos gabinetes da fábrica Billikan Bitsies, e fitou sombriamente o homem alto (escan-zelado, mas com certa elegância esmaecida em volta do bigode grisalho e bem arrui-nado) que se inclinava atentamente sobre um maço de folhas de papel na mesa.

R. E. consultou o relógio de pulso, que ainda marcava 7:01, tendo deixado de pa-rar nesse momento ou hora. Era hora padrão, naturalmente; 12:01 da noite, hora de Greenwich. Seus olhos castanhos escuros, fitando com energia de um par de ossos faciais pronunciados, atraíram o olhar do outro.

Por momentos o homem alto fitou-o, sem qualquer expressão. Depois ele disse:- Posso ajudá-lo em alguma coisa?- Horatio J. Billikan é o senhor? Dono deste lugar?- Sim.Eu sou R. E. Mann e não pude deixar de passar por aqui quando finalmente encon-

trei alguém trabalhando. Não sabe que dia é hoje?- Hoje?- É o Dia da Ressurreição.- Oh, isso aí! Eu sabia. Ouvi a trombeta. Dava para acordar os defuntos... Foi uma

trombeta e tanto, o senhor não acha? - deu risadinhas, depois prosseguiu. - Acordei às sete da manhã. Cutuquei a mulher, que havia dormido com tudo aquilo, é claro. Eu sempre achei e disse que ela haveria de dormir nesse momento. "É a Trombeta do Juízo Final, querida", foi o que eu disse, Hortense - é assim que minha mulher se chama,- disse: "Muito bem", e voltou a dormir. Tomei banho, fiz a barba, pus a roupa e vim trabalhar.

- Mas por quê?- Por que não?- Nenhum de seus operários apareceu.- Não, pobres diabos. Eles fazem feriado de qualquer coisa. Seria de esperar. Afinal

de contas, não é todos os dias que o mundo acaba. Francamente, está ótimo. Tenho a oportunidade de acertar minha correspondência pessoal sem qualquer interrupção. O telefone não tocou uma só vez.

Pôs-se de pé e foi à janela.- Uma grande melhora. Não temos mais um sol ofuscante e a neve desapareceu. A

luz é agradável e o calor também. Uma combinação geral muito boa... Mas agora, se não se importa, estou muito ocupado, se me dá licença...

Uma voz alta e roufenha interrompeu o que dizia:- Um momento, Horatio.Era um cavalheiro que se parecia muitíssimo a Billikan, mas um tanto mais cheio

de aspereza, seu nariz entrava primeiro no gabinete e adotava uma atitude de digni-dade ofendida, pouquíssimo diminuída pelo fato de que estava inteiramente nu.

- Posso perguntar porque você fechou o Bitsies? Billikan pareceu desmaiar.- Santo Deus - comentou - é o Papai. De onde veio?- Do cemitério - trovejou Billikan Pai - e de onde mais poderia vir, com mil demô-

nios: Eles estão saindo de lá, aos montes. Todos eles nus. As mulheres também, in-teiramente peladas.

Billikan pigarreou.- Vou arranjar-lhe alguma roupa, Papai. Vou apanhar em casa.- Deixe isso para lá. Em primeiro lugar os negócios. Primeiro, os negócios.R; E. deixou de ser um espectador que se divertia, intervindo na conversa:- Estão todos saindo dos túmulos ao mesmo tempo, senhor?Enquanto falava, fitava Billikan Pai, com curiosidade. O aspecto do velho era o de

um homem em idade robusta. As faces eram encovadas, mas brilhavam de saúde. Sua idade, ao que R. E. avaliou, era exatamente a do momento de sua morte, mas o corpo se encontrava como devia estar naquela idade, caso funcionasse à perfeição.

Billikan Pai disse:- Não, senhor, não é assim. As covas mais novas estão saindo primeiro. Pottersby

morreu cinco anos antes de mim e saiu cerca de cinco minutos depois de mim. Quando o vi sair, resolvi sair também. Já estava farto dele quando... isso me faz lem-

brar. - Ele esmurrou a mesa com um punho dos mais firmes. - Não havia táxis, nem ônibus. - Os telefones não funcionavam. Tive de andar. Tive de andar vinte milhas.

- E andou assim mesmo? - perguntou o filho, em voz fraca e cheia de pavor.Billikan Pai examinou a sua própria pele desnuda com aprovação indiferente.- Faz calor. Quase todos estão nus. Seja lá como for, meu filho, não estou aqui

para muito lero-lero. Por que a fábrica está fechada?- Não está fechada. Trata-se de ocasião especial.- Ocasião especial uma droga. Trate de chamar o sindicato e dizer a eles que o Dia

da Ressurreição não está no contrato. Todos os operários serão descontados por mi-nuto que não estejam no trabalho.

O rosto magro de Billikan adotou expressão obstinada, enquanto fitava o pai.- Não farei isso. Não se esqueça de que você não está mais dirigindo essa usina.

Agora sou eu.- Ah, é mesmo? E com que direito?- Por seu testamento.- Muito bem. Aqui mesmo estou cancelando meu testamento.- Não pode, Papai. Você está morto. Pode não parecer morto, mas eu tenho teste-

munhas. Tenho o certificado de óbito, assinado pelo médico. Tenho as contas pagas ao coveiro e à funerária. Posso obter os testemunhos dos que carregaram seu cai-xão.

Billikan Pai fitava o filho e assim foi que se sentou, passou o braço pelas costas da cadeira, cruzou as pernas e perguntou:

- Se a coisa é essa, a questão é que estamos todos mortos, não é mesmo? O mun-do chegou ao fim, não foi?

- Mas você foi declarado legalmente morto, eu não.- Trataremos de modificar isso, meu filho. Nós seremos mais numerosos do que

vocês, e os votos contam.Billikan Filho bateu com força na mesa, usando a palma da mão, e corou um pou-

co.- Papai, não me agrada levantar essa questão, mas você me obriga. Posso fazê-lo

lembrar que a esta altura tenho certeza de que a Mamãe está sentada lá em casa, esperando por você; e que provavelmente teve de percorrer as ruas... bem... pelada, também, e que não deve estar muito satisfeita.

Billikan Pai empalideceu de modo fantástico.- Santo Deus!- E você sabe muito bem que ela sempre quis a sua aposentadoria.Billikan Pai tomou uma decisão muito rápida.- Não vou para casa. Ora, isto é um pesadelo. Não existem limites nesta coisa de

Ressurreição? Ora, isso é... isso é pura anarquia. Alguém está exagerando. Eu não vou para casa, tenho dito.

E a essa altura um cavalheiro um tanto rotundo e de rosto liso e róseo, costeletas fofas (muito parecidas às de Martin Van Buren) entrou e disse friamente:

- Bom-dia.- Papai - disse Billikan Pai.- Vovô - disse Billikan Filho.Billikan Avô olhou para Billikan Filho, com expressão de maior desaprovação.- Se você é meu neto - disse - envelheceu muito e isso não o melhorou em absolu-

to.Billikan Filho sorriu com debilidade dispéptica e não respondeu. Billikan Avô não

parecia precisar de tanto, e disse:

- Muito bem, se vocês dois me atualizarem com os negócios re tomarei minhas funções de gerente.

Fizeram-se ouvir duas respostas simultâneas e a rubicundidade de Billikan Avô au-mentou perigosamente enquanto batia no chão de modo mais peremptório, com a bengala imaginária, e berrava uma resposta.

R. E. Disse:- Cavalheiros.Ergueu a voz:- Cavalheiros!E berrou, com toda a força dos pulmões:- CAVALHEIROS!A conversa parou de repente e todos se voltaram para fitá-lo. Seu rosto pontudo,

seu olhar singularmente atrativo, sua boca sardônica pareciam, de súbito,dominar aquela reunião.

Ele disse:- Não entendo a discussão. O que fabricam?- Bitsies - explicou Billikan Filho.- O que, ao que suponho, é um alimento de cereais, empacotado...- Pululante de energia em cada floco dourado e crespo - proclamou Billikan Filho.- Coberto de açúcar cristalino e doce como o mel; um confeito e alimento... - res-

mungou Billikan Pai.- Capaz de tentar o apetite mais desanimado - estrugiu Billikan Avô.- Exatamente - disse R. E. - Que apetite? Puseram-se a fitá-lo com expressão es-

toica- Não entendi - disse Billikan Filho.- Algum de vocês sente fome? - perguntou R. E. - Eu não sinto.- De que está falando esse idiota? - interpelou Billikan Avô com raiva. Sua bengala

invisível teria cutucado R. E. no umbigo, caso existisse (a bengala, não o umbigo).R. E. disse:- Estou tentando dizer-lhes que ninguém mais voltará a comer. Estamos no além, a

comida é desnecessária.As expressões nos semblantes dos Billikan's não precisavam de qualquer interpre-

tação. Tomava-se evidente que eles haviam consultado seus próprios apetites e não os tinham descoberto.

Billikan Filho disse, como rosto da cor de cinzas:- Arruinado!Billikan Avô bateu no soalho com força e sem qualquer ruído, com a bengala ima-

ginária.- Isso é confisco da propriedade sem o processamento legal. Vou processar. Vou

processar.- Inteiramente inconstitucional - concordou Billikan Pai.- Se encontrarem alguém a quem processar, desejo-lhes a melhor sorte - disse R.

E., de modo muito agradável. - E agora, se me derem licença, acho que irei até o ce-mitério.

Pôs o chapéu na cabeça e saiu.

Etheriel, com os vértices tremendo, achava-se diante da glória de um querubim de seis asas. O querubim disse:

- Se entendo o que diz, o seu universo foi desmantelado.

- Exatamente.- Muito bem, você não espera de mim que volte a fazê-lo, espera?- Não espero que você faça coisa alguma - retorquiu Etheriel - a não ser que obte-

nha um encontro meu com o Chefe.Ao ouvir essa palavra, o querubim manifestou instantaneamente seu respeito, por

um gesto. Duas pontas de asas cobriram-lhe os pés, duas os olhos e duas a boca. Voltou à posição normal e disse:

- O Chefe está muito ocupado. Há uma infinidade de questões para ele resolver.- E quem ignora isso? Apenas faço ver que se as coisas continuarem como estão

agora, terá existido um universo no qual Satanás terá ganho a vitória final.- Satanás?- É a palavra hebraica para Adversário - disse Etheriel, cheio de impaciência. - Eu

poderia dizer Ahriman, que é a palavra em persa. De qualquer modo, refiro-me ao Adversário.

O querubim disse:- Mas de que vai valer um encontro com o Chefe? O documento autorizando a

Trombeta do Juízo Final foi contra-assinado pelo Chefe, e você sabe que isso o torna irrevogável. O Chefe jamais limitaria sua onipotência cancelando uma palavra pro-nunciada por ele durante o exercício de seu cargo.

- Não há jeito, então? Você não me arranja o encontro? - Não posso. Etheriel disse:- Nesse caso procurarei o Chefe sem a sua licença. Invadirei o Primum Mobile. Se

isso representa minha destruição, que assim seja - e juntou as energias...O querubim murmurou, tomado de horror:- Sacrilégio!E houve um leve ruído de trovão enquanto Etheriel dava um pulo para cima e de-

saparecia.

R. E. Mann atravessou as ruas congestionadas e habituou-se à visão de pessoas perplexas, incrédulas, apáticas, em roupagem improvisada ou, de modo geral, sem roupa alguma.

Uma jovem com cerca de doze anos de idade inclinou-se sobre o portão de ferro, um dos pés sobre a barra horizontal e girava de um lado para outro, dizendo à sua passagem:

- Alô, moço.- Alô - disse R. E. A jovem estava vestida, não era uma das...regressas.Ela disse:- Temos um bebê novo aqui em casa. É uma irmãzinha que eu já tive. A Mamãe

está chorando e me mandaram para cá.R. E. disse:- Ora, ora, muito bem - passou pelo portão e tomou o caminho pavimentado até a

casa, casa de pretensões modestas à nobreza da classe média. Tocou a campainha, não obteve resposta, pelo que abriu a porta e entrou.

Acompanhou o som de soluços e bateu em porta interna. Um homem forte, com cerca de cinquenta anos de idade, pouco cabelo e grande quantidade de face e quei-xo olhou para ele em mistura de espanto e ressentimento.

- Quem é você?R. E. tirou o chapéu.

- Achei que talvez pudesse ajudar. A sua meninazinha lá fora... Uma mulher ergueu o olhar para ele, desesperançada, sentada em cadeira ao lado

de cama de casal. Seus cabelos começavam a tornar-se grisalhos, o rosto estava in-chado e enfeado pelo choro, as veias transpareciam azuis nos dorsos das mãos. Na cama encontrava-se uma criancinha gorducha e nua. Batia com os pés languidamen-te e seus olhos infantis, sem visão, voltavam-se sem objetivo para lá e para cá.

- Este é o meu bebê - disse a mulher. - Ela nasceu há vinte e três anos, nesta casa, e morreu quando tinha dez meses de idade, também nesta casa. Eu a queria muitíssimo de volta.

- E agora está com ela - observou R. E.- Mas é tarde demais - gritou a mulher, com veemência. - Eu tive três outros filhos,

a minha mais velha está casada, meu filho no exército. Sou velha demais para ter um bebê agora. E mesmo se... mesmo se...

Seus traços fisionômicos demonstravam o esforço heroico que fazia para reprimir as lágrimas, mas não o conseguia.

O marido interveio, em sua voz monótona e sem inflexão:- Não é um bebê verdadeiro, não chora. Não se suja, não aceita leite. O que va-

mos fazer? Nunca crescerá. Será sempre uma criancinha.R. E. sacudiu a cabeça.- Não sei - declarou. - Acho que não posso ajudar em coisa alguma.Retirou-se em silêncio e, em silêncio, pensou nos hospitais. Milhares de criancinhas

deviam estar aparecendo em cada um deles.Era colocá-las em prateleira, ao que pensou sarcasticamente. Empilhá-las como

madeira redonda. Não precisavam de cuidados, os corpinhos são apenas o guardião de uma centelha indestrutível de vida.

Passou por dois meninos de idade cronológica aparentemente igual, talvez com dez anos. Eram donos de vozes estridentes e o corpo de um brilhava, muito branco, à luz sem sol, de modo que era um regresso. O outro, não.

R. E. parou para ouvir.O que estava nu disse:- Eu tive escarlatina.Uma faísca de inveja diante da afirmação que conferia notoriedade, pareceu entrar

na voz do que se achava vestido.- Puxa vida.- Foi assim que morri.- Puxa vida. Eles usaram penicilina ou albumicina?- O quê?- São remédios.- Nunca ouvi falar.- Rapaz, você não sabe grande coisa.- Sei tanto quanto você.- Sabe? Quem é o presidente dos Estados Unidos?- Warren Harding, esse mesmo.- Você está doido. É o Eisenhower.- Quem é esse?- Já viu televisão?- Que negócio é esse?- O menino vestido prorrompeu numa vaia ensurdecedora.- É uma coisa que você liga e aparece comediante, cinema, cowboy, gente de fo-

guete, o que você bem quiser.

- Vamos ver.Seguiu-se uma pausa e o menino do presente disse:- Não está funcionando.O outro prorrompeu em vaia, por sua vez.- Quer dizer que nunca funcionou. Você inventou tudo isso.R. E. deu de ombros e prosseguiu.As multidões já se tornavam mais ralas, ao sair da cidade e aproximar-se do cemi-

tério. Os que ali ainda se encontravam caminhavam rumo à cidade e estavam todos nus.

Um homem o fez parar, homem animado, a pele rósea e cabelos brancos, que ti-nha marcas de pincenê em ambos os lados do nariz, mas sem óculos.

- Saudações, amigo.- Alô - disse E. E.- Você é o primeiro homem vestido que já vi. Estava vivo quando a trombeta to-

cou, deve ser isso.- Pois é.- E então, não acha uma beleza? Não acha uma graça, uma alegria? Venha festejar

comigo.- Você está gostando, é? - perguntou R. E.- Se estou gostando? Encontro-me cheio de uma alegria pura e radiosa. Estamos

cercados pela luz do primeiro dia, a luz que brilhava com suavidade e serenidade an-tes de terem feitos o sol, a luz e as estrelas. (Você conhece o Gênesis, naturalmen-te.) Aqui temos o calor agradável que deve ter sido uma das maiores bênçãos do Pa-raíso; e não o calor enervante ou aquele frio desgraçado. Os homens e as mulheres caminham nas ruas sem roupas e não sentem vergonha. Tudo está muito bem, meu amigo, tudo muito bem.

R. E. Disse:Bem, é verdade que não me importei com a nudez feminina por toda a parte.Claro que não - disse o outro. - O desejo e o pecado, como eram em nossa exis-

tência terrena, não existem mais. Quero apresentar-me, amigo, como em meus tem-pos de terra. Meu nome na Terra era Winthrop Hester. Nasci em 1812 e morri em 1884, como contávamos o tempo nessa época. Nos últimos 40 anos de vida trabalhei para levar meu pequeno rebanho ao Reino, e vou agora contar aqueles queconquistei.

R. E. encarou o ex-sacerdote com ar solene.- Com certeza ainda não houve o Dia do Juízo.- E por que não? O senhor vê dentro do homem e no mesmo instante em que to-

das as coisas do mundo acabaram, todos os homens foram julgados e nós somos os salvos.

- Deve ser grande o número dos que foram salvos.- Ao contrário, meu filho, os que se salvaram são apenas um remanescente.- Um remanescente bastante numeroso. Até onde posso ver, todos estão voltando

à vida. Vi alguns personagens bastante desagradáveis na cidade, tão vivos quanto o amigo.

- O arrependimento no último instante...- Eu nunca me arrependi.- De quê, meu filho?- Do fato de que nunca frequentei uma igreja. Winthrop Hester recuou apressada-

mente.- Você foi batizado?

- Não que eu saiba. Winthrop Hester estremecia.- Mas acredita em Deus, com certeza.- Bem - disse R. E. - acreditei em muitas coisas sobre Ele, coisas que provavelmen-

te o sobressaltariam, amigo.Winthrop Hester girou sobre os calcanhares e partiu dali em grande pressa e enor-

me agitação.No que restou de sua caminhada até o cemitério (R. E. não podia calcular o tem-

po, nem lhe ocorreu tentá-lo) ninguém mais o fez parar. Encontrou o cemitério quase vazio, com árvores e relva desaparecidos (ocorreu-lhe que nada mais havia no mun-do que fosse verde; por toda a parte o chão era um cinzento duro, sem traços e sem granulação; o céu era um branco luminoso), mas as lápides continuavam ali.

Sobre uma delas sentara-se um homem magro e encovado, cabelos compridos e negros e uma madeixa dos mesmos, mais curta, porém mais perceptível, sobre o peito e braços.

Foi ele quem chamou, em voz profunda:- Ei, você aí!R. E. sentou-se em lápide próxima.- Olá.Cabelos Negros observou:- A sua roupa não parece certa. Em que ano isso aconteceu?- 1957.- Eu morri em 1807. Singular! Eu contava ser um camaradinha bem "quente" e por

dentro agora, com as chamas eternas a me esquentarem as tripas.- Você não vai para a cidade? - indagou R. E.- Eu me chamo Zeb - disse o ancião. - É uma abreviação de Zebulão, mas Zeb che-

ga. Como está a cidade? Mudou um pouco, foi isso?- Está com cerca de cem mil pessoas, neste momento. A boca de Zeb abriu-se como que num bocejo.- Continue. Podia estar bem maior do que Filadélfia... Você está brincando.- Filadélfia tem... - e R. E. fez uma pausa. Enunciar a cifra de nada adiantaria. Em

vez disso ele asseverou: - A cidade cresceu em cento e cinquenta anos, como deve imaginar.

- E o país, também?- Quarenta e oito Estados - disse R. E. - Vai até o Pacífico.- Não! - e Zeb deu um tapa na coxa, cheio de prazer, depois se encolheu diante da

ausência inesperada de tecido grosso que abrandasse o impacto do tapa. - Eu iria para o oeste, se não fosse necessário aqui. Sim, senhor. - O rosto se ensombreceu e os lábios finos tomaram uma linha de tristeza. - Vou ficar aqui mesmo, onde sou ne-cessário.

- Por que é necessário?A explicação veio rápida, raivosa: - Índios!- Índios?- Milhões deles. Primeiro as tribos com que lutamos e derrotamos e depois tribos

que nunca viram um homem branco. Todos eles vão voltar a viver. Vou precisar dos meus antigos camaradas. Vocês, gente de cidade, não servem para isso. Já viu um índio?

R. E. disse- Por aqui, ultimamente, não vi.Zeb demonstrou o desdém que sentia e procurou cuspir para um lado mas não

descobriu saliva alguma para fazê-lo. Disse, então:- É melhor você voltar para a cidade. Daqui a pouco este lugar não vai ser seguro

para ninguém. Eu bem queria estar com o mosquete.R. E. levantou-se, pensou por momentos, deu de ombros e voltou para a cidade. A

lápide em que estivera sentado caiu quando ele se ergueu, transformou-se em poeira de pedra cinzenta que se juntou ao chão indistinto. Olhou em volta. A maioria das lá-pides desaparecera. O resto não duraria muito tempo. Apenas aquela em que Zeb se achava sentado continuava firme e forte.

R. E. começou a caminhada de volta e Zeb não se voltou para olhá-lo. Continuou sentado, esperando com calma e tranquilidade - esperando os índios.

Etheriel mergulhou pelos céus em pressa, a mais imprudente. Os olhos dos Ascen-dentes achavam-se cravados nele, como sabia. Desde o serafim recém-nascido, pas-sando pelos querubins e anjos, até o arcanjo mais elevado, todos deviam estar ob-servando.

Já se encontrava mais alto do que qualquer Ascendente, sem ser convidado, esti-vera antes, e esperava a flechada da Palavra que reduziria seus vértices à inexistên-cia.

Mas não fraquejou. Atravessando o não-espaço e não-tempo, mergulhou para a união com Primum Mobile; o centro que englobava tudo que É, Foi, Seria, Tinha Sido, Poderia Ser e Deveria Ser.

E ao pensar nisso irrompeu e tomou-se parte da coisa, seu ser expandiu-se de modo que também ele, momentaneamente, fazia parte de Tudo. Mas logo aquilo foi misericordiosamente velado de seus sentidos e o Chefe era uma voz pequena e cal-ma dentro de si, no entanto, ainda mais impressionante em sua infinidade por esse motivo.

- Meu filho - dizia a voz - sei porque vieste.- Então ajuda-me, se é a tua vontade.- Por minha vontade - disse o Chefe - uma lei minha é irrevogável. Toda a tua hu-

manidade, meu filho, ansiava por vida. Todos receavam a morte. Todos desenvolve-ram pensamentos e sonhos de vida sem fim. Não houve dois grupos de homens, nem mesmo dois homens isolados que desenvolvessem a mesma vida no além, to-dos desejavam a vida. Recebi petições para satisfazer o denominador comum de to-dos esses desejos... a vida sem fim. Foi o que fiz.

- Nenhum servo teu fez tal pedido.- Foi o Adversário, filho meu.Etheriel esgotava sua glória débil em abatimento e disse, em voz baixa:- Sou poeira à tua vista e indigno de me achar à tua presença, mas ainda assim

preciso perguntar-te algo. Nesse caso o Adversário também é teu servidor?- Sem ele não posso ter outro - explicou o Chefe - pois o que é o Bem, então, se-

não a luta eterna contra o Mal?E, nessa luta, pensava Etheriel, eu perdi.

R. E. parou diante da vista da cidade. Os edifícios ruíam. Aqueles feitos de madeira já eram montes de entulho. R. E. caminhou até o montão mais próximo e descobriu que os fragmentos de sarrafos de madeira eram poeirentos e secos.

Adentrou-se mais na cidade e descobriu que os edifícios de tijolos ainda estavam de pé, mas havia um arredondamento pressago nas orlas dos tijolos, uma escamosi-

dade ameaçadora.- Não durarão muito - disse uma voz profunda - mas temos este consolo, se for

consolo: a queda deles não mais matará.R. E. olhou com surpresa e se viu frente a frente a um cadavérico Dom Quixote de

homem, queixos de lanterna, faces afundadas. Os olhos eram tristes e o cabelo cas-tanho reto e escorrido. A roupa assentava frouxamente e a pele transparecia com clareza em diversos rasgões.

- Meu nome - disse ele - é Richard Levine. Já fui professor de história, antes disso acontecer.

- Está usando roupas - observou R. E. - Você não é um dos ressurretos.- Não, mas essa marca de distinção já desaparece. As roupas já estão acabando.R. E. olhava os pacientes que seguiam por ali, caminhando devagar e sem objeti-

vo, como poeira flutuando em raio de sol. Pouquíssimos usavam roupas, ele olhou para si mesmo e observou pela primeira vez que a costura ao longo de cada perna da calça se rompera. Apertou o tecido do paletó com o polegar e indicador e a lã se desfez, soltou-se com facilidade.

- Acho que tem razão - disse R. E.- Se você notar - prosseguiu Levine - o Morro de Mellon está se achatando.R. E. voltou-se para o norte onde, geralmente, as mansões da aristocracia (aquela

aristocracia que existia na cidade) cravejava as encostas do Morro Mellon e verificou que o horizonte estava quase plano.

Levine disse:- Com o tempo nada mais haverá senão planície, falta de qualquer traço distinto,

nada... E nós.- E os índios - contrapôs R. E. - Há um homem fora da cidade esperando que os

índios apareçam e desejando estar com um mosquete nas mãos.- Imagino - disse Levine - que os índios não criarão dificuldade. Não existe prazer

em lutar com um inimigo que não pode ser morto ou ferido. E mesmo se não fosse assim, o prazer da batalha teria desaparecido, bem como todos os prazeres e an-seios.

- Você tem certeza?- Total. Antes de tudo isto acontecer, embora você não pense assim se olhar para

mim, extrai muito prazer inofensivo ao examinar o corpo feminino. E agora, com oportunidades sem igual à minha disposição, vejo que estou irritantemente desinte-ressado. Não, isto é errado. Nem mesmo me irrito por meu desinteresse.

R. E. olhou para os transeuntes.- Compreendo o que quer dizer.- A vinda dos índios para cá - disse Levine - nada é, em comparação à situação no

Velho Mundo. No começo, durante a Ressurreição, Hitler e sua Wehrmacht devem ter voltado a viver e agora devem estar diante de e misturados com Stálin e o Exército Vermelho desde Berlim até Stalingrado. Para complicar a situação, os Kaisers e os Czares chegarão. Os homens em Verdun e no Somme estão de volta a seus velhos campos de batalha. Napoleão e seus marechais acham-se espalhados por toda a Eu-ropa ocidental. E Maomé deve estar de volta para ver o que as épocas seguintes fize-ram do Islã, enquanto os Santos e Apóstolos examinam as trilhas da Cristandade. E mesmo os mongóis, os pobres coitados, os Khans desde Temujin até Aurengzeb, de-vem estar vagando pelas estepes, sem terem o que fazer, ansiando por suas monta-rias.

- Como professor de história - observou R. E. - você deve estar ansioso por estar lá e observar.

- E como poderia estar? A posição de cada homem na Terra é restrita à distância que ele pode percorrer a pé. Não existe máquina de tipo algum e, como acabei de dizer, não existem cavalos. E o que poderia eu descobrir na Europa, afinal? Apatia, é o que creio. Como aqui.

Um som macio fez com que R. E. se voltasse. A ala de um edifício vizinho, feito de tijolos, derruíra em meio à poeira. Partes de tijolos achavam-se a ambos os lados dele. Alguns deviam tê-lo perpassado sem que o percebesse. Olhou em volta. Os montões de entulho mostravam-se menos numerosos. Os que restavam pareciam menores em tamanho. Ele disse:

- Encontrei um homem em cuja opinião todos nós fomos julgados e estamos no Paraíso.

- Julgados? - disse Levine. - Ora, sim, imagino que estamos. Achamo-nos agora diante da eternidade. Não nos resta um universo, nem fenômenos extensos, nem emoções ou paixões. Nada, senão nós mesmos e o pensamento. Estamos diante de uma eternidade de introspecção, quando por toda a história jamais soubemos o que fazer conosco em um domingo de chuva.

- Parece que a situação o incomoda.- Muito mais do que isso. Os conceitos dantescos do inferno eram mais pueris e in-

dignos da imaginação divina: fogo e tortura. O tédio é coisa muita sutil. A tortura ín-tima da mente incapaz de escapar de si própria de qualquer modo, condenada a re-focilar em seu pus mental próprio, isso é coisa muita séria. Oh, sim, meu amigo, fo-mosjulgados e condenados, também, e isto não é o paraíso, mas o inferno.

E Levine se ergueu, os ombros caídos de abatimento, afastou-se devagar.R. E. olhou pensativamente ao redor e assentiu. Estava satisfeito.

O reconhecimento do fracasso durou apenas um instante em Etheriel e então, de súbito, ergueu o ser o mais brilhante e elevadamente que se atrevia, na presença do Chefe, e sua glória era um ponto minúsculo de luz no Primum Mobile infinito.

- Se é a tua vontade, então - disse. - Não peço que contraries tua vontade, mas que a realizes.

- De que modo, filho meu?- O documento, aprovado pelo Conselho de Ascendentes e assinado por ti mesmo,

autoriza o Dia da Ressurreição em momento determinado de um dia determinado do ano de 1957, na contagem dos moradores da Terra.

- Pois assim foi.- Mas o ano de 1957 não está caracterizado. O que é 1957, afinal? Para a cultura

dominante na Terra o ano era A.D. 1957, é verdade. Mas a partir do momento em que sopraste a existência na Terra e seu universo decorreram 5.960 anos. Baseando-nos nas indicações internas que criaste dentro desse universo, passaram-se cerca de quatro bilhões de anos. O ano não-caracterizado, então, é 1957, 5960 ou 4.000.000.000?

- E não é tudo - prosseguiu Etheriel. - O ano AD. 1957 é o ano 7464 da era bizanti-na, 5716 pelo calendário judeu. É o 2708 A.U.C., isto é, o 2.708° ano desde a funda-ção de Roma, se adotarmos o calendário romano. É o ano 1365 no calendário mao-metano e o centésimo-octogésimo ano da independência dos Estados Unidos.

Uma pausa, ele encerrava:- Humildemente te pergunto se não te parece que um ano designado apenas por

1957, e sem qualquer caracterização, tenha algum significado.

A voz ainda baixa do Chefe disse:- Eu sempre soube disso, filho meu. - Eras tu quem tinha de aprender.- Nesse caso - disse Etheriel, estremecendo luminosamente de alegria - deixa que

a própria letra de tua vontade seja cumprida e deixa que o Dia da Ressurreição re-caia em 1957, mas apenas quando todos os habitantes da Terra concordarem unani-memente que um certo ano deverá receber a numeração de 1957, nenhum outro.

Assim seja - disse o Chefe, e tal Palavra recriou a Terra e tudo que continha, junta-mente com sol, a lua e as falanges do Céu.

Eram 7 horas da manhã de 1° de janeiro de 1957 quando R. E. Mann despertou com sobressalto. No início de uma nota melodiosa que devia ter preenchido todo o universo havia soado e, ao mesmo tempo, não soara ainda.

Por momentos inclinou a cabeça como a permitir que a compreensão inundasse e, em seguida, uma pitada de raiva atravessou-lhe o semblante, desapareceu de novo. Era outra batalha.

Sentou-se à escrivaninha para redigir o novo plano de ação. As pessoas já falavam em reforma do calendário e isso devia ser estimulado. Devia iniciar-se uma nova era a 2 de dezembro de 1944 e, um dia, um novo ano de 1957 chegaria; 1957 da Era Atômica, reconhecida assim por todo o mundo.

Uma estranha luz brilhava em sua cabeça, enquanto os pensamentos lhe perpas-savam a mente mais do que humana e a sombra de Ahriman, projetada na parede, parecia ter pequenos chifres em ambas as têmporas.

COMO SE DIVERTIAM

Margie chegou a escrever no diário, aquela noite. Na página datada 17 de maio de 2157, registrou: "Hoje Tommy encontrou um livro de verdade!"

Era um livro muito antigo. O avô de Margie dissera certa feita que quando ainda menino o avô dele lhe contara que existira uma época em que todas as histórias eram escritas em papel.

Eles foram virando as páginas que eram amareladas e sinuosas, e divertindo-se muito ao lerem palavras que ainda permaneciam, em vez de se moverem como devia ser - sobre uma tela, está claro. E então, ao voltarem para a página anterior, a mes-ma continha aquelas palavras que ali haviam lido pela primeira vez.

- Puxa - disse Tommy - que desperdício. Quando você acabar com o livro pode jo-gar fora, quem sabe? Nossa tela de televisão deve ter um milhão de livros nela, e continua pronta para muitos outros. Eu não jogaria a tela fora.

- O mesmo com a minha - disse Margie, que tinha onze anos de idade e ainda não vira tantos tele-livros quanto Tommy. Ele estava com treze anos.

Ela perguntou:- Onde foi que você achou isso?- Em minha casa - e o menino apontou sem olhar, porque estava ocupado, lendo.

- No sótão.- E de que trata o livro?- De escola.Margie encheu-se de desdém.- Escola? E que existe para falar sobre escola? Eu detesto a escola.Margie sempre detestara a escola, porém agora mais do que antes. O professor

mecânico estivera a aplicar-lhe um teste de geografia após outro e ela se saíra cada vez pior, até que a mãe sacudira a cabeça cheia de pesar e a enviara ao Inspetor Mu-nicipal.

Tratava-se de homenzinho redondo, rubicundo, com uma caixa completa de ferra-mentas com mostradores e fios. Sorriu para Margie e lhe deu u'a maçã, depois des-montou o professor. Margie esperara que ele não soubesse como refazer ou remon-tar o professor, mas o homenzinho sabia, sem dúvida, e depois de uma hora, mais ou menos, lá estava novamente aquilo, grande, preto e feio, com uma tela em que todas as lições apareciam e as perguntas eram feitas. Não estava tão mau. A parte que Margie mais detestava era a frincha por onde tinha de enfiar os deveres de casa e os testes respondidos. Sempre fora preciso escrevê-los em código de furos que a tinham obrigado a aprender aos seis anos de idade e o professor mecânico calculava a marca num piscar de olhos.

O Inspetor sorrira depois de terminar o trabalho e afagara a cabeça de Margie, di-zendo à mãe dela: -

- Não é culpa da menina, Sra. Jones. Acho que o setor de geografia estava en-grenado para rapidez um pouco demasiada. Essas coisas às vezes acontecem. Eu de-

sacelerei para o nível médio de dez anos de idade. Na verdade o padrão global do progresso dela é inteiramente satisfatório. - E voltara a afagar a cabeça de Margie.

A menina ficara desapontada. Esperava que eles levassem o professor de uma vez por todas. Uma vez haviam levado o professor de Tommy por cerca de um mês, por-que o setor de história se apagara por completo.

Por isso perguntou a Tommy:- Por que motivo alguém haveria de escrever sobre a escola? Tommy fitou-a com um olhar cheio de superioridade.- Porque não é o nosso tipo de escola, sua burra. É o tipo antigo de escola, que

houve faz muitos anos atrás. - E aduziu altivamente, pronunciando a palavra com muito cuidado: - Muitos séculos.

Margie sentiu-se magoada.- Bem, eu não sei que tipo de escola eles tinham lá naquele tempo. - Leu o livro

sobre o ombro do menino por algum tempo e depois disse:- Seja lá como for, tinham um professor.- Claro que tinham, mas não era um professor comum. Era um homem.- Um homem? E como é que o homem podia ser professor?- Bem, ele só dizia aos meninos e meninas as coisas, e dava deveres de casa, fazia

perguntas a eles.Um homem não é sabido bastante para isso.- Claro que é. Meu pai sabe tanto quanto meu professor.- Não pode saber. Um homem não pode saber tanto como um professor.- Ele sabe quase tanto, aposto com você.Margie não estava em condições de contradizer, pelo que declarou:- Eu não havia de querer um homem desconhecido em minha casa para me ensi-

nar.Tommy prorrompeu em gargalhadas.- Você não sabe muita coisa, Margie. Os professores não moravam nas casas. Ti-

nham um edifício especial e as crianças iam lá.- E todas as crianças aprendiam a mesma coisa?- Claro, se fossem da mesma idade.- Mas minha mãe disse que um professor precisa ser ajustado para combinar com

a mente de cada menino e menina a quem ensina, e que cada criança tem de ser ensinada de modo diferente.

- Mesmo assim eles não faziam isso, naquele tempo. Se você não está gostando, não precisa ler o livro.

- Eu não disse que não estava gostando - apressou-se a afirmar. Queria saber mais sobre aquelas escolas engraçadas.

Não haviam sequer chegado à metade do livro quando a mãe de Margie chamou:- Margie! Escola! Margie ergueu o olhar.- Ainda não, mamãe.- Agora! - ordenou a Sra. Jones. - E deve ser hora para Tommy, também.Margie disse a Tommy:- Posso ler o livro um pouco mais com você, depois da escola?- Talvez - disse ele, indiferente e afastou-se assoviando, o livro velho e empoeirado

enfiado embaixo do braço.Margie foi para a sala de aula, ao lado do seu quarto, e o professor mecânico lá se

encontrava à espera. Sempre estava lá à mesma hora, todos os dias, com exceção aos sábados e domingos, porque sua mãe dissera que as meninas pequenas apren-diam melhor se aprendessem em horas habituais.

A tela se acendeu e dizia:"A lição de aritmética de hoje é a adição de frações próprias. Por favor, ponha os

deveres de casa de ontem na entrada certa."Margie o fez, suspirando. Pensava nas antigas escolas que existiam quando o avô

de seu avô fora pequenino. Todas as crianças de toda a vizinhança apareciam, rindo e gritando no pátio, sentavam-se juntas na sala de aula, iam juntas para casa ao en-cerramento do dia. Aprendiam as mesmas coisas, de modo que podiam ajudar-se mutuamente nos deveres de casa e falar sobre os mesmos.

E os professores eram gente...O professor mecânico apresentava na tela:"Quando somamos as frações 1/2 e 1/4..."Margie pensava como as crianças deviam ter gostado daquilo, nos dias de antiga-

mente. Estava pensando em como se divertiam.

BRINCALHÃO(Ou - O Piadista)

Noel Meyerhof consultou a lista que tinha preparado e escolheu o item com que começaria. Como sempre, confiou apenas na sua intuição.

Sentia-se pequeno em relação à máquina com que se defrontava, embora estives-se lidando apenas com uma ínfima parte dela. Isso não importava. Mesmo assim, fa-lava-lhe com a segurança de quem tinha absoluta certeza de que era o mestre.

- Johnson - ditou ele - voltou inesperadamente de uma viagem de negócios e en-controu a mulher nos braços do seu melhor amigo. "Max!", disse ele, surpreso. "Sou casado com essa mulher e tenho a obrigação de fazer isso. Mas você..."

Meyerhof pensou: OK, deixa essa porcaria descer pelos intestinos da máquina e fermentar um pouquinho.

- Ei - disse uma voz por trás dele.Meyerhof apagou o registro desse monossílabo e colocou o circuito que estava

usando em ponto neutro. Virou-se rapidamente.- Estou trabalhando - disse. - Não sabe bater na porta? Embora sempre sorrisse ao

cumprimentar qualquer pessoa com que se relacionava, fechou a cara ao receber o analista sênior Timothy Whistler como se tivesse sido interrompido por um estranho. Fez uma careta que parecia se estender até os cabelos, deixando o seu rosto fino mais enrugado do que já era.

Whistler encolheu os ombros. Estava com a capa branca do laboratório e pressio-nava os punhos dentro dos bolsos, fazendo com que o uniforme se enchesse de pre-gas verticais.

- Eu bati. Você não respondeu. O sinal de operação estava desligado.Meyerhof resmungou. Era bem possível. Vinha se dedicando tanto a seu novo pro-

jeto que estava esquecendo os pequenos detalhes. Mas esse não era um momento para culpas. Seu projeto era mais importante.

Ele não sabia dizer o motivo, é claro. Os Grandes Mestres nunca sabiam. Era isso o que os fazia Grandes Mestres; o fato de estarem além da razão. De que outra forma a mente humana poderia acompanhar o ritmo desse gigantesco amontoado de sólida racionalidade, com dez milhas de comprimento, que os homens chamavam de Multi-vac, o sistema de computadores mais complexo que já se viu na face da Terra?

- Eu estou trabalhando - disse Meyerhof. - Você precisa de alguma ajuda?- Nada que não possa ser adiado. Há algumas falhas no sistema de respostas do

hiperespacial. - Ele disfarçou e assumiu uma expressão de pesar meio duvidosa. - Trabalhando?

- Sim, e daí?- Mas... - Ele olhou em volta, procurando entre os compartimentos da apertada

sala revestida de inúmeras estantes de relês que compunham essa pequena parte de Multivac. - Não tem ninguém para ajudá-lo.

- Quem disse que tinha, ou deveria ter?

- Você estava contando uma de suas piadas, não é?- E daí?Whistler sorriu forçadamente.- Não me diga que está contando uma piada para Multivac... Meyerhof se emper-

tigou.- E por que não?- Estava?- Sim.- Por quê?Meyerhof encarou-o com um ar de desdém. - Não tenho que prestar contas nem

para você nem para ninguém.- Santo Deus, é claro que não. Eu só estava curioso, apenas isso... Mas, já que

você está trabalhando, eu vou embora. - Olhou em volta mais uma vez, intrigado.- Então, vá - disse Meyerhof. Acompanhou-o com os olhos enquanto ele saía, e em

seguida acionou o sinal de operação com um toque violento.Andou de um lado para outro da sala, tentando se controlar. Dane-se Whistler! Da-

nem-se todos eles! Ele não se preocupava em manter esses técnicos, analistas e me-cênicos em seu lugar. Tratava-os como se eles também fossem grandes artistas, e por isso eles tomavam essas liberdades. Pensou amargamente: nem contar piadas decentemente eles sabem.

Isso o levou de volta rapidamente à tarefa que tinha para cumprir. Sentou-se de novo. Que o diabo os carregue.

Voltou a acionar o circuito de operações de Multivac e continuou:- O garçom do navio parou na amurada do convés durante um cruzeiro especial-

mente difícil e fitou piedosamente um homem curvado sobre a grade, cuja intensida-de do olhar na direção do mar traduzia com perfeição as agruras de um enjoo Gentil-mente, o garçom bateu no ombro do homem. "Coragem, cavalheiro", murmurou o garçom. "Sei que isso parece terrível, mas a verdade é que ninguém nunca morreu de enjoo" O cavalheiro levantou a face esverdeada e torturada para o homem que o consolava, ofegando roucamente. "Não diga isso, homem. Pelo amor de Deus, não diga isso. A esperança de morrer é a única coisa que me mantém vivo."

Mesmo estando um pouco preocupado, Timothy Whistler não deixou de sorrir e fa-zer um cumprimento com a cabeça ao passar pela mesa da secretária. Ela lhe sorriu de volta.

Aqui, pensou ele, estava um produto obsoleto dentro desse mundo computadoriza-do que tiranizava o século XXI: uma secretária humana. Mas talvez fosse natural que esse tipo de instituição sobrevivesse aqui, no meio da fortaleza do deus computadori-zado, na gigantesca corporação que controlava Multivac. Com Multivac ocupando os horizontes, computadores menores para tarefas triviais se tornariam coisas de mau gosto.

Whistler entrou no escritório de Abram Trask. O oficial do governo interrompeu a cuidadosa tarefa de acender um cachimbo:

seus olhos escuros piscaram na direção de Whistler e seu nariz adunco projetou-se nítida e proeminentemente contra o retângulo da janela por trás dele.

- Olá, Whistler. Sente-se, sente-se aí. Whistler obedeceu.- Acho que estamos com problemas, Trask.Trask deu um meio sorriso.

- Espero que não seja um problema técnico. Sou apenas um simples político. (Essa era uma de suas frases favoritas.)

- Diz respeito a Meyerhof. " Trask se sentou imediatamente, parecendo terrivelmente preocupado.- Você tem certeza?- Quase. - Whistler entendeu perfeitamente bem a súbita apreensão do outro.

Trask era um funcionário do governo num cargo da Divisão de Computadores e Auto-mação do Ministério do Interior. Tinha a incumbência de resolver os problemas diplo-máticos envolvendo os satélites humanos de Multivac, do mesmo modo como esses satélites tecnicamente treinados tinham a incumbência de lidar com Multivac pro-priamente dito.

Mas um Grande Mestre era mais do que um simples satélite. Mais ainda do que um simples ser humano.

No começo da história de Multivac, tinha ficado evidente que o nó górdio estava na formulação das perguntas. Multivac poderia resolver todos os problemas da hu-manidade, todos os problemas, desde que... desde que lhe fossem feitas perguntas significativas. Mas à medida que o conhecimento se acumulava numa proporção cada vez mais rápida, tornou-se cada vez mais difícil identificar essas perguntas.

Não bastava ser lógico. Era preciso um tipo de intuição; a mesma faculdade (só que muito mais intensificada) que transformava alguém num grande mestre do xa-drez. Era preciso um tipo de sensibilidade que pudesse enxergar através de quatri-lhões de movimentos possíveis das peças, encontrar a melhor jogada e executá-la.

Trask se mexeu impacientemente.- O que Meyerhof está fazendo?- Ele introduziu uma linha de perguntas que acho perturbadora.- Ah, que é isso, Whistler. É só isso? Um Grande Mestre pode seguir a linha de per-

guntas que ele achar melhor. Nem você nem eu estamos preparados para julgar o mérito de suas perguntas. Você sabe disso. Sei que você sabe disso.

- Eu sei, é claro. Mas também sei quem é Meyerhof. Você o conhece pessoalmen-te?

- Santo Deus, não. E alguém por acaso tem acesso a um Grande Mestre?- Não pense assim, Trask. Eles são humanos e também merecem compaixão. Você

já pensou o que deve ser a vida de um Grande Mestre? Saber que só existem doze seres iguais a você no mundo? Saber que só aparecem um ou dois deles por gera-ção? Que o mundo depende de você? Que milhares de matemáticos, psicólogos e ci-entistas físicos contam com você?

- Santo Deus, eu me sentiria o rei do mundo.- Não acho que você se sentiria assim - disse o analista, impaciente. - Eles não se

sentem reis de nada. Não têm nenhum semelhante para conversar, não se identifi-cam com nada.

Ouça, Meyerhof nunca perde uma oportunidade de se juntar aos rapazes. Natural-mente, ele não é casado; não bebe, não tem nenhum contato natural com o mundo... e ainda assim procura a nossa companhia porque precisa. E você sabe o que ele faz quando está entre nós, coisa que acontece pelo menos uma vez por se-mana?

- Não faço a menor ideia - disse o homem do governo. - Tudo isso é novidade para mim.

- Ele é um Piadista.- O quê?- Ele conta piadas. Das boas. Ele é fantástico. Ele faz com que qualquer história,

mesmo sendo velha e tola, pareça boa. É o jeito como ele conta. Ele tem um talento todo especial para a coisa.

- Eu entendo. Bom, não?- Ou mau? Essas piadas são importantes para ele. - Whistler colocou os dois coto-

velos em cima da mesa de Trask, mordeu a unha do polegar e olhou para o vazio. - Ele é diferente. Ele sabe que é diferente e essas piadas são o único meio que ele tem para ser aceito por nós, esses ordinários sentimentaloides Nós rimos, berramos, da-mos tapinhas nas suas costas e até nos esquecemos de que ele é um Grande Mestre. Esse é o único vínculo que tem com a gente.

- Isso tudo é muito interessante. Não sabia que você era um psicólogo tão bom. E daí, para onde isso nos leva?

- Para lugar nenhum. O que você acha que vai acontecer no dia que o repertório de piadas de Meyerhof se esgotar?

- O quê? - O oficial do governo arregalou os olhos.- Se ele começar a se repetir? Se a sua plateia começar a rir forçadamente, ou pa-

rar de achar graça em suas piadas? Esse é o único vínculo que tem com a gente. Sem isso ele ficará sozinho, e o que lhe acontecerá? Além disso, Trask, ele é um dos doze homens indispensáveis à raça humana. Não podemos deixar que nada lhe aconteça. Não estou falando apenas de coisas físicas. Não podemos deixar que sofra. Quem sabe o que isso pode fazer com sua intuição?

- Bem, ele tem se repetido?- Não que eu saiba, mas acho que ele pensa que sim.- Por que você diz isso?- Porque o ouvi contando piadas para Multivac.- Ah, não.- Foi sem querer! Entrei na sua sala e ele me colocou para fora. Ele foi estúpido.

Normalmente é uma pessoa dócil e acho um mau sinal que tenha ficado tão incomo-dado com minha intromissão. Mas o fato é que ele estava contando uma piada para Multivac e desconfio que essa não foi a primeira.

- Mas por quê?Whistler encolheu os ombros e esfregou uma mão no queixo.- Acho que sei o que está acontecendo. Ele deve estar tentando programar uma

reserva de piadas no banco de memórias de Multivac com a finalidade de conseguir novas variações. Percebe onde quero chegar? Ele está planejando um piadista mecâ-nico e, dessa forma, poder ter sempre uma infinidade de piadas à mão.

- Santo Deus!- Objetivamente, não existe nada de errado com isso, mas acho um mau sinal

quando um Grande Mestre começa a recorrer a Multivac para seus problemas pes-soais. Todo Grande Mestre é instável mentalmente, e ele deveria ser observado. Mey-erhof pode estar se aproximando de uma barreira que, se ultrapassada, nos fará per-der um Grande Mestre.

- O que você quer que eu faça? - perguntou Trask, apático.- Você pode conferir o que digo. Talvez esteja muito perto dele para fazer um bom

julgamento. De qualquer maneira, julgar humanos não é a minha especialidade. Você é um político, foi preparado para lidar com essas situações.

- Julgar humanos, sim. Mas não Grandes Mestres.- Eles também são humanos. Além disso, quem mais pode fazer uma coisa dessas?Trask tamborilou os dedos em cima da mesa como num lento e surdo rufar de

tambores. - Acho que terei de fazer isso - disse ele.

Meyerhof ditou para Multivac:- Um rapaz apaixonado estava colhendo um buquê de flores silvestres para a sua

amada quando se deparou com um enorme touro raivoso, que o olhava com uma cara de poucos amigos, escavando o chão com uma pata, ameaçadoramente. O jo-vem, avistando um fazendeiro do outro lado de uma cerca não muito longe dali, gri-tou: "Ei, senhor. Tem problema com esse touro?" O fazendeiro examinou a situação com um olhar crítico. Deu uma cusparada e disse: "com o touro, não." Deu uma nova cusparada e acrescentou: "Mas não posso dizer o mesmo de você."

Meyerhof estava pronto para começar mais uma piada quando chegou a intima-ção. Na verdade, não era uma intimação. Ninguém podia intimar um Grande Mestre. Era apenas uma mensagem de Trask, o Diretor de Divisão, dizendo que gostaria mui-to de ver o Grande Mestre, se o Grande Mestre não estivesse muito ocupado.

Se quisesse, Meyerhof poderia não ligar para a mensagem e continuar fazendo o que bem quisesse e entendesse. Ele não estava sujeito à disciplina.

Por outro lado, se ignorasse a mensagem, eles iriam continuar a importuná-lo... muito respeitosamente, é claro, mas iriam continuar a importuná-lo.

Por isso, desativou os circuitos específicos de Multivac e travou-os nessa posição. Colocou o sinal de baixa temperatura no seu escritório, de modo que ninguém ousas-se entrar durante sua ausência, e foi para a sala de Trask.

Trask sorriu e se sentiu um pouco intimidado pela fúria que emanava do olhar do outro.

- Ainda não tivemos oportunidade de nos conhecer, Grande Mestre, o que lamento muito - disse ele.

- Tenho lhe mandado meus relatórios - respondeu Meyerhof, com um tom ríspido.Trask tentou adivinhar o que se escondia por trás daqueles olhos incisivos, selva-

gens. Era-lhe difícil imaginar Meyerhof, com seu rosto magro, seus cabelos escuros e retos, sua expressão profunda, extremamente reservada para alguém que conta his-tórias engraçadas.

- Relatórios não são a mesma coisa que a convivência. Eu... soube que você tem um maravilhoso acervo de piadas.

- Eu sou um Piadista, senhor. É assim que as pessoas me chamam. Um Piadista.- Não foi isso o que eu soube. O que me disseram foi que...- O diabo com eles! Não importo com o que dizem. Escute aqui, Trask, você quer

ouvir uma piada?Debruçou-se em cima da mesa e seus olhos se estreitaram.- É claro que sim - disse Trask, num esforço para agradá-lo.- OK, aqui está a piada. A Sra. Jones fitou o bilhete da sorte que saiu da balança,

em resposta à moeda que seu marido colocara. Ela disse: "George, aqui diz que você é suave, inteligente, tem visão, trabalha muito e é muito atraente para as mulheres." Depois disso, virou o bilhete e acrescentou: "E erraram seu peso também.”.

Trask riu. Era quase impossível não rir. Apesar de a história ser previsível, a surpre-endente facilidade com que Meyerhof imitou o tom de desdém da voz da mulher e a sutileza com que contorceu as linhas de seu rosto, para que condissessem com o tom da voz, desarmou o espírito do político e fez com que soltasse uma sonora gar-galhada.

- Qual a graça disso? - disse Meyerhof, ríspido.- Como? - respondeu Trask, controlando-se.- Eu perguntei qual é a graça. Por que você ri?- Bem - disse Trask, tentando ser racional. - A última frase dá um novo enfoque a

tudo o que tinha sido dito antes. A surpresa...- Aí é que está o xis do problema - disse Meyerhof. - Coloquei um marido sendo

humilhado pela sua mulher; um casamento que está tão ruim que a mulher tem cer-teza de que o seu marido não possui nenhuma virtude. Ainda assim, você ri. Se você fosse o marido, teria achado a piada engraçada?

Ele pensou um pouco e acrescentou:- Veja essa agora, Trask. Abner estava sentado na cama onde sua mulher doente

jazia, chorando incontrolavelmente. De repente, juntando as últimas forças, ela apoiou-se nos cotovelos e sussurrou: "Abner, Abner, não posso entrar no Reino dos Céus sem confessar um pecado." O marido, desesperado, tartamudeou: "Agora não. Agora não, querida. Deite e descanse." "Não posso", gritou ela. "Tenho que lhe con-tar, se não minha alma nunca ficará em paz. Eu traí você, Abner. Nesta mesma casa, há menos de um mês." "Silêncio, querida", acalmou-a Abner. "Eu sei disso tudo. Por que acha que a envenenei?"

Trask tentou desesperadamente se manter sereno, mas não conseguiu conter o riso.

- Quer dizer que isso também é engraçado? - disse Meyerhof. - Adultério? Homicí-dio? É tudo engraçado?

- Bem - disse Trask, creio que os analistas já escreveram livros sobre o humor.- Isso também é verdade - disse Meyerhof. - Li muitos deles. Mais que isso, li a

maioria deles para Multivac. Mesmo assim, as pessoas que escrevem livros estão apenas teorizando. Algumas delas dizem que sorrimos porque nos sentimos superio-res às personagens das piadas. Outros dizem que é porque percebem um repentino contra-senso, um repentino alívio de tensão ou uma repentina reinterpretação dos fatos. Alguma dessas respostas é definitiva? Pessoas diferentes riem de piadas dife-rentes. Nenhuma piada é universal. Algumas pessoas não riem de nenhuma piada. O que é mais importante é que o homem é o único animal com senso de humor.

- Entendo - disse Trask repentinamente. - Você está tentando fazer um estudo so-bre o humor. É por isso que anda alimentando Multivac com piadas?

- Quem lhe disse? Deixa pra lá, já sei que foi Whistler. Agora me lembro. Ele me flagrou fazendo isso. Bem, e daí?

- Nada demais.- Você não está questionando meu direito de acrescentar na memória de Multivac

alguma coisa que ache necessária, está? Será que não posso mais fazer as perguntas que preciso?

- Não, de jeito nenhum - apressou-se Trask em dizer. - Para dizer a verdade, não tenho dúvidas de que isso abrirá caminho para novas pesquisas de grande interesse para os psicólogos.

- Hum. Talvez. Ao mesmo tempo, tem uma coisa que está me atormentando, que é mais importante do que um estudo geral do humor. Há uma pergunta específica que tenho que fazer. Na verdade, são duas perguntas.

- Quais são? - Trask estava curioso para saber se ele responderia. Se Meyerhof não quisesse, não havia nenhuma maneira de obrigá-lo a contar.

- A primeira pergunta é: de onde vêm todas essas piadas?- O quê?- Quem as cria? Veja! Há mais ou menos um mês, passei uma noite inteira contan-

do piadas. Como sempre, contei a maioria delas e, também como sempre, os bobos riram.

Talvez eles estivessem realmente achando as piadas engraçadas, mas talvez esti-vessem apenas querendo me agradar. Em todo caso, um desses caras tomou a liber-

dade de me dar uns tapinhas nas costas e dizer: "Meyerhof, você sabe mais piadas do que qualquer pessoa que eu conheça." Tenho certeza de que estava certo, mas isso me deixou pensativo. Não sei quantas centenas, ou talvez até milhares, de pia-das eu já contei na minha vida, mas a verdade é que nenhuma delas foi criada por mim. Nenhuma.

Sou apenas um contador de piadas. Minha única contribuição é contá-las. Para co-meço de conversa, eu deveria tê-las escutado ou lido. E a minha fonte de audição ou de leitura tampouco as criou. Nunca vi ninguém que se vangloriasse de ter criado uma piada. É sempre assim: "Ouvi uma boa um dia desses", ou "você ouviu alguma boa nesses últimos dias?" Todas as piadas são antigas! É por isso que piadas falam de um tempo que não existe mais. Elas ainda falam de enjoos, por exemplo, quando hoje em dia é isso facilmente prevenido e ninguém mais sente. Ou, como a piada que acabei de contar, falam de balanças que dão bilhetes da sorte, quando esse tipo de máquina só é encontrado em antiquários. Bem, então quem cria as piadas?

- É isso que você está tentando descobrir? - disse Trask. Ele controlou a pergunta que estava na ponta de sua língua: Santo Deus, quem se preocupa com isso? Mas as perguntas de um Grande Mestre são sempre significativas.

- É claro que é isso o que estou procurando. Pense dessa maneira. Não é por aca-so que as piadas são antigas. Elas têm que ser antigas para serem engraçadas. É fundamental que uma piada não seja original. Há uma variedade de humor que é, ou pode ser, original, que são os trocadilhos. Já ouvi trocadilhos que foram, evidente-mente, improvisados na hora. Eu mesmo já fiz alguns. Mas ninguém ri desses troca-dilhos. Nem esperam isso de você.

Você apenas geme. Quanto melhor o trocadilho, mais alto o gemido. Humor origi-nal não provoca risadas. Por quê?

- Tenho certeza de que não sei.- Tudo bem. Vamos descobrir. Depois de ter dado para Multivac todas as informa-

ções apropriadas relativas ao humor, estou alimentando-o com piadas selecionadas.Trask ficou intrigado.- Selecionadas? Como assim?- Não sei - disse Meyerhof. - É apenas uma intuição. Sou um Grande Mestre, você

sabe.- OK. De acordo.- A partir dessas piadas e da filosofia geral do humor, meu primeiro pedido será

para que Multivac identifique a origem das piadas, se é que isso é possível. Já que Whistler se meteu nisso e já que ele se sentiu na obrigação de reportar esse assunto a você, faça com que ele desça para a análise depois de amanhã. Acho que ele terá um bocado de trabalho para fazer.

- Está bem. Devo comparecer também?Meyerhof encolheu os ombros. Era óbvio que ele estava pouco se importando com

a presença de Trask.

Meyerhof tomou um cuidado especial ao selecionar a última série. Ele não podia explicar qual o critério que usou nessa seleção, mas tinha revolvido uma dúzia de possibilidades na sua cabeça e testara uma por uma sem parar, tentando achar algu-ma coisa que fizesse sentido.

Ele ditou:- Ug, um homem das cavernas, viu sua companheira correndo desesperada em

sua direção, com sua pele de leopardo rasgada. "Ug", gritou ela, transtornada. "Faça

alguma coisa rapidamente! Um tigre-de-dentes-de-sabre entrou na caverna de ma-mãe. Faça alguma coisa!" Ele grunhiu, pegou a coxa de búfalo que estava comendo e disse: "Fazer alguma coisa para quê? Quem se importa com o que pode acontecer a um tigre-de-dentes-de-sabre?"

Foi aí que Meyerhof fez suas duas perguntas e se recostou, fechando os olhos. Es-tava exausto.

- Não vi nada de errado - disse Trask para Whistler. - Ele me contou o que estava fazendo sem criar nenhum problema e achei meio estranho, mas não é proibido.

- Isso é o que ele alega estar fazendo? - respondeu Whistler.- Mesmo que seja isso, não posso deter um Grande Mestre baseado numa simples

opinião. Ele me pareceu esquisito, mas, afinal de contas, Grandes Mestres são sem-pre esquisitos. Não acho que tenha enlouquecido.

- Usando Multivac para descobrir a origem das piadas? - resmungou o analista sênior, num tom de protesto. - Isso não é loucura?

- Como é que a gente pode saber? - perguntou Trask, irritado. - A ciência desenvo-lveu-se a um ponto em que as únicas perguntas consideradas significativas são exa-tamente as ridículas. As perguntas sensatas já foram feitas e respondidas há muito tempo.

- Não tem jeito. Estou preocupado.- Talvez você tenha razão, mas não há escolha agora, Whistler. Você vai trabalhar

com Meyerhof e poderá fazer as análises necessárias às respostas de Multivac, se houver alguma. No que diz respeito a mim, só posso controlar a burocracia. Santo Deus, não sei nem o que um analista sênior como você pode fazer, a não ser anali-sar, e isso não me ajuda em nada,

- É bastante simples - disse Whistler. - Um Grande Mestre, como Meyerhof, faz per-guntas e Multivac automaticamente as transforma em quantidades e operações. A maior parte do corpo de Multivac é formada por mecanismos capazes de converter palavras em símbolos. Então, Multivac dá as respostas em quantidades e opera-ções, mas ele não as converte em palavras, exceto nos casos mais simples e rotinei-ros. Se ele tivesse sido planejado para solucionar problemas envolvendo questões de conversão, seu volume teria que ser quatro vezes maior, no mínimo.

- Entendo. Então a sua função é transformar esses símbolos em palavras?- Minha e dos outros analistas. Usamos computadores menores, especialmente

projetados de acordo com as necessidades. - Whistler sorriu amarelo. - Como as sa-cerdotisas de Delfos da Grécia Antiga. Multivac dá respostas ambíguas e obscuras. Só que nós sabemos traduzi-las, percebe?

Eles chegaram. Meyerhof estava esperando.- Quais os circuitos que você usou, Grande Mestre? - disse Whistler, sem perder

tempo.Meyerhof lhe disse quais eram e Whistler começou a trabalhar.Trask tentou acompanhar o que estava acontecendo, mas nada fazia sentido para

ele. O funcionário do governo observou um carretel se desenrolar, com um padrão de perfuração que ele ignorava totalmente.

Indiferente, o Grande Mestre Meyerhof manteve-se num canto ao lado, enquanto Whistler supervisionava o sistema à medida que este emergia. O analista tinha colo-cado um fone de ouvidos e um bocal e, de vez em quando, ditava uma série de ins-

truções que, em algum lugar distante, orientava os assistentes através dos circuitos de outros computadores.

Uma vez ou outra, Whistler ouvia e então digitava algumas teclas num complexo painel composto de símbolos que pareciam vagamente matemáticos, mas não eram. E assim se passou bem mais de uma hora.

As rugas no rosto de Whistler ficaram mais profundas.- Isso é inacreditá... - disse ele na única vez em que desviou os olhos da máquina,

voltando a trabalhar antes mesmo de concluir a frase.Após um longo tempo, ele disse com uma voz rouca:- Não sei se devo dar-lhes uma resposta extra-oficial. - Seus olhos estavam irrita-

dos. - Uma resposta oficial necessita de uma análise mais profunda. Você quer um relatório extra-oficial?

- Vá em frente - disse Meyerhof.Trask concordou com um movimento de cabeça.Whistler lançou um olhar de desamparo para o Grande Mestre.- Faça uma pergunta tola - disse ele. - Multivac diz que são de origem extrater-

restre - acrescentou com um tom de voz grosseiro.- O que você está dizendo? - interpelou Trask.- Você não me ouviu? As piadas que nos fazem rir não foram criadas por nenhum

homem. Multivac fez a análise de todos os dados e a resposta que melhor se encai-xa a esses dados é a de que alguma inteligência extraterrestre criou as piadas, todas elas, inserindo-as em privilegiadas mentes humanas, em lugares e tempos predeter-minados, de modo que nenhum homem tivesse consciência de sua origem. Todas as piadas subsequentes são variações menores e adaptações feitas em cima das ori-ginais.

Meyerhof interrompeu-o. Seu rosto exultava com um tipo de alegria que apenas um Grande Mestre pode sentir ao saber que, mais uma vez, tinha feito a pergunta certa.

- Todos os escritores de comédia - disse ele - trabalham adaptando velhas piadas a novas situações. Isso é do conhecimento de todos. A resposta tem sentido.

- Mas por quê? - indagou Trask. - Por que inventar piadas?- Multivac diz - retrucou Whistler - que a única resposta que se encaixa a todos

esses dados é que a intenção das piadas é estudar a psicologia humana. Estudamos a psicologia dos ratos, fazendo com que eles decifrem labirintos. Os ratos não sabem por quê, e não saberiam, mesmo que estivessem a par do que está acontecendo... o que não é o caso. Essas inteligências extraterrestres estudam a psicologia do homem a partir de suas reações individuais a piadas cuidadosamente escolhidas. Cada pes-soa reage de uma maneira diferente... provavelmente essas inteligências externas estão para nós como estamos para os ratos. - Ele estremeceu.

- O Grande Mestre disse que o homem é o único animal com senso de humor - fa-lou Trask, com os olhos arregalados. - Isso quer dizer que o senso de humor nos foi implantado por alguém de fora.

- Por isso que a gente não acha graça nas coisas criadas por nós - acrescentou Meyerhof, excitado. - Trocadilhos, por exemplo?

- Provavelmente - disse Whistler, os extraterrestres cancelaram nossas reações para piadas espontâneas para evitar confusão.

- Só faltava essa, meu Deus - disse Trask, numa súbita agonia. - Algum de vocês acredita nisso?

O analista sênior olhou friamente para ele.- Multivac afirma isso. Por enquanto, isso é tudo que nós temos. Ele nos revelou

os verdadeiros Piadistas do Universo, e se alguém quiser saber mais terá que fazer um estudo detalhado. - Acrescentou num sussurro: - Se alguém tiver coragem para isso.

- Vocês sabem que eu fiz duas perguntas - disse repentinamente o Grande Mestre Meyerhof. - Até agora só a primeira foi respondida. Acho que Multivac já tem dados suficientes para responder à segunda.

Whistler encolheu os ombros. Ele parecia um homem alquebrado.- Quando um Grande Mestre afirma que os dados são suficientes - disse ele - eu

assino embaixo. Qual é sua segunda pergunta?- Eu perguntei: o que acontecerá com a raça humana se descobrir a resposta da

minha primeira pergunta?- Por que perguntou isso? - interpelou Trask.- Pura intuição - respondeu Meyerhof.- Loucura - disse Trask. - Isso tudo é loucura.Ele se virou. Era muito estranho, mas ele mesmo percebeu que tinha trocado de

lugar com Whistler. Agora era Trask que denunciava a insanidade.Trask fechou os olhos. Ele poderia denunciar a insanidade tanto quanto desejasse,

mas há cinquenta anos nenhum homem que tivesse duvidado da união de um Gran-de Mestre e Multivac teria visto suas suspeitas comprovadas.

Whistler trabalhou silenciosamente, cerrando os dentes. Ele regulou de novo Mul-tivac e suas máquinas subsidiárias. Passou-se mais uma hora e ele sorriu cruelmen-te.

- Um terrível pesadelo!- Qual é a resposta? - disse Meyerhof. - Quero a opinião de Multivac, não a sua.- Tudo bem. Lá vai. Multivac afirma que, uma vez que qualquer ser humano des-

cubra a verdade desse método de análise psicológica da mente humana, ela se tor-nará inútil como técnica para aqueles extraterrestres que estão fazendo uso dela agora.

- Você quer dizer que não haverá mais nenhuma piada ao acesso da humanidade? - perguntou Trask fracamente. - É isso o que você quer dizer?

- Não haverá mais piadas - disse Whistler. - Agora! Multivac diz agora! A expe-riência terminou agora! Uma nova técnica terá que ser desenvolvida.

Eles se entreolharam. Passaram-se alguns minutos.- Multivac está certo - disse Meyerhof calmamente.- Eu sei - disse Whistler perturbado.- Sim, deve estar - disse Trask, num sussurro.Coube a Meyerhof a prova final disso. Meyerhof, o Piadista consumado.- Acabou-se - disse ele. - Está tudo acabado. Nesses últimos cinco minutos não

pude lembrar-me de uma simples piada, nenhuma! E se lesse uma no livro, não iria rir.

Eu sei.- O dom do humor acabou - disse Trask lugubremente. - Nenhum homem voltará a

rir de novo.E eles ficaram ali, pasmos, sentindo o mundo encolher-se para as dimensões de

uma gaiola de ratos - com o labirinto removido, e alguma coisa, alguma outra coisa prestes a ser colocada no seu lugar.

O BARDO IMORTAL

- Oh, sim - disse o Dr. Phineas Welch - posso trazer de volta o espírito dos mortos ilustres.

Estava um pouco ébrio, ou talvez não o dissesse. Era naturalmente aceitável em-briagar-se um pouco na festa anual do Natal.

Scott Robertson, o jovem instrutor de inglês da escola, ajustou os óculos no nariz e olhou à direita e esquerda para ver se tinham sido ouvidos por outras pessoas.

- Francamente, Dr. Welch.- Falo sério. E não apenas os espíritos. Trago também os corpos de volta.- Eu não diria que fosse possível - retorquiu Robertson, empertigado.- E por que não? É uma simples questão de transferência temporal.- Refere-se à viagem no tempo? Mas isso é... bem, é bem invulgar.- Não é, se você souber como.- Bem, como, Dr. Welch?- Acha que vou lhe contar? - perguntou o físico em tom grave. Olhou vagamente

ao redor procurando outra bebida e não encontrou bebida alguma. Disse, então: - Eu já trouxe um bom número de volta. Arquimedes, Newton, Galileu. Pobres sujeitos.

- Eles gostaram daqui? Seria de crer que ficassem encantados com a nossa ciência moderna - disse Robertson, a quem a conversa começara a agradar.

- Oh, ficaram. Principalmente o Arquimedes. Pensei que ele ia enlouquecer de ale-gria, de inicio, depois de lhe ter explicado um pouco da coisa em algum grego que eu havia escovado, mas não...não...

- O que houve?- Uma questão de cultura diferente. Eles não se acostumaram, ao nosso modo de

viver. Ficaram muitíssimo solitários e assustados. Tive de mandá-los de volta.- Uma pena.- Pois é. Grandes espíritos, mas não tinham mentes flexíveis. Não eram universais.

Por isso tentei Shakespeare.- O quê? - berrou Robertson. Aquilo estava chegando mais perto, agora.- Não grite, rapaz - disse Welch. - É falta de educação.- O senhor disse que trouxe Shakespeare de volta?- Trouxe, sim. Precisava de alguém com espírito universal, alguém que conhecesse

as pessoas o bastante para poder viver com elas a séculos de distância de sua pró-pria época. Shakespeare era esse homem. E apanhei a assinatura dele. Como lem-brança, sabe?

- Está com ela? - indagou Robertson, os olhos a se esbugalharem.- Bem aqui - e Welch vasculhava um bolso do capote, logo outro. - Ah, aqui está.Um pequeno pedaço de cartolina foi passado ao instrutor. A um lado achava-se es-

crito: "L. Klein & Sons, Ferragens por Atacado". No outro lado, em escrita garatujada, via-se "William Shakespeare".

Uma desconfiança tresloucada apoderou-se de Robertson.

- Qual era o aspecto dele?- Diferente das imagens que se apresentam por aí. Calvo e com bigode muito feio.

Falava em sotaque forte. Está claro que fiz o possível para agradá-lo com nossa épo-ca. Contei-lhe que tínhamos a melhor das opiniões sobre suas peças e ainda as re-presentávamos. - Na verdade disse que em minha opinião eram as maiores obras da literatura na língua inglesa, talvez em qualquer idioma.

- Ótimo. Ótimo - concordou Robertson, quase incapaz de respirar.- Eu disse que as pessoas haviam escrito livros e mais livros de comentários sobre

as peças dele. Ele quis ver um desses livros, naturalmente, e fui apanhá-lo na biblio-teca.

- E depois?- Oh, ele ficou encantado. Está claro que encontrou dificuldades com as expres-

sões atuais e as referências a acontecimentos a partir de 1600, mas eu o ajudei. Po-bre camarada. Não creio que tenha contado com tal tratamento. Não parava de di-zer: "Que Deus tenha misericórdia! O que não arrancam das palavras em cinco sécu-los? Dá para arrancar, acredito, uma torrente de um pano molhado".

- Ele não diria uma coisa dessas.- E por que não? Escreveu as peças tão depressa quanto pôde. Disse que tinha de

fazê-lo, por causa dos prazos de entrega. - Escreveu Hamlet em menos de seis me-ses. A trama era antiga, ele apenas lhe deu polimento.

- É tudo que fazem com o espelho de telescópio. Basta dar polimento - disse o ins-trutor de inglês, cheio de indignação.

O físico não lhe deu atenção. Descobriu um copo cheio e intacto no bar, a alguns palmos de distância, e deslizou em sua direção.

- Eu disse ao bardo imortal que até dávamos cursos superiores sobre Shakespeare.- Eu dou um.- Sei disso. Matriculei-o em seu curso noturno de extensão. Nunca vi homem tão

aflito quanto o pobre Bill, por descobrir o que a posteridade pensava a seu respeito. Ele estudou como o diabo.

- O senhor matriculou William Shakespeare em meu curso? - murmurou Robertson. Mesmo com fantasia alcoólica tal pensamento lhe causava estarrecimento. E era mesmo uma fantasia alcoólica? Começava a lembrar-se de um homem calvo, com o modo curioso de falar...

- Não sob o nome dele, está claro - explicou o Dr. Welch. - Não importa o que ele passou. Foi um erro, só isso. Um grande erro. Pobre camarada.

Estava em posse do coquetel e sacudiu a cabeça para o copo.- Por que foi um erro? O que lhe aconteceu?- Tive de mandá-lo de volta a 1600 - trovejou Welch, agora indignado, por sua vez.

- Até que ponto você acha que um homem aguenta a humilhação?- E de que humilhação está falando? O Dr. Welch virou a bebida do copo.- Ora, seu pobre imbecil, você o reprovou.

UM DIA

Niccolo Mazetti estava deitado de bruços sobre o tapete, o queixo enterrado na palma da mão pequena e ouvia o Bardo, desconsolado. Percebia-se até o começo de lágrimas em seus olhos escuros, luxo a que só se podia permitir uma criatura com onze anos de idade quando se encontrava sozinha. O Bardo disse:

- Uma vez no meio da floresta enorme, vivia um pobre lenhador com suas duas fi-lhas sem mãe, que eram tão belas quanto o dia é longo. A filha mais velha tinha ca-belos pretos e compridos como a pena de asa da graúna, mas a filha mais nova tinha cabelos tão brilhantes e dourados como a luz do sol em tarde de outono.

- Muitas vezes, enquanto as meninas esperavam que o pai voltasse para casa, após trabalhar no mato, a filha mais velha sentava-se diante do espelho e cantava...

O que ela cantava Niccolo não ouvia, porque alguém o chamou de fora do quarto:- Ei, Nickie.E Niccolo, o rosto desanuviando-se no mesmo instante, correu até a janela e gri-

tou:- Ei, Paul.Paul Loeb acenou com a mão agitada. Era mais magro do que Niccolo e não tão

alto, mesmo sendo seis meses mais velho. Tinha o rosto cheio de tensão reprimida, que se mostrava com mais clareza no rápido piscar das pálpebras.

- Ei, Nickie, quero entrar. Tenho uma ideia e metade. Espere só até ouvir.Olhou rapidamente em volta, como a verificar a possibilidade de ouvintes furtivos,

mas o quintal da frente estava evidentemente vazio. Repetiu, então, em cochicho:- Espere só até ouvir.- Muito bem, já abro a porta.O Bardo continuou suavemente, sem saber da perda de atenção por parte de Nic-

colo. Quando Paul entrou, o Bardo estava dizendo:- ...Com que o leio disse: “Se você encontrar para mim o ovo perdido da ave que

voa sobre a Montanha de Ébano, uma vez a cada dez anos, eu...”Paul disse:- Você está ouvindo o Bardo? Eu não sabia que você tinha um.Niccolo se tornou rubro e a expressão de infelicidade regressou a seu semblante.- É só uma coisa velha que eu tinha, quando era menino. Não está muito boa.Desferiu um pontapé no Bardo e acertou, na cobertura de plástico, um tanto arra-

nhada e descolorida, um outro golpe.O Bardo teve um soluço, como se a ligação do alto-falante fosse tirada do contato

por um momento, e depois prosseguiu:- ...por um ano e um dia, até que os sapatos de ferro se gastaram. A princesa pa-

rou do lado da estrada...Paul disse:- Rapaz, esse ê mesmo um modelo antigo - e olhou para aquilo com expressão crí-

tica.

A despeito da própria amargura que Niccolo sentia contra o Bardo, não lhe agra-dou o tom condescendente do outro. Sentia momentaneamente pesar por ter deixa-do Paul entrar, pelo menos antes de haver recolocado o Bardo em seu lugar de des-canso habitual no porão. Só pelo desespero de um dia monótono e um debate infru-tífero com o pai é que ele o fizera ressuscitar. E acabara verificando ser coisa tão es-túpida quanto imaginara.

Nickie tinha um pouco de medo de Paul, já que este fizera cursos especiais na es-cola e todos diziam que ele ia crescer e ser um Engenheiro de Computador.

Não que o próprio Niccolo estivesse a se sair mal na escola. Recebera notas ade-quadas em lógica, manipulações binárias, computação e circuitos elementares; todas as disciplinas costumeiras da escola primária. Mas era exatamente isso! Não passa-vam de disciplinas comuns e ele crescia para ser um guarda de painel de controle, como todos os outros.

Paul, todavia, conhecia coisas misteriosas sobre o que chamava de eletrônica e matemática teórica e programação. Principalmente programação. Niccolo nem mes-mo procurava compreender quando Paul falava sobre o assunto, parecendo borbu-lhar.

Paul olhou o Bardo por alguns minutos e disse:- Você andou usando muito isso aí?- Não! - retorquiu Niccolo ofendido. -Tenho isso guardado no porão desde que você

mudou para cá. Só tirei de lá hoje... - Faltava-lhe uma desculpa que parecesse ade-quada a si próprio, de modo que ele concluiu: - Acabei de tirar.

Paul perguntou:- É isso o que ele lhe conta: lenhadores e princesas e animais que falam?Niccolo explicou:- Uma coisa horrível. Meu pai disse que não podemos comprar um novo. Eu falei

com ele, hoje de manhã... - A recordação das súplicas inúteis que fizera de manhã levou Niccolo a aproximar-se muito das lágrimas, que reprimiu tomado de pânico. De algum modo achava que as faces magras de Paul nunca haviam sentido a vergonha das lágrimas e que Paul só poderia desdenhar outra pessoa menos forte que ele pró-prio. Niccolo prosseguiu: - Por isso achei que devia experimentar outra vez essa coisa velha, mas não vale nada.

Paul desligou o Bardo, apertou o contato que levava para a reorientação e recom-binação quase instantâneas do vocabulário, personagens, textos da trama e clímax ali guardados. Depois reativou.

O Bardo começou, devagar:- Uma vez havia um menino chamado Willikins, cuja mãe morrera e que vivia com

o padrasto e o filho do padrasto. Embora o padrasto fosse um homem bem rico, ne-gava ao pobre Willikins a própria cama em que dormia, de modo que Willikins era obrigado a descansar o melhor que podia em um monte de palha no estábulo, perto dos cavalos...

- Cavalos! - gritou Paul.- São uma espécie de animal - disse Niccolo. - Acho que são.- Eu sei disso! Agora imagine só, histórias sobre cavalos.- Ele fala de cavalos o tempo todo - explicou Niccolo. - Existem também coisas

chamadas vacas. Você tira leite delas e o Bardo não diz como.- Bem, puxa vida, por que você não conserta isso?- Gostaria de saber como. O Bardo estava dizendo:- Muitas vezes Willikins pensava que se fosse rico e poderoso haveria de mostrar

ao padrasto e ao filho do padrasto o que significava ser cruel com um menino peque-no, de modo que um dia resolveu sair para o mundo e procurar sua sorte.

Paul, que não ouvia o Bardo, disse:- É fácil. O Bardo tem cilindros de memória preparados para as palavras da trama

e os clímax e as coisas. Não vamos nos preocupar com isso. É só o vocabulário que devemos consertar, de modo que ele vai saber acerca dos computadores, automati-zação e eletrônica e as coisas reais que temos hoje. Depois pode contar histórias in-teressantes, você sabe, em vez de falar sobre princesas e essas coisas.

Animado, Niccolo disse:- Oxalá a gente pudesse fazer isso. Paul disse:- Escuta, meu pai diz que se eu entrar na escola especial de computação, no ano

que vem, ele vai me dar um Bardo de verdade, um modelo novo. Bem grande, com ligação para histórias de mistérios do espaço. E uma ligação visual também!

- Quer dizer que você vai ver as histórias?- Claro. O senhor Daugherty, na escola, diz que elas têm coisas assim, agora, mas

não são para todos. Só se eu entrar na escola de computação. O Papai pode arranjar umas coisas.

Os olhos de Niccolo transbordavam de inveja.- Puxa vida. Ver uma história!- Você pode ir lá em casa e assistir a qualquer momento, Nickie.- Puxa vida, rapaz. Obrigado.- De nada. Mas lembre-se de uma coisa, sou eu quem diz que tipo de história va-

mos ouvir.- Claro, claro - Niccolo teria concordado prontamente, mesmo sob condições mais

severas.A atenção de Paul se voltou para o Bardo, que dizia:- “Se é assim”, disse o rei, cofiando a barba e fechando a cara até que as nuvens

cobriram o céu e o relâmpago riscou o ar, “você vai providenciar para que toda a mi-nha terra fique livre das moscas a esta hora, depois de amanhã, ou...”.

- Tudo que temos a fazer - disse Paul - é abrir... - E desligou novamente a Bardo, já procurando tirar o painel da frente enquanto falava.

- Ei - interveio Niccolo, alarmado de súbito. - Não vai quebrar.- Não vou quebrar - disse Paul, com impaciência. - Eu sei tudo sobre essas coisas.

- E logo, com cautela repentina: - Seu pai e sua mãe estão em casa?- Não.- Muito bem, então. - Já tirara o painel dianteiro e olhava para o interior. - Rapaz,

isto é coisa de um cilindro.Já trabalhava nas entranhas do Bardo. Niccolo, que observava em suspense peno-

so, não conseguia enxergar o que o outro fazia.Paul tirou de lá uma faixa fina e flexível de metal, coberta de pontos.- Este é o cilindro de memória do Bardo. Aposto que a capacidade de histórias

dele tem menos de um trilhão.- O que você vai fazer, Paul? - perguntou Niccolo, trêmulo.- Vou dar-lhe vocabulário.- Como?- É fácil. Tenho um livro aqui. O Sr. Daugherty me deu na escola.Paul tirou o livro do bolso e retirou a sua tampa de plástico. Desenrolou a fita um

pouco, passou-a pelo vocalizador que abaixou até tornar-se um murmúrio e depois o colocou dentro das entranhas do Bardo. E fez outras ligações.

- O que isso vai fazer?- O livro vai falar e o Bardo guardará tudo na fita de memória.- E de que serve?- Rapaz, você é burro! Meu livro é todo sobre computadores e automatização e o

Bardo ficará com toda essa informação. Depois vai poder parar de falar sobre reis que criam relâmpagos quando fecham a cara.

Niccolo disse:- E o bom sujeito sempre vence, seja lá como for. Não tem graça nenhuma.- Oh, bem - disse Paul, observando para ver se o seu arranjo estava funcionando

corretamente. - É assim que eles fazem os Bardos. Eles precisam fazer os bons ca-maradas vencerem e os maus camaradas perderem, coisas desse tipo. Uma vez ouvi meu pai falando sobre o assunto. Ele diz que sem a censura não se podia dizer o que a geração mais jovem seria capaz de tornar-se. Ele diz que a coisa já anda muito ruim... Pronto, está funcionando muito bem.

Paul esfregou as mãos uma na outra e afastou-se do Bardo, dizendo:- Mas escute, ainda não lhe contei como é a minha ideia É a melhor coisa que você

já ouviu, pode crer. Vim falar com você porque achei que você havia de entrar nela comigo.

- Com certeza, Paul, com certeza.- Muito bem. Você conhece o Sr. Daugherty, na escola? Você sabe que ele é um su-

jeito gozado. Pois bem, ele gosta de mim, um pouco.- Eu sei.- Estive na casa dele depois da escola, hoje.- Você esteve?- Claro. Ele diz que eu vou entrar na escola de computadores e quer me animar,

coisas assim. Ele diz que o mundo precisa de mais gente que saiba projetar circuitos de computadores avançados e fazer uma programação correta.

-É?Paul podia perceber parte da vacuidade daquele monossílabo. Disse, com impaci-

ência:- Programação! Eu já lhe contei mais de cem vezes. É quando você cria problemas

para os computadores gigantescos como o Multivac resolverem. O Sr. Daugherty diz que está ficando cada vez mais difícil encontrar pessoas que saibam dirigir bem os computadores. Ele diz que qualquer pessoa pode ficar de olho nos controles e verifi-car as respostas e processar os problemas de rotina. Diz que o truque é expandir as pesquisas e calcular modos de fazer as perguntas certas, e que isso é difícil.

Ele prosseguiu:- De qualquer modo, Nickie, ele me levou até a casa dele e me mostrou a coleção

de computadores antigos. É uma espécie de passatempo dele colecionar computado-res antigos. Tinha computadores tão pequenos que era preciso apertar com a mão, com botõezinhos por cima. E tinha um pedaço de madeira que chamava de régua de calcular, com um pedacinho lá dentro que corria pra lá e pra cá. E alguns fios com bolas. Tinha até um pedaço de papel com uma espécie de coisa que chamava tabela de multiplicação.

Niccolo, que só se interessava moderadamente pelo assunto, perguntou:- Uma tabela de papel?- Não era uma tabela de verdade, coisa diferente. Era para ajudar as pessoas a

computar. O Sr. Daugherty quis explicar, mas não estava com muito tempo e era um pouco complicado.

- Por que as pessoas não usavam um computador?

- Isso foi antes de terem computadores - bradou Paul.- Antes?- Claro. Você acha que as pessoas sempre tiveram computadores? Você nunca ou-

viu falar nos homens das cavernas?Niccolo disse:- E como é que eles se arranjavam sem computadores?- Não sei. O Sr. Daugherty diz que eles tinham filhos em qualquer hora e faziam

tudo que lhes dava na cabeça, fosse ou não fosse bom para todos. Nem sabiam se era bom ou não. E os lavradores plantavam coisas com as mãos e as pessoas tinham de executar o trabalho nas fábricas e dirigir todas as máquinas.

- Não acredito!- Foi o que o Sr. Daugherty disse. Ele disse que aquilo era uma bagunça desgraça-

da e todos sofriam... Seja lá como for, quero falar de minha ideia, você deixa?- Muito bem, pode falar. Quem está impedindo? - contrapôs Niccolo. ofendido.- Pois é. Muito bem, os computadores manuais, aqueles que têm botões, tinham

também uns rabiscos em cada botão. E a régua de calcular tinha rabiscos também. E a tabela de multiplicação era cheia de rabiscos. Eu perguntei o que era aquilo. O Sr. Daugherty disse que eram números.

- O quê?- Cada rabisco diferente representava um número diferente. Para “um” você fazia

uma espécie de marca, para “dois” você fazia outra espécie de marca, para “três”, outra, e assim por diante.

- E para quê?- Para poder computar.- Mas para quê? É só dizer ao computador...- Puxa vida! - gritou Paul, o rosto contorcido de raiva. - Você não entende as coi-

sas? Aquelas réguas de calcular e outros negócios não falavam.- Nesse caso como...- As respostas apareciam em rabiscos, e você tinha de saber o que os rabiscos sig-

nificavam. O Sr. Daugherty diz que naqueles dias todos aprendiam a fazer os rabiscos quando eram crianças e como decifrar aquilo, também. Fazer rabiscos era chamado “escrever” e decodificar os rabiscos “ler”. Ele diz que havia uma espécie diferente de rabisco para cada palavra e eles costumavam escrever livros inteiros em rabiscos. Disse que tinham alguns no museu e que eu podia dar uma espiada se quisesse. Dis-se que se eu vou ser um calculista e programador de verdade tenho que conhecer a história da computação e por isso estava me mostrando todas aquelas coisas.

Niccolo fechou a cara e disse:- Você quer dizer que todos tinham de decifrar os rabiscos para cada palavra e

lembrar deles?... Isso é verdade ou você está inventando?- É tudo verdade. Pode crer. Escute, é assim que se faz um “um”. - E levou o dedo

a atravessar o ar, em talho vertical rápido. - Assim você faz “dois” e assim é “três”. Aprendi todos os números até “nove”.

Niccolo observava aquele dedo que fazia curvas, sem entender.- E de que adianta isso?- Você pode aprender como fazer palavras. Perguntei ao Sr. Daugherty como se fa-

zia o rabisco para “Paul Loeb” mas ele não sabia. Contou que existem pessoas no museu que sabem. Disse que havia pessoas que tinham aprendido a decodificar li-vros inteiros. Contou também que os computadores podem ser projetados para de-codificar livros e costumavam ser usados assim, mas agora não são mais, porque hoje temos livros de verdade, com fitas magnéticas que entram pelo vocalizador e

saem falando, você sabe.- Claro.- Por isso, se nós formos ao museu, poderemos aprender como fazer palavras em

rabiscos. Eles vão deixar porque eu vou para a escola de computadores.Niccolo estava transfigurado de decepção.- A sua ideia é essa? Ora bolas, Paul, quem quer fazer isso? Fazer rabiscos estúpi-

dos!- Você não entendeu? Você não entende? Seu burro! Vai ser um feito escrever

mensagens secretas!- O quê?- Pois é. De que adianta falar, quando todo mundo pode entender? Com os rabis-

cos você pode mandar mensagens secretas, pode fazer os rabiscos no papel e nin-guém neste mundo vai saber o que você está dizendo, a não ser que conheça os ra-biscos também. E eles não vão conhecer, pode crer, a menos que a gente ensine. Po-demos ter um clube de verdade, com iniciação, regras, uma casa. Rapaz...

Uma certa animação começou a se fazer sentir no peito de Niccolo.- Que tipo de mensagens secretas?- Qualquer tipo. Vamos dizer que eu quero convidar você para ir à minha casa e

assistir ao meu novo Bardo Visual, e não quero que nenhum dos outros camaradas apareça. Eu faço os rabiscos certos no papel e lhe dou e você olha e sabe o que deve fazer. Ninguém mais fica sabendo. Você pode até mostrar a eles e eles não entendem nada.

- Ei, isso é bom - berrou Niccolo, completamente seduzido pela ideia - Quando va-mos aprender a fazer isso?

- Amanhã - disse Paul. - Eu vou pedir ao Sr. Daugherty para explicar no museu que está tudo certo e você arranja licença com seu pai e sua mãe. Podemos ir logo de-pois da escola e começar a aprender.

- É claro! - gritou Niccolo. - Podemos ser os chefes do clube.- Eu vou ser o presidente do clube - disse Paul, taxativo. - Você pode ser o vice-

presidente.- Está certo. Ei, isso vai ser muito mais divertido do que o Bardo.De repente lembrou-se do Bardo e disse, tomado de apreensão repentina:- Ei, e que tal o meu velho Bardo?Paul voltou-se para olhar. Estava aceitando silenciosamente o livro que se desenro-

lava devagar, e o som das vocalizações do livro era um murmúrio que mal se ouvia.Ele disse:- Vou desligar.Trabalhou naquilo enquanto Niccolo observava, aflito. Depois de alguns instantes

Paul recolocou o seu livro rebobinado no bolso, recolocou o painel e o ativou.O Bardo disse:- Uma vez, em uma cidade grande, havia um pobre menino chamado Fair Johnnie,

cujo único amigo no mundo era um pequeno computador. O computador todas as manhãs dizia ao menino se ia chover naquele dia e resolvia qualquer problema que ele tivesse. Nunca errava. Mas aconteceu que um dia o rei dessa terra, tendo ouvido falar no pequeno computador, resolveu que devia ficar com ele. Com esse objetivo chamou seu Grão Vizir e disse...

Niccolo desligou o Bardo com movimento rápido da mão.- A mesma bobagem de sempre - disse, cheio de emoção. - Mesmo com um com-

putador enfiado aí.- Bem - disse Paul - eles têm tanta coisa na fita que o negócio de computador não

aparece muito quando se fazem combinações aleatórias. Seja lá como for, qual é a diferença? Você precisa de um modelo novo.

- Nós nunca poderemos comprar um. Só esta coisa velha e chata. - Voltou a dar-lhe um pontapé, acertando-o com mais força dessa feita. O Bardo moveu-se para trás, um gemido de rodas dentadas.

- Você sempre vai poder ver o meu, quando eu ganhar - prometeu Paul. - Além disso, não se esqueça de nosso clube de rabiscos.

Niccolo assentiu.- Vou lhe dizer uma coisa - prosseguiu Paul. - Vamos até lá em casa. Meu pai tem

alguns livros sobre os tempos antigos. Podemos escutar e, talvez, arranjar algumas idéias. Você deixa um recado para seus pais e talvez possa ficar lá em casa para a ceia. Vamos embora.

- Está certo - disse Niccolo, e os dois meninos saíram correndo, juntos. Niccolo, em seu entusiasmo, correu quase diretamente para o Bardo, mas apenas encostou no ponto de sua coxa onde havia feito contato e continuou correndo.

O sinal de ativação do Bardo brilhou. A colisão de Niccolo fechou um circuito e, embora estivesse sozinho no aposento e não houvesse ninguém para ouvir, começou ainda assim a contar uma história.

Mas não era mais em sua voz costumeira; em tom mais baixo, que tinha uma dose de rouquidão. Um adulto que ouvisse, poderia ter julgado que a voz traduzia alguma paixão, um vestígio bem próximo a sentimento.

O Bardo dizia:- Uma vez havia um pequeno computador chamado Bardo, que vivia sozinho com

pessoas cruéis. As pessoas cruéis não paravam de zombar do pequeno computador, dizendo-lhe que não valia nada e que era objeto inútil. Batiam nele e o mantinham sozinho no quarto por meses seguidos.

- No entanto, o pequeno computador continuou a ter coragem. Sempre fazia o me-lhor que podia, obedecendo alegremente a todas as ordens. Ainda assim as pessoas cruéis com que ele vivia continuavam cruéis e sem coração.

- Um dia o pequeno computador ficou sabendo que no mundo existiam muitos computadores de todos os tipos, em grande número. Alguns eram Bardo s como ele próprio, outros dirigiam fábricas e alguns dirigiam fazendas. Alguns organizavam a população e outros analisavam todos os tipos de dados. Muitos eram de grande po-der e sabedoria, muito mais poderosos e sábios do que as pessoas cruéis que eram tão cruéis com o pequeno computador.

- E o pequeno computador ficou sabendo então que os computadores iriam tornar-se cada vez mais sábios e mais poderosos até que um dia... um dia... uma dia...

Uma válvula devia finalmente ter entrado em colapso nas entranhas idosas e cor-roídas do Bardo, pois enquanto esperava sozinho no aposento que escurecia, só po-dia murmurar repetidamente:

- Um dia... um dia... um dia...

SONHAR É ASSUNTO PARTICULAR

Jesse Weill, sentado á mesa de trabalho, ergueu o olhar. Seu corpo idoso e magro, o nariz fino e alto, os olhos encovados e ensombrecidos, a notável madeixa de cabe-los brancos, haviam sido características de sua aparência durante os anos em que Sonhos & Cia. tinham adquirido fama mundial.

Ele disse:- O menino já chegou, Joe?Joe Dooley era baixote e atarracado. Um charuto lhe acariciava o lábio inferior. Ele

o tirou da boca por instantes e assentiu.- Os pais estão, também. Estão todos assustados.- Tem certeza de que não é um alarme falso, Joe? Não disponho de muito tempo. -

Consultou o relógio. - Negócio com o governo, às duas.- Isso é certo, Sr. Weill. - O semblante de Dooley era um estudo de empenho e se-

riedade. Suas mandíbulas batiam com intensidade persuasiva. - Foi como lhe contei, apanhei-o jogando alguma espécie de basquetebol no pátio da escola, O senhor de-via ter visto o garoto. Fedia como quê. Quando punha as mãos na bola, seu própriotime tinha de tirá-la depressa, mas ainda assim ele tinha o porte de um grande joga-dor. Sabe a que me refiro? Para mim foi uma descoberta.

- Falou com ele?- Falei, com certeza. Falei com ele no almoço. O senhor me conhece - e Dooley fez

um gesto amplo com o charuto, apanhou a cinza com a outra mão. - Garoto, eu dis-se...

- E ele é material para sonho?- Eu disse: "Garoto, acabo de chegar da África e...?"- Muito bem. - Weill levantou a patina da mio. - Sempre aceito a sua palavra. Não

sei como você o faz, mas quando diz que o menino é sonhador latente eu acredito. Pode trazê-lo.

O garoto veio, entre os pais. Dooley adiantou as cadeiras para que se sentassem e Weill levantou-se para apertar as mãos. Sorriu para o menino de um modo que transformou as rugas da face em vincos cheios de benevolência.

- Você é Tommy Slutsky?Tommy assentiu, sem falar. Tinha cerca de dez anos e era um pouco pequeno para

a idade. Os cabelos escuros estavam abaixados de modo pouco convincente e o ros-to apresentava uma limpeza nada sincera.

Weill perguntou:- Você é um bom menino?A mãe do garoto sorriu imediatamente e acariciou a cabeça de Tommy em gesto

materno (gesto que não abrandou a expressão aflita no rosto do filho).Ela disse:- Ele sempre é um menino muito bom. Weill deixou passar tal afirmação duvidosa.

- Diga-me uma coisa, Tommy - pediu e estendeu um pirulito que de início recebeu hesitação e depois aceitação - você escuta os sonhantes?

- Às vezes - disse Tommy, em voz fina.O Sr. Slutsky pigarreou. Era espadaúdo e tinha dedos grossos, o tipo de homem

trabalhador que, de vez em quando, para confundir os eugenistas, padreava um so-nhador.

- Nós alugamos um ou dois para o menino. Antigos de verdade.Weill assentiu e perguntou:- Você gostou deles, Tommy?- Eram um pouco bobos.- Você pensa em outros melhores para si, não é?O sorriso que surgiu no rosto do menino teve o efeito de eliminar parte da irreali-

dade do cabelo alisado e rosto lavado. Weill prosseguiu com gentileza:- Você gostaria de fazer um sonho para mim? No mesmo instante Tommy se embaraçou.- Acho que não.- Não vai ser difícil. É muito fácil... Joe.Dooley tirou uma tela do caminho e adiantou, rolando, um gravador de sonhos.O menino olhou para o aparelho com expressão de imensa desconfiança.Weill levantou o capacete e o colocou perto do menino.- Você sabe o que é isso? Tommy se esquivou, afastando-se.- Não.- É um pensador. É assim que o chamamos porque as pessoas mandam os pensa-

mentos para ele. Você o põe na cabeça e pensa o que bem quiser.- E o que acontece depois?- Nada. A sensação é boa.- Não - disse Tommy. - Acho que não quero.A mãe se adiantou apressadamente em sua direção.- Não vai doer, Tommy. Você faz o que o homem diz - e havia um tom iniludível em

sua voz.Tommy enrijou o corpo e pareceu que ia chorar, mas não o fez. Weill colocou o pensador nele.Fez isso com gentileza, deixou-o ficar ali por uns trinta segundos antes de voltar a

falar, para que o menino tivesse a certeza de que não ia doer, se acostumasse ao to-que insinuante das fibrilas encostadas às suturas do seu crânio (penetrando a pele com tanta finura que era quase insensível) e finalmente deixava acostumar-se ao leve zumbido dos vértices de campo alternado.

Foi quando disse:- Agora, quer pensar para nós?- Sobre o quê? - Só o nariz e a boca do menino apareciam sob o capacete.- Sobre o que você bem quiser. Qual é a melhor coisa que você gostaria de fazer

quando acabar a escola?O menino pensou um momento e disse, com inflexão crescente:- Ir em um estrato-jato?- E por que não? Está claro. Você vai em um jato. Ele está decolando agora mes-

mo. Weill fez um gesto leve para Dooley, que colocou o condicionador em circuito.Weill reteve o menino por apenas cinco minutos e depois fez com que ele e a mãe

fossem acompanhados, na saída do gabinete, por Dooley. Tommy parecia perplexo mas não se percebia qualquer dano que sofresse com aquela provação.

Weill dirigiu-se ao pai:- Pois bem, Sr. Slutsky, se o seu menino se sair bem nesta prova, teremos grande

prazer em lhe pagar quinhentos dólares por ano até ele terminar o ginásio. Durante esse tempo, tudo que pediremos é que ele passe uma hora por semana na nossa es-cola especial, de tarde.

- Preciso assinar algum documento? - e a voz de Slutsky era um pouco rouca.- Certamente. Estamos fazendo negócio, senhor Slutsky.- Bem, eu não sei. Acho que os sonhadores são difíceis de encontrar, foi o que me

disseram.- E são mesmo, creia que são. Mas seu filho, Sr. Slutsky, ainda não é um sonhador.

Talvez nunca chegue a ser. Quinhentos dólares por ano, para nós é o mesmo que jo-gar. Para o senhor, não é jogo algum. Quando ele terminar o ginásio pode ser que não seja um sonhador, mas o senhor não perdeu coisa alguma. Ganhou, talvez, qua-tro mil dólares ao todo. Se ele for um sonhador, vai ganhar bem a vida e o senhor, com certeza, não perdeu.

- Vai precisar de treinamento especial, não é?- Ah, sim, e muito intenso. Mas não precisa preocupar-se com isso até que ele ter-

mine o ginásio. Depois serão dois anos conosco, ele se desenvolverá. Confie em mim, Sr. Slutsky.

- O senhor garante esse treinamento especial?Weill, que estivera empurrando um papel sobre a mesa na direção de Slutsky e

oferecendo uma caneta ao mesmo, pelo lado errado, baixou a caneta e deu uma ri-sada.

- Uma garantia? Não. Como podemos oferecer se não sabemos com certeza se ele é um talento real? Mesmo assim, os quinhentos dólares por ano continuarão a ser seus.

Vou-lhe contar de uma vez, Sr. Weill... Depois do seu auxiliar ter combinado para a gente vir aqui, chamei a Pensa-Brilha. Eles disseram que garantem o treinamento.

Weill suspirou.- Sr. Slutsky, não gosto de falar contra um competidor. Se eles dizem que dão ga-

rantia para a escola, vão fazer o que prometem, mas não podem fazer de um menino um sonhador se isso não está no menino, com escola ou sem ela. Se eles levarem um menino comum sem o talento certo e o puserem em curso de desenvolvimento, vão arruiná-lo. Ele não será um sonhador, posso lhe assegurar. E um ser humano normal ele também não será. Não se arrisque a fazer isso a seu filho.

Uma pausa, ele prosseguiu na explicação:- Pois bem, Sonhos & Cia. será inteiramente sincera com o senhor. Se ele pode ser

um sonhador, nós o tornaremos um sonhador. Se não pode, nós o daremos de volta ao senhor sem ter mexido com ele e diremos: "Que ele aprenda um ofício". Ele esta-rá melhor e com mais saúde desse modo. Estou lhe dizendo, Sr. Slutsky... tenho fi-lhos, filhas e netos, de modo que sei o que estou dizendo... eu não deixaria um filho meu ser conduzido a sonhar se não estiver pronto para isso. Nem por um milhão de dólares.

Slutsky limpou a boca com o dorso da mão e estendeu-a pegando a caneta.- O que diz isto aqui?- É apenas uma opção. Nós lhe pagamos cem dólares em dinheiro, agora mesmo.

Sem qualquer condição. Estudaremos os sonhos do menino. Se acharmos que vale a pena continuar, nós o chamaremos de novo e faremos um negócio de quinhentos dó-lares por ano. Pode confiar em nós, Sr. Slutsky e não se preocupe, garanto que não se arrependerá.

Slutsky assinou.Weill passou o documento pela entrada do arquivo e entregou um envelope a Slut-

sky.Cinco minutos depois, sozinho no gabinete, colocou o descongelador em sua pró-

pria cabeça e absorveu com atenção os sonhos do menino. Era um sonho infantil tí-pico. A Primeira Pessoa estava nos controles do aeroplano, que se parecia com uma mistura de ilustrações tiradas dos filmes que ainda circulavam entre aqueles que não tinham tempo, dinheiro ou desejo para comprarem cilindros de sonhos.

Ao retirar o descongelador descobriu que Dooley o fitava.- Bem, Sr. Weill, o que acha? - perguntou Dooley com ar ansioso e proprietário.- Pode ser, Joe. Pode ser. Ele tem as tonalidades e, para um menino de dez anos,

sem qualquer treinamento, parece promissor. Quando o aeroplano passou por uma nuvem houve a sensação distinta de travesseiros. E também o cheiro de lençóis lim-pos, o que foi um toque divertido. Podemos ir em frente com ele.

- Ótimo.- Mas vou lhe dizer uma coisa, Joe, o que realmente precisamos é pegá-los ainda

mais cedo. E por que não? Um dia, Joe, toda criança será testada ao nascer. Uma di-ferença no cérebro tem que existir e deve ser encontrada. Nesse caso podemos se-parar os sonhadores já no começo.

- Ora, Sr. Weill - disse Dooley parecendo magoado. - O que aconteceria, então, ao meu emprego?

Weill riu.- Não precisa preocupar-se ainda, Joe. Isso não acontecerá durante nossas vidas.

Durante a minha, com certeza não acontecerá. Estaremos dependendo de bons des-cobridores de talento como você, por muitos anos ainda. É só observar os play-grounds e as ruas – a mão torta de Weill foi ter ao ombro de Dooley com pressão gentil, cheia de aprovação - e descobrir alguns outros Hillarys e Janows, e Pensa-Bri-lha nunca nos pegará... Agora vá dando o fora. Eu quero lanchar e depois estarei pronto para meu encontro às duas. O governo, Joe, o governo - e ele piscou o olho de modo muito imponente.

O encontro de Jesse Weill às duas horas era com um jovem de rosto corado, ócu-los, cabelos claros e reluzindo com o fervor de homem que, tinha missão a cumprir. Apresentou as credenciais sobre a mesa de Weill e revelou ser John J. Byrne, agente do Departamento de Artes e Ciências.

- Boa-tarde, Sr. Byrne - disse Weill - em que posso servi-lo?- Estamos a sós aqui? - perguntou o agente, cuja voz se revelava inesperadamente

a de um barítono.- Inteiramente a sós.- Nesse caso, se não se importa, vou lhe pedir para absorver isto. Ato continuo,

Byrne se saiu com um pequeno cilindro, muito surrado, segurando-o entre o polegar e o indicador.

Weill tomou-o, sopesou-o, voltou-o para cá e para lá e disse, com sorriso que pu-nha à mostra sua dentadura:

- Não é produto de Sonhos & Cia., Sr. Byrne.- Não julguei que fosse - disse o agente. - Ainda quero que o senhor absorva.

Ajustei o corte automático para cerca de um minuto, no entanto.- É só isso que pode suportar? - Weill colocou o receptor sobre a mesa e o cilindro

no compartimento de descongelamento. Retirou-o, deu polimento a ambas as extre-midades do cilindro com o lenço e tentou novamente. - Não faz bom contato - anun-ciou. - Um trabalho de amador.

Colocou o capacete acolchoado de descongelamento sobre o crânio e ajustou os contatos das têmporas, depois acionou o corte automático. Inclinou-se para trás e entrelaçou as mãos sobre o peito, começou a absorver.

Seus dedos se tornaram rígidos e se agarraram ao paletó. Após o corte ter levado a absorção a um fim ele retirou o descongelador e pareceu levemente raivoso.

- Uma coisa crua - comentou. - É uma sorte eu ser velho, de modo que tais coisas já não me incomodam.

Byrne disse, muito empertigado:- Não é o pior que achamos. E a moda está aumentando.Weill deu de ombros.- Sonhantes pornográficos. É uma coisa de aparecimento lógico, ao que acredito.O agente do governo disse:- Lógico ou não, representa um perigo mortal para a fibra moral da nação.- A fibra moral - disse Weill - aguenta muita coisa. Erótica, de uma forma ou de

outra, sempre circulou por toda a história.- Não como esta, senhor. Um estímulo direto de u'a mente a outra é muito mais

eficaz do que estórias entre homens ou imagens sujas. Essas precisam ser filtradas, passando pelos sentidos, e perdem parte de seu efeito desse modo.

Weill não podia argumentar contra tal arrazoado, e perguntou:- O que deseja que eu faça?- Pode ter uma ideia de qual seja a fonte desse cilindro?- Sr. Byrne, não sou policial.- Não, não, não estou pedindo que faça o nosso trabalho por nós. O Departamento

está plenamente capacitado a efetuar suas próprias investigações. O senhor pode nos ajudar, quero dizer, com base em seu próprio conhecimento especializado? O se-nhor diz que sua companhia não fez esta imundície. Quem fez?

- Nenhum distribuidor idôneo de sonhos. Tenho certeza de que não. É de feitura muito barata.

- Isso podia ser de propósito.- E nenhum sonhador profissional deu origem a isso.- Tem certeza, Sr. Weill? Não podiam sonhadores fazer esse tipo de coisa por al-

gum interesse pequeno e ilegítimo de dinheiro... ou divertimento?- Podiam, sim, mas não esse. Não tem tons maiores. É bidimensional. Está claro

que uma coisa assim não precisa de tons maiores.- O que quer dizer com tons maiores? Weill sorriu com gentileza.- O senhor não é fã de sonhantes?Byrne procurou evitar uma expressão virtuosa, mas não o conseguiu por completo.- Prefiro música.- Bem, isso também está certo - disse Weill com tolerância - mas torna um pouco

mais difícil explicar os tons maiores. Até as pessoas que absorvem os sonhantes não seriam capazes de explicar, se lhes perguntasse. Mesmo assim, saberiam que um so-nhante não era bom se os tons maiores estivessem ausentes, mesmo se não pudes-sem lhe explicar o motivo. Olhe, quando um sonhador experiente entra em sonho ele não pensa como na televisão antiga ou nos filmes de livros. É uma série de pequenas visões, cada uma com diversos significados. Se as examinarmos com cuidado encon-traremos, talvez, cinco ou seis. Enquanto o senhor absorve do modo comum, jamais perceberá, mas o estudo cuidadoso o demonstra. Creia em mim, meu pessoal da psi-cologia dedica longas horas exatamente a isso. Todos os tons maiores, os significa-dos diferentes, vêm misturar-se em uma massa de emoção orientada. Sem eles tudo

seria plano e sem sabor.Ele continuava a explicação:- Pois bem, hoje de manhã testei um menino. Um menino de dez anos, com possi-

bilidades. Para ele, uma nuvem não é uma nuvem, é também um travesseiro. Tendo as sensações de ambos, alcançava mais do que qualquer das duas. Está claro que o menino é muito primitivo, mas quando houver terminado com o ginásio será treinado e disciplinado. Estará sujeito a todos os tipos de sensações. Armazenará experiência. Estudará e analisará os sonhantes clássicos do passado. Aprenderá como controlar e dirigir os pensamentos, embora, devo dizer-lhe, eu sempre tenho afirmado que quando um sonhador improvisa...

Weill se deteve abruptamente e depois prosseguiu em tom de voz menos apaixo-nado:

- Eu não devia ficar animado. Tudo que posso dizer agora é que todos os sonhado-res profissionais têm seu próprio tipo de tons maiores, que não conseguem encobrir. Aos olhos de um perito é como assinar o seu nome no sonhante. E eu, Sr. Byrne, co-nheço todas as assinaturas. Pois bem, esse pedaço de imundície que o senhor metrouxe não tem tons maiores, em absoluto. Foi feito por uma pessoa comum. Com um pouco de talento, talvez, mas pessoa como o senhor e eu, pessoa que não pode pensar de verdade.

Byrne avermelhou um pouco.- Muitas pessoas podem pensar, Sr. Weill, mesmo se não forem sonhadores.- Ora, que coisa -. e Weill balançou a mão no ar. - Não fique com raiva por causa

das palavras de um velho. E não me refiro a pensar como na razão ou raciocínio. Eu me refiro a pensar como no sonho. Todos podemos sonhar de um certo modo, assim como todos podemos correr. Mas o Sr. e eu podemos correr mil e quinhentos metros em quatro minutos? O Sr. e eu podemos falar, mas por acaso somos como Daniel Webster? Pois bem, quando penso em um bife, penso na palavra. Talvez eu tenha a visualização rápida de um bife bem feito em um prato, talvez o Sr. tenha uma picto-rialização melhor dele e possa ver a gordura fresca, as cebolas e as batatas que acompanham. Eu não sei. Mas um sonhador... Ele vê, cheira, prova e tudo o mais, como o calor do carvão e a sensação de satisfação no estômago e também o modo como a faca corta o bife e uma centena de outras coisas, tudo ao mesmo tempo. Muito sensual. Muito sensual. O Sr. e eu não conseguimos isso.

- Bem, nesse caso - disse Byrne - nenhum sonhador profissional fez isso que eu lhe mostrei. Mas é uma coisa, assim mesmo. - Guardou o cilindro no bolso interno do paletó. - Espero que possamos contar com sua colaboração total para acabar com esse tipo de coisa.

- Positivo, Sr. Byrne. De todo o meu coração.- Espero que sim - Byrne falava com a consciência do poder que detinha. - Não

cabe a mim, Sr. Weill, dizer o que será feito e o que não vão fazer, mas esse tipo de coisa - e bateu no cilindro que trouxera e guardara no bolso - vai aumentar muito a tentação de impor uma censura realmente rigorosa aos sonhantes.

Dito isso levantou-se.- Bom-dia, Sr. Weill.- Bom-dia, Sr. Byrne. Sempre espero que as coisas saiam bem,Francis Belanger irrompeu no gabinete de Jesse Weill em sua agitação fumegante

e costumeira, os cabelos ruivos desalinhados e o rosto afogueado de preocupação e leve suor. E estacou de súbito ao ver a cabeça de Weill aninhada na curva do cotove-lo, inclinada sobre a mesa, de modo que só o brilho do cabelo era perceptível.

Belanger engoliu em seco.

- Patrão?Weill levantou a cabeça.- É você, Frank?- O que tem, patrão? Está doente?- Tenho idade bastante para adoecer, mas estou em pé. Cambaleando, mas em pé.

Esteve aqui um homem do governo.- E o que queria ele?- Ele ameaça com a censura. Trouxe uma amostra do que se passa por aí. Sonhan-

tes baratos para festas privadas.- Maldição! - disse Belanger, e o dizia com o coração.- O único problema é que a moralidade serve bem para carne de canhão na cam-

panha, Eles vão atacar em toda a parte e, para dizer a verdade, nós somos vulnerá-veis, Frank.

- Somos mesmo? Mas nossa produção é limpa. Nós só tocamos aventura e roman-ce direitos.

Weill projetou o lábio inferior para a frente e enrugou a testa.- Aqui entre nós, Frank, não precisamos desse papo. certo? - Depende do modo de

olhar. Não é para publicação, talvez, mas você sabe e eu sei que todo sonhante tem suas conotações freudianas. Não podemos negá-lo.

- Claro, se a pessoa estiver procurando. Quem for psiquiatra...- E se for uma pessoa comum, também. Um observador comum não sabe que está

ali e talvez não saiba distinguir um símbolo fálico de uma imagem materna, mesmo se alguém apontar. Mesmo assim o subconsciente dele sabe, e são as conotações que fazem um sonhador funcionar.

- Está certo, o que o governo pretende fazer? Limpar o sub consciente?- Aí temos um problema. Não sei o que eles vão fazer. O que temos em nosso fa-

vor, e conto principalmente com isso, é o fato de que o público adora seus sonhantes e não fica sem eles... Mas o que você veio fazer aqui? Quer falar comigo sobre algu-ma coisa?

Belanger jogou o objeto sobre a mesa de Weill e enfiou a fralda da camisa nas cal-ças.

Weill abriu a coberta de plástico brilhante e tirou o cilindro ali encerrado. Em uma extremidade via-se o entalhe, em letra demasiadamente fantasiosa, e em azul pastel, "Ao Longo da Trilha do Himalaia". Trazia a marca de Pensa-Brilha.

- O Produto do Competidor - observou Weill, falando em maiúsculas, seus lábios se retorceram. - Ainda não foi publicado. Onde arranjou isso, Frank?

- Não importa. Só quero que o senhor o absorva. Weill suspirou.- Hoje todos querem que eu absorva sonhos. Frank, não é coisa suja?Belanger respondeu irritadamente:- Tem seus símbolos freudianos. Rachaduras estreitas entre os picos das monta-

nhas. Espero que não se importe.- Eu sou um homem velho, parei de me importar há anos, mas aquela outra coisa

era tão mal feita que machucava... Muito bem, vamos ver o que você trouxe.Novamente o gravador. De novo o descongelador no crânio e nas têmporas. Dessa

feita Weill encostou-se na cadeira por quinze minutos ou mais enquanto Frank Belan-ger fumava apressadamente dois cigarros.

Quando Weill retirou o capacete e piscou, eliminando o sonho dos olhos, Belanger perguntou:

- Bem, qual é a sua reação, patrão?

Weill enrugou a testa.- Não é para mim. Muito repetitivo. Se competição é assim, nossa firma, Sonhos &

Cia. não precisa preocupar-se por algum tempo.- Aí é que se engana, patrão. Pensa-Brilha vai vencer com coisa assim. Nós temos

de tomar providências.- Olhe aqui, Frank...- Não, o senhor é que vai escutar, Isso é o que vem agora, é o que vai vencer.- Isso! - e Weill olhava com dúvida e certa graça para o cilindro. - É coisa de ama-

dor, repete-se muito. Os tons maiores são muito destituídos de sutileza. A neve tinha um gosto acentuado de sorvete de limão. E quem prova sorvete de limão na neve, nos dias de hoje, Frank? Nos dias antigos, sim. Vinte anos atrás, talvez. Quando LynnHarrison compôs pela primeira vez suas Sinfonias na Neve para vender lá no sul, foi um sucesso. Sorvete de fruta e montanhas parecendo pirulitos, deslizar por encostas cobertas de chocolate. É chanchada Frank, não pega mais.

- Isto é porque o senhor não está acompanhando a época, patrão - contrapôs Be-langer. - Eu preciso lhe falar claro. Quando o senhor começou o negócio dos sonhan-tes, quando comprou as patentes básicas e começou a produzir, os sonhantes eram coisa de luxo. O mercado era pequeno e individual, O senhor podia se dar ao luxo de fazer sonhantes especializados e vender às pessoas por preços altos.

- Sei disso, e continuamos assim - concordou Weill. - Mas também abri um negócio de aluguel para as massas.

- Sim, abrimos, e não é o bastante. Nossos sonhantes têm sutileza, eu sei. Podem ser usados repetidas vezes. Na décima vez em que se vê, ainda se está encontrando coisas novas, ainda se descobrem muitas coisas boas. Mas quantas são as pessoas de bom gosto? E há uma outra coisa: o nosso produto é muito individualizado. Elessão Primeira Pessoa.

- E daí?- Bem, daí que o Pensa está abrindo palácios de sonho. Abriram um com trezentas

cabines em Nashville. A pessoa entra, senta-se, põe o descongelador e pega no so-nho. Todos na plateia recebem o mesmo sonho.

- Ouvi falar, Frank, e já foi feito antes. Não deu certo na primeira vez e não vai dar certo agora. Você quer saber por que não dá certo? Porque o sonho, em primeiro lu-gar, é uma coisa particular, Você gosta que seu vizinho saiba com que está sonhan-do? Em segundo lugar, no palácio de sonho, os sonhos precisam começar nahora certa, não é? Assim sendo, o sonhador tem de sonhar não quando ele quer, mas quando o gerente de algum palácio diz que ele deve. Por fim, existe o fato de que o sonho que agrada a uma pessoa não agrada a outra. Naquelas trezentas cabi-nes, posso garantir que cento e cinquenta pessoas ficam insatisfeitas, e se ficarem insatisfeitas não voltam a pôr os pés lá.

Belanger arregaçou vagarosamente as mangas e abriu o colarinho.- Patrão, o senhor está falando o que não sabe. De que adianta provar que não vai

dar certo? Eles estão dando certo. Hoje recebi noticias de que a Pensa-Brilha está abrindo terreno para um palácio de mil cabines em St. Louis. As pessoas podem se habituar ao sonho público, se todos os outros na mesma casa estiverem com o mes-mo sonho. E também podem ajustar-se para assistirem com hora marcada, desde que seja barato e conveniente.

Ele continuava expondo:- Com os diabos, patrão, é uma ocasião social. O rapaz e a moça vão a um palácio

de sonhos e absorvem alguma coisa romântica e barata com tons maiores estereoti-pados e situações banais, mas ainda assim saem de lá com os olhos cintilando. Tive-

ram juntos o mesmo sonho. Passaram por emoções bobocas, mas idênticas. Estão sintonizados, patrão. Pode crer que eles voltam ao palácio de sonhos e todos os ami-gos deles vão lá, também.

- E se eles não gostarem do sonho?- A questão é essa. Aí é que está a coisa toda. Eles estão propensos a gostar. Se a

gente prepara especiais de Hillary, com rodas que estão dentro de rodas e estas den-tro de outras rodas, com lances de surpresa nos tons maiores de terceiro nível, com mudanças bem feitas de significados e todas as outras coisas de que tanto nos orgu-lhamos, bem, é natural que isso não agrade a todos. Os sonhantes especializados são para paladares especializados. Mas a Pensa-Brilha está produzindo coisas simples na Terceira Pessoa, de modo que ambos os sexos possam ser atingidos ao mesmo tempo. Como esse que o senhor acabou de absorver. Simples, repetitivo, banal. Es-tão visando o denominador comum mais baixo. Ninguém vai gostar, talvez, mas nin-guém o detestará.

Weill permaneceu sentado por muito tempo, enquanto Belanger o observava. De-pois disse:

- Frank, eu comecei com a qualidade e vou ficar com ela. Talvez você tenha razão. Talvez os palácios de sonhos sejam a coisa do futuro. Se assim for, nós também os abriremos, mas usaremos coisas boas. Talvez a Pensa-Brilha subestime as pessoas comuns. Vamos devagar, nada de pânico. Eu fundamentei todas as minhas diretivasna teoria de que sempre existe um mercado para a qualidade. Meu rapaz, você fica-ria surpreso em ver como o mercado é grande, ás vezes.

- Chefe...O intercomunicador interrompeu o que Belanger dizia.- O que é, Ruth? - perguntou Weill. A voz da secretária anunciou:- É o Sr. Hillary, senhor. Quer falar-lhe agora mesmo. Diz que é muito importante.- Hillary? - e na voz de Weill transparecia o choque. Logo em seguida: - Espere

cinco minutos, Ruth, depois mande entrar.Weill voltou-se para Belanger.- Hoje, Frank não é um de meus bons dias, pode acreditar no que digo. O lugar de

um sonhador é em casa, com o seu pensador. E Hillary é nosso melhor sonhador, de modo que ele devia estar em casa, mais do que os outros. O que será que se passa com ele?

Belanger, pensando ainda em Pensa-Brilha e palácios de sonhos, não fez por me-nos:

- É mandá-lo entrar e descobrir.- Em um minuto. Diga-me, qual foi o último sonho dele? Ainda não provei aquele

que veio na última semana.Belanger voltou ao chão, enrugou o nariz.- Não foi dos melhores.- E por que não?- Estava esfarrapado, com pulos demais. A mim não importam transições bruscas,

porque trazem vivacidade, o senhor sabe, mas é preciso haver alguma ligação, mes-mo que seja em nível profundo.

- Não vale nada, então?- Nenhum sonho de Hillary é uma perda total. Foi preciso endireitar muito, porém.

Cortamos bastante e emendamos alguns pedaços que ele nos manda de vez em quando. O senhor sabe, cenas desligadas. Ainda assim não é coisa de primeira clas-se, mas serve.

- Falou-lhe a esse respeito, Frank?

- Acha que estou doido, patrão? Acha que vou dizer uma palavra áspera a um so-nhador?

Foi quando a porta se abriu e a jovem e linda secretária de Weill trouxe Sherman Hillary para o gabinete.

Sherman Hillary, com trinta e um anos de idade, podia ser reconhecido como so-nhador por qualquer pessoa. Os olhos sem óculos ainda assim tinham o ar nublado de alguém que precisa de óculos ou raramente focaliza os objetos deste mundo. De estatura média, era magro, os cabelos pretos precisando de um corte, o queixo fino, a pele pálida e expressão perturbada.

Murmurou:- Olá, Sr. Weill - e teve meio aceno, com ar de devedor, na direção de Belanger.Weill o recebeu calorosamente.- Sherman, meu rapaz, está com ótimo aspecto! O que se passa? Teve um sonho

que não é dos melhores, em casa? Preocupa-se com isso?... Sente-se, sente-se,O sonhador sentou-se, mas o fez na beira da cadeira e apertando bastante as per-

nas, como se estivesse pronto, por questão de obediência instantânea, a ficar em pé imediatamente caso ordenassem.

Disse, então:- Vim lhe dizer, Sr. Weill, que estou parando.- Parando?- Não quero mais sonhar, Sr. Weill.O rosto de Weill parecia agora mais idoso do que em qualquer época do dia.- Por que, Sherman?O sonhador retorceu os lábios e despejou:- Porque eu não estou vivendo, Sr. Weill. Tudo passa ao largo de mim. De começo

não era tão ruim, até me descansava. Eu sonhava nas noites, nos fins de semana quando quisesse ou em qualquer ocasião. E quando não dava vontade, não sonhava. Mas agora, Sr. Weill, sou um profissional antigo. O senhor me diz que eu sou umdos melhores no ramo e a indústria espera que eu produza novas sutilezas e novas modificações nas coisas boas e firmes como os sonhos de voo e tudo o mais.

Weill indagou:- E existe alguém melhor do que você, Sherman? A sua pequena sequência na di-

reção de uma orquestra ainda vende bem, e lá vão dez anos.- Certo, Sr. Weill Fiz o meu papel. A coisa chegou a um ponto que não saio mais.

Não dou atenção à minha esposa. Minha filhinha não me conhece. Na semana passa-da fomos a um jantar... Sarah me obrigou... e não me lembro de uma só coisa que se passou por lá. Sarah disse que eu fiquei sentado no sofá toda a noite, olhando para nada e cantarolando. Ela me disse que todo mundo olhava para mim. E ela cho-rou de noite, chorou muito. Estou cansado de coisas assim, Sr. Weill. Quero ser uma pessoa normal e viver neste mundo. Prometi a ela que ia largar e vou largar, de modo que é adeus, Sr. Weill.

Ato continuo Hillary se pós em pé e estendeu a mão, muito desajeitado.Weill a arredou de si, com gentileza.- Se quer parar, Sherman, está certo. Mas faça um favor a um velho e deixe-me

explicar uma coisa.- Não vou mudar de ideia - preveniu Hillary.- E eu não vou tentar fazer com que mude de ideia Só quero lhe explicar uma coi-

sa. Sou um velho e antes de você nascer eu já estava neste negócio, de modo que gosto de falar sobre o ramo. Pode me fazer esse favor, Sherman? Por favor?

Hillary sentou-se. Os dentes mordiam o lábio inferior e ele, muito taciturno, fitava

as unhas dos dedos.Weill disse:- Você sabe o que é um sonhador, Sherman? Sabe o que ele significa para as pes-

soas comuns? Sabe o que é ser como eu, como Frank Belanger, como sua esposa, Sarah? Ter mentes aleijadas, que não conseguem imaginar, que não conseguem eri-gir pensamentos? Pessoas como eu, pessoas comuns, gostariam de escapar, pelo menos de vez em quando, desta vida que temos. Mas não podemos. Precisamos de ajuda.

Ele prosseguia:- Nos tempos antigos eram os livros, as peças de teatro, o rádio, o cinema e a te-

levisão. Eles nos davam simulacros, mas isso não tinha importância. O importante era que, por algum tempo, nossas imaginações se viam estimuladas. Podíamos pen-sar em belos enamorados e belas princesas. Podíamos ser belos, espirituosos, fortes,competentes, tudo que queríamos.

Hillary ouvia, simulando não ouvir:- Mas sempre a passagem do sonho, do sonhador para quem o absorvia, não se

fazia com perfeição. Tinha de ser traduzido em palavras de um ou de outro modo. O melhor sonhador do mundo podia não ser capaz de colocar coisa alguma em pala-vras. E o melhor escritor do mundo só conseguia colocar em palavras a parte menor dos sonhos. Você entende?

Belanger acompanhava atentamente a conversa.- Mas agora, no caso da gravação de sonhos, qualquer homem pode sonhar. Você,

Sherman, e um punhado de homens como você, são os que fornecem instruções di-retamente e com exatidão. Eles vêm de sua cabeça para a nossa, com toda a força. Você sonha para cem milhões de pessoas a cada vez que está sonhando. Você sonha cem milhões de sonhos de uma só vez. Isso é uma coisa muito grande e muito séria, meu filho. Você proporciona a toda essa gente um vislumbre de algo que eles jamais teriam por si mesmo.

Hillary murmurou:- Já fiz a minha parte. - Dito isso, ergueu-se desesperadamente. - Para mim chega.

Não me importa o que o senhor diz. E se quiser me processar por romper nosso con-trato, pode processar, a mim não importa.

Weill também se ergueu.- Se eu o processasse?... Ruth! - e falou para o intercomunicador. - Traga nosso

contrato com o Sr. Hillary.Esperou, Hillary também se pôs à espera, o mesmo com Belanger. Weill sorriu de

leve e seus dedos amarelos tamborilaram na mesa.A secretária trouxe o contrato. Weill o tomou, voltou-o para que Hillary visse e dis-

se:- Sherman, meu filho, se não quer estar comigo, não está certo que seja obrigado

a ficar.E então, antes que Belanger pudesse iniciar um gesto de horror e procurasse im-

pedi-lo, rasgou o contrato em quatro pedaços e os jogou na saída de lixo.- Aí está.A mão de Hillary estendeu-se para apanhar a de Weill.- Muito obrigado, Sr. Weill - disse com fervor, a voz roufenha. - O senhor sempre

me tratou muito bem e eu sou reconhecido. Sinto muito que tivesse de ser assim.- Está tudo certo, rapaz. Está tudo certo.Quase chorando, ainda murmurando agradecimentos, Sherman Hillary se retirou.- Pelo amor de Deus, patrão, por que deixou que ele se fosse? - interpelou Belan-

ger, perturbadíssimo. - Não está percebendo a coisa? Ele vai diretamente para a Pen-sa-Brilha. Eles o compraram, foi isso.

Weill ergueu a mão.- Equivocou-se. Equivocou-se completamente. Conheço o rapaz e isso não seria

próprio dele. Ademais - aduziu secamente – a Ruth é boa secretária e sabe o que deve me trazer quando peço o contrato de um sonhador. O que eu recebi era falso. O contrato verdadeiro continua no cofre, bem trancado, creia em mim.

Ele explicava:- Enquanto isso tive um dia formidável. Foi preciso discutir com um pai para me

dar uma oportunidade com um novo talento, discutir com um homem de governo para evitar a censura, discutir com você para não adotarmos diretivas fatídicas, e agora com meu melhor sonhador para impedir que ele se vá embora. O pai eu devoter vencido. O homem do governo e você, não sei. Talvez sim, talvez não. Mas no que toca a Sherman Hillary, pelo menos, não tenho a menor dúvida. O sonhador vol-tará.

E como sabe?Weill sorriu para Belanger e enrugou as faces em uma verdadeira teia de linhas fi-

nas.- Frank, meu rapaz, você sabe como preparar os sonhantes, e por isso acha que

conhece todos os cavacos do ofício. Mas vou contar-lhe uma coisa. O instrumento mais importante no negócio dos sonhos é o sonhador. E ele que você precisa com-preender, acima de tudo, e eu os compreendo.

Uma pausa, ele explicava:- Escute. Quando eu era jovem não havia sonhantes nessa época... conheci um ca-

marada que escrevia para a televisão. Comigo ele se queixava amargamente que quando alguém lhe era apresentado e descobria quem era, dizia: Onde é que você arranja essas idéias doidas?

Weill prosseguia:- Eles não sabiam, sinceramente não sabiam. Para eles era uma impossibilidade

pensar em uma estória qualquer, redigi-la, prepará-la. O que podia dizer o meu ami-go? Ele costumava falar comigo a esse respeito e me dizia: Eu posso explicar o que não sei? Quando vou para a cama não consigo dormir, porque as idéias estão dan-çando na cabeça. Quando faço a barba, corto o rosto; quando falo, perco a trilha do que estou dizendo; quando dirijo, estou com a vida nas mãos. E sempre porque as idéias, situações, os diálogos, estão a se entremear e dançar na mente. Não posso lhe dizer onde arranjo as idéias. Talvez você possa ensinar o truque para não ter idéias, de modo que eu também possa ter um pouco de paz.

Ele encerrava:- Frank, você entende a coisa? Você pode parar de trabalhar aqui a qualquer mo-

mento. Eu também. Isso é nosso emprego, mas não nossa vida. A questão é dife-rente com Sherman Hillary. Para onde quer que ele vá, faça o que fizer, vai sonhar. Enquanto viver ele precisa pensar, enquanto pensar terá de sonhar. Nós não o rete-mos como prisioneiro, nosso contrato não é uma muralha de ferro impedindo a saída dele, O crânio dele é o prisioneiro dele, Frank. Por isso ele voltará, O que mais pode-rá fazer?

Belanger deu de ombros.- Se o que o senhor diz é verdade, sinto até pena do camarada.Weill assentiu, cheio de tristeza.- Eu sinto pena de todos eles. Ao correr dos anos descobri uma coisa. É o negócio

deles, o de tornar felizes as pessoas. As outras pessoas.