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Túlio Batista Franco

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Túlio Batista Franco

1a EdiçãoPorto Alegre

2021

Série Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde

Page 3: Túlio Batista Franco

Copyright © 2021 by Associação Brasileira da Rede UNIDA

Coordenador Nacional da Rede UNIDATúlio Batista Franco

Coordenação EditorialEditor-Chefe: Alcindo Antônio FerlaEditores Associados: Gabriel Calazans Baptista, Ricardo Burg Ceccim, Cristian Fabiano Guimarães, Márcia Fernanda Mello Mendes, Júlio César Schweickardt, Sônia Lemos, Fabiana Mânica Martins, Denise Bueno, Maria das Graças, Frederico Viana Machado, Márcio Mariath Belloc, Karol Veiga Cabral, Daniela Dallegrave.

Conselho EditorialAdriane Pires Batiston – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil; Alcindo Antônio Ferla – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil; Àngel MartínezHernáez – Universitat Rovira i Virgili, Espanha; Angelo Stefanini – Università di Bologna, Itália; Ardigó Martino – Università di Bologna, Itália; Berta Paz Lorido – Universitat de les Illes Balears, Espanha; Celia Beatriz Iriart – University of New Mexico, Estados Unidos da América; Denise Bueno – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil; Emerson Elias Merhy – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Êrica Rosalba Mallmann Duarte – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil; Francisca Valda Silva de Oliveira – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil; Izabella Barison Matos – Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil; Hêider Aurélio Pinto – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil; João Henrique Lara do Amaral – Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil; Júlio César Schweickardt – Fundação Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil; Laura Camargo Macruz Feuerwerker – Universidade de São Paulo, Brasil; Leonardo Federico – Universidad Nacional de Lanús, Argentina;Lisiane Böer Possa – Universidade Federal de Santa Maria, Brasil;Liliana Santos – Universidade Federal da Bahia, Brasil; Luciano Bezerra Gomes – Universidade Federal da Paraíba, Brasil;Mara Lisiane dos Santos – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil; Márcia Regina Cardoso Torres – Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Brasil;Marco Akerman – Universidade de São Paulo, Brasil; Maria Augusta Nicoli – Agenzia Sanitaria e Sociale Regionale dell’Emilia-Romagna, Itália; Maria das Graças Alves Pereira – Instituto Federal do Acre, Brasil; Maria Luiza Jaeger – Associação Brasileira da Rede UNIDA, Brasil; Maria Rocineide Ferreira da Silva – Universidade Estadual do Ceará, Brasil; Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Brasil; Ricardo Burg Ceccim – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil;Rodrigo Tobias de Sousa Lima – Fundação Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil; Rossana Staevie Baduy – Universidade Estadual de Londrina, Brasil;Sara Donetto – King’s College London, Inglaterra; Sueli Terezinha Goi Barrios – Associação Rede Unida, Brasil; Túlio Batista Franco – Universidade Federal Fluminense, Brasil; Vanderléia Laodete Pulga – Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil;Vera Lucia Kodjaoglanian – Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde/LAIS/UFRN, Brasil; Vera Maria Rocha – Associação Brasileira da Rede UNIDA, Brasil;Vincenza Pellegrini – Università di Parma, Itália.

Comissão Executiva EditorialGabriel Calazans BaptistaJaqueline Miotto Guarnieri Alana Santos de SouzaMárcia Regina Cardoso TorresRenata Riffel Bitencourt

Arte da Capa | Projeto Gráfico | Diagramação Lucia Pouchain

Ilustração CapaMASADEPAN (https://br.freepik.com/vetores/fundo)

Todos os direitos desta edição reservados à Associação Brasileira Rede UNIDARua São Manoel, nº 498 - CEP 90620-110, Porto Alegre – RS. Fone: (51) 3391-1252

www.redeunida.org.br

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Catalogação elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846

F825t Franco, Túlio Batista. Trabalho, Cuidado e Transição Tecnológica na Saúde: um olhar a partir do sistema cartão na cional de saúde / Túlio Batista Franco ; Prefácio de Gustavo Sérgio de Godoy Magalhães. 1. ed. Porto Alegre, RS : Editora Rede Unida , 2021.

198 p. (Série Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, v.19). E-book: 2,9 Mb; PDF Incluibibliografia. ISBN: 978-65-87180-58-8 DOI: 10.18310/9786587180588 1. Avaliação da Tecnologia Biomédica. 2. Sistema Único de Saúde. 3. Telemedicina. I. Título. II. Assunto. III. Franco, Túlio Batista.

CDD 614 21-3018053 CDU 614

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

1. Medicina: Saúde pública / Medicina preventiva.

2. Medicina: Saúde pública.

Page 4: Túlio Batista Franco

Sumário

Apresentação ................................................................................................................................7

Prefácio .........................................................................................................................................9

Agradecimentos ........................................................................................................................ 14

Resumo ...................................................................................................................................... 17

Introdução ................................................................................................................................. 19

CAPÍTULO I

O SISTEMA CARTÃO NACIONAL DE SAÚDE .............................................................. 23Caracterização do Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde ............................... 23

Arquitetura tecnológica do SCNS ............................................................................... 30

Funcionalidades do SCNS ........................................................................................... 32

Manutenção dos princípios do SUS nos documentos estruturantes do SCNS ..... 37

Política de acesso, preservação da privacidade, impessoalidade da informação no SCNS ............................................................................................................................... 39

Projeto SCNS: De um aparato tecnológico a instrumento de gestão voltado à assistência ....................................................................................................................... 42

Processo de Implantação do Sistema Cartão Nacional de Saúde ........................... 44

Treinamento para o SCNS ........................................................................................... 48

Tabelas do Sistema Cartão Nacional de Saúde .......................................................... 50

Relatórios emitidos no servidor municipal: o produto final do SCNS .................. 53

CAPÍTULO II

CONSTRUINDO O PROBLEMA ........................................................................................ 55A interação entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo na produção da saúde: pensando o problema do impacto do SCNS na micropolítica do processo de trabalho ....... 57

Metodologia ................................................................................................................... 63

Objetivo geral ................................................................................................................ 64

Objetivos específicos..................................................................................................... 64

O desenho analítico ...................................................................................................... 65

No plano da política ..................................................................................................... 65

No plano da organização.............................................................................................. 66

No plano da produção do cuidado ............................................................................. 67

Instrumentos e coleta de dados ................................................................................... 68

CAPÍTULO III

MODELOS ASSISTENCIAIS: FORMAS TECNOLÓGICAS DE CONFIGURAÇÃO DOS PROCESSOS DE TRABALHO EM SAÚDE ............................................................ 71A organização das linhas de produção do cuidado .............................................................. 81

A Composição Técnica do Trabalho (CTT) como analisador dos processos produtivos da saúde ............................................................................................................................................ 82

A análise do caso da saúde sob a ótica da “cartografia do Trabalho Vivo” ........................ 88

A reestruturação produtiva e a composição de valor dos produtos da saúde ................... 95

A cadeia produtiva da saúde na geração de valor dos seus produtos ............................... 105

A disputa pela Composição Técnica do Trabalho em processos de reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica ...................................................................................................... 107

Diferenças entre reestruturação produtiva e transição tecnológica ................................. 112

A “atenção gerenciada” e outras formas de reestruturação produtiva .............................. 115

Inversão no modo de pensar e de agir: a transição tecnológica na saúde ....................... 120

Subjetividade e saúde coletiva................................................................................................ 124

História do pensamento em torno da formação de subjetividades .................................. 125

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Apresentação

Este livro é produto da minha tese de doutorado defendida junto ao Departamento de Planejamento em Saúde da Universidade de Campinas (DMPS/UNICAMP) em setembro de 2003, orientada pelo Professor Emerson Elias Merhy. Foi um estudo realizado no projeto piloto do Cartão Nacional de Saúde (CNS), até então, uma experiência pioneira de informatização na saúde, com a proposta de implantação para todo país.

A pesquisa tem como foco o processo de trabalho, e os efeitos da incorporação desta nova tecnologia na produção do cuidado. Tomando como centro a tese da “micropolítica do trabalho vivo em saúde” (Merhy, 1997, 2002), fiz uma imersão nos laboratórios das empresas contratadas para o desenvolvimento do hardware e software do sistema CNS, em bancos de dados do DataSUS, e igualmente mergulhei nas Unidades de Saúde do SUS de um grande município, que estava entre as primeiras experiências que serviram ao projeto piloto, trabalhando preferencialmente com dados primários para formar o entendimento sobre a questão: _ O SCNS tem efeitos sobre o processo de trabalho? Em que medida? Altera o modo de produzir o cuidado? Até que ponto representa um processo de reestruturação produtiva ou transição tecnológica na saúde? Enfim, coloquei usuárias e usuários, trabalhadoras e trabalhadores na cena para compreender a nova proposta de informatização na ponta do sistema de saúde.

Com a Pandemia de Covid-19 iniciada em 2020 viu-se uma extraordinária utilização de variadas plataformas e dispositivos de acesso remoto a usuárias e usuários do SUS, e entre trabalhadoras/es, como recurso adicional para o cuidado às pessoas. Tecnologias de Inteligências são aplicadas na saúde há muitas décadas, mas na escala e diversidade de solução que se viu durante a Pandemia, em especial na Atenção Básica em Saúde, é algo inusitado. Esse fenômeno merece ser estudado como solução de tecnologia de cuidado, não substitutiva às formas presenciais, mas adicional às já existentes. Importante pesquisá-lo também para entender as múltiplas possibilidades criadas tanto nas propostas de tecnologia de interação

CAPÍTULO IV

RESULTADOS E DISCUSSÃO DE DADOS E INFORMAÇÕES DO SISTEMA CARTÃO NACIONAL DE SAÚDE ....................................................................................136

Atividades executadas para realizar a análise comparativa de dados do SCNS com o Boletim de Produção Ambulatorial ...................................................................... 138

Fluxograma descritor do processo de trabalho na Unidade e o Sistema Cartão Nacional de Saúde ....................................................................................................... 149

Os trabalhadores e o Sistema Cartão Nacional de Saúde: micropolítica e subjetividades .............................................................................................................. 154

Construir a adesão dos trabalhadores da saúde ao SCNS: uma preocupação do Projeto .......................................................................................................................... 163

Análise do Sistema Cartão Nacional de Saúde à luz dos campos da política, organização e produção do cuidado ......................................................................... 165

Conclusões ..................................................................................................................176

Abstract ....................................................................................................................................188

Bibliografia ..............................................................................................................................191

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via remota com pessoas e comunidades usuárias do SUS, e por consequência os efeitos para o cuidado em saúde.

É, portanto, com o objetivo de oferecer uma discussão que tem como centro o tema do processo de trabalho e o cuidado em saúde, mediado por tecnologias de inteligência, que me propus a publicar a tese, até então inédita. A publicação mantém a tese na sua forma original, incluindo os agradecimentos e outros registros que são parte da sua história.

Os temas aqui tratados permanecem atuais, especialmente neste momento de grande utilização das soluções de Tecnologias de Inteligência, para a continuidade do cuidado às pessoas. Por expressar tanto os aspectos do uso das tecnologias na mediação do cuidado, quanto adotar como foco nas análises o campo da micropolítica dos processos de produção do cuidado, o cotidiano das práticas em saúde, há aqui um material significativo e útil ao debate atual do espectro do “Telecuidado” e todas suas formas de expressão.

Niterói, julho de 2020.

Túlio Batista Franco

Prefácio

Não há mais volta. A pandemia da Covid-19 acelerou a transformação digital do trabalho na saúde em escala e diversidade impressionantes. Decisões tomadas pelos governos para responder a crise sanitária global, mediada por um vírus, têm consequências não apenas para o enfrentamento das adversidades locais em curto prazo, mas a longo prazo e para todos os âmbitos da atividade humana. O incentivo massivo para a telessaúde, como a realização de teleconsultas e telemonitoramento, são alguns exemplos de práticas que estão afetando os modos como o cuidado em saúde está se produzindo.

Segundo Harari (2020), as emergências de maneira geral costumam acelerar processos históricos, práticas controversas que levariam anos para serem aprovadas, em situações de crise são deliberadas em questão de horas. No Brasil, o debate que regulamentou a telemedicina foi institucionalizado desde 2002, ano da primeira resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o tema. Outros conselhos profissionais avançaram na discussão nos anos seguintes. Entre tentativas de novas resoluções e revogações, a controvérsia sobre os limites da teleconsulta se tornou pequena diante dos benefícios desta prática em tempos de crise sanitária. Em abril de 2020 foi sancionada a Lei nº 13.989 que autoriza no país a prática da telemedicina, mesmo que em caráter provisório. Esse cenário tem disparado uma escalada de pesquisas e desenvolvimento de novas tecnologias, as quais afetam diretamente a produção do cuidado. Mas até que ponto elas melhoram a qualidade da atenção aos usuários? Em que medida a teleassistência promove uma mudança do modelo tecnoassistencial hegemônico da saúde, historicamente centrado em procedimentos e distante das pessoas?

Essas questões foram feitas por Túlio Batista Franco ao se deparar com o desenvolvimento do Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS), experiência pioneira de informatização no âmbito da saúde em escala nacional há quase duas décadas. Ainda que novas soluções tecnológicas continuem surgindo, as questões permanecem as mesmas e continuam a promover debates sobre as fronteiras do uso das tecnologias da informação e comunicação na saúde.

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Prefácio

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Professor Túlio, como costumo chamá-lo com carinho e respeito do tratamento que se dá aos nossos mestres, tem sido uma grande referência nos estudos da saúde coletiva no Brasil, presente nas temáticas de redes de atenção à saúde, micropolítica, subjetividade e produção de cuidado. Desenvolveu e liderou debates que hoje impactam diretamente no modelo assistencial em saúde e na formação de novos profissionais no país. Em face do movimento de transposição digital dos processos de trabalho na saúde, o qual intensificou-se nesse momento de pandemia, tenho retornado com frequência a suas reflexões nos espaços de formulação de ações e políticas de saúde.

Como médico e gestor, faço parte da coordenação do “Atende em Casa”, um serviço de teleassistência implementado para o enfrentamento à pandemia em março de 2020 no SUS em Recife. Mesmo participando dos espaços de gestão da telessaúde no município desde 2014, a perspectiva de crise sanitária que surgia nos primeiros meses de 2020 debelou um movimento de aceleração na produção e implantação de soluções digitais que eu nunca havia testemunhado. Naquele momento, não havia outra medida de eficácia reconhecida que o distanciamento social de toda população e isolamento de pessoas com sintomas suspeitos em suas casas.

Algumas experiências internacionais já apontavam o benefício de prover orientações à distância através de chamadas por vídeo e telefone com profissionais de saúde durante a pandemia. Essas experiências de teleassistência em saúde, apoiadas por aplicativos de autoavaliação de sintomas, tinham o potencial de reduzir a transmissão da circulação do vírus, já que evitavam o deslocamento de pessoas com sintomas leves pelas cidades, prevenindo aglomerações de pessoas com Covid-19 em transporte público ou em serviços de saúde já saturados (GREENHALGH; KOH; CAR, 2020; HONG et al., 2020; LIU, et al., 2020; OHANNESSIAN; DUONG; ODONE, 2020; XU et al., 2020).

Em pouco mais de um ano, apenas na cidade do Recife, mais de 117 mil pessoas realizaram pelo menos um atendimento de avaliação de seus sintomas de Covid-19 e apenas 14% delas necessitaram se deslocar para um atendimento presencial. Através de um aplicativo acessível por qualquer dispositivo conectado à internet, como smartphone, tablet ou computador, é possível realizar uma classificação de risco de sintomas a partir de um algoritmo construído por uma equipe formada por profissionais de saúde e de tecnologia da informação. Baseado em recomendações da Organização Mundial de Saúde e de protocolos

assistenciais locais, este algoritmo identifica pessoas com sintomas de risco e aponta a orientação mais adequada para cada condição de saúde.

Por exemplo, caso um usuário informe que está com febre e tosse há quatro dias e hoje iniciou quadro de desconforto respiratório, ele é referenciado para uma chamada de vídeo ou telefone com um teleorientador. Caso os sintomas sejam confirmados a partir de uma avaliação e escuta qualificada, o usuário será orientado a buscar um dos serviços de referência para atendimento à Covid-19 mais próximo e adequado a sua gravidade, seja uma Unidade Básica de Saúde (UBS) destacada, um Serviço de Pronto Atendimento ou mesmo o SAMU. No dia seguinte, os teleorientadores entram em contato com o usuário para iniciar o monitoramento e avaliar a situação atual de saúde.

A maior parte das pessoas com sintomas suspeitos de Covid-19 desenvolvem um quadro leve, necessitando apenas do isolamento domiciliar. Neste momento, o apoio de profissionais de saúde pode se dar de várias maneiras, desde a orientação a medidas de educação em saúde, para os cuidados em casa, à identificação precoce de sintomas de risco e encaminhamento breve para abordagem hospitalar, prevenindo assim complicações e internamentos em UTI.

A base de dados que gera informação sobre os sintomas suspeitos de Covid-19 é compartilhada entre os diferentes serviços da rede responsáveis pelo monitoramento. Uma pessoa notificada atendida por uma UBS destacada, que não reside em área de cobertura de Equipe de Saúde da Família – ESF, pode ser monitorada pelo Atende em Casa. Uma pessoa atendida no Atende em Casa em um dia de final de semana, período que a UBS não está funcionando, pode ser monitorada por sua ESF no primeiro dia útil seguinte, devido a esta troca de informações entre os pontos da rede.

Com o passar do tempo, a potência da ação da teleassistência em saúde foi se evidenciando e novos serviços foram ofertados. Por exemplo, o impacto que a pandemia trouxe à saúde mental mobilizou a criação do “teleacolhimento”, apoio emocional mediado pelo aplicativo Atende em Casa, realizado por psicólogos e outros profissionais do núcleo de apoio à saúde da família. Esta equipe lida cotidianamente com a ansiedade e tristeza mobilizadas pelo medo do adoecimento, da solidão proveniente do isolamento e do luto pela morte de um ente querido.

Com a necessidade de expansão da testagem populacional e em particular, com o avanço da vacinação contra Covid-19 em 2021, o Atende em Casa se tornou um espaço de apoio à população para a realização de exames e vacinas,

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dando suporte no cadastro e marcações dos procedimentos, acolhendo pessoas com eventos adversos pós-vacinação, orientando o acesso a resultados de exames, entre outros serviços. Esta modalidade de atendimento se dá através de aplicativos de conversação, a exemplo do Whatsapp, com diferentes camadas de atendimento.

Nesse caso, o primeiro contato se dá através de um atendimento automatizado feito por SUSi, assistente virtual da saúde, um chatbot com mais de 50 respostas para as questões mais comuns dos usuários. Se necessário, a equipe de operadores de teleatendimento faz o primeiro contato humano, respondendo a demanda do usuário ou transfere para a equipe de profissionais de saúde disponível. Em quase seis meses, foram realizados mais de 260 mil atendimentos por esta equipe híbrida, sendo que a robô SUSi fez mais de 67% destes. A satisfação do usuário em milhares de atendimentos nesse sistema alcança índice superior a 4,8 (numa escala de satisfação que varia de 1 a 5).

Importante ressaltar que esta experiência não foi realizada por uma única equipe de um serviço, departamento ou secretaria. Isto implica dizer que ela não poderia existir sem a formação de uma rede viva entre serviços de diversos níveis de atenção, constituída por profissionais e gestores de diferentes secretarias. A crise trouxe oportunidade para realização de um intenso trabalho de integração, uma diluição de fronteiras organizacionais e profissionais necessárias há tempos sonhada. Sistemas de informação compartilhados, transparência dos dados e integração de plataformas de comunicação são exemplos de produtos desse trabalho.

Ainda que os benefícios iminentes transpareçam desta experiência de telessaúde, e de tantas outras que impactaram sobremaneira o cuidado das pessoas durante a pandemia, ao ler Trabalho, Cuidado e Transição Tecnológica na Saúde, algumas questões não tão visíveis ganharam visibilidade. Haverá substituição, sobreposição e concorrência entre os serviços de assistência remota e presencial? Em que medida uma teleconsulta de pré-natal, com o médico ou enfermeiro de referência da ESF, através de uma videochamada afeta a produção de cuidado? Que tipo de efeito tem um aplicativo que se propõe a realizar uma avaliação do estado de saúde dos usuários e realizar uma teleorientação no processo de trabalho das equipes dos serviços de saúde já estabelecidos? Até que ponto o contato feito por um agente de saúde, através de um aplicativo de mensagens, representa um processo de restruturação produtiva ou transição tecnológica de saúde?

Esta obra traz à tona respostas e novos questionamentos dos efeitos da incorporação das novas tecnologias nos campos da política, organização e produção de cuidado. O caso da implementação do SCNS incentiva uma releitura para qualquer prática que inclua a intermediação tecnológica do cuidado a saúde das pessoas. Assim, o livro Trabalho, Cuidado e Transição Tecnológica na Saúde se torna hoje referência para quem busca ampliar os horizontes de compreensão da transformação do trabalho em saúde, especialmente, nos tempos pós-pandemia.

Recife, 19 de julho de 2021.

Gustavo Sérgio de Godoy Magalhães

Referências

GREENHALGH, T.; KOH, G. C. H.; CAR, J. Covid-19: a remote assessment in primary care. BMJ , 25 mar. 2020. v. 368, p. m1182.

HARARI, Y. N. Notas sobre a pandemia: E breves lições para o mundo pós-coronavírus (artigos e entrevistas). [S.l.]: Companhia das Letras, 2020.

HONG, Z. et al. Telemedicine During the COVID-19 Pandemic: Experiences From Western China. Journal of medical Internet research, 8 maio. 2020. v. 22, n. 5, p. e19577.

LIU, Shuai et al. Online mental health services in China during the COVID-19 outbreak. The lancet. Psychiatry, abr. 2020. v. 7, n. 4, p. e17–e18.

OHANNESSIAN, R.; DUONG, T. A.; ODONE, A. Global Telemedicine Implementation and Integration Within Health Systems to Fight the COVID-19 Pandemic: A Call to Action. JMIR public health and surveillance, 2 abr. 2020. v. 6, n. 2, p. e18810.

XU, H. et al. Monitoring and Management of Home-Quarantined Patients With COVID-19 Using a WeChat-Based Telemedicine System: Retrospective Cohort Study. Journal of medical Internet research, 2 jul. 2020. v. 22, n. 7, p. e19514.

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Agradecimentos

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Agradecimentos

Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferen-te. ... Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é. Amigo meu era Diado-rim; era o Fafafa, o Alaripe, Sesfredo.(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

O trabalho que ora apresento não foi uma construção solitária, felizmente. Suas páginas, que serão lidas a seguir, trazem as digitais de inúmeras pessoas, trabalhadores, usuários, formuladores de políticas, gestores, professores, e tantos outros personagens que vêm, juntos, construindo uma proposta assistencial que busca significar um patamar civilizatório maior no que diz respeito aos cuidados com a saúde. Este estudo é devedor desse esforço coletivo. A todos, quero agradecer, lembrando alguns episódios e pessoas que marcaram esta curta e rica história, e às quais faço aqui minha homenagem.

Encerro, com o doutorado, um ciclo que teve início em 1989, quando participei da organização da III Conferência Municipal de Saúde de Belo Horizonte, ocasião em que tive a oportunidade e a honra de ser um dos fundadores do Conselho Municipal de Saúde. Foi no Controle Social do SUS que iniciei minha caminhada pelas trilhas da saúde coletiva.

Uma primeira fase nessa trajetória foi marcada por um incansável trabalho de construção do controle social do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi importante, nesse período, o trabalho junto à então Escola de Saúde de Minas Gerais (ESMIG) que, sob direção de Mariana Tavares, foi pioneira na capacitação de conselheiros de saúde. Através de convênio com o Projeto Informação, Educação e Comunicação (IEC), do Ministério da Saúde, muitos cursos de capacitação foram realizados no norte de Minas Gerais, região sob proteção da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), à época. Foram longas caminhadas cortando o sertão mineiro,

às vezes, atravessando de balsa o Rio São Francisco, outras, indo até a fronteira com a caatinga baiana, sempre compensadas, ao final, pela certeza de estarmos construindo um futuro promissor para a saúde pública. Encontramos, nesse trabalho quase missionário, rostos esperançosos de homens e mulheres fortalecidos com o trabalho na terra, alguns vindos de outras lutas, que junto com trabalhadores de saúde, esperavam ansiosos por saber, e mais ainda, por fazer saúde, na instância que lhes era dada a oportunidade para tal, os conselhos municipais de saúde.

Em 1995, a ESMIG sofre um duro golpe. Um novo governo forçou a que muitos professores saíssem da escola, o que acabou por dizimar o recém-criado Departamento de Controle Social, protagonista de grandes feitos na área.

No ano seguinte, 1996, fui admitido como servidor da Secretaria Municipal de Saúde de Betim, Minas Gerais. Iniciou-se, então, uma outra fase nesse pequeno ciclo de construção da e com a saúde coletiva. Participei da equipe gestora que trabalhava na inversão do modelo assistencial, tendo como principal dispositivo a diretriz do acolhimento. Esse projeto tinha assessoria do saudoso Wanderley Silva Bueno e a coordenação da então secretária de saúde, Conceição Rezende.

No mesmo ano de 1996, com o patrocínio da Rede de Investigação em Sistemas e Serviços de Saúde do Cone Sul e apoio da Secretaria de Saúde de Betim e do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, tive a oportunidade de pesquisar o acolhimento, com foco nos processos de trabalho em saúde. Iniciou-se aí o caminho acadêmico que teve continuidade em 1997, com a minha participação no curso de especialização em Planejamento em Saúde Pública, realizado na Unicamp.

No Departamento de Saúde Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, fui encontrando pessoas, formando identidades, relações solidárias. Faço aqui minha homenagem aos professores do Departamento, aos funcionários, sem os quais nosso trabalho não seria possível. Na figura do professor Emerson Elias Merhy — antes, orientador do meu mestrado, e agora da tese de doutorado - encontrei o sustentáculo para prosseguir no caminho aberto até então, no sentido de estudar o trabalho e suas muitas implicações com a saúde coletiva. Suas formulações em relação ao Trabalho Vivo, no caso da saúde, aparecem no cenário teórico em construção como uma importante descoberta. Abre-se, a partir daí, um mundo de possibilidades de análise e pesquisa sobre a produção da saúde. A

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desafiar permanentemente o instituído, Emerson Merhy, em seu trabalho cotidiano, é um artesão na construção de sujeitos plenos, autonomizando e multiplicando potencialidades. É co-autor deste trabalho, a quem terei sempre a gratidão por muitas construções conjuntas no campo da saúde coletiva.

O mestrado foi um estudo do acolhimento e do Programa Saúde da Família (PSF), com foco na micropolítica dos processos de trabalho. Com o acolhimento, confirmou-se uma possibilidade nova de reorganização do processo de trabalho, multiplicando saberes e fazeres dos profissionais, e humanizando a assistência. Com o PSF, analisamos o cenário das políticas de saúde no Brasil, em especial a proposta governamental para a atenção básica. Buscamos analisar o PSF na perspectiva da sua construção sócio-histórica e dos processos de trabalho, possibilitando o surgimento de muitas novas idéias e modos de organização do Programa Saúde da Família.

O doutorado inicia uma última fase desse ciclo voltado para a investigação do trabalho como força instituinte, revolucionária, de potencialidades múltiplas lançadas à mudança da realidade e à construção de uma “utopia ativa” para a saúde coletiva. A busca do conhecimento na área, que resultou no presente estudo, foi um processo construído a partir de uma certa práxis, ora no trabalho direto com equipes de saúde, ora debruçando sobre os campos de conhecimento afins.

Quero agradecer as importantes contribuições de Deborah Carvalho Malta e Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, que cuidadosamente leram este texto em sua fase preliminar, tendo apresentado críticas e sugestões que foram fundamentais na fase conclusiva de sua elaboração.

Em todo esse percurso, tive a solidariedade de muitas pessoas em serviço, gestores e trabalhadores, a partir desse lugar de produção da saúde. Deixo a todos que comigo conviveram e convivem na construção de um novo modo de produzir o cuidado, o meu profundo agradecimento pela oportunidade que temos de caminhar juntos por lugares novos, realizando uma grande aposta no futuro. Da prática cotidiana, pude extrair grande parte do conhecimento desenvolvido. Especialmente, agradeço à Ângela Tornelli que, à época desta pesquisa, era diretora do Departamento de Políticas de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Campos, São Paulo, e deu seu apoio incondicional a este estudo, disponibilizando o acesso ao serviço e aos dados do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

Resumo

Há um processo de informatização de serviços de saúde, no Brasil, protagonizado pelo Ministério da Saúde em parceria com os municípios. Isso é desenvolvido pelo projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS).

No recorte teórico da pesquisa, discutiu-se, centralmente, a Composição Técnica do Trabalho (CTT) como analisadora dos processos produtivos da saúde e, portanto, ela deve revelar a possibilidade de mudança do modelo tecnoassistencial a partir do SCNS. A CTT é definida como a razão entre Trabalho Morto (TM) e Trabalho Vivo (TV) no interior dos processos de trabalho. Para discuti-la imaginou-se uma “Linha de Produção do Cuidado”, que traz a imagem do fluxo realizado pelo usuário quando do encaminhamento de um determinado projeto terapêutico definido pelo profissional ou pela equipe que o assiste.

O estudo parte do pressuposto de que o profissional, ao exercer seu trabalho, opera um núcleo tecnológico composto de “Trabalho Morto” (TM), máquinas e instrumentos; e “Trabalho Vivo” (TV). No modelo médico hegemônico, produtor de procedimentos, o processo de trabalho está centrado no Trabalho Morto, com uso excessivo de “tecnologias duras” e conhecimento especializado. Avaliamos que, dependendo da razão entre TM e TV, presentes no processo de trabalho, verificam-se mudanças no modo de produção da saúde que podem ocorrer em dois cenários diferentes: 1. há alteração no modo de produzir saúde, sem, no entanto, mudar a correlação entre TM e TV, o que caracteriza um processo de “reestruturação produtiva”; 2. as mudanças significam também uma alteração na razão entre TM e TV, isto é, um processo de trabalho centrado no Trabalho Vivo no núcleo tecnológico do trabalho, caracterizando uma dada “transição tecnológica”.

Objetivos

Verificar até que ponto o SCNS impacta os processos de trabalho, provocando mudanças no modelo tecnoassistencial para a saúde.

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Metodologia

Estudo de campo, feito na Unidade Básica de Saúde Jardim Satélite, localizada na cidade de São José dos Campos, São Paulo. Desenho analítico proposto por MERHY (1998), que sugere avaliar o projeto SCNS nos aspectos da organização, da política e da produção do cuidado. Pesquisa bibliográfica e documental; entrevistas com informantes-chave. Foram aplicados o fluxograma descritor e a análise de relatórios. Foi feita simulação do funcionamento do sistema em laboratório.

Principais resultados e conclusões

No campo da política, verifica-se, em primeiro lugar, que, no modo atual de operação do sistema de informações, o SCNS surge como mais um instrumento de controle do gestor federal (G) sobre o gestor municipal (g) e deste para os níveis locais.

No campo da organização, o SCNS tem uma importante contribuição naquilo que, nos parece, é sua função precípua, ligada ao sistema de informações do SUS. A capacidade tecnológica de captura, transmissão e processamento de dados torna o sistema de informações teoricamente ágil e eficaz.

No campo da produção do cuidado, concluiu-se que o SCNS tem sua vocação restrita ao sistema de informações, pois não opera mudanças no modelo tecnoassistencial. No analisador adotado para este estudo, o da Composição Técnica do Trabalho (CTT), verifica-se que o SCNS não altera a razão entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo no núcleo tecnológico da produção do cuidado. Esta é a principal conclusão do estudo.

Introdução

“Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros. Tiriri, graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco ou a pomba-vermelha-do--mato-virgem. Mas mais o bem-te-vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi só”.(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

Este estudo faz uma análise do Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS). A intenção de adotar uma espécie de “Cartão” do Sistema Único de Saúde (SUS) foi anunciada, primeiramente, na Norma Operacional Básica (BRASIL, 1996) e desenvolvido, a partir do ano de 2000, com a contratação das empresas fornecedoras dos equipamentos e softwares para o seu funcionamento.

A partir do SCNS, construiu-se um objeto de investigação que trata dos processos de trabalho em saúde, focado na micropolítica, tendo como principal analisador do modelo tecnoassistencial, ou seja, o núcleo tecnológico desse processo de trabalho, a que chamamos de Composição Técnica do Trabalho (CTT). É como se o SCNS fornecesse uma lente com a qual se olha para dentro do ato de fazer saúde, possibilitando avaliar se há, no movimento criativo de produção do cuidado, algo que represente uma reestruturação produtiva ou transição tecnológica no setor.

A pesquisa aqui desenvolvida é continuidade da linha de investigação em torno dos processos e tecnologias de trabalho em saúde, herdeira da produção de Donnangelo (1976); Gonçalves (1994); Nogueira (1994); Campos (1994b); Merhy (1994, 1997, 2002); e Cecílio (1994), sendo uma extensão da minha dissertação de mestrado, defendida junto à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1999, apresentando uma discussão acerca do acolhimento, do Programa Saúde da Família e das Ferramentas Analisadoras, com foco na micropolítica dos processos de trabalho.

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Introdução

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O Capítulo I apresenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde, procurando descrever a sua história e o desenvolvimento dos sistemas de contratação realizados entre o Ministério da Saúde, as empresas operadoras do Sistema e os municípios para o desenvolvimento do projeto. É relatada a forma como foi projetada sua arquitetura tecnológica, que configura um sistema de produção de informações por meio do qual os dados são capturados no nível da Unidade Básica de Saúde e, passando pelos servidores municipal e estadual, sobe até o nível federal. Essa arquitetura é sustentada por um vigoroso hardware e opera com sistema de software desenvolvido pelas empresas contratadas. Deve ser capaz de capturar os dados, processá-los, transmiti-los e armazená-los, possibilitando, ao final do processo, a extração de relatórios sobre os serviços de saúde.

Toda a regulamentação do SCNS está relatada nesse capítulo, incluindo as medidas de segurança e privacidade, que restringem o acesso e criam dispositivos tecnológicos que possibilitam manter sigilo nas informações do SCNS que se referem à identificação das pessoas que trabalham ou utilizam os serviços, bem como os tipos e características dos cartões e possibilidades de uso dos mesmos pelo sistema. Além disso, estão citados os insumos necessários ao desenvolvimento do SCNS, tais como as tabelas diversas que alimentam o sistema, recursos de conhecimento técnico, materiais e, especialmente, à adesão necessária dos municípios que é desenvolvida a partir de pactuações com o Ministério da Saúde.

Enfim são descritas, nesse capítulo, as diversas etapas de implantação do projeto SCNS, tais como o cadastramento de usuários, trabalhadores e unidades de saúde; a implantação da infra-estrutura e hardware; o treinamento dos trabalhadores para a operação do sistema e, finalmente, sua instalação e uso através da emissão de relatórios informativos pelo servidor municipal.

No Capítulo II, é discutido o problema colocado para o estudo, qual seja: a capacidade do SCNS de impactar os processos de trabalho em saúde, em ambiente micropolítico. A construção do objeto vai, portanto, nessa direção, buscando analisar o modo de produção da saúde e as tecnologias de trabalho que são utilizadas para isso. Esta reflexão considera as diversas dimensões do trabalho em saúde, com incursões sobre o trabalho e as tecnologias, bem como sobre as relações e subjetividades implicadas com o modo de saber-fazer na saúde. A metodologia desenvolvida é explicitada também nesse capítulo, quando nos

apoiamos no esquema analítico proposto por MERHY (1998a), que sugere analisar os serviços de saúde a partir de três dimensões: da política, da organização e da produção do cuidado. A partir daí foi construída a matriz analítica, propondo-se indicadores capazes de avaliar o impacto do SCNS na organização da assistência e gestão, a partir dessas dimensões.

O Capítulo III define o recorte teórico do estudo e traz para o centro do debate a Composição Técnica do Trabalho (CTT), que é a razão entre Trabalho Morto (TM) e Trabalho Vivo (TV) no interior dos processos de trabalho em saúde. A CTT serve como analisador da produção em saúde e, em especial, revela as possibilidades de reestruturação produtiva e/ou de transição tecnológica no setor. O texto conceitua essas duas categorias, dando-lhes uma identidade específica e diferenciando-as. Nesse sentido, processos de reestruturação produtiva significam modos diferentes de realizar a produção em saúde sem, no entanto, mudar a correlação entre TM e TV no núcleo tecnológico do cuidado, enquanto transição tecnológica significa operar uma mudança na razão entre TM e TV na Composição Técnica do Trabalho. A diferença é fundamental para entendermos até que ponto os movimentos em curso na “mudança do modelo assistencial” significam realmente uma transformação no modo de operar o trabalho em saúde. A discussão se realiza utilizando a imagem de uma “Linha de Produção do Cuidado”, que vai guiando o olhar sobre o processo produtivo da saúde.

Esse é o núcleo teórico sobre o qual se articula a discussão do problema colocado ao estudo. Importa informar que o tema da subjetividade em saúde coletiva é tratado como mais um argumento na análise dos processos de trabalho e das mudanças do modelo tecnoassistencial.

No Capítulo IV são apresentados os resultados do estudo. Estes foram extraídos de trabalho realizado no campo, através de dados de fontes secundárias emitidos pelo servidor municipal do SCNS e comparados com os dados do Boletim de Produção Ambulatorial (BPA) para se avaliar o nível de registro eletrônico obtido até então. São apresentadas e analisadas entrevistas realizadas com os trabalhadores de saúde que estão operando o SCNS. Outro recurso analítico utilizado foi o Fluxograma Descritor, como instrumento de análise dos processos de trabalho, após a implantação do SCNS nas unidades produtivas, dentro de uma Unidade Básica de Saúde.

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Por fim, é feita uma extensa análise dos aspectos que envolvem o SCNS e seus impactos no processo de trabalho, utilizando o esquema analítico proposto no Capítulo II, onde a política, a organização e a produção do cuidado surgem como os marcadores dessa análise. É feita uma minuciosa discussão do tema, em torno desses aspectos, para se chegar às conclusões do estudo.

CAPÍTULO I

O SISTEMA CARTÃO NACIONAL DE SAÚDE

“O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumos”.(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

O presente estudo está focado nos impactos gerados pela implantação do Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde nos processos de trabalho em saúde como meios de produção do cuidado, em nível micropolítico, e nas conseqüências da mudança ou não do modelo tecnoassistencial, a partir de um suposto processo de reestruturação produtiva. Os campos teóricos articulados são os que se referem aos modelos assistenciais, processos e tecnologias de trabalho em saúde e estruturação da produção no setor. No que se refere ao SCNS, a ênfase será dada aos aspectos do projeto que têm incidência direta na organização da assistência, isto é, àqueles que impactam os processos de trabalho. Portanto, a apresentação e discussão do Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS) dar-se-á na medida do necessário para a realização das análises dos temas específicos tidos como objeto deste estudo, não se atendo de modo especial às questões tecnológicas de informática propriamente ditas. Temas relacionados especificamente às tecnologias de informática utilizadas pelo SCNS - sejam aquelas do desenvolvimento de software, bem como as características do hardware e outras mais -, serão tratados na medida exata do necessário para se compreender os aspectos relativos ao modelo assistencial e os processos de trabalho.

Caracterização do Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde

O Sistema Cartão Nacional de Saúde é um projeto desenvolvido pelo Ministério da Saúde e pressupõe a incorporação de novas tecnologias de informática

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CAPÍTULO I

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pelos serviços de saúde, sendo-lhe atribuída, pelo próprio Ministério da Saúde, uma importante função junto aos sistemas de informações, entre outras que são discutidas detalhadamente neste estudo. Na pesquisa documental, encontramos vários textos que informam sobre o Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde. Transcrevemos muitos trechos dos documentos disponíveis por considerá-los esclarecedores para o conhecimento das origens do projeto, da intencionalidade que o envolve e do contexto no qual tem sido desenvolvido.

O Cartão Nacional de Saúde foi formalizado pela Norma Operacional Básica (NOB) de 1996 e o processo de implantação em curso abrange 44 municípios brasileiros, com cobertura de cerca de 13 milhões de usuários do SUS. O projeto tem financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e foi contratado por meio de licitação internacional. O escopo do fornecimento das empresas contratadas abrange a implantação de estrutura de hardware no âmbito federal (com servidores localizados em Brasília e no Rio de Janeiro), no âmbito estadual (com servidores em todos os estados brasileiros) e no âmbito dos 44 municípios do projeto piloto. Inclui ainda o desenvolvimento de software e a construção de uma rede de abrangência nacional.1

A empresa Hypercom do Brasil apresentou, junto ao Ministério da Saúde, por ocasião de sua participação no processo de concorrência internacional, com vistas à contratação de fornecedores de hardware e software para o Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde, SCNS, um Projeto Executivo com a descrição do sistema proposto por ela, seu funcionamento e formas de execução do mesmo. No documento, a empresa identifica dois processos de informatização em curso no setor da saúde, relatados da seguinte forma:

O uso da informática em saúde, associada às tecnologias de comunicação, tem crescido quase na velocidade da capacidade de imaginação e criação do ser humano. Duas vertentes de desenvolvimento da informatização em saúde podem ser caracterizadas: a primeira referente ao atendimento médico individualizado, no apoio ao diagnóstico e orientação para o tratamento, como, por exemplo, nos algoritmos para

1 BRASIL. Ministério da Saúde. Cartão Nacional de Saúde: Instrumento para um novo modelo de gestão da saúde. Disponível em <http//www.saude.gov.br>. Acesso em 2002.

definição de diagnósticos e medicina baseada em evidências, além do acesso a informações médicas selecionadas e educação a distância. A segunda vertente refere-se ao uso da informação em saúde na gestão dos processos coletivos em saúde, organizados em sistemas com o objetivo de torná-los mais eficazes ou de prevenir ou monitorar eventos ou situações que pelo seu potencial de gravidade necessitem de ações imediatas por parte da autoridade pública. Evidentemente, essas duas vertentes não são estanques e se potencializam em ações sinérgicas.2

O mesmo documento assinala:

O Brasil pode-se considerar em situação intermediária quanto ao desenvolvimento e utilização da informática em saúde. Tanto no setor público como no privado, tem crescido bastante a utilização da tecnologia de informatização em saúde. Os serviços privados (planos, seguros, clínicas e hospitais) buscam em primeiro lugar reduzir os custos dos procedimentos e aperfeiçoar os processos administrativos. Saliente-se, entretanto, que os planos e seguros de saúde utilizam processos informatizados para caracterizar padrões de utilização que permitam maior confiabilidade no estabelecimento de valores dos prêmios e negociações contratuais. O setor público da saúde vem ampliando a utilização da tecnologia de informatização em saúde, embora com grandes diferenças entre estados, entre municípios e entre áreas rurais e urbanas. O esforço para informatização dos diversos sistemas, relevante para o conhecimento da situação de saúde e para a tomada de decisões em distintos âmbitos (municipal, estadual e federal), demonstra a prioridade dada a essa questão.3

A empresa emite sua opinião, nesse documento, com base nas experiências, conhecidas até então, de informatização no setor saúde. Porém, nada se compara à magnitude do que se propõe o Ministério da Saúde a fazer, que significa, no limite, a informatização de todo sistema de saúde pública do Brasil. Em seus documentos, o Ministério da Saúde informa sobre a expectativa de resultados em relação ao Projeto SCNS:2 PROJETO Executivo do Cartão Nacional de Saúde. HYPERCOM do Brasil. Disponível em <http//www.saude.gov.br/cartao/>. Acesso em nov./2002.3 PROJETO Executivo do Cartão Nacional de Saúde. HYPERCOM do Brasil. Disponível em <http//www.saude.gov.br/cartao/>. Acesso em nov./2002.

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CAPÍTULO I

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Espera-se que o cartão instrumentalize outros processos relacionados à informação e gestão em saúde, de maneira a:

a- possibilitar o acompanhamento das referências intermunicipais e interestaduais, subsidiando a elaboração da Programação Pactuada e Integrada – PPI e os processos relativos às compensações financeiras e ao ressarcimento ao SUS dos valores dos procedimentos realizados naqueles pacientes associados a modalidades de saúde supletiva;

b- possibilitar o acompanhamento do fluxo dos usuários no sistema de saúde, viabilizando a avaliação da qualidade da atenção e melhores controles e auditorias municipais;

c- subsidiar o planejamento e priorização das ações de saúde e o acompanhamento das políticas implementadas, por meio da mensuração da cobertura real das atividades desenvolvidas e detecção de pontos de estrangulamento do sistema de saúde, dentre outras;

d- facilitar a integração dos dados dos Sistemas de Informações de Base Nacional gerenciados pelo Ministério da Saúde, Estados e Municípios e permitir o aporte de outros dados importantes para sua análise;

e- subsidiar processos de regulação do sistema de saúde e de racionalização da utilização de recursos humanos, físicos e financeiros, particularmente ao facilitar ou viabilizar controle prévio da execução daqueles procedimentos de média e alta complexidade/custo, conforme protocolos clínicos padronizados pelos gestores nas três esferas de governo;

f- qualificar a atuação dos profissionais de saúde, por meio da vinculação dos usuários a uma unidade ou equipe de saúde, da disponibilização de informações clínicas dos atendimentos prestados aos pacientes a eles vinculados e de relatórios gerenciais que subsidiem reuniões clínicas e possibilitem a avaliação qualitativa dos procedimentos e prescrições realizados pela equipe de saúde, dentre outros.4

4 BRASIL. Ministério da Saúde. Cartão Nacional de Saúde: Instrumento para um novo modelo de gestão da saúde. Disponível em <http//www.saude.gov.br>. Acesso em 2002.

Como vimos, a intenção de criar o Cartão Nacional de Saúde (CNS), surgiu em 1996, por ocasião da publicação da Norma Operacional Básica, NOB/96. A partir daí, providências foram tomadas pelo Ministério da Saúde para viabilizar o projeto. Entre elas, destaca-se a discussão realizada no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes das três esferas de governo na saúde - municípios, estados e Ministério da Saúde. Ali se estabeleceram as responsabilidades dos municípios habilitados pela NOB/96 para com o Sistema Cartão Nacional de Saúde, ficando assim definido na sua resolução:

Os Gestores do SUS devem implantar a longo prazo o Cartão Nacional de Saúde, nacionalmente, com o objetivo de cadastrar os Usuários, organizar a rede de Atenção Integral à Saúde e implantar um Sistema de Informações que garanta o acesso de todos os Usuários a todas as ações e serviços públicos, conveniados e contratados. O Cartão Nacional de Saúde não poderá, de forma alguma, servir para restringir a assistência, mas garantir a universalidade, respeitada a territorialização, a referência e a contra-referência (BRASIL, 1999).

Outras providências deram-se em seguida: definição de um projeto técnico de constituição do Sistema Cartão Nacional de Saúde, elaboração de edital de concorrência internacional e os encaminhamentos próprios de uma licitação desse tipo. O projeto-piloto, abarcando 44 municípios, foi dividido em três lotes, demarcados territorialmente. Abaixo, um quadro demonstrativo dos municípios que participam do piloto de desenvolvimento do Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde.

QUADRO 1. Municípios que participam do piloto do Projeto Cartão Nacional de Saúde

Estado Município População

BA Salvador 2.331.612

ES Vitória 272.126

MG Belo Horizonte 2.016.497

MS Campo Grande 665.206

PA Castanhal 130.866

PE Cabo de Santo Agostinho 152.863

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PE Recife 1.388.193

PR Adrianópolis 5.987

PR Agudos do Sul 6.975

PR Almirante Tamandaré 82.545

PR Araucária 86.690

PR Balsa Nova 9.467

PR Bocaiúva do Sul 9.292

PR Campina Grande do Sul 35.547

PR Campo do Tenente 6.194

PR Campo Largo 93.798

PR Campo Magro 18.531

PR Campo Mourão 81.239

PR Cerro Azul 19.165

PR Colombo 185.350

PR Contenda 13.816

PR Curitiba 1.618.279

PR Doutor Ulysses 6.129

PR Fazenda Rio Grande 51.210

PR Itaperuçu 19.900

PR Lapa 45.182

PR Mandirituba 17.049

PR Pato Branco 65.285

PR Piên 9.495

PR Pinhais 100.991

PR Piraquara 59.334

PR Quatro Barras 15.573

PR Quitandinha 13.377

PR Rio Branco do Sul 20.532

PR Rio Negro 31.454

PR São José dos Pinhais 205.663

PR Tijucas do Sul 12.950

PR Tunas do Paraná 3.684

RJ Volta Redonda 462.884

SC Florianópolis 275.239

SE Aracaju 434.638

SP Osasco 671.159

SP São José dos Campos 524.806

SP Santo André 631.727

TOTAL 12.908.499

O processo licitatório, encerrado em junho de 2000, culminou com a seleção da empresa Hypercom do Brasil para os lotes 1 e 2 (regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste), e do Consórcio Procomp para o lote 3 (regiões Nordeste, Norte). Uma vez implantados, esses três lotes deverão estabelecer um sistema de informações integrado pelos três níveis de governo, através do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

A equipe técnica encarregada de conduzir o projeto SCNS, nesse primeiro momento, era formada principalmente por profissionais da área de informática, com pequena presença daqueles oriundos da área da saúde. Vencida essa etapa, e com o início dos trabalhos de desenvolvimento do projeto-piloto, sanitaristas foram incorporados aos trabalhos, ocasião em que houve um aumento significativo da estrutura organizacional, junto ao Ministério da Saúde, para operar o projeto nos municípios indicados.

O grupo de sanitaristas incorporados ao projeto SCNS trouxe novos temas à discussão do perfil do sistema, com a intencionalidade de que este não servisse apenas à captura de dados na rede assistencial e transmissão dos mesmos para as instâncias gestoras superiores, mantendo o sistema como um restrito aparato informacional. Passou-se a discutir, então, a necessidade de se desenvolverem soluções de informática, no contexto do SCNS, que ampliassem suas funções para o nível de produção da saúde, ou seja, para a “ponta” dos serviços. Havia, implícito nessa idéia, o pensamento de que era necessário demonstrar aos trabalhadores e usuários que o Projeto seria útil na melhoria dos serviços e que, dessa forma, ter-se-ia mais sucesso no esforço de adesão dos mesmos ao SCNS, indispensável para a viabilidade do Projeto, visto que, são os trabalhadores que geram os dados para registro e que fazem as anotações eletrônicas no Sistema e a transmissão dos mesmos; são eles, enfim, que garantem o funcionamento do Sistema, em níveis ótimos ou não.

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CAPÍTULO I

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Arquitetura tecnológica do SCNS

De acordo com documentos do Ministério da Saúde, das empresas que venceram a concorrência internacional, foram contratados hardware, software, treinamento e assistência técnica, de acordo com as seguintes especificações:

A- Equipamentos

- No âmbito federal – Aquisição de todos os equipamentos necessários ao armazenamento de cadastros e dos dados captados durante os atendimentos realizados pelos serviços de saúde que integram o SUS em todo o País;

- No âmbito estadual – Aquisição de 27 conjuntos de equipamentos necessários ao armazenamento de cadastros e dados captados durante os atendimentos realizados pelos serviços de saúde que integram o SUS em cada estado;

- No âmbito municipal – Aquisição de 44 conjuntos de equipamentos necessários ao armazenamento dos cadastros e dos dados dos atendimentos realizados nas unidades de saúde de cada um dos municípios do projeto piloto. Além disto, foram também contratados o desenvolvimento e a aquisição de 10 mil equipamentos terminais, denominados de Terminais de Atendimento do SUS – TAS. Estes equipamentos são destinados à captação das informações nas unidades de saúde que integram o SUS nesses municípios.

B- Treinamento

A licitação incluiu a aquisição de serviços de capacitação dos recursos humanos responsáveis pela operação do sistema, sejam eles operadores das bases de dados e rede, sejam eles responsáveis pela alimentação do sistema nas unidades de saúde. Cerca de 35 mil pessoas estão sendo capacitadas.

C- Aquisição e desenvolvimento de software

O conjunto de software contratado junto às empresas vencedoras do processo licitatório compreende o aplicativo do terminal de atendimento, os aplicativos de gestão municipal, regional, estadual e federal e os gerenciadores de rede.

D- Cartões magnéticos

Um total de 14 milhões de cartões magnéticos foi contratado para distribuição entre os usuários e profissionais do SUS nos municípios do projeto piloto. Está garantida uma reserva técnica de, pelo menos, um milhão de unidades, destinada à reposição de cartões por um período de dois anos.

D- Manutenção e assistência técnica

O processo licitatório, e os contratos dele decorrente, inclui a prestação de serviços de distribuição, instalação, apoio, operação e manutenção do sistema. Esta manutenção está assegurada por um período de dois anos após a implantação do sistema.

Do ponto de vista tecnológico, o Cartão Nacional de Saúde trabalha com as seguintes premissas:

- Uso de arquiteturas abertas de software.

- Utilização de padrões de informação vigentes no SUS.

- Garantia de independência de qualquer software ou hardware proprietário, incluindo o Sistema Gerenciador de Banco de Dados (SGBD).

- Integração plena com os sistemas de informação de base nacional.

- Arquitetura com servidor municipal, servidor concentrador (como backup e contingência), servidor estadual e servidor federal utilizados para armazenamento, processamento e disponibilização de dados.5

5 Retirado do texto Usos e funcionalidades do Sistema Cartão Nacional de Saúde. (BRASIL, 2002a. p.3-4).

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A arquitetura do sistema é ilustrada pela figura a seguir:

FIGURA 1. Arquitetura do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

Funcionalidades do SCNS

Como já dissemos, inicialmente concebido como um aparato tecnológico para a captura de informações na rede assistencial do SUS, o Sistema Cartão

Nacional de Saúde vai ganhando um perfil diferente, na medida em que foram sendo discutidas e incorporadas ao projeto, novas funcionalidades que, supunha-se àquela altura de construção do projeto, o tornariam apto a ganhar uma importante inserção na assistência.

Contribui com esse fato a constatação de que os registros de dados, realizados desde o cadastramento (são cadastradas as Unidades de Saúde, Profissionais e Usuários do SUS), formam um espetacular banco de dados, ampliando enormemente as possibilidades de obtenção de informações úteis à gestão dos serviços de saúde. A isso, somam-se os dados provenientes de recepção e atendimento aos usuários nos diversos lugares de produção de saúde, dentro de um determinado estabelecimento assistencial.

O debate que começou a partir das funções de registro e consolidação de dados de produção resultou na proposição de novas funcionalidades a serem desenvolvidas como parte do projeto SCNS, em nível do Estabelecimento Assistencial de Saúde (EAS),6 ou seja, nas Unidades Assistenciais que participam do Sistema Único de Saúde (SUS), sejam estatais ou privadas contratadas pelo SUS. Essas funcionalidades adicionais estão descritas abaixo:

1. Agendamento Local: possibilita que as recepcionistas do EAS façam o agendamento e possam emitir um boleto a cada dia, constando a agenda dos trabalhadores da saúde, na respectiva data.

2. Identificação do prontuário: possibilita que o trabalhador postado na recepção do EAS identifique o número e localização do prontuário do usuário que chega procurando pelos serviços assistenciais.

3. Dispensação de Medicamentos: controla a dispensação a ser realizada pelo trabalhador da farmácia, ao nível do EAS, permitindo o registro dos medicamentos dispensados e mesmo do saldo restante, caso não haja todos os que foram prescritos.

4. Registros e controle de exames prescritos e realizados, o que possibilita

6 O Sistema Cartão Nacional de Saúde utiliza, na sua nomenclatura, o termo Estabelecimento Assis-tencial de Saúde (EAS), para denominar as Unidades Assistenciais nas quais será implantado o Projeto. Usare-mos, preferencialmente, o termo que é mais freqüente nos serviços de saúde, como Unidades Básicas, Hospitais, etc., recorrendo à nomenclatura do SCNS, quando isso se fizer necessário para o entendimento do texto.

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acompanhamento dos processos de diagnose encaminhados após o atendimento realizado.

5. Registros de encaminhamentos realizados a partir do atendimento feito na Unidade Básica de Saúde.

6. Integração com os sistemas de base nacionais já existentes.

Essas funcionalidades somam-se àquelas, já definidas anteriormente, vinculadas ao sistema de informações em saúde, principalmente a captura e transmissão de dados de atendimento das Unidades de Saúde e a emissão de relatórios, a partir do banco de dados do SCNS, com possibilidade de inúmeros cruzamentos de dados. Especialmente os gestores têm a expectativa de emissão do relatório de produção ambulatorial para a rede básica.

No documento do Ministério da Saúde Usos e funcionalidades do Sistema Cartão Nacional de Saúde (BRASIL, 2002a) são elencadas as principais funcionalidades do SCNS, a saber:

1- Funcionalidades do Atendimento

- Cadastramento e Geração de Número de Identificação do UsuárioÉ a coleta de um conjunto de dados que identifica, univocamente, cada usuário atendido no SUS. O conjunto de dados coletado para o cadastramento do usuário obedece à legislação vigente no SUS.

- Identificação, Habilitação e Autenticação do Profissional da SaúdePermite a identificação, habilitação e autenticação do profissional da saúde para o registro dos dados de atendimentos.

- Identificação do UsuárioPermite a identificação do usuário para o seu atendimento. A identificação pode ser feita por meio do Cartão Nacional de Saúde ou, nos casos em que o usuário não porta seu cartão, por meio de um número temporário (conjunto de dados cadastrais mínimos para uma posterior vinculação entre todos os atendimentos) ou por meio de um número provisório (conjunto de dados necessários para

geração do número definitivo e do cartão físico).

- Identificação do Estabelecimento Assistencial de SaúdeIdentifica a qual Estabelecimento Assistencial de Saúde se referem os atendimentos que estão registrados, mesmo quando os mesmos forem realizados fora do serviço, isto é, no domicílio, na escola, etc.

- Localização de ProntuárioPermite a vinculação do número CNS com a codificação que identifica os prontuários existentes na unidade para aquele usuário, visando a facilitar a organização e manipulação dos mesmos.

- Agendamento LocalPermite o registro do agendamento de atendimentos no âmbito de um Estabelecimento Assistencial de Saúde, que pode ser feito a partir de uma demanda formalizada ou não.

- Autorização de ProcedimentosPermite a autorização prévia para a realização de atendimentos solicitados, conforme regras definidas pelo gestor.

- Registro de Controle da Dispensação de MedicamentosPermite o registro dos medicamentos prescritos e dispensados conforme especificado na receita médica. Permite também, quando for o caso, a emissão de boleto com saldo resultante da dispensação, efetivamente realizada.

- Registro de Procedimentos DiagnósticosPermite o registro dos processos de coleta e/ou de execução dos atendimentos diagnósticos solicitados por um profissional da saúde de determinado EAS.

- Registro de Procedimentos TerapêuticosPermite o registro dos procedimentos terapêuticos realizados. Compreendem atendimentos de fisioterapia, terapias especializadas, órteses e próteses etc.

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- Registro de Atendimentos Ambulatoriais da Atenção BásicaPermite o registro dos atendimentos individuais e coletivos realizados pelos diferentes profissionais de saúde nos EAS que realizam atendimentos de atenção básica. (consulta médica, de enfermagem, vacinação, palestra etc.).

- Registro de Atendimentos Ambulatoriais de Média/Alta ComplexidadePermite o registro dos atendimentos individuais realizados pelos diferentes profissionais de saúde nos EAS que realizam atendimentos de média e alta complexidade ambulatorial.

- Registro de Atendimentos da Atenção HospitalarPermite o registro dos atendimentos individuais realizados pelos diferentes profissionais de saúde nos EAS que realizam atendimentos hospitalares.

- Registros de Notificações/Comunicações EpidemiológicasPermite o registro de dados relativos às notificações de eventos e agravos durante a captura de atendimentos em saúde. Esses registros subsidiam ações de vigilância epidemiológica e/ou de avaliação e controle. Compreende a notificação compulsória de doenças, de eventos adversos pós-vacina, comunicação de óbito e de nascimento.

2- Funcionalidades da Gestão

- Produção de InformaçõesPermite a geração de produtos informacionais por meio do conjunto de dados capturados nos atendimentos ambulatoriais e hospitalares, registrados pelos profissionais de saúde e armazenados nos níveis municipal, concentrador, estadual e federal. Esses produtos são informações resultantes do relacionamento entre os dados capturados, podendo ser caracterizados como relatórios (pré-formatados ou não), consultas dinâmicas à base de dados, acompanhamento de situações marcadoras e de eventos sentinelas, alertas etc.

- Controle do acessoPermite a configuração do sistema quanto a: autorização, controle, fiscalização e auditoria do acesso à base de dados coletados e de informações produzidas por parte dos gestores, gerentes e demais profissionais de saúde, incluindo os técnicos diretamente envolvidos na operação e manutenção dos equipamentos servidores.O controle de acesso segue as normas definidas no documento “Diretrizes para regulamentar o acesso aos dados e informações do Sistema Cartão Nacional de Saúde”, elaborado pela Secretaria de Investimentos em Saúde, do Ministério da Saúde.

- Cadastramento de Profissional de SaúdePermite a coleta de um conjunto de dados para a identificação unívoca de cada profissional de saúde do SUS. Os dados que devem ser coletados para o cadastramento do profissional devem obedecer à legislação vigente no SUS.

- Cadastramento de Estabelecimento Assistencial de SaúdePermite a coleta do conjunto de dados necessários para a identificação unívoca de cada Estabelecimento Assistencial de Saúde prestador de serviços no SUS e sua inclusão no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, com respectiva atribuição do Código Nacional do Estabelecimento de Saúde (CNES). (BRASIL, 2002a).

Manutenção dos princípios do SUS nos documentos estruturantes do SCNS

Importa informar que, para a operação do Sistema Cartão Nacional de Saúde, várias preocupações relacionadas à manutenção dos princípios do SUS foram discutidas em todo processo, o que é informado pelo Ministério da Saúde no documento Princípios do Sistema Cartão Nacional de Saúde, descritos abaixo:

i. Quaisquer informações identificadoras ou diretamente correlacionáveis com os usuários, decorrentes da utilização do Cartão, serão consideradas confidenciais e sujeitas às mesmas

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normas éticas que regulam o acesso aos prontuários médicos e o seu uso, bem como a sanções legais, civis, administrativas e penais se comprovada a quebra de sigilo;

ii. Em nenhuma circunstância, o fato do indivíduo possuir ou não o Cartão Nacional de Saúde poderá ser utilizado como forma de coação ou de obstáculo ao seu acesso aos serviços de saúde;

iii. Os aplicativos de software e bases de dados, direta e indiretamente relacionados ao Cartão Nacional de Saúde, deverão ser administrados pelos gestores públicos de saúde nas três esferas de governo e/ou sob sua coordenação e responsabilidade diretas;

iv. O Cartão Nacional de Saúde, assim como os aplicativos de software e equipamentos a ele relacionados devem ser considerados como estratégia e instrumento de apoio à plena implementação do Sistema Único de Saúde, o que implica em:

a) Ter seu uso regulamentado em conformidade com as diretrizes definidas pela Constituição Federal de 1988 e a Lei 8.080/90, ou seja, respeitando as premissas de universalidade, equidade e integralidade do sistema, e seus princípios organizativos de descentralização, regionalização e hierarquização da rede de serviços; e,

b) Respeito aos investimentos públicos já realizados para o aporte de informações necessárias à gestão do SUS, devendo assim contribuir para a manutenção e aperfeiçoamento dos Sistemas de Informações de Base Nacional, e para sua estruturação administrativa, subsidiando e induzindo a utilização de sistemas gerenciais de estabelecimentos de saúde e de Centrais de Regulação de internações e de

procedimentos ambulatoriais de média e alta complexidade/custo, entre outras iniciativas já identificadas com o sistema de saúde.7

Política de acesso, preservação da privacidade, impessoalidade da informação no SCNS

Outra iniciativa de relevância, própria de todo sistema informatizado, foi a da elaboração de uma Política de Acesso ao Sistema Cartão Nacional de Saúde, que normatiza o acesso diferenciado, com critérios que mantêm a privacidade das informações do usuário e a segurança quanto à violabilidade do sistema. Nesse âmbito, os mecanismos de segurança adotados pelo SCNS aparecem primeiro em um texto de autoria de Levy et al. (2001), depois em documento oficial do Ministério da Saúde, incluindo os seguintes aspectos:

a) Privacidade e Confidencialidade dos documentos, registros, informações e dados identificados individualmente pelo SCNS, incluindo as normas de controle de acesso e divulgação da informação;

b) Autenticação dos usuários do SCNS;

c) Integridade dos dados, ou seja, os aspectos relacionados à coleta, guarda, manuseio e transmissão dos documentos, registros, informações e dados identificados individualmente pelo Sistema Cartão Nacional de Saúde;

d) Transmissão da informação por meio da rede CNS. (LEVY et al., 2001).

7 BRASIL. Ministério da Saúde. Princípios do Sistema Cartão Nacional de Saúde. Disponível em <http//www.saude.gov.br>. Acesso em 2002.

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Em outro texto, elaborado para treinamento de profissionais de saúde, no âmbito da implantação do Projeto SCNS, há uma preocupação em expor principalmente os conceitos básicos e a legislação que diz respeito à ética profissional, explicitando uma dada idéia de conduta dos profissionais:

Deveremos dizer melhor: devem ser tomados todos os cuidados com os dados e informações que cada pessoa depositar no sistema. Esta pessoa pode ser considerada tanto o paciente, que é o dono dos seus próprios dados como o profissional da saúde que os recebe, registra, manipula, digita, armazena, arquiva, processa e é responsável pela sua guarda e integridade.

Isto não é novidade para pessoas que trabalham nos serviços de saúde. Todas as profissões têm, em seus códigos de ética, normas expressas que proíbem a divulgação de qualquer dado ou informação de pacientes que estão ou estiveram sob seus cuidados e recomendam especial rigor na guarda dos prontuários e fichas clínicas que contenham qualquer informação sobre os pacientes. (BRASIL, 2002b).

Vários mecanismos, utilizando os recursos da informática, são usados para estruturarem protocolos específicos com o objetivo de resguardar a privacidade das informações dos usuários. Em Projeto Cartão Nacional de Saúde, Mecanismos de segurança da informação (BRASIL, 2001a), o Ministério da Saúde fornece orientações quanto a essa questão, identificando restrições de acesso em cada nível da estrutura organizacional e tecnológica do Projeto SCNS.

Para os bancos de dados, o documento orienta que o acesso será restrito a profissionais, devidamente credenciados pelo gestor. O acesso será feito, portanto, através de senha pessoal e intransferível e somente a dados consolidados.

Já para o acesso ao Terminal de Atendimento do SUS (TAS), sugere-se que o mesmo se dê através de cartão magnético específico do profissional de saúde, com o uso de senha, sendo que não será permitido acesso a nenhum outro aplicativo através do TAS. Orienta-se para três níveis de direitos de acesso atribuídos, permitindo a restrição do acesso a funções de configuração, abertura de sessão e operação do equipamento.

No próprio software de operação do SCNS, foram tomadas providências que garantem medidas de segurança, citadas no mesmo documento do Ministério da Saúde. São elas:

Uso de VPN (Virtual Private Network) no âmbito da rede permanente: Todos os roteadores da rede permanente (concentrador, estadual e federal) são interligados através de um mecanismo de VPN, utilizando o protocolo IPSec (Internet Protocol Security), que garante o sigilo de todas as comunicações que trafegam entre os mesmos;

Uso do protocolo HTTPS para troca de mensagens: Todas as mensagens trocadas dentro do sistema, tanto entre o TAS e o Servidor Municipal/Concentrador como entre servidores da rede são efetuadas através do protocolo HTTPS, ou seja, protocolo HTTP (Hypertext Transfer Protocol) sobre o protocolo SSL (Secure Sockets Layer), onde é utilizada a autenticação dos servidores através do uso de Certificados Digitais utilizando sistema de chaves assimétricas de 1024-bits e a cifração do tráfego com criptografia simétrica com chaves de 128-bits (BRASIL, 2001a).

De acordo com Silva Filho,

VPN, significa você criar uma ‘Rede Privativa Virtual’, ou seja, é como se você tivesse uma rede própria, privativa, onde ninguém de fora consegue entrar, em tese. Como na realidade você está se utilizando de uma rede pública, a privacidade vem da utilização de criptografia, que forma um ‘túnel’ de segurança, impedindo que outros possam fazer uso das informações trafegadas ou mesmo conseguir se comunicar, dentro deste túnel. Um dos mecanismos utilizados para criar este túnel é o chamado IPSec, que é o protocolo básico padrão para a Internet (IP = Internet Protocol), mas com a segurança criptográfica já embutida (SILVA FILHO, 2003).

Ainda segundo Silva Filho,

HTTP é um dos protocolos de aplicação padronizados para a Internet, muito utilizado pelos ‘Navegadores Web’, tipo Internet Explorer

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ou o Netscape. Embora tenha sido concebido para ‘navegação’ na Internet, ele pode ser utilizado também por outros tipos de aplicação para troca de dados entre um ‘cliente’ e um ‘servidor’. No HTTP os dados trafegam ‘em claro’, ou seja, qualquer um observando o canal tem acesso à informação. Aqui podemos novamente formar o ‘túnel criptográfico’, formando portanto também um tipo de VPN, pela utilização de uma camada de protocolo abaixo do HTTP chamada SSL, que estabelece uma comunicação protegida criptograficamente para tudo que é transportado pelo HTTP, que chamamos então, a esta associação - HTTP + SSL - de HTTPS, ou seja, HTTP-Seguro (SILVA FILHO, 2003).

O mesmo texto propõe criar, no âmbito do Projeto SCNS, um Comitê de Ética e Privacidade, formado por representantes do Ministério da Saúde e da sociedade civil, com funções de regulação e fiscalização do cumprimento das normas de sigilo de dados e informações pessoalizadas. Finalmente, esse documento encerra propondo que os gestores e as empresas encarregadas de implantar o SCNS assinem um termo onde se comprometem a não divulgar, por qualquer meio, informações que tenham origem no SCNS e estejam resguardadas pelos critérios de privacidade, conforme explicitados.

Os vários documentos publicados revelam, portanto, a intenção existente no Projeto SCNS quanto à garantia do sigilo de dados, informações e privacidade da pessoa. No estágio atual de desenvolvimento do projeto, onde o sistema encontra-se em início de operação em alguns municípios, algumas propostas não foram encaminhadas ainda, como o Comitê de Ética e Privacidade. Mas, pela observação realizada e manifestações nas entrevistas, percebemos que há uma real preocupação com a questão do sigilo dos dados, em que o acesso deve ser permitido somente à equipe assistencial, como já é de praxe, porque são os profissionais encarregados do cuidado com os usuários, nas respectivas Unidades de Saúde.

Projeto SCNS: De um aparato tecnológico a instrumento de gestão voltado à assistência

O que se verifica no decorrer dos acontecimentos, desde a concepção do Projeto Cartão Nacional de Saúde, é uma mudança do seu modelo. Inicialmente

concebido, no âmbito do Ministério de Ciência e Tecnologia, para ser um aparato tecnológico de apoio aos serviços de saúde, um instrumento do sistema de informações, especialmente voltado à gestão dos serviços, evoluiu para uma idéia maior, quando colocado na esfera do Ministério da Saúde, o que pressupõe impactar o nível assistencial, no sentido estrito. Isso é verificado, por exemplo, quando se diz que a base de dados construída a partir do SCNS é capaz de gerar informações que podem “subsidiar os processos de gestão e gerência em saúde, visando a melhorar o acesso e a qualidade da atenção à saúde” (BRASIL, 2002c; grifos do autor da tese). Essa idéia vai perpassar os diversos grupos de trabalho do SCNS, como é explicitado no Manual do cadastramento nacional de usuários do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2002d), elaborado para orientar o processo de cadastro para o SCNS:

Para a atenção básica, esse formato de cadastramento [do SCNS] tem como vantagens:

• Fortalecimento do vínculo entre indivíduos e unidade básica de saúde, por meio da oferta organizada de serviços e do acompanhamento pelos profissionais da rede básica da trajetória dos indivíduos na rede.

• Possibilidade de trabalhar com enfoque na vigilância à saúde, por meio do diagnóstico das condições de saúde e do perfil epidemiológico da população adscrita da área de abrangência da unidade básica, favorecendo a intervenção sobre os fatores e grupos de risco existentes.

• Melhoria da qualidade do atendimento, pelo acesso a informações sobre utilização de serviços pelos pacientes nos diversos níveis de atenção.

• Potencialização das atividades de vigilância epidemiológica e sanitária, por meio da localização espacial de casos e contatos domiciliares, bem como de faltosos aos programas desenvolvidos na rede básica, facilitando a realização de ações de busca ativa, vacinação de bloqueio, acompanhamento domiciliar, tratamento

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supervisionado, entre outras, de modo ágil e oportuno (BRASIL, 2002d, grifos do autor da tese).

O que fica para análise deste estudo, é se essas expectativas de mudanças na assistência foram finalmente verificadas, restando a dúvida de que os formuladores e gestores do Projeto tenham superestimado a potência de um instrumental tecnológico do tipo do SCNS para a mudança do modelo assistencial. Essa é a principal suscitada por este estudo e será objeto de discussões à frente.

Processo de Implantação do Sistema Cartão Nacional de Saúde

O processo de implantação obedece a uma lógica que, pensada inicialmente, não ocorre de forma ordenada ou sincrônica em todo o Projeto. Porém, no município, é necessário que se observe essa lógica, na medida que uma determinada etapa de implantação do projeto oferece insumos para a etapa seguinte. Mesmo assim, o processo foge a uma ordem bem disciplinada.

“O Cadastro Nacional de Usuários é o primeiro passo para a implantação do Cartão Nacional de Saúde em todo o território nacional”, é o que diz o Manual do cadastramento nacional de usuários do Sistema Único de Saúde (ver BRASIL, 2002d). O cadastramento foi regulamentado pelas Portarias GM/MS 017/2001 e GM/MS 938, de 20 de maio de 2002, que dita normas para o cadastramento e estabelece a transferência de recursos aos municípios para financiamento dessa primeira atividade de implantação do Projeto.

São ainda cadastrados todos os trabalhadores da saúde, que realizam assistência, bem como os Estabelecimentos Assistenciais de Saúde. Importa registrar que a atividade de cadastramento não cessa nunca, visto que, a todo instante, novos usuários ingressam no Sistema, outros mudam de endereço, enfim, há uma infinidade de problemas de cadastro que caracteriza a atividade como permanente.

Depois de cadastrada a maior parte da população (inicialmente o Projeto havia estipulado a meta de 60% da população, índice que foi flexibilizado, dependendo do município), dá-se início à fase de implantação da infra-estrutura necessária à instalação do equipamento que opera o SCNS. Já de posse de um “mapa para instalação dos TAS”, é montada a rede do SCNS, os equipamentos para

realizar a captura de dados e fazer a transmissão dos mesmos. Em muitos casos, deve haver uma prévia adaptação da estrutura física da Unidade de Saúde a fim de adequá-la às condições ideais de operação do sistema, com base na ergonomia e conservação do equipamento.

Tendo a maior parte do cadastro realizada e infra-estrutura pronta, com os Terminais de Atendimento do SUS (TAS) instalados, inicia-se o processo de treinamento dos trabalhadores da saúde, para a operação do Sistema. O treinamento para os trabalhadores da rede básica foi realizado em dois módulos. O primeiro, chamado de CNS00, apresenta uma contextualização do Projeto SCNS em relação ao Sistema Único de Saúde. O segundo módulo, chamado de CNS01 ou treinamento operacional, busca capacitar os trabalhadores na operação dos TAS.

Cumprida essa fase, inicia-se a operação do Sistema, incluindo nas atividades rotineiras dos trabalhadores o registro eletrônico de dados, sendo que essa atividade anda em paralelo com o registro manual até que haja condições técnicas e confiança no novo sistema que permitam substituir o registro manual, definitivamente, pelo registro eletrônico de dados. Essa questão foi objeto de um grandioso trabalho, que tentou obter as condições técnicas que possibilitassem compatibilizar os arquivos gerados pelo SCNS com aqueles gerados pelo Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA), elaborado pelo MS/DATASUS, sem resultados positivos até dezembro de 2002. Isso significa que, em São José dos Campos, lugar onde foi pesquisado o SCNS, de maio de 2001 até essa data, os trabalhadores permaneciam realizando dois trabalhos, o registro eletrônico e manual dos dados de atendimento. Naturalmente que essa duplicidade de trabalho — ou jornada extra — causada pelo Sistema gerou um certo grau de desgaste do Projeto em relação às expectativas dos trabalhadores no sentido de facilitarem a sua atividade em curto prazo.

Em seguida, preocupou-se, especialmente a partir de São José dos Campos, em elaborar um método que pudesse avaliar, preliminarmente, o funcionamento do Sistema, tanto no que se refere à segurança e eficácia na transmissão de dados, procurando verificar a fidedignidade dos mesmos, quanto na tentativa de observar se os trabalhadores estavam realizando os registros eletrônicos de dados. A formulação desse método foi conduzida, inicialmente, a partir de um estudo do quantitativo de registros eletrônicos realizados e comparados com os registros manuais. Supõe-se que, quanto maior o número de registros eletrônicos, maior a

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adesão dos profissionais de saúde a essa atividade, vital para o sucesso do Projeto SCNS. Os resultados são apresentados no Capítulo IV.

No diagrama abaixo, tentamos figurar o processo de implantação considerando as diversas etapas que, ao mesmo tempo, interagem na construção do Projeto SCNS.

FIGURA 2. Demonstração do processo de implantação em diversas etapas do SCNS.

Nota-se que é um processo que se desenvolve de forma desigual e combinada, de modo que as diversas fases de implantação vão acontecendo concomitantemente, em franca interação umas com as outras e, ao mesmo tempo, uma fase oferecendo insumos e produtos ao desenvolvimento da outra. O processo de implantação em nível local subverte uma ordem disciplinada e obedece a lógicas pautadas pela condição tecnológica local, adesão política, disponibilidade de recursos, capacitação técnica de pessoal e subjetividades que se identificam com o projeto e produzem, a partir do desejo de construí-lo, as condições para sua viabilidade.

Pela figura, podemos verificar que a concepção e desenvolvimento do Projeto SCNS, estruturado a partir de uma idéia de software operador de todo sistema, vai sofrendo mutações ao longo do tempo, na medida em que vão ficando

claras algumas necessidades reais colocadas pela rede assistencial, no que diz respeito à utilidade de um sistema como esse.

Assim, ao mesmo tempo em que se encaminhava o cadastramento em nível de cada município, a criação da infra-estrutura e o mapeamento da localização dos equipamentos iam sendo realizados. O cadastro como atividade perene no projeto (além do registro de novos usuários, há uma demanda contínua por atualização de dados cadastrais) inicia-se e continua como mais uma rotina de serviço que se instala na rede assistencial.

O treinamento e início de operação do sistema são o ponto crítico do projeto, visto que depende sempre do registro que o trabalhador de saúde faz, para alimentação do banco de dados, a possibilidade de existência útil do sistema. Verifica-se que o treinamento operacional é insuficiente para criar a motivação necessária nos trabalhadores para o registro eletrônico de dados. Diante disso, formulou-se o treinamento de contextualização do SCNS, em relação ao SUS. Mas verifica-se que, além disso, é importante a identificação do trabalhador com o projeto, a motivação, ou melhor, um processo de subjetivação em que ele sinta que o SCNS é útil ao seu trabalho e à assistência que presta aos usuários.

Conforme sugerem Vasconcellos et al. (2002), é necessário que os produtores das informações, ou seja, os trabalhadores da saúde, sejam aqueles que devem controlá-las. Somente a partir desse controle social, digamos assim, o sistema poderá produzir os efeitos esperados de servir à assistência de forma eficaz.

Por fim, a emissão de relatório significa a apresentação do produto final do SCNS e, por conseqüência, a possibilidade de analisar os processos de registro e transmissão de dados e, além disso, verificar a eficácia, segurança e fidedignidade das informações geradas pelo SCNS. Havendo essa segurança, o processo se fecha naturalmente, com a consolidação do SCNS como instrumento de gestão das redes de assistência à saúde.

Todas essas fases foram acontecendo de forma simultânea, interativa, interdependente. A dinâmica dos acontecimentos, a partir da instalação do SCNS na rede local, ganha novos contornos e ocorre sempre a exigência de ajustes no sistema, no sentido de melhor adequá-lo às necessidades dos trabalhadores, que são seus usuários.

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Treinamento para o SCNS

O Sistema Cartão Nacional de Saúde altera o padrão funcional dos trabalhadores que estão nas Unidades de Saúde, lidando com a recepção e atendimento dos usuários. Isto se dá pelo fato de que novas habilidades são requeridas a estes profissionais para a operação do Terminal de Atendimento do SUS (TAS) e dos softwares relacionados ao sistema, o que pressupõe um novo conhecimento a ser incorporado para o exercício cotidiano das suas atividades assistenciais. No nível central da Secretaria Municipal de Saúde, outras habilidades são exigidas, como a operação do servidor municipal, que contém todos os bancos de dados, um nível de maior complexidade do sistema, representando, portanto, maior grau de dificuldade e especialização dos profissionais.

Imaginando, inicialmente, as novas atividades de cada profissional, a partir dos Estabelecimentos Assistenciais de Saúde, facilmente notamos que o esforço a ser realizado para o treinamento é muito amplo, tendo em vista o grande número de trabalhadores ligados à assistência. Alguns desses já detêm alguma noção de informática, e podem assimilar com facilidade as atividades próprias de manuseio do equipamento e operação dos seus programas. No entanto, percebeu-se, durante o processo de preparação para o treinamento, que isso não ocorria com todos os profissionais de saúde. Outra preocupação colocada no campo de ação do treinamento é o da “sensibilização” dos trabalhadores de saúde para o uso do equipamento que estava sendo disponibilizado, ou seja, fazer-lhes entender que o mesmo era importante para o SUS e para seu trabalho, estimulando o empenho de cada um na operação do SCNS.

Diz assim um documento do Ministério da Saúde sobre o treinamento no Projeto SCNS:

As estratégias de treinamento dividem-se em três grupos: treinamentos operacionais, capacitações complementares e mobilização e sensibilização.

No primeiro grupo, estão as ações destinadas a habilitar pessoas para a operação dos equipamentos do Cartão: equipamentos terminais e equipamentos servidores - municipais, concentradores, estaduais e

federais [...]

As capacitações complementares, que integram o segundo grupo, destinam-se ao atendimento de demandas relacionadas ao uso das informações e outras identificadas durante o processo de implantação do projeto. Dentre as atividades que estão sendo desenvolvidas, destacam-se aquelas relativas à disseminação de conceitos de ética, sigilo e privacidade no uso da informação em saúde e aquelas relacionadas ao manuseio da documentação e dos registros de saúde [...]

No terceiro grupo, estão as ações de preparação dos municípios para a mobilização dos profissionais e usuários para a implantação e utilização do cartão, levando-se em conta as experiências locais e as especificidades de cada segmento social. As estratégias de mobilização e sensibilização são estabelecidas nos próprios municípios, com apoio e orientação do Ministério. (BRASIL, 2002b).

De acordo com o mesmo documento do Ministério da Saúde, os números relativos ao treinamento são os seguintes, para o piloto do Projeto:

QUADRO 2. Metas de treinamentos operacionais no projeto-piloto.

Tipos de Treinamento Nº de TreinandosNº de Cursos para Habilitação

Hypercom Procomp

Operador de terminais 27.540 1 1

Administrador de servidor municipal 129 7 9

Administrador de servidor estadual e Suporte técnico 90 23 21

Administrador de servidor federal 20 15 -

Reserva técnica (1) 6.457 -

Total 34.236 46 31

Fonte: GT-Treinamento, Projeto SCNS, MS (Ver BRASIL, 2002b).

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Tabelas do Sistema Cartão Nacional de Saúde

Um recurso fundamental para a implantação do SCNS são as tabelas que irão representar insumo para os registros, cruzamento de dados e emissão de relatórios. Essas tabelas foram construídas a partir de outras já existentes nos diversos órgãos do Ministério da Saúde, sendo que a mais notória vinha da Secretaria de Assistência à Saúde, a tabela de procedimentos do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA). Abaixo, a relação de tabelas em uso no SCNS, de acordo com o “GT-Saúde e Informação”, do Projeto SCNS, em outubro de 2002:

1. Relacionamento – Procedimentos SIA X Tipo de Atendimento

2. Relacionamento – Procedimentos SIA X Grupo de Atendimento

3. Atendimento – Tabela de Encaminhamento Pós-Internação

4. Atendimento – Conselho Profissional em Procedimento de APAC e Hospital

5. Tabela de Faixa Etária

6. Relacionamento – Procedimento SIA X Finalidade

7. Atendimento – Tabela de Ação Programática de Abrangência Nacional

8. Atendimento – Tabela de Ação Programática de Abrangência Nacional com Inclusões

9. Atendimento – Tabela de Procedimento que Exige APAC

10. Atendimento – Tabela de Caráter da Internação

11. Atendimento – Tabela de Condição de Alta da Internação

12. Atendimento – Tabela de Deficiência Funcional

13. Atendimento – Tabela de Doença e Agravo de Notificação – SINAN

14. Atendimento – Tabela de Doença e Agravo de Notificação – SINAN – Com inclusões

15. Cadastramento – Tabela de Escolaridade

16. Cadastramento – Tabela de Nacionalidade – por nome do país

17. Atendimento – Tabela de Natureza da Procura

18. Atendimento – Tabela de Natureza da Procura – 30.08.2002

19. Cadastramento e Atendimento – Tabela de Ocupação em Saúde – CBO-S

20. Cadastramento – Tabela de Órgão Emissor de Documento de Identidade

21. Cadastramento – Tabela de Raça-Cor

22. Cadastramento – Tabela de Sexo

23. Cadastramento – Tabela de Situação Familiar e Conjugal

24. Cadastramento – Tabela de Tipo de Certidão

25. Atendimento – Tabela de Tipo de Óbito

26. Atendimento – Tabela de Tipo de Parto

27. Cadastramento – Tabela de Tipo de Unidade (Estabelecimento de Saúde)

28. Cadastramento – Tabela de Município

29. Atendimento – Tabela de Procedimento SIA

30. Atendimento – Tabela de Procedimento SIA com inclusões

31. Atendimento – Tabela de Saída do Atendimento

32. Atendimento – Tabela de Procedimento SIH

33. Cadastramento – Tabela de Ocupação e Aposentado usando a CBO

34. Atendimento – Tabela de Medicamento, forma farmacêutica e dosagem

35. Atendimento – Tabela de Medicamento, forma farmacêutica e dosagem – com inclusões

36. Elaboração de RPA – Tabela de Tipo de Gestão

37. Atendimento – Tabela de Clínica de Internação

38. Cadastramento – Tabela de Logradouro com Abreviatura

39. Atendimento – Tabela de Laboratório Produtor de Imunobiológico (PNI)

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40. Conversão – Tabela de Atividade Profissional

41. Relacionamento – Tabela de Grupo de Atendimento

42. Relacionamento – Tabela de Tipo de Atendimento

43. Finalidade do Procedimento

44. Conversão – CBOS (CNS) para Atividade profissional (SIA/SUS)

45. Cadastramento – Tabela de Esfera Administrativa – para Gestor

46. Cadastramento – Tabela de Natureza da Organização – para Gestor

47. Tabela de Crítica – Procedimento SIH X Sexo e Tipo

48. Tabela de Crítica – Diagnóstico pela CID-10 X Sexo

49. Procedimento SIA X Sexo e Tipo

50. Atendimento – Tabela de Diagnóstico pela CID-10

Fonte: Projeto MS/SCNS/GT-Saúde e Informação, novembro de 2002.

Um problema importante verificado na definição das tabelas diz respeito à padronização das mesmas, ou seja, é necessário haver o mesmo padrão gráfico para informar ao sistema o que a tabela representa. Exemplo: a tabela de sexo que adota F para feminino e M para masculino não é compatível, em um mesmo sistema, para uma tabela de sexo que usa M para mulher e H para homem. Estabelecer um padrão significa unificar essas representações. Se imaginarmos que as tabelas trazem milhares de informações estruturadas, esse problema mostra-se bem mais sério, o significa que sem a padronização o sistema torna-se inviável. Além desse problema, verificado à época do desenvolvimento do software, o sistema mostrava uma limitação do número de caracteres que seria conveniente utilizar para expressar as informações de cada tabela. Foi necessário, então, um minucioso trabalho para abreviar cada item que consta das tabelas a fim de enquadrá-los no padrão tecnológico exigido (número de caracteres), garantindo a compreensão exata das palavras abreviadas.

Relatórios emitidos no servidor municipal: o produto final do SCNS

Para os municípios onde atuou na implantação do SCNS, entre eles São José dos Campos, a empresa Hypercom ofertou 56 relatórios pré-formatados, a serem utilizados para a obtenção de informações da rede assistencial na qual operava o SCNS. Esses relatórios foram emitidos a partir do servidor municipal e, posteriormente, foram analisados de forma minuciosa durante nosso estudo, considerando para esta análise:

1. A localização do relatório dentro do Sistema;

2. O nome do relatório;

3. A descrição do relatório;

4. Tabelas usadas para compor o relatório;

5. Finalidade do mesmo;

6. Periodicidade para sua emissão;

7. Nível de desagregação recomendado;

8. Usuários preferenciais das informações constantes do relatório (níveis de gestão, equipes assistenciais, etc.);

9. Eficácia na emissão do relatório (funcionamento do sistema);

10. Consistência dos dados;

11. Ambiente (software) de execução do relatório;

12. Origem dos dados (software);

13. Possibilidades de saída do relatório (impressão, exportação para outros aplicativos).

Os relatórios ofertados pelo Sistema estão relacionados no anexo I, constando ainda sua finalidade e descrição.

Entre os relatórios elaborados pela empresa, por encomenda do Ministério da Saúde, existem vários deles que, após a análise realizada, devem ser ajustados tanto na sua composição quanto nos sentidos que se pretende dar aos mesmos. Verificou-se, inclusive, que a composição de alguns é impossível em razão da

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inexistência de dados, pois os mesmos não são capturados pelo Sistema - como, por exemplo, a base territorial de Área de Abrangência e algumas informações de base populacional. Sendo assim, a partir da análise realizada, sugerimos a exclusão de alguns relatórios, seja pelos motivos acima ou, ainda, pela inconsistência de dados ou mesmo por serem repetidos. As mudanças sugeridas estão devidamente anotadas após o nome de cada relatório, ficando os demais como aqueles a serem considerados para a operação do SCNS.

Os erros cometidos na concepção desses relatórios e, conseqüentemente, sua oferta para os municípios, dessa forma, demonstram as dificuldades de desenvolvimento do Projeto SCNS. No entanto, os experimentos realizados para emissão dos mesmos demonstram um grande potencial do software para o cruzamento de dados, oferecendo ao gestor muitas possibilidades de informar-se para a tomada de decisões, como demonstra o quadro anterior.

Importa registrar que se pretende, com este estudo, verificar o impacto que o projeto SCNS causa nos processos de trabalho em saúde, com foco na micropolítica. Dessa forma, busca-se revelar se a implantação do SCNS muda o modelo tecnoassistencial para a saúde, com todas as implicações que envolvem um processo de mudança do modelo de produção do cuidado. Essas questões são discutidas no próximo capítulo, que trata da construção do objeto de pesquisa e da metodologia de investigação.

CAPÍTULO II

CONSTRUINDO O PROBLEMA

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor con-cedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre _ o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

O Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS) representa uma grande novidade no cenário da política de saúde no Brasil, no âmbito das questões relacionadas à Informação, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa novidade aparece, em primeiro lugar, na decisão política do Ministério da Saúde de promover uma generalizada informatização da rede assistencial, dando seqüência, como já informado no primeiro capítulo, às orientações da Norma Operacional Básica de 1996. Um Projeto que se verifica tão grandioso, em função das dimensões territoriais do país, quanto portador de uma importante complexidade tecnológica, devido à própria normatização do SUS à qual o software deve responder. Essa complexidade é maior se verificada a necessidade do SCNS interagir com inúmeros outros sistemas, tanto os de base nacional, desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, através do DATASUS, quanto muitos que são desenvolvidos em larga escala pelos municípios ou adquiridos pelos mesmos. Para isso, será necessária uma rigorosa padronização de todas as tabelas e insumos necessários à elaboração do software, na composição desse Projeto.

Além das preocupações concernentes ao seu desenvolvimento, há uma complexa rede de petição e compromissos, com grande capacidade de influir nos rumos do Projeto, composta principalmente pelos estados e municípios, com os quais o Ministério da Saúde deverá pactuar a implantação do SCNS. Isso deve se dar tanto na busca dos recursos políticos, do apoio efetivo à proposta, quando no envolvimento de suas áreas técnicas.

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A proposta de implantação do Sistema Cartão Nacional de Saúde é pioneira pela sua magnitude, pois a maioria das propostas de informatização de sistemas de saúde vinha pelos municípios, detentores de recursos financeiros e técnicos que possibilitaram avançar nessa direção, ou através do DATASUS, órgão que centraliza o desenvolvimento de sistemas e gerenciamento de banco de dados no SUS, operando vários sistemas direcionados principalmente ao gerenciamento de diversos programas do Ministério da Saúde. Diferente disso, naturalmente, o SCNS é um projeto nacional, como foi demonstrado no Capítulo I, significando que a rede assistencial estará interligada, em uma arquitetura ascendente, nos níveis municipal, estadual e nacional. A pessoa que estiver em um Estabelecimento Assistencial de Saúde poderá, assim, transmitir seus dados que, por via dos servidores postos em cada nível de gestão do Projeto, deverão chegar até o servidor federal, compondo um banco de dados da saúde unificado e integrando todo o sistema nacional de informações.

Uma intervenção de tal extensão, com introdução maciça de novas tecnologias de informática nos níveis de produção da saúde, isto é, no espaço da micropolítica de organização do processo de trabalho, leva-nos a questionar se essa intromissão altera o modo de produção da saúde. Seja nos fluxos assistenciais, na percepção do usuário em relação aos serviços, nos processos de cuidado, no imaginário de trabalhadores de saúde em relação às possibilidades do SCNS interferir no seu cotidiano. Enfim, inúmeros são os efeitos possíveis que a implantação de um instrumental dessa natureza poderá causar no modelo de assistência e gestão à saúde.

Pretende-se, aqui, analisar essa experiência à luz da construção do Sistema Único de Saúde, buscando evidências de mudança, se for este o caso, no modelo tecnoassistencial. Portanto, o método de investigação deverá contemplar a análise dos processos assistenciais sob o Projeto SCNS, entendendo-os, como nos diz Merhy, como portadores de uma dimensão tecnológica e outra assistencial, stricto sensu. Por outro lado, o método deverá também ser potente para analisar a dimensão da gestão em saúde, considerando que essa função deve sofrer algum impacto com a implantação do Projeto. O estudo tem como foco o nível micropolítico, ou seja, a esfera de produção do cuidado.

O primeiro problema que colocamos para o estudo tem por escopo analisar a potencialidade do SCNS, enquanto sistema de informações, em processar a rede de petição e compromissos, na direção de uma alta instância governamental

(G) para uma outra (g), utilizando para isso da captura e controle dos níveis de gestão nessa esfera. Entendemos que a gestão na saúde é uma construção sócio-histórica realizada entre sujeitos que se relacionam e disputam em determinada arena seus projetos, buscando um desenho interessado da realidade, mas que, ao final, é sempre pactuado sob conflitos e tensões múltiplas. O estudo buscará captar uma série de fatores implicados nessa questão, considerando as três esferas de governo, a autonomia de gestão do nível municipal e local, o autogoverno dos trabalhadores na organização do seu microespaço de trabalho, o controle e autonomia do processo de produção do cuidado na saúde, a relação entre o Trabalho Morto e o Trabalho Vivo na Composição Técnica do Trabalho8 e, por conseqüência, a definição do perfil assistencial ofertado aos usuários. Partimos da premissa de que os processos de trabalho determinam o perfil do modelo de assistência e, portanto, este é o principal marcador para a análise.

A construção do problema requer também que se pense o SCNS como algo que vai além de um aparato tecnológico, mas que tem significado junto à ação dos sujeitos produtores da saúde. Nesse sentido, imagina-se que há produção de uma certa subjetividade a partir do relacionamento que os trabalhadores passam a ter com o SCNS, sendo este um dos fatores de determinação dos processos de trabalho e de eficácia do Projeto, tendo em vista a necessidade de criar-se adesão dos trabalhadores ao mesmo para o seu funcionamento e resultados plenos.

A interação entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo na produção da saúde: pensando o problema do impacto do SCNS na micropolítica do processo de trabalho

“É porque dizem respeito aos humanos que estas viradas na história dos artefatos informáticos nos importam” (LÉVY, 1998a: 54). A frase de Pierre Lévy, em Tecnologias da inteligência, soa emblemática. Temos, com certeza, muitas razões para imaginar que os processos de informatização têm sua natureza ligada exclusivamente às “tecnologias duras” (máquinas e instrumentos); seja na produção de equipamentos ou no desenvolvimento de softwares, há um maciço esforço intelectual, físico, maquínico, voltado para este fim, isto é, para a construção de equipamentos, o que, em muitos casos, domina a cena de toda 8 Estas categorias são desenvolvidas no Capítulo III, onde será detalhado o recorte teórico do estudo.

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a produção da área.9 No entanto, se imaginamos que, na atividade-fim, todo esse sistema só funciona relacionando-se com o trabalho humano, isto é, em interação com Trabalho Vivo em ato, outras variáveis passam a compor o cenário de desenvolvimento de um projeto como o SCNS. Essas variáveis estão ligadas à especificidade que têm os processos de trabalho em saúde, inclusive no que se refere a uma certa subjetivação necessária para a assimilação de todo o aparato tecnológico pelos trabalhadores da saúde.

Diante disso, concluímos que a incorporação de novas tecnologias no processo de produção da saúde não diz respeito apenas a um processo de base material, mas tem, acima de qualquer coisa, uma natureza humana, e que seu funcionamento não obedece apenas a uma lógica instrumental, mas requer a ação dos sujeitos. Esse é o ponto de partida para se pensar o Sistema Cartão Nacional de Saúde como um sistema que combina, de um lado, o equipamento (hardware) e o sistema operacional (software), chamado por nós de “Trabalho Morto”, porque já traz, como ferramenta bem estruturada, o acumulado de um trabalho antecedente que foi incorporado nesses instrumentos (MARX, 2001; MERHY, 1997, 2002). De outro lado, para o seu funcionamento, o SCNS precisa do protagonismo dos que trabalham em saúde, a ação do Trabalho Vivo, realizado em ato. Essa combinação e interação entre “Trabalho Morto” e “Trabalho Vivo” faz com que o SCNS opere naquilo que lhe é dado como missão, o que, concretamente, significa registrar, guardar, transmitir, organizar banco de dados, processar informações e emitir relatórios-síntese, ou seja, a parte nuclear de um sistema de informações em saúde. Um processo interativo a todo o tempo, no espaço micropolítico e nos ambientes de gestão do SUS.

O ambiente de produção da saúde é por excelência um lugar no qual se estabelecem inúmeras relações interdependentes, no espaço micropolítico. Essas relações formam uma rede de petição e compromissos e o seu funcionamento está ligado à idéia de produção de saúde, isto é, se produz a partir do trabalho interativo entre os sujeitos colocados nesse lugar. Pierre Lévy trabalha com a idéia de que processos de informatização povoam os ambientes onde antes habitavam apenas pessoas, ou seja, “máquinas inteligentes”, capazes de interagir com os trabalhadores que ali estão, passam a compor a rede de petição e compromissos

9 Ver MERHY (1997, 2000).

para a produção. Assim, esses processos criam interferências na rede de relações que constituem os processos produtivos. Dessa forma, pode-se imaginar que a informatização opera no ambiente mesmo das relações que se estabelecem entre essas novas tecnologias e as pessoas que “habitam” aquele lugar de produção, onde elas passam a conviver, a se relacionar e a produzir juntamente com essas novas tecnologias ali implantadas. No SCNS, o fenômeno é o mesmo, ou seja, estamos o tempo todo tratando de relações que são inexoravelmente estabelecidas entre máquinas (Trabalho Morto) e as pessoas (Trabalho Vivo), compondo uma nova “ecologia cognitiva” na Unidade de Saúde, no termo usado por LÉVY (1998b).

O autor pensa as novas máquinas informáticas como uma outra inteligência que se relaciona com as pessoas através da área cognitiva e, nessa relação, constrói a possibilidade de produção. Mas esse relacionamento não ocorre por si só e nem mesmo pode-se dizer que seja fácil de se consumar. Depende da capacidade do “sistema” interagir com os trabalhadores, demonstrar capacidade de participar da rede de produção existente no ambiente de trabalho, enfim, impactar os trabalhadores naquilo que pode motivá-los para o seu uso. Lévy faz uma crítica aos informatas que tratam o desenvolvimento de programas e sistemas como algo que diz respeito exclusivamente à técnica, distante do componente humano, cultural e social implicado com a questão, responsabilizando, de certa forma, o processo de formação dos profissionais da área, dizendo o seguinte: “A maioria dos informatas hoje [...] intervêm sobre a comunicação, a percepção e as estratégias cognitivas de indivíduos e de grupos de trabalho; apesar disso, não encontramos em seu currículo nem pragmática da comunicação, nem psicologia cognitiva, história das técnicas ou estética. Como acordar os futuros informatas para a dimensão humana de sua missão?” (LÉVY, 1998a:56), pergunta-se o autor para, depois, revelar: “Somos forçados a constatar que o ensino superior produz hoje, na maioria dos casos, ‘especialistas em máquinas” (idem, ibidem), o que o Lévy considera insuficiente para formar informatas à altura dos desafios de se pensar uma nova sociedade com esse novo componente.

Félix Guattari entra no debate fazendo o seguinte questionamento:

Devem-se tomar as produções semióticas dos mass mídia, da informática, da telemática, da robótica etc. [...] fora da subjetividade

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psicológica? [e responde em seguida] Penso que não. Do mesmo modo que as máquinas sociais que podem ser classificadas na rubrica geral de Equipamentos Coletivos, as máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio das suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes (GUATTARI, 1998:14).

Corroborando essa idéia, Lévy diz que a informática “não intervém apenas na ecologia cognitiva, mas também nos processos de subjetivação individuais e coletivos” (LÉVY, 1998a:56). Entendemos por isso o fato de que o processo de informatização de uma rede de assistência à saúde pode impactar os trabalhadores e seu processo de trabalho, assim como pode influir nas relações entre esses trabalhadores e os sujeitos aos quais eles assistem, os usuários e seus problemas de saúde. Isso será objeto de investigação neste estudo, no qual se busca, através de alguns analisadores, revelar se o SCNS impacta realmente os processos de trabalho, se muda os modelos assistenciais.

Um aspecto importante a ser tratado é o fato de que, “por mais que elas sejam consubstanciais à inteligência dos homens, as tecnologias intelectuais não substituem o pensamento vivo” (LÉVY, 1998a:131). Essa afirmativa coloca em evidência o componente “Trabalho Vivo em ato”, presente em todo processo de produção, mesmo que utilizando as “tecnologias da inteligência”, na expressão de Lévy. No caso da saúde, isso ganha relevância pelo fato de que o processo de produção ocorre sempre de forma relacional, na qual o protagonismo dos sujeitos é fundamental e insubstituível. O produto e o resultado que se obtêm ao final de uma dada “linha de produção do cuidado” em saúde serão sempre determinados pelo modo como se relacionam e operam o “Trabalho Vivo” (TV) e o “Trabalho Morto” (TM), em especial, a razão entre os dois, ou seja, a hegemonia estabelecida no processo produtivo entre TM e TV, o que será discutido como a Composição Técnica do Trabalho (CTT). No caso de informatização do ambiente de produção, novas interfaces são acrescentadas aos diversos processos relacionais e produtivos que se realizam no cotidiano das Unidades Assistenciais.

Outro aspecto importante enfocado na obra de Lévy diz respeito às categorias de “territorialização” e “virtualização”, que contribuem para entender

o contexto de lugares e fazeres onde há incorporação de tecnologias informáticas nos processos produtivos. Sobre isso, diz o autor que o virtual não é o que se opõe ao real, pois o virtual é algo que existe e apenas necessita de um processo de atualização para se apresentar.

Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes (LÉVY, 1998b:15).

O virtual, portanto, é potência de ser: “A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades” (LÉVY, 1998b:15). A atualização pressupõe uma territorialização como forma de acontecimento do devir que existe no virtual. Virtualização e territorialização são categorias que ajudam a explicar o processo cognitivo e subjetivo pelo qual passa uma pessoa, em atividade produtiva, na seqüência de atos necessários à realização de sua produção. No caso do trabalhador da saúde, ajuda a compreender o movimento que faz ao transitar no seu processo de trabalho, da anotação manual de dados, para o registro eletrônico, no caso do SCNS, por exemplo.

Para pensar a questão, imaginemos a seqüência dos diversos atos necessários ao registro de dados, realizados nos serviços de saúde, em função dos atendimentos feitos pelos trabalhadores. Hoje, o sistema de informações em saúde é abastecido por dados que são gerados em cada atendimento e anotados, em uma primeira instância, pelo trabalhador de saúde. Essa anotação é feita, pela escrita, em formulários. Antes de escrever, ou seja, no espaço de tempo entre o procedimento realizado e a anotação, os dados são virtuais, existem (no plano cognitivo), mas não têm uma existência material. O ato de escrevê-los, atualiza-os, dando-lhes um território determinado, o formulário. O território, nesse caso, é um lugar físico e seguro, onde os dados anotados pela escrita ganham um espaço e ficam ali, sob o campo visual de quem os anotou, são algo concreto que permanece territorializado.

No caso do registro informatizado, o trabalhador anota os dados do seu atendimento em uma interface que está inserida no Terminal de Atendimento do

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SUS (TAS). Esse dado sofre o processo de atualização e ganha rapidamente um território, aquela interface eletrônica. Ali, ele não permanece, pois é transferido para a memória do equipamento ou transmitido para o servidor municipal, virtualiza-se novamente, saindo do campo visual e controle do profissional da saúde, perde “materialidade”. O fato de esses dados se virtualizarem altera a relação que o trabalhador mantinha com os mesmos, nos processos anteriores, quando permaneciam fixos em determinado território, o formulário. Na situação do registro eletrônico, os dados permanecem virtuais, sendo atualizados a cada relatório que será solicitado, posteriormente, ao servidor municipal, um equipamento que se encontra distante daquele lugar de produção de saúde.

O ambiente no qual se dão os fenômenos de territorialização e virtualização de dados, produto da atividade específica de informar a produção e a assistência à saúde, é, ao mesmo tempo, um ambiente cognitivo, subjetivo e tecnológico. A informatização vem configurar uma nova “ecologia cognitiva”, mas também subjetiva e tecnológica, em ambiente complexo, nos lugares de trabalho e nas Unidades Assistenciais e gestoras do SUS. Pode-se dizer que essa nova ambientação é um dos impactos produzidos pela informatização no que diz respeito ao modus operandi dos trabalhadores e aos diversos aspectos do seu processo de trabalho.

Outra questão importante diz respeito à otimização possível do sistema de informações, visto que a anotação eletrônica de dados, sua transmissão, quase em tempo real, da Unidade de Saúde para outros equipamentos que gerenciam todas as informações do município, possibilitando a emissão de relatórios gerenciais, ao mesmo tempo, pode impactar positivamente a gestão dos serviços de saúde, pois aumenta a capacidade de governo dos gestores (no sentido matusiano)10 diante dos processos produtivos. Importante considerarmos, nessa discussão, o conceito de informação como o adotado por Pierre Lévy: “Segundo a teoria matemática da comunicação, uma informação é um acontecimento que provoca uma redução de incerteza acerca de um ambiente dado” (LÉVY, 1998b:57). Um processo informacional otimizado será capaz de reduzir os graus de incerteza no planejamento e programação dos serviços de saúde, contribuindo para sua melhor performance na gestão. Digo contribuindo porque um processo de gestão 10 Refere-se a Carlos Matus, autor da proposta de planejamento estratégico situacional. Ver, nesse sen-tido, MATUS (1993).

adequado às necessidades de sistemas de saúde é organizado a partir de diversos determinantes e não apenas sobre a capacidade de programação. E, nesse ponto, registra-se, o SCNS tem muito a contribuir.

Metodologia

Segundo Minayo (1999), uma metodologia inclui as concepções teóricas utilizadas no estudo, associadas a um conjunto de técnicas para apreender a realidade. O que se verifica aqui é exatamente isto, o uso de diversos campos do conhecimento, associado a fontes de informações e instrumentais que compõem, ao final, uma caixa de ferramentas, com potência suficiente para analisar o Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde, SCNS, e os fenômenos ligados à produção da saúde, ou seja, os impactos advindos de sua implantação na rede de assistência.

Este estudo toma como campo de pesquisa a rede básica de saúde do município de São José dos Campos, São Paulo, especificamente a Unidade Básica de Saúde (chamada, às vezes, de Estabelecimento Assistencial de Saúde – EAS, segundo a nomenclatura do Projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde) Jardim Satélite.

Essa Unidade foi indicada para este trabalho por ter sido a primeira a implantar o SCNS, em 12 de maio de 2001, tendo, portanto, um processo de maturação do Projeto mais desenvolvido, possibilitando melhor captura dos efeitos produzidos pelo SCNS nos processos de trabalho e das suas potencialidades. Julga-se que os fenômenos decorrentes da implantação do Projeto nessa Unidade tendem a se repetir nas demais, considerando que são pertencentes a uma rede básica, com estabelecimentos de mesmo tipo.

O estudo pretende, em aproximações sucessivas, apropriar-se do objeto de estudo e verificar, em campo, os elementos que podem responder aos problemas colocados para a investigação. A metodologia deverá perceber especialmente as questões relacionadas ao espaço microrganizacional, onde há um processo produtivo em rede de petição e as relações se evidenciam em um emaranhado de microprocessos que determinam, em muitos sentidos, o fazer na assistência à saúde. Esses movimentos compõem um núcleo do processo de trabalho com determinada composição tecnológica, organizado, de outro lado, por processos de subjetivações.

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Não fazemos, para efeito do estudo, diferenças entre métodos quantitativos e qualitativos, considerando que todo estudo comporta a análise de dados e também dos determinantes sociais, culturais e subjetivos que compõem a realidade. O estudo nos faz caminhar para a avaliação

do universo de significações, motivos, aspirações, atitudes, crenças e valores. Esse conjunto de dados considerados ‘qualitativos’ necessita de um referencial de coleta e de interpretação de outra natureza. [...] o próprio Gurvith nos adverte que essas camadas são interdependentes, interagem e não podem ser pensadas de forma dicotômica (MINAYO; 1999:28).

Objetivo geral

O objetivo está relacionado ao problema colocado para este estudo: verificar e analisar o impacto que o SCNS tem no modelo tecnoassistencial para a saúde, através da abordagem dos processos de trabalho, tendo como foco o espaço micropolítico e os processos de produção do cuidado. Os principais referenciais de análise são os processos e tecnologias de trabalho em saúde, como expressão ou não de uma certa reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica no setor. Além disso, há o objetivo de verificar o quanto o SCNS possibilita ou não a modelagem dos serviços de saúde locais, através do controle do gestor local pelo nível de gestão federal (Gàg). Chamo a atenção para o fato de que não se pretende avaliar o SCNS em si mesmo, mas seus efeitos na produção do cuidado e gestão dos serviços de saúde.

Objetivos específicos

Caracterizar o Sistema Cartão Nacional de Saúde e contextualizá-lo no âmbito do Sistema Único de Saúde como instrumento do Sistema de Informações e Gestão.

Descrever as potencialidades e limites do SCNS quanto a dar conta dos propósitos colocados para o Projeto, pelo próprio Ministério da Saúde, expressos nos principais documentos estruturantes da concepção e desenvolvimento do mesmo.

Demonstrar a potencialidade da ação estatal central em modelar o gestor local de saúde, a partir do SCNS.

Verificar e analisar, no espaço micropolítico, o impacto causado pela implantação do SCNS nos processos de trabalho e, por conseqüência, seus efeitos junto ao modelo tecnoassistencial para a saúde.

Analisar a possibilidade de o SCNS alterar a Composição Técnica do Trabalho (CTT), isto é, a razão estabelecida entre o Trabalho Morto (TM) e o Trabalho Vivo (TV), servindo ou não de dispositivo para uma dada reestruturação produtiva no setor.

O desenho analítico

Apoiamo-nos no esquema analítico proposto por MERHY (1998a), que sugere analisar os serviços de saúde a partir de três dimensões, a saber, da política, da organização e da produção do cuidado. Construiremos, a partir dessas dimensões, nossa matriz analítica, propondo indicadores capazes de avaliar o impacto do SCNS na organização da assistência e gestão.

No plano da política

Nesse plano sugerimos verificar a capacidade do nível de gestão nacional (G) de induzir determinada modelagem do serviço de saúde em relação ao gestor local (g), através do SCNS e dos instrumentos que este oferece para isso. Nesse sentido, as questões aqui colocadas referem-se ao seguinte: a) o SCNS instrumentaliza o gestor federal para propor mudanças no modelo tecnoassistencial de nível local? b) de posse das informações pertinentes à determinada organização da gestão dos serviços de saúde, fornecidas pelo SCNS, quem decide sobre as mudanças a serem implementadas em nível local? c) o desenvolvimento do SCNS interfere no pacto de gestão existente entre as três esferas de governo? d) no espectro do SCNS, e a partir de informações e instrumentos disponibilizados pelo mesmo, que questão fica para decisão dos níveis federal, estadual e municipal? Há, nesse aspecto, conflito de competências ou a pactuação existente até então, no âmbito da gestão do SUS, é suficiente para manter o equilíbrio entre os três níveis de governo, com respeito ao princípio da municipalização?

Outra questão importante de se analisar no plano da política é a capacidade que deve ter o gestor local de produzir adesão ao Projeto SCNS, junto aos trabalhadores

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de saúde, o que pode ser visto através do volume de registros eletrônicos efetivos em relação ao dos registros manuais, contabilizados para efeito do Boletim de Produção Ambulatorial. Diferentes quantidades de anotações dos procedimentos realizadas no Terminal de Atendimento do SUS (TAS) sugerem diferentes graus de adesão dos trabalhadores de saúde ao projeto. Qual o nível de registro eletrônico na área de enfermagem, em consulta médica e demais procedimentos, discriminados por local de produção e categoria profissional, quando comparado com o registro manual? Essa é a questão a ser respondida para este item, considerando que o apoio e adesão dos trabalhadores constituem, no plano da política, fator crítico de viabilidade do projeto.

No plano da organização

Aqui, temos problemas de duas ordens para serem analisados. Uma primeira diz respeito a todo ambiente físico, de hardware e software a serem verificados para compor uma idéia de como esses elementos impactam a organização da assistência e gestão dos serviços. Uma segunda refere-se às equipes assistenciais e de gestão da saúde, considerando em que níveis elas foram alteradas ou não, na sua composição, processo decisório, competências, padrão funcional.

As questões colocadas, portanto, referem-se ao seguinte:

1. o ambiente físico foi alterado; em que nível e que recursos foram mobilizados para isso? O planejamento do hardware foi realizado de forma eficaz, esses foram suficientes, sua tecnologia compatível com os propósitos do projeto, e a distribuição dos mesmos no espaço de produção da saúde, é adequada ao que se propõe? O software desenvolvido para operar o sistema em rede básica tem se mostrado eficaz na captura, registro e transmissão de dados e nos outros propósitos do projeto para este tipo de estabelecimento assistencial?

2. houve alteração das equipes de nível central da Secretaria Municipal de Saúde em função do desenvolvimento do Projeto SCNS, em que sentido, que habilidades foram incorporadas? Houve alteração das equipes assistenciais da Unidade Básica de Saúde em função da implantação do SCNS, em que nível? Houve mudança do padrão funcional, do ambiente de trabalho, da ergonomia? Que nível de acesso

a dados e informações, proporcionados pelo SCNS, a equipe local tem para planejamento e programação das atividades assistenciais? Que competências a equipe local reúne, a partir do SCNS, na operação do mesmo e no seu uso para a assistência?

No plano da produção do cuidado

As questões aqui colocadas são de três ordens:

1. analisar o processo de trabalho sob o SCNS, procurando desvendar a composição do seu núcleo tecnológico, o qual identificamos como a Composição Técnica do Trabalho (CTT), dado pela correlação entre Trabalho Morto (TM) e Trabalho Vivo (TV). Nesse sentido, é importante verificar se o SCNS altera os processos de trabalho, nos diferentes lugares de produção do cuidado existentes em um Estabelecimento Assistencial de Saúde, nível básico. Se é este o caso, em que nível isso ocorre na Composição Técnica do Trabalho (CTT), na adesão dos trabalhadores a uma nova modalidade de trabalho, na organização do processo de trabalho, no modo de agir em saúde no sentido da produção do cuidado?

2. outra questão fundamental diz respeito aos projetos terapêuticos, entendidos como o conjunto de atos assistenciais, programados para o cuidado ao usuário e que reúne diversas tecnologias do cuidado disponíveis aos trabalhadores da saúde. O SCNS provocou alterações nas tecnologias do cuidado, intervindo nos projetos terapêuticos existentes no nível da Unidade Básica? A partir das tecnologias de informação disponibilizadas pelo SCNS, houve alteração dos fluxos produtivos do cuidado, no sentido de desaprisioná-los de uma lógica estruturante do modelo médico-hegemônico? Que potencialidades os relatórios disponibilizados pelo Projeto SCNS têm para uso do gestor? O SCNS abriu novas composições tecnológicas e novos sentidos para o agir em saúde? O SCNS instrumentaliza o gestor para promover uma reestruturação produtiva do setor?

3. por último, deve ser vista a possibilidade de o SCNS, através dos seus instrumentos, potencializar a ação estatal para promover mudanças no sentido, inclusive, de uma reestruturação produtiva do setor de

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saúde. Nessa linha de análise, ficam muitas perguntas que vão além das possibilidades que tem o SCNS de respondê-las. No entanto, pode-se verificar se o Projeto pode constituir um dos elementos a serem utilizados para induzir um processo de mudança nessa direção, operado a partir do segmento estatal.

Instrumentos e coleta de dados

Realizou-se inicialmente uma pesquisa bibliográfica objetivando revisar a literatura em torno de Sistemas de Informação em Saúde, da produção da saúde como expressão de tecnologias de trabalho que compõem determinado processo de trabalho como seu núcleo tecnológico. A literatura pesquisada está centrada também na configuração dos modelos tecnoassistenciais, em suas diversas nuances, especialmente, a caracterização do modelo médico-hegemônico e das alternativas ao mesmo.

Considerando a matriz analítica adotada para este estudo, partimos do pressuposto de que não há um único referencial teórico a contribuir no processo de avaliação do SCNS e seus impactos no modelo tecnoassistencial. Vários referenciais teóricos são chamados para este trabalho, formando um amálgama sob o qual nossa caixa de ferramentas deve operar para chegar aos resultados e conclusões finais que respondam às questões aqui colocadas.

A pesquisa bibliográfica veio buscar o estado da arte no que se refere ao tema dos modelos assistenciais para a saúde e reestruturação produtiva no setor. Verifica-se que, em relação à reestruturação produtiva, para o caso específico da saúde, a literatura disponível é relativamente escassa, visto que, nessa área, o tema passou a ser tratado muito recentemente. Há uma extensa bibliografia disponível para o que se refere à produção industrial, especialmente a partir da matriz marxista que trata a questão, no âmbito da economia política, e que pode oferecer contribuição para a compreensão da influência que tem uma certa razão econômica na estruturação da modelagem tecnológica na produção. Diversos autores de linhagem marxista focam suas análises nos processos industriais, oferecendo pouco subsídio para analisar o caso da saúde. Mesmo autores da tradição da reforma sanitária brasileira, que trazem essa matriz teórica para análise do perfil produtivo da saúde, discutem pouco sobre o espaço micropolítico e a ótica do cuidado, como expressão de diversos saberes e fazeres, a clínica incluída.

Referenciamo-nos, principalmente, nos autores que se agruparam em torno do Laboratório de Planejamento e Administração em Saúde (LAPA) da Unicamp. Buscamos subsídios para analisar as implicações do SCNS com a reestruturação produtiva na saúde especialmente nos trabalhos relacionados ao processo e às tecnologias de trabalho, à relação entre Trabalho Vivo (TV) e Trabalho Morto (TM) nos processos produtivos, e ao protagonismo dos sujeitos trabalhadores na condução de mudanças na saúde (CAMPOS, 1992, 1994ab, 1997; MERHY, 1997, 1998a,b,c, 2002; CECÍLIO, 1994, 1997).

Buscou-se ainda o campo do institucionalismo, seja na análise institucional, socioanálise e esquizoanálise, instrumental para a compreensão dos processos de subjetivações na determinação das relações sociais e de produção da saúde, embora haja “dificuldade de estabelecer, na produção brasileira, limites precisos entre esses campos, dado a ‘migração’ de conceitos entre eles” (L’Abbate, 2003), o uso destes saberes tem se difundido nos estudos relacionados à saúde coletiva11, dado a sua potencialidade para a percepção da realidade, em desencadear processos de mudança institucional, especialmente olhares voltados ao espaço da micropolítica. Buscou-se também o entendimento da rede de petição e compromissos existentes no interior dos processos de trabalho, produtores por excelência, do cuidado à saúde. Associam-se a esses campos do conhecimento, o rico saber e a prática da saúde coletiva.

Foi também realizada pesquisa junto à base documental do Ministério da Saúde, que forma o escopo do Projeto Cartão Nacional de Saúde, e que dá, “a posteriori”, as orientações e subsídios para o desenvolvimento do Projeto. Foram realizadas consultas aos documentos formulados antes da licitação que serviu à contratação dos serviços das empresas para a implantação do SCNS, em especial, o edital de concorrência internacional. A investigação documental foi feita, ainda, sobre as normas e orientações emitidas pelo Ministério da Saúde, através da Secretaria de Gestão e Investimentos (SIS); do Departamento de Gestão de Investimentos (DGI); dos diversos grupos de trabalho do Projeto Cartão Nacional de Saúde (Coordenações de Infra-estrutura, Tecnologia, Cadastro, Treinamento, Saúde e Informação); de documentos formulados pela empresa Hypercom do Brasil, especialmente o Projeto Executivo e diretrizes técnicas de implantação. Essa empresa é contratada pelo 11 Sobre a utilização da análise institucional da saúde coletiva e na saúde coletiva, ver L’Abbate, S.; “A análise institucional e a saúde coletiva” in Ciência & Saúde Coletiva, vol 8 n.1; Rio de Janeiro; Abrasco, 2003.

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Ministério da Saúde para desenvolver o projeto nas regiões sul, sudeste e centro-oeste do país. Todos os documentos pesquisados são de domínio público, muitos dos quais estão disponíveis para acesso no site do Ministério da Saúde, na Internet.12

A metodologia contemplou, ainda, coleta de dados em fonte secundária, através da emissão de relatórios extraídos do banco de dados do servidor municipal do SCNS, contemplando a produção ambulatorial de uma determinada Unidade Básica de Saúde do município de São José dos Campos, São Paulo. Esses relatórios compõem uma série histórica de dados organizados no período de início de operação do SCNS, em maio de 2001, até janeiro de 2002. Para o mesmo período, foram verificados, também, os Boletins de Produção Ambulatorial, produzidos pelo Núcleo de Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Campos, dos quais foram extraídos os mesmos dados e informações.

A coleta de informações envolveu, ainda, testagem do sistema (software) e sua mecânica de transmissão de dados, do Terminal de Atendimento do SUS (TAS) para o servidor municipal do SCNS, e deste para a emissão de relatórios. Esses testes foram realizados em ambiente laboratório, nas repartições da empresa Hypercom, com assistência de técnicos da mesma e da Secretaria Municipal de Saúde do município de São José dos Campos.

Foi utilizado o Fluxograma Descritor13 para a avaliação do processo de trabalho na Unidade, mediante a implantação do Sistema Cartão Nacional de Saúde, ou seja, já inseridos nos locais de produção, os Terminais de Atendimento do SUS (TAS). A utilidade desse instrumento está no fato de que ele possibilita capturar uma foto do processo de trabalho, com o sistema operando em certo tipo de modelo assistencial vigente naquele estabelecimento de saúde. Portanto, a análise que procede ao fluxograma deverá estar contextualizada em relação à assistência propriamente dita.

Para fechar o volume de informações necessárias à análise do Sistema Cartão Nacional de Saúde e seus efeitos e impactos na micropolítica do processo de trabalho dentro da Unidade de Saúde, foram realizadas ainda entrevistas com informantes-chave, isto é, trabalhadores representativos de diversas categorias e exercendo diferentes funções no serviço de saúde. As entrevistas seguiram roteiro semi-estruturado, tendo os entrevistados um razoável grau de liberdade para expor seus pontos de vista e análises em relação ao SCNS.12 O endereço de acesso é <www.saude.gov.br>.13 Ver FRANCO e MERHY (1999).

CAPÍTULO III

MODELOS ASSISTENCIAIS: FORMAS TECNOLÓGICAS DE CONFIGURAÇÃO DOS

PROCESSOS DE TRABALHO EM SAÚDE

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”.(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

A exclusão social tem sido a tônica dos serviços de saúde no Brasil. Para administrar a “baixa oferta” em contraposição à “grande demanda”, instituíram-se instrumentos administrativos que, em pouco tempo, transformaram-se em barreiras de acesso. É comum vermos um cartaz na porta das Unidades informando o número de consultas médicas, ou a sua falta. Usuários são obrigados a chegar de madrugada para conquistar uma senha que permite o acesso à consulta, no limite estabelecido pelo serviço. Além desses, outros instrumentos, como a triagem, marcam uma relação tensa entre trabalhadores e usuários. Enfim, há um vasto elenco de iniciativas que tentam não racionalizar, mas racionar a relação oferta/demanda, sem nunca conseguir o propósito de ter um serviço com acesso universal e de qualidade.

Aos que acessam os serviços assistenciais, pesa, muitas vezes, uma forma de atendimento burocrático, descompromissado com seu problema de saúde, e no qual o cuidado não se realiza como uma missão institucional do Sistema Único de Saúde, SUS. A crise dos serviços de saúde estende-se, portanto, à esfera das inseguranças geradas pela assistência - a baixa resolutividade, a repetição dos usuários nos diversos estabelecimentos, como forma de buscar uma “opinião segura” sobre seu problema, uma “necessidade satisfeita” ou o “cuidado”,

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simplesmente. Essa é uma outra forma de manifestação do serviço de saúde que opera sobre a exclusão social.

Sem uma diretriz inclusiva e um novo modo de se relacionar com os usuários individuais e coletivos, tendo essas relações como pré-condição para a produção da assistência, nada do que se pensa em fazer para resolver os problemas de saúde terá os resultados esperados.

Assim, ganha espaço a indignação. O conflito e a tensão passam a atravessar o cotidiano dos estabelecimentos públicos de saúde. De um lado, os usuários indignados, de outro, os trabalhadores se vêem incomodados com a situação existente, à qual, muitas vezes, se acham impotentes para mudar.

Diversos estudos vêm indicando que a crise que atravessa o setor saúde tem um caráter estrutural e denuncia o esgotamento de um modelo assistencial, formado a partir da diretriz biologicista no ensino médico, seguindo a matriz flexneriana;14 interesses de mercado das indústrias de medicamentos e equipamentos que influenciaram a produção da assistência à saúde, centrada na produção de procedimentos e no alto consumo de medicamentos. Por outro lado, quando se tentou romper com esse modo de produção na saúde, até por ser extremamente custoso para as fontes financiadoras, adotou-se modelos de serviços centrados apenas no campo de saber da vigilância à saúde. Para ficar em alguns exemplos, citamos a Medicina Comunitária (EUA, anos 50/60); Cuidados Primários em Saúde (Alma Ata, 1978) e o Programa Saúde da Família (PSF), no Brasil.15 É possível mapear os diversos interesses e poderes presentes nos espaços microrganizacionais do sistema de saúde, cruzando-se dinamicamente em torno dos processos de trabalho, o que dá o perfil da assistência à saúde (MERHY, 1997, 2000).

Os modelos tecnoassistenciais são produto de múltiplas determinações; de característica dinâmica, podem apresentar-se de diversas formas, em diferentes lugares. MERHY, citado em SILVA JR. (1998), define os modelos tecnoassistenciais da seguinte forma:

Ao se falar de modelo assistencial estamos falando de organização da produção de serviços a partir de um determinado arranjo de saberes da área, bem como de projetos de construção de ações sociais

14 De Abraham Flexner, responsável pela elaboração do “Relatório Flexner”, que avaliou o ensino médi-co americano no início do século XX e propôs uma formação médica centrada no campo biológico.15 Esses modelos estão citados por FRANCO e MERHY (1999).

específicas, como estratégia política de determinados agrupamentos sociais. [...] Entendendo deste modo, que os modelos assistenciais estão sempre se apoiando em uma dimensão assistencial e em uma tecnológica para expressar-se como projeto de política, articulado a determinadas forças e disputas sociais, damos preferência a uma denominação de modelos tecnoassistenciais, pois achamos que deste modo estamos expondo as dimensões chaves que o compõem como projeto político (SILVA JR., 1998:32; grifos do autor da tese).

Aproveitamo-nos desse conceito para discutir as diversas dimensões dos modelos tecnoassistenciais. Merhy (1999), ao discutir o trabalho do médico, como figura ilustrativa, usa a imagem de três valises para demonstrar o arsenal tecnológico do trabalho médico. Na primeira ele carrega os instrumentos (tecnologias duras), na segunda, o saber técnico estruturado (tecnologias leve-duras), e na terceira, as relações entre sujeitos que, segundo o autor, só têm materialidade em ato (tecnologias leves). Na produção do cuidado, o médico utiliza-se das três valises, com predominância de uma sobre a outra, conforme a intencionalidade e seu modo de agir no cuidado ao usuário. Assim, pode haver a predominância da lógica instrumental; de outra forma, pode haver um processo em que as relações interseçoras16 intervêm para um processo de trabalho com maiores graus de liberdade, tecnologicamente centrado nas tecnologias leves e leve-duras.

Outro determinante na formatação dos modelos tecnoassistenciais diz respeito aos diversos campos de saberes utilizados na composição do conhecimento que deverá operar a atenção à saúde. Esses saberes provêm da clínica, da epidemiologia, do planejamento, das ciências sociais, da psicanálise, entre outros, e deverá buscar-se em um mix de todo esse conhecimento, um campo próprio, amálgama de muitas fontes teóricas. Os modelos tecnoassistenciais configurados a partir de um particular campo de saber não têm sido capazes de atender à complexidade da assistência à saúde, revelando, por assim dizer, fragilidades nos

16 Para explicar esse termo, reproduzimos a nota de Merhy, em seu livro Saúde: a cartografia do Tra-balho Vivo: “O termo interseçores está sendo usado aqui com sentido semelhante ao de Deleuze, no livro Con-versações, que discorre sobre a interseção que Deleuze e Guattari constituíram quando produziram o livro An-tiedipo [sic], que não é um somatório de um com outro e produto de quatro mãos, mas um ‘inter’, interventor. Assim, uso esse termo para designar o que se produz nas relações entre ‘sujeitos’, no espaço das suas interseções, que é um produto que existe para os ‘dois’ em ato e não tem existência sem o momento da relação em processo, e na qual os inter se colocam como instituintes na busca de novos processos, mesmo um em relação ao outro” (MERHY, 2002:50-51).

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processos de produção do cuidado aos usuários. Foi assim com o modelo resultante do relatório Flexner (EUA, 1910), centrado no campo biológico e no conhecimento do corpo anátomo-fisiológico. Da mesma forma, o campo da vigilância à saúde tem sido insuficiente, por si só, para a construção de propostas amplas e consistentes na organização de serviços de saúde.17 As ações programáticas ou modelos voltados ao pronto-atendimento confirmam que um só campo de saberes e práticas é insuficiente para dar conta de toda a dimensão da produção de saúde. Esses diversos saberes compõem, ou melhor, materializam-se em diferentes tecnologias de cuidado que, por sua vez, usadas para a produção da saúde, operam os processos de trabalho em uma determinada “linha de produção do cuidado”.

Os modelos assistenciais dizem respeito também à política, enquanto lugar da defesa de interesses de diversos atores, em cenários complexos, que se colocam na arena decisória em relação à produção da saúde. A cena na qual é definido o modelo tecnológico de produção da saúde é permeada por sujeitos, com capacidade de operar pactuações entre si, de forma que a resultante dessas disputas é sempre produto da correlação de forças que se estabelece no processo. Essa pactuação, segundo Merhy (2002), não se dá apenas em processos de negociação, mas estrutura-se, muitas vezes, a partir de conflitos e tensões vividos no cenário de produção da saúde, seja na gestão ou na assistência.

O modelo tecnoassistencial para a saúde, como foi mencionado, tem seguido, até agora, a hegemonia de setores que têm como principal referência, na composição tecnológica dos processos produtivos, a incorporação de maquinaria e seu uso intensivo. Os processos de subjetivação estruturados para que os trabalhadores e usuários incorporem essa lógica de produção da saúde, como válida e produtora de assistência, formam-se em torno do discurso ideológico e ideologizante de que as máquinas representam a excelência técnica, e mais, são associadas ao campo de necessidades dos usuários, como um fetiche constituído acerca do equipamento e instrumental, expresso nas tecnologias duras.

Atuar sobre o núcleo tecnológico de produção do cuidado é o mesmo que operar sobre o modelo tecnoassistencial, estando essas dimensões ligadas, por assim dizer, pela lógica de produção do cuidado, onde um determina o outro e vice-versa.

17 Sobre o tema, ver FRANCO e MERHY (1999a).

O debate em torno do processo de trabalho tem se mostrado extremamente importante para a compreensão da organização da assistência à saúde18 e, fundamentalmente, de sua potência transformadora, particularmente quando nos debruçamos sobre a micropolítica de organização do trabalho. Verifica-se que, no modelo médico-hegemônico, a distribuição do trabalho assistencial é dimensionada para concentrar o fluxo da assistência no profissional médico. No entanto, observa-se que há um potencial de trabalho de todos os profissionais que pode ser aproveitado para cuidados diretos ao usuário, elevando assim a capacidade resolutiva dos serviços. Isso se faz, sobretudo, reestruturando os processos de trabalho e potencializando o Trabalho Vivo em ato, como fonte de energia criativa e criadora de um novo momento na configuração do modelo de assistência à saúde.19

Por outro lado, perdeu-se, há muito tempo, a idéia de trabalho solidário entre os profissionais de saúde. O princípio de trabalho em equipe foi burocratizado e não é comum haver interação dos profissionais no seu exercício. O trabalho é executado de forma partilhada, com especializações de cada profissional em determinados microespaços produtivos, onde ele não apenas controla seu “produto parcial”, mas também determina sua produção e exerce plenamente o poder neste “seu” lugar. Segue, portanto, a lógica taylorista de organização do trabalho, com certas diferenças na medida em que os tempos são controlados, às vezes, pelos próprios trabalhadores da saúde, dado o seu razoável grau de liberdade e controle da própria produção. Falta aos serviços, nesse sentido, uma organização do processo de trabalho que considere os processos produtivos integrados um ao outro, partes de um conjunto que deve garantir os produtos e resultados esperados. Esse tipo de organização/fluxo deveria se dar a partir de relações entre os trabalhadores que configurassem verdadeiramente uma equipe, um coletivo multiprofissional interagindo saberes e fazeres.

A assistência à saúde tornou-se algo extremamente sumário, centrado no ato prescritivo que produz o procedimento. As diversas determinações do processo saúde-doença - além das biológicas, as outras que estão centradas nas condições sociais, ambientais e relacionadas às subjetividades - deixam de ser consideradas pelo tradicional modelo de atenção à saúde. Merhy (1998a), observando o

18 Ver DONNANGELO (1976); GONÇALVES (1994); NOGUEIRA (1994); CAMPOS (1994ab); MERHY (1994, 1997); CECÍLIO (1994); FRANCO e MERHY (1999a).19 Ver: MERHY (2002); FRANCO e MERHY (1999a).

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exercício restrito da clínica, de característica prescritiva, caracterizou o modelo assistencial como “modelo médico produtor de procedimentos”. Propostas alternativas de modelagem dos serviços de saúde incorporam diferentes campos de saberes e práticas em saúde e configuraram outras formas de organização da assistência contra-hegemônicas. Essas ações diferenciadas na produção da saúde operam tecnologias de trabalho voltadas à produção do cuidado, apostam em novas relações entre trabalhadores e usuários, tentando construir um devir para os serviços de saúde, centrado nos usuários e em suas necessidades. Esse é, atualmente, o contraponto à crise vivida pela saúde, indicando um novo caminho a ser percorrido para sua superação.

O modelo hegemônico, “médico produtor de procedimentos”, convive com o grave problema da sua baixa resolutividade. Ele mesmo se denuncia ao retroalimentar a fila da Unidade de Saúde. É muito comum ouvirmos de trabalhadores de saúde a queixa de que os usuários saem da Unidade e marcam nova consulta com outro profissional, ou a denúncia de que determinados usuários vão ao serviço “toda semana”, identificando um conhecido personagem, muito freqüente nas Unidades de Saúde, o “poli-queixoso” crônico. Esse é o grande “ruído” que denuncia o mau atendimento e provoca nos usuários o sentimento de desproteção e insegurança, fazendo-o procurar por outro serviço que, muitas vezes, também não lhe é satisfatório. Esse ciclo vicioso se repete ao longo do tempo e é denunciador da crise do modelo e da necessidade de superação das atuais práticas assistenciais. Outro problema do modelo atual está no seu custo, extremamente caro, porque utiliza como insumos principais para a produção, recursos tecnológicos centrados em exames, medicamentos e conhecimento especializado. Esse modelo expressa o exercício da clínica de forma restrita, uma relação sumária e descuidada com o usuário, práticas assistenciais que parecem ter um fim no corpo biológico, como se fossem capazes de restabelecer a saúde por si só, o que não ocorre, se pensarmos que, dessa forma, vários determinantes do processo saúde-doença ficam sem uma intervenção competente, reduzindo, portanto, a eficácia da assistência prestada nos serviços de saúde.

Diz Merhy (2002:8) que “todos os atores governam e com suas capacidades de governar e disputar seus projetos transformam todo o cenário”. Entre todos, há o “governo formal”, ou seja, aquele que controla o aparato de estado, com uma

certa capacidade de influenciar os projetos e, por conseguinte, os modelos de assistência à saúde.

Voltando ao autor:

Pode-se pensar que o quê os governos negociam, em última instância, são: a natureza pública e privada da saúde como valor de uso e troca; a dimensão pública e privada das arenas institucionais; a organização social e técnica das práticas produtoras do cuidado. E, que para isso, colocam sua capacidade de dar direção para os vários recursos que controlam na máquina estatal (MERHY, 2002:8).

Portanto, vamos nos ater um pouco na análise desse ator do qual fala Merhy, que governa a partir do lugar “estatal” e que, por isso mesmo, tem um olhar específico sobre a realidade e intervém nos cenários de disputa do modelo de assistência com recursos que utiliza para certas contratualidades na definição de interesses específicos no setor saúde.

Historicamente, o estado tem sido o órgão por excelência regulador do sistema de saúde no Brasil, indutor de políticas e modelagens da produção da assistência. Nesse sentido, a estruturação do atual modelo de assistência à saúde, com o perfil do modelo médico-hegemônico, deu-se a partir da organização de processos de trabalho voltados à “produção de procedimentos” tal como já foi mencionado neste texto, mas, de alguma forma, quando o estado intervém no cenário das políticas de saúde e propõe certos tipos de modelagens da produção da assistência, o faz sem contrariar os interesses do modelo hegemônico, como nos informam, por exemplo, estudos sobre o Programa Saúde da Família.20

Importante registrar que há um certo imaginário criado entre os usuários que os faz reconhecer, no modelo médico produtor de procedimentos, a possibilidade do atendimento das suas necessidades de atenção à saúde. Um imaginário que foi construído ao longo do tempo, quiçá transmitido pelo próprio serviço de saúde, centrado no saber-fazer do médico e na super valorização dos recursos de tecnologias duras e leve-duras na solução de problemas em detrimento de uma assistência mais relacional, que reconhecesse no usuário, potencialmente, um sujeito da sua própria condição de saúde.

20 Ver FRANCO e MERHY (1999b).

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Essa estrutura, além dos efeitos objetivos conseguidos para a produção da saúde, estrutura “subjetividades capitalísticas” (GUATTARI, 1998), aliadas a esse grande sistema produtor de procedimentos. Essa ação conjunta caracterizou a saúde como produto que tem um valor de troca. A modelagem da produção da saúde é produto da contratualidade entre todos os atores implicados com a assistência e pode refletir determinada “correlação de forças” entre os interesses que são representados por esses mesmos atores.

A mudança dos serviços de saúde, em especial do modelo de assistência, de um “modelo médico produtor de procedimentos” para outro “produtor do cuidado”, requer um enfrentamento com os interesses que representam o ideário de mercado, no sentido da utilização da saúde como “valor de troca”, apresentando a necessidade de ressignificá-la como “valor de uso”. O enfrentamento não se dá de forma simples e nem sempre objetiva, pois os processos de subjetivação implicados com as práticas mercantis na saúde estruturam-se também em modos de agir dos trabalhadores e usuários que orientam as práticas assistenciais.

Podemos perceber o quanto a produção da saúde e as práticas assistenciais são determinadas por um processo que pode ser antagônico aos valores próprios do capital, materializado nas idéias de assistência centrada em procedimentos, com outros valores que estruturam práticas centradas no cuidado. Esse antagonismo cria uma tensão permanente no espaço produtivo, a partir do protagonismo dos sujeitos trabalhadores da saúde, que tem como resultante práticas diferentes exercidas no mesmo espaço institucional e territorial. No modelo médico produtor de procedimentos, a divisão hierárquica do trabalho é definida pela supremacia do saber profissional do médico sobre os demais, tendo este a função de estruturar o processo de trabalho dos outros, de acordo com suas decisões de diagnose, prescrição, projetos terapêuticos. Nesse caso, o trabalho é capturado por uma lógica instrumental, um agir interessado sobre a realidade que o impulsiona para modelagens assistenciais voltadas aos interesses privados corporativos. Assim, a produção da assistência se dá em cenários em que imperam o modelo hegemônico. Por outro lado, o estado pode propor novas contratualidades, agindo como indutor de mudanças do modelo, sendo dispositivo de mudanças e novas pactuações voltadas a uma produção dirigida pelas necessidades dos usuários e ao ato de cuidar da sua saúde. Essa seria, sobretudo, uma opção de políticas voltadas para o setor.

A busca por alternativas ao modelo médico produtor de procedimentos, evidenciou as tecnologias próprias da Vigilância à Saúde que, instrumentalizadas pela epidemiologia, assumiram certas formas de um determinado modo de produzir saúde. Nesse campo, várias propostas de organização da assistência foram estruturadas no cenário das políticas de saúde, a saber: Medicina Comunitária (EUA, décadas de 50/60) citada em Donnangelo (1976); Cuidados Primários em Saúde (Alma Ata, 1978), analisada por Merhy (1986), e o Programa Saúde da Família no Brasil, analisado por Franco e Merhy (1999b). Podemos considerar que essa é uma orientação de modelagem dos serviços de saúde que reestrutura a produção e tem suas raízes na proposta de Dawson, que já em 1920, a partir da Inglaterra e centrado nos estudos epidemiológicos, inaugurou uma vertente diferente e alternativa ao modelo flexneriano, propondo que os serviços de saúde fossem “responsáveis pelas ações preventivas e terapêuticas, a regionalização da sua estrutura, médicos generalistas, capazes de cuidar dos indivíduos e às comunidades” (SILVA JR.; 1998:54). Tal diretriz persiste até hoje, partindo do mesmo paradigma. A essas formulações fundantes desse modelo, a estruturação dos serviços assume diferentes formatos, conforme a conjuntura de desenvolvimento dos processos produtivos da saúde.

Outra corrente que se afirmou mais enfaticamente no final da década de 1980/90, em enfrentamento ao modelo médico produtor de procedimentos, é a proposta protagonizada pela medicina supletiva, constituindo-se no “managed care” ou atenção gerenciada.

A atenção gerenciada organiza-se a partir da premissa de que os microatos médicos devem ser auditados para se enquadrarem em protocolos administrativos rigorosamente delimitadores do trabalho clínico.

Toma-se a possibilidade de transferência do processo de decisão, sobre as ações de saúde a serem realizadas nos serviços, do campo das corporações médicas para o dos administradores, como uma estratégia vital para atacar a relação custo-benefício do sistema. Mas, este não é o campo restrito de intervenção dessas propostas, pois a mesma também se filia a um outro conjunto de estratégias que visam a reorganização dos modelos de atenção a partir da ação dos prestadores privados, centrados nas políticas das instituições seguradoras e financeiras (MERHY, 1999:25).

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O autor alerta para o fato de que as empresas que adotam a atenção gerenciada como estratégia de gestão dos seus planos de saúde concentram nos administradores, que figuram como auditores dos atos médicos, o poder de decisão sobre o consumo de procedimentos. Notadamente, um critério administrativo superpondo-se ao do cuidado ao usuário. Eis o que nos diz Célia Iriart sobre o tema:

É um sistema que utiliza incentivos financeiros e controle da gestão, para dirigir os usuários aos provedores responsáveis por proporcionar a atenção. É importante destacar a permanência de um elemento central: a imposição da racionalidade econômica através do controle administrativo da prática clínica. Esta racionalidade está orientada pela lógica da eficiência (que privilegia a relação custo-benefício econômico) e da competição do mercado. Implica numa profunda transformação da prática clínica, já que se produz uma radical subordinação dos profissionais de saúde às decisões administrativo-financeiras (IRIART, 1999:36).

Até então, os estudos definem que, de um lado, a atenção gerenciada promove uma reorganização do processo de trabalho a partir do controle dos atos clínicos do médico. Controle esse exercido sob a lógica administrativa, operando a relação custo/efetividade. Não há, ainda, nessa proposta uma preocupação com a produção do cuidado, o que poderia significar uma mudança de fato na lógica de assistência à saúde. Nessa perspectiva, prevalece a lógica do capital estruturando serviços, de acordo com os interesses de mercado, subsumindo o processo de trabalho.

O que podemos observar é que a busca por alternativas na modelagem dos serviços de saúde vai se dando tanto no segmento público - cuja maior evidência no Brasil são as propostas centradas na vigilância à saúde, tais como os Sistemas Locais de Saúde (SILOS) nos anos de 1980 e o Programa Saúde da Família (PSF) na década seguinte, por exemplo - quanto no privado, com a proposta da atenção gerenciada. Tudo isso ocorre em um ambiente institucionalmente configurado de produção da saúde e tentativas de mudança das práticas assistenciais que contradizem o modelo clínico do tipo “médico hegemônico, produtor de procedimentos”.

A organização das linhas de produção do cuidado

Pensamos que a produção da saúde se dá de forma sistêmica, a partir de implicadas redes macro e microinstitucionais, em processos extremamente dinâmicos, às quais associamos a imagem de uma “linha de produção do cuidado”. Essa questão está referenciada nas discussões desenvolvidas por Cecílio e Merhy (2003) em torno das linhas de produção do cuidado, quando em trabalho junto à equipe de direção do Instituto de Hemoterapia Dr. Boldrini em Campinas, São Paulo.21 Na ocasião, foi utilizada a imagem de uma “linha de cuidado”, que simbolizava o fluxo de assistência ao usuário, centrada em seu campo de necessidades. Esta linha era alimentada por recursos/insumos que garantiam um seguro “caminhar” no projeto terapêutico determinado pela equipe de assistência àquele usuário.

De acordo com Merhy, a concepção da linha do cuidado se dá a partir da “missão” institucional do estabelecimento/serviço de saúde. No conceito de Cecílio (1997:153), a “missão deve conter, em seu enunciado, três idéias básicas: quais produtos, para que clientela e com quais características um determinado serviço ou organização se compromete a oferecer”. Formamos, a partir deste ponto, uma primeira idéia de que, aquilo dá forma e sentido à linha do cuidado é, na essência, o que está inscrito no conceito de missão mencionado acima.

Deve-se imaginar, então, o seu funcionamento, em especial, todo um cenário organizativo, político, subjetivo, capaz de garantir que o caminhar do usuário pela “linha do cuidado” seja de fato seguro e tranqüilo. Partimos do pressuposto que ela é alimentada por recursos/insumos que expressam as tecnologias assistenciais a serem consumidas durante o processo de assistência ao usuário. Imaginamos, no caso, uma rede de assistência à saúde que funcione de forma sistêmica, operando vários serviços em torno da linha do cuidado. Esta tem início na Unidade Básica, ou em algum outro lugar de entrada do usuário na rede, e prossegue pelo apoio diagnóstico e terapêutico, serviços de especialidades, atenção hospitalar e outros.

Para que a linha do cuidado opere, será necessário pensar que ela é o ponto de encontro de uma implicada rede de petição e compromissos, de diversos serviços que alimentam a sua produção. Estes são controlados por atores que passam a

21 Ver CECÍLIO e MERHY, 2003.

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figurar como gestores da assistência, quando ingressam na rede de petição que alimenta a linha de produção, digamos assim. Transitam por essa os que buscam assistência, usuários; regulam seu funcionamento, os gestores; pactuam contratos, os prestadores; operam processos de trabalho tecnologicamente determinados, os trabalhadores, e mais uma infinidade de sujeitos que protagonizam suas ações sobre uma extensa cartografia de interesses colocados na cena de produção da saúde. Essa discussão dá sentido para a idéia de que a linha do cuidado é fruto de um grande pacto que deve ser realizado entre todos esses atores, como condição para sua existência e eficácia no cuidado aos usuários.

Refletindo sobre esse campo operacional, o funcionamento da “linha do cuidado” sugere que o fluxo do usuário seja determinado por projetos terapêuticos cuidadores, voltados ao campo de necessidades dos usuários e definidos pela equipe que o está assistindo. Essa equipe deverá ditar as ações e atos assistenciais, os quais os trabalhadores de saúde estarão realizando ao buscar, nos diversos equipamentos assistenciais, os recursos para o pleno atendimento aos usuários. A produção do cuidado terá seu perfil definido pelos processos e tecnologias de trabalho em saúde. Essa discussão será aprofundada a seguir.

A Composição Técnica do Trabalho (CTT) como analisador22 dos processos produtivos da saúde

Há algum tempo, uma questão vem instigando um importante debate no campo da saúde coletiva, tendo por foco o modo de produção do cuidado. As discussões tidas como de “políticas de saúde” referem-se, particularmente, às ações de governo voltadas ao setor, e são insuficientes para compreender a complexidade que envolve o ato de cuidar como expressão de um certo modo de agir na assistência à saúde. As políticas, como expressão da ação governamental, apresentam apenas um lado do problema em torno da produção da assistência, seja no que diz respeito ao setor estatal quanto ao privado contratado e/ou regulado pelo estado. Sua compreensão refere-se, em primeiro lugar, à modelagem da assistência e ao aparato produtivo que se forma em torno desta. A produção da

22 Lourau define o analisador como “aquilo que permite revelar a estrutura da organização provocá-la, for-çá-la a falar” (LOURAU, 1996:284). Sobre aplicação do conceito como método analítico ver L’Abbate, S. “Uma reflexão sobre o analisador dinheiro num trabalho de grupo de longa duração”, Campinas: Unicamp, 2001 (mimeo).

saúde envolve uma enormidade de fatores outros, que são determinantes tanto nos processos produtivos como nos resultados que se obtém com o trabalho assistencial. Entre esses fatores, podemos citar como determinante o aparato tecnológico colocado à sua disposição, entendendo tecnologia, no caso, não apenas como máquinas e instrumentos, mas, sobretudo, como conhecimento aplicado através do trabalho (GONÇALVES, 1994; MERHY, 1994, 1997; FRANCO e MERHY, 1999a). Compõem a cena de produção da saúde diversos atores sociais e políticos, implicados com essa questão e disputando seus projetos para o segmento. As relações que se dão entre sujeitos individuais e coletivos vão determinando um certo jeito de realizar a assistência, que é sempre resultante de uma dada pactuação entre os diversos atores em cena (MERHY, 2002), combinado com o perfil tecnológico hegemônico utilizado para sua produção.

A questão que nos propomos no momento a discutir, é o da compreensão de diferentes processos de reestruturação produtiva, como expressão e elemento indutor de mudanças no modo de produzir a assistência, e, ao mesmo tempo, pensar a transição tecnológica na saúde.23 Esse pensar envolve tanto o conceito que tenta explicar o que são esses dois fenômenos na arena de produção da saúde quanto às fontes de criação dos mesmos, ou seja, o caminho pelo qual poderiam surgir e o significado que têm no processo produtivo da saúde. Essa é uma das questões centrais investigadas neste estudo, para o qual será novamente utilizado o processo de trabalho, focado na micropolítica, como a categoria analítica fundamental. Essa discussão servirá de referencial teórico para analisar projetos de informatização, em especial o caso escolhido, qual seja, o projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS). Estão em questão os impactos que o SCNS causa nos processos de trabalho, operando ou não uma dada reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica no setor.

O termo transição tem sido usado para significar um momento no qual é identificada uma profunda mudança ocorrida em determinada área da vida, do trabalho, de grande impacto, e a partir da qual alcançou-se um novo patamar naquele segmento em que se deu o fenômeno. É algo que se apresenta como radicalmente novo, com impactos duradouros. Como exemplo notório, no caso da saúde, citamos a transição epidemiológica, como expressão de uma profunda

23 Sobre esse tema, ver: MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do Trabalho Vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.

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mudança no perfil nosológico da população, determinada pelos avanços obtidos no conhecimento da epidemiologia e alteração das condições ambientais e do modo de vida das pessoas.

A transição tecnológica, na saúde, é tratada por Merhy (2002) como a produção da saúde em um outro patamar tecnológico, Trabalho Vivo centrado. O fato de haver uma correlação favorável ao Trabalho Vivo em relação ao Trabalho Morto, no núcleo tecnológico que estrutura o processo de trabalho, evidencia uma profunda mudança no modo de produzir saúde. Dá, por assim dizer, um novo sentido no saber-fazer do cuidado. Um novo fazer, guiado por um saber técnico e relacional, que consegue alcançar um outro patamar produtivo, enunciado, no momento, como o devir de um modelo tecnoassistencial no qual as tecnologias do cuidado são colocadas a serviço dos usuários, centradas nas suas necessidades.

Para ilustrar a questão que está sendo discutida, retomemos a imagem, muito comum nas Unidades Básicas de Saúde ou em outros lugares de assistência, de uma “linha de produção do cuidado”, que envolve a entrada do usuário, o acesso a uma consulta médica, que resulta em prescrição de exames, a busca pelos mesmos e, ato contínuo, o retorno ao médico, quando são estabelecidos o diagnóstico e um dado projeto terapêutico. Temos, nesse caso, uma linha do cuidado que se encerra na própria Unidade, se esta conseguir atender às necessidades do usuário com os recursos ali disponíveis. Importa registrar, aqui, que a “linha de produção do cuidado” pode estender-se até outros serviços, se assim for necessário, ou mesmo, dependendo do que é estabelecido no projeto terapêutico, pode continuar no tempo, através do acompanhamento ao usuário. Mas, para facilitar a compreensão, imaginemos o processo de trabalho em uma Unidade Básica de Saúde.

Verificamos, pelo caminho que o usuário percorre em busca da assistência, as diversas etapas de um processo de trabalho. Por etapas estamos chamando a recepção do usuário, os encaminhamentos de acolhimento, consulta, ações de enfermagem, entre outros. Cada uma dessas etapas configura um microprocesso de trabalho específico, determinado pelos atos de cada trabalhador e vinculado ao que se desenvolve ao longo da linha de equipamentos dispostos para a assistência, como uma determinação maior da produção da saúde. Esses processos estarão integrados, de alguma forma, organizados em uma rede de petição e compromissos.

Dependendo do modelo produtivo em curso, o processo de trabalho poderá expressar-se de forma partilhada ou integrada, pode ser “trabalho centrado na equipe” ou “trabalho centrado na corporação profissional”. O importante, até aqui, é perceber que os processos de trabalho específicos, em cada etapa, acontecem em microunidades produtivas, em que umas vão fornecendo insumos para outras - por exemplo, a coleta de material para exames, em que a Unidade de Coleta oferta insumos para o Laboratório. Por outro lado, o produto pode ser finalizado na mesma Unidade. Assim, compreendemos que o consultório médico é uma unidade produtiva, onde se realizam procedimentos, por exemplo, curativos. Assim, o processo de trabalho envolve inúmeros atos associados uns aos outros e que, entre si, formam o processo produtivo da assistência. Portanto, vemos que há um processo de trabalho que atravessa a linha do cuidado, em que podem estar vinculados microprocessos que se operam nas pequenas unidades e que vão servindo de insumos à assistência que aí se desenvolve. Senão, vejamos: um determinado projeto terapêutico que opera na linha do cuidado deve comandar um processo de trabalho centrado em uma equipe multiprofissional, determinando os atos assistenciais realizados em cada microunidade produtiva. De qualquer forma, o processo das microunidades de produção é comandado por um modelo tecnoassistencial que estrutura os projetos terapêuticos ou de forma médico-hegemônico ou no formato da produção da assistência. Haverá maiores ou menores graus de liberdade dos processos de trabalho em cada microunidade de produção, como expressão das tecnologias leves e relacionais, se o núcleo tecnológico do processo de trabalho for centrado no Trabalho Vivo, apresentando, assim, uma correlação favorável a este, em detrimento do Trabalho Morto.

Pensando no modo de realizar a assistência em saúde, especialmente na micropolítica e através das tecnologias do cuidado, começamos a imaginar como se daria uma certa estrutura do núcleo tecnológico de produção. Assim, aproveitamo-nos do conceito marxista de “Composição Técnica do Capital (CTC)” e associamos a este conceito as contribuições de Merhy (1997, 2002), na discussão sobre o trabalho em saúde e suas tecnologias. Essa combinação nos possibilitou elaborar o conceito de “Composição Técnica do Trabalho (CTT)”, entendendo-o como uma categoria tecnologicamente determinada, que explicamos a seguir.

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A Composição Técnica do Capital, de acordo com Marx, citado em Bottomore, é discutida da seguinte forma:

[...] a razão entre a massa dos meios de produção e o trabalho necessário para pô-los em ação é chamada de “composição técnica do capital” (ou CTC), sendo a composição do capital entendida aqui em termos de valor de uso. Como não há uma maneira pela qual, meios de produção heterogêneos e o trabalho concreto possam ser medidos, a CTC é uma razão puramente teórica, cujo aumento é sinônimo de um aumento de produtividade (BOTTOMORE, 1983:69).

A partir dessas considerações, pode-se entender o novo conceito, a Composição Técnica do Trabalho (CTT), da seguinte forma: é a razão entre o Trabalho Morto (TM), isto é, o trabalho que se expressa através de instrumentos, ferramentas, normas, protocolos, utilizados no processo de trabalho em saúde, e o Trabalho Vivo (TV), o trabalho em ato, operado em movimentos contínuos e seqüenciais, de estruturação de determinado produto, um “fazendo” permanente. TM e TV convivem para a produção do cuidado, formando o núcleo tecnológico do processo de trabalho. Esse núcleo tecnológico, o qual chamamos de CTT, pode estar centrado no Trabalho Morto que, nesse sentido, realiza a captura do Trabalho Vivo, sobre-determinando a produção da assistência e aprisionando os atos cuidadores do trabalhador da saúde ou, pelo contrário, pode estar centrado no Trabalho Vivo e, assim, adquire maiores graus de liberdade para a produção da saúde, abrindo para a inserção de variadas e novas tecnologias atuarem sobre os projetos terapêuticos. Nesse caso, utiliza a energia criativa e criadora da atividade de trabalho, quando encontra possibilidades de expor-se livremente.

Essa relação indica se o processo de trabalho é determinado pela maquinaria, se é normativo, burocraticamente estruturado, Trabalho Morto dependente, ou se é determinado pelo Trabalho Vivo em ato. Processos de transição tecnológica na saúde irão impactar, sobretudo, essa relação, e a análise sobre a reorganização da produção deverá se dar pela medida da Composição Técnica do Trabalho. Quanto maior a CTT, maior será a densidade de tecnologias duras nos processos produtivos, TM centrado, resultando em captura do Trabalho Vivo e perdas de autonomização do profissional na linha de produção do cuidado. Por outro lado, essa relação sendo

menor, sinaliza para um processo TV centrado. Haverá, no caso, uma transição tecnológica, centrada em tecnologias leves e leve-duras, com maiores graus de liberdade para a ação cuidadora, podendo levar a novos significados nos resultados em relação à assistência à saúde, alcançados na linha do cuidado.

A observação sobre o modo produtivo de organização dos serviços de saúde e os estudos realizados até então24 demonstram uma forte pressão sobre estes, no sentido da incorporação de tecnologias/máquinas nos seus processos de produção. Essa pressão é exercida, objetivamente, por meio da disponibilização e oferta de equipamentos no mercado e, subliminarmente, atuando sobre o imaginário de gestores, dos que trabalham e até mesmo dos que são assistidos pelos serviços assistenciais. Esse imaginário é construído na medida em que se associa a qualidade da assistência à incorporação de tecnologias duras aos processos produtivos, como se esse tipo de insumo fosse o determinante para a resolução do problema do usuário. Os estudos mostram que essa é uma das apostas do capital sobre os serviços de saúde, na busca da distribuição dos seus produtos em larga escala e, com isso, da realização de lucros e acumulação. Mas essa aposta não é a única determinação dos modelos tecnoassistenciais atuais, “médico-hegemônicos produtores de procedimentos”. A indústria produtora desses insumos encontrou, nas teses flexnerianas, o apoio teórico para propor modelos centrados no consumo de seus produtos e na formação dos profissionais de saúde, que subsumiu a clínica à matriz de pensamento liberal de organização das relações sociais. Esses ingredientes, juntos, concorreram para um modelo, no qual os processos de trabalho aparecem tecnologicamente centrados no Trabalho Morto, expressão das tecnologias duras e leve-duras.

Para desvendar as razões da tensão em torno do modelo produtivo da saúde e buscar compreender melhor as apostas que se realizam em torno do mesmo, voltamos mais uma vez à imagem do processo produtivo em uma determinada linha de produção do cuidado.

Após a entrada do usuário na Unidade de Saúde, este é encaminhado e atendido em consulta médica, quando esta é demandada. Os diversos atos necessários à atividade de consultar consomem TM e TV, operados por tecnologias, que devem ser aquelas inscritas no instrumental, no conhecimento aplicado da

24 Ver DONNANGELO (1976); GONÇALVES (1994); MERHY (1994, 1997, 2002); CAMPOS (1992, 1994ab, 2000); CECÍLIO (1994); FRANCO, BUENO e MERHY (2000); PIRES (1998).

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clínica e nas relações. Esse trabalho resulta em uma consulta como produto final. Esse produto (consulta) tem um determinado valor-de-uso e, ao mesmo tempo, o mercado atribui-lhe um certo valor-de-troca. Esse valor é o que, teoricamente, serve para remunerar o trabalho despendido para produzir a consulta, os insumos e outros meios de produção, utilizados no processo de trabalho, como máquinas e instrumentos. Podemos dizer que as tecnologias (duras, leve-duras e leves) que são operadas em ato pelo Trabalho Vivo, têm determinado valor que lhe é atribuído, e que a soma desses valores representa o valor-de-troca da consulta, no caso.

A análise do caso da saúde sob a ótica da “cartografia do Trabalho Vivo”25

O debate em torno das tecnologias de trabalho em saúde teve uma primeira referência na obra de Gonçalves (1994), que as define como “tecnologias materiais” (máquinas e instrumentos) e “tecnologias não materiais” (conhecimento técnico). Essas categorias firmaram-se como importantes descobertas no início dos anos de 1990, evidenciando um importante campo de investigação do processo de trabalho em saúde. Com o tempo, verificou-se que, para além das máquinas e do conhecimento técnico, havia algo nuclear no trabalho em saúde, até então não mencionado, que são as relações entre os sujeitos. Com foco nesse recurso tecnológico dos processos produtivos da saúde, Merhy (1997, 2000) sugere outras categorias para designar as tecnologias de trabalho, quais sejam: aquelas centradas em máquinas e instrumentos, chamadas de “tecnologias duras”, aquelas do conhecimento técnico, “tecnologias leve-duras”, e das relações, “tecnologias leves”. Essas tecnologias operam o Trabalho Morto e o Trabalho Vivo em ato, compondo assim um amálgama em processos de produção da assistência à saúde que determinam o núcleo tecnológico do trabalho, ou melhor, a Composição Técnica do Trabalho (CTT).

A associação entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo em ato, forma, na saúde, a “Composição Técnica do Trabalho” que, como já foi dito, determina o modelo tecnológico de produção da assistência e, ao mesmo tempo, nos dá um parâmetro do grau de incorporação de tecnologias duras existente nos diversos microprocessos de trabalho em cada unidade produtiva e na linha de produção do

25 Ver MERHY (2002).

cuidado, se pensarmos o conjunto da assistência. A CTT pode expressar processos de reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica na saúde. Através dela, podemos verificar o modelo da configuração tecnológica na produção do cuidado existente no processo de trabalho e sua maior ou menor eficácia nos resultados obtidos com a assistência realizada.

As principais diferenças entre os processos produtivos da saúde e aqueles realizados na indústria residem no fato de que a produção na saúde se realiza, sobretudo, por meio do Trabalho Vivo em ato, tendo, portanto, uma materialidade simbólica, conforme expressa Merhy (2002) na descrição das “dezessete teses sobre a teoria do trabalho em saúde e as tecnologias de produção do cuidado”. A seguir, reproduzimos três dessas teses para iniciar a discussão das implicações dessas formulações sobre trabalho e tecnologias na saúde, em relação ao modelo tecnoassistencial:

Tese 1: “falar em tecnologia é ter sempre como referência a temática do trabalho, mas em trabalho cuja ação intencional é demarcada pela busca da produção de ‘coisas’ (bens/produtos) – que funcionam como objetos, mas que não necessariamente são materiais, duros, pois podem ser bens/produtos simbólicos (que também portam valores de uso) – que satisfaçam necessidades”; (grifos do autor da tese).

Tese 7: “o trabalho em saúde é centrado no Trabalho Vivo em ato permanentemente, um pouco à semelhança do trabalho em educação”.

Tese 14: “a efetivação da tecnologia leve do Trabalho Vivo em ato na saúde expressa-se como processo de produção de relações interseçoras em uma de suas dimensões-chave, que é o seu encontro com o usuário final, que ‘representa’, em última instância, necessidades de saúde como sua intencionalidade, e, portanto, o que pode, como seu interesse particular, ‘publicizar’ as distintas intencionalidades dos vários agentes em cena, do trabalho em saúde”; (MERHY; 2002:46-52).

Essas materialidades simbólicas (citadas na tese 1), que aparecem nos produtos da saúde, revelam que o “trabalho útil”26 pode ser exercido, com centralidade do

26 Trabalho útil é todo trabalho concreto que produz valores de uso. BOTTOMORE (1983:383), citando Marx, diz: “[...] qualquer ato de trabalho é uma ‘atividade produtiva de determinado tipo, que visa a um objetivo determinado’. Assim considerado, é ‘trabalho útil’ ou ‘trabalho concreto’, cujo produto é um valor de uso”.

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Trabalho Vivo. Há conseqüência nas análises para se estabelecer o valor dos produtos, reconhecendo que a composição do valor de muitos produtos da saúde será diferente dos processos industriais (o tema da formação dos valores dos produtos na saúde será retomado à frente). Não estamos, aqui, falando de uma suposta negação de Marx, mas fica evidente a necessidade de atualização da sua teoria ao verificarmos a insuficiência das formulações referenciadas nos estudos da produção industrial para a explicação de processos produtivos como o da saúde. A tese de Merhy, que reconhece os “produtos simbólicos” como valores de uso, possibilita analisar a produção do cuidado em saúde na dimensão da sua complexidade.

Um microprocesso de produção vivido em determinado consultório insere-se, pois, numa dada linha de produção do cuidado, na qual se executa certo projeto terapêutico, não estando, portanto, desvinculado do processo produtivo geral de uma Unidade de Saúde, que já é sobre-determinado por um modelo tecnoassistencial hegemônico. A configuração tecnológica assumida pelo trabalho que ali se realiza pode estar centrada no Trabalho Morto ou no Trabalho Vivo, no relacionamento entre as tecnologias duras, leve-duras e leves que se configura para a produção do cuidado. Portanto, o perfil da assistência não está dado a priori, mas se verifica a partir da Composição Técnica do Trabalho que opera na produção do cuidado. Fazemos questão de sinalizar que um processo produtivo centrado nas tecnologias duras e leve-duras, operadas por um processo de trabalho que tem seu núcleo tecnológico centrado no Trabalho Morto, pode realizar-se em qualquer lugar de produção da saúde, até mesmo em processo de trabalho voltado à promoção à saúde, se aquele estiver sendo conduzido a partir de protocolos técnicos rígidos, ao qual é dada maior significância do que às relações entre sujeitos (trabalhador e usuário) no ato cuidador, por exemplo, no caso da educação para o autocuidado. Nesse caso, esse processo de trabalho está tecnologicamente determinado por “Trabalho Morto”. Vemos que a determinação do processo produtivo, pela Composição Técnica do Trabalho, é sempre uma situação de disputa pelo protagonismo da produção da saúde, e é da tensão e do conflito desse litígio permanente que surge o perfil produtivo do cuidado à saúde.

O que se observa em todos os lugares de produção do cuidado à saúde, seja no setor público ou no privado, é a instauração e permanência do conflito vivido no interior do núcleo tecnológico do processo de trabalho. As idéias circulantes,

no sentido da captura do processo microdecisório do médico, estipulado pelas estratégias do “managed care”, não traduzem outra coisa senão a tentativa de se produzir uma reestruturação produtiva no setor, a partir da mudança do padrão produtivo, em que deveriam ser disponibilizadas determinadas cotas de certas tecnologias do cuidado (exemplo: redução do número de prescrição de exames para diagnose, de acordo com protocolos clínicos, sem, no entanto, alterar a CTT, sem caracterizar, portanto, uma transição tecnológica).27 Ao mesmo tempo, vários segmentos da saúde supletiva, especialmente os seguros de saúde, fazem suas apostas em novas modalidades de projetos terapêuticos, com maior ênfase em modelos centrados nas tecnologias leve-duras e leves, como as ações programáticas direcionadas a grupos de risco, estratégias de cuidados em casa, os “home care”, entre outras. Não se discute aqui a intencionalidade, objetivos e resultados obtidos pelos segmentos da saúde supletiva que têm adotado essas mudanças, mas fica evidente que o núcleo de tensão e disputa é o da Composição Técnica do Trabalho, como determinante dos processos de trabalho produtores da saúde.

Imaginando uma dada linha de produção do cuidado, verificamos que uma unidade de produção de consulta não tem uma existência por si, ou seja, ela está associada a outros elementos que fazem parte da propedêutica e mesmo do projeto terapêutico a ser posteriormente determinado. Em muitos casos, a consulta demanda procedimentos, em especial exames para comprovação diagnóstica.

O que pode determinar o resultado do “tratamento realizado” ou “usuário cuidado”, ao final da assistência prestada, isto é, ao fim da produção realizada na linha do cuidado, por exemplo, depende de uma série de processos intermediários que, juntos, somam para o produto final, que expressará resultados obtidos do ato de assistir ao usuário. Em cada fase, haverá uma relação entre TM e TV, operando no interior dos processos de trabalho e determinando a Composição Técnica do Trabalho.

Por tudo isso, deduzimos que a análise dos processos de trabalho estará realizada quando o conjunto articulado para a produção na saúde, ao longo de uma certa “linha de produção do cuidado”, estiver analisado, compondo todos os microprocessos, em cada “unidade de produção”, em um determinado estabelecimento de saúde.27 Sobre o tema, ver: “Os desafios postos pela Atenção Gerenciada para pensar uma transição tecnoló-gica do setor saúde”, In: MERHY (2002).

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Na linha de produção do cuidado, o usuário, após a consulta, dirige-se a outra microunidade de produção para obter produtos que lhes foram demandados através da consulta médica, os “exames”. Após a realização dos mesmos, usando ainda nossa imagem de um resumido processo assistencial em uma Unidade Básica de Saúde, o usuário retorna ao profissional para a finalização do diagnóstico, quando será determinado o projeto terapêutico. Supõe-se que, em uma hipótese, sejam prescritos medicamentos e que estes sejam, como tem sido tradicionalmente concebido, o principal insumo em terapêuticas.

A saúde tem, para nós, protagonistas da reforma sanitária brasileira, o significado da realização da cidadania, expressão de uma sociedade inclusiva e não do mercado; expressão do público e não da forma neoliberal de conduzir a política. No espaço micropolítico, isso nos leva a pensar um “tipo ideal” de modelagem da assistência à saúde, o que significa optar pela organização de processos de trabalho que liberem todo o potencial criativo e criador do Trabalho Vivo em ato como forma de produção do cuidado, garantindo sua prevalência sobre o Trabalho Morto, na Composição Técnica do Trabalho, como tem sido dito até aqui. Advogamos a idéia de que saúde é um bem que tem uma relevância intrínseca à vida das pessoas e, como tal, é “valor de uso” (CAMPOS, 1994) e não “valor de troca”. É assim, um bem público que deve ser ofertado a todas as pessoas indistintamente.

Pelos vultosos recursos circulantes em torno dos sistemas público e privado de saúde, além do nosso, há outros olhares sobre a produção do cuidado, entre eles, o do capital e do capitalismo. É necessário compreendê-los e desvendá-los para conseguirmos oferecer respostas à necessária transformação no setor, evitando que continue o processo de trabalho subsumido pelo imaginário consumista (de máquinas e insumos) quando da realização de seus produtos.

No processo de disputa pelos rumos da produção da saúde, no Brasil, há outros atores em cena que têm distintas concepções da saúde e de sua forma de produção, e que trabalham seus projetos influenciando e determinando o funcionamento do sistema produtivo da assistência. Muitas vezes, partem da lógica de mercado, qual seja, a de enxergar a saúde como lugar de realização do lucro e fonte de acumulação de capital. Para esses atores, saúde é sempre um “valor de troca”, inserindo-se no mercado globalizado. Como diz Matus (1993), são muitas as formas de ver e explicar a realidade, e isto se dá a partir do lugar

social, de acordo com o ator social que a explica, e todas são verdadeiras porque são verdades para aquele ator e determinam sua ação.

Estamos identificando que a disputa pelo controle hegemônico dos processos produtivos na saúde se dá a partir da luta pela determinação da Composição Técnica do Trabalho. São muitas as implicações colocadas nesse nível do processo produtivo. Além de determinar o modo de produção do cuidado, seu perfil, a forma mais ou menos acolhedora em relação aos usuários, há uma implicação relativa aos custos dos serviços, ao valor agregado aos produtos (seja de caráter material ou simbólico), e à geração do lucro e acumulação de riquezas.

Como o processo produtivo se dá por meio das relações entre a equipe de trabalhadores, e destes com os usuários, os processos de subjetivação, a partir da experiência da saúde, atravessam os diversos modos de produção do cuidado.

No cenário atual de capitalismo globalizado, a disputa pelos recursos da saúde se dá no nível das grandes corporações econômicas que ganham inserção no mercado a partir da sua presença nos diversos territórios, inclusive no Brasil.28 Seja no público ou no privado, produzem-se inovações na organização da assistência, tanto por parte daqueles que advogam um modelo “produtor do cuidado” quanto dos que trabalham no sentido da acumulação, induzindo a um modelo “produtor de procedimentos”. Essas inovações realizam-se através da incorporação de novas tecnologias, de novos saberes, da produção de “subjetividades solidárias ou capitalísticas” (GUATTARI, 1998) e da introdução de práticas cuidadoras ou não, mas que irão, todas, ganhar síntese na Composição Técnica do Trabalho. Isso porque todos dispositivos organizados, por qualquer segmento, para mudar a estrutura produtiva da saúde introduzirão, no processo de trabalho, tecnologias do cuidado que estarão centradas no Trabalho Morto ou no Trabalho Vivo, criando entre eles, sempre, uma correlação que irá determinar o perfil do cuidado aos usuários com todas as implicações que isso tem, já citadas acima.

Às novidades introduzidas nos sistemas produtivos da saúde, que geram mudanças no modo de elaborar os produtos, na forma de assistir às pessoas, denominamos de “reestruturação produtiva”. Essas inovações podem se dar de diversas formas, não determinadas a priori, mas verificadas a partir do momento que estruturam novos modos de produção e organização dos processos de trabalho. Em geral, buscam

28 Sobre a presença do capital na organização de serviços de saúde suplementar, ver IRIART (1999) e MERHY (2002).

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alterar a conformação tecnológica do processo produtivo e introduzem mudanças organizacionais. Como são processos, podem estar completos, em andamento ou operar de acordo com diversas combinações entre si. Importa registrar que nem sempre novas formas de produzir significam mudanças reais na razão entre TM e TV nos processos de trabalho, impactando os resultados obtidos ao final desses processos.

Merhy (2002) assinala que há apostas em curso, no Brasil, por meio de um processo de reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica na saúde, de perfil anti-hegemônico, apontando como atores desse processo tanto a “medicina tecnológica”, a presença do capital financeiro através da “atenção gerenciada”, quanto setores do movimento sanitário brasileiro, citando trabalhos de autoria de Campos, Nogueira e Cecílio.29 Diz o autor:

[...] o percurso de procura de uma nova conformação tecnológica para a produção dos atos de saúde, impactando a relação entre o núcleo tecnológico do Trabalho Vivo em ato em saúde com os outros núcleos deste processo produtivo, faz parte de uma aposta que se coloca de modo anti-hegemônico – tanto em relação à medicina tecnológica, quanto à da Atenção Gerenciada que o capital financeiro vem introduzindo no setor saúde -, por setores articulados ao movimento sanitário brasileiro, [...] (MERHY, 2002:31).

As determinações para que uma reestruturação produtiva se realize são diversas. Geralmente são objeto de disputas entre sujeitos que se colocam na cena decisória da organização dos serviços de saúde. Estes refletem interesses de diversas ordens, sejam corporativos, na defesa de micropoderes no espaço produtivo, na determinação normativa do organismo estatal ou nos movimentos de mercado, entre outros. Ao final, na organização dos processos produtivos, deverá prevalecer uma dada correlação de forças que se estabelece por pactuação entre os diversos atores em cena. O modelo tecnológico de produção da saúde resultante dessa combinação se expressa no nível macro e micropolítico dos diversos e complexos sistemas de assistência, organizados ao longo de uma imaginária linha do cuidado.

Para debater a linha do cuidado, fazemos nossas discussões com foco na micropolítica dos processos de trabalho, na qual é possível reconhecer aquilo

29 CAMPOS (1987, 1992) e, ainda, NOGUEIRA (1994) e CECÍLIO (1997).

que, para nós, se trata de uma descoberta protagonizada por Merhy (2002), a do reconhecimento de produtos da saúde com “materialidades simbólicas”, que são realizados com centralidade do Trabalho Vivo em ato, conforme já foi citado. Pode-se considerar, assim, que o Trabalho Vivo em ato é produtivo, pois constitui produtos que têm utilidade intrínseca, e os mesmos incorporam valor ao processo.

Buscar a “cartografia do Trabalho Vivo” é como mapear um rizoma30, pois ele se encontra em todo lugar, onde houver atividade produtiva humana. Isso lhe dá esta extraordinária característica rizomática, caótica, revolucionária, potencialmente instituinte. Pode ser, por conseguinte, um analisador dos processos de produção da saúde, determinando a Composição Técnica do Trabalho, como já dissemos, pela presença do Trabalho Vivo.

A reestruturação produtiva e a composição de valor dos produtos da saúde

O mundo assistiu, na segunda metade do século XX, a um grande processo de reestruturação produtiva no setor de produção industrial. O novo modelo, chamado de toyotismo ou ohnismo (por ter sido idealizado pelo engenheiro de produção Taiichi Ohno), inspira-se nas mudanças do processo de trabalho desenvolvidas na Toyota, no Japão pós-45, e que muito rapidamente se propaga para as grandes empresas daquele país e de outras partes do planeta. Consideramos importante descrever esse processo, por entendermos que, em algumas situações, há na sua concepção, semelhanças com processos de reestruturação produtiva na saúde. No entanto, como se verá, a semelhança é restrita, pois na realidade, a grande diferença entre o modo de produção industrial e o da saúde determina formas muito diversas de análise para este último segmento.

De acordo com Antunes, o toyotismo / ohnismo diferencia-se do fordismo, basicamente, pelos seguintes aspectos:

1) é uma produção muito vinculada à demanda, visando atender às exigências mais individualizadas do mercado consumidor,

30 Esta figura da botânica é utilizada por DELEUZE e GUATTARI (1995) para dar significado a uma idéia geral de múltiplas conexões, realizadas fora de um eixo estruturante, com grande capacidade de retomada atra-vés de linhas de fuga, mesmo quando rompido e ainda de acordo com os autores “[...] um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo”. (DELEUZE e GUATTARI, 1995:15-21).

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diferenciando-se da produção em série e de massa do taylorismo / fordismo;

2) fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade de funções, rompendo com o caráter parcelar típico do fordismo;

3) a produção se estrutura num processo produtivo flexível, que possibilita o operário operar simultaneamente várias máquinas;

4) tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção;

5) funciona segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque;

6) as empresas do complexo produtivo toyotista, inclusive as terceirizadas, têm uma estrutura horizontalizada;

7) organiza os Círculos de Controle de Qualidade (CCQs), constituindo grupos de trabalhadores que são instigados pelo capital a discutir seu trabalho e desempenho;

8) o toyotismo implanta o “emprego vitalício” para uma parcela dos trabalhadores das grandes empresas (ANTUNES, 1999a:54-55).

Em relação a essas diretrizes do toyotismo, importa assinalar o trabalho em equipe como um dos pilares de reorganização do processo de trabalho, associado à valorização do conhecimento múltiplo, em contraposição ao conhecimento especializado do período fordista. Nesse modelo, o empresário reconhece o valor do Trabalho Vivo enquanto certo tipo de trabalho que agrega mais valor aos produtos, e opera, portanto, uma captura do mesmo de forma mais sutil do que no modelo taylorista/fordista, através da norma, retirando a “esteira rolante” e introduzindo a idéia de “ilhas de produção”. Neste lugar, o trabalhador conta com um maior grau de liberdade para operar seu trabalho, ele é necessário, sobretudo, para satisfazer às novas tendências do mercado consumidor. Paradoxalmente, houve, neste

processo, uma maciça incorporação de novas tecnologias, uma grande substituição de Trabalho Vivo por Trabalho Morto nos processos produtivos, a partir da qual se garante uma maior produtividade, com a conseqüente elevação dos lucros e da taxa de mais valia relativa. Verificamos, portanto, que há uma presença física maior da maquinaria em relação ao Trabalho Vivo disponível para os processos produtivos. No entanto, este trabalho é mais significativo, porque mais útil ao novo modelo produtivo que acabava de se consolidar. A produção seriada e padronizada é substituída pela personalizada, com o intuito de melhor atender à clientela na feroz disputa de mercado entre as grandes corporações econômicas.

A reestruturação da Toyota, a partir dos princípios do ohnismo, é minuciosamente descrita por Coriat (1994). De acordo com o autor, o sistema Toyota estruturou-se a partir de dois princípios básicos: a “autonomação” e auto-ativação, sendo que o primeiro termo é um “neologismo forjado a partir da contração de duas palavras: autonomia e automação. A idéia sendo aqui a de dotar as máquinas automáticas de uma certa autonomia, a fim de introduzir um mecanismo de parada automática em caso de funcionamento defeituoso” (CORIAT, 1994:52). Esses processos, experimentados inicialmente na indústria têxtil, foram introduzidos no conjunto das linhas de produção automobilística. “Este ponto é absolutamente notável, pois se refere tanto aos dispositivos mecânicos introduzidos no coração das máquinas quanto aos dispositivos organizacionais que dizem respeito à execução do trabalho humano. Estes últimos são então designados como procedimentos de auto-ativação” (CORIAT, 1994:52).

Desespecialização e polivalência operária são outros princípios do ohnismo para a reorganização do processo de trabalho. Essa diretriz distingue-se do taylorismo, que força a especialização do trabalhador, a repetição dos seus atos em elevados ritmos de trabalho. O ohnismo, por sua vez, estimula a polivalência operária, de acordo com Monde, citado em Coriat “para transformá-los não em operários parcelares, mas em plurioperadores, em profissionais polivalentes, em ‘trabalhadores multifuncionais’“ (CORIAT, 1994:53).

Embora a organização do trabalho sob as diretrizes do ohnismo tenha valorizado o conhecimento ampliado e “generalista” dos processos produtivos, por outro lado, mantém o objetivo de aumentar o ritmo de trabalho e a conseqüente produtividade, o que faz o modelo toyota coincidir, nesse aspecto, com o modelo

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de Taylor. A busca da otimização do trabalho humano leva Ohno a trabalhar a idéia original de Taylor sobre tempos e movimentos na organização do trabalho. Associado à desespecialização, Ohno trabalha um outro princípio que é o do “tempo partilhado”. Ele classifica o tempo em Taylor, como “tempo alocado”, ou seja, aquele no qual o operário é colocado para executar determinados gestos em certo ritmo no processo produtivo. Ford, por sua vez, introduz esse princípio em uma linha de produção dirigida pela esteira rolante. Aqui, o tempo passa a ser o “tempo imposto”.

Embora a introdução desses princípios no processo de organização do trabalho tenha assegurado grandes progressos no rendimento do trabalho, Ohno os critica argumentando que são “excessivamente consumidores de tempo morto”. Porém, mesmo criticando-os, Ohno parte desses mesmos princípios para formular a base teórica do que chama de “organização do tempo partilhado”, como explica Coriat:

[...] à linearização das secções de produção e às multifuncionalidades dos trabalhadores, introduz o princípio da atribuição de tarefas moduláveis e variáveis tanto em quantidade quanto em natureza. As fronteiras entre postos e ilhas de trabalho são mantidas numa situação ininterruptamente “virtual” estão permanentemente transgressíveis por um ou vários trabalhadores aos quais um conjunto de tarefas previamente determinadas foi alocado (CORIAT, 1994:71).

Como se vê, essa nova forma de organização do trabalho só é possível mediante a multifuncionalidade dos trabalhadores.

Na reestruturação do processo de trabalho da Toyota, como já foi mencionado anteriormente, há uma revalorização do “Trabalho Vivo”. Pode-se verificar isto a partir de dois aspectos. O primeiro deles, o princípio de “tempo partilhado”, pelo qual o trabalhador, operando a partir de um saber polivalente, detém maior conhecimento do processo de produção como um todo e eleva seu grau de liberdade para intervir na cadeia produtiva. Por outro lado, de acordo com CORIAT (1994), via-se como possibilidade de resposta ao grande aumento da demanda enfrentado pela empresa, a maior racionalização do trabalho apoiada no maior rendimento possível do Trabalho Vivo.

Esta é outra diferença importante entre o método taylorista/fordista de organização do trabalho e aquele implantado no sistema Toyota. Ao invés de proceder

à captura do Trabalho Vivo, busca-se a sua otimização. Mesmo que o objetivo central do método ohnista seja o de aumento de produtividade e redução de custos, é preciso reconhecer que a reorganização do processo de trabalho levou a uma grande inovação e retomou valores importantes do mundo do trabalho, reinseridos na discussão da sua reorganização e realocação no mundo produtivo contemporâneo.

Os processos na saúde ganham uma dimensão diferente, cuja análise requer outras categorias. Aqui, é importante verificar que o modelo tecnológico de produção da saúde está em disputa entre aqueles segmentos econômicos/corporativos que defendem o modelo “médico produtor de procedimentos” e os que defendem o modelo “produtor do cuidado”. Reconhecemos que o primeiro tem sido hegemônico e impõe determinada modelagem aos serviços de saúde, conforme seus interesses. No entanto, no caso da saúde, busca-se desvendar qual é a aposta que o capital faz no segmento da saúde, considerando que ele tem em vista a realização de lucros, em um processo globalmente organizado de acumulação. Inspiramo-nos nos estudos de Marx sobre os processos produtivos industriais para discutir a questão, sabendo que a especificidade da produção da saúde remete-nos, também, a outros referenciais teóricos para uma análise com foco no setor.

De acordo com Marx, a máquina e outras tecnologias de trabalho transferem ao seu produto determinado valor: “Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção” (MARX, 2001:220). O que Marx nos revela, com relevância, é o caráter social da produção e, por conseqüência, a determinação do valor da mercadoria. Assim, a determinação social do valor está no fato constatado de que ninguém produz sozinho, ou seja, toda produção tem, virtualmente, a presença de outros trabalhos incorporados, além daquele que o trabalhador está executando, em ato. Isso porque, nos instrumentos que utiliza, nas máquinas que opera, há também trabalho incorporado pregresso, que participa do processo atual e ao qual o trabalhador soma o seu Trabalho Vivo. A composição final do valor desses produtos levará em consideração o tempo e a qualificação do trabalho consumido (trabalho útil), associados ao valor transferido pela máquina a este produto. Então, como há trabalho anteriormente executado - para fabricar as máquinas e instrumentos - participando de um dado processo de trabalho e

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produzindo coisas, essa produção é considerada, pois, como socialmente determinada, porque é expressão também de outras relações de trabalho havidas no passado. Por este raciocínio, a produção é coletiva, é produto de relações sociais. O autor diz ainda que: “Como o da matéria-prima, o valor dos meios de trabalho – da maquinaria, por exemplo -, empregados no processo de produção pode variar também e, em conseqüência, a porção de valor que transferem ao produto” (MARX, 2001:245). A associação de Trabalho Morto e Trabalho Vivo nos microprocessos produtivos da saúde, focada aqui em uma microunidade de produção de uma dada linha do cuidado, expressa no conceito da economia política a incorporação de valores aos produtos realizados nesse lugar. Esses valores são atributos das máquinas, associados ao valor que é impresso pelo trabalho humano despendido, isto é, Trabalho Vivo em ato.

Verificamos que, na indústria, tal como relatado por Marx, o valor dos produtos é determinado por duas fontes: a primeira vem da transferência de valor da máquina para o produto, e a segunda, transferida pelo tempo de trabalho - e a qualidade deste -, que é despendido na sua elaboração. Dessa forma, compõe-se o valor do produto final. Quanto maior o valor da máquina, mais valor ela transfere ao seu produto. Na saúde, esse tema carece, até agora, de uma compreensão mais detalhada.

Procuramos entender essa questão, aprofundando a discussão em torno do modelo tecnológico sob o qual operam os processos de trabalho em saúde, a partir da razão que se estabelece entre o Trabalho Morto (TM) e Trabalho Vivo (TV), o que estamos chamando de Composição Técnica do Trabalho (CTT). A valorização dos produtos da saúde é discutida a partir das categorias de valores-de-uso, em função da utilidade intrínseca a seus produtos. Discute-se, também, sob a categoria de valores-de-troca, pela propriedade que esses mesmos produtos assumem ao incorporarem determinado valor e ao serem disponibilizados no mercado, à semelhança das demais mercadorias. Essa tem sido a pretensa forma de ação do capital quando investe no segmento da saúde. No entanto, a ação estatal, a presença de usuários organizados, a instituição de instrumentos de defesa dos interesses dos consumidores e uma série de outros dispositivos, associados, no Brasil, à criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), determinaram maiores graus de implicação de diversos atores na cena decisória da regulação

do setor privado de saúde, indicando que o status e o modus operandi da saúde privada está também em permanente disputa na atualidade.

“Os diversos elementos do processo de trabalho desempenham papéis diferentes na formação do valor dos produtos” (MARX, 2001:235). A frase é emblemática do significado que tem a finalidade do capital na realização de lucro a partir, naturalmente, do processo de trabalho. Um outro elemento a se considerar é o fato de que a composição do valor dos produtos da saúde está associada à razão existente entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo, na Composição Técnica do Trabalho, que opera em determinada linha de produção do cuidado.

Nos processos de trabalho observados em qualquer unidade produtiva, inclusive da saúde, que é nosso objeto de estudo, Trabalho Morto (TM) e Trabalho Vivo (TV), com expressão nas tecnologias duras, leve-duras e leves, operam relacionando-se entre si, determinando os produtos finais de um certo processo de trabalho. Contudo, esses produtos, se realizados em um processo de “Trabalho Morto centrado”, terão determinados valores atribuídos; se, de outro modo, são produzidos em processo de “Trabalho Vivo centrado”, um valor diferente lhes é atribuído. Como isso se explica? A principal diferença se encontra no valor transferido ao produto final, que é incorporado ao mesmo, após seu processo de produção. Recuperando alguns princípios da “teoria do valor” para discutir a questão, segundo Marx (2001), como já relatado acima, o valor de determinado produto se dá pela transferência de valor dos instrumentos (TM) utilizados no trabalho ao produto que está sendo criado, somado à remuneração do trabalho humano (TV em ato), que também é transferida ao produto. Imaginemos que, para uma mesma nosologia, por exemplo, hipertensão arterial leve, haja projetos terapêuticos que disponibilizem diferentes “tecnologias do cuidado”.31 Podemos, aqui, inferir duas formas diferentes de assistir a este problema de saúde. No primeiro caso, conduzindo o projeto terapêutico para um certo sentido, poderá haver maior presença de instrumental de diagnose, associado com excessiva prescrição medicamentosa e, principalmente, conhecimento especializado, priorizando, assim, as tecnologias duras no cuidado ao usuário, um processo produtivo, portanto, que tem seu núcleo tecnológico operando centrado no Trabalho Morto (TM). Por outro lado, poderá haver um projeto terapêutico diferente, para o qual

31 Por tecnologias do cuidado entendemos todos os recursos assistenciais que estão disponíveis para assistência aos usuários, e que são, por excelência, expressões tecnológicas para o trabalho em saúde.

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são disponibilizadas tecnologias referentes à promoção à saúde, que se orientem para o autocuidado, para a valorização das relações e transformação do usuário em sujeito do processo assistencial, operando assim com menor presença de tecnologias duras (diagnose e medicamentos), um processo produtivo Trabalho Vivo (TV) centrado. Teoricamente, no primeiro processo, haverá maior valor incorporado ao produto - “tratamento realizado” ou “usuário cuidado” - do que no segundo processo. Isso se explica porque o primeiro utilizou instrumental no qual já havia trabalho incorporado e, portanto, insumos com maior valor, do que o segundo processo, em que o Trabalho Vivo foi exercido em ato, havendo menor valor no “instrumental de trabalho”, pois o projeto terapêutico se deu a partir do conhecimento e da relação estabelecida com o usuário naquele momento. Em tese, conclui-se que, na primeira situação, como há maior transferência de valor ao produto, este se torna mais caro e de resolutividade duvidosa dado à assistência pouco interativa e relacional. Já no segundo cenário, o valor incorporado pelo produto é basicamente o de remuneração do trabalho e uma pequena parte de transferência da maquinaria, reduzindo seu valor.

A maquinaria (TM), ao transferir valor aos seus produtos, não está criando valor novo no processo produtivo em questão, pois o que é transferido é tirado de outro lugar, no caso, da própria máquina que sofre um processo de depreciação ao funcionar para produzir. Já a “força de trabalho”, Trabalho Vivo, não transfere, mas cria valor novo para esses mesmos produtos, ou seja, agrega valor, possibilitando assim o lucro e a acumulação, embora se reconheça que o trabalho humano tenha um valor em si. Eis o que diz Marx sobre o tema:

O valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho são, portanto, duas magnitudes distintas. A propriedade útil desta [...] era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho, para criar valor, tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor-de-uso específico da força de trabalho, o qual consiste em ser ela fonte de valor, e de mais valor que o que tem (MARX, 2001:227; grifos do autor da tese)

Marx vem afirmar, portanto, que a “força de trabalho”, o que para nós, na saúde, é Trabalho Vivo em ato, tem uma propriedade útil, isto é, opera realizando

produtos que têm uma utilidade intrínseca, são, por assim dizer, valores de uso, e esta é a condição para que o TV crie valor nos processos de trabalho. No caso da saúde, verificamos que o Trabalho Vivo em ato tem função central no processo produtivo, tanto no sentido de criar valores de uso como para a acumulação, visto a sua capacidade de gerar valor agregando-o aos produtos. O que diferencia os produtos e resultados na assistência à saúde é a capacidade que o Trabalho Morto tem de fazer a captura do Trabalho Vivo no interior do núcleo tecnológico do cuidado. Tudo isso é dito com foco na produção de uma dada Unidade de Saúde. Mas pode haver diferenciações no posicionamento do Trabalho Vivo e sua capacidade de gerar valor a novos produtos, dependendo do lugar que ocupa na “cadeia produtiva da saúde”, o que significa incorporar a esta análise os processos de produção de conhecimento, ligados à atividade de pesquisa na área, à produção de equipamentos e máquinas, que servem de insumos para a produção e aos processos assistenciais propriamente ditos, produtores do cuidado, que são o nosso objeto de estudo.

Marx trabalha outro conceito para designar a relação entre máquinas e trabalho humano, nos processos produtivos, com atribuição de valores aos produtos gerados nesse processo. Esse novo conceito é a “Composição Orgânica do Capital” que, de acordo com Mandel (1985:412), “é a relação técnica ou física entre o conjunto de máquinas, matérias-primas e trabalho necessário para produzir mercadorias com determinado nível de produtividade, e a relação de valor entre capital constante e capital variável determinada por essas proporções físicas”. A diferença entre Composição Técnica e Composição Orgânica do Capital está no fato de que esta última dá-se pela relação entre meios de produção e trabalho humano, “representada em termos de valor” (BOTTOMORE, 1983:69). Este conceito marxista não será tratado aqui, por considerarmos que o termo Composição Técnica do Trabalho, tal como o estamos definindo, mais apropriado para a discussão que se pretende realizar neste estudo.

Ainda cumpre registrar, no entanto, que Paul Singer, no texto de apresentação à obra de Mandel (1985), faz uma citação importante a respeito:

Esse aspecto [da composição orgânica do capital] tornou-se particularmente relevante no século presente porque muitos dos novos ramos apareceram no setor de serviços, no qual a composição

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orgânica do capital tende a ser bastante baixa. É o caso particularmente do ensino e dos serviços de saúde, cuja expansão tem sido notável desde o começo do século (SINGER, In: MANDEL, 1985:XVIII).

Ou seja, Singer ensaia uma aproximação para avaliar o caso da saúde, mas pára na constatação de que o trabalho humano se sobrepõe ao trabalho das máquinas, à “força de trabalho”, aos “meios de produção”, mas vê-se que, preso às categorias econômicas de análise dos processos industriais, não consegue ir além da constatação de que a Composição Orgânica do Capital para o caso da saúde é diferenciada. O referencial teórico adotado não permite verificar que, para o caso da saúde especificamente, há produtos que não têm a materialidade daqueles que são criados na indústria, como um calçado ou um automóvel, por exemplo. Como bem sinalizou Merhy (2002), a produção da saúde refere-se, também, a um certo tipo de produto simbólico. Como exemplo, peguemos as ações específicas de promoção à saúde, com base no cuidado, nas quais os meios de produção são os atos de fala e as relações estabelecidas com o usuário. Nesses casos, o estudo da formação do valor dos seus produtos é realizado de forma específica, pois são tecnologias leves aplicadas ao trabalho, um processo centrado no Trabalho Vivo em ato.

O medicamento, como todo insumo, também conheceu progressos em função da pesquisa técnica e científica, e traz valor incorporado durante sua produção, geralmente elaborada em processos que consomem alta tecnologia e, portanto, com grande capacidade transferência de valor. O medicamento, portanto, transfere valor ao produto final do tratamento realizado, somando-se àqueles mencionados anteriormente.

O capital só mantém interesse na saúde se conseguir realizar sua função precípua, o lucro, e este só existe onde é atribuído valor aos produtos que são elaborados em processos produtivos orientados de acordo com o mercado. É assim que, sempre, os mercados vão atribuir valores-de-troca ou simplesmente valores aos produtos da saúde, seja um produto que consome principalmente recursos de conhecimento e relações - respectivamente, tecnologias leve-duras e leves (TV centrado) -, seja outro processo em que concorrem tecnologias duras (TM centrado). Em qualquer situação, o capital necessita atribuir valores aos produtos resultantes de cada processo.

A cadeia produtiva da saúde na geração de valor dos seus produtos

Uma primeira questão importante diz respeito à atividade de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos para a saúde, descritos na obra de Albuquerque e Cassiolato (2000). A atividade de invenção, produção e distribuição de máquinas para o consumo na produção da saúde, movimentam grande parte do capital circulante no setor, aquecendo o mercado e operando no sentido da acumulação de capital. Trata-se, aqui, da criação dos “meios de produção”, máquinas e insumos, isto é, tecnologias duras, que trazem em si trabalho incorporado e, por ser assim, são Trabalho Morto.

As corporações industriais, responsáveis pelas novas invenções e produtos/insumos para a saúde, criam tensão nesse segmento, para absorvê-los nos seus respectivos processos produtivos. Há toda uma justificativa para a adoção de certos modelos tecnológicos de produção da saúde no sentido de adotar cada vez mais e maiores quantidades de maquinaria. Força-se, assim, a organização de processos de trabalho, Trabalho Morto centrado, a operarem projetos terapêuticos vinculados ao modelo médico-hegemônico.

Trabalhando um pouco com o exemplo que estamos utilizando, de se considerar a “linha de produção do cuidado”, faremos o esforço de pensar o processo de trabalho realizado na produção de diagnósticos, imaginando um lugar conhecido por trabalhadores e usuários, a sala de exames de “Raio X”. Vimos que o valor desse produto é definido por valores antecedentes que são transferidos pela máquina e por outros insumos (Trabalho Morto), bem como pela atividade de trabalho do técnico (Trabalho Vivo em ato) que opera essa máquina para que ela produza o exame desejado. A máquina, ao transferir valor para o seu produto, perde este mesmo valor relativo, o que explica o valor atribuído à depreciação da maquinaria. “No processo de trabalho, o valor dos meios de produção só se transfere ao produto quando os meios de produção, juntamente com seu valor-de-uso independente, perdem seu valor-de-troca. Cedem ao produto apenas o valor que perdem como meios de produção” (MARX, 2001:238). Ou seja, a máquina, ao produzir, vai desacumulando valor ao longo do tempo, na medida em que este vai sendo transferido para os produtos, neste caso, os exames de “Raios-X”. Essa questão, associada ao desenvolvimento tecnológico e à premente necessidade

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de acumulação do capital, cria uma tensão sobre os processos produtivos da saúde, no sentido da incorporação contínua de novas tecnologias, algo que não cessa, porque é a forma de retroalimentação do capital, a perene acumulação necessária ao desenvolvimento da economia capitalista. A tendência, portanto, é a de vivermos sempre sob a tensão de contínuos processos de reestruturação produtiva, de um lado, propostas pelo complexo médico industrial, com a “necessidade” artificialmente criada de incorporação de novas tecnologias para manter o processo permanente de invenção, fabricação e distribuição de máquinas para a produção da saúde. De outro lado, estabelecendo uma relação conflituosa com a primeira, a proposta de organização de processos de trabalho e modelos tecnoassistenciais que representem maiores ganhos de liberdade na formulação dos projetos terapêuticos cuidadores, Trabalho Vivo dependente. Essa é a expressão da mais viva dinâmica de disputa pela produção da saúde, que ganha síntese junto à Composição Técnica do Trabalho (CTT).

Compondo as peças dessa teoria, e com foco no caso da saúde, verificamos que, em relação à maquinaria posta à disposição dos serviços de saúde, quanto mais produtos ela consegue realizar menor é o “Tempo de Rotação do Capital”, isto é, menos tempo gasto para o retorno do capital empregado na aquisição dessas máquinas e na remuneração do fabricante das mesmas. Interessa, pois, aos empresários fabricantes e proprietários de equipamentos biomédicos, que a estruturação da assistência à saúde esteja centrada na produção de procedimentos com alto consumo de produtos que possam ser realizados pela maquinaria existente e posta à disposição da saúde, para garantir que o tempo de rotação do capital seja o menor possível.

A pressão sobre os serviços de saúde para que estes incorporem sempre novas tecnologias duras é exercida, inclusive, através de uma certa subjetividade, criada entre os trabalhadores e usuários, que se apóia na idéia de que essas tecnologias representam a resolução das suas necessidades. Constrói-se, portanto, um verdadeiro fetichismo32 em torno de complexas estruturas tecnológicas que operam na linha de produção da saúde.32 “Marx nos diz que, na sociedade capitalista, os objetos materiais possuem certas características que lhes são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem natural-mente. Essa síndrome, que impregna a produção capitalista, é por ele denominada fetichismo, e sua forma ele-mentar é o fetichismo da MERCADORIA enquanto repositório ou portadora do VALOR” (BOTTOMORE, 1983:383).

Na produção da saúde com Trabalho Vivo centrado, o “tempo de rotação do capital” perde potência, pois a produção advinda de uma tecnologia centrada na maquinaria, Trabalho Morto, é substituída por outra que se utiliza, principalmente, das relações e do conhecimento, operando, conseqüentemente, com menor utilização das tecnologias duras.

Como já mencionamos, toda atividade de trabalho imprime valor aos produtos, ao final do seu “processo”. O trabalho de todos os profissionais colocados na linha do cuidado irá, necessariamente, atribuir valor aos produtos resultantes da sua atividade. Imaginemos uma consulta médica ou de enfermagem, um procedimento realizado pela auxiliar de enfermagem, um Raio-X ou outro exame qualquer realizado pelo técnico. Todos, em maior ou menor grau, estão tecnologicamente determinados por um processo produtivo maior, que configura o eixo sobre o qual atravessa a “linha de produção do cuidado”. Este é tecnologicamente determinado por projetos terapêuticos nos quais a produção do cuidado constitui-se sobre determinada razão entre o Trabalho Morto e Trabalho Vivo, enquanto componentes da “Composição Técnica do Trabalho”.

Na cadeia produtiva da saúde, identificamos, até agora, um setor que trabalha na produção de conhecimento através das atividades de pesquisa e inovação, outro na produção de máquinas e instrumentos para a saúde. Há um terceiro segmento que oferta serviços, melhor dizendo, que opera “linhas de produção do cuidado”. Esses serviços são, principalmente, de caráter público, organizados pelo estado, ou de caráter privado que, no caso brasileiro, são genericamente chamados de “medicina supletiva”.

A disputa pela Composição Técnica do Trabalho em processos de reestruturação produtiva e/ou transição tecnológica

Segundo Merhy (2002), o setor privado de saúde suplementar tem experimentado, nos últimos anos, uma importante mudança no sentido de otimizar gastos na produção da saúde, a partir do diagnóstico dos altíssimos custos operacionais do setor, para a assistência aos usuários, vinculando esse problema ao processo de microdecisão clínica do médico, que ocorria nos serviços.

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Toma-se a possibilidade de transferência do processo de decisão, sobre as ações de saúde a serem realizadas nos serviços, do campo das corporações médicas para o dos administradores, como uma estratégia vital para atacar a relação custo-benefício do sistema. Mas este não é o campo restrito de intervenção dessas propostas, pois ela também se filia a um outro conjunto de estratégias que visam a reorganização dos modelos de atenção partindo da ação dos prestadores privados, centrados nas políticas das instituições seguradoras e financeiras (MERHY, 2002:69-70).

Simultaneamente àquele diagnóstico, alguns segmentos da saúde suplementar adotam estratégias de controle da microdecisão clínica do médico, com objetivo de exercer sobre o mesmo uma certa “micro-regulação” da sua conduta, no sentido de reduzir a prescrição de procedimentos com vistas a baratear os custos da assistência que prestam. Com esse movimento, surge um novo personagem em cena, o do auditor, um administrador ao qual é delegada a função de decidir sobre a autorização ou não de determinados procedimentos e quantidades, a partir de protocolos clínicos previamente definidos pela operadora.

Por outro lado, o estado brasileiro, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculada ao Ministério da Saúde, tem buscado a regulação do setor, estabelecendo regras que tornem mais claras e transparentes os contratos firmados entre operadoras e usuários do sistema, limitando a liberdade de ação desse segmento na saúde.

Sem aprofundar nesse debate, pois não é o objeto deste estudo, é importante salientar que tudo isso tem criado um ambiente de disputas de projetos, em uma arena na qual o ator governo, as empresas operadoras, as prestadoras e os usuários colocam-se em cena com interesses específicos e, no conflito, são levados a pactuar determinado tipo de regras de convivência mútua diante desse tipo de modalidade de produção do cuidado à saúde.

Na relação operadora/prestador/usuário, o centro da disputa coloca-se na forma como o núcleo tecnológico de produção do cuidado se posiciona na estruturação dos processos de trabalho. Ou seja, reaparece o eterno conflito na determinação da Composição Técnica do Trabalho (CTT), a razão entre o Trabalho Morto e Trabalho Vivo. Senão vejamos: quando a operadora limita o uso

de determinado insumo, exames, por exemplo, está colocando limites no uso das tecnologias duras, projetos terapêuticos Trabalho Morto centrado. Tenta, assim, resolver o seu problema em limitar os custos da assistência. Erra, no entanto, ao não oferecer alternativas de tecnologias de cuidado, nos processos de trabalho que operar nas diversas “linhas de cuidado” constituídas para assistir aos usuários, que aumentem a presença do Trabalho Vivo na CTT. Cria, pois, uma contradição e o sentimento de perda de autonomia, no prestador/trabalhador-médico, que tem seu microprocesso decisório regulado; cria, outrossim, o sentimento de “descuidado” nos usuários, que vêem limitado o seu acesso aos “diagnóstico e terapias tradicionais”, sem a necessária substituição por alternativas terapêuticas, porque estas simplesmente não são ofertadas. Nesse caso, a aposta no “Trabalho Vivo” dá-se através da sua captura por uma lógica de produção da saúde guiada exclusivamente por normas administrativas e interessada na realização do lucro, sem uma real abordagem que reflita na necessidade de se realizarem processos de produção do cuidado, usuário centrado. A principal diretriz para a implementação de todo esse processo tem sido a “atenção gerenciada”. A saúde suplementar, dessa forma, tenta manter uma positiva razão entre o valor cobrado dos usuários pelos serviços assistenciais e os equipamentos/insumos e “trabalho” consumidos nos processos de produção da saúde. Restringe, por outro lado, as alternativas assistenciais disponibilizadas ao usuário, através da sua “linha de produção do cuidado”, como já foi afirmado anteriormente.

Supondo-se, porém, que outra empresa do segmento de saúde suplementar opere na mesma limitação ao consumo de insumos (Trabalho Morto) nos projetos terapêuticos, mas, em contrapartida, aposte em outras tecnologias de cuidado, compensatórias para ela, mas que podem ser uma alternativa real de produção da saúde com uma presença maior do Trabalho Vivo em ato como, por exemplo, aquelas ações que promovam o autocuidado dos usuários. Haverá um novo ordenamento da Composição Técnica do Trabalho, ou seja, nesse caso, irá ocorrer um aumento da razão entre o TM e TV na composição do núcleo tecnológico do processo de trabalho que se faz conduzir através da “linha do cuidado”.

Ao verificarmos as evidências de que o perfil assistencial demarcado pela “linha de produção do cuidado” pode ser definido através da razão entre TM e TV, ao compor seu núcleo tecnológico, o setor estatal, que opera a regulação

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com vistas à melhoria da qualidade da assistência, referindo-se, portanto, ao modelo tecnoassistencial, deve chamar para si o debate da Composição Técnica do Trabalho e induzir certas formações no núcleo tecnológico dos processos de trabalho dos prestadores.

Tudo isso ganha contornos de grande complexidade ao imaginarmos que, para além do processo assistencial em si, a composição do núcleo tecnológico que se forma na “linha do cuidado” vai repercutir também nos custos, na geração de lucros e no processo de acumulação, pois tratamos, no caso, de um setor privado que opera na saúde e tem essas questões como objetivos seus. Este, ao nosso ver, já entendeu que, para manter seus lucros, necessita reduzir a utilização de tecnologias duras, Trabalho Morto dependente, nos processos de trabalho e aumentar a presença do Trabalho Vivo em ato como força produtiva por excelência. Com isso, pretende-se a redução de custos, ou seja, reduzindo o consumo de máquinas, evitar-se-ia a transferência de valor destas para seus produtos, barateando seu custo e, supostamente, obtendo os mesmos resultados, porém, com aumento do lucro, na medida em que o Trabalho Vivo é quem o garante. Essa pretensão está ligada à idéia de lucro a ser obtido na sua atividade, acumulando riquezas através da “taxa de mais-valia”,33 que se obtém por intermédio da produção da saúde, mesmo nos produtos com “materialidades simbólicas”.

Ao fazer a inversão tecnológica de produção do cuidado, a medicina supletiva age no sentido inverso daquela que tenta induzir a uma maior presença de maquinaria nos processos produtivos, tecnologias duras centradas.34

No caso dos serviços públicos de saúde, estes sofrem as tensões de uma certa reestruturação produtiva que vem sendo disputada desde as décadas de 1950/60, quando se iniciou um processo de maior inserção de instrumentos e máquinas na produção da saúde, combinado ao avanço técnico-científico no setor e, por conseqüência, a maior presença do Trabalho Morto como estruturante dos processos de trabalho. Essa incorporação de novas tecnologias, subsumindo

33 A taxa de mais-valia é o excedente de trabalho despendido na produção, em relação à quantidade de trabalho necessária para a reprodução da força de trabalho, i.e., para a criação de valores de uso necessários ao trabalhador. O trabalho excedente representa a mais-valia, ou o lucro obtido pelo proprietário dos meios de pro-dução. Nos processos industriais, a mais-valia é o maior fator de acumulação, podendo ser produzida em maior escala com a introdução de máquinas nos processos produtivos, reduzindo o tempo necessário para a produção e aumentando a produtividade, o que é chamada de mais-valia relativa. Ver BOTTOMORE (1983).34 Sobre a presença do capital na saúde supletiva, ver IRIART (1999); e MERHY (2002), especificamen-te, cap. 3: “Os desafios postos pela Atenção Gerenciada para pensar uma transição tecnológica do setor saúde”.

os processos de trabalho, foi ganhando magnitude, tornando a produção da saúde tecnologicamente dependente desses recursos. Já vimos que, se maior a incorporação de TM aos processos produtivos, mais dispendiosos são seus produtos. A conseqüência óbvia desse processo, que se desenvolveu na organização da produção da saúde, ou seja, com a nova Composição Técnica do Trabalho, é que ele resultou em serviços extremamente caros.

Os custos dos serviços públicos são pagos pelos contribuintes, através do estado, que administra os recursos públicos. Portanto, manter o modelo “produtor de procedimentos”, com processos de trabalho tecnologicamente centrados no Trabalho Morto, é como alimentar a fonte de realização de lucros do capital, no caso, o complexo médico industrial, em um movimento cíclico na ciranda montada para a acumulação de riquezas pela via dos serviços de saúde. O contribuinte, ou seja, a população em geral, paga pela manutenção de um equivocado modelo produtivo da saúde, caro e pouco resolutivo.

O agravante desse cenário é o fato de que o senso comum, em relação à “assistência de qualidade na saúde”, está relacionado ao maior consumo de “exames” e “medicamentos”, ou seja, a um modelo tecnológico de produção do cuidado centrado no Trabalho Morto. São muitos os relatos da associação que os usuários fazem entre a realização das suas necessidades de saúde com o mundo maquínico, às vezes, oferecendo resistência a processos cuidadores ofertados por experiências inovadoras de organização de serviços de saúde (ver FRANCO e MERHY, 1999a). No entanto, o imaginário é uma construção sócio-cultural e histórica. Assim como foi construída ao longo do tempo essa imagem que ainda vigora atualmente, estratégias satisfatórias de cuidado à saúde são capazes de alterar, através da “experiência imediata” na relação usuário/serviços, o pensamento predominante no senso comum em relação a essa questão.

Pode-se perguntar se, nesse cenário complexo, deveria o estado intervir para alterar a lógica de produção da saúde? Entendemos que sim, como ator que tem a competência da regulação, deveria a esfera estatal implicar-se cada vez mais com a saúde e, sobretudo, assumir o compromisso com a produção do cuidado. Para isso, será necessário ter clareza quanto à forma como a Composição Técnica do Trabalho determina o modelo tecnoassistencial, seja no público ou no privado. As repercussões da ação governamental no nível da composição do valor e sua

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conseqüente determinação na geração de lucro e acumulação no setor serão vistas quando uma certa modelagem da produção da saúde for consolidada. A regulação estatal é, por excelência, a capacidade de contrariar interesses em benefício de um devir para a saúde, voltada à composição de modelos usuário-centrado e cuidadores. Esse é o ato necessário de coragem intelectual e política. Implica enfrentamento com a questão assistencial stricto senso, realizando rupturas que levem à composição de “linhas de produção do cuidado” e que adotem para si a missão de assistir ao usuário no sentido de autonomizá-lo perante a vida e o mundo, operando centrada nas tecnologias leves, Trabalho Vivo dependente.

Como o cenário de produção da saúde é habitado por inúmeros atores, com interesses e lógicas diferentes diante dessas questões, a mudança por um outro modelo tecnológico produtor do cuidado dar-se-á de forma tensa e conflituosa, produzindo possivelmente, ao final, pactos que viabilizem certas modelagens para a saúde. A discussão deve centrar-se, portanto, em como fazer esse movimento de mudança, a partir do estado, sem cair em uma lógica restritiva de acesso, excessivamente normativa, que impeça os graus de liberdade necessários à ação do Trabalho Vivo nos processos produtivos da saúde.

Começamos, assim, a pensar em uma “transição tecnológica”, como expressão de uma drástica mudança na Composição Técnica do Trabalho, a “utopia ativa” a comandar um modo radicalmente novo de organização dos processos de trabalho e das práticas assistenciais.

Diferenças entre reestruturação produtiva e transição tecnológica

Na discussão dos processos de reestruturação produtiva e transição tecnológica na saúde, somos obrigados a operar conceitualmente em uma tênue linha delimitadora. Os processos produtivos da saúde, como temos visto, são complexos, com alta implicação entre si, convivendo mutuamente “processos estruturados” - comandados pelo Trabalho Morto - e “processos em estruturação” - comandados pelo Trabalho Vivo em ato. É nessa relação que a produção vai se organizando, operando relações entre os sujeitos em cena, empenhados no cuidado e determinados pela intencionalidade que governa os atos assistenciais. Da tensão existente entre TM e TV, no núcleo tecnológico de produção do

cuidado, será definida a hegemonia de um sobre o outro, configurando, assim, um certo modus operandi para os produtos e certos resultados da ação cuidadora.

A reestruturação produtiva proporciona uma forma nova de se organizar a produção da saúde, sem necessariamente alterar a composição do seu núcleo tecnológico, ou seja, a razão entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo, que estamos nomeando, como dito anteriormente, de Composição Técnica do Trabalho. A respeito desse tema, citamos o trabalho de PIRES (1998), que descreve a incorporação de novas tecnologias à produção do cuidado, no interior do hospital, como forma de reestruturação produtiva. Pode-se dizer que o que ocorre é uma das formas de reestruturação produtiva porque muda o modo de trabalhar das pessoas a partir das novas tecnologias duras incorporadas. No entanto, o núcleo tecnológico dos processos de trabalho, criadores dos produtos, permanece como antes, Trabalho Morto centrado, com grande captura do Trabalho Vivo, mantendo a Composição Técnica do Trabalho (CTT) inalterada. Outro exemplo pode ser dado em relação ao Programa Saúde da Família, quando este não consegue alterar os processos de trabalho medicocêntricos, estruturados a partir do ato prescritivo. Ele muda a forma de produzir saúde a partir de núcleos familiares e da referência no território, mas a Composição Técnica do Trabalho continua centrada no Trabalho Morto, operando um modelo produtor de procedimentos. Nesses dois exemplos, portanto, as mudanças param na reestruturação produtiva e não chegam a configurar uma transição tecnológica.

Merhy diz que o “momento da transição tecnológica é a presença de novas tecnologias, que sinalizam ‘movimentos’ nos processos produtivos” (2002:20). Podemos concebê-la, pois, como um processo de mudança da produção, onde há alteração no núcleo tecnológico do processo de trabalho para a formação dos produtos da saúde, isto é, altera a razão entre TM e TV na Composição Técnica do Trabalho. Um exemplo disso é o fato de diversos segmentos da saúde suplementar inserirem, em seus projetos terapêuticos, ações de promoção e prevenção à saúde, recuperando o valor das tecnologias leve-duras e leves na produção do cuidado. Altera, por assim dizer, o foco de preocupações na produção da saúde e, notadamente, a Composição Técnica do Trabalho. Opera em maiores graus o Trabalho Vivo nos processos produtivos, em detrimento de Trabalho Morto. Há, nesse sentido, uma nova relação com o campo de necessidades dos usuários, na qual a preocupação com o autocuidado coloca-se na possibilidade de se obter melhores resultados em

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relação à saúde, abrindo a perspectiva de autonomizar o usuário e, com isso, reduzir os riscos de agravos e ainda, por conseqüência, os custos dos serviços prestados.

A discussão em torno da reestruturação produtiva, nos processos industriais, é tão antiga quanto o capitalismo, visto que a lógica de acumulação de capital leva a um processo inexorável de substituição contínua de equipamentos e instrumentos de trabalho. Para isso corrobora o desenvolvimento técnico e científico alcançado pela humanidade, e que, infelizmente, é apropriado pelos interesses privados dos seus proprietários e não pela coletividade. Esse movimento caracteriza uma certa reestruturação produtiva, estudada desde a revolução industrial, quando se inicia um maciço incremento de novas tecnologias e uma brusca alteração dos processos de trabalho.

De acordo com Mandel:

A aceleração da inovação tecnológica determina a aceleração da obsolescência da maquinaria, o que por sua vez torna obrigatória a substituição em ritmo mais acelerado do capital fixo em uso, e conseqüentemente reduz o tempo de rotação do capital fixo (1985:157).

A frase de Mandel confirma a grande pressão para a substituição constante de tecnologias duras nos processos produtivos industriais, ressalte-se, a intervalos cada vez menores, já que as máquinas vão sendo consideradas obsoletas e entende-se que devem ser substituídas por outras de novas gerações.

Na a cadeia produtiva da saúde, mais especificamente, no complexo médico-industrial, que é o segmento que produz ferramentas (máquinas e instrumentos) para o trabalho em saúde e que, portanto, constitui um processo produtivo semelhante ao industrial, ocorre o mesmo fenômeno, a pressão pela substituição dos instrumentos em uso por outros de “última geração”. Enfatizando mais uma vez o problema, no imaginário dos trabalhadores dos serviços de saúde predomina a associação do atendimento às necessidades em saúde ao uso dessas novas tecnologias. O movimento de solicitar apoios diagnósticos cada vez mais caros e complexos é guiado pela falsa lógica de associá-los à qualidade da assistência. A mesma dinâmica pode ser observada entre os usuários, que imaginam a qualidade como decorrência do maior uso da maquinaria.

Fruto de investimentos em pesquisa e invenções, as novas tecnologias, expressas em máquinas e instrumentos, são disponibilizadas ao mercado da saúde pelo complexo médico-industrial. Força-se, por um lado, um certo tipo de reestruturação produtiva, como o descrito por Pires (1998) e mencionada anteriormente. Na relação entre TM e TV, o Trabalho Vivo em ato apresenta-se como trabalho “em estruturação” sempre, um eterno “fazer” da ação cuidadora, contra-hegemônico, mas de um grande potencial instituinte. Em Saúde: a cartografia do Trabalho Vivo, Merhy (2002) discute as tecnologias de trabalho em saúde, com centralidade do Trabalho Vivo, contrariando a atual lógica de produção da saúde. A reflexão de Merhy revela focos de ação instituinte do Trabalho Vivo, capilares nos processos de produção da saúde, permeando os estabelecimentos assistenciais. Isso traz para o cenário das disputas do modelo tecnoassistencial experiências inovadoras que indicam caminhos alternativos, que podem ser seguidos com segurança sem confrontar a dinâmica imposta pelo o mercado à configuração tecnológica da produção da saúde.

Em suas elaborações acerca do Trabalho Vivo, Merhy (2002) revela ainda a essência de produtos e da produção do cuidado, confirmando a idéia de que a análise do caso da saúde requer categorias analíticas próprias e diferenciadas em relação aos processos industriais. Os “produtos simbólicos”, criados a partir de diversas tecnologias de cuidado que operam no interior de uma dada “linha de produção do cuidado” são reconhecidos a partir da significância do Trabalho Vivo no processo produtivo, das relações interseçoras e de certas intencionalidades do agir em saúde, que podem significar maiores graus de acolhimento e vínculo cuidador no ato de assistir, além de ganhos de autonomização do usuário nos resultados obtidos.

A “atenção gerenciada” e outras formas de reestruturação produtiva

Sobre a origem da atenção gerenciada, Merhy descreve que,

no correr dos anos 70, uma metodologia com perspectivas semelhantes (às do governo americano para monitorar a relação custo/efetividade do exército americano na guerra do Vietnã) é

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introduzida para a elaboração de projetos no campo da saúde, centrada no diagnóstico do altíssimo custo das ações de assistência e na sua vinculação ao processo particular de micro-decisão clínica, que ocorria nos serviços (MERHY, 2000:25).

Os estudos em torno da “atenção gerenciada” vão apontando para um processo produtivo e de consumo, organizado em uma articulada rede de petição e compromissos, pactuada entre diversos atores, a saber, a operadora do plano, os prestadores, a agência reguladora estatal (ANS) e usuários. Ao mesmo tempo, a produção da saúde vai transitando de um formado em que os processos de trabalho operados a partir do médico passam de uma liberalidade e autonomia no uso das tecnologias do cuidado para outro, em que há uma certa regulação e controle das ações clínicas do profissional, mas que ainda mantém a lógica produtiva centrada nas tecnologias duras e leve-duras. A atenção gerenciada representa, portanto, apenas o controle do ato médico, operando a relação custo/efetividade, uma reestruturação produtiva do setor a partir do momento em que altera a lógica de produção do cuidado. Mas não representa uma transição tecnológica, porque não há alteração na Composição Técnica do Trabalho, pois esta continua centrada no Trabalho Morto e com maiores graus de captura do Trabalho Vivo do que os processos anteriores. Não há, nessa proposta uma preocupação, “a priori”, com a produção do cuidado, do ponto de vista do atendimento às necessidades do usuário, mas uma ação reguladora sobre as tecnologias do cuidado que, no caso, são restritas, pois o processo de trabalho permanece centrado no modelo de “produção de procedimentos”.

Como já foi mencionado, um elemento-chave, no processo, é a introdução de um ator “auditor”, na pessoa de um administrador, como autorizador de procedimentos, guiado por protocolos técnicos. Este conduz o controle dos atos médicos, limitando-os de acordo com a eficiência pretendida para o sistema. O auditor, que no caso representa interesses do operador do plano, fica entre o prestador (no caso o médico) e o usuário (detentor da necessidade), colocando-se como o regulador do uso das tecnologias de cuidado. Todo comando é realizado pela lógica administrativa. Procedem-se também mudanças organizacionais importantes, visto que o contrato de trabalho entre operador e prestador é

estruturado nos termos de uma nova pactuação das suas relações, em que o critério do ato prescritivo é determinado geralmente por protocolos, seguindo a lógica dos instrumentos administrativos e metas financeiras de consumo/receitas do operador do plano de saúde.

O trabalho de Denise Pires, mencionado rapidamente aqui, em que a autora descreve a análise feita sobre dois hospitais, um público e outro privado, aborda outro modo de reestruturação produtiva na saúde. Em seu estudo, Pires identifica o uso de um conjunto de inovações tecnológicas que “estão marcando profundamente, o trabalho e a vida neste final de século” (PIRES, 1998:207). Por inovações tecnológicas a autora entende as máquinas e instrumentos de última geração, colocados à disposição dos cuidados em saúde pelo complexo médico-industrial. Ela diz, ainda, que

o setor saúde vem utilizando, significativamente , os equipamentos de base microeletrônica, os chamados novos materiais, bem como é um campo de aplicação dos avanços obtidos na química, na bioquímica, na engenharia genética e no campo da reprodução humana (PIRES, 1998:207).

Com outro enfoque analítico, a autora aborda o tema a partir, principalmente, da incorporação de novas tecnologias duras aos processos produtivos em saúde, como foi relatado acima.

O estudo de Pires (1998) destaca-se em uma das linhas de investigação em curso sobre a reestruturação produtiva da saúde. Contudo, no seu estudo, o “trabalho” não comparece como uma categoria analítica de destaque, o que enfraquece sua abordagem, que se detém na incorporação de instrumentos e máquinas, expressão de uma racionalidade instrumental posta à disposição da saúde.

O que ocorre nesse caso, “não é o impacto reestruturante da entrada de novos equipamentos de ponta nos processos produtivos, mas sim a continuidade de um modelo hegemônico com alterações que não compõem uma transição” (MERHY, 2002:28). A afirmação de Merhy vem no sentido de evidenciar que a simples introdução de novas tecnologias duras nos processos de trabalho não significa uma mudança na Composição Técnica de Trabalho, determinada, no caso, pela hegemonia do Trabalho Morto, estruturante e capturante do Trabalho

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Vivo em ato, na produção da saúde. Há, portanto, uma alteração no modo de produzir o cuidado, pelo uso das novas máquinas e instrumentos, o que configura uma reestruturação produtiva. No entanto, não há uma transição tecnológica porque não altera o núcleo tecnológico de produção da saúde, que permanece centrado no Trabalho Morto, tecnologia dura dependente.

Entendemos que esse é o ponto crucial da questão, ou seja, toda a incorporação de novas tecnologias não significa um novo padrão produtivo da saúde, pois os significados desse processo continuam sob os mesmos referenciais de antes. Mudam apenas as tecnologias duras a serem consumidas na produção, as disposições das mesmas, mas a razão entre TM e TV, no núcleo tecnológico de produção do cuidado, continua inalterada.

Discutindo os processos industriais, Mandel (1985) identifica, na passagem da década de 1950 para a seguinte, uma certa reorganização produtiva, desencadeada por intensa transformação do modelo tecnológico de produção de bens, que coincide com o início do período marcado por grande inserção de novas tecnologias nos processos de trabalho na saúde. O autor nomeia esse fenômeno de revolução tecnológica.

Em 1954, o início do uso de máquinas eletrônicas de processamento de dados no setor privado da economia norte-americana franqueou afinal, para diversos senão para todos os ramos da produção, o campo da inovação tecnológica acelerada e a caça de superlucros tecnológicos que caracteriza o capitalismo tardio. Incidentalmente, podemos datar a partir daquele ano o término do período de reconstrução após a Segunda Guerra Mundial e o início do surto de crescimento rápido desencadeado pela terceira revolução tecnológica (MANDEL, 1985:136).35

A afirmação de Mandel vem confirmar o movimento inexorável de substituição de tecnologias maquínicas nos processos produtivos, no caso, o boom ocorrido no pós-guerra.

Esse exemplo veio ao nosso texto para exemplificar que a lógica de reestruturação produtiva sugerida por Pires baseia-se na mesma lógica dos 35 O autor chama de terceira revolução tecnológica a configuração de um novo cenário macro-econô-mico, a partir das novas tecnologias que foram incorporadas nos processos produtivos.

processos de produção industrial, representando a limitação da análise da autora ao fazer a mesma transposição para a saúde. Admitimos que a produção do complexo médico-industrial da saúde cresce seguindo o ritmo e o formato dos processos industriais, e induz a certo tipo de modelagem da assistência, centrada no consumo das tecnologias duras. A partir daí, no cenário de produção do cuidado, que se verifica nos estabelecimentos assistenciais de saúde, sejam hospitalares ou ambulatoriais, a lógica de produção é bem diferente, e aquelas categorias não servem para análise desses processos produtivos.

Pires (1998) diz, ainda, que as Unidades Básicas (clínica e clínico-cirúrgica), praticamente, não usam equipamentos de tecnologia de ponta na prática assistencial. Uma ampla gama de instrumentos de trabalho é utilizada para a realização do trabalho assistencial, como o saber da saúde e o saber específico das diversas profissões, que são propriedade de cada trabalhador. Se, por um lado, a constatação da autora é verdadeira, por outro, o fato de não usarem maciçamente as “tecnologias maquínicas” não significa que os processos de trabalho deixem de ser tecnologicamente determinados e, por sinal, no tradicional modelo assistencial, em geral estão centrados no Trabalho Morto. Mesmo assim, permanece um cenário disputado em Trabalho Morto e Trabalho Vivo, na Composição Técnica do Trabalho, visto que esta correlação é intrínseca à produção do cuidado, está presente nos atos e no imaginário dos trabalhadores da saúde.

Por outro lado, a autora identifica o uso de “tecnologia de ponta nos hospitais, como um processo desta década [1990] e, certamente, é um reflexo da reestruturação produtiva que está ocorrendo, mais intensamente, na produção industrial, desde o final dos anos 70 e que verifica-se no Brasil, nos anos 90” (PIRES, 1998:209).

A discussão realizada por Mandel, em O capitalismo tardio, identifica processos de reestruturação produtiva, através da incorporação de novas tecnologias, no setor da indústria, que estão presentes também no sistema de produção do complexo médico-industrial. Não servem, por outro lado, para analisar processos produtivos que modelam a organização da assistência da saúde no lugar de encontro dos serviços com os usuários na Unidade Assistencial. A produção da saúde é Trabalho Vivo dependente e este estará presente em todos processos produtivos, em maior ou menor grau, compondo com o Trabalho

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Morto o núcleo tecnológico do cuidado. Pires vem afirmar na conclusão do seu trabalho que:

Equipamentos não substituem os cuidados, bem como para a utilização de qualquer equipamento é preciso decisão humana, programação para funcionamento, definição de parâmetros e avaliação constante das informações fornecidas pelos equipamentos. Os equipamentos são utilizados no tratamento de seres humanos que têm reações individuais e precisam ser tratados e avaliados como individualidades (PIRES, 1998:241).

Confirma, assim, a centralidade do Trabalho Vivo no processo produtivo da saúde, no qual se pode deduzir que, diante de um processo de transição tecnológica no setor, o Trabalho Vivo deverá estar implicado com o mesmo, operando uma reversão na razão entre TM e TV, na Composição Técnica do Trabalho.

No nosso entendimento, Pires expressa, em seu texto, a disputa que há entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo nos processos de produção, muitas vezes sob hegemonia das tecnologias duras e leve-duras. A observação da tensão existente na composição do núcleo tecnológico de produção da saúde pode ser analisada de modo especial em nível micropolítico.

Importa registrar que, nos relatos que informam modelos de produção da saúde, há sempre processos instituintes ocorrendo em ambientes da micropolítica de organização do trabalho. Há trabalhadores que conseguem utilizar bem o autogoverno que têm ao exercerem sua atividade de trabalho aproveitam-se disso para ressignificar sua relação com os usuários, operando novos sentidos nos atos assistenciais à saúde, e passam a conduzir-se centrados nos usuários e nas tecnologias leves e leve-duras na produção do cuidado. Experiências nesse sentido são informadas na literatura (MERHY, 1994; FRANCO; BUENO; MERHY, 2000; MALTA et al., 1998).

Inversão no modo de pensar e de agir: a transição tecnológica na saúde

“Transição tecnológica” significa um novo padrão de produção do cuidado, que altera não apenas o modo de organização do processo produtivo,

mas inverte a Composição Técnica do Trabalho, configurando hegemonia do Trabalho Vivo nos processos de trabalho, o que significa operar na assistência com sentidos diferentes dos que existem no modelo “médico hegemônico, produtor de procedimentos”, pois tem sua ação voltada ao campo de necessidades dos usuários. É sempre um processo de construção social, política, cultural, subjetiva e tecnologicamente determinado. Assim, deve configurar um novo sentido para as práticas assistenciais, tendo como conseqüência o impacto nos resultados a serem obtidos junto aos usuários e na resolução dos seus problemas.

Para avaliar se há uma transição tecnológica em curso ou instalada, será necessário imaginarmos um modelo de organização da produção da saúde que seja parâmetro e possa ser considerado como tal, um “tipo ideal” que expresse determinada configuração tecnológica dos processos de trabalho em saúde, isto é, se centrada em Trabalho Morto ou Trabalho Vivo. Esses parâmetros podem ser comparados a partir de uma certa “linha de produção do cuidado”, das tecnologias de cuidado que são disponibilizadas para os usuários, e das intencionalidades e protagonismos dos trabalhadores.

No caso da saúde, o atual padrão produtivo hegemônico, medicocêntrico e voltado à produção de procedimentos, vem sendo objeto de questionamento desde o aparecimento da medicina comunitária nos Estados Unidos, nas décadas de 1950/60. Segundo Donnangelo, “a Medicina Comunitária implica a emergência, de um lado, de uma medicina tecnologicamente simplificada, por referência à prática médica predominante, e ao mesmo tempo ampliada, de respeito às funções sociais a que serve de suporte” (DONNANGELO, 1976:72). A autora atribui uma certa razão econômica para a organização da medicina comunitária ao indicar que ela se organiza como uma “estratégia particular pela qual se articulam as características atuais da produção de serviços médicos, entre elas a dos custos crescentes e as questões sócio-políticas subjacentes à extensão da prática” (idem, ibidem). Dando seguimento ao esforço de formulação de práticas anti-hegemônicas, foram discutidas na Conferência Internacional sobre os Cuidados Primários em Saúde, realizada em Alma Ata, em 1978, outras formas de organização das práticas de saúde, com objetivos voltados à promoção e prevenção de agravos. Várias diretrizes partiram de órgãos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde e a Organização Pan-Americana de

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Saúde, especialmente a partir da década de 1970, propondo a reorganização da produção da saúde a partir dos campos de conhecimento da vigilância à saúde e da epidemiologia. Constituiu-se, a partir daí, um campo alternativo à medicina flexneriana, e que se tornou hegemônico na reforma sanitária brasileira, cuja maior expressão, na atualidade, é o Programa Saúde da Família (FRANCO; MERHY, 1999b; MERHY; FRANCO, 2002).

A partir das discussões em torno dos processos de trabalho em saúde, iniciadas com Donnangelo (1976), Gonçalves (1994), Nogueira (1994), Campos(1994ab), Merhy (1994, 1997, 2002), Franco e Merhy (1999ab), novos caminhos foram desvendados em relação à organização da assistência à saúde e aos seus modelos tecnológicos, tanto aqueles que tinham referência no campo biologicista, seguindo diretrizes do relatório Flexner, quanto os que se colocavam como alternativos a estes, conforme mencionamos acima. Essas análises do trabalho e processos de trabalho em saúde questionaram mais profundamente a estruturação do modelo assistencial, focando a análise no campo da macropolítica, mas, sobretudo no campo da micropolítica de organização do trabalho. O mundo do trabalho passa a ser a chave em que se encontram as respostas para os angustiantes questionamentos em torno das formulações das políticas de saúde e da organização de modelos assistenciais, potencialmente instituintes. É a partir do trabalho que, gradualmente, vão sendo encontradas saídas para uma profunda mudança no modo de produção da saúde. O processo de trabalho passa a ser, então, categoria analítica fundamental sobre a qual esses estudos se debruçaram e desvendaram tecnologias articuladas pela atividade humana, subjetividades e processos de subjetivação como um elemento que compõe o complexo cenário de produção da saúde, com suas determinações culturais, sociais, econômicas e políticas. Um mundo complexo e disputado, rico em saberes e fazeres com alto grau de produção/criação no processo produtivo do cuidado.

Na construção de um “tipo ideal” de modelo assistencial, expressão do acúmulo de conhecimento em relação aos processos de trabalho e organização da assistência, utilizamos, como primeira referência, as contribuições do coletivo que se agrupou em torno do Laboratório de Administração e Planejamento em Saúde, LAPA/Unicamp, e que conduziu as primeiras experiências de aplicação

do conhecimento nessa área.36 As novas formas de se organizar a assistência, tendo como centro o usuário e suas necessidades, e, como orientação técnica fundamental, a reorganização do processo de trabalho, com amplo impacto sobre o acesso e o cuidado da população, deu-se através do “Projeto Porta Aberta”, em Ipatinga, Minas Gerais (MERHY, 1994), e, posteriormente, do “acolhimento”, em Betim e Belo Horizonte, Minas Gerais, descrito por Franco, Bueno e Merhy(2000); Malta et al. (1998). Outras contribuições vieram de CAMPOS (1994ab), com a descrição do vínculo de usuários a equipes de saúde em Unidades Básicas, enfocando a saúde como valor-de-uso e a necessidade de se produzir ganhos de autonomia dos usuários para viverem suas vidas. Cecílio (1997) traz uma importante e inovadora formulação no que diz respeito à assistência e à gestão em hospitais, a partir da experiência da Santa Casa do Pará. Todas, experiências conduzidas coletivamente e devedoras de um grande número de trabalhadores de saúde que se dispuseram à construção de uma certa “utopia ativa”, e conseguiram, ao final desses processos, testemunhar uma mudança fundamental no modo de assistir aos usuários, voltadas ao sentido da produção do cuidado. Somam-se a essas experiências, as formulações de Merhy (1997, 2000, 2002) sobre o Trabalho Vivo como a mola-mestra da transformação na saúde, na configuração de tecnologias de cuidado para a estruturação de processos de trabalho que operam uma dada linha do cuidado. Enfim, a partir de ambientes estruturados pela micropolítica, “a cartografia do Trabalho Vivo” revela-nos uma implicada rede de relações, permeadas por atos assistenciais, rizomática, a operar novas práticas assistenciais como expressão da produção do cuidado. Os campos de práxis mencionados acima foram, a todo tempo, alimentados por ricas e ousadas experiências de mudança de modelos assistenciais. Essas são as referências para a análise de modelo assistencial, às quais agregam diretrizes operacionais de organização da assistência, como acolhimento, vínculo, resolutividade e autonomização.

A transição tecnológica, ao operar uma nova configuração da Composição Técnica do Trabalho, centrada no Trabalho Vivo, pressupõe, no trabalho assistencial, novas práticas e novas subjetividades estruturadas. A plenitude de significados que estruturam esse novo padrão produtivo na assistência difere, radicalmente, daquele vivido na indústria, já que, frisamos mais uma vez, na

36 Entre essas contribuições, ver: CAMPOS (1994, 1992); CECÍLIO (1994); FRANCO (1999); MERHY e ONOCKO (1997); MERHY (2002).

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saúde, a lógica instrumental deve estar subordinada à lógica do cuidado, centrado nas tecnologias leves (das relações) e leve-duras (dos saberes estruturados), onde o Trabalho Vivo deve comandar o uso da maquinaria disponível para o cuidado aos usuários, e não o contrário.

Uma questão importante a se considerar diz respeito ao fato de que a transição tecnológica pode ser o resultado de um acúmulo de processos anteriores. A rede de petição e compromissos que conforma os serviços de saúde estrutura uma arena decisória, na qual os diversos interesses se entrecruzam e, da tensão/conflito entre os diversos atores, surgem os pactos que irão configurar determinado modo de produzir saúde. Resulta, pois, de uma realidade de construção multideterminada, em que aparecem as tecnologias como um dos seus determinantes. A transição tecnológica pressupõe, assim, impactar a efetividade da assistência à saúde.

Subjetividade e saúde coletiva

Neste nosso trabalho, eventualmente, temos nos referido à subjetividade como um componente a ser considerado para a análise dos processos de trabalho, especialmente quando focados na esfera da micropolítica, espaço privilegiado para a produção, no sentido próprio da palavra. Sentimos, portanto, a necessidade de expor esse tema, de forma um pouco mais completa, para que essa noção venha a compor o corpus teórico ao qual será referenciado este estudo.

Neste espaço, falar de subjetividade justifica-se especialmente pelo fato de que cada indivíduo possui um modo próprio de estar no mundo, de produzir e estabelecer relações, determinando uma forma singular de agir, o que constitui uma questão que preocupa a muitos autores desde os tempos mais remotos. No entanto, o tratamento da subjetividade foi historicamente ignorado ou relegado ao segundo plano em função da prevalência dos temas econômicos, que dominaram o saber-fazer do planejamento, sob a hegemonia do pensamento normativo.

O pensamento estratégico (MATUS, 1993; TESTA, 1992; CAMPOS, 1992, 1994ab; CAMPOS, MERHY, NUNES, 1994; CECÍLIO, 1994; MERHY; ONOCKO 1997) trouxe para o campo do saber-fazer do planejamento a compreensão de que atuamos sempre em realidades diversas - porque explicada por diversos atores - e,

sobretudo, extremamente complexas. As variáveis que passaram a compor nossos cenários atingiram uma grande amplitude. A subjetividade, até então relegada, passa a fazer parte desse universo, não como algo abstrato ou um tema qualquer, mas como condição para a construção de sujeitos plenos, capazes de atuar na constituição do novo, de um outro devir para a história da saúde coletiva.

A práxis, como expressão de um método de trabalho, tem revelado nosso esforço de entender a produção da saúde e de tentar transformá-la rumo a um patamar que signifique um maior grau civilizatório, índice de um mundo socialmente justo. Esse saber-fazer que, ao longo dos anos, temos tido a oportunidade de experienciar, junto com inúmeros outros trabalhadores da saúde, tem demonstrado que a subjetividade não é apenas uma variável a mais, mas fator fundamental de mudanças que são processadas na modelagem dos serviços de saúde, por meio de uma maior implicação dos diversos sujeitos em cena com as questões pertinentes à mudança dos modelos assistenciais. Não há possibilidade de alterar significativamente o modelo assistencial, isto é, a forma de produzir saúde, se não houver novos sentidos guiando a ação dos trabalhadores na assistência e um novo ideário compondo a relação do usuário com a saúde. Isso pressupõe ressignificar a relação desses segmentos e sua implicação com o mundo que cerca toda a questão da realização da saúde, como um valor-de-uso e um bem público.

Temos afirmado que um dos fatores determinantes de mudanças na produção da saúde diz respeito à subjetividade. Processos de subjetivação são fundamentais para que haja de fato uma alteração no núcleo tecnológico do cuidado em saúde. Por isso mesmo, chamamos a este estudo alguns autores que contribuem para focar a questão.

História do pensamento em torno da formação de subjetividades

O tema da subjetividade aparece no debate que se processa em torno das questões sociais no Brasil, sendo recente a maior difusão do tema e a conseqüente valorização dos inúmeros aspectos do sujeito, entendendo-os como estruturantes das suas relações em sociedade e de sua inserção no mundo do trabalho. Mas o esforço para compreender a questão vem de longa data. O primeiro desafio para enfrentar esse debate esteve relacionado ao reconhecimento da psicologia como

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ciência e à delimitação de seu controverso objeto de estudo, já que as tendências positivistas dominaram o desenvolvimento do pensamento científico por longo período. Essas idéias foram expressas principalmente pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). De acordo com Comte, citado em Figueiredo (2000:15), “o principal empecilho para a psicologia seria seu objeto: a ‘psique’, entendida como ‘mente’, não se apresenta como um objeto observável, não se enquadrando, por isto, nas exigências do positivismo”.

O primeiro autor a pensar a psicologia como ciência foi o alemão W. Wundt (1832-1920), que formulou o conceito de “experiência imediata”, entendendo-a como o objeto de estudo da psicologia. Para o autor, citado em Figueiredo (2000:58-59), a “experiência imediata é a experiência tal como o sujeito a vive antes de se pôr a pensar sobre ela, antes de comunicá-la, antes de ‘conhecê-la’. É, em outras palavras, a experiência tal como se dá”. Wundt abre o caminho para a compreensão de que as experiências vividas por uma pessoa irão estruturar uma dada subjetividade, um modo singular de estabelecer relações sociais e de se posicionar diante do mundo. Mesmo tendo avançado no sentido de entender que as descobertas no campo da psicologia dar-se-iam por métodos de pesquisa que buscavam analisar fenômenos culturais e sua manifestação nos processos da vida mental, Wundt era pressionado a adotar o paradigma positivista como método investigatório. Atendendo a essa pressão, o autor termina por criar

duas psicologias (embora ele próprio pense que está fazendo uma coisa só): a) a psicologia fisiológica experimental, em que a causalidade psíquica é reconhecida, mas não é enfocada em profundidade [...] b) a psicologia social ou “dos povos”, cuja preocupação é exatamente a de estudar os processos criativos em que a causalidade psíquica aparece com mais força (FIGUEIREDO, 2000:60).

O princípio da “experiência imediata” como estruturante de subjetividades começa e termina em Wundt, naquele período. Inúmeros autores vieram depois, mas abandonaram a linha de investigação iniciada por Wundt e tentaram colocar a psicologia no campo apenas das ciências naturais. Titchner (1867-1927) principal aluno de Wundt, redefine o objeto da psicologia como sendo “a experiência dependente de um sujeito – sendo este concebido como um puro organismo

e, em última análise, como um sistema nervoso -, e não mais a experiência imediata” (FIGUEIREDO, 2000:61). Outros autores esforçaram-se e até mesmo inovaram, uns aos outros, na abordagem teórica da psicologia e de seu objeto, no entanto, não saíram mais de uma matriz biologicista/comportamentalista. São notórios os estudos de Watson (1878-1958), que citado em Figueiredo, afirma o seguinte: “o objeto da psicologia científica já não é a mente. O objeto é o próprio comportamento e suas interações com o ambiente”. (FIGUEIREDO, 2000:65).

O conceito desenvolvido por Wundt é retomado, posteriormente, quando Freud procura estudar “a gênese do sujeito, levando em consideração sua experiência imediata” (FIGUEIREDO, 2000:78), inaugurando um campo de conhecimento que servirá de referência e instrumental para muitos estudos em torno da subjetividade, ou seja, a psicanálise, assim definida por Laplanche e Pontalis:

disciplina fundada por Freud e na qual, com ele, podemos distinguir três níveis: a) um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação do significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias de um indivíduo [...] b) um método psicoterápico baseado nesta investigação e especificado pela interpretação controlada da resistência, da transferência e do desejo [...] c) um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos pelo método psicanalítico de investigação e de tratamento (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967:495).

A psicanálise, assim como o marxismo, por se configurarem em disciplinas fundantes de novos campos do saber, foram ao longo do tempo interagindo com outros saberes, ganhando nova dimensão e potencialidade para a interpretação e transformação da realidade. Um desses campos de conhecimento é a Análise Institucional - que, a propósito desta investigação, nos serve de apoio.

A Análise Institucional tem constituído um espaço de construção de saberes que contribui para o estudo de processos em ambiente micropolítico. Por isso, consideramos importante nos determos um pouco sobre o institucionalismo com vistas a aproveitar desse conhecimento para as análises pertinentes a este estudo.

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O estudo de instituições ganhou enfoque privilegiado a partir da formação do campo de conhecimento que ficou conhecido como Análise Institucional (LAPASSADE, 1977; LOURAU, 1996; BAREMBLITT, 1992; BLEGER e ALBUQUERQUE, citados em GUIRADO, 1987). Felix Guattari e Gilles Deleuze vieram contribuir com a análise de instituições através da teoria da “esquizoanálise”, desenvolvida ao longo de uma extensa obra e cujos conceitos centrais podem ser vistos no texto de BAREMBLITT (1998), Introdução à esquizoanálise. Eis o que nos diz L’ABBATE (2003) sobre a fundação do institucionalismo:

De início, é necessário esclarecer que a expressão análise institucional não tem um sentido único, pois na realidade, ela se constitui a partir de um conjunto de disciplinas e movimentos que ocorrem na sociedade francesa, a partir dos anos 40 e 50. De acordo com Heliana de Barros Conde Rodrigues (1993) dentro do institucionalismo francês, devemos considerar a “análise institucional” e a “socioanálise”, de tradição dialética, originadas sobretudo das obras de René Lourau e Georges Lapassade, e, de outro lado, a “esquizoanálise”, inspirada na filosofia da diferença, relacionada a Félix Guattari e Gillez Deleuze” (L’ABBATE, 2003:266).

A obra de Lapassade sobre o institucionalismo é marcada por antinomias e por um processo de construção teórica conturbado por fortes mobilizações sociais ocorridas na França, por exemplo, as manifestações de maio de 1968. Lapassade, apud Guirado (1987), diz que a Análise Institucional “considera a realidade social como acontecendo em três níveis: o do grupo, o da organização e o da instituição“, sendo o primeiro nível o do grupo, o segundo o da organização e o terceiro nível, o do Estado, ou seja, a instituição propriamente dita. O Estado vem apresentar-se como uma instância implicada com a modelagem dos serviços de saúde, agindo como instituição no sentido explícito da regulação do setor, ou mesmo no sentido implícito, na formação de um imaginário que ganha materialidade nas organizações a partir da estruturação do funcionamento das mesmas e das relações sociais tidas no seu interior. Essa primeira afirmação de Lapassade, como se vê, é fortemente marcada por influências do estruturalismo, no qual ele demarca territórios específicos para a construção das organizações, pelas quais passam as instituições.

Contradizendo, de certa forma, essa primeira afirmativa, em outro momento, o autor lança mão do método da clínica psicanalítica para a análise de instituições e afirma que a instituição “é algo como ‘o inconsciente de Freud [...] não localizável e [...] imediatamente problemático’“ (LAPASSADE apud GUIRADO, 1987). Aqui, o autor, influenciado pela psicanálise, já adota o conceito de que a instituição não significa uma estrutura material, sendo mais identificada com a idéia de organização ou grupos, de acordo com o pensamento institucionalista, isto é, considerando-se os aspectos relacionados ao funcionamento e que têm por base as relações que se estabelecem na organização. Essas relações tendem a repetir o conjunto de leis e normas que regulam a vida; partem do Estado ou são veiculadas pela cultura, na forma de hábitos, valores e comportamentos, repetindo-os com forte conotação ideológica. Tem ainda uma dimensão subjetiva, como quer dizer Lapassade ao compará-la ao conceito de inconsciente de Freud. Mudanças institucionais terão sempre que contemplar a dimensão do sujeito e ser capaz de produzir protagonistas, para que estes realizem mudanças em nível institucional. Antinômico, o autor parece costurar uma teoria fundada em diferentes campos de conhecimento.

O modelo de assistência à saúde é formatado a partir de instituições que regulam todo o funcionamento dos serviços, tendo como centro a instituição saúde. De acordo com Baremblitt:

As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas, regularidades de comportamentos (BAREMBLITT, 1992: 27).

Por sua vez, Lapassade identifica vários significados para instituição. O que mais se ajusta a este estudo é o de que a instituição “é um sistema de normas que estruturam um grupo social, regulam a sua vida e o seu funcionamento” (LAPASSADE, 1977:287).

Lapassade (1977:288) diz que um “problema colocado pelas instituições sociais é o da autonomização: criadas por uma sociedade, elas terminam por dominá-la e subjugá-la, da mesma maneira que o homem se torna ‘o produto de seu produto’”. O autor afirma, no entanto, a necessidade de superação dessa situação, dizendo que vem

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daí “a preocupação contemporânea de desenvolver, nos homens, os comportamentos instituintes, donde a pesquisa de práticas institucionais” (p. 288).

Sob o espectro do instituído, há, entre os sujeitos que moldam o serviço de saúde, o incômodo com a atual situação, o desejo de construção de algo novo, uma proposta diferente de se relacionar com o mundo do trabalho em saúde. Isso pode representar o nascimento de uma outra instituição, de uma utopia ativa, que pode ganhar a expressão de um processo instituinte, segundo Baremblitt, um processo de mudança que enuncia o devir, o que pode vir a ser uma nova forma de estruturar a produção dos serviços de saúde.

Nesse cenário, podemos ter o convívio conflitante do instituído e do instituinte, que disputam a estruturação do modelo de assistência, a produção da saúde. Por exemplo, um trabalho burocratizado e sumário expressa certo tipo de subjetividade no ato de produzir saúde, assim como a ação acolhedora, centrada no cuidado ao usuário, expressa outro tipo de subjetividade. Os dois podem conviver em um mesmo ambiente institucional, disputando espaços.

Retornando à questão específica da subjetividade, Guattari a define como sendo “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva” (GUATTARI, 1998:19). É importante registrar que, neste caso, o autor considera a existência de subjetividades coletivas e não apenas individuais. Ao mesmo tempo, ele considera que a subjetividade é produzida através de processos conduzidos pelo indivíduo ou grupo social. Diz o autor:

De uma maneira mais geral, dever-se-á admitir que cada indivíduo, cada grupo social veicula seu próprio sistema de modelização de subjetividade, quer dizer, uma certa cartografia feita de demarcações cognitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas, a partir da qual ele se posiciona em relação aos seus afetos (GUATTARI, 1998:21-22).

Podemos inferir das afirmações anteriores que existe não apenas uma subjetividade, mas subjetividades que são estruturadas a partir das experiências tidas pela pessoa, mas conduzidas por determinado grupo. Essas subjetividades

podem ser capitalísticas, quando estruturadas pelo ideário do mercado, ou solidárias, vinculadas a ideários coletivistas. Essas referências servem à análise da forma como o capital estrutura subjetividades a partir dos seus interesses na organização e funcionamento dos modos de produção. O capital, como instituição, ganha materialidade justamente quando atua na estruturação das relações sociais dentro dos estabelecimentos e organizações.

No caso da saúde, tem sido constante tratar da subjetividade como condição para a construção de sujeitos com a finalidade de protagonizarem processos de mudança institucional.

Campos, por exemplo, reconhece a subjetividade como um elemento importante em processos de mudanças e escreve:

Aprendemos que a ocorrência de grandes transformações depende sempre de pelo menos dois elementos: do desejo, da vontade desesperada de alterar o status quo, de uma dimensão subjetiva portanto; e também do domínio de uma certa ciência, de um projeto conscientemente construído, uma vertente, inapelavelmente, vinculada ao exercício da razão (CAMPOS, 1994b:30).

Esse autor aborda o tema da gestão de pessoal adotando o conceito de “obra” para significar o valor do trabalho clínico a ser executado por determinada equipe de forma a dar seguimento ao projeto terapêutico. A proposta baseia-se em uma idéia de construção de uma nova subjetividade dos trabalhadores para o exercício profissional na assistência à saúde (CAMPOS, 1997:229). Partindo de uma experiência realizada no hospital psiquiátrico Cândido Ferreira, em Campinas, São Paulo, o autor propõe um certo tipo de co-gestão em organizações. De modo participativo, esse processo de gestão serviria para produzir sujeitos, pessoas engajadas com a proposta de mudança. Por fim, Campos cria um método “para análise e co-gestão de coletivos”, o qual chama de “Método da Roda” ou “Método Paidéia”, e discute a constituição do sujeito a partir desse método. Ele sugere que os espaços de trabalho e das organizações sirvam para a construção de “novas subjetividades” e propõe “pensar a Gestão de coletivos não somente com o objetivo da produção de bens ou serviços, mas também como um espaço com função pedagógica e ‘terapêutica’. Um lugar onde se produziria aprendendo

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e, também ao mesmo tempo, se reconstruiria a própria subjetividade. O fator Paidéia do Método da Roda” (CAMPOS, 2000:145).

Merhy foca suas observações na micropolítica de organização do processo de trabalho, analisa os espaços organizacionais onde é possível desenvolver processos instituintes, protagonizados por sujeitos construídos em movimentos de intervenção em instituições e organizações (MERHY, 1994:117). O autor resgata a idéia de “Trabalho Vivo em ato” para discutir a potencialidade que os sujeitos trabalhadores individuais e coletivos têm, a partir de um relativo autogoverno, o qual ele exerce no cotidiano do seu espaço de trabalho (MERHY, 1994:71). Reside no Trabalho Vivo a possibilidade que cada um tem de buscar exercer com plenitude sua condição de sujeito. Merhy faz, ainda, um esforço para a elaboração de uma “caixa de ferramentas” que possibilita a intervenção em espaços de trabalho, por meio de métodos participativos que visem, além de abrir movimentos de mudança, colocar os trabalhadores como protagonistas das transformações que levam à construção de um novo devir e, sobretudo aposta na construção de sujeitos a partir desse processo. Assim, aparecem com potência para a intervenção as “Ferramentas Analisadoras”, centradas no “Fluxograma Descritor” (MERHY et al., 1997:113) e na “Rede de Petição e Compromissos” (FRANCO; MERHY, 1999a). O uso dessas ferramentas dá-se em processos coletivos, no espaço de trabalho, focando o usuário. A interação do grupo leva à compreensão dos processos que envolvem sua atividade, bem como sua implicação com uma dada realidade, o que lhe dá a possibilidade de intervir para provocar processos de mudança nos espaços onde atua.

O autor denuncia a “perda da dimensão cuidadora” dos serviços de saúde e avalia o chamado “modelo médico hegemônico” estruturado a partir de um processo de trabalho centrado em tecnologias duras e leve-duras, caracterizando-se, portanto, como “produtor de procedimentos”. (MERHY, 1997; FRANCO; MERHY, 1999a).

As tecnologias duras e leve-duras, valorizadas pelo capital para a produção da saúde, expressam a brutal captura realizada de Trabalho Vivo, enquadrando-o e sujeitando os trabalhadores ao regimento previamente estabelecido pelo capital para os sistemas de produção de saúde.

Referenciados em Guattari, podemos inferir que processos de subjetivação capitalísticos são um dos fatores que levam certos sujeitos individuais e coletivos

a impor e outros a aceitar a saúde como um “valor de troca”. E esses processos de subjetivação ocorrem em permanente disputa entre a esfera capitalística e a solidária, que antagonizam os diversos modos pelos quais os indivíduos e o coletivo estruturam sua relação com o mundo da saúde. A presença de novas tecnologias, configuradas em máquinas, utilizadas para a produção da saúde é parte de um processo de disputa, que tenta organizar a assistência sobre certas centralidades tecnológicas, nas quais se pode identificar a presença dos interesses de mercado, pela venda e consumo de máquinas e de alta tecnologia, sem um compromisso com o cuidado dos usuários. Por outro lado, há um tipo novo de estruturação da produção da saúde, centrada no cuidado e no uso de tecnologias leves, tal como proposto por Merhy (1997). Vale retomar, aqui, a discussão de Guattari sobre a presença das máquinas na organização social e na produção de subjetividades:

As máquinas ganham uma importância cada vez maior nos processos de produção. As relações de inteligência, de controle e de organização social estão cada vez mais adjacentes aos processos maquínicos; é através dessa produção de subjetividade capitalística que as classes e castas que detêm o poder nas sociedades industriais tendem a assegurar um controle cada vez mais despótico sobre os sistemas de produção e de vida social (GUATTARI; ROLNIK, 1999:39).

A saúde como um “valor de troca” tem sido hegemônica na configuração dos modelos de assistência, subsumindo o “valor-de-uso” e criando entre eles uma contradição que não necessariamente deveria existir. O “valor de uso”, como expressão da utilidade do serviço de saúde, no atendimento das necessidades dos usuários, é a outra forma de expressão concebida como um modo de organizar a assistência, tendo como premissas a centralidade do usuário, com seu campo de necessidades a comandar os atos assistenciais, e projetos terapêuticos que responsabilizam as equipes de saúde, enfim, a produção do cuidado. O pensamento hegemônico de que a saúde representa um valor-de-troca ou valor de uso é uma das disputas que marca o cotidiano pela configuração de um novo modelo de assistência.

Em As três ecologias, Guattari diz que “o objetivo do Capitalismo Mundial Integrado (CMI)37 é, hoje, num só bloco: produtivo-econômico-subjetivo” 37 Capitalismo Mundial Integrado é a expressão que Guattari utiliza para qualificar o que ele mesmo nomeia de “capitalismo pós-industrial”. Ver, nesse sentido, GUATTARI (1997).

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(GUATTARI, 1997:32). A realidade que se apresenta no cenário de produção da saúde, incorporando todos os seus aspectos, solicita que utilizemos variados campos do saber para a discussão em torno do problema que se coloca, com foco na organização dos processos de trabalho e suas tecnologias aplicadas ao campo da saúde. Guattari propõe, diante da complexidade da realidade social e da necessária intervenção para sua transformação, “uma recomposição das práticas sociais e individuais [que ele agrupa] segundo três rubricas complementares – a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental – sob a égide-estética de uma ecosofia” (GUATTARI, 1998:23).38

O autor chama-nos a atenção para a busca de uma estética, síntese das relações das pessoas com o mundo, inseridas em lugares sociais, subjetivos e ambientais, no sentido estrito.

Vemos que, para debater diferentes temáticas que se colocam na atualidade, envolvendo mudanças de profundidade na realidade social, e em diferentes lugares, a ecologia tem sido a categoria capaz de sistematizar a complexidade sobre a qual esses processos de mudança acontecem. Além de Guattari, citado acima, o termo é também utilizado por Pierre Lévy, compondo o conceito de “ecologia cognitiva” para discutir todo o problema que envolve a incorporação de tecnologias inteligentes nos processos produtivos.

O modelo tecnoassistencial estruturou-se, ao longo do tempo, em torno de uma dada “ecologia dos processos produtivos”, através de uma ação organizada em diferentes níveis. Em primeiro lugar, apropriou-se do desenvolvimento técnico-científico obtido na saúde. Foi induzido, assim, à formação de determinadas estruturas organizacionais que operam a saúde, favorecendo os processos produtivos consumidores dos insumos que são ofertados pelo mercado (máquinas, instrumentos, medicamentos, etc.). Com isso, opera uma poderosa incursão para a formação de uma certa subjetividade entre os trabalhadores de saúde e usuários, de tal forma que esses trabalham e se relacionam com a assistência à saúde através de uma matriz ideológica na qual o consumo de procedimentos é a tônica. Esse conjunto articulado forma o ambiente de produção na saúde e, assim sendo, para nós, o conceito de “ecologia dos processos produtivos” diz respeito ao ambiente 38 Ecosofia “propõe um saber acerca do mundo da sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de demo-cracia nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente” (GUATTARI, 1998:23).

tecnológico, organizacional, maquínico e subjetivo que se forma no espaço micropolítico para propiciar as mudanças na esfera de produção.

Nesse sentido, a linha do cuidado é um microcosmo, ecologicamente organizado em ambiente institucional, que atravessa diversas unidades de produção da assistência, operando processos de trabalho que têm como missão o cuidado à saúde. Ela deve garantir o fluxo seguro do usuário aos diversos serviços necessários ao seu cuidado e operar a partir de projetos terapêuticos multidisciplinares.

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CAPÍTULO IV

RESULTADOS E DISCUSSÃO DE DADOS E INFORMAÇÕES DO SISTEMA CARTÃO NACIONAL

DE SAÚDE

“Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios”.(Riobaldo Tatarana em Grande Sertão: Veredas; João Guimarães Rosa)

Os primeiros dados disponíveis do Sistema Cartão Nacional de Saúde referem-se aos registros eletrônicos que estavam sendo realizados pelos profissionais de saúde. Essas anotações dizem respeito aos procedimentos feitos pelos médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, dentistas e pessoal da recepção da Unidade.

Ao mesmo tempo em que esses profissionais registravam seus procedimentos no Terminal de Atendimento do SUS (TAS), eles faziam também a anotação manual no Boletim de Produção Ambulatorial (BPA), visto que o sistema eletrônico ainda não havia provado sua eficácia para esse quesito.

Assim, em primeiro lugar, buscamos extrair relatórios do SCNS no servidor municipal e, simultaneamente, BPA’s junto ao Serviço de Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde. Procedemos, ao final, um estudo comparado de dados de produção das duas fontes.

Esse primeiro trabalho leva a idéia de que seria necessário fazer uma análise do produto final do Sistema Cartão Nacional de Saúde, de modo a indicar evidências do seu funcionamento e das possibilidades de utilização pelos profissionais e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). Chamamos, neste caso, de “produto final” os relatórios que podem ser extraídos do servidor municipal, pois eles expressam um volume significativo das informações contidas no seu banco de dados - constituído por registros que foram gerados na Unidade de Saúde, anotados e transmitidos através do Terminal de Atendimento do SUS (TAS) -, perfazendo, portanto, todo um caminho para compor o relatório.

Prosseguimos realizando a análise comparada de dados do Boletim de Produção Ambulatorial (BPA) e do Relatório de Produção do Servidor Municipal, intitulado, no sistema, como “Relatório de Atendimento por Estabelecimento Assistencial de Saúde (EAS)”. Essa comparação permite verificar se os registros eletrônicos estão sendo realizados em quantidade e qualidade aceitáveis para os níveis gerenciais do SUS, isto é, sem perdas de dados, comparados com aqueles que são feitos manualmente.

Nesse caso, o BPA será o parâmetro para comparar os dados do “Relatório de Atendimento”, visto que ele já está incorporado à rotina dos serviços de saúde, como instrumento que usualmente informa a produção dos serviços, constituindo a principal referência para os registros e tendo já legitimidade junto à equipe técnica e aos órgãos gestores superiores, inclusive do Ministério da Saúde.

Trabalhamos com a hipótese de que, se os registros eletrônicos estiverem próximos do registro manual, expresso no BPA, isso indicaria, em primeiro lugar, o nível de adesão dos profissionais ao Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS); em segundo lugar, comprovaria a eficácia do sistema em registrar, processar, transmitir, armazenar e emitir dados e informações.

Se essa hipótese não se verificar, o estudo deve seguir investigando as causas de possíveis problemas existentes para as devidas correções de rumo. Supostamente, esses problemas podem estar relacionados com intercorrências no hardware/software, o que pode significar necessidade de ajustes neste nível; e pode, por outro lado, envolver a parte humana do sistema, problemas relacionados à adaptação dos profissionais ao registro eletrônico, à adesão ao sistema, aos impactos no processo de trabalho e no padrão funcional, a subjetividades estruturadas em todo o processo, ou seja, estamos falando do modo como opera o Trabalho Vivo em ato neste caso específico e, sobretudo, como se expressa na relação com o Trabalho Morto. Enfim, essas questões serão verificadas para que revelem o funcionamento do SCNS e, junto com outras informações colhidas para este estudo, demonstrem o impacto que o SCNS causa nos processos de trabalho, em ambiente micropolítico.

Em primeiro lugar, procuramos testar a eficácia do Sistema Cartão Nacional de Saúde para o registro e transmissão eletrônica de dados, e a utilidade dos mesmos na composição de relatórios a serem emitidos através do servidor municipal e usados pelas equipes técnicas e gestores do SUS.

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Como já mencionado no capítulo referente à metodologia, os dados utilizados para comparação são os da Unidade Básica de Saúde Jardim Satélite, do município de São José dos Campos, São Paulo, escolhida sob o critério de maior tempo de implantação do SCNS (foi a primeira do país), refletido em uma maior maturação do Projeto.

Atividades executadas para realizar a análise comparativa de dados do SCNS com o Boletim de Produção Ambulatorial

• Extração de “Relatórios de Atendimento” a partir do servidor municipal

Foi verificado se as “linhas de transmissão” de dados estão funcionando perfeitamente, assim como a consistência dos registros que compõem os relatórios extraídos do servidor municipal.

Em seguida, procedeu-se à comparação dos dados armazenados no Servidor Municipal com aqueles revelados no Boletim de Produção Ambulatorial, gerado pelo Serviço de Avaliação e Controle da Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Campos.

• Interpretação dos gráficos que expressam a comparação dos dados do BPA e do “Relatório de Atendimento”

Interpretação das informações do SCNS e do BPA, de acordo com o quantitativo encontrado. Essas informações são complementadas com entrevistas que foram realizadas, posteriormente, com os trabalhadores da Unidade de Saúde pesquisada.

Apresentamos, a seguir, os resultados de análise comparada de dados entre o Boletim de Produção Ambulatorial e os que foram extraídos do banco de dados do servidor municipal do SCNS. Foram escolhidos para demonstração os dados de Consulta de Pediatria, Clínica Médica, Odontologia e Imunização.

Uma questão importante a salientar é o fato de que, de maio/2001 a setembro/2001, os trabalhadores da saúde estiveram operando a primeira versão do software. A partir de outubro/2001, eles tiveram a oportunidade de realizar seus registros, em uma segunda versão, mais “amigável”, e isso repercutiu nos registros, como podemos verificar a seguir, provando a tese de que a disposição

da interface e os recursos que levam a um maior conforto no uso do Sistema têm importante influência na atividade de registros de dados, expressando maior interação dos trabalhadores com o sistema.

COMPARAÇÃO DE DADOS DA PEDIATRIA

TABELA 1. Distribuição da produção de consulta em pediatria, da UBS Jd. Satélite, entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA EM

PEDIATRIAmai/01 jun/01 jul/01 ago/01 set/01 out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 592 571 534 532 540 585 575 434 378 4.741

TAS/CNS 15 93 226 314 266 244 109 244 253 1764

TAS/CNS (%) 2,5 16,3 42,3 59,0 49,3 41,7 19,0 56,2 66,9 37,2

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

FIGURA 3. Distribuição da produção de consulta em pediatria da UBS Jd. Satélite, entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

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Os dados demonstram progressos importantes no registro eletrônico, aproximando-se do registro manual. Para o mês de janeiro de 2002, o registro eletrônico apresenta uma defasagem de 33% em relação ao registro manual. A média geral de registros eletrônicos ficou em 37,2% para o período de mai/01 a jan/02. A média geral de registros eletrônicos ficou em 37,2% para o período de mai/01 a jan/02. No entanto, quando analisamos os dados a partir de outubro, ocasião em que foi implantada a segunda versão do software, essa média sobe para 43,1%, conforme Tabela 2, a seguir.

TABELA 2. Distribuição da produção de consulta em pediatria, da UBS Jd. Satélite entre out/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA EM PEDIATRIA out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 585 575 434 378 1.972

Servidor (Aquarius) 244 109 244 253 850

TAS/CNS (%) 41,7 19,0 56,2 66,9 43,1

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

COMPARAÇÃO DE DADOS DA CLÍNICA MÉDICA

TABELA 3. Distribuição da produção de consulta em clínica médica, da UBS Jd. Satélite entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA EM CLÍNICA MÉDICA mai/01 jun/01 jul/01 ago/01 set/01 out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 995 1.214 931 879 964 1.022 831 726 509 8.071

SCNS 24 110 52 172 416 667 562 461 343 2.807

% Registro Eletrônico 2,4 9,1 5,6 19,6 43,2 65,3 67,6 63,5 67,4 34,8

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

FIGURA 4. Distribuição da produção de consulta em clínica médica da UBS Jd. Satélite, entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

Neste caso, da consulta em clínica médica, nota-se um crescimento importante dos registros eletrônicos a partir de outubro/01, mantendo-se em relação ao registro manual, conforme se pode verificar no gráfico. Em janeiro/02, a defasagem do registro eletrônico em relação ao manual é de 32,6%. A média de registros do período ficou em 34,8%, mas, quando analisamos o período posterior a outubro/01, ocasião da implantação da segunda versão do software, essa média sobe para 65,8%, o que é bastante significativo, conforme demonstra a Tabela 4, abaixo.

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TABELA 4. Distribuição da produção de consulta em clínica médica, da UBS Jd. Satélite entre out/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA EM CLÍNICA MÉDICA out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 1.022 831 726 509 3.088

SCNS 667 562 461 343 2.033

% Registro Eletrônico 65,3 67,6 63,5 67,4 65,8

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

COMPARAÇÃO DE DADOS DA ODONTOLOGIA

Os dados da odontologia (1ª consulta) são os seguintes:TABELA 5. Distribuição da produção de consulta em odontologia (1ª consulta), da UBS Jd. Satélite entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA ODONTOLÓGICA

(1ª consulta)mai/01 jun/01 jul/01 ago/01 set/01 out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 52 108 45 63 91 61 115 40 95 670

SCNS 10 15 55 44 12 6 82 114 76 414

% Registro Eletrônico 19,2 13,9 122,2 69,8 13,2 9,8 71,3 285,0 80,0 61,8

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

FIGURA 5. Distribuição da produção de consulta em odontologia (1ª consulta) da UBS Jd. Satélite, entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

Neste caso, da consulta em odontologia (1a consulta), nota-se que os registros são absolutamente irregulares, o que, à primeira vista, parece caótico. Mas a média de registros eletrônicos para o período ficou em 61,8%, e, quando verificado o período a partir de outubro/01, esse percentual sobe para 89,4% em relação àqueles anotados no BPA, um aumento bastante significativo em relação à situação encontrada anteriormente, conforme demonstra a Tabela 6, abaixo.

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TABELA 6. Distribuição da produção de odontologia (1ª consulta), da UBS Jd. Satélite entre out/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

CONSULTA ODONTOLÓGICA

(1ª consulta)out/01 nov/01 dez/01 jan/02 TOTAL

BPA 61 115 40 95 311

SCNS 6 82 114 76 278

% Registro Eletrônico 9,8 71,3 285,0 80,0 89,4

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

COMPARAÇÃO DE DADOS DA IMUNIZAÇÃO (VACINAS)

Os dados de imunização são os seguintes:

TABELA 7. Distribuição da produção de imunização, da UBS Jd. Satélite entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

IMUNIZAÇÃO mai/01 jun/01 jul/01 ago/01 set/01 out/01 nov/01 dez/01 jan/02

BPA 5850 3562 3240 4905 2544 2623 3322 2233 1936

TAS/SCNS 35 446 1731 1397 689 2363 3987 2548 4041

BPAXTSCNS% 0,6 12,5 53,4 28,5 27,1 90,1 120 114,1 208,7

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

FIGURA 6. Distribuição da produção de imunização da UBS Jd. Satélite, entre mai/01 e jan/02, comparados o BPA e os registros constantes no servidor municipal do SCNS.

Fonte de dados: Boletim de Produção Ambulatorial - NAC/SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE-SJC e Servidor Municipal do Sistema Cartão Nacional de Saúde.

Obs.: Foram deduzidos 1.379 registros de vacinas no BPA, em agosto/01, por serem produto de campanhas, e também não tiveram registros no TAS.

Em relação aos registros de vacinas, verificamos um progressivo e consistente aumento, especialmente a partir de outubro/01, coincidindo com a implantação da segunda versão do software. Em novembro/01, o registro eletrônico supera o manual, e assim persiste nos próximos meses. Verifica-se um extraordinário registro eletrônico, só justificado pelo fato de haver uma grande adesão dos trabalhadores desse setor, facilidade na operação do sistema e conseqüente incorporação do registro eletrônico na rotina do serviço. Esse aumento de registro coincide com a nova versão do software implantado no sistema, tornando-o mais “amigável” para o uso dos profissionais de saúde, observando-se que as auxiliares de enfermagem incorporaram na sua rotina de vacinação o registro eletrônico. Este é o cenário ideal, em volume de registros eletrônicos, imaginado para o sistema.

A partir de outubro/01, o aumento do registro eletrônico é notório e extraordinário, provando que a segunda versão do software, como para as

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outras categorias, deve ter influenciado na adesão dos profissionais à nova forma de anotação de dados.

Analisando os dados e informações já disponíveis pelo SCNS, podemos observar que há um volumoso banco de dados já acumulado, com 8 meses de operação, demonstrando que os profissionais fazem anotações eletrônicas, e o sistema responde às funções de registro e transmissão de dados, embora ainda haja uma defasagem em relação aos que são anotados no BPA. De forma generalizada, os registros realizados a partir de outubro/01, ocasião em que o TAS começou a operar com a segunda versão do software, têm um aumento bastante significativo, com destaque para a odontologia, na qual o registro eletrônico de dados alcançou 89,4% do total que consta no BPA para o mesmo período; e a imunização, em que os registros eletrônicos superaram aqueles feitos manualmente, conforme mencionado anteriormente. Considerando essa etapa de implantação do SCNS, quando se conviveu com adversidades, tais como a necessidade de ajustes no sistema, esse resultado indica, a priori, que o SCNS é viável, como nova tecnologia a ser utilizada para informações em saúde, isto é, a parte dura da tecnologia consegue operar nos níveis que se esperam.

Importa informar que, no que se refere ao desenvolvimento do projeto SCNS, estamos tratando de um período de transição na sua utilização pela Unidade Básica de Saúde, que envolve um certo desconforto dos profissionais, obrigados a realizar os registros de procedimentos duas vezes, uma no Boletim de Produção Ambulatorial (BPA), por meio de anotação manual, como de praxe; e outra no Terminal de Atendimento do SUS (TAS). Supõe-se que haja uma defasagem de registros por este motivo, a sobrecarga de trabalho imposta aos trabalhadores da saúde nessa fase.

Embora os gestores dos serviços de saúde reconheçam a importância da informação para a tomada de decisões, planejamento e programação dos serviços, essa prática não é habitual quando se trata da atividade cotidiana da gestão. Assim, as informações que sobem da Unidade Básica de Saúde até os níveis centrais da Secretaria Municipal de Saúde, quase sempre não retornam às equipes assistenciais ou à gerência local. Como conseqüência desse fato, há a constatação de que a gestão perde potência ao não usar adequadamente as informações; além disso, esse uso inadequado dos dados funciona como um dispositivo deseducativo, isto é, os trabalhadores da saúde, para os quais as informações têm uma grande valia

no trabalho assistencial, não compreendem o seu uso, não utilizam as informações no seu dia-a-dia e mostram-se alienados dos fins e objetivos dos dados que eles mesmos geram a partir da assistência que prestam aos usuários.

Nota-se, nesse caso, que a informação é utilizada como uma forma de captura da realidade local pelos níveis gestores maiores, em primeiro lugar, e, por outro lado, como uma tecnologia dura, pouco referenciada no trabalho que pode ser desenvolvido a partir do insumo que representa para o “saber-fazer” da assistência à saúde. Funciona, assim, como mais um dispositivo a constituir uma linha de produção centrada no Trabalho Morto.

O “não retorno” das informações para os níveis assistenciais, lugares de produção do cuidado, cria uma certa incompreensão, por parte dos trabalhadores, quanto ao destino das informações e, conseqüentemente, à utilidade do registro de dados para o sistema de informações e programação das atividades na Unidade de Saúde. Fazem a anotação dos dados sem a total compreensão do seu significado, o que aparece, portanto, como um trabalho alienado, automatizado por norma, pelo comando da chefia, ou como controle de procedimentos realizados, como no caso da imunização. De fato, essas informações não têm servido para a programação dos serviços, sendo direcionadas para o campo das necessidades dos usuários. Supõe-se que discussões para esclarecer os usos do SCNS, acompanhadas de ações concretas no sentido de fazer retornar à Unidade de Saúde suas próprias informações e discuti-las com os profissionais, podem surtir um efeito positivo na programação de atividades assistenciais, bem como na motivação dos trabalhadores para a realização da anotação eletrônica de sua produção e para a busca de utilização das informações no seu trabalho diário.

Vasconcellos sugere que as informações devam ser descentralizadas, com vistas ao estabelecimento de parcerias entre a instância nacional, entidades estaduais e municipais. Propõe ainda formas colegiadas de gestão dos sistemas de informações, “com ampla participação, tanto de produtores de informações e das sociedades científicas, quanto de representantes da sociedade civil organizada, nos moldes em andamento em vários países” (VASCONCELLOS et al., 2002:223).

Vemos nessa proposição uma saída para o atual perfil de funcionamento dos sistemas de informações, em nível local, em que os seus “produtores” ficam, posteriormente à anotação e remessa de dados, alienados das análises e resultados

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dos seus próprios produtos. Esse distanciamento está ligado às formas de gestão, nas quais a decisão está concentrada nos níveis centrais, com baixa delegação aos níveis gestores locais. O “controle social” da informação seria, com certeza, uma diretriz importante para a democratização dos sistemas de informações, assim como a real utilização das mesmas na melhoria da assistência e gestão dos serviços de saúde. Por outro lado, os trabalhadores de saúde sentir-se-iam mais identificados com seus produtos, veriam melhor a utilidade das informações para sua prática assistencial.

Para que isso ocorra, seria necessário haver uma melhor coordenação das diversas agências produtoras de informações e uma integração entre os diversos sistemas. É bom lembrar que o SCNS aparece em um cenário em que inúmeras iniciativas já estão implantadas e funcionando nos serviços de saúde, tais como os sistemas de base nacional, elaborados e implantados a partir do setor de informática do Ministério da Saúde, o DATASUS, e até mesmo sistemas elaborados e nos níveis locais, operando em espaços microrganizacionais. No entanto, é pertinente se considerar as seguintes dificuldades para que ocorra essa integração entre os diversos atores implicados com a produção de informações:

1. [...] a lógica orientadora de produção das informações, que é expressão da racionalidade do Estado Brasileiro, cuja atuação se caracteriza por responder aos desafios colocados pela sociedade de forma reativa e tópica, com medidas pontuais, atomizadoras, compensatórias perante problemas conjunturais, fragmentando a realidade (MORAES, 1994, apud VASCONCELLOS et al., 2002:222-3).

2. [...] A lógica centralizadora e tecnocrata que caracterizou historicamente a estruturação do aparato produtor de informação no Brasil, principalmente no período da ditadura militar, em que a Informação era tratada como questão de segurança nacional. Coerente, portanto, com a história de programas verticais do Ministério da Saúde (VASCONCELLOS et al.; 2002:223).

Ao que indicam os autores, há uma lógica centralizadora a estruturar os sistemas de informações, o que significa que operam assim segundo uma certa diretriz de controle do Governo Central (G) em relação aos outros governos (g). Isso vale para os diversos níveis, tanto o controle pelo Governo Federal das instâncias

federadas, como estados e municípios, quanto em outro nível, o controle pelos governos municipais, no caso do SUS, dos diversos estabelecimentos de saúde.

Por este raciocínio, essa característica centralizadora do estado faz com que o fluxo de informações ocorra em mão única, ou seja, de baixo para cima, isto é, dos níveis de produção para os de gestão, elevando o poder e controle destes sobre aqueles. No interior do SUS, embora haja consciência dessa limitação, as medidas concretas para operar uma mudança nessa lógica informacional não existem ou, se há, não têm sido eficazes para criar e fazer funcionar o fluxo inverso, ou seja, o retorno da informação ao seu lugar de origem, com vistas a subsidiar o trabalho assistencial. Uma demonstração disso é o fato de não haver, na quase totalidade dos sistemas em operação, informações desagregadas ao nível da Unidade de Saúde, microáreas, equipes de saúde e até mesmo de profissionais. Isso tem sido uma das preocupações do SNCS. Informações desse teor ainda são uma exceção proveniente de alguns municípios que fazem investimentos próprios em informação. Assim sendo, os sistemas de informações e as informações em si mesmas, vão sendo apropriadas pelos gestores, que não as disponibilizam para o controle dos trabalhadores de saúde e da própria sociedade civil.

Fluxograma descritor do processo de trabalho na Unidade e o Sistema Cartão Nacional de Saúde

Para ampliar a compreensão dos fenômenos pertinentes ao SCNS, em relação ao seu impacto no modelo assistencial, utilizamo-nos, aqui, de mais um instrumento analítico, o fluxograma.

O fluxograma é uma representação gráfica do processo de trabalho e serve para descrevê-lo no contexto da Unidade e do tipo de organização assistencial que se oferece (FRANCO; MERHY, 1999a). Nesse caso, procuramos elaborar o fluxograma da Clínica Médica da Unidade Jardim Satélite, incluindo no fluxo os elementos que configuram a presença do SCNS no processo de produção de serviços. Notadamente, o TAS é o equipamento que se apresenta, fazendo a interface entre todo o aparato tecnológico do SCNS e os trabalhadores de saúde. O fluxo é apresentado em partes, conforme o caminhar do usuário em uma suposta “linha do cuidado” que se organiza no interior do serviço de saúde.

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FIGURA 7. Fluxograma do processo de trabalho, a partir da entrada na Unidade, figurando a recepção, a distribuição do fluxo de usuários conforme a demanda de serviços e o encaminhamento para pré-consulta àqueles que deverão realizar consulta médica.

Fonte: UBS Jardim Satélite, São José dos Campos (SP).

A recepção é um lugar de grande atividade e utilidade do SCNS. Aí o usuário, em primeiro lugar, mostra seu cartão, pelo qual a recepcionista faz sua identificação ao proceder à leitura da tarja magnética no Terminal de Atendimento do SUS (TAS). Nesse momento, seu cadastro é visualizado na tela do TAS, possibilitando a verificação dos dados pessoais e local de residência do usuário. É digitado o encaminhamento a ser dado, como, por exemplo, consulta médica; logo após, é impresso um boleto no qual constam todos os dados do usuário e o encaminhamento para o serviço que o mesmo demanda dentro da Unidade.

Na recepção, ainda podem ser feitos registros na agenda dos profissionais de saúde, bem como novos cadastros ou alteração dos antigos. Como se verá mais à frente, para alguns encaminhamentos, tais como marcação de consulta especializada, o usuário deverá retornar à recepção, o que impõe uma grande atividade do sistema nesse lugar. A agilidade do trabalhador de saúde, determinada por sua habilidade e por uma interface amigável, é fundamental para que o sistema

não cause uma espera maior do usuário para o atendimento (na entrada) ou uma fila adicional para marcação de consultas especializadas e exames (na saída). Esse acúmulo de atividades na recepção demandará um maior número de profissionais do que o habitualmente existente.

FIGURA 8. Fluxograma do processo de trabalho, a partir da pré-consulta, passando pela consulta médica, figurando a distribuição dos usuários conforme definições tidas após esta consulta.

Fonte: UBS Jardim Satélite, São José dos Campos (SP).

A consulta médica é um ponto crítico no serviço de saúde, pelo volume de decisões que se concentram nesse procedimento e pelas determinações dos processos de trabalho, pelas demandas que suscita. É o momento em que o profissional realiza

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um número muito grande de registros, conforme será detalhado à frente, a partir de relatos de entrevista com uma médica da Unidade de Saúde.

O fluxograma revela que a consulta médica aparece como um elo central da rede que opera os diversos serviços assistenciais no interior do estabelecimento de saúde. Após a realização da consulta, uma série de serviços é acionada, ou seja, em um processo de trabalho medicocêntrico, como o aqui retratado, o saber médico é estruturante do processo de trabalho dos outros profissionais e, nesse caso, o TAS aparece como um equipamento que ultrapassa o registro e a transmissão dos dados provenientes da consulta, como aquele que deverá mediar, através da emissão de boletos de encaminhamentos e prescrições que se produzem, o caminho do usuário por outros lugares, na busca de concluir seu atendimento de modo satisfatório. Ele passa a ser o ponto nevrálgico de uma rede que se configura na produção da assistência dentro da Unidade de Saúde, fazendo a mediação entre o “comando” do médico com as outras estruturas produtivas. Isso significa que o TAS, como Trabalho Morto incorporado aos processos de trabalho, é apenas mais um instrumento de um trabalho que já opera de modo médico centrado, isto é, ele não chega a impactar um sistema de produção já existente. Se o Trabalho Vivo em ato já estava oprimido nesse sistema produtivo, com a presença do TAS, seu aprisionamento é aguçado, porque os processos se tornam mais estruturados, normativos e capturantes.

Imagina-se, inicialmente, que a habilidade do profissional e um sistema suficientemente amistoso são fundamentais para o conforto dos usuários, no sentido de evitar esperas maiores. Isso porque, desse estágio, saem um grande volume de informações notadamente importantes, porque podem ser, por exemplo, indicativas de estados mórbidos de diversas naturezas. No entanto, essas habilidades são vistas como um certo “adestramento” dos profissionais, pelo qual os mesmos irão aprender a operar o sistema, sem uma real implicação com o mesmo e com sua inserção nos processos de trabalho.

O desafio que se coloca, portanto, é o de se pensar a introdução dessas novas tecnologias de informação nos serviços de saúde sem que as mesmas resultem na brutal captura do Trabalho Vivo em ato, mas, pelo contrário, o potencializem, deixando que o mesmo opere como possibilidade criativa e criadora em uma dada “cartografia rizomática” na produção do cuidado. Discutindo o problema da alienação do trabalhador diante da informação, Vasconcellos et al. (2002) apontam

o controle dos produtores (trabalhadores da saúde) sobre as informações e uma outra questão relevante, que diz respeito à reestruturação do processo de trabalho, de forma a recompor seu núcleo tecnológico, de Trabalho Morto centrado para Trabalho Vivo centrado, isto é, deve-se dar, com esses passos, um novo perfil à Composição Técnica do Trabalho (CTT).

FIGURA 9. Fluxograma do processo de trabalho, a partir dos diversos fluxos que se abrem com os resultados da consulta médica, indicando o caminho do usuário até a alta ou o seu encaminhamento para outro serviço.

Fonte: UBS Jardim Satélite, São José dos Campos (SP).

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Essa parte do fluxograma descritor, expressando os diversos fluxos organizados a partir da consulta médica, vem demonstrar os vários caminhos possíveis do usuário, durante o processo assistencial, tanto dentro da Unidade quanto em relação ao encaminhamento para outro equipamento de saúde.

Na maioria dos casos, o usuário deve retornar à recepção, como, por exemplo, quando há encaminhamento para consulta especializada ou exames. Nesses casos, o médico emite o encaminhamento no TAS, que imprime um boleto contento toda a identificação do usuário e o encaminhamento decidido.

Para dispensação de medicamentos, o usuário sai do consultório com o boleto específico, podendo se encaminhar à farmácia. Aqui, deve haver um TAS com a função de registrar a dispensação, organizando melhor o fluxo de medicamentos e o controle dos mesmos quando fornecidos aos usuários. Tudo isso é documentado através de boletos emitidos pelo TAS.

Pode-se observar que, além das soluções específicas de informática, deverão acompanhar a implantação do sistema soluções de organização, métodos e sistemas, ou seja, a disposição dos equipamentos, o fluxo dos usuários, bem como os instrumentos que devem intermediar o relacionamento entre usuário, trabalhador e sistema. Ressalte-se que essas soluções de O & M devem contemplar os aspectos da micropolítica, voltados ao atendimento das necessidades dos usuários e centrado nessa premissa. Acresce-se a isto toda a discussão feita no sentido da inversão da Composição Técnica do Trabalho, associada ao controle social da informação, na análise da parte anterior do fluxograma.

Os trabalhadores e o Sistema Cartão Nacional de Saúde: micropolítica e subjetividades

O Cartão Nacional de Saúde foi implantado na Unidade Básica Jardim Satélite em São José dos Campos em 12 de maio de 2001. Após um curto treinamento, os trabalhadores começaram a exercer a nova função de operar o sistema e fazer os registros eletrônicos de dados. Procuramos, por meio de entrevistas com roteiro semi-estruturado, realizadas junto aos diversos profissionais da Unidade Básica de Saúde Jardim Satélite, perceber os efeitos imediatos no processo de trabalho, verificados nos primeiros 12 meses de operação no Sistema Cartão Nacional

de Saúde. As entrevistas foram feitas com alguns representantes das diversas categorias profissionais envolvidas nos processos de trabalho, a saber: enfermeira, médica, auxiliar de enfermagem e recepcionista.

Na percepção da auxiliar de enfermagem, a atividade de registros no Terminal de Atendimento do SUS começou de maneira muito difícil, especialmente porque ela não tinha conhecimentos de digitação.

A primeira vez que fui usar a máquina, foi mais difícil. Nunca havia usado computador. No início, achava que nunca ia aprender. Depois fui acostumando (auxiliar de enfermagem).

Supõe-se que esta mesma dificuldade deva existir para grande parte dos profissionais que, por sua posição profissional, até então não tinham contato com instrumentos do tipo de um terminal de computador. A novidade no serviço de saúde gera entre os trabalhadores uma tensão inicial, indagações quanto à sua competência em utilizar o equipamento e seu sistema.

No início, por se tratar de novidade no exercício profissional da auxiliar de enfermagem, a atividade de digitação causa estranheza, podendo-se inferir que isso advém da representação social da profissão, e de fato, até aquele momento, a digitação não era considerada uma habilidade necessária, ou seja, não estava relacionada ao rol de atividades do seu exercício. Eis o que diz a auxiliar de enfermagem entrevistada:

No início pensava que por ser de enfermagem, não tinha nada a ver com a digitação. [...] No começo foi estressante pra todo mundo [a atividade de digitar], depois vai se tornando normal (auxiliar de enfermagem).

A idéia de processo está implícita na fala da auxiliar de enfermagem, algo que se mescla entre a idéia de uma “nova função” que lhe é exigida para o trabalho profissional e que foge à sua imagem original desse trabalho. Para além de um esforço cognitivo adicional, essa profissional vivencia um processo de subjetivação, demarcado pela nova experiência, que se inicia com o enunciado da novidade no seu trabalho, prossegue por intermédio do contato com a máquina e seu sistema

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operacional e, assim, sucessivamente, a nova experiência vai sendo absorvida pelo profissional. É algo parecido com a “experiência imediata” de Wundt,39 entendida como a experiência que se tem, sem nenhum outro tipo de interferência, isto é, esta se dá em primeiro lugar, no seu estado “natural”, e vai ganhando forma de nova subjetividade.

Importa registrar que se associa a essa nova cognição e subjetividade, um ambiente micropolítico, baseado no território próprio de trabalho da auxiliar de enfermagem, que a coloca como um elo importante na cadeia de informações que passam a ser transmitidas a partir da sua produção.

Em relação aos médicos, a situação é diferente, pois a maioria declara conhecer o teclado e saber operá-lo, a sua posição social e profissional de alguma maneira já o exigia este tipo de habilidade. A exceção ficam para alguns dos profissionais que por diversas razões, rejeitam trabalhos e sistemas informatizados. O primeiro impacto da nova função em relação ao processo de trabalho dos médicos, observa-se um nível baixo de dificuldades operacionais. No entanto, os que foram entrevistados, reconhecem que há colegas médicos que “têm dificuldades” ou “apresentam resistências”.

O registro eletrônico de dados realizado pelos médicos apresenta um grau maior de dificuldade, dada a magnitude de registros necessários, em maior volume do que os realizados pelos outros trabalhadores, visto que o número de variáveis que compõem a produção de uma consulta médica é bem maior do que os procedimentos de outros profissionais. Como é necessário efetuar a anotação de todo o atendimento realizado no ato da consulta, são vários os campos a serem preenchidos, alterando substantivamente o volume de trabalho necessário para sua realização. São diversas as tabelas que o médico deve acessar para concluir bem o preenchimento de todos os campos, procedendo, assim, o registro eletrônico da sua consulta. Observamos que, após a consulta realizada, deve-se preencher o campo identificando o diagnóstico, através da anotação do código referente à Classificação Internacional de Doenças (CID). Para esse registro, o profissional pode acessar a CID através do sistema, localizando o diagnóstico a ser registrado.

Outro registro fundamental que, obrigatoriamente, é feito pelo médico, diz respeito aos procedimentos realizados com o usuário durante o atendimento.

39 Sobre o tema ver FIGUEIREDO (2001).

Os procedimentos estão relacionados na tabela do Sistema de Informação Ambulatorial do Sistema Único de Saúde, SIA/SUS, que está hospedada no TAS. Como a CID, pode ser acessada através da busca entre os inúmeros itens que formam a tabela, bem como pela digitação do nome do procedimento, desde que haja coincidência da grafia com a mesma, evidentemente.

Da mesma forma, os medicamentos prescritos devem ser registrados no TAS, como parte da consulta realizada. Essa anotação também pode ser feita através da consulta a uma tabela de medicamentos hospedada no TAS. Por último, se houve algum encaminhamento do usuário para outro Estabelecimento Assistencial de Saúde (EAS), este deve ser devidamente registrado.

Pode-se notar que o volume e características desses registros são os mesmos que se realizam hoje, na forma de anotação manual. Porém, é sentido pelos trabalhadores da Unidade de Saúde como um trabalho adicional, na medida em que, durante esse período inicial de implantação do sistema, os trabalhadores continuam efetuando o registro manual em paralelo ao registro eletrônico de dados. Isto se justifica porque ainda não se produziu a segurança necessária no SCNS para que a anotação manual fosse abolida e substituída pela eletrônica. Para que isso ocorra, será necessária uma fase de testagem do Sistema Cartão Nacional de Saúde para que se adote exclusivamente o registro eletrônico de dados, associada a expedientes formais junto ao Ministério da Saúde, que tornem válidos os registros e relatórios emitidos pelo SCNS, e ainda ajustes no software, que tornem compatíveis os dados do SCNS com os sistemas atuais, especialmente o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA), para o caso das Unidades Básicas de Saúde.

A impressão que os médicos passam é de que “com o tempo, a anotação eletrônica no dia-a-dia vai ficando cansativa”, possivelmente em razão da repetição dos atos que proporcionam o registro, necessários para a operação do sistema. E esses são em número maior do que aqueles atos usados para o registro manual, na medida que se abrem diversas “janelas” para a navegação no sistema. Possivelmente, esse fato reforça, junto aos trabalhadores da saúde, a idéia de que o esforço de registro eletrônico de dados adiciona uma carga de trabalho àquela que já é necessária para a realização dos atos próprios da consulta. Nas entrevistas, os médicos deixam bem claro que a anotação no TAS interfere especialmente no tempo necessário para concluir seu trabalho assistencial. Vejamos o que eles nos apresentam nas suas declarações:

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No começo atendia o usuário e registrava em seguida. Agora atendo primeiro e registro depois do expediente, porque não dá tempo.

[...]

Registrar paciente por paciente, eles reclamam, porque passa a demorar a consulta, o que aumenta o tempo de espera.

[...]

Se deixo para registrar tudo no final, é muito cansativo.

[...]

Às vezes não dá tempo de registrar, então deixo para o outro dia e se no outro dia não tem tempo, então fica sem registrar (médica).

Constata-se que, com a implantação do SCNS, são introduzidas novas funções no padrão funcional, já mencionadas para as auxiliares de enfermagem e, agora, para os médicos. Esse é um caso típico, visto que, a partir do advento do SCNS, serão exigidas habilidades no uso de equipamentos eletrônicos como o terminal – TAS, e, inclusive, a função de digitação.

A mudança no padrão funcional deverá ter repercussões em diversos níveis, a saber:

1. alterações na contratualização do trabalho;

2. para formar trabalhadores da saúde aptos à nova função, as entidades formadoras de Recursos Humanos para a saúde terão que incluir disciplinas específicas para o desenvolvimento de habilidades com a informática;

3. deverão ser exigidos, a partir de então, cuidados específicos com a saúde do trabalhador, no que diz respeito à ergonomia do novo equipamento e à possibilidade de influência do mesmo na incidência de doenças do trabalho, em médio e longo prazos.

No período inicial de implantação do SCNS, a principal reclamação dos médicos refere-se ao tempo gasto para a anotação das informações, sendo que alguns chegam a reivindicar a redução do número de consultas para compensar o tempo gasto com os registros. Se, de um lado, essa constatação é verdadeira, pelo menos para a fase de transição do projeto, por outro, os médicos começam a perceber que o Sistema Cartão Nacional de Saúde possibilita maior publicização da sua produção, isto é, de uma parte do processo de trabalho e, por conseqüência, maior controle. Em um processo de gestão no qual as informações têm sentido único, ou seja, são capturadas na ponta e sobem aos níveis gestores maiores, o SCNS revela a produção do médico para o gestor. Mas, em um sistema de gestão em que haja controle social das informações, estas irão revelar, de fato tornar pública, a produção do médico. Após essa constatação, por alguns médicos, nota-se um sutil movimento em defesa do seu microespaço privado, que termina por gerar resistência ao projeto e ao registro eletrônico manifestada de diversos modos. Naturalmente que, aqui, aparece outra variável ligada ao espírito corporativo que domina em alguns setores dos trabalhadores da saúde, que tentam fazer prevalecer o interesse privado da categoria sobre o interesse público do fortalecimento de sistemas elaborados para a gestão do SUS. O conflito existe e é parte intrínseca ao processo de desenvolvimento do SCNS.

Reconhecemos que há um certo “período de transição” no desenvolvimento do projeto Sistema Cartão Nacional de Saúde. Esse período refere-se àquele imediatamente posterior à instalação dos equipamentos e início de operação dos mesmos pelos trabalhadores da saúde, tendo o seu início facilmente identificável, que é a data de instalação dos terminais (TAS) na Unidade de Saúde. No entanto, não há um tempo certo para se encerrar. Sua principal característica, e que poderia dar-lhe também uma identidade, está no fato de coexistirem, durante essa fase, o velho sistema de anotação manual de dados em paralelo ao novo sistema, de anotação eletrônica.

De acordo com relatos obtidos junto a técnicos ligados à área de informática, esse não é um fenômeno específico do Cartão Nacional de Saúde, mas ocorre, nessa fase de implantação, em quase todos os novos sistemas informatizados. Isso acontece devido a incertezas que ainda persistem em relação ao desempenho do novo, na medida em que ele necessita de uma certa maturação para operar com plenitude. Sendo assim,

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não é possível abandonar o velho modo de registrar os dados de assistência do SUS até que se comprove o ótimo desempenho do sistema informatizado.

A obrigatória convivência entre os dois sistemas traz o incômodo para os trabalhadores da Unidade de Saúde, de estarem fazendo um retrabalho, ou seja, anotando duas vezes a mesma informação. Tem-se a impressão de um gasto desnecessário de tempo. No entanto, se essa fase é inevitável, é importante que ela seja concluída no menor espaço de tempo possível, evitando, assim, um certo desgaste. Essa redução da fase de transição ao tempo mínimo necessário vai depender de diversos fatores, entre eles:

1. o desenvolvimento do software, precedido de uma detalhada pesquisa, no ambiente de trabalho, que consiga entender a micropolítica dos processos ali operantes;

2. a sensível percepção dos trabalhadores, que serão os usuários finais do novo sistema, quanto à sua expectativa em relação ao mesmo, às habilidades, e níveis diferenciados de relacionamento que deverão estabelecer com o novo sistema;

3. a compreensão de que há uma interação do sistema (Trabalho Morto) com o Trabalho Vivo em ato nos processos de produção da informação, bem como de que, havendo menor captura do Trabalho Vivo, pode-se operar graus maiores de implicação dos trabalhadores com o novo sistema, melhorando sua performance;

4. a compreensão quanto aos processos produtivos e gestores da saúde, por parte de quem desenvolve o software, e os usos que ele pode ter para esses segmentos;

5. o ótimo treinamento dos trabalhadores, como fase preparatória para a operação do sistema;

6. a preparação da Secretaria Municipal de Saúde e de seus órgãos gestores para o desenvolvimento do projeto e seus impactos, relacionados a todos os sistemas implicados com o Cartão Nacional de Saúde;

7. a possibilidade de adesão dos trabalhadores ao novo sistema, para que incorporem suas novas funções no exercício do trabalho cotidiano, o que se dá com a identificação dos mesmos em relação às utilidades do sistema.

A identificação de um certo “período de transição” no desenvolvimento do projeto, com presença de retrabalho na execução das funções de registro de dados da assistência, aciona um alerta para os níveis executivos do projeto, no sentido de reduzirem esse período ao mínimo indispensável e apresentarem, em curto prazo, resultados em relação à operação do SCNS que venham ao encontro das expectativas dos trabalhadores da saúde e gestores do SUS.

Nesse sentido, é necessário considerar que a substituição da anotação manual de procedimentos, realizada através de formulários impressos, pelo registro eletrônico de dados, feito através do TAS, não significa apenas uma alteração do instrumental utilizado junto ao Sistema de Informações de Saúde, mas a demonstração concreta de sua utilidade e de possíveis benefícios que pode trazer para o funcionamento do SUS. É necessário pensar a motivação dos trabalhadores como parte de subjetivações criadas em relação ao novo sistema e a seus impactos no exercício cotidiano do trabalho.

Imaginemos que a função de anotar o atendimento realizado dá-se a partir de uma série de operações seqüenciais caracterizadas por “microatos” necessários à execução do registro pretendido e que são, fundamentalmente, produtores dos dados, ou seja, são, por excelência, expressão do Trabalho Vivo. Esses “microatos”, no caso do registro de dados na saúde e, em particular, para o SCNS, podem ser identificados, resumidamente, como aqueles que procedem à identificação do usuário, e através dos quais o trabalhador se apropria das informações do atendimento que estão disponíveis, localiza os campos de registros, identifica o pedido que esses campos fazem e os códigos de procedimentos realizados, anotando-os para, finalmente, transmitir esses dados. A eficiência na execução desses atos é alcançada após um período de maturação do sistema, tempo em que os diversos determinantes de uma boa performance, comentados aqui, podem desenvolver-se.

Podemos observar que o ato produtor de informações reflete uma certa Composição Técnica, implícita no seu processo de trabalho. Há uma lógica instrumental (Trabalho Morto) convivendo com outra que diz respeito às relações estabelecidas

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entre o sistema e as pessoas que vão operá-lo (Trabalho Vivo), determinada por inúmeras variáveis, inclusive pelas subjetividades desenvolvidas nesse contexto. Há uma nova ambientação, criada sobre uma certa “rede de petição e compromissos” que opera entre os trabalhadores da saúde, quando conduzem seus processos de trabalho, a partir da instalação na Unidade de Saúde do Projeto SCNS.

Em relação à atividade dos diversos profissionais e, especialmente, do médico, os dados organizados por atendimento revelam seu processo de trabalho, dando publicidade às condutas realizadas em cada situação, de forma singularizada, como já foi mencionado. Isso significa que o nível gestor terá acesso aos procedimentos realizados e/ou solicitados, medicamentos prescritos, encaminhamento efetuado e ao quadro mórbido do usuário, com identificação do profissional que o atendeu. Mesmo sabendo que o trabalho médico conta com grandes graus de liberdade na sua operação, que o ato decisório é controlado única e exclusivamente pelo profissional, isto é, este é, por assim dizer, seu espaço de autogoverno, a publicização da sua produção possibilita algum controle social do seu trabalho. Essas informações podem permitir um espaço de diálogo entre usuários, equipes de trabalhadores e gestores locais com esse profissional. Para um projeto assistencial centrado na produção do cuidado, informações de atendimento geradas pelo SCNS podem ser instrumentalizadas pelo gestor, e se permanecerem em sentido único, isso significa uma captura e apropriação da realidade local (G controlando g). Mas, ao se produzir um certo controle social da informação, pode-se configurar também um ambiente institucional favorável à emergência do Trabalho Vivo, como instituinte dos processos de trabalho estruturados. Em um contexto deste, utópico ativo, a informação pode servir de dispositivo à mudança dos processos de trabalho, junto com outros processos disparados no mesmo sentido.

Para as atividades assistenciais em si mesmas, o conjunto de informações disponibilizadas pelo SCNS pode servir à equipe da Unidade de Saúde para o trabalho de cuidado da sua clientela. Por exemplo, a morbidade ambulatorial é um dado que pode ser obtido com maior exatidão a partir do SCNS, pois cada profissional deverá efetuar o registro eletrônico do diagnóstico dos usuários que foram por ele atendidos. Outra informação bem organizada pelo Sistema diz respeito ao número de atendimentos realizados junto à população local em relação àqueles feitos à população de outros municípios.

A possibilidade de vincular determinado usuário ao diagnóstico e prescrições emitidas no seu atendimento, combinada com uma informação que chega rápida e de forma eficaz, pode contribuir para a gestão de projetos terapêuticos centrados no cuidado aos usuários, desde que este seja um projeto de modelo de assistência exercido na rede assistencial, e, reafirmando, Trabalho Vivo centrado.

Outras considerações levam em conta que, em uma primeira aproximação no processo de análise do Sistema Cartão Nacional de Saúde, recorremos à discussão desenvolvida em torno dos modelos assistenciais e sua configuração a partir da micropolítica de organização do trabalho. Observamos que há uma certa razão instrumental estruturante das diretrizes que norteiam o desenvolvimento do Projeto SCNS. Isso pode ser explicado, de certa forma, pela maciça incorporação de novas tecnologias, com grande potencial de renovação na informação em saúde, associada a um processo de trabalho existente nas Unidades, que tem no seu núcleo tecnológico a predominância do Trabalho Morto. Tudo isso vem ao encontro de um certo imaginário maquínico que existe no interior da produção da assistência à saúde.

Construir a adesão dos trabalhadores da saúde ao SCNS: uma preocupação do Projeto

Outra questão importante, também incorporada ao nível de preocupações com o desenvolvimento do Projeto, diz respeito à motivação e adesão dos trabalhadores da saúde ao Projeto SCNS, um tema que é trabalhado pela Teoria Geral da Administração. Essa adesão dar-se-ia a partir do uso dos instrumentos que seriam postos à disposição dos trabalhadores pelo SCNS, materializando-se em duas diretrizes, a saber: a) a primeira refere-se à utilidade do Sistema para o trabalho cotidiano desses profissionais, como já foi relatado; b) a segunda, quanto ao conforto no seu uso, à condição “amigável” da interface desenvolvida no software a ser utilizado.

Essas preocupações passaram a ocupar grande parte da agenda do nível executivo e de produção do Projeto SCNS, havendo também um esforço para sua incorporação nas diretrizes encaminhadas para a formatação dos treinamentos dos trabalhadores de saúde quanto ao uso dos seus instrumentos.

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De acordo com Campos (1994),

qualquer projeto mudancista que aspira ao sucesso deveria tentar, ao mesmo tempo, tanto a mudança das pessoas, dos seus valores, da sua cultura ou ideologia, quanto providenciar alterações no funcionamento das instituições sociais. Dizendo de outra maneira, temos que mexer, simultaneamente, com as pessoas, com as estruturas e com as relações entre elas (CAMPOS, apud CECÍLIO, 1994:30).

Isso significa que, para o autor, a motivação ou adesão dos trabalhadores a determinado projeto, e, no caso, estamos falando do SCNS, será possível quando estes se sentirem incluídos, participantes e identificados com o Projeto, sendo protagonistas com capacidade de influir na construção do mesmo.

Entendemos que seria necessário construir algo como o que é sugerido por Ilara Hammerli S. Moraes, ao discutir os parâmetros de uma democracia informacional:

A proposta de um processo democrático que tenha por objetivo de seu exercício a definição sobre a direcionalidade da produção, do tratamento, do uso e da disseminação da informação e das tecnologias a ela associadas representa uma tentativa de dar materialidade à idéia da apropriação pela sociedade de um aparato até, então, quase que de uso restrito pelos dispositivos de vigilância, de controle de gestão da vida, cuja chave de acesso é de domínio reservado de uma elite científica e técnica, política e econômica (MORAES, 2002:79).

Isso pressupõe a democratização dos sistemas de informações, com controle dos mesmos por aqueles que produzem os dados, os próprios trabalhadores, associados aos usuários e a outras entidades da sociedade, implicadas com a questão da saúde. Um processo de controle social é capaz de fazer retornar às equipes de cuidado nas diversas Unidades de Saúde, as informações que estas necessitam para o seu processo de produção, no sentido de qualificar a assistência, responsabilizando-se, acompanhando, trabalhando, enfim, o cuidado à clientela. Isso daria motivação aos trabalhadores, criando identidades de implicação com

o projeto em questão, pois se veriam participantes do mesmo e controlando seus processos e resultados.

Foi realizado um grande esforço para a construção de uma interface amigável do software para os trabalhadores da saúde e, simultaneamente ao desenvolvimento do aplicativo, eram realizados os trabalhos de instalação de infra-estrutura, formulação dos treinamentos, cadastramento de trabalhadores da saúde, de usuários e das próprias Unidades Assistenciais. O ritmo de implantação do projeto fez com que as discussões de mantivessem no nível técnico, em torno das possibilidades de se processar mudanças na gestão da informação, promovendo o controle social da mesma.

O Projeto SCNS insere-se entre os sistemas criados a partir da onda de descobertas técnico-científicas observada especialmente nas últimas décadas, a partir do que recursos de informática, associados às telecomunicações, foram responsáveis por grandiosas transformações no mundo da produção. Contudo, a mudança na saúde, para um outro patamar produtivo, requer esforços que vão muito além da inserção de novas tecnologias nos processos de gestão e assistência. Aqui, diante de uma dada realidade multideterminada, será necessário operar em cenários complexos, que conformam uma determinada ambientação, síntese da combinação de todos os fatores que possibilitam a construção do Projeto SCNS.

Será necessário realizar todo um conjunto de intervenções para criar um ambiente institucionalmente organizado para que sujeitos em cena operem mudanças, considerando, nesse cenário, a composição tecnológica dos processos de trabalho, a pactuação organizacional de uma nova contratualidade do trabalho, a disposição da maquinaria e as subjetividades que se estruturam nos processos instituintes que podem manifestar-se em meio à produção da saúde. Vale dizer que o SCNS conseguiu mudar apenas o cenário tecnológico de produção da informação, não alterando a Composição Técnica do Trabalho e, por conseqüência, o modelo assistencial.

Análise do Sistema Cartão Nacional de Saúde à luz dos campos da política, organização e produção do cuidado

A primeira hipótese a ser verificada diz respeito ao fato de que o Sistema Cartão Nacional de Saúde possibilita às esferas gestoras superiores do SUS (G)

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controlarem outros níveis de governo (g), através do sistema de informações operado pelo SCNS.

A segunda questão refere-se à pergunta: o SCNS impacta a assistência no sentido de alterar o modelo tecnoassistencial? Para responder a essa questão, procuramos analisar o comportamento do núcleo tecnológico do cuidado que opera a partir dos processos de trabalho em uma dada linha do cuidado, com foco na micropolítica. Há alterações na Composição Técnica do Trabalho? A resposta a esta pergunta poderá indicar se houve ou não mudanças no modelo tecnoassistencial.

Para proceder a esta análise, utilizaremos o esquema proposto por Merhy, que sugere uma planilha analítica com três categorias de análise, quais sejam: o campo da política, o campo da organização e o campo do cuidado (processos de trabalho), conforme descrito no capítulo que trata da metodologia (MERHY, 1998a).

No campo da política

Pode-se inferir que o sistema de informações que surge do SCNS traz um poderoso insumo para a ação de controle do gestor federal sobre o gestor local. As secretarias municipais de saúde podem dizer o mesmo, visto que, em tese, poderão ter acesso, em tempo quase real, aos dados e informações geradas em nível local. Fortalece essa idéia de controle das esferas gestoras superiores sobre o nível local o fato de não haver dispositivos de “controle social” da informação, ou seja, os produtores das informações alienam-se das mesmas a partir do momento que geram e transmitem dados, mas não têm acesso às informações que foram criadas a partir do seu próprio trabalho.

O nível decisório, de regulação do sistema, está concentrado na esfera federal, que controla os principais insumos pertinentes ao sistema, como, por exemplo, fornecimento de software, hardware, assistência técnica e suporte, que são ofertados pela empresa contratada para implantar o SCNS. O controle de recursos proporciona um grande poder sobre toda a cadeia funcional do sistema. Há, no entanto, um relacionamento entre o nível de governo federal e as administrações municipais, visto que estas também controlam recursos estratégicos e são responsáveis pela operação do sistema, sendo que sua implantação depende, naturalmente, de uma decisão do município. Assim, os níveis gestores municipais

concentram um certo poder de barganha e, a partir disso, pactuam recursos com o gestor federal, tais como o aumento de Terminais de Atendimento do SUS (TAS) e até mudanças nos insumos normativos do sistema, como o acréscimo de determinados procedimentos específicos, na tabela de procedimentos do SCNS, para atender determinadas demandas locais.

Abaixo, apresentamos um quadro com os principais recursos controlados por cada esfera de governo. Na primeira linha, as categorias dos recursos (materiais, cognitivos e políticos) provêm de MATUS (1993). Supõe-se que o grau de controle de recursos expressa a governabilidade sobre o sistema e o poder de barganha de cada esfera de governo em uma suposta rede de pactuação do projeto SCNS.

QUADRO 3. Principais recursos controlados pelos três níveis de gestão do SUS para implantação do SCNS.

Gestor / Recursos que

controlaMateriais Cognitivos Políticos

Federal Contrato com empresas.Hardware.Insumos como tabelas (49 tabelas são hospedadas no TAS).Cartões magnéticos.Recursos financeiros para cadastramento.

Software.Assistência técnica.Suporte técnico.Assessoria de técnicos do MS.Planejamento de operações.Descrição do Processo de Trabalho.Mapa de localização dos TAS.Treinamento dos RH’s.

Regulação do sistema.Apoio do gestor federal ao projeto SCNS.Interlocução com outros atores implicados com o SCNS (Caixa Federal, Datasus, Governo Federal, Conasems, Conass, Conselho Nacional de Saúde).

Estadual Adaptação física do local de instalação do servidor estadual.

Técnicos para acompanhamento da implantação do SCNS nos municípios do estado (especialmente Paraná, onde há 31 municípios no projeto-piloto).

Apoio à implantação do SCNS.

Municipal Linhas de telefonia.Linhas de energia.Adaptação física dos estabelecimentos de saúde para recepção dos hardwares.Recursos Humanos.Logística de implantação.

Planejamento de operações.Descrição do Processo de Trabalho.Mapa de localização dos TAS.Logística para Treinamento dos RH’s.Disponibilização de RH para operar o servidor municipal.

Decisão do gestor municipal de aderir ao projeto SCNS.Apoio do gestor municipal para as ações pertinentes à implantação do SCNS.Pactuação com o MS na disponibilização de recursos.Pactuação com o MS para regulação e funcionamento do SCNS.

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Em nível municipal, a implantação do sistema nas Unidades de Saúde envolve, também, um processo de negociação e pactuação com os trabalhadores de saúde. A introdução do sistema informatizado, com novas funções, especialmente na fase de transição, em que há acréscimo significativo de trabalho, visto que os trabalhadores deverão registrar dados manualmente (no sistema antigo) e eletronicamente (no novo sistema), envolve uma grande negociação e poder de persuasão por parte do gestor municipal. Em alguns casos, chegam a ceder à reivindicação de médicos, para a redução do número de consultas, em função da sobrecarga de trabalho ocasionada pela implantação do SCNS, como já foi relatado.

Outras iniciativas importantes para o sucesso do SCNS fazem parte de uma agenda de negociações entre o gestor municipal e os trabalhadores, tais como os horários de treinamento para a operação do sistema, pagamento ou não de horas-extras (quando o treinamento é marcado para horário fora do expediente) e a escala de presenças, entre outros itens.

O que se verifica, portanto, no que se refere ao processo de decisão para a implantação do SCNS, é uma implicada rede de atores, que vai desde o gestor federal, eventualmente o estadual, o municipal, os trabalhadores e usuários, que tensionam as relações, com vistas à defesa de seus interesses particulares em todo o processo, mas que, ao mesmo tempo, pactuam para o desenvolvimento do SCNS.

Entre as tensões, conflitos e pactuações permanentes, é importante registrar que o gestor federal tem grande poder de controle de processos, por possuir recursos estratégicos, como os mencionados acima. O gestor municipal também concentra muito poder, porque controla o território e os lugares físicos de implantação do sistema, os estabelecimentos de saúde. Os trabalhadores têm seu poder de influência garantido por serem atores fundamentais na operação do sistema, sem os quais este não funciona ou trabalha com baixa eficácia, reduzindo sua utilidade pela pequena credibilidade que isso pode ocasionar.

Pode-se inferir que o nível de acordo que existe na gestão partilhada do SUS é suficiente para a implantação do SCNS, com ressalvas para o modo como se opera esse tipo de projeto, com as tensões e pactuações esperadas para uma situação como esta. As competências estão bem delineadas a partir dos recursos que estão sob controle de cada nível gestor e dos trabalhadores de saúde.

Apesar de tudo isso, pode-se dizer que há um certo “conflito” de competências na condução do projeto-piloto, em relação ao nível estadual. Este esteve, em grande parte do tempo de desenvolvimento do SCNS, excluído do processo de condução do projeto. Isso não se deu por intencionalidade do Ministério da Saúde, operador do projeto, mas, muitas vezes, pela ausência do gestor estadual nos processos em curso ou mesmo pelo fato de haver uma pequena presença do projeto em determinados estados, lugares onde há um só ou poucos municípios em implantação. No entanto, é importante registrar que foram implantados servidores estaduais em todos os estados do país, o que obrigaria o gestor estadual a envolver-se com o sistema, no mínimo, para a administração do servidor estadual, o que aconteceu de forma absolutamente desigual.

No campo da organização

Em primeiro lugar, no que se refere aos hardwares, esses foram bem dimensionados para o projeto SCNS, exceto para o caso dos servidores municipais. São em torno de 10.000 Terminais de Atendimento do SUS (TAS), 44 servidores municipais, 17 servidores estaduais e 2 federais, sendo um para recepção e armazenagem dos dados e outro para manter uma cópia de todo o banco de dados, por questões de segurança. Os servidores municipais constituem-se de computadores de alta performance, com grande capacidade de armazenagem e processamento de dados, que foram projetados para cada município. No entanto, dos 44 que integram o projeto-piloto, 16 municípios não chegam a ter 20.000 habitantes,40 ou seja, são muito pequenos para utilizar, de forma exclusiva, um equipamento dessa natureza; não geram dados em quantidade suficiente que justifique esse tipo de equipamento para sua armazenagem e processamento, e, em sua grande maioria, não dispõem de recursos humanos técnicos em condições de operar o servidor municipal. Nesse sentido, podemos dizer que os servidores municipais foram mal dimensionados para o projeto, resultando em desperdício de recursos, pois se nota que seria mais adequado que um grupo de pequenos municípios utilizassem o mesmo servidor para realizarem suas operações no SCNS.

40 Ver relação de municípios no Capítulo I.

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No que diz respeito aos Terminais de Atendimento do SUS (TAS), embora haja uma expressiva quantidade à disposição do projeto, em muitos municípios os mesmos não estavam programados para serem implantados em consultórios. Seria natural que o TAS estivesse posicionado em todos ou quase todos os lugares de produção da Unidade de Saúde, como capturador e transmissor de dados, sendo o consultório um dos lugares críticos para a sua anotação, visto que, como já foi mencionado neste estudo, os dados a serem anotados pelo médico são muitos (são vários os campos de preenchimento nas telas do sistema), gerados por uma mesma consulta. Nos municípios, entre eles São José dos Campos, em que foram implantados TAS nos consultórios, isso gera conforto para a anotação de dados pelo médico ou outro profissional que realizar consultas neste lugar, ampliando, assim, o volume de dados anotados e a adesão dos profissionais a esta atividade específica. Em municípios nos quais não foi possível implantar TAS em consultórios, houve um grande desconforto no processo, sendo que há lugares onde os médicos, ao final dos atendimentos, deslocavam-se até o TAS posto à sua disposição em outro ambiente físico (sala de administração, farmácia ou outro) para realizarem as anotações de dados da sua consulta. Em outros lugares, os dados eram anotados em formulários próprios e repassados ao funcionário administrativo, que, ao final, teria dificuldades para manter rigorosamente em dia os registros de dados, gerando problemas de outra ordem, notadamente a manutenção atualizada de dados do SCNS.

No que diz respeito ao software, já fizemos as devidas análises quando avaliados os dados comparados entre aqueles anotados no SCNS com os do BPA, conforme minuciosamente descrito neste capítulo. Ele é eficaz para a anotação e transmissão de dados, embora exija um período de maturação até atingir uma performance satisfatória. Mas o estudo demonstrou que as linhas de captura, processamento, transmissão e armazenagem de dados estão operando e conseguindo emitir relatórios com os dados coletados.

No entanto, é importante observar que o SCNS prioriza as informações de “atendimento”, colocando a produção como subjacente àquelas, diferentemente do atual sistema de informações em saúde, no qual ocorre justamente o contrário, pois a prioridade é conduzida para a produção dentro de uma lógica de faturamento, herdada do período do INAMPS, quando este conveniava com os municípios, tratando-os como prestadores e não como gestores dos serviços de saúde.

A estrutura física das unidades sofreu pequenas reformas para abrigar os equipamentos do SCNS e, principalmente, para a instalação da rede de transmissão de dados. Além disso, houve grande cuidado em relação a possíveis interferências da rede elétrica sobre o equipamento e à qualidade da transmissão pelas linhas telefônicas. A maior preocupação, no entanto, esteve concentrada no ambiente em que ficariam os servidores, pela necessidade de climatização, proteção contra ruídos e estabilidade do solo (não deve haver trepidações, por exemplo). Toda essa parte esteve a cargo do município, que dispôs de pessoal e recursos no sentido de adequar as Unidades de Saúde e os ambientes que guardariam os computadores, dispostos como servidores do SCNS.

No campo da produção do cuidado

Nessa categoria estamos analisando a micropolítica dos processos de trabalho, produtores da assistência à saúde, e o impacto que o SCNS causa nos mesmos. Sabemos de antemão da função precípua do SCNS, que é a do registro eletrônico de dados, que envolve uma série de ações em seqüência, que vão desde a identificação do usuário, através do seu Cartão, até a busca por procedimentos, medicamentos e código da CID, realizada no equipamento, para cada anotação a ser registrada, entre muitos outros.

O SCNS altera o processo produtivo na saúde? Em que medida isso representa uma mudança do modelo tecnoassistencial?

Consideramos que o modelo tecnoassistencial é determinado pelo processo de trabalho que opera, em certa medida, pela Composição Técnica do Trabalho (CTT), na qual, quanto maior for a razão entre Trabalho Morto (TM) em relação ao Trabalho Vivo (TV), que compõem o processo produtivo, mais expressivo de uma certa lógica instrumental e normativa será o processo de trabalho e, portanto, estruturado em torno de um modelo que opera nos moldes do “médico hegemônico produtor de procedimentos”. Dessa forma, os processos de trabalho estarão centrados nas tecnologias duras e leve-duras. Se essa razão for menor, com proeminência do Trabalho Vivo (TV), ou se houver uma mudança no padrão tecnológico de produção do cuidado, poderá haver evidências de alteração do modelo tecnoassistencial, no que este pode operar com lógicas menos estruturantes, valorizando as relações e a ação cuidadora na produção da saúde.

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O que se pode verificar como ponto de partida para esta análise é o fato de o SCNS constituir-se como uma poderosa ferramenta do sistema de informações em saúde, agilizando todos os processos pertinentes a esta área do saber-fazer em saúde. Nesse sentido, opera como um instrumento de gestão. Desse lugar, ele impacta o núcleo tecnológico de produção do cuidado? Essa é a questão central. Muitas vezes, especialmente no início de desenvolvimento do projeto SCNS, havia dúvidas entre os gestores do projeto sobre o grau de interferência que o mesmo poderia causar na assistência à saúde, stricto sensu. Ao longo do tempo, através da observação empírica do comportamento do SCNS nas Unidades de Saúde, chegou-se à conclusão de que ele não impacta a assistência, naquele sentido dado. No entanto, discutiremos a questão à luz do recorte teórico definido para este estudo.

Nosso analisador tem sido a Composição Técnica do Trabalho (CTT), ou seja, a razão entre TM e TV dispostos no processo de trabalho em saúde. Essa composição do núcleo tecnológico de produção do cuidado é definida, no entanto, por fatores alheios ao SCNS, que estão vinculados a uma certa intencionalidade de produção do cuidado, à forma como se organiza o processo de trabalho para o atendimento das necessidades dos usuários, ao modo como os trabalhadores operam uma certa “linha do cuidado”, às tecnologias utilizadas para isso, garantindo todos os recursos necessários à assistência ao usuário, de forma acolhedora, estabelecendo relações de vínculo e referências seguras para os mesmos. Tudo isso se manifesta a partir de um “campo de saberes” próprios da saúde coletiva, que se materializam em um dado ambiente institucional, no qual a produção é estruturada por uma pactuação entre os diversos atores implicados com o cuidado.

O Sistema Cartão Nacional de Saúde opera na “linha de produção do cuidado” da Unidade fazendo conexões entre as diversas unidades produtivas (por exemplo: recepção com consulta, consulta com procedimentos de enfermagem, recepção com sala de vacina, da Unidade para encaminhamentos diversos, etc.), dentro e fora do mesmo estabelecimento. Age, assim, como uma potente ferramenta de gestão, operando por uma lógica instrumental e matriciando, ao mesmo tempo, operações de registro de dados entre os trabalhadores. Alimenta um suposto sistema de informações em saúde e é igualmente alimentado pelo mesmo, agindo na captura de dados e transmitindo-os aos níveis gestores superiores. Essa lógica informacional é o centro operacional do SCNS.

Podemos inferir que a produção do cuidado e o SCNS operam em dimensões diferentes: um está inserido no plano da produção, o outro no do registro e controle; embora conectados em uma dobra do sistema de saúde, a seqüência de atos que assistem e cuidam da pessoa coloca-se em um lugar diferente da seqüência de atos que registram e transmitem dados. Portanto, uma evidência de supostos impactos do SCNS no processo de trabalho só pode ser percebida com o olhar no espaço de produção, micropolítico por excelência.

Deduz-se que o SCNS não influencia na CTT, pois a razão entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo, presentes no processo de trabalho de uma dada linha de produção do cuidado, é determinada pelo protagonismo dos sujeitos dispostos nesse lugar e pelo modo como operam seu trabalho, conforme dito acima.

Retornando ao fluxograma descritor do processo de trabalho da Unidade investigada, para melhor discutir o problema, verificamos que o fluxo da assistência retrata o quanto o processo de trabalho está centrado no saber e na pessoa do médico. Nota-se a centralidade que assume a consulta médica em toda a linha que retrata o caminhar do usuário no serviço. Observa-se que a consulta e o saber médico que preside os atos necessários à sua realização estruturam todo o processo de trabalho posterior, demandando serviços e, certamente, organizando o trabalho dos outros profissionais. Vê-se com transparência que o fluxo assistencial é medicocêntrico e o SCNS não tem potência para inverter essa lógica e nem é solicitado a ele que o faça, pois sua missão está definida a priori, qual seja a de fazer a captura de dados e transmiti-los para o nível de gestão superior, a fim de que sejam analisados e transformados em informações que possam subsidiar a ação gestora do SUS.

No plano da gestão, notamos que o Sistema Cartão Nacional de Saúde possibilita maior controle sobre os microprocessos decisórios do médico e demais trabalhadores de saúde, porque revela para o gestor aspectos administrativos do seu processo de trabalho. Há, pelo SCNS, a possibilidade de captura de dados referentes a horários de atendimento, à identificação dos usuários que o profissional assistiu, ao nível de prescrição utilizado tanto para medicamentos quanto para exames e, ainda, aos encaminhamentos adotados pelo mesmo. No entanto, o SCNS não revela se, na relação com o usuário e na seqüência de atos necessários à sua assistência, predominou uma lógica produtiva centrada no TM ou no TV, ou seja, o SCNS não indica a Composição Técnica do Trabalho, pois isso demandaria

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a verificação de outras abordagens do cuidado aos usuários processadas em toda a linha do cuidado, bem como o prosseguimento de um dado projeto terapêutico.

A presença do Sistema Cartão Nacional de Saúde nos diversos segmentos produtivos da Unidade serve para organizar o fluxo, encaminhar o usuário, ajudar a fazer a conexão entre os serviços, melhorar a performance no registro de dados e transmissão dos mesmos. Mas é importante frisar que NÃO altera a lógica que conduz os projetos terapêuticos. Os fluxos, com a presença do SCNS e de todo o seu aparato tecnológico, continuam estruturados pela lógica do modelo médico-hegemônico, para o caso estudado. Supõe-se que um outro modelo assistencial, voltado à produção do cuidado, também continuaria seu processo produtivo operando da mesma forma, caso fosse implantado o SCNS.

Conclui-se que a mudança do modelo tecnoassistencial pode ocorrer em virtude de fatores alheiros ao SCNS, mencionados já neste texto. Essa mudança deve expressar uma dada reestruturação produtiva do setor de forma a caminhar para uma transição tecnológica que consiga alterar a correlação entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo no núcleo tecnológico de produção do cuidado que operam sob os processos de trabalho. Essa alternância deve vir no sentido de representar maior relevância para o Trabalho Vivo e o uso preferencial das tecnologias leves para ao cuidado aos usuários.

Resta analisar a relação do SCNS com a gestão, em especial, a atividade gestora do SUS. Nessa questão, o SCNS tem uma importante contribuição naquilo que, nos parece, é sua função precípua, ligada ao sistema de informações do SUS. A capacidade tecnológica de captura, transmissão e processamento de dados torna o sistema de informações teoricamente ágil e eficaz. Outros elementos estão implicados com essa alta performance, como, por exemplo, a ação dos trabalhadores de saúde na operação do sistema, analisada anteriormente.

Em razão de tudo o que já foi discutido no que se refere à incapacidade que o SCNS tem para mudar o modelo tecnoassistencial, pode-se inferir que mesmo contando com o SCNS para a gestão do SUS, os gestores não teriam como utilizá-lo para a mudança de modelo, ou seja, ele não seria, por si só, dispositivo para realizar uma mudança ao nível da Composição Técnica do Trabalho.

No âmbito governamental, considera-se que o SCNS, tal como concebido para funcionar, pode elevar os níveis de controle das esferas superiores de gestão

em relação àquelas que atuam nos níveis municipal e local. Isso porque, embora ele opere a partir de uma lógica instrumental e normativa, amplia esse olhar sobre a produção da saúde e a capacidade que os trabalhadores têm de produzir, registrando os níveis de prescrição de medicamentos e exames, a assiduidade ao trabalho e os encaminhamentos realizados. Ou seja, dentro de um perfil taylorista de controle do trabalho, o SCNS está instrumentalizado para isso. Esse controle tem, naturalmente, seus limites, dado um certo autogoverno exercido pelos trabalhadores de saúde sobre seus processos de trabalho. Parece, no caso, um paradoxo, na medida em que o governo pode exercer maior controle (taylorista) e os trabalhadores mantêm seu grau de liberdade no trabalho, mas é assim mesmo que acontece. Os gestores mantêm a ilusão do controle do trabalho, quando se sabe que os trabalhadores agem, quando estão conscientes do projeto, no sentido de um determinado processo de mudança, ou seja, quando são implicados com a causa a partir de “processos de subjetivações” capazes de lhes dar um novo perfil de trabalho, valores e cultura na sua relação com a vida e com o mundo da produção de saúde.

Por tudo isso, considera-se que o SCNS não vai instrumentalizar os gestores para operarem uma certa reestruturação produtiva no setor, ele não tem potência para isso. No entanto, pode ser muito eficaz ao contribuir com informações precisas, que ajudam o gestor na tomada de decisões, no planejamento e na programação das atividades administrativas e assistenciais de saúde. Nessa direção, atividades relacionadas às ações programáticas e ao controle de populações de risco podem ter a contribuição das informações de morbidade ambulatorial, na produção das quais o SCNS pode ser eficaz. Outras informações, relacionadas ao monitoramento da produção de serviços ou mesmo ao rastreamento de determinado usuário entre os encaminhamentos feitos ao mesmo, para os diversos equipamentos de saúde, podem ter a contribuição do SCNS. As funções gerenciais o SCNS têm um importante papel a cumprir.

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Conclusões

1. Este estudo revela-nos, em primeiro lugar, que o Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS) é um instrumento para a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), direcionado ao sistema de informações. Todo o seu arsenal tecnológico serve à captura, processamento, transmissão e armazenamento de dados, com emissão de relatórios contendo informações de natureza gerencial, especialmente as relativas à produção de serviços, outras epidemiológicas e, no caso deste estudo, as referentes à morbidade ambulatorial.

2. A implantação do SCNS requer um grande pacto entre o Ministério da Saúde e os municípios, em função de recursos que este deverá mobilizar para adaptar sua rede ao SCNS. Além disto, recursos humanos deverão ser disponibilizados para os encaminhamentos pertinentes à montagem do sistema e operação do servidor municipal.

3. Entre os recursos necessários à implantação do SCNS, o Ministério da Saúde financiou o hardware e software e, ainda, a assistência técnica para a instalação e a manutenção por dois anos, por meio da contratação de duas empresas (Hypercom do Brasil e Procomp). Outros recursos materiais ficaram a cargo do município, tais como a adaptação física das Unidades de Saúde, a adequação da rede elétrica e de telefonia. Recursos cognitivos foram também contratados junto às empresas operadoras da implantação do SCNS, que se encarregaram, além de toda a parte técnica, do treinamento dos profissionais de saúde para a operação do Sistema. De outra ordem, os recursos políticos foram viabilizados através do pacto celebrado entre o Ministério da Saúde e os municípios do projeto-piloto. Estes encaminharam, junto aos seus profissionais de saúde e corpo gerencial, toda uma discussão pertinente ao SCNS. É notório, nesse sentido, que a adesão dos profissionais é condição para que haja sucesso no processo de implantação do SCNS.

4. O SCNS pressupõe implantar, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), o Terminal de Atendimento do SUS (TAS), na recepção e/ou em suas unidades de produção. Nesses lugares, é feito o registro eletrônico de

dados pelo profissional de saúde, sendo o médico aquele que mais faz esses registros no TAS, pelo fato de a consulta médica gerar um grande volume de informações, tanto aquelas referentes à produção quanto à morbidade. Além desses dados, são registradas as prescrições de medicamentos e exames, bem como os encaminhamentos.

5. O desenvolvimento do software que opera no SCNS, devido à complexidade própria do SUS e à falta de padronização dos sistemas de informações atuais, acarretou divergências em muitas tabelas necessárias para a operação do sistema, o que ocasionou muitas dificuldades em relação a esse tema. Percebe-se que, além disso, há um processo necessário de maturação do sistema até que o mesmo se mostre apto ao uso.

6. O primeiro impacto verificado no ambiente de trabalho, com a implantação do SCNS, diz respeito ao padrão funcional dos profissionais. Estes passam a operar um sistema informatizado, exigindo-lhes novos conhecimentos e habilidades para tal. Isso requer uma reflexão sobre a formação dos recursos humanos, a normatização da sua prática quando ao uso de equipamentos de informática e manipulação das informações e, finalmente, o cuidado em relação à ergonomia, prevendo, desde já, impactos na saúde do trabalhador com o uso desse novo equipamento.

7. Outra questão importante em relação ao uso do TAS para os registros de dados de produção diz respeito ao fato de que a anotação eletrônica traz, em si, a virtualização do dado, ou seja, na medida em que ele é registrado no equipamento e, em seguida, transmitido, ele passa a existir em outro lugar, não territorializado. Esse dado, para ganhar materialidade e uso, precisa ser novamente territorializado, o que acontece quando ele é extraído do servidor ou mesmo do TAS, através de relatórios. Para esta conclusão, baseamo-nos nos estudos de Pierre Lévy, que afirma que o virtual não se opõe ao real, sendo algo que existe e que deve ser atualizado, territorializado.

8. Através da emissão de relatórios do SCNS, feita pelo servidor municipal, e de sua comparação com o Boletim de Produção Ambulatorial

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(BPA), verificou-se que o SCNS é eficaz no que se propõe, ou seja, registro, transmissão, armazenagem de dados e emissão de relatórios de informações em saúde.

9. A atividade de registro eletrônico de dados é mais eficaz na medida em que o sistema tem uma interface “amigável” com o seu usuário, no caso, o profissional de saúde. Isso se comprovou no caso estudado, quando houve uma mudança no software, sendo verificado, em seguida, um aumento significativo de anotação de dados no TAS.

10. A eficácia do SCNS como instrumento do sistema de informações em saúde, por si só, não garante que esse vá operar de forma satisfatória. A gestão do serviço de saúde precisa estar organizada para o uso das informações geradas pelo mesmo. Portanto, a um bom instrumental é necessário estar associada uma boa gestão das informações, sem a qual aquele instrumento pode ficar subutilizado, não satisfazendo as expectativas geradas com sua implantação.

11. Contribui para otimizar o uso do sistema de informações e, no caso, o instrumental usado pelo SCNS, o controle social da informação, ou seja, o controle e uso por aqueles que as produziram, os próprios trabalhadores da saúde. Associado a isso, Vasconcellos et al. (2002) sugere uma ampla participação, além dos produtores das informações, da sociedade civil e sociedades científicas, para a gestão colegiada de sistemas de informações.

12. O SCNS, depois de implantado, não altera o fluxo assistencial do usuário no serviço de saúde. A lógica do fluxo é o modelo assistencial vigente, no qual o sistema não opera mudanças.

13. O Sistema Cartão Nacional de Saúde possibilita às esferas gestoras superiores do SUS (G) controlarem outros níveis de governo (g), através do sistema de informações operado pelo SCNS. Isso se verifica tanto no controle do gestor federal sobre os gestores municipais, quanto destes em relação às gerências locais dos serviços de saúde. Isso porque as informações transitam quase “on line”, trazendo a possibilidade de se extrair, do servidor, informações que refletem

sobre os serviços e as ações dos profissionais, como, por exemplo, assiduidade e resultados das ações assistenciais.

14. No plano da gestão, notamos que o SCNS possibilita maior controle sobre os microprocessos decisórios do médico e dos demais trabalhadores da saúde, porque revela para o gestor aspectos administrativos do seu processo de trabalho. Há, pelo SCNS, a possibilidade de captura de dados referentes a horários de atendimento, à identificação dos usuários que o profissional assistiu, ao nível de prescrição utilizado tanto para medicamentos quanto para exames e, ainda, aos encaminhamentos adotados pelo mesmo.

15. No interior da Unidade de Saúde, o SCNS opera em uma determinada “linha do cuidado”, no entanto, não impacta o modo de produção da assistência. Isso requer intervenção em outras esferas da produção da saúde, notadamente, no modelo tecnoassistencial. Para isso, seria necessário operar uma grande mudança nos processos de tecnologias de trabalho, o que o SCNS, pelo observado neste estudo, não faz.

16. Um importante analisador usado no estudo para verificar se há impacto no modelo assistencial foi a Composição Técnica do Trabalho (CTT). Verifica-se que o SCNS não influencia na CTT, pois a razão entre o Trabalho Morto e o Trabalho Vivo, presentes no processo de trabalho de uma dada linha de produção do cuidado, é determinada pelo protagonismo dos sujeitos dispostos nesse lugar e pelo modo como operam seu trabalho, algo que foge à determinação do SCNS, que não opera sobre o núcleo tecnológico de produção do cuidado.

17. Podemos inferir que a produção do cuidado e o SCNS operam em dimensões diferentes - um está inserido no plano da produção, o outro no do registro e controle - e, embora conectados em uma dobra do sistema de saúde, a seqüência de atos que assistem e cuidam da pessoa coloca-se em um lugar diferente da seqüência de atos que registram e transmitem dados.

18. Finalmente, verificamos com este estudo, que o SCNS funciona como uma ferramenta do sistema de informações, não operando mudanças na CTT e, por conseqüência, não influi na dimensão do

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modelo tecnoassistencial. Esta está ligada a outros determinantes, referenciados nos processos de tecnologias de trabalho, intencionalidades e protagonismos dos diversos atores implicados com a produção do cuidado, especialmente os que se colocam no espaço micropolítico, suas apostas e pactos, através dos quais resultam certas modalidades de saber-fazer e modos diferentes de atuar sobre o mundo da assistência à saúde.

ANEXO I

QUADRO 4.Relatórios do SCNS, originalmente concebidos pelo Projeto e emitidos, em novembro de 2002, a partir do banco de dados do servidor municipal de São José dos Campos.

Relatórios Descrição do Relatório Finalidade

CID por Atendimento. (sugere-se mudar o nome para: Distribuição percentual de diagnóstico em relação ao total de diagnósticos realizados).

Distribuição percentual de diagnóstico, com distribuição percentual em relação ao total de diagnósticos realizados.

Acompanhar o perfil da morbidade ambulatorial, subsidiando o planejamento das ações de assistência à saúde.

Procedimento por Atendimento. (sugere-se mudar o título do relatório, acrescentando a palavra “realizado” após atendimento).

Apresenta a quantidade, a distribuição percentual e a descrição do (s) Procedimentos(s) realizado(s) em cada atendimento.

Monitorar a oferta de procedimentos e freqüência em que os mesmos são realizados em cada EAS e no município.

Encaminhamentos por atendimentos. (sugere-se alterar o nome do relatório para: Tipo de saída por atendimento realizado).

Apresenta a distribuição percentual por tipo de saída resultante dos atendimentos realizados.

Acompanhar a referência e contra-referência resultante dos atendimentos e inferir a resolubilidade dos mesmos.

Medicamentos por Atendimentos. Distribuição percentual de medicamentos prescritos em relação ao total de atendimentos.

Monitorar a prescrição de medicamentos.

Medicamentos prescritos sobre total de prescrições.(sugere-se alterar o nome do relatório para: Distribuição percentual por tipo de medicamento prescrito).

Apresenta a distribuição percentual de cada medicamento prescrito em relação ao total de prescrições realizadas.

Monitorar a oferta de medicamentos e freqüência em que os mesmos são prescritos na rede de assistência à saúde do município.

Medicamento por Procedimento realizado. (sugere-se mudar o nome para: Distribuição percentual de medicamento prescrito por tipo de atendimento realizado).

Apresenta a distribuição percentual de medicamentos para cada tipo de atendimento realizado.

Monitorar o perfil de prescrição por tipo de atendimento realizado.

Cobertura total municipal. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações excessivamente genéricas).

Apresenta n.º de pessoas atendidas em cada 1.000 habitantes

Monitorar o número de pessoas atendidas em relação à pop. Total do município.

Residentes municipais. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações excessivamente genéricas).

Apresenta n.º de pessoas atendidas em cada 1.000 habitantes do município.

Acompanhar o número de pessoas atendidas em relação à população total do município.

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Residentes Estaduais. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações excessivamente genéricas).

Apresenta n.º de pessoas atendidas em cada 1.000 habitantes do estado.

Acompanhar o número de pessoas atendidas em relação à população total do estado.

Pessoas atendidas, residentes e não residentes.(sugere-se o nome: Distribuição percentual de atendimentos realizados para pessoas residentes e não residentes no município).

Apresenta a distribuição percentual de atendimentos realizados às pessoas residentes e não residentes no município em que o atendimento foi realizado.

Monitorar o percentual de atendimentos realizados para pessoas residentes ou não, no município que realizou o atendimento.

Cobertura Total Estadual. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações excessivamente genéricas).

Apresenta n.º de pessoas atendidas por cada 1.000 residentes no estado.

Acompanhar o número de pessoas atendidas em relação à população total do país.

Cobertura Total Federal. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações excessivamente genéricas).

Apresenta n.º de pessoas atendidas em cada 1.000 habitantes do país.

Pessoas atendidas por procedência. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque traz informações inconsistentes).

Apresenta a quantidade de pessoas atendidas, por procedência em relação ao EAS e/ou outro município.

Monitora o atendimento por EAS e/ou município de procedência, em relação àquele onde se realizou o atendimento.

Indicador de Atendimentos por Profissional. (sugere-se EXCLUIR este relatório, é inútil).

O relatório não apresenta os dados indicados no seu título. Apresenta um indicador, não bem explicitado, por EAS.

Pessoas atendidas por profissional. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inútil).

Apresenta a relação entre o número de pessoas atendidas no EAS e o número de profissionais que trabalham no mesmo EAS.

Monitora a relação pessoas atendias X número de profissionais do EAS.

Ocorrência de CID. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inconsistente).

Apresenta a distribuição percentual de diagnósticos, em relação aos atendimentos realizados.

Monitorar a ocorrência de diagnósticos, em relação aos atendimentos realizados.

CID Secundário sobre CID Principal. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inconsistente).

Apresenta a ocorrência de associação de dois diagnósticos no mesmo usuário, indicados pelo código CID.

Permite saber a associação de doenças presentes na população.

Procedimento por ocorrência de CID. (sugere-se o nome para: Distribuição de diagnósticos por tipo de procedimento realizado).

Apresenta a ocorrência de diagnósticos por tipo de procedimentos realizados.

Monitorar diagnósticos, em relação às consultas realizadas.

Procedimento por população do Estado. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inconsistente).

Apresenta Procedimentos realizados referenciados na população do estado.

Procedimento por população do município. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inconsistente).

Apresenta Procedimentos realizados referenciados na população do município (por 1.000 hab.)

Monitora os procedimentos realizados em relação à população.

Procedimento por população em nível federal. (sugere-se EXCLUIR este relatório, porque é inconsistente).

Apresenta Procedimentos realizados referenciados na população do país (por 1.000 hab.)

Monitora os procedimentos realizados em relação à população.

Quadro de Medicamentos Prescritos e Dispensação 1– para usuários do próprio estabelecimento assistencial de saúde, EAS. EXCLUIR por impossibilidade de compor o relatório.

Apresenta o tipo e quantidade de medicamentos prescritos no EAS, para seus próprios usuários.

Monitora a freqüência de dispensação de medicamentos realizada aos usuários do EAS, quantitativo entregue e saldo a entregar.

Quadro de Medicamentos Prescritos e Dispensação 2– para usuários de outros EAS do mesmo município. EXCLUIR por impossibilidade de compor o relatório.

Apresenta o tipo e quantidade de medicamentos prescritos aos usuários de outros EAS do mesmo município.

Monitora a freqüência de dispensação de medicamentos realizada aos usuários de outros EAS do município, quantitativo entregue e saldo a entregar.

Quadro de Medicamentos Prescritos e Dispensação 3 – para usuários de outros municípios. EXCLUIR por impossibilidade de compor o relatório.

Apresenta o tipo e quantidade de medicamentos prescritos aos usuários residentes em outros municípios, atendidos na rede SUS deste município.

Monitora a freqüência de dispensação de medicamentos realizada aos usuários de outros municípios, atendidos na rede SUS deste município, quantidade entregue e saldo a entregar.

Quadro de Medicamentos Prescritos e Dispensação 4 – para usuários de outros estados. EXCLUIR por impossibilidade de compor o relatório.

Apresenta o tipo e quantidade de medicamentos prescritos no EAS, para usuários de outros estados.

Monitora a freqüência de dispensação de medicamentos realizada aos usuários de outros estados, atendidos na rede SUS deste município, quantidade dispensada e saldo a entregar.

Perfil dos usuários atendidos – Natureza da Procura e procedência (por município). EXCLUIR por inconsistências.

Apresenta os usuários atendidos no EAS, associados à sua procedência (deste ou de outro município).

Monitora perfil e freqüência de usuários no EAS, por procedência.

Perfil dos usuários atendidos 3- Ação Programática e Procedência. EXCLUIR por inconsistência.

Apresenta os usuários atendidos no EAS, associados à sua procedência (deste ou de outro município) e ação programática.

Monitora perfil e freqüência de usuários no EAS, por procedência e ação programática.

Quadro de diagnóstico 1– De usuários provenientes do próprio EAS. EXCLUIR por inconsistências.

Apresenta descrição do diagnóstico por faixa etária

Monitorar morbidade ambulatorial, por faixa etária e por EAS

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Quadro de diagnóstico – De usuários provenientes do de outros EAS, do próprio município. EXCLUIR por inconsistências.

Apresenta descrição do diagnóstico por faixa etária

Monitorar morbidade ambulatorial, por faixa etária e de outros EAS.

Quadro de diagnóstico – De usuários provenientes de outros municípios. (sugere-se nome para: Distribuição percentual por faixa etária por tipo de diagnóstico).

Apresenta distribuição do diagnóstico por faixa etária

Monitorar diagnóstico por faixa etária de outros municípios.

Quadro de diagnóstico – De usuários provenientes de outros estados. EXCLUIR, porque a referência ao município já contempla.

Apresenta descrição do diagnóstico por faixa etária

Monitorar morbidade ambulatorial, por faixa etária e por outros estados.

Destinação de usuários depois do atendimento por EAS. Sugere-se nome para: Distribuição percentual por tipo de saída de atendimento.

Apresenta a referência realizada para o usuário, após atendimento no EAS

Monitorar referência e contra-referência na rede assistencial e inferir sobre o grau de resolubilidade.

Relatório de Atendimento 1 – Procedimento realizados e solicitados por usuários do EAS. Sugere-se nome: “Distribuição percentual de procedimentos selecionados por faixa etária”. (ex. Odontologia).

Apresenta percentual de Procedimentos realizados aos usuários.

Monitorar a freqüência de solicitações e realização de procedimentos.

Relatório de Atendimento – Procedimentos realizados e solicitados por usuários de outros EAS do município. EXCLUIR, por impossibilidade de compor o relatório. Obs.: não há como identificar a procedência do usuário por EAS.)

Apresenta todos Procedimentos realizados e solicitados aos usuários de outros EAS que são freqüentes neste.

Monitorara a freqüência de solicitações de procedimento no município, por EAS.

Relatório de Atendimento – Procedimento realizados e solicitados por usuários de outros municípios. “Distribuição percentual de procedimentos selecionados por faixa etária, a usuários de outros municípios”. (ex. Odontologia).

Apresenta todos Procedimentos realizados e solicitados aos usuários.

Monitorar a freqüência de solicitações de Procedimentos, de outros municípios, realizados nesta rede de assistência.

Relatório de Atendimento – Procedimento realizados e solicitados por usuários de outros estados. EXCLUIR, porque o relatório referente a municípios já contempla.

Apresenta todos Procedimentos realizados e solicitados aos usuários.

Monitorara a freqüência de solicitações de Procedimento, de outros estados realizados nesta rede de assistência.

Perfil dos usuários atendidos 1 - procedência, sexo, idade. EXCLUIR, porque não há como compor o relatório (dada a procedência indisponível) e demais informações só serviram se associadas a outras variáveis, como morbidade, por ex.)

Apresenta os usuários atendidos no município, discriminados por sexo e idade.

Monitorar a freqüência de demanda por atendimento, de acordo com sexo e idade dos usuários.

Relatório de Atendimento por profissional. MANTER com alterações (excluir denominação CID P e CID S, deixando apenas CID’s; retirar as informações de At Programático e Nat Procura).

Deverá apresentar relatório detalhado de atendimento feito por cada profissional do EAS (nome, EAS, data do atendimento, CID, Procedimento).

Monitorar todo atendimento realizado no EAS, por profissional de saúde. Permite compor indicador de produtividade, se associado a dados fornecidos pelo RH.

Relatório de Atendimento por usuário. MANTER com alterações. (Retirar denominação CID P e CID S, retirar campos de Nat Procura e Aç Programática e Raça).

Deverá apresentar relatório detalhado de atendimento feito em cada usuário do EAS (n.º CNS, município residência, data do atendimento, Sexo, idade, Procedimento realizado).

Monitorar todo atendimento realizado no EAS, por usuário.

Relatório de Atendimento por EAS. EXCLUIR, porque o relatório já está contemplado em outra pasta (nível EAS e procedimentos totais).

Apresenta a data do atendimento, natureza da procura, ação programática, CID, CID e Procedimentos.

Monitorar o movimento de assistência à saúde realizado no EAS.

Procedimentos Realizados. EXCLUIR, porque relatório já está contemplado na pasta Procedimentos Totais.

Apresenta os Procedimentos realizados no período.

Monitora a produção de Procedimento.

Procedimentos Realizados Apresenta o total de Procedimentos realizados no período.

Monitora a produção de Procedimentos.

Quadro de medicamentos prescritos e dispensados 1 - p/ usuários do próprio município.

Deverá apresentar o total de medicamentos prescritos e dispensados no município.

Monitorar dispensação de medicamentos em nível municipal, quantidade solicitada e dispensada.

Quadro de medicamentos prescritos e dispensados 2 - p/ usuários de outros municípios

Apresenta o total de medicamentos prescritos no município, para usuários provenientes de outros municípios.

Monitora dispensação de medicamentos em nível municipal, a usuários de outros municípios, quantidade solicitada e dispensada.

Quadro de medicamentos prescritos e dispensados 3 - p/ usuários de outros estados. EXCLUIR porque o relatório de municípios já contempla.

Apresenta o total de medicamentos prescritos no município, para usuários provenientes de outros estados.

Monitora dispensação de medicamentos em nível municipal, a usuários de outros estados, quantidade entregue e saldo a entregar.

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Destinação do usuário depois do atendimento. MANTER com alterações (retirar coluna de “outros estados”).O relatório deve ser desmembrado em 2 sendo 1-apresenta a relação entre saídas de usuários do próprio e outros municípios e 2-apresenta o total de saídas por tipo e sua relação percentual com o total de saídas.

Apresenta a referência realizada para o usuário, após atendimento no EAS. Apresenta o atendimento e outros municípios de procedência do usuário (1) e distribuídas em percentuais de tipo de saída sobre o total das mesmas (2).

Monitora a referência aos usuários, discriminando por município de procedência (1) e o percentual de tipos de saída de atendimento em relação ao seu total (2).

Relatório de atendimento 1 - Procedimento realizados e solicitados para usuários do próprio município

Deverá apresentar o total de procedimentos solicitados e sua relação com os que foram realizados no município.

Monitorar procedimentos realizados em relação aos solicitados, para verificar a relação oferta/demanda.

Relatório de atendimento 2 - Procedimento realizados e solicitados para usuários de outros municípios

Deverá apresentar o total de procedimentos solicitados e sua relação com os que foram realizados no município, procedentes de outro município.

Monitorar procedimentos realizados em relação aos solicitados, para verificar a relação oferta/demanda.

Relatório de atendimento 3 - Procedimento realizados e solicitados para usuários de outros estados. EXCLUIR porque o relatório por municípios já contempla.Quadro diagnóstico 1 - De usuários de outros EAS do próprio município. EXCLUIR porque não é possível compor o relatório com os dados disponíveis (impossível identificar de qual EAS é procedente o usuário).Quadro diagnóstico 2 - De usuários de outros municípios

Deverá apresentar a relação de usuários atendidos, provenientes de outros municípios, discriminados por diagnósticos.

Identificar os diagnósticos presentes na população de outros municípios, freqüentes no município onde se realizou o atendimento.

Quadro diagnóstico 3 - De usuários de outros estados. EXCLUIR porque o relatório por municípios já contempla.Perfil de usuários atendidos 1 - Procedência, sexo e idade. EXCLUIR porque o relatório não tem utilidade se não estiver associado a alguma variável que o vincule ao atendimento (ex.: diagnóstico, natureza da proc.; ação programática, etc.)

Perfil de usuários atendidos 2 - Natureza da Procura e Procedência. MANTER com alterações (retirar coluna de “outros estados”).O relatório deve ser desmembrado em 2 sendo 1-apresenta a relação entre natureza da procura de usuários do próprio e outros municípios e 2-apresenta o total de natureza da procura por tipo e sua relação percentual com o total de saídas.

Apresenta os usuários atendidos no município, associados à natureza da procura e procedência quanto a outros municípios.

Monitora atendimentos no município, em relação à natureza da procura e sua procedência.

Perfil de usuários atendidos 3 - Ação Programática e Procedência. MANTER com alterações (retirar coluna de “outros estados”).O relatório deve ser desmembrado em 2 sendo 1-apresenta a relação entre natureza da procura de usuários do próprio e outros municípios e 2-apresenta o total de natureza da procura por tipo e sua relação percentual com o total de saídas.

Apresenta os usuários atendidos no município, associados à ação programática e procedência.

Monitora atendimentos no município, em relação à ação programática e sua procedência.

Perfil de usuários atendidos 3 - Ação Programática e Procedência. EXCLUIR, relatório já contemplado.

Apresenta os usuários atendidos no município, associados à ação programática e procedência.

Monitora atendimentos no município, em relação à ação programática e sua procedência.

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Abstract

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Abstract

The Health National Card System (“Sistema Cartão Nacional de Saúde (SCNS)”) is a project developed by the Ministry of Health from Brazil in partnership with the municipal districts. Its aim is similar to a process of having the Health Units computerized, where data are captured following the assistance given and such data are transferred to the superior management levels. Thus, the “SCNS” works as an instrument of a certain health information system.

The problem to be discussed in this study is the verification of what is the impact caused by the “SCNS” in the work processes which arouses changes for health in a model that provides assistance and technique simultaneously. The focus on the issue is centralized in the micropolitics and the investigation was developed in the field of a Basic Health Unit from the municipal district of São José dos Campos, São Paulo, since it was the first municipal district to implant the “SCNS” and, therefore, provided enough maturation for such observation.

According to the methodology, it was chosen an analytical draw proposed by MERHY (1998) which suggests an assessment of the project in the aspects of organization, policy and production of care. Besides the research into bibliography and documents carried out together with the Ministry of Health and companies working in the project, important informants in the Health Unit were interviewed, a chart with descriptions and reports analysis containing the data registered by workers were applied. Such reports were produced by the municipal server and compared to the Clinical Production Bulletin (“Boletim de Produção Ambulatorial (BPA)”) in the same period of time. It was made a verification in the Hypercom Company’s laboratory in order to control possible variables of software interference in the results.

Considering the theoretical scope of the research, it was mainly discussed the Technical Composition of Work (“Composição Técnica do Trabalho (CTT)”) as the analyzer of health productive processes and, thus, it should reveal the possibility of changing the model that provides assistance and technique simultaneously by the “SCNS”. The “CTT” is defined as being the proportion between dead labor and living

labor, within the work processes. Discussing such proportion it was figured out a Line of Care Production (“Linha de Produção do Cuidado”) which brings the flow’s image made by the user during the process of a certain therapeutic project defined by the professional or the team who is responsible for it. It has been proved that the “CTT” is historical and socially defined and also has as a reference the constitution of the assistance models which are nowadays centered in the procedures production, working through hard and simultaneously soft and hard technologies, centered in dead labor, making a great capture of living labor.

It has been also discussed two concepts related to the production of care. The first one, the one about Productive Restructuring, which presumably presents a new way to organize the health production without necessarily alter the composition of its technological nucleus, in other words, the proportion between dead labor and living labor. The second one, the Technological Health Transition¹, which means a new standard of production of care altering not only the way the productive process is organized, but also inverting the Technical Composition of Work, demonstrating the superiority of the living labor in the work processes which means working with assistance based in directions different from those present in the model “of medical superiority, producer of procedures” since it acts in accordance with users’ needs.

It was realized by the research results that the system works well for the functions of register, processing, transmission and storage data with subsequent reports production containing the required information. The issue stated at this point refers to the health workers acceptance of this new function which means taking electronic notes of data. The system will solely work well whether workers utilize such function fully.

The “SCNS” causes impact in the changes of workers functional standard when includes computers skills and terminals operation as part of their knowledge and practice in health since these are new functions. They refer to the apparatus that builds Human Resources to health and to the issues related to the worker’s ergonomics and health to be analyzed according to the new activities.

Regarding the data electronic register, which are many, the biggest difficulties are in the notes of medical consultation. This occurs because it is exactly where most of the information is, such as nosology, registered through the code of the International Classification of Diseases (“Classificação Internacional de Doenças (CID)”), the procedures, medicines prescriptions, examinations and directions. Furthermore, the

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doctor is under pressure due to the time limit he has for other consultations which can cause a not so good data register or even incomplete notes.

Regarding the policy, it is firstly verified that in the present way of the information system operation, the “SCNS” arises as one more instrument of federal management (G) to control the municipal management (g) and from them to the local levels. Such thing occurs because the system works capturing and transmitting data to the superior management levels with no return and has a systematics of processing problems verified through the information generated in this process.

In the implantation process, there was a great agreement between the Ministry of Health (MS) and the municipal districts of pilot project, assuming that, although the Ministry of Health is responsible for the decisions and regulation of the whole project, for the municipal district is essential to have it done for the resources available and for the concerns about the project’s operation.

In the organization field, it was necessary to mobilize a great amount of hardware resources due to the project’s extension in its pilot phase. These hardware and software resources are all under the Ministry of Health’s control and are supplied and developed by Hypercom Company, concerning the case in study, from São José dos Campos.

The municipal district needs to arrange for the project resources such as telephone lines, electrical energy and appropriate places in the Health Units, to have the terminals and other equipment as well as the room where the municipal server should be kept. Besides that, it will be necessary human resources for the project, especially to operate the municipal server.

Regarding the management, the “SCNS” gives an important contribution which is considered to be its main function linked to the information system of “SUS”. The technological capacity to capture, transmit and process data makes the information system theoretically agile and effective.

In the field of production of care, it was concluded that the “SCNS” has its competence restricted to the information system since it does not make any changes in a model that provides assistance and technique simultaneously. According to the analyzer accepted for this study, the Technical Composition of Work (“Composição Técnica do Trabalho (CTT)”), it has been verified that the “ SCNS” does not alter the proportion between dead labor and living labor in the technological nucleus of production of care. This is the main conclusion of this study.

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