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Totem e Tabu Giovanna Amanda Presa Introdução O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise do texto Totem e Tabu (1913), conferindo ênfase à discussão acerca da gênese da moralidade e, mais especificamente, à relação estabelecida entre Lei e desejo. Estruturado em quatro partes, que seguem a divisão do texto freudiano, procurou-se articular a leitura do original, a obra de uma comentadora e as anotações feitas durante as aulas da disciplina “Ética da Psicanálise”, ministrada no curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná. I - Horror ao Incesto Freud, ao iniciar seu texto, no primeiro ensaio, discorre sobre os pontos de concordância existentes entre a psicologia das sociedades primitivas, objeto de estudo da antropologia social, e a psicologia dos neuróticos, revelada pela psicanálise. O que o autor afirma é que horror e desejo de incesto são duas faces de uma mesma moeda, e estão presentes em todas as sociedades, tanto nas mais antigas quanto nas modernas. Ao levantar apontamentos sobre a organização da população dos aborígenes, o autor evidencia a existência de um sistema totêmico, que estrutura e fundamenta as relações entre os membros desta tribo. Isentos de uma Instituição religiosa ou social, porém operando sobre outra lógica, a do totemismo, os integrantes desta sociedade se subdividem em grupos menores, denominados clãs, que, por sua vez, são organizados mediante o seu totem. O totem se aplica à espécie de seres ou de coisas que todos os membros de um clã julgam sagrados, podendo ser animais, vegetais, ou a própria divinização representada em uma escultura. Antes de mais nada, trata-se de um símbolo, de um nome, cujo caráter intrínseco determina como as coisas são classificadas, funcionando como uma etiqueta coletiva. Deste modo, todos os descendentes de um mesmo totem são considerados consanguíneos.

Totem e Tabu - Giovanna Amanda Presa

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Totem e Tabu - Giovanna Amanda Presa

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  • Totem e Tabu

    Giovanna Amanda Presa

    Introduo

    O presente trabalho tem por objetivo realizar uma anlise do texto Totem

    e Tabu (1913), conferindo nfase discusso acerca da gnese da moralidade

    e, mais especificamente, relao estabelecida entre Lei e desejo.

    Estruturado em quatro partes, que seguem a diviso do texto freudiano,

    procurou-se articular a leitura do original, a obra de uma comentadora e as

    anotaes feitas durante as aulas da disciplina tica da Psicanlise, ministrada no curso de Psicologia da Universidade Federal do Paran.

    I - Horror ao Incesto

    Freud, ao iniciar seu texto, no primeiro ensaio, discorre sobre os pontos de

    concordncia existentes entre a psicologia das sociedades primitivas, objeto de

    estudo da antropologia social, e a psicologia dos neurticos, revelada pela

    psicanlise. O que o autor afirma que horror e desejo de incesto so duas

    faces de uma mesma moeda, e esto presentes em todas as sociedades, tanto

    nas mais antigas quanto nas modernas.

    Ao levantar apontamentos sobre a organizao da populao dos

    aborgenes, o autor evidencia a existncia de um sistema totmico, que

    estrutura e fundamenta as relaes entre os membros desta tribo. Isentos de

    uma Instituio religiosa ou social, porm operando sobre outra lgica, a do

    totemismo, os integrantes desta sociedade se subdividem em grupos menores,

    denominados cls, que, por sua vez, so organizados mediante o seu totem. O

    totem se aplica espcie de seres ou de coisas que todos os membros de um

    cl julgam sagrados, podendo ser animais, vegetais, ou a prpria divinizao

    representada em uma escultura.

    Antes de mais nada, trata-se de um smbolo, de um nome, cujo carter

    intrnseco determina como as coisas so classificadas, funcionando como uma

    etiqueta coletiva. Deste modo, todos os descendentes de um mesmo totem so

    considerados consanguneos.

  • H, contudo, uma caracterstica do totem, que suscitou a curiosidade e o

    interesse do autor, qual seja, uma lei que probe as relaes sexuais entre

    pessoas do mesmo totem, bem como o casamento entre os mesmos. Esta

    proibio advertida sob prescries rigorosas, cuja violao implica srias

    consequncias para os membros de um grupo, revelando, desse modo, a

    presena tcita da regra da exogamia.

    Note-se que a repulsa e o horror ao incesto, nas sociedades primitivas,

    foram amplamente estudas, de modo que, ao que tudo indica, o matrimnio

    entre os integrantes de um mesmo grupo, em tempos remotos, se concretizava.

    Sendo assim, torna-se evidente e compreensvel o rigor da proibio de

    relaes sexuais entre indivduos de um mesmo totem.

    justamente neste ponto que Freud articula a moral sexual dos povos

    primitivos com a dos povos ditos desenvolvidos, pois em ambas h severas restries s pulses sexuais e, principalmente, no que se refere prtica de

    relaes incestuosas.

    O que Freud inaugura e enfatiza, sobretudo, a relao existente entre esta

    caracterstica de desejo ao incesto e o psiquismo infantil do neurtico. A

    psicanlise nos aponta que a primeira escolha do objeto para amar e desejar

    fundamentada em objetos proibidos, de ordem incestuosa, mas, medida que

    a criana cresce, h a libertao dos desejos incestuosos. Por outro lado, no

    que tange ao psiquismo de um neurtico, so preservados, em certo grau, um

    infantilismo psquico que, ou aparece como inibio, ou como regresso do

    desenvolvimento. Deste modo, depreende-se que as fixaes incestuosas,

    embora reprimidas, desempenham um papel fundador na vida mental

    inconsciente.

    Segundo Freud, chegamos ao ponto de considerar a relao de uma criana com os pais, dominada como por desejos incestuosos, como o

    complexo nuclear das neuroses. (FREUD [1913- 1914], p.15) nesse sentido que Freud compreende a real urgncia dos povos selvagens de se defenderam

    dos desejos incestuosos, pois, em ltima instncia, eles se efetivariam. Para

    tanto, so construdas proibies e restries que comparecem como um tabu.

    Mas, diferentemente das proibies socializadas em nossa sociedade, nas

    tribos primitivas elas comparecem como algo natural, dado e espontneo, sem

    fundamento a priori e sem que haja um sistema rigoroso que contemple e

    declare as interdies e os motivos para a sua existncia. Deste modo, poder-

    se-ia dizer que o tabu auto referente, e se impe por conta prpria, na

    medida em que no submetido a qualquer ordem externa seno a ele mesmo.

  • II O Tabu e a Ambivalncia dos Sentimentos

    Neste segundo ensaio, Freud inicia seu trajeto atravs do registro

    antropolgico para ir, aos poucos, se deslocando para a cena da neurose e,

    somente depois, retorna ao social.

    neste contexto que emerge o estudo do tabu termo de origem polinsia que apresenta significaes antagnicas, a de sagrado e consagrado, por um

    lado, e de inquietante, perigoso e impuro, por outro.

    Freud atribui uma especial importncia ao tabu por duas razes, a saber:

    por sugerir que o mesmo pode se revelar esclarecedor para compreendermos a

    noo do imperativo categrico e, tambm, por perceber a existncia de uma ntima relao entre os tabus primitivos e as proibies e convenes

    morais vigentes em nossa sociedade.

    Porm, faz-se necessrio notar que tabu nos remete idia de proteo e

    preveno contra eventuais aes que representem perigo ou ameaa. Neste

    sentido, a violao de um tabu era, sem dvida, motivo de punio ou castigo,

    o que nos indica que os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu (FREUD [1913- 1914], p.17). Ao transgredir um tabu, a

    pessoa efetora da ao ser relegada a ser o prprio tabu, confirmando que a

    transmissibilidade possvel quando em contato com as pessoas ou coisas,

    carregadas de um poder perigoso. O fato mais estranho parece ser que qualquer um que tenha transgredido uma dessas proibies adquire, ele

    mesmo, a caracterstica de ser proibido como se toda a carga perigosa tivesse sido transferida para ele (FREUD [1913- 1914], p.19). Esta

    caracterstica que reside no tabu de contato permeia, tambm, os neurticos

    obsessivos, na fobia do tocar.

    Da comparao do tabu entendido como interdito que, de to antigo e rigoroso, tornou-se to inquestionvel que sua violao no s acarreta um castigo violento como transforma o infrator em

    tabu com a neurose obsessiva, Freud conclui que, em ambos os casos, a proibio se dirige aos mais intensos desejos do humano, razo pela qual persiste, no inconsciente, a tendncia a

    transgredi-los (KOLTAI, 2010, p. 32).

    Verifica-se, ento, que o castigo prescrito pelo tabu, relativo ao contato

    com o interditado, aparece como um meio de alar o objeto desejado ao

    estatuto de um objeto impossvel. Esta expresso de desejo e, ao mesmo

    tempo, de temor, leva Freud a crer que, assim como os povos primitivos

    sustentam esta atitude ambivalente, no sujeito neurtico esse paradoxo

    tambm coexiste.

  • A evidncia mais marcante da articulao existente entre as proibies

    neurticas e as suscitadas pelo tabu, emerge, pois, da origem no determinada

    e destituda de sentido em ambos os casos. Nas consideraes que Freud tece,

    a origem do tabu aparece como algo imposto, noutra poca, por uma

    autoridade externa e no passvel de demonstrao ou clarificao. O interesse

    do autor orientado verificao de que esses fatores, inerentes ao tabu,

    aparecem e constituem, particularmente, os sintomas e medidas ambivalentes

    da neurose obsessiva; estas ltimas, entendidas como a dominncia de

    tendncias opostas e contraditrias, que encerram a dimenso mais importante

    nos pacientes obsessivos.

    As proibies obsessivas, segundo Freud, esto sujeitas ao deslocamento,

    isto , h um deslocar de um objeto para outro, que, quando eleito, torna-se

    igualmente inacessvel. A justificativa recai, novamente, ao fato de que a

    proibio reflete o desejo e, portanto, ao tentar interditar o desejo - que de

    natureza inconsciente -, tem-se, cada vez mais, a aproximao com ele.

    Visto que h muitos pontos de concordncia existentes entre as prticas do

    tabu e os sintomas neurticos, Freud, de maneira sistemtica, os classifica

    como:

    (1) o ato de faltar s proibies qualquer motivo atribuvel; (2) o fato de serem mantidas por uma

    necessidade interna; (3) o fato de serem facilmente deslocveis e de haver um risco de infeco

    proveniente do proibido; e (4) o fato de criarem injunes para a realizao de atos cerimoniais

    (FREUD [1913- 1914], p.22/23).

    O percurso clnico e o discurso travado no seio da psicanlise revelam que

    um ponto determinante para a imposio da proibio ocorre logo no incio da

    mais tenra infncia, e depois ter como resultado mecanismos repressores que

    envolvem, por exemplo, a perda de memria. O desejo, por outro lado, ainda

    que reprimido, permanece vvido no inconsciente, ecoando e se fazendo

    presente sob a persistncia da proibio.

    Freud retorna as fundamentais proibies, oriundas do tabu, e as descreve

    como as leis bsicas do totemismo: i) no matar o animal totmico e ii) evitar

    relaes sexuais com membros do cl totmico do sexo oposto. A enunciao

    destes dois tabus, para os psicanalistas, parece denunciar o ponto central dos

    desejos da infncia e o ncleo das neuroses.

    possvel, neste presente momento, mencionar que h uma forte

    motivao inconsciente para a ao proibida, originria do prprio tabu, que,

    em si mesmo, possui o poder de transmisso e contgio do interdito, bem

    como a capacidade de produzir a tentao ou mesmo de incentivar a imitao.

    A violao, nesse sentido, traduzida por impulsos conscientes, deve ser

  • vetada, visto que apresenta um perigo real para a convivncia em sociedade.

    justamente por essa razo que os membros de uma comunidade devem estar

    avisados de seus transgressores e se vingarem, para que a sociedade no esteja

    fadada dissoluo.

    A necessidade dessa instncia de interdio enfatizada por Freud, pois

    por meio dela que possvel impedir a satisfao da pulso, incompatvel com

    o socius e, deste modo,preservar o lao social. Somente assim possvel

    manter a ligao durvel e inevitvel do desejo e da lei, razo pela qual o

    corpo social imprime severas proibies, com o intuito de reprimir, organizar

    e canalizar a sexualidade (KOLTAI, p. 31).

    Se, por um lado, a renncia necessria em prol da obedincia que deve

    ser destinada ao tabu, por outro lado, ela tambm compensatria, na medida

    em que impe outra alhures.

    Os seres humanos so extremamente ambivalentes em relao ao tabu, e

    ao realizar uma anlise pormenorizada das relaes contraditrias existentes

    entre os povos primitivos, Freud fundamenta esta constatao.

    No que diz respeito relao dos sditos com seus superiores

    (governantes), possvel identificar os contrastes gritantes que coexistem em

    sua base. Embora o rei seja autorizado a gozar de grandes privilgios,

    enquanto outros no o so, ao governante so endereados certos tabus que

    no so prescritos aos demais viventes. Este dado confere validade

    existncia da ambivalncia, na medida em que, ao mesmo tempo, a expresso

    do mais profundo respeito por eles no passa de um castigo, uma vingana de

    seus sditos. No de se admirar que suas vidas se transformem num

    verdadeiro inferno, acabando por viver uma servido maior do que a de seus

    sditos.

    As analogias que Freud estabelece, nesse segundo captulo, entre os

    selvagens e os neurticos, revelam, fundamentalmente, a presena de

    sentimentos ambivalentes e contraditrios, que ora so hostis, ora so

    afetuosos. Este carter dbio dos impulsos revela que h, simultaneamente,

    satisfao em ambas as experincias, encontradas nestes dois plos que,

    apenas aparentemente, so dissociveis.

    Ao final deste captulo, o autor se aproxima do que mais tarde ir tratar

    sobre natureza e a origem da conscincia moral, compreendida como a

    condenao que o sujeito sente ao agir influenciado por certos desejos. Do

    mesmo modo que o tabu, ela parece tambm ser parida pela ambivalncia

    afetiva, na qual uma parte da oposio permanece inconsciente, atravs de

  • alguns mecanismos psquicos, enquanto a outra se manifesta, explicando,

    assim, o seu carter angustiante.

    Alguns processos psquicos inconscientes se diferem, quanto a sua

    natureza, dos conscientes, desfrutando de certas liberdades negadas aos

    ltimos, tais como o deslocamento e a projeo (mecanismos de defesa), que

    permitem pulso manifestar-se num lugar outro, que no aquele onde surgiu.

    Essa conscincia moral apresenta uma grande afinidade com a angstia, cuja fonte reside no

    inconsciente. O carter angustiante da conscincia moral reside justamente nesse inconsciente,

    nesse desconhecimento das razes que levam ao recalcamento de certos desejos (KOLTAI, 2010,

    p.37).

    Freud nos chama a ateno para o conflito que se estabelece quando uma

    ordem emitida pela conscincia violada, produzindo senso de culpa, cuja

    natureza est intimamente ligada ansiedade:

    (...) se impulsos cheios de desejo forem reprimidos, sua libido se transformar em ansiedade. E isto

    nos faz lembrar que h algo de desconhecido e inconsciente em conexo com a sensao de culpa,

    a saber, as razes para o ato de repdio. O carter de ansiedade que inerente sensao de

    culpa corresponde ao fator desconhecido (FREUD [1913- 1914],p.47/48).

    Para reforar a idia de que por detrs de toda interdio h desejos

    inconscientes ocultos, o autor recorre aos Dez Mandamentos para melhor

    ilustrar esta situao. Ao fazer aluso ao mandamento No matars, ele

    explica que a existncia desse imperativo somente pertinente, na medida em

    que o ser humano carrega inconscientemente o desejo de matar, caso

    contrrio, no haveria necessidade de proibir algo que ningum deseja fazer e

    e uma coisa que proibida com a maior nfase deve ser algo que desejado (FREUD [1913- 1914], p.48).

    Freud lana luz sobre diversas semelhanas encontradas entre o tabu e a

    neurose obsessiva, porm, ele nos alerta de que necessrio lembrar de que o

    tabu uma formao social, gerada no bojo da cultura e, por isso mesmo,

    diferente da neurose, que se caracteriza pela dominao e sobreposio dos

    componentes sexuais aos sociais.

    Versando sobre a transgresso do tabu, provvel que ao sujeito que a

    cometeu sejam incididas algumas punies que, na maioria das vezes,

    aparecem como uma doena grave ou morte. Quando no so acompanhados

    de castigos, a prpria coletividade, inserida no contexto do transgressor, se

    responsabiliza por aplicar as penalidades, visto que se sentem ameaadas e

    temem o tabu de contato. possvel reconhecer neste ponto os desejos

    recalcados no criminoso e naqueles que esto encarregados de vingar a

    sociedade do crime cometido.

  • O contrrio parece surgir, pois, na neurose obsessiva. Aparentemente

    agindo de forma altrusta, o neurtico, ainda que acometido de impulsos de

    transgresso, quando defrontado com a possibilidade de concretizar o ato

    proibido, recua e se detm. A justificava reside no temor que ele sente de que

    algum por quem ele tenha muito apreo sofra as punies em seu lugar.

    Poder-se-ia supor uma inesperada nobreza do neurtico, mas, o que Freud aponta que, assim como o primitivo, ele tambm teme ser castigado por seu

    desejo de morte contra a pessoa que lhe cara. A diferena, contudo, est no

    fato do neurtico recalcar esse desejo, que, por meio de sucessivos

    deslocamentos, se transformou em temor de que a pessoa viesse a falecer.

    O autor conclui, deste modo, o porqu dos fatores sociais desaparecerem

    nos casos de neurose, pois eles reaparecem tamponados, mascarados por uma

    sobrecompensao. O mundo no qual o neurtico se refugia distante do

    mundo real do qual ele foge, justamente porque num mundo imaginrio ele

    no tem que se deparar com uma realidade que no lhe oferece satisfaes.

    Mas, ao se desviar dessa realidade, adotando uma postura antissocial, o

    neurtico destitudo de sua prpria comunidade humana (KOLTAI, 2010).

    III Animismo, Magia e Onipotncia de Pensamentos

    Freud se apia sobre trs grandes concepes de mundo, para engendrar

    seu terceiro ensaio; a saber: a animista (mitolgica), a religiosa e cientfica,

    cultivadas nas obras de Taylor, Spencer, Frazer e Wundt e Marret.

    Os humanos, diante de suas necessidades, criaram suas primeiras

    concepes de mundo em consonncia com seus prprios desejos.

    Inicialmente, na fase animista, atriburam poder a si mesmos e posteriormente,

    na fase religiosa, aos deuses, sem, contudo, abdicar do desejo de influenci-las

    para que agissem conforme seus respectivos desejos humanos.

    O animismo, criado pelo primitivo, concebia o mundo como algo natural,

    regido pela magia, que era considerada uma espcie de fio condutor por meio

    do qual o primitivo pensava que poderia se apoderar do esprito dos homens,

    dos animais e das coisas. Freud, em oposio Taylor, defendia a idia de que

    o que estava em questo na magia eram os desejos humanos, os nicos

    responsveis por induzir uma superestimao dos processos de pensamento

    em relao realidade (KOLTAI, 2010).

    Ao enfatizar o papel da magia na onipotncia das idias, o autor nos alerta

    para o conceito fundamental da psicanlise que a realidade psquica,

    sustentada por um desejo inconsciente.

  • Os povos primitivos, por meio da imposio de suas prprias leis

    psquicas, externavam na realidade os seus reais desejos, a fim de que os

    espritos agissem conforme suas vontades. Essa mesma caracterstica que

    aparece no primitivo tambm visvel na criana, cujo psiquismo conserva as

    mesmas condies de um selvagem, fazendo com que alucinem a realizao

    de seus desejos.

    O modo que o ser primitivo encara o mundo, isto , sua imagem e

    semelhana, leva Freud a constatar uma associao que existe entre a

    onipotncia e o narcisismo, entendido como investimento libidinal em si

    prprio, em que o outro existe somente enquanto objeto de satisfao, e no

    em sua alteridade.

    A correlao entre o pensamento onipotente do primitivo e o narcisismo,

    permitiu que o psicanalista apontasse para as diferentes maneiras de conceber

    o mundo e o desenvolvimento da libido individual. A fase animista estaria

    atrelada, deste modo, ao narcisismo primrio, a religio ao estgio no qual a

    libido se fixa nos pais e, por fim, a cincia estaria ligada ao estado de

    maturidade no qual h uma renncia, por parte do sujeito, exclusiva busca de

    prazer e subordina sua escolha de objeto s exigncias da realidade (KOLTAI,

    2010).

    Freud no cessa suas analogias entre os sujeitos primitivos e os neurticos.

    Os neurticos tambm hesitam para aceitar a realidade tal como ela ,

    atribuindo realidade externa, as suas prprias aspiraes. Estes ltimos,

    segundo o psicanalista, possuem natureza mgica, isto , tanto em seus atos

    quanto em suas defesas, imperam a onipotncia das idias e o predomnio dos

    processos psquicos sobre a vida real.

    A transposio do animismo, da magia e da onipotncia das idias para a

    esfera da religio, e depois da cincia, se concretizou devido renncia

    pulsional exigida pela cultura.

    Em nossa experincia cotidiana, possvel identificar alguns resqucios do

    animismo presentes, por exemplo, nos sonhos. Se prosseguirmos com a leitura

    de Totem e Tabu, visvel que Freud ao longo dos seus trs primeiros ensaios,

    prepara o terreno para introduzir o ato de nascimento de sua metapsicologia do

    social, por meio de sua hiptese acerca da gnese da cultura. Em O retorno

    do totemismo na infncia, o autor efetuar a unio entre totemismo e tabu, que nos levar a idia da proibio universal do incesto.

    IV O Retorno do Totemismo na Infncia

  • Neste ensaio, Freud retoma vrias questes j abordadas, principalmente,

    o totemismo, justamente para relembrar a importncia que ele exerceu sobre

    os primitivos.

    O sistema totmico pode ser interpretado do ponto de vista tanto religioso

    quanto social; falar-se- de seu carter religioso, na medida em que

    comparecem relaes de respeito mtuo entre o primitivo e seu totem e, de seu

    estatuto social, nas obrigaes recprocas que permeiam tanto os membros de

    um cl quanto das tribos entre si.

    No que tange natureza religiosa, pode-se dizer que Freud procura nos

    chamar a ateno para o tabu, ligado ao totem, manifesto nas proibies que

    seus descendentes se impunham a fim de proteg-lo. por isso que no se

    podia matar, comer ou caar o animal do totem e, dependendo da tribo,

    inclusive, toc-lo, olh-lo ou cham-lo por seu verdadeiro nome, sob pena de

    punies por meio da morte ou da doena. O benefcio que fazia valer as

    restries residia, pois, na esperana de serem protegidos por ele.

    Do ponto de vista social, o que se destaca no somente a quantidade e o

    rigor das proibies, mas tambm, o fato das restries se relacionarem com o

    interdito das relaes endogmicas, gerando, consequentemente, a fobia do

    incesto.

    Freud, intrigado com as questes levantadas pelo totemismo, procura

    atravs dos seus estudos compreender melhor as necessidades psquicas que

    ele expressava, bem como as condies que proporcionaram o seu

    desenvolvimento. Aps se debruar sobre todas as tericas conhecidas

    em sua poca nominalistas, sociolgicas e psicolgicas o autor chega a concluso de que existiam at aquele momento, duas concepes distintas:

    Desse modo, encontramos dois pontos de vista opostos: um que procura manter a pressuposio

    original de que a exogamia constitui parte inerente do sistema totmico e outro que nega existir tal

    vinculao, sustentando que a convergncia entre esses dois aspectos das culturas mais antigas

    uma convergncia fortuita (FREUD [1913- 1914], p. 78).

    Posicionando-se contrariamente teoria da coincidncia, o autor afirma

    que a exogamia, corolrio do sistema totmico, s podia se fundar, no medo

    do incesto. Segundo os ensinamentos da psicanlise, nada havia de inato na

    exogamia, suas causas, inclusive, deveriam ser procuradas nos primeiros

    desejos sexuais, de natureza inegavelmente incestuosa.

    Neste ponto, Freud lana luz s atitudes das crianas para com os animais,

    a fim de apresentar as inmeras concordncias com os primitivos e, logo a

  • seguir, clnica da zoofobia infantil, por meio do caso clnico do pequeno

    Hans.

    A anlise desta criana fbica levou o psicanalista a formular a hiptese

    de que os casos de zoofobia infantil expressam nitidamente a situao do

    menino no complexo de dipo; esse complexo central das neuroses, no qual

    o pai se apresenta como rival da criana com o qual essa tem de partilhar o

    interesse da me (KOLTAI, p.44, 2010).

    Freud ao analisar este caso, constata que diante da impossibilidade de

    Hans dar vazo ao dio que sente pelo pai, justamente, porque o mesmo

    objeto tambm de amor e admirao, ele acaba por deslocar a angstia que

    sente a um animal. Essa situao se repete inmeras vezes, manifestando que

    os sentimentos ambivalentes em relao ao pai, oriundos de interesses sexuais

    infantis, so deslocados para outro objeto.

    Posto isto, Freud se sente autorizado a introduzir suas consideraes sobre

    a origem do totemismo. A primeira consequncia notvel, na frmula do

    totemismo, a substituio do pai por um animal totmico. O autor afirma

    que:

    Se o animal totmico o pai, ento as duas principais ordenanas do totemismo, as duas

    proibies de tabu que constituem seu mago no matar o totem e no ter relaes sexuais com os dois crimes de dipo, que matou o pai e casou com a me, assim como os dois desejos primrios

    das crianas, cuja represso insuficiente ou redespertar formam talvez o ncleo de todas as

    psiconeuroses (FREUD [1913- 1914], p.87).

    Para comprovar que o totemismo fruto das condies do complexo de

    dipo, Freud recorre Darwin, Atkison e Robertson Smith, para alar, atravs

    da teoria da horda primitiva, uma hiptese sobre um assassinato originrio e, com a teoria do festim totmico, a comemorao por meio de sacrifcios

    ritualizados (KOLTAI, 2010).

    Depreende-se que a leitura conjunta, desses trs autores, possibilitaram

    Freud unir uma teoria clnica e uma teoria social e, tambm, narrar a

    procedncia de um estado originrio da sociedade que nunca havia sido de

    fato observado.

    O autor admite ter encontrado no festim totmico, de Robertson Smith, a

    mola propulsora dessa origem, visto que se tratava de um sacrifcio-festa, no

    qual o animal totmico era sacrificado e lastimado, para em seguida ser

    devorado pelos membros da tribo numa festa. Foi nessa transgresso ritual

    das proibies totmicas que Freud identificou a sequela do acontecimento

    como causa da relao da humanidade com as proibies totmicas e

    incestuosas (KOLTAI, p.46, 2010).

  • Freud insiste na relevncia coletiva do sacrifcio e sua relao com a festa,

    chamando a ateno, primeiramente, para os laos que unem os membros de

    uma comunidade e, na seqncia, para os laos que unem esta divindade.

    Atravs de alguns dados at ento isolados, da biologia e da etnologia, o

    autor inicia a formulao de sua hiptese. Para tanto, ele utiliza-se de um mito

    para narrar os acontecimentos que instituram um contrato social, no qual

    tanto o incesto quanto o monoplio da violncia eram proibidos, descrevendo,

    deste modo, a passagem do estado arcaico para outro modelo de regime.

    Esta passagem teria se dado em trs tempos. O primeiro jazia um estado

    social em que a fora fazia a lei:

    (...)uma horda primitiva dominada por um macho que gozava de um monoplio sexual absoluto, possura todas as fmeas ao mesmo tempo e impedia o acesso dos demais machos a elas. Puro

    gozo, frustrava o desejo dos filhos por suas mes e irms, submetendo todos sua lei, imposta pela

    fora (KOLTAI, p.47, 2010).

    O segundo tempo marca o compl dos filhos frustrados que, insatisfeitos e

    revoltos com a tirania paterna, decidem matar o dspota que tanto odiavam e

    amavam simultaneamente. Com efeito, deixaram de ser submissos e tornaram-

    se ousados ao matarem o pai, realizando, coletivamente, o que sozinhos

    nenhum deles teria feito. Para selar e afirmar a existncia do grupo, eles

    celebravam o festim totmico, no decorrer do qual foram levados a devorar o

    corpo do pai e se identificando com ele, puderam se reconhecer como irmos

    de sangue.

    O prximo momento aquele em que os filhos perceberam que cada um

    deles almejava, secretamente, ocupar exclusivamente o lugar do pai.

    Informados de que se isso se efetivasse, a consequncia ltima seria uma

    guerra fratricida, decidiram renunciar mutuamente tanto satisfao

    incestuosa quanto violncia como meio de consegui-la. Viram-se, deste

    modo, obrigados a buscar em outras hordas mulheres para se relacionarem,

    estabelecendo, assim, a exogamia. Somente nestas circunstncias foi possvel

    pr fim horda selvagem e inaugurar o cl fraterno, fundado sobre os lanos

    de sangue.

    Apreende-se que foi atravs do assassinato do pai, com o qual os filhos

    mantinham uma relao ambivalente de amor e dio, que o estado de direito

    pode se consolidar. Note-se que o pai morto, se demonstrou mais poderoso do

    que o pai vivo, uma vez que os filhos passaram a interditar aquilo que o pai os

    impedia, anteriormente, pela fora. Com a morte do pai, os filhos puderam

    externalizar o sentimento de dio, enquanto que o amor, que tambm sentiam,

    se transformou em sentimento de culpa.

  • Posto isto, Freud discorre sobre os dois tabus fundamentais do totemismo:

    matar o totem e casar com uma mulher do mesmo totem que, por sua vez,

    correspondem aos dois desejos reprimidos do complexo de dipo.

    Freud encerra que o sistema totmico pode ser objetivado como um

    contrato concludo com o pai, em que esse promete cumprir tudo aquilo que a

    imaginao infantil poderia esperar dele, proteo, cuidado, condio de que

    sua vida seja respeitada e no se renove o ato que lhe custou a vida (KOLTAI,

    2010).

    Com base na teoria psicanaltica, o pai da psicanlise examina que a

    cultura no s fruto da renncia pulsional, como essa passa a ser, inclusive,

    uma constante estrutural dela.

    guisa de concluso, possvel estabelecer um correlato entre o que

    Freud afirma sobre a moralidade humana e seu incio com esses dois tabus. O

    primeiro, sendo o da proibio do incesto, corresponde nica maneira que os

    irmos encontraram para garantirem a fora que nascera de sua unio,

    enquanto que, o segundo, da obrigao de proteger o animal totmico, pode-se

    entender como a primeira volio religiosa do totemismo, consequncia da

    culpabilidade dos filhos ao mesmo tempo em que uma tentativa de refrear

    esse sentimento, reconciliando-se com o pai, numa obedincia retrospectiva.

    Neste sentido, a autora coloca que,

    (...) em todas as religies subsiste a ambivalncia inerente ao complexo paterno, sendo todas elas,

    de certa forma, consequncia desse grande acontecimento pelo qual teve incio a civilizao e que,

    desde ento, nunca deixou de atormentar a humanidade (KOLTAI, p.49, 2010).

    V - Para Concluir

    Visto que o trabalho est por se encerrar, faz-se necessrio retomar

    algumas consideraes sobre o mito que Freud nos introduz.

    Em primeiro lugar, fundamental perceber que o crime um ato

    fundador, responsvel por organizar a civilizao.

    Em segundo lugar, o crime, ao invs de autorizar os filhos a acessarem as

    fmeas desejadas, trouxe como consequncia a instaurao da percepo de

    uma classe de iguais. Deste modo, o parricdio no permitiu o acesso s

    mulheres da horda: o pai morto, longe de perder seu poder, s o teve

    reforado. Neste sentido, a morte do pai primevo, longe de dar acesso ao gozo,

    estabeleceu um sistema social com suas prprias leis, sendo a primeira delas a

    proibio do incesto. Neste momento que se afigura a ruptura fundamental

  • do mundo natural para aquele da cultura, estruturado em um sistema de

    organizao simblica.

    Em terceiro lugar, foi somente atravs desse crime que o chefe da horda se

    transformou em pai, donde se deduz que o pai s existe morto, em sua

    negativa, enquanto ser mtico, e que, nessa funo, incita o amor, terror e

    reverncia. Assim, inscrio do pai morto, por isso negativo, o que confere e

    legitima a sua funo, ganhando, pois, uma existncia simblica que s

    emerge com a sua ausncia.

    Ademais, o assassinato do pai no s traz consigo a constante possibilidade do assassinato como a civilizao se inicia com o crime e se

    perpetua com ele (KOLTAI, p.49, 2010).

    O lugar do pai organizado simbolicamente, por excelncia, destitudo,

    ento, de quaisquer atributos naturais. , pois, referenciado a uma autoridade

    simblica que, por sua vez, cumpre a funo de inscrever um valor simblico

    que inaugura uma regra, uma lei, que serve como obrigao. A lei, contudo,

    retira fora dela prpria para exercer sua autoridade, na medida em que no h

    fundamento externo que a justifique. Neste sentido, por excluso de toda

    possibilidade fsica ou coercitiva que a lei se constitui. Isto nos leva a crer que

    a autoridade dada por um valor simblico, autoreferente, que tal objeto eleito

    ocupa.

    Finalmente, torna-se possvel compreender porque o parricdio visto por

    Freud como um ato fundador e necessrio para que se d a passagem da

    natureza para a cultura e o totemismo como forma elementar de religio, que

    nos insere no mundo da culpa e da renncia.

    Totem e Tabu , por fim, um texto que inaugura a importante reflexo a

    respeito da necessidade de uma lei transcendente, compreendida em sua

    gnese por meio de uma explicao mtica que acena para os elementos da

    organizao social, das restries morais e da religio como seus elementos

    constitutivos.

    Fonte: https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/totem-e-tabu

    Psicologado.com

  • Bibliografia

    FREUD, S. Totem & Tabu (1913). In: Edio Standard Brasileira das Obras

    Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago,

    1996.

    KOLTAI, C. Totem e Tabu: Um mito freudiano. Rio de Janeira: Civilizao

    Brasileira, 2010.