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Tony JUDT. O mal ronda a terra. Um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, pp. 49-82. (Titulo) O mal ronda a terra Um tratado sobre as insatisfações do presente (Tradução) Celso nogueira Capitulo 2

Tony JUDT. O Mal Ronda a Terra

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Tony JUDT. O mal ronda a terra. Um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, pp. 49-82.

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Tony JUDT. O mal ronda a terra. Um tratado

sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2011, pp. 49-82.

(Titulo) O mal ronda a terra

Um tratado sobre as insatisfações do presente

(Tradução) Celso nogueira

Capitulo 2

(Subtítulo) O mundo que perdemos

Todos nós agora sabemos que depois desta guerra não há como voltar a uma sociedade do laissez-faire, pois a guerra é responsável por uma revolução silenciosa, ao preparar o caminho para um novo tipo de ordem planificada.— KARL MANNHEIM , 1943

passado não foi nem tão bom nem tão ruim quanto supomos: foi apenas diferente. Se nos voltarmos para a

nostalgia, jamais enfrentaremos os problemas que surgem no presente — e o mesmo vale se supomos que o mundo atual é melhor em todos os aspectos. O passado é realmente outra praia: não podemos voltar a ele. Contudo, existe algo pior do que idealizar o passado ou apresentá-lo a nós e a nossos filhos como um trem-fantasma: esquecê-lo.

O

Entre as duas guerras mundiais, os americanos, europeus e boa parte do resto do mundo enfrentaram uma série de desastres sem precedentes, todos provocados pelos homens. A

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Primeira Guerra Mundial, a pior e mais destrutiva de que se teve notícia, foi seguida de uma série de epidemias, revoluções, fracasso e fragmentação de países, desvalorização de moedas e desemprego numa escala jamais concebida pelos economistas tradicionais cujas políticas ainda estavam em voga.

Esses desdobramentos precipitaram a queda da maioria das democracias mundiais, que se transformaram em ditaduras autocráticas ou Estados totalitários de partido único de vários tipos, atirando o globo numa Segunda Guerra Mundial ainda mais destrutiva que a anterior. Na Europa, no Oriente Médio, no leste e sudeste da Ásia, os anos entre 1931 e 1945 foram marcados por ocupação, destruição, limpeza étnica, tortura, guerras de extermínio e genocídio deliberado numa escala que seria inimaginável mesmo trinta anos antes.

Em 1942 já parecia razoável temer pela liberdade. Fora das terras anglófonas do Atlântico norte e da Austral ásia, a democracia enfrentava dificuldades. As únicas democracias restantes na Europa continental eram Estados neutros mi-núsculos como a Suécia e a Suíça, que dependiam da boa vontade germânica. Os Estados Unidos acabavam de entrar na guerra. Tudo que damos como certo hoje não somente fora ameaçado, como sofria sérios questionamentos, até mesmo por parte de seus defensores.

Então, pelo jeito, o futuro pertencia às ditaduras? Mesmo após o triunfo dos Aliados em 1945, as preocupações não ces-saram: depressão e fascismo seguiam presentes nas mentes das pessoas. A questão urgente não era como comemorar a magní-fica vitória e voltar à rotina, mas como garantir que a experiên-cia dos anos 1914-1945 jamais se repetiria. Mais do que qual-quer outro, Maynard Keynes dedicou-se a esse desafio.

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O CONSENSO KEYNES LA.NO

Naqueles anos cada um de nós obtinha forças no progresso coletivo e ampliava sua confiança individual graças à confiança coletiva. Talvez, como seres humanos ingratos, não tenhamos percebido então que surfávamos uma onda segura e firme. Mas quem viveu na época da confiança mundial sabe que depois só vieram trevas e retrocessos.

O grande economista inglês (nascido em 1883) cresceu –

STEFANZ ZWEIG

numa Grã-Bretanha estável, próspera e poderosa: um mundo confiante que ele observou de posição privilegiada — primeiro em um cargo influente no Departamento do Tesouro, durante a guerra, e depois como participante das negociações de paz de Versalhes em 1919. O mundo antigo desmoronou, levando consigo países, vidas e riqueza material, além das certezas em que se baseavam a cultura e a classe social de Keynes. Como isso aconteceu? Por que ninguém antecipou a virada? Por que nenhuma autoridade tomou providências eficazes para evitar

que a história se repetisse?Keynes compreensivelmente concentrou a atenção de

seus estudos econômicos no problema da incerteza: em con-traste com as panaceias presunçosas da economia clássica e neoclássica, ele passou a insistir na imprevisibilidade essencial das questões humanas. Sem dúvida há muitas lições a tirar da depressão econômica, repressão fascista e guerras de extermínio. Acima de tudo, porém, parecia a Keynes que a

Pag. 52recém-chegada incerteza na qual homens e mulheres estavam sendo forçados a viver — a incerteza elevada a surtos de pavor coletivo — era a responsável pela corrosáo da confiança e das instituições do liberalismo.

O que, então, deveria ser feito? A exemplo de muitos outros, Keynes tinha familiaridade com os atrativos da au-toridade centralizada e do planejamento abrangente para compensar as inadequações do mercado. O fascismo e o co-munismo compartilhavam o entusiasmo despudorado pela intervenção do Estado. Longe de ser uma deficiência aos olhos da população, esse talvez tenha sido seu grande trunfo: quando perguntavam a estrangeiros o que pensavam de Hitler, muito tempo depois de sua queda, eles respondiam com frequência que o ditador pelo menos acabara com o desemprego. Apesar de seus defeitos, Stalin — costumava-se dizer— evitou a Grande Depressão na União Soviética. Até a piada sobre Mussolini, que obrigara os trens italianos a cumprir o horário, deixava no ar a pergunta: o que há de errado nisso?

Qualquer tentativa de recolocar a democracia em pé— ou de levar a democracia e a liberdade política a países que nunca as conheceram — teria de lidar com a postura dos governos autoritários. A alternativa seria correr o risco de

despertar a nostalgia popular por suas conquistas — reais ou imaginadas. Keynes sabia muito bem que a política econômica fascista nunca teria tido êxito a longo prazo sem guerra, ocupação e exploração. No entanto, se mostrou sensível tanto à necessidade de políticas econômicas anticíclicas que evitassem recessões futuras quanto às virtudes preventivas do “Estado da seguridade social”.

O objetivo desse Estado não era revolucionar as relações sociais, muito menos inaugurar uma era socialista.

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Keynes, como muitos dos responsáveis pela legislação ino-vadora daqueles anos — do britânico Clement Attlee, passando pelo francês Charles de Gaulle, ao próprio Franklin Delano Roosevelt —, era conservador por natureza. Todos os líderes ocidentais da época — senhores mais velhos, sem exceção — haviam nascido no mundo estável tão familiar a Keynes. Todos passaram por reviravoltas traumáticas. Como o herói de O Leopardo, de Giuseppe di Lampedusa, compreendiam muito bem que era preciso mudar para que tudo continuasse igual.

Keynes morreu em 1946, exaurido pelo esforço durante os tempos de guerra. Mas havia demonstrado bem antes que nem o capitalismo nem o liberalismo sobreviveriam muito tempo um sem o outro. Como a experiência entre- guerras revelara claramente a incapacidade dos capitalistas de proteger seus próprios interesses, o Estado liberal teria de fazer isso para eles, gostassem ou não.

Trata-se, portanto, de um paradoxo curioso que o capi-talismo tenha sido salvo — para de fato florescer nas décadas seguintes — graças a mudanças identificadas na época (e desde essa época) com o socialismo. Isso, por sua vez, nos faz

lembrar do quanto as circunstâncias eram desesperadoras. Conservadores inteligentes — como os muitos democratas cristãos que chegaram pela primeira vez ao governo em 1945 — apresentavam poucas objeções ao controle estatal das “altas esferas” da economia, assim como à taxação progressiva da renda, que apoiavam com entusiasmo.

Os debates dos anos logo após a guerra se destacavam pelas características moralizantes. Desemprego (maior pro-blema nos EUA, no Reino Unido e na Bélgica); inflação (grande temor na Europa Central, onde devorara por déca-

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das as economias pessoais); e preços dos produtos agrícolas tão baixos (na Itália e na França) que levaram camponeses a abandonar a terra e entrar em partidos extremistas, por de-sespero: estas não eram apenas questões econômicas, eram consideradas testes da coerência .ética da comunidade por todos, de intelectuais seculares a pensadores religiosos.

O consenso era excepcionalmente amplo. Dos teóricos do New Deal aos do “mercado social” da Alemanha Ocidental, do Partido Trabalhista que ocupava o governo na Grã-Bretanha ao planejamento econômico “indicativo” que orientou a política pública na França (e na Tchecoslová- quia, até o golpe comunista de 1948): todos acreditavam no Estado. Em parte, porque todos temiam as implicações de um retorno aos horrores de um passado recente, e se mostravam dispostos a restringir a liberdade do mercado em nome do interesse público. Assim como o mundo passaria a ser regulamentado e protegido por uma série de instituições e tratados internacionais, da Organização das Nações Unidas ao Banco Mundial, uma democracia bem conduzida consagraria a

tendência de estabelecer consensos em torno de acordos domésticos equivalentes.

Já em 1940 o panfletário trabalhista britânico Evan Dur- bin escrevera que não podia imaginar “a menor alteração” na tendência contemporânea para negociação coletiva, planeja-mento econômico, taxação progressiva e fornecimento de ser-viços públicos sociais subsidiados. Dezesseis anos depois, o político trabalhista Anthony Crosland escreveria, ainda com grande confiança, que ocorrera uma transição permanente da “fé irredutível no individualismo e na autoajuda para a crença na ação e participação em grupo”. Ele chegava a afirmar que “quanto ao dogma da ‘mão invisível’ e à crença de que o lucro

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Privado sempre conduzia ao bem comum, eles não consegui-ram sobreviver à Grande Depressão; até os conservadores e empresários agora endossavam a doutrina do governo coletivo responsável pelo estado da economia”.1

Durbin e Crosland eram ambos social-democratas, e portanto paxtes interessadas. Mas não se equivocaram. Em i

/neados dos anos 1950, a política inglesa atingira tal nível de consenso implícito a respeito das questões de políticas públicas que o argumento predominante recebeu o apelido de “butskellismo”: mistura das ideias de R. A. Butler, ministro conservador moderado, e Hugh Gaitskell, líder centrista da oposição trabalhista do período. O butskellismo era universal. Apesar de suas diferenças, gauilistas franceses, democratas cristãos e socialistas compartilhavam a fé comum no Estado ativo, planejamento econômico e investimento público em

1

larga escala. Isso valia em grande parte para o consenso que dominava a elaboração das políticas na Escandinávia, nos países do Benelux, na Áustria e até na Itália ideologicamente dilacerada.

Até na Alemanha, onde os sociais-democratas insistiram na retórica marxista (quando não na política marxista) até 1959, relativamente pouco os separava dos democratas cristãos do chanceler Konrad Adenauer. Na verdade, foi o (para eles) consenso sufocante em tudo, da educação à política externa, dos investimentos públicos aos equipamentos de lazer — e à interpretação do passado difícil —, que conduziu uma nova geração de radicais alemães para a atividade “extraparlamentar”.

Notas:

Anthony Crosland, The Future of Socialism (O future do socialismo) (Londres: Jonathan Cape, 1956), p. 105, 65.

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Mesmo nos Estados Unidos, onde os republicanos exerceram o poder durante os anos 1950, deixando os vete-ranos do New Deal na oposição pela primeira vez em sua geração, a transição para governos conservadores — embora tenha tido consequências significativas na política externa e na liberdade de expressão! — pouca diferença fez em termos de política interna. Impostos não eram um tema polêmico, e foi um presidente republicano, Dwight Eisenhower, quem autorizou um projeto abrangente para o sistema de rodovias interestaduais, supervisionado pelo governo federal. Apesar

dos elogios retóricos ao mercado livre e à competição, a eco-nomia americana naqueles anos dependia em larga medida da proteção contra a competição estrangeira, assim como de padronização, regulamentação, subsídios, política de preços e garantias governamentais.

As desigualdades inatas do capitalismo foram suavizadas pela certeza do bem-estar atual e da prosperidade futura. Em meados dos anos 1960, Lyndon Johnson conseguiu aprovar uma série de mudanças sociais e culturais inovadoras; conseguiu fazer, em parte, por causa do consenso residual que favorecia investimentos no estilo New Deal, programas de inclusão e iniciativas governamentais. Vale ressaltar que foram os direitos civis e a legislação racial que dividiram o país, e não a política social.

Os anos 1945-1975 foram considerados quase mila-grosos, na opinião da maioria, dando origem ao “American way of life”. Duas gerações de americanos — homens e mu-lheres que passaram pela Segunda Guerra Mundial e seus filhos, que celebrariam os anos 1960 — desfrutaram de se-gurança no trabalho e ascensão social numa escala sem precedentes (e que jamais se repetiria). Na Alemanha, o

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Wirtscbaftswunder (milagre econômico) ergueu a nação no intervalo de uma geração, passando da derrota humilhante e de um país em ruínas ao mais rico da Europa. Para a França, aqueles seriam anos famosos sob a rubrica “Les Trente Glorieuses” (sem toque algum de ironia). Na Inglaterra, no ãuge da “era,da abundância”, o primeiro-ministro conservador Harold Macmillan garantiu a seus compatriotas que “as coisas nunca tinham ido tão bem”. Tinha razão.

Em alguns países (sendo os da Escandinávia o caso mais conhecido) o Estado de bem-estar social do pós-guerra foi obra dos sociais-democratas; nos outros — na Grã-Bretanha, por exemplo — o “Estado da seguridade social” representava na prática pouco mais do que uma série de políticas pragmáticas destinadas a atenuar a desvantagem e reduzir os extremos de riqueza e indigência. O resultado geral foi um sucesso notável na redução da desigualdade. Se compararmos a distância entre ricos e pobres, seja medida pelo patrimônio total, seja pela renda anual, vemos que em todos os países da Europa continental, além da Grã-Bretanha e dos EUA, a distância diminuiu significativamente na geração após 1945.

Mais igualdade atraiu outros benefícios. Com o passar do tempo o medo do retorno de políticas extremistas diminuiu. O “Ocidente” entrou numa era pacífica de próspera segurança: uma bolha, talvez, mas uma bolha aconchegante na qual a maioria das pessoas prosperou mais do que poderia sonhar no passado; e tinham bons motivos para confiar antecipadamente no futuro.

Além disso, foram a social-democracia e o Estado de bem-estar social que comprometeram as classes médias pro-fissionais e comerciais com as instituições liberais, na esteira

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da Segunda Guerra Mundial. A questão tem certa importância: o medo e o descontentamento das classes médias deram origem ao fascismo. Vincular as classes médias à democracia novamente era de loqgç a tarefa mais importante que se apresentava aos políticos; do pós-guerra — embora não fosse das- mais fáceis.

Na maioria dos casos isso foi conseguido graças à magia

do “universalismo”. Em vez de vincular os benefícios à renda — caso em que profissionais bem pagos £ comerciantes bem-sucedidos poderiam reclamar com veemência por pagar impostos por serviços sociais que não lhes ofereciam muitas vantagens — ofereceu-se à “classe média” instruída a mesma assistência social e os mesmos serviços públicos destinados aos pobres: educação gratuita, tratamento médico barato ou gratuito, pensões públicas e seguro-desemprego. Como consequência, agora que grande parte das necessidades da vida eram cobertas pelos impostos, a classe média europeia se viu nos anos 1960 com mais recursos disponíveis do que em qualquer outra época desde 1914.

Vale notar que as décadas citadas se destacaram pela combinação única e bem-sucedida de inovação social e con-servadorismo cultural. O próprio Keynes exemplificou o ponto. Homem de formação e gostos impecavelmente elitistas — embora inusitadamente aberto a novas tendências artísticas —, ele captou a importância de levar arte de primeira classe, na forma de teatro e outras formas literárias, ao maior público possível, permitindo que a sociedade britânica superasse suas divisões paralisantes. Graças às iniciativas de Keynes surgiram o Royal Ballet, o Conselho das Artes e outras instituições. Eram disposições inovadoras de fornecer arte pública “sofisticada” — muito parecidas com a BBC

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de lorde Reith, que se comprometera a sofisticar o gosto popular, em vez de ser condescendente com ele.

Para Reith, Keynes ou o ministro francês da Cultura, André Malraux, não havia paternalismo na nova abordagem — não mais do que em relação aos jovens americanos que

trabalharam com Lyndon B. Johnson para fundar a Corpo- ítation for Public Broadcasting ou o National Endowment for the Humanities. Isso era “meritocracia”: a abertura das instituições da elite para os candidatos vindos do povo, com verbas públicas, ou pelo menos com apoio público. Iniciou- -se o processo de substituir herança ou fortuna pela mobilidade social por meio da educação. Assim, produziu-se em poucos anos uma geração para a qual tudo isso parecia natural, e que contava com essas conquistas.

Nada havia de inevitável nessas iniciativas. Guerras são normalmente seguidas por crises econômicas — quanto maior a guerra, maior a depressão. Quem não temia o ressurgimento do fascismo olhava para o leste com ansiedade, vendo as centenas de divisões do Exército Vermelho, os partidos comunistas poderosos e populares e os sindicatos na Itália, França e Bélgica. Quando o secretário de Estado dos EUA, George Marshall, visitou a Europa na primavera de 1947, assustou-se com o que viu: o Plano Marshall surgiu do temor de que as consequências da Segunda Guerra Mundial fossem ainda mais terríveis do que as de sua predecessora.

Quanto aos EUA, estavam profundamente divididos nos primeiros anos do pós-guerra pela renascente suspeita em relação aos estrangeiros, aos radicais e acima de tudo aos comunistas. O macarthismo pode não ter sido uma ameaça à república, mas não deixava de ser um lembrete de como era fácil para um demagogo medíocre explorar o medo e

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exagerar o teor das ameaças. O que ele poderia ter feito se a economia descesse ao ponto baixo de vinte anos antes? Em resumo, e apesar do consenso que começava a emergir, tudo

parecia meio inesperado. Então como funcionou tão bem?

(SUBTÍTULO) O MERCADO REGULAMENTADO

A ideia é essencialmente repulsiva de uma sociedade estruturada apenas pelas relações e sentimentos suscitados pelo interesse pecuniário.

— JOHN STUART M ILL

A resposta concisa é que em 1945 pouca gente ainda acreditava na magia do mercado. O que era uma revolução intelectual. A economia clássica delegava um papel pequeno para o Estado na elaboração da política econômica, e o etos liberal predominante na Europa e na América do Norte durante o século XIX favorecia a legislação social não intervencionista, confinada em sua maior parte a regular apenas as desigualdades mais gritantes e os perigos do industrialismo competitivo e da especulação financeira.

Mas as duas guerras mundiais habituaram quase todos à inevitabilidade da intervenção governamental na vida co-tidiana. Na Primeira Guerra Mundial a maioria dos países participantes ampliara o controle (até então insignificante) da produção: não só de material bélico, mas também de roupas, transporte, comunicações e quase tudo que se considerasse relevante para a condução de uma guerra dispendiosa e perigosa. Na maioria dos lugares esses controles fo-

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ram suspensos depois de 1918, mas restou um resíduo significativo do envolvimento governamental na regula-mentação da vida econômica.

Depois de uma era curta e ilusória de recuo (sintoma-ticamente marcada pela eleição de Calvin Coolidge nos Es-tados Unidos, e por tipos tão negligentes quanto ele na Europa Ocidental), a absoluta devastação da queda da bolsa em í 929 e a depressão que se seguiu forçaram todos os governos a escolher entre a reticência ineficaz e a intervenção aberta. Mais cedo ou mais tarde, todos optariam pela última.

O que restava do Estado do laissez-faire foi então apa-gado pela experiência da guerra total. Sem exceção, vencedo-res e derrotados na Segunda Guerra Mundial comprometeram não apenas o país, a economia e cada um dos cidadãos nas atividades bélicas; também mobilizaram o Estado para este propósito de um modo que teria sido inconcebível trinta anos antes. Independentemente de matizes ideológicos, os países combatentes mobilizaram, regulamentaram, dirigiram, planejaram e administraram todos os aspectos da vida.

Até nos Estados Unidos, o emprego e o salário de um cidadão, as coisas que ele desejava adquirir e os lugares que visitava foram todos controlados de um modo que teria horrorizado os americanos poucos anos antes. O New Deal, cujos organismos e instituições chocaram pelas inovações, poderia ser visto como o prelúdio à empreitada de mobilizar o país inteiro em torno de um projeto coletivo.

A guerra, em resumo, concentrava a mente. Provara a possibilidade de converter um país inteiro numa máquina de guerra, a partir de uma economia de guerra; por que, então, as pessoas perguntavam, algo similar não poderia ser

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na busca da paz? Não havia resposta convincente. Sem que alguém realmente tivesse essa intenção, a Europa Ocidental e a América do Norte entraram numa nova era.

O sintoma mais óbvio da mudança recebeu o nome de “planejamento”. Em vez de deixar que tudo simplesmente acontecesse,, concluíram! eco no mistas e burocratas, era me-lhor pensar com antecedência. Previsivelmente, o planejamento era mais admirado e defendido pelos extremos políticos. Na esquerda se pensava que o planejamento era aquilo que os soviéticos faziam tão bem; a direita acreditava (corretamente) que Hitler, Mussolini e seus seguidores fascistas estavam comprometidos com um planejamento abrangente, e que isso explicava a atração que exerciam.

A defesa dos intelectuais pelo planejamento nunca foi muito forte. Keynes, como já vimos, considerava o planeja-mento econômico quase da mesma maneira como via a teoria do mercado puro: para dar certo, os dois exigiam dados perfeitos, algo impossível. Mas ele aceitou, ao menos no período da guerra, a necessidade de planejamento e controle a curto prazo. Para a paz do pós-guerra, ele preferiu minimizar a intervenção governamental direta, e manipular a economia por meio de incentivos fiscais e outros instrumentos. Mas, para que o esquema funcionasse, os governos precisavam saber o que pretendiam alcançar, e, aos olhos de seus defensores, “planejamento” era isso.

Curiosamente, o entusiasmo pelo planejamento foi es-pecialmente marcante nos Estados Unidos. A Tennessee Valley Authority foi um exercício em projetos econômicos confiantes:

não apenas de um recurso vital, mas da economia de uma região inteira. Observadores como Louis Mumford se declararam “no direito de um pouco de osten-

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tação e júbilo coletivos”: a TVA e projetos similares mostra-ram que as democracias deveriam acompanhar as ditaduras no que dizia respeito a esquemas de larga escala, de longo prazo e com vistas para o futuro. Poucos anos antes, Rexford Tugwell chegara ao ponto de elogiar a ideia: “Já vejo o grande plano.../ E a pura alegria do trabalho será minha/ Vou erguer as mangas — tornar/ a América maior.”2

A diferença entre economia planejada e economia con-trolada pelo Estado ainda era confusa para muitos. Liberais como Keynes, William Beveridge ou Jean Monnet, inspirador do planejamento francês, não tinham tempo para na-cionalizações enquanto objetivo em si, embora se mostrassem flexíveis a respeito de suas vantagens práticas em casos particulares. O mesmo vale para os sociais-democratas es-candinavos: interessavam-se muito mais pela taxação pro-gressiva e pelo fornecimento de serviços sociais universais e abrangentes do que pelo controle estatal das principais in-dústrias — fabricação de automóveis, por exemplo.

Os trabalhistas britânicos, por sua vez, apaixonaram-se pelo conceito de propriedade pública. Se o Estado representava a população trabalhadora, então com certeza uma operação controlada pelo Estado estava nas mãos e à disposição dos trabalhadores, certo? Fosse ou não verdade na prática — a história da British Steel sugere que o Estado pode

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ser tão incompetente e ineficiente quanto o pior empresário privado —, servia para distrair a atenção de qualquer tipo de planejamento, com consequências nefastas para as décadas-

Notas:

Robert Leighninger, Long-Range Public Investment: The Forgotten Legacy of the New Deal (Investimento público de longo alcance: o legado esquecido do New Deal) (Columbia, SC: University of South Carolina Press, 2007), p. 117, 169.

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posteriores. No outro extremo, o planejamento comunista — que mal passava da formulação de objetivos fictícios que seriam alcançados com dados fictícios — acabaria por desacreditar a atividade como um todo.

Na Europa continental os governos centralizadores de-sempenhavam tradicionalmente um papel mais ativo no fornecimento de serviços sociais, e continuaram a fazer isso em escala muito mais ampla. O mercado, acreditava-se, era inadequado para a tarefa de definir objetivos coletivos: o Estado precisava interferir para preencher a lacuna. Mesmo nos EUA, onde o Estado — o “Governo” — evitava sempre ultrapassar limites tradicionais, tudo, desde a lei dos ex- -combatentes até a educação científica da geração vindoura, foi iniciado e pago por Washington.

Nesse caso, também assumia-se simplesmente que havia

metas e benefícios públicos para os quais o mercado não estava preparado. Nas palavras de T. H. Marshall, importante comentarista do Estado de bem-estar social britânico, o ponto central do “bem-estar” era “preencher o lugar do mercado, retirando dele produtos e serviços, ou controlar e modificar de algum modo sua operação, de maneira a produzir um resultado que o mercado não provocaria por si só”.3

Até na Alemanha Ocidental, onde havia uma com-preensível relutância em aceitar um controle centralizado ao estilo nazista, os “teóricos do mercado social” procuraram um meio-termo. Insistiam que a liberdade do mercado era compatível com metas sociais e legislação previdenciária: na

Notas:

Neil Gilbert, The Transformation of the Welfare State: The Silent Surrender of Public Responsibility (A transformação do Estado de bem-estar social: a silenciosa renúncia da responsabilidade pública) (Nova York: Oxford University Press, 2004), p. 135.

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verdade, o mercado funcionaria melhor se fosse encorajado a atuar com esses objetivos em mente. Por isso a legislação, grande parte dela ainda em vigor, exigindo que companhias e bancos públicos tivessem uma visão ampla, levassem em consideração os interesses dos empregados e ficassem atentos às consequências sociais do empreendimento, mesmo

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buscando lucros.Naquela época não se levava a sério a possibilidade de o

Estado extrapolar suas atribuições, prejudicando o mercado pela distorção de suas operações. De instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial (e mais tarde também a Organização Mundial de Comércio) a câmaras de compensação internacionais, controle monetário, restrições salariais e indicadores de limite de preços, a ênfase recaía na necessidade de compensar as evidentes deficiências dos mercados.

Pela mesma razão, o aumento de impostos não era considerado uma afronta, naquele tempo. Pelo contrário, taxas maiores para o imposto de renda progressivo eram tidas como recurso consensual para

retirar o excesso de recursos dos privilegiados e improdutivos, transferindo-os para quem deles precisava ou poderia usá-los melhor. Essa não era uma ideia nova. O imposto de renda havia sido implantado na maioria dos países europeus bem antes da Primeira Guerra Mundial, e continuou aumentando entre as guerras em muitos lugares. Mesmo assim, até 1925 muitas famílias de classe média podiam manter um, dois ou mais empregados — que com frequência moravam na residência.

Em 1950, porém, só a aristocracia e os nouveaux riches conseguiam manter esse esquema doméstico: graças aos im-postos de renda e de transmissão, do aumento de emprego

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e dos salários para a população mais pobre, a disponibilidade

de empregados domésticos miseráveis e subservientes prati-camente cessou. Graças aos serviços sociais universalmente disponíveis, o grande benefício do serviço doméstico de longo prazo — a suposta generosidade do patrão para com o serviçal docente, idoso incapacitado por algum motivo — tornara-se redundante.

Na população; em geral existia a crença de que a mode-rada distribuição de renda, eliminando extremos de riqueza e pobreza, funcionava em benefício de todos. Condorcet observou com sabedoria que “sempre sairá mais barato para o Tesouro colocar o pobre em condições de comprar milho do que baixar o preço do milho até que chegue ao alcance do pobre”.4 Em 1960, essa tese se tornara uma política go-vernamental de fato por todo o Ocidente.

Uma ou duas gerações depois essas atitudes realmente devem parecer curiosas. Nas três décadas seguintes à guerra, os economistas, políticos, analistas e cidadãos concordaram que os gastos públicos volumosos, administrados por autoridades nacionais ou locais, com considerável margem para regulamentar a vida econômica em vários níveis, era uma boa política. Vozes discordantes eram consideradas resquícios pitorescos de um passado esquecido — ideólogos fanáticos por teoremas fantasiosos — ou defesa de interesses privados que se colocavam acima do bem-estar público

Notas: * Marquês de Condorcet, “Réflexions sur le

commerce des blés” (Reflexões sobre o comércio de trigo) (1776), em Oeuvres de Cordorcet (Obras de Condorcet) (Paris: Eirmin Didot, 1847-1849), p. 231. Citado em Emma Rothschild, Economie Sentiments: Adam Smith, Condorcet

4.

and the Enlightenment (Sentimentos econômicos: Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo) (Cambridge: Harvard University Press, 2002), p. 78.

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O mercado tinha seu lugar, o Estado garantia um papel central na vida das pessoas, e os serviços sociais tinham prioridade sobre outras despesas do governo — exceto, parcialmente, no caso americano, no qual os gastos militares continuavam crescendo mais.

Como isso aconteceu? Mesmo admitindo que as metas f práticas coletivas fossem em princípio admiráveis, hoje em dia elas seriam consideradas ineficazes — em razáo do desvio de fundos privados para objetivos públicos — e de todo modo perigosas, passíveis de se tornarem instrumentos econômicos e sociais de “burocratas”, “políticos” e “governo central”. Por que nossos pais e avós se preocupavam tão pouco com essas considerações? Por que prontamente se dispuseram a conceder a iniciativa ao setor público, e entregaram a riqueza particular para alcançar metas coletivas?

(SUBTÍTULO) COMUNIDADE, CONFIANÇA E OBJETIVO COMUM

Sentir muito pelos outros e pouco por si; conter o egoísmo e exercitar os afetos benevolentes constituem a perfeição da natureza humana.

— ADAM SMITH

Todos os empreendimentos coletivos exigem confiança.Das brincadeiras infantis às instituições sociais mais

complexas, os humanos não conseguem atuar juntos a não ser suspendendo a desconfiança que sentem uns pelos outros.

Uma pessoa bate a corda, a outra pula. Uma pessoa

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segura a escada, a outra sobe. Por quê? Em parte pela espe-rança da reciprocidade, em parte também pela inegável pro-pensão natural de cooperar no trabalho, para o benefício coletivo. ^

A tributação é um exemplo ilustrativo dessa afirmação. Quando pagamos impostos fazemos uma série de suposições sobre nossos concidadãos. Em primeiro lugar, presumimos que eles também pagarão seus impostos, caso contrário seríamos injustamente onerados e com o tempo também nos recusaríamos a contribuir. Em Segundo, confiamos que as pessoas a quem concedemos autoridade temporária sobre a questão arrecadem e gastem o dinheiro com responsabilidade. Afinal de contas, só descobrimos que desviaram ou desperdiçaram o dinheiro depois de termos perdido muito dinheiro.

Em terceiro lugar, impostos em geral se destinam a pa-gar dívidas passadas ou investir em projetos futuros. Portanto, existe uma relação implícita de confiança e reciprocidade entre os contribuintes do passado e beneficiados do presente, ou entre os contribuintes do presente e do passado e futuros beneficiados — além, claro, dos contribuintes futuros que cobrirão o custo de nossas ações atuais. Assim, estamos condenados a confiar em pessoas que não conhecemos no momento, em pessoas que nunca poderíamos conhecer e em pessoas que jamais conheceremos, mantendo com todas elas um complicado relacionamento de interesse mútuo.

O mesmo se aplica aos gastos públicos. Se elevamos os impostos ou criamos uma taxa escolar no bairro onde mo-ramos, há boas chances de os maiores beneficiados serem outras pessoas (e os filhos delas). Isso vale para o investimento público em ferrovias, projetos educacionais e de pes-

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quisa de longo prazo, ciência médica, contribuições previdenciárias e qualquer outro gasto coletivo cujo resultado só aparecerá depois de vários anos. Se funciona assim, por que nos damos ao trabalho de fornecer o dinheiro? Porque outros pagaram no passado, para nosso usufruto, e no geral não pensamos muito no assunto, pois nos vemos como par- i <% uma comunidade cívica que transcende gerações.

Mas quem somos nós”? Em quem confiamos, exata-mente? O filósofo conservador inglês Michael Oakeshott considerava a política dependente de uma definição da co-munidade de confiança: A política e a atividade que atende aos acordos gerais de um grupo de pessoas que, em respeito ao reconhecimento comunitário de um modo de conduzir esses acordos, formam uma comunidade específica.”5 No entanto, trata-se de uma definição circular: que grupo particular de pessoas reconhece um modo comunitário de “conduzir seus acordos”? O mundo inteiro? De jeito nenhum. Poderíamos esperar que um residente de Omaha, em Nebrasca, pagasse de bom grado impostos para construir pontes e rodovias em Kuala Lumpur, a partir do conceito implícito de que seu equivalente malásio faria o mesmo por ele, voluntariamente?

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Não.Então, o que define a abrangência operacional de uma

comunidade de confiança? O cosmopolitismo desarraigado é ótimo para intelectuais, mas a maioria das pessoas habita um lugar definido: pelo espaço, pelo tempo, pela linguagem, tal-vez pela religião ou pela cor — lamentavelmente — e assim por diante. Esses lugares são flexíveis. A maioria dos euro-

Notas : * Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays (Racionalismo em política e outros ensaios) (Nova York: Basic Books, 1962), p. 56.

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peus não se definiria como habitante da “Europa” até recen-temente: diriam que moram em Lodz (Polônia), na Ligúria (Itália) ou mesmo em “Putney” (um subúrbio londrino).

O sentido de ser “europey,”, para propósitos de identi-ficação pessoal, é um hábito reqém-adquirido. Como resul-tado, casos em que a idéia de cooperação transnacional ou assistência mútua teria despertado profundas suspeitas locais hoje passam quase despercebidos. Os estivadores holandeses hoje subsidiam pescadores portugueses <e fazendeiros poloneses sem reclamar; em parte, sem dúvida, isso se deve ao fato de os estivadores em questão não interrogarem seus representantes políticos em detalhe a respeito do uso dos impostos que pagam. Mas não deixa de ser um sinal de confiança.

Existem muitas provas de que as pessoas confiam mais em quem tem muita coisa em comum com elas: não só religião

e idioma, como também a renda. Quanto mais igualitária for uma sociedade, maior a confiança. E não se trata apenas de renda: onde têm vida e expectativas semelhantes, as pessoas costumam compartilhar o que podemos chamar de “perspectiva moral”. Isso torna bem mais fácil instituir mudanças radicais nas políticas públicas. Nas sociedades complexas ou divididas, a tendência é que a minoria — ou mesmo a maioria — seja forçada a fazer concessões, muitas vezes contra sua vontade. Isso torna a elaboração de políticas públicas contenciosa e favorece uma abordagem minimalista da reforma social: melhor não fazer nada do que dividir as pessoas em grupos contra e a favor de um projeto controverso.

A falta de confiança sem dúvida é inimiga de uma so-ciedade bem-governada. A grande Jane Jacobs destacou esse

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fato em relação às próprias questões práticas da vida urbana e à manutenção da civilidade e da higiene nas vias públicas. Se não confiarmos uns nos outros, nossas cidades se tornarão lugares desagradáveis e horrorosos de se viver. Além do mais, ela observou, não se pode institucionalizar a confian-ça. Uma vez corroída, torna-se praticamente impossível de t

restaurar. A confiança exige cuidado e estímulo por parte da comunidade — a coletividade —, pois mesmo com a melhor das intenções ninguém pode fazer com que os outros confiem e recebam confiança em troca.

As sociedades em que vigora a confiança tendem a ser bastante compactas e homogêneas. Os Estados de bem-estar social mais desenvolvidos e bem-sucedidos da Europa são a Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda e Áustria,

com a Alemanha (antiga Alemanha Ocidental) como exceção interessante. A maioria desses países conta com uma população muito pequena: na Escandinávia apenas a Suécia conta com mais de 6 milhões de habitantes, e todos os países juntos possuem uma população menor que a de Tóquio. Mesmo a Áustria, com 8,2 milhões, ou a Holanda, com 16,7 milhões, são pequenas pelos padrões mundiais — Mumbai sozinha tem mais gente do que a Holanda, a população inteira da Áustria caberia na Cidade do México... duas vezes.

Contudo, não se trata apenas da questão do tamanho. Assim como a Nova Zelândia, outro país pequeno (popula-ção de 4,2 milhões, menor até que a da Noruega), que con-seguiu manter um alto nível de confiança cívica, os Estados de bem-estar social bem-sucedidos do norte da Europa são inegavelmente homogêneos. Até recentemente seria um pe-queno exagero dizer que a maioria dos noruegueses, se não

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fossem fazendeiros ou pescadores, era filha deles. A população tem origem norueguesa em 94% dos casos, e 86% pertencem à Igreja da Noruega. Na Áustria, 92% da população declaram origem “austríaca” (o número beirava os 100% até a chegada dos refugiados iugoslavos, durante os anos 1990), e 83% dos que declararam alguma religião em 2001 eram católicos.

Na Finlândia isso vale em larga medida, pois 96% das pessoas que declararam alguma religião são oficialmente lu-teranas (e quase todas finlandesas, exceto por uma pequena minoria sueca); idem na Dinamarca, onde 95% da população seguem a fé luterana; e mesmo na Holanda — dividida entre o

norte essencialmente protestante e o sul católico — quase todos se definem como “holandeses”, com exceção das minorias pós-coloniais de indonésios, turcos, Surinameses e marroquinos.

Comparem com os Estados Unidos: em breve não haverá mais um grupo étnico majoritário, e a ligeira maioria protestante entre os que possuem religião apresenta como contrapartida uma substancial minoria católica (25%), sem falar nas comunidades judaicas e muçulmanas significativas. O Canadá talvez seja um caso intermediário: população de tamanho médio (33 milhões), sem religião dominante, na qual apenas 66% da população se declaram de origem europeia, mas onde a confiança e as instituições sociais que a acompanham fincaram raízes.

Tamanho e homogeneidade não são transferíveis, claro. Não há meio de a índia ou de os EUA se tornarem a Áustria ou a Noruega, e em sua forma mais pura o Estado de bem-estar social da Europa não pode ser exportado: tem um apelo semelhante ao de um Volvo — e limitações pare-

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cidas — que o tornam difícil de aplicar em países e culturas nos quais as caras virtudes da solidez e da perseverança con-tam menos. Sabemos, além disso, que até as cidades funcio-nam melhor quando são razoavelmente homogêneas e limi-tadas: não seria difícil aplicar o socialismo municipal em Viena ou Amsterdã, mas isso exigiria muito mais empenho Ç» em; Nápoles ou no Cairo, para não citar Calcutá e São Paulo.

Finalmente, existem claras evidências de que enquanto a homogeneidade e o tamanho importam para a geração de confiança e cooperação, a heterogeneidade cultural e econômica pode provocar o efeito contrário. Um aumento constante no número de imigrantes, em particular imigrantes do “terceiro mundo”, se estabelece na Holanda e na Dinamarca, assim como na Inglaterra, com notável declínio na coesão social. Para ser franco, os holandeses e ingleses não se importam muito em compartilhar seu Estado de bem-estar social com habitantes das antigas colônias da Indonésia, Suriname, Paquistão ou Uganda; enquanto di-namarqueses, assim como austríacos, se ressentem de “sus-tentar” os refugiados muçulmanos que afluíram a esses pa-íses em anos recentes.

Pode haver algo de inerentemente egoísta nos Estados de bem-estar social de meados do século XX: abençoados por algumas décadas com as vantagens da homogeneidade étnica e de uma população pequena e instruída, na qual todos se reconheciam um no outro. A maioria desses países — Estados-nação autossuficientes, expostos a poucas amea-ças externas — teve a felicidade de se abrigar sob a proteção da OTAN nas décadas posteriores a 1945, concentrando o orçamento no progresso interno, sem os problemas de imi-

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gração em massa vinda do restante da Europa, e muito menos de locais distantes dali. Quando essa situação mudou, a confiança e a segurança parecem ter diminuído.

Contudo, resta o fato de que confiança e cooperação

foram instrumentos fundamentais para a construção do Estado moderno, e que quanto mais confiança havia maior era o sucesso estatal. William Beveridge poderia supor, na Inglaterra de sua época, a existência de um alto padrão de concordância moral e engajamento cívico. Como muitos liberais nascidos no final do século XIX, ele simplesmente tomava como certo o fato de que a coesão social não era apenas um objetivo desejável, mas algo como uma dádiva. A solidariedade — entre os cidadãos e em relação ao Estado — antecedeu as instituições dedicadas ao bem-estar social que lhe deram forma pública.

Até nos Estados Unidos o conceito de confiança e a necessidade de atitudes solidárias tornou-se central no debate público realizado a partir de 1930. Discute-se se a admirável conquista dos EUA, que passou de uma economia de paz quase em coma para a maior máquina de guerra do mundo, não teria sido possível sem a insistência de Roosevelt nos interesses, propósitos e necessidades compartilhados por todos os americanos. Se a Segunda Guerra Mundial foi uma “guerra boa”, isso não se deu apenas graças ao caráter indiscutivelmente pavoroso de nossos inimigos. Também se deu porque os americanos se sentiam bem em relação aos Estados Unidos e a seus compatriotas.

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(SUBTÍTULO) GRANDES SOCIEDADES

Nossa nação defende a democracia e bons drenos.— JOHN BETJEMAN

O que a confiança, a cooperação, a taxação progressiva e o Estado intervencionista legaram às sociedades ocidentais nas décadas seguintes a 1945? A resposta resumida é, em vários graus, segurança, prosperidade, serviços sociais e mais igualdade. Nos últimos anos nos acostumamos com a afirmação de que o preço pago por esses benefícios — em ineficiência econômica, inovação insuficiente, empreendedorismo sufocado, dívida pública e decadência da iniciativa privada — era alto demais.

A maioria dessas críticas é comprovadamente falsa. Considerando a qualidade e quantidade de leis sociais apro-vadas nos Estados Unidos entre 1932 e 1971, o país sem dúvida se encaixa no conceito de “boa sociedade”; entretan-to, poucos alegarão que faltou iniciativa ou empreendedorismo aos Estados Unidos nesses anos intensos e confortáveis do Século Americano. Mas mesmo que fosse verdade que os Estados europeus social-democratas e previdenciários de meados do século XX eram economicamente insustentáveis, isso por si só não invalida as questões para as quais chamaram a nossa atenção.

A social-democracia sempre foi um amálgama político. Para começar, misturou sonhos socialistas de uma utopia pós-capitalista com o reconhecimento pragmático da necessidade de viver e trabalhar num mundo capitalista que indubitavelmente não dava seus últimos suspiros, como

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Marx entusiasmadamente afirmara em 1848. Em segundo lugar, a social-democracia levou a sério a parte da “democra-cia”: em contraste com os socialistas revolucionários do início

do século XX e seus sucessores comunistas, os sociais- -democratas dos países livres aceitaram as regras do jogo democrático' e desde o início negociaram com seus críticos e oponentes, pagando o preço para competir pelo poder.

Ademais, os sociais-democratas não estavam exclusiva-mente, nem principalmente, interessados em economia (em contraste com os comunistas, que sempre enfatizaram a economia como padrão na ortodoxia marxista). O socialismo para os sociais-democratas, principalmente da Escandinávia, era um conceito distributivo. Buscava a garantia de que a riqueza e o patrimônio não se concentrassem de modo desproporcional nas mãos de uns poucos privilegiados. E isso, como vimos, era em essência um problema moral: os sociais-democratas, como os críticos da “sociedade comercial” do século XVIII, se ofendiam com as consequências da competição desregulada. Não buscavam um futuro radical, e sim o retorno aos valores de um estilo de vida melhor.

Portanto, não chega a surpreender que uma pioneira social-democrata inglesa, como Beatrice Webb, considerasse que o “socialismo” que ela buscava pudesse ser analisado como educação pública, fornecimento público de serviços de saúde e previdência, parques e áreas de lazer públicas e suporte coletivo para idosos, enfermos, desempregados e as-sim por diante. A unidade do mundo pré-moderno, sua “economia moral”, nas palavras de E. P. Thompson, existia com clareza em sua mente: as pessoas deviam cooperar, tra-balhar juntas pelo bem comum, e ninguém deveria ficar de fora.

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Os Estados de bem-estar social não eram obrigatoria-mente socialistas na origem ou nos propósitos. Resultaram de uma virada da maré nas questões públicas que ocorreu no Ocidente entre os anos 1930 e 1960, e que levou especialistas e estudiosos, intelectuais e tecnocratas, ao terreno da administração. Os melhores resultados foram o Sistema ( de Seguridade Social americano e o Sistema Nacional de Saúde britânico. Ambos foram inovações extraordinariamente dispendiosas, que romperam com as reformas e re-cauchutagens graduais do passado.

A importância dessas iniciativas previdenciárias não residia nas ideias em si — o conceito de que seria bom ga-rantir a todos os americanos uma velhice segura, ou fornecer a todos os cidadãos britânicos tratamento de saúde de primeira classe sem desembolso no ato do atendimento, não pode ser chamado de original. Mas na noção de que essas atividades seriam realizadas de maneira mais eficiente pelo governo e de que, portanto, deviam ser assumidas pelo governo não tinha precedentes.

A maneira exata como esses recursos e serviços deviam ser oferecidos sempre foi motivo de controvérsia. Universa- listas, influentes na Grã-Bretanha, defendiam impostos altos para todos, que bancariam serviços e recursos aos quais todos teriam igual acesso. Os seletivistas preferiam calibrar custo e benefício conforme a necessidade e a capacidade de cada cidadão. A questão envolvia escolhas práticas, além de refletir teorias sociais e morais arraigadas.

O modelo escandinavo seguia um programa mais se-letivo, embora mais ambicioso: sua meta, articulada pelo influente sociólogo sueco Gunnar Myrdal, era também institucionalizar a responsabilidade do Estado de “proteger

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as pessoas delas mesmas”.6 Nem americanos nem britânicos tinham tamanhas ambições. A ideia de que cabia ao Estado saber o que era adequado para as pessoas— embora aceitemos sem reclamações currículos escolares e práticas hospitalares — soava como eugenia, e até eutanásia.

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Mesmo em seu auge, os Estados de bem-estar social escandinavos deixaram a economia para o setor privado — que pagava taxas altíssimas pelos serviços sociais, culturais e outros. Os suecos, finlandeses, dinamarqueses e noruegueses desfrutavam não a propriedade coletiva, e sim a garantia de proteção coletiva. Com exceção da Finlândia, os escandinavos tinham sistemas privados de pensão — algo que na época pareceria muito estranho aos ingleses ou a grande parte dos americanos. Mas eles contavam com o Estado para quase tudo, e aceitavam livremente a mão pesada da intrusão moral que acompanhava as benesses.

Os Estados de bem-estar social da Europa continental— que os franceses chamam de État providence, ou estado providencial — seguiam um terceiro modelo. No caso, en-fatizando principalmente a proteção do cidadão empregado contra os reveses da economia de mercado. Deve-se notar que o termo “empregado” não é um adjetivo fortuito. Na França, Itália e Alemanha Ocidental a preocupação do Estado de bem-estar social era a manutenção do emprego e da renda em momentos de dificuldade econômica.

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Notas:

Citado por Sheri Berman em The Primacy of Politics: Social Democracy and the Making of Europe’s Twentieth Century (A primazia da política: social-democracia e a construção da Europa do século XX) (Nova York: Cambridge University Press, 2006), p. 207.

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Aos olhos dos americanos e até dos ingleses modernos, tudo isso deve parecer bem peculiar. Por que proteger um homem ou uma mulher da perda do emprego num setor que não mais produz o que as pessoas querem comprar? Com certeza é melhor aceitar a “destruição criativa” do capitalismo e esperar os empregos melhores que surgirão? Contudo, i „da perspectiva europeia continental, as implicações políticas de pôr no olho da rua um número enorme de pessoas em época de incerteza econômica eram muito mais importantes do que a hipotética perda de eficiência pela manutenção de empregos “desnecessários”. Como nas guildas do século XVIII, as uniões sindicais francesas e alemãs aprenderam a proteger os “internos” — homens e mulheres com emprego garantido — contra os “externos”: os jovens, os não qualificados e outros que procuram emprego.

O efeito desse tipo de Estado de proteção social é man-ter a insegurança afastada — ao custo de distorcer o funcio-

namento supostamente neutro do mercado de trabalho. A notável estabilidade das sociedades continentais que enfren-taram sangrentas turbulências e guerras civis poucos anos antes lança uma luz favorável sobre o modelo europeu. Além disso, enquanto as economias britânica e americana foram devastadas pela crise financeira de 2008, que deixou mais de 16% da força de trabalho americana oficialmente desempregados ou sem procurar serviço na época da redação deste livro (fevereiro de 2010), a Alemanha e a França superaram a tempestade com um nível bem menor de sofri-mento humano e exclusão econômica.

Ao proteger “bons” empregos ao preço de falhar na criação de mais postos com baixos salários, a França, a Ale-manha e outros Estados de bem-estar social continentais

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realizaram uma escolha deliberada. Nos EUA e na Grã-Bre-tanha, a partir de 1970, os empregos inseguros com salários baixos passaram a substituir as posições mais estáveis dos anos de crescimento acelerado. Hoje, um jovem pode se considerar felizardo se conseguir emprego pelo salário míni-mo, sem benefícios, em empresas como Pizza Hut, Tesco ou Walmart. Tais oportunidades aparecem com menos facilidade na França ou ha Alemanha. Mas quem pode afirmar, e com que bases exatas, que é melhor trabalhar no Walmart por um salário baixo do que receber seguro-desemprego no modelo europeu? A maior parte das pessoas prefere trabalhar, sem dúvida. A que preço, porém?

As prioridades do Estado tradicional eram defesa, se-

gurança pública, prevenção de epidemias e aversão ao des-contentamento em massa. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial, com seu pico em torno de 1980, os gastos sociais se tornaram a maior responsabilidade orçamentária nos Estados modernos. Em 1988, com a notável exceção dos Estados Unidos, os principais países desenvolvidos destinavam mais recursos a políticas de bem-estar em seu sentido amplo do que a qualquer outro item. De forma bastante compreensível, os impostos subiram acentuadamente nesses anos.

Para quem tem idade suficiente para lembrar o que ocorria antes, a escalada de gastos sociais e provisões previ- denciárias mais parecia um milagre. O falecido Ralf Dahrendorf, cientista político anglo-germânico bem situado para avaliar a escala de mudanças sociais que acompanhou em sua vida, escreveu a respeito dos anos otimistas que “em muitos aspectos o consenso social-democrata representa o maior progresso já testemunhado pela história.

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Nunca antes tantas pessoas tiveram tantas oportunidades na vida”.7

Ele não estava equivocado. Não apenas os governos social-democratas e de bem-estar social mantiveram o pleno emprego durante quase três décadas, como também garantiram taxas de; crescimento mais do que competitivas em relação às economias de mercado desregulamentadas do passado. E na esteira dos sucessos econômicos foram introduzidas mudanças sociais radicalmente alternativas que passaram a ser

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consideradas normais em poucos anos. Quando Lyndon Johnson falou em construir uma “grande sociedade” com base em investimentos públicos maciços numa variedade de programas e agências governamentais, poucos objetaram e menos ainda consideraram a proposta absurda.

No início dos anos 1970 teria sido impensável contem-plar o desmanche dos serviços sociais, provisões previdenciárias, recursos estatais para cultura ou educação e outras iniciativas que as pessoas passaram a considerar garantidas. Com certeza, havia quem apontasse o provável desequilíbrio entre arrecadação e gastos públicos, conforme o custo das aposentadorias e pensões crescia e a geração do baby boom envelhecia. Os custos institucionais de legislar sobre justiça social em tantas esferas da atividade humana eram inevitavelmente consideráveis: acesso a educação superior, a defensoria pública aos impossibilitados e a subsídios culturais para as artes não eram gratuitos. Além disso, conforme o boom do pós-guerra arrefecia e o desemprego endêmico passava

Notas: de impostos dos Estados de bem-estar social pareciam

mais frágeis.Essas questões eram razões legítimas para a preocupação

nos anos descendentes da era da “grande sociedade”. Mas embora respondam, por uma certa perda de confiança por parte da elite administrativa, elas não explicam a radical mudança de atitudes e expectativas que tem marcado nossa época. Uma coisa é temer que um sistema bom não seja capaz de se manter; outra bem diferente é perder completamente a fé nesse sistema.

* Ralf Dahrendorf, “The End of the Social Democratic Consensus ’ (O fim do consenso social-democrata), em Life Chances (Chances de vida) (Chicago: University of Chicago Press, 1979), p. 108-9.

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novamente a ser uma preocupação séria, a base de impostos dos Estados de bem-estar social pareciam mais frágeis.

Essas questões eram razões legítimas para a preocupação nos anos descendentes da era da “grande sociedade”. Mas embora respondam, por uma certa perda de confiança por parte da elite administrativa, elas não explicam a radical mudança de atitudes e expectativas que tem marcado nossa época. Uma coisa é temer que um sistema bom não seja capaz de se manter; outro bem diferente é perder completamente a fé nesse sistema.

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