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Serviço Público Federal Universidade Federal do Pará
Centro de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia Experimental
Subjetividade e Relações Comportamentais
Emmanuel Zagury Tourinho
Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará, como requisito para inscrição no Concurso Público para Professor Titular da Matéria Psicologia Geral e Experimental.
Belém, Pará
2006
i
Dedico este trabalho à Simone, com muito amor.
ii
A elaboração deste trabalho foi apoiada de forma decisiva pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq (Processos 305743/2004-0 e 470802/2004-9).
iii
Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.
(Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo)
iv
Tourinho, E. Z. (2006). Subjetividade e Relações Comportamentais. Tese apresentada ao Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará. Belém, Pará.
RESUMO
Fenômenos relativos à “subjetividade” humana têm sido abordados pela Psicologia desde sua origem como disciplina independente e representam, ainda hoje, um tema dos mais controversos no debate travado por diferentes escolas de pensamento psicológico. No presente trabalho, a “subjetividade” é entendida como conceito que sintetiza os modos como sentimentos, emoções e pensamentos são vividos em sociedades em estágio avançado do processo civilizador. Com o objetivo de prover um tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, alguns aspectos centrais dessa temática são discutidos à luz de duas referências principais. Uma primeira referência consiste das dicotomias psicológicas clássicas, que sintetizam a problematização moderna da chamada experiência subjetiva: as dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno e físico-mental. A segunda referência consiste da proposição analítico-comportamental de interpretar os fenômenos psicológicos como relações comportamentais. No exame das dicotomias psicológicas clássicas são assinaladas algumas de suas raízes histórico-culturais e suas conexões com valores e práticas de uma cultura individualista. No desenvolvimento de uma interpretação analítico-comportamental para a subjetividade são propostas direções para uma caracterização de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais e explicadas como se elaboram nesse contexto as noções de individualidade, autonomia e autocontrole. O trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos e pensamentos como relações comportamentais, desde que ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação particular a esses fenômenos. Nesse percurso, sugere-se que uma interpretação analítico-comportamental consistente para o problema depende menos da afirmação de um monismo físico e mais da apreciação de como se configuram, na cultura ocidental moderna, as relações comportamentais descritas como sentimentos e pensamentos. Palavras-chave: subjetividade, eventos privados, sentimentos, pensamento.
v
Tourinho, E. Z. (2006). Subjectivity and Behavioral Relations. Thesis presented to the Departamento de Psicologia Experimental, Universidade Federal do Pará. Belém, Pará.
ABSTRACT
Human “subjectivity” phenomena have been discussed in Psychology since its inception as an independent discipline, and still represent one of the most controversial themes in the debate promoted by different psychological systems. In the present work, “subjectivity” is treated as a concept that summarizes the ways feelings, emotions and thinking are experienced in highly civilized societies. The objective of the work is to provide a broad (behavioral) approach to the theme of subjectivity. Two main references are adopted in the discussion of some aspects that are central to the problem of subjectivity. The first reference is the set of classical psychological dichotomies, which largely summarize modern treatment of the so called subjective experience: the public-private, objective-subjective, outer-inner, and physical-mental dichotomies. The second reference consists of the behavior-analytic proposition that we interpret psychological phenomena as behavioral relations. With respect to the classical psychological dichotomies, some of their historical-cultural roots are pointed out, as well as their relation to values and practices that are typical of individualist societies. In the development of a behavior-analytic interpretation to subjectivity, some directions are proposed in order to view feelings and thinking as behavioral relations. It is also explained how the notions of individuality, autonomy and self-control may be approached in the context of such theoretical perspective. The work develops the thesis according to which the concepts of private, subjective, inner and mental reflect a difficulty in recognizing interdependence among individuals, and that this may be overcome as we interpret feelings and thinking as behavioral relations, as long as we regard the ways cultural variables give in unique features to these phenomena. Along this reasoning, it is suggested that a consistent behavior-analytic interpretation to the problem requires not so much an assertion of physical monism, but more importantly requires a proper evaluation of the features found in behavioral relations described as feelings and thinking in modern western cultures. Key-words: subjectivity, private events, feelings, thinking.
vi
SUMÁRIO
RESUMO iv
ABSTRACT v
APRESENTAÇÃO viii
INTRODUÇÃO 1
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 7
CAPÍTULO 1: RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS
DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS CLÁSSICAS. 14
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hierárquica.
18
1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado.
27
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento das Relações de Interdependência.
37
1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias Psicológicas Clássicas.
58
CAPÍTULO 2: DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL
PARA O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE. 94
2.1. A Noção de Eventos Privados. 100
2.2. Limites da Noção de Eventos Privados. 114
2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal. 123
2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias Psicológicas Clássicas.
145
vii
CAPÍTULO 3: SUBJETIVIDADE, EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES
COMPORTAMENTAIS. 160
3.1. A Individualização. 161
3.2. A Autonomia. 174
3.3. O Autocontrole. 190
3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias Psicológicas Clássicas: Complexidade, Acessibilidade e Relevância de Relações Comportamentais.
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS 204
REFERÊNCIAS 211
viii
APRESENTAÇÃO
Emoções e pensamento são tratados em manuais de Psicologia (e.g.,
Huffman, Vernoy & Vernoy, 2003) como alguns dos processos psicológicos
básicos (ao lado de aprendizagem, cognição, memória, percepção e outros),
uma matéria que requer um tratamento específico de qualquer sistema
explicativo abrangente na Psicologia. Como o conceito de emoções, o conceito
de sentimentos é também empregado com freqüência na abordagem de
fenômenos considerados afetivos. Ainda que muitas vezes sejam usados como
sinônimos, sentimentos e emoções são em alguns sistemas diferenciados com
base na existência (para os primeiros) de um componente lingüístico na
afetividade. Emoções, sentimentos e pensamentos constituem o foco do
presente trabalho. Eles serão abordados como fenômenos que em grande
medida sintetizam o que tem sido denominado de subjetividade. A análise
oferecida pode se estender a outros fenômenos ou conceitos correlatos, como
cognição, sensação etc., embora não sejam examinadas particularidades
desses outros fenômenos ou dos usos desses outros conceitos. Discutindo
pensamentos, emoções e sentimentos, acreditamos ser possível oferecer um
tratamento (comportamental) abrangente para o tema da subjetividade, objetivo
deste trabalho.
Homens e mulheres de todas as culturas emocionam-se e refletem
sobre o mundo a sua volta. Algumas emoções (e.g., medo, tristeza) são,
inclusive, consideradas parte de nossa herança filogenética (cf. Ekman, 1993;
Millenson, 1967/1975; Russell, 1991). Com o conceito de subjetividade, porém,
ix
estaremos referindo o modo específico como emoções, sentimentos e
pensamentos são experimentados na cultura ocidental moderna, um modo que
tem sido referido como “privado” (cf. Elias, 1994) ou “privatizado” (cf.
Figueiredo e Santi, 1997). É a configuração (discutida ao longo deste trabalho)
que sentimentos, emoções e pensamentos adquirem na cultura ocidental
moderna que dá origem aos conceitos de privado, subjetivo, interno e mental. E
é essa mesma problemática que está na base da fundação da Psicologia como
disciplina independente, primeiro um campo reflexivo, depois uma ciência e
uma profissão de ajuda.
A subjetividade assim entendida será examinada ao longo do trabalho, a
partir de duas referências. No Capítulo 1, são discutidos aspectos histórico-
culturais da experiência moderna de sentimentos e pensamentos, enfatizando-
se as condições sociais que estão na origem do que denominaremos aqui de
dicotomias psicológicas clássicas (público-privado, objetivo-subjetivo, interno-
externo, físico-mental). Nos Capítulos 2 e 3, o trabalho focaliza a elaboração de
uma interpretação para emoções, sentimentos e pensamentos, à luz dos
princípios do sistema explicativo denominado Análise do Comportamento, que
tem como referência principal a obra filosófica e científica de B. F. Skinner.
O trabalho pretende oferecer um tratamento analítico-comportamental
abrangente para a subjetividade, em que emoções, sentimentos e pensamento
são concebidos essencialmente como relações comportamentais. Essa
elaboração conflita com noções e valores, próprios de uma cultura
individualista, que encontram expressão nas dicotomias psicológicas clássicas.
A perspectiva interpretativa relacional depende, por outro lado, de uma
x
apropriação das informações que emergem de uma análise histórica daquelas
dicotomias. Em suma, o trabalho desenvolve a tese de que os conceitos de
privado, subjetivo, interno e mental refletem a dificuldade em reconhecer
dimensões da interdependência entre indivíduos na definição dos fenômenos
psicológicos, o que pode ser superado com uma interpretação de sentimentos,
emoções e pensamentos como relações comportamentais, desde que
ponderados os modos como variáveis culturais dão uma conformação
particular a esses fenômenos.
1
INTRODUÇÃO
Tema de alguns dos trabalhos mais notáveis de Skinner (e.g., 1945,
1953/1965, 1963/1969, 1974/1993, 1968/2003), os eventos privados (conceito
com o qual a subjetividade é tratada no sistema skinneriano) receberam pouca
atenção da comunidade de analistas do comportamento até pelo menos a
década de 90 do século XX. Alguma atenção mais sistemática passou a ser
dada ao assunto apenas quando analistas do comportamento com atuação
clínica afirmaram a necessidade de resgatar, nesse campo da prática
psicológica, os princípios analítico-comportamentais e assinalaram que, na
terapia verbal face a face, o assunto eventos privados é recorrente e demanda
um tratamento mais avançado do que aquele delineado nos escritos de Skinner
(cf. Anderson, Hawkins, Freeman & Scotti, 2000; Anderson, Hawkins & Scotti,
1997; Banaco, 1999; Dougher, 1993a, 1993b, 1994, 2000; Dougher &
Hackbert, 2000; Friman, S. C. Hayes & Wilson, 1998; Moore, 2000; Wilson & S.
C. Hayes, 2000).
Skinner desenvolve dois argumentos principais ao tratar de eventos
privados. Em uma direção, sustenta que o que é sentido não explica o
comportamento publicamente observável, do que conclui (e.g., Skinner,
1953/1965) que uma ciência do comportamento prescinde da referência a
sentimentos e emoções para lidar de modos efetivos com o comportamento
humano. Em uma outra direção, discute os processos verbais envolvidos na
aquisição de repertórios autodescritivos de sentimentos, emoções e
pensamentos e sustenta a tese (e.g., Skinner, 1945) de que, por dependerem
de contingências sociais, esses repertórios são sempre imprecisos
2
(novamente, uma razão para não considerá-los em sua ciência). Esse segundo
argumento constitui o ponto de partida para análises alternativas (e.g., Friman
& cols., 1998; Dougher & Hackbert, 2000; Tourinho, 1999b, no prelo) sobre o
lugar dos eventos privados em uma ciência do comportamento.
Quando se consideram as autodescrições de sentimentos, emoções e
pensamentos à luz de uma concepção funcional de linguagem, como aquelas
formuladas por Skinner (1957/1992) e por Wittgenstein (1953/1988), têm-se
que as autodescrições são, elas mesmas, parte do fenômeno da subjetividade.
É com a linguagem que parcelas do que pode ser chamado de um ambiente
interno (cf. Tourinho, 1999b) tornam-se diferenciadas, adquirem funções em
relações comportamentais, ainda que dentro de limites e sob condições
específicas (cf. Skinner, 1945, 1974/1993; Tourinho, 1994a, 1994b). De outro
lado, as autodescrições podem adquirir, elas mesmas, funções em relações
comportamentais diversas. À luz de análises mais recentes sobre eventos
privados e sobre comportamento verbal (e.g. DeGrandpre, Bickel, & Higgins,
1992; S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001), isso levará a uma
rediscussão (e.g. Friman & cols., 1998) da idéia de que a eventos privados não
são relevantes em uma análise funcional dos comportamentos publicamente
observáveis. Mais importante, os “eventos privados” serão menos enfatizados
como eventos discretos de inacessibilidade restrita e mais enfatizados como
conceito que remete a relações complexas dos indivíduos com o mundo.
Alguns trabalhos sobre eventos privados, anteriores ao debate
inaugurado pelos clínicos, já haviam colocado em discussão o status causal de
eventos privados, mas a partir da noção de causação interna do
3
comportamento (e.g. Flora, & Kestner, 1995; Overskeid, 1994; Stemmer, 1995;
Zuriff, 1979). Não foram, portanto, eficientes para promover uma discussão da
subjetividade sob um enfoque de relações comportamentais, ainda que alguns
problemas que levantaram tenham ficado sem uma apreciação devida na
literatura analítico-comportamental. Quando analistas clínicos do
comportamento recolocaram o tema em discussão, o fizeram de um modo que
enfatizou dimensões relacionais verbais dos fenômenos.
Um grande mérito dos trabalhos mais recentes sobre eventos privados
consiste, assim, de sua capacidade para conformar o exame do assunto à
lógica relacional que sustenta mais fundamentalmente o sistema explicativo
analítico-comportamental como um sistema psicológico; a idéia de que os
fenômenos que constituem o objeto de estudos da Psicologia definem-se como
relações dos homens e mulheres (ou dos organismos1) com o mundo. No
lugar, agora, de olhar para sentimentos, emoções e pensamentos como
eventos discretos (sejam eles públicos ou privados), torna-se necessário
examinar como relações complexas (operantes e respondentes – cf. Darwich &
Tourinho, 2005) são estabelecidas e entrelaçadas, de tal modo que alguns
eventos inacessíveis à observação pública direta delas tomam parte.
Com a explicitação de aspectos das relações verbais (e.g., a
possibilidade de formação de classes de estímulos equivalentes) que
1 Neste trabalho, não ignoramos que o projeto skinneriano tinha como objeto o comportamento dos organismos (humanos e infra-humanos). Entendemos, porém, que seu interesse principal era o comportamento humano (cf. Andery, 1990) e que é na espécie humana, apenas, que se encontram os fenômenos mais complexos relacionados à subjetividade (ver Capítulo 2, adiante). As análises aqui desenvolvidas são pautadas pelo interesse específico no comportamento humano e por isso deixará de ser assinalado (exceto em casos particulares) quando as argumentações desenvolvidas se aplicarem ao comportamento de outros organismos.
4
conduzem a um novo exame da questão da subjetividade, a análise do
comportamento alargou a perspectiva inaugurada por Skinner. A abordagem
permanece, todavia, ainda no plano dos processos (nesse caso, verbais)
básicos, à luz dos quais fenômenos comportamentais merecem ser analisados.
Um analista do comportamento pode argumentar que, para além disso, a
análise possível da subjetividade dirá respeito à história ambiental de cada um,
à ontogênese, na qual se materializam as relações que vêm a definir a
identidade de cada homem ou mulher. No presente trabalho, no entanto,
propomos algo diverso. Argumentamos que uma abordagem analítico-
comportamental da subjetividade pode avançar a partir de uma consideração
de contingências culturais que vêm a definir o fenômeno.
Os componentes verbais das mais complexas relações comportamentais
referidas como sentimentos, emoções e pensamentos são produtos de uma
cultura que promove de modo mais abrangente padrões de relacionamento
com o mundo físico e social, que definem a subjetividade e só existem quando
essas contingências culturais estão em operação. Isto é, o problema da
subjetividade (aquele reservado à Psicologia – cf. Figueiredo, 1991, 1992;
Figueiredo & Santi, 1997) só passa a existir à luz de certas contingências
culturais. O que tratamos como subjetividade são certas relações
comportamentais cujas características distintivas precisam ser especificadas, e
um caminho para isso consiste em examinar as contingências histórico-
culturais que as engendram.
O ponto de vista defendido neste trabalho, portanto, é o de que uma
compreensão mais abrangente da subjetividade na análise do comportamento
5
requer uma apreciação de contingências que produzem sentimentos, emoções
e pensamentos nas culturais ocidentais modernas e uma especificação dos
tipos de relações que definem esses fenômenos. A questão da inacessibilidade
à observação pública de certos estímulos e respostas (a base para a noção de
eventos privados) não se perde com essa análise, mas nela encontra um
contexto analítico mais amplo.
Diversos percursos investigativos poderiam ser seguidos para prover
uma apreciação da subjetividade nos termos mencionados. Optamos aqui por
examinar um conjunto de informações históricas, delas derivando uma
interpretação para sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos
relacionais2. As categorias analíticas empregadas para esse fim serviram
também para confrontar a perspectiva relacional da análise do comportamento
com práticas ou discursos que parecem ignorar, ou pelo menos deslocar para
um segundo plano, essa dimensão dos fenômenos psicológicos.
Em sua formulação tradicional nas Psicologias, pensamentos, emoções
e sentimentos são discutidos como ocorrências privadas, subjetivas, internas
ou mentais, ocorrências do ou no indivíduo. A tese a ser desenvolvida inicia
com uma afirmação de que a perspectiva individualista e subjetivista que esses
conceitos veiculam é produto de contingências culturais que funcionam para
obscurecer as relações (cada vez mais complexas) de interdependência entre
homens e mulheres. Prossegue com a argumentação de que a referência
2 Sobre a opção de olhar para a história para compreender conceitos psicológicos, Skinner (1931/1961) fez algo parecido, ao se voltar para o conceito de reflexo. A decisão de recorrer a certas informações históricas neste trabalho não significa que a análise a ser apresentada é uma análise histórica, como a skinneriana, mas tem a mesma pretensão de lançar luz sobre problemas ainda insuficientemente formulados na Psicologia e na análise do comportamento.
6
skinneriana à inacessibilidade de certos estímulos e respostas constitui um
recurso insuficiente para explicar o conjunto de problemas que encontra
expressão nas dicotomias público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno,
físico-mental, requerendo uma formulação mais abrangente das relações
comportamentais que definem sentimentos, emoções e pensamentos. Encerra
com a proposição de que, à luz de um exame histórico das dicotomias
psicológicas clássicas, é possível analisar de modos originais as noções de
singularidade, autonomia e autocontrole e com isso favorecer uma
interpretação analítico-comportamental mais abrangente e consistente da
subjetividade.
7
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Trabalhos reflexivos estão na origem da constituição da Psicologia
como disciplina independente, mas não raro são ignorados como uma
dimensão importante desse campo de conhecimento (e.g., quando a Psicologia
é definida apenas como uma ciência e profissão3). Em que pese sua
precedência na história de constituição da Psicologia, nas abordagens
comportamentais, em particular na análise do comportamento, a produção
reflexiva recebeu atenção sistemática muito mais tardiamente do que os
programas de investigação básica e aplicada. Como decorrência, não se
encontram, na área reflexiva, ou conceitual, programas amplos de
investigação, aos quais grupos diversos de pesquisadores se dediquem de
forma integrada. Também não há, para essa produção, unidade metodológica
ou soluções consagradas e compartilhadas com grande número de
pesquisadores. Tudo isso, porém, é diferente de afirmar que a produção
reflexiva, em análise do comportamento, prescinde de decisões de ordem
metodológica. As que foram tomadas no presente estudo estão sumarizadas
3 Por vezes, a caracterização da Psicologia como “ciência e profissão” ignora esse fato: de que a disciplina psicológica é antes e originalmente uma disciplina reflexiva (em particular, sobre as condições – subjetivas - de realização do homem em diferentes domínios de sua vida), à qual apenas muito mais tardiamente se articulam programas de investigação científica e programas voltados à solução de problemas humanos (cf. Tourinho, Carvalho Neto & Neno, 2004). Em uma discussão do assunto Tourinho (2003) assinala que “a Psicologia se edifica como um campo de saber que envolve, simultaneamente: a) um esforço reflexivo sobre a natureza humana, seus problemas e suas possibilidades de realização em diferentes domínios da vida (social, material, intelectual, religioso etc.); b) uma investigação cientificamente orientada para a descoberta de regularidades dos fenômenos psicológicos (um modo de tentar apreender as novas experiências sob a forma de enunciados que incorporam os requisitos empírico-racionais da emergente ciência); c) uma profissão de ajuda, voltada para a solução de problemas humanos” (p. 35).
8
nos parágrafos seguintes4.
a) a definição do problema:
O trabalho foi desenvolvido no contexto de um programa mais amplo de
pesquisas conceituais e empíricas, voltado para a temática da subjetividade na
Psicologia e seu tratamento no sistema explicativo analítico-comportamental.
Vimos desenvolvendo esse programa, com a colaboração de pesquisadores
formados e em formação (graduandos, mestrandos e doutorandos), sempre
com a perspectiva de elaborar ou aperfeiçoar uma compreensão para
sentimentos, emoções e pensamentos enquanto fenômenos relacionais. O
presente estudo pretende avançar em relação aos resultados até aqui
alcançados com esse programa de pesquisas. Trabalhos desenvolvidos no
âmbito desse programa de pesquisas ocuparam-se das diferentes dimensões
ou aspectos da noção skinneriana de eventos privados (Darwich & Tourinho,
2005; Santos, 1998; Tourinho, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b,
2005, no prelo; Tourinho, Teixeira & Maciel, 2000), suas articulações com
temas no campo da aplicação clínica da análise do comportamento (Azevedo,
2001; Cavalcante, 1999; Cavalcante & Tourinho, 1998; Maciel, 2004;
Marchezini-Cunha, 2004; Martins, 1999; Martins & Tourinho, 2000; Medeiros,
2001; Souza Filho, 2001; Tourinho, Cavalcante, Brandão & Maciel, 2001), suas
conexões com elaborações no campo da epistemologia e da filosofia da
linguagem (Tourinho, 1994a, 1994b; Tourinho & Neno, 2003) e sua
contraposição a outros sistemas explicativos psicológicos (comportamentais ou 4 Algumas especificações aqui fornecidas apóiam-se na sistematização sugerida por Tourinho e Micheletto (2002).
9
não) (Costa, 1999; Tourinho, 2004). À medida em que esses estudos foram se
desenvolvendo, especialmente os estudos conceituais, um conjunto de
informações históricas sobre a constituição da problemática da subjetividade
no mundo moderno foi sendo colecionado e de algum modo incorporado à
interpretação que se foi procurando refinar para o tema. A partir de um
acúmulo mais sistemático desse tipo de informação, foi se mostrando possível
estruturar uma abordagem analítico-comportamental para o tema tomando-se
como referência o que designamos de dicotomias psicológicas clássicas
(público-privado, objetivo-subjetivo, externo-interno, físico-mental).
Há basicamente duas razões para que aquelas dicotomias tenham sido
consideradas referências heurísticas para uma análise da subjetividade.
Primeiro, o fato de que por meio delas é possível reconstituir de modo eficiente
o processo de construção da subjetividade como problema para o mundo
moderno, colocando em relevo aspectos centrais dessa problematização, nem
sempre identificados quando nos atemos a uma ou outra alegação (filosófica
ou psicológica) sobre a experiência subjetiva (filosofia e psicologia muitas
vezes partem da problemática já constituída, atravessada por supostos que
não são tomados eles próprios como objeto de necessária investigação). A
segunda razão decorre de uma incursão preliminar na literatura histórica: uma
suposição de que, à luz das informações produzidas pela análise histórica,
seria possível alargar a interpretação analítico-comportamental para
pensamentos, sentimentos e emoções, tornando-a, ao mesmo tempo, mais
abrangente e consistente. Mais que uma razão, essa “suposição” passou a
funcionar como uma hipótese, que, no entanto, requeria categorias analíticas
10
que pudessem explicitar o curso de um exame produtivo do problema.
As dimensões relacionais dos problemas psicológicos foram então
assumidas como o ponto de partida e referência, tanto para a reconstrução
histórica das dicotomias clássicas (isto é, para a sistematização das
informações produzidas a partir da análise histórica), como para a apreciação
das possíveis dimensões de uma interpretação analítico-comportamental para
o tema da subjetividade. As dicotomias deveriam ser examinadas à luz do que
veiculavam sobre as relações de interdependência entre homens e mulheres
em contextos culturais específicos; a interpretação analítico-comportamental
precisaria examinar de que modos esses contextos culturais que se destacam
na análise histórica imprimem configurações específicas às relações
consideradas representativas dos fenômenos relativos à subjetividade.
b) a especificação das informações:
Dois conjuntos de informações tornaram-se essenciais para que a
análise pretendida pudesse ser desenvolvida. De um lado, era necessário
buscar nos textos históricos e sociológicos, nas referências que fazem ao tema
da subjetividade, as informações sobre o que se passava no plano das
relações interpessoais ao tempo em que se elaboravam as dicotomias
clássicas, assim como suas conexões com práticas e valores culturais
específicos. De outro, era necessário circunscrever as dimensões
contempladas na análise comportamental do problema até o presente
momento e identificar os instrumentos conceituais com os quais se poderia
trabalhar para estender essa abordagem para nela incluir a referência aos
11
problemas identificados a partir da análise histórica.
c) a seleção das fontes:
O trabalho requereu o levantamento de dois conjuntos de produções,
que poderiam prover as informações necessárias ao estudo: um primeiro
conjunto de textos referia-se aos elementos que poderiam subsidiar a análise
das dicotomias psicológicas clássicas; um segundo conjunto deveria tratar do
sistema explicativo analítico-comportamental.
O primeiro conjunto de textos, com informações históricas, foi
selecionado com base em dois critérios: a) análise do período de transição do
feudalismo para o capitalismo (referido em textos de história da Psicologia –
e.g., Figueiredo, 1991, 1992 - como o período de construção da subjetividade
moderna); b) referências a mudanças nas “mentalidades”, concepção de
homem, ou construção da cultura individualista. Não apenas trabalhos de
historiadores proviam essas informações. Foram também selecionados para
esse primeiro conjunto, textos de disciplinas como sociologia, economia,
filosofia e política, que também traziam informações históricas relevantes para
o problema focalizado.
O segundo conjunto de textos, com informações sobre o sistema
explicativo-analítico comportamental foi selecionado com base em dois outros
critérios: a) referências a eventos privados (o conceito com o qual Skinner
examina a problemática da subjetividade; e b) referências a contingências
próprias das culturas ocidentais modernas. O ponto de partida para essa
seleção foi o conjunto da obra publicada de Skinner (cf. Andery, Micheletto &
12
Sério, 2004) e a coleção de trabalhos publicados nos periódicos The Behavior
Analyst e Behavior and Philosophy (destino principal da produção conceitual
em análise do comportamento). Textos de outras fontes foram acessados a
partir de um contato com essa primeira seleção. Uma familiaridade prévia com
a literatura também importou na identificação de possíveis fontes de
informação.
d) o levantamento de informações:
Do material selecionado foram destacados trechos ilustrativos de temas
relacionados ao problema descrito. Esse levantamento poderia ter sido feito ao
longo do exame de cada texto, mas efetivamente só aconteceu após uma
apreciação geral da literatura que seria considerada. A partir disso, os trechos
eram transcritos em arquivos que seriam depois aproveitados na construção
das análises.
e) o tratamento das informações:
Como em outros domínios, em um trabalho conceitual a análise não se
realiza somente após a coleta de informações. O processo de coleta de
informações já se dá pautado por uma suposição acerca de cursos de análise
possíveis, identificados desde a construção do problema de pesquisa e leitura
preliminar de uma dada literatura. Ainda assim, pode-se dizer que há um
momento em que claramente trata-se menos de colecionar informações e mais
de a elas conferir uma determinada inteligibilidade.
Dois momentos principais sintetizam o processo analítico no presente
13
estudo. Primeiro, a adoção da questão (do reconhecimento) das relações de
interdependência entre homens e mulheres como eixo a partir do qual práticas
e valores sociais seriam examinados no processo de tratamento das
informações históricas, com as quais se pretendia enfocar as dicotomias
clássicas. Segundo, a formulação dos temas da singularidade, autonomia e
autocontrole como temas a partir dos quais o enfoque analítico-
comportamental para a subjetividade seria desenvolvido, a fim de incorporar
possíveis contribuições derivadas do exame histórico das dicotomias clássicas.
As decisões descritas definem e limitam o alcance da contribuição que o
presente trabalho pode trazer para a análise do comportamento, ou, mais
propriamente, para a construção de uma abordagem analítico-comportamental
da subjetividade. Elas devem ser consideradas tanto pelo que promovem
diretamente em termos de uma formulação conceitual, como pelas áreas de
interlocução a que conduzem com outros saberes ou produções culturais.
Pensadas desse modo, essas decisões revelam também o tipo de contribuição
esperada: não apenas o desenvolvimento da interpretação analítico-
comportamental, mas também a sinalização de alguns possíveis caminhos
para programas de pesquisa mais abrangentes sobre emoções, sentimentos e
pensamentos.
14
CAPÍTULO 1
RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O FLORESCIMENTO DAS DICOTOMIAS PSICOLÓGICAS
CLÁSSICAS
Organismos humanos são capazes de interagir uns com os outros de
modos complexos, impondo à realidade configurações sofisticadas, com graus
variados de diferenciação e que afetam de maneiras importantes sua vida
cotidiana. Transcendem, assim, as determinações de sua história filogenética
em larga medida e de modos únicos. Suas realizações nas artes, nas técnicas
e nas ciências atestam sua capacidade diferenciada e constituem alguns dos
produtos mais salientes dos processos de criação e transformação da realidade
em que vivem. O caráter social de tais produções dificilmente será negado por
alguém que se debruce sobre o processo histórico que está na sua origem.
Todavia, a interdependência entre os homens e mulheres de uma sociedade
(mais ou menos complexa) constitui um fato que nem sempre se reflete nas
crenças ou sistemas explicativos que essa mesma sociedade vem a construir
sobre suas conquistas, ou sobre as capacidades humanas. E quando as
condições de interdependência tornam-se menos evidentes, ou menos
reconhecidas, estão criadas as condições para uma concepção de homem
como ser autônomo, cujas ocorrências ou faculdades pessoais constituem o
núcleo de sua existência e de suas realizações.
O conceito de indivíduo e a noção de autonomia em que está
fundamentado, na contramão das evidências empíricas de interdependência,
refletem uma auto-imagem do homem moderno como capaz de realizar-se à
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parte das relações com outros homens. São as virtudes e faculdades do ou no
homem particular que começam a ser vistas como a base de suas realizações,
quer materiais, espirituais, cognitivas, ou de qualquer outra ordem. Um
exemplo clássico desse individualismo, que terá ampla repercussão no
pensamento moderno, inclusive na fundação na disciplina psicológica, é
encontrado no racionalismo cartesiano, de acordo com o qual a possibilidade
de o homem chegar a juízos seguros acerca da realidade à sua volta é
resultante não de processos de interlocução, do diálogo e do embate de idéias
com outros homens, mas, ao contrário, de um exercício de uma faculdade
pessoal, o pensamento racional, cujo emprego eficaz depende inclusive do
desprendimento em relação às opiniões alheias: “é quase impossível que
nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam, se tivéssemos o
uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido
guiados senão por ela” (Descartes, 1637/1979, p. 35). Não é de surpreender,
portanto, que o próprio pensar seja suficiente, no sistema cartesiano, como
prova da existência do indivíduo pensante (a res cogitans). Para Descartes
(1596-1650), nenhuma obra será tão perfeita quanto aquela planejada e
executada por um único homem, de acordo com o seu próprio julgamento, “não
há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de
diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou” (Descartes, p. 34).
No presente Capítulo, a problematização da subjetividade humana será
discutida à luz da emergência e consolidação de uma cultura individualista, na
qual a percepção dos laços de interdependência entre os homens dá lugar à
auto-imagem de autonomia do indivíduo. Todavia, no lugar de simplesmente
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questionar essa auto-imagem, serão discutidas algumas condições que
explicam sua elaboração e reprodução em sistemas de crenças (inclusive
teorias psicológicas) e práticas sociais das culturas caracteristicamente
individualistas. Em particular, serão discutidas certas mudanças importantes
nas sociedades ocidentais com o advento de uma economia de mercado. Às
transformações no plano das relações interpessoais e dos sistemas
explicativos produzidos nesse contexto de mudanças serão relacionadas as
dicotomias psicológicas clássicas: público/privado, interno/externo,
físico/mental e objetivo/subjetivo. Pretendemos argumentar que o florescimento
de uma cultura individualista, cujas práticas, valores e crenças tendem a
obscurecer as dimensões interpessoais das realizações humanas, constitui o
fundamento daquelas dicotomias. Isso implicará dizer que a caracterização de
fenômenos psicológicos como privados, internos, mentais ou subjetivos
representa um modo de desqualificar, ou remeter para segundo plano, as
dimensões interpessoais daquelas realizações. Com o propósito de introduzir
essa interpretação, serão assinalados alguns aspectos da vida em sociedade
na Europa feudal que, se não promoviam de modo claro uma concepção de
heteronomia ou interdependência dos homens, certamente não constituíam as
condições necessárias para a formação de uma cultura individualista. Hunt e
Sherman (1993) ilustram essas questões ao referirem aspectos da ética
paternalista cristã, que exerceu forte papel na regulação da vida social feudal:
no início do período feudal, a ética paternalista cristã estava
profundamente encravada na cultura européia ocidental. A ganância,
a avareza, o egoísmo, a ânsia de acumular riquezas, enfim, todas as
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motivações materialistas e individualistas eram severamente
condenadas. O homem ganancioso e individualista era considerado
a própria antítese do homem bom, preocupado com o bem-estar de
todos os seus irmãos. Os homens prósperos tinham ao seu alcance
a possibilidade de, com a riqueza e o poder de que dispunham,
realizar um grande bem ou um grande mal: o pior dos males
consistia em usar a riqueza exclusivamente para a sua
autogratificação, ou como meio para acumular continuamente, em
seu próprio proveito, maior quantidade de riquezas. Os homens ricos
honrados eram os que tinham consciência de que a sua fortuna e o
seu poder constituíam uma dádiva de Deus. Assim, sentiam-se
moralmente obrigados a agir de modo paternalista, administrando
seus negócios temporais com a finalidade de promover o bem-estar
de seus semelhantes. (pp. 17-18)
Sobre a importância das mudanças econômicas para que os laços
feudais se dissolvessem e a noção de autonomia emergisse, Duby (1990)
assinala:
As marcas evidentes das conquistas de uma autonomia pessoal se
multiplicam no decorrer do século XII, isto é, no momento em que se
acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola
chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de
transportar pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de
controle e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a
desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que
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por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar ... Tal movimento,
a mobilização das iniciativas e das riquezas suscitou a valorização
progressiva da pessoa. (pp. 505-506)
Ao longo das próximas seções, alguns aspectos das mudanças do modo
de vida feudal para uma sociedade de mercado serão brevemente discutidos,
enfatizando-se o que representam do ponto de vista das relações interpessoais
e dos modos como os homens passam a representar suas relações com o
mundo físico e social. Essas informações são importantes para a análise
desenvolvida neste trabalho tanto quanto possibilitam compreender o que está
na origem da noção de que sentimentos e pensamentos são ocorrências do ou
no indivíduo. Com isso, pretende-se argumentar que a idéia de que
sentimentos e pensamentos são fenômenos mentais, internos, subjetivos ou
privados decorre não de um compromisso com uma doutrina psicológica
particular, mas da exposição a contingências sociais específicas, que podem
inclusive explicar certos limites das soluções que se pretendem críticas de uma
visão individualista de homem. A análise de contingências histórico-sociais
(algumas delas, pelo menos) é inspirada nos trabalhos de Figueiredo (e.g.,
1991, 1992; Figueiredo e Santi, 1997) sobre a história da Psicologia, embora se
desenvolva segundo categorias próprias (com ênfase nas conexões dessas
contingências com uma economia de mercado, e nos conceitos resultantes sob
a forma de dicotomias psicológicas).
1.1. A Interdependência Humana em uma Sociedade Hie rárquica.
Homens e mulheres nascem e se desenvolvem como membros de
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grupos sociais específicos, no interior dos quais encontram um modo de vida e
participam, também, da construção de suas condições de sobrevivência e
reprodução. Assim, ainda que as crianças revelem, ao nascer, certas
competências para interagir com aspectos importantes de seu mundo (cf.
Moura & Ribas, 2004; Oliva, 2004; Tourinho & Carvalho Neto, 2004),
é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções
mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma
num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres
humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao
mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que
tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano
adulto. (Elias, 1994, p. 27)
Reconhecido o caráter sócio-cultural do desenvolvimento humano, é
importante destacar algumas condições sob as quais homens e mulheres se
desenvolvem em sociedades agrárias e hierárquicas como a sociedade feudal.
Em primeiro lugar, é necessário observar que as funções das classes (clero,
senhores e servos) que definem a estrutura dessa sociedade são vistas como
complementares, em particular no sistema de crenças (o catolicismo) que
constitui a principal fonte de legitimação dessas relações: uns rezam, outros
protegem, outros produzem. Inexistindo um poder (central) impessoal que atue
na regulação dessas relações, as obrigações são acompanhadas de
solidariedades coletivas nos códigos e costumes de cada feudo. Ou seja, é no
plano das relações imediatas dos homens uns com os outros que são
construídas as condições concretas de sobrevivência da sociedade como um
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todo.
Na Idade Média, como em muitas sociedades em que o Estado é
fraco ou simbólico, a vida de cada particular depende de
solidariedades coletivas ou de lideranças que desempenham um
papel de protetor. Ninguém tem nada de seu – nem mesmo próprio
corpo – que não esteja ameaçado ocasionalmente e cuja
sobrevivência não seja assegurada pelo vínculo de dependência.
(Ariès, 1991, p. 17)
É claro que a existência de laços de solidariedade em uma sociedade
hierárquica não implica o acesso indistinto às condições materiais de
sobrevivência, mas significa que as relações de poder, à luz da ética cristã e da
autoridade da igreja, encontravam certos limites.
Os homens que ocupam posições de poder e detêm a riqueza
assemelham-se ao pai ou ao protetor da família. Tinham obrigações
paternalistas para com os homens comuns, isto é, os pobres ou,
prosseguindo com a nossa analogia, os filhos. Do homem comum,
por sua vez, esperava-se que aceitasse seu lugar na sociedade e se
submetesse, de bom grado, à liderança dos ricos e poderosos, da
mesma maneira que um filho aceita a autoridade do pai. (Hunt &
Sherman, 1993, p.15)
Em segundo lugar, tem grande importância o fato de que nessa
sociedade a função social de homem ou mulher encontra-se, salvo exceções,
pré-definida, de acordo com a sua origem, portanto não é matéria quer de
reflexão pessoal, quer de dedicação e conquista ao longo da vida.
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A identidade social numa sociedade agrária, como a medieval, em
que as relações políticas cristalizadas em direitos e deveres, em
obrigações e lealdades consuetudinárias suportavam o peso de toda
a reprodução social era totalmente, ou quase, pré-definida pela
cultura em função de eventos biográficos, como o nascimento, a
filiação e a idade, independentes do próprio indivíduo. (Figueiredo,
1991, p. 20)
Nessas sociedades, como em sociedades menos complexas ainda hoje
encontradas (onde o Estado – se existe formalmente - não chega com suas
instituições, e a sobrevivência depende fortemente de uma atividade produtiva
voltada para a subsistência do grupo), a função social de cada um, além de
não depender de uma conquista pessoal, define-se basicamente pelo interesse
coletivo. O que está na base desses laços é principalmente o vínculo material
entre os membros do grupo, o fato de que a sobrevivência material está
estritamente vinculada à sobrevivência do grupo de origem; a impossibilidade
de produzir a própria sobrevivência à parte dessas relações. Sob tais
condições, o que regula a vida cotidiana de homens e mulheres não são
projetos pessoais de vida, mas demandas e interesses coletivos, contingências
ligadas à sobrevivência e reprodução do grupo.
Nas comunidades mais primitivas e unidas, o fator mais importante
do controle do comportamento individual é a presença constante dos
outros, o saber-se ligado a eles pela vida inteira e, não menos
importante, o medo direto dos outros. A pessoa não tem
oportunidade, necessidade, nem capacidade de ficar só. Os
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indivíduos mal sentem alguma oportunidade, desejo ou possibilidade
de tomar decisões por si ou de conceber qualquer pensamento sem
a constante referência ao grupo. Isso não significa que os membros
desses grupos convivam harmoniosamente. É comum ocorrer o
inverso. Significa apenas que – para usar o termo que
convencionamos – eles pensam e agem primordialmente do ponto
de vista do “nós”. A composição do indivíduo adapta-se ao constante
convívio com os outros a quem o comportamento tem que ser
ajustado. (Elias, 1994, p. 108)
A distinção indivíduo-sociedade, ou melhor, o conceito de indivíduo
sequer faz sentido nessas sociedades, visto que o espaço para cultivar
vocações, interesses e mesmo o gosto pessoais são muito restritos. Também
são poucas e pouco diferenciadas as funções sociais, de modo que não
constituem exatamente um caminho para a individualização. O
compartilhamento do destino inicia com o compartilhamento da moradia e dos
espaços de deslocamento, dos utensílios domésticos e dos instrumentos e
rotinas de trabalho, dos jogos e das preces. O isolamento físico é objeto de
desconfiança e sequer pode existir no interior do espaço doméstico. Loucos (os
homens comuns) ou heróis (eremitas e cavaleiros errantes) são aqueles que se
arriscam a andar sozinhos. Rezar, ler, cantar ou lavrar a terra são
essencialmente atos coletivos, realizados no espaço socialmente
compartilhado. Realizar-se materialmente, espiritualmente, cognitivamente ou
ludicamente, tudo pertence, de um ponto de vista imediato, ao plano das
relações interpessoais, de modo inescapável. Vida privada confunde-se com
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vida pública, no sentido de que o compartilhamento das diversas dimensões da
existência varia com respeito à amplitude do universo social, porém nunca a
ponto de confinar o homem à introspecção. Ainda que aos olhos do indivíduo
moderno essa imagem cause estranheza, é assim que os historiadores
descrevem a experiência de vida no mundo feudal. Discutindo a “emergência
do indivíduo” Duby (1990) assinala:
Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão – na época feudal,
o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes
moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do
trespasse, da grande passagem para o outro mundo ... na sociedade
feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado,
constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar,
murada; a outra deslocando-se no espaço público, não menos
coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias,
reunida pelos mesmos procedimentos de controle ... E se vida
privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado
por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto;
se vida privada significa independência, também essa
independência era coletiva. (pp. 503-504)
Outra característica essencial da sociedade feudal, ainda encontrada
em sociedades mais simples, consiste do fato de que os processos reflexivos e
de tomada de decisão não apenas são coletivos, como muito menos
freqüentes, pela simples razão de que são menos necessários, uma vez que há
poucas alternativas a serem consideradas a cada momento da vida cotidiana.
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Os homens nessas sociedades não precisam ocupar-se a cada momento de
decidir aonde ir, como ir, o que fazer, ou de que modo fazer. Mesmo com
respeito ao horizonte de uma vida, há muito menos decisões a serem tomadas,
poucas encruzilhadas, como menciona Elias (1994):
Nas sociedades mais simples, há menos alternativas, menos
oportunidades de escolha, menos conhecimento sobre as ligações
entre os acontecimentos e, portanto, menos oportunidades passíveis
de parecerem “perdidas”, quando vistas em retrospectiva. Nas mais
simples de todas, é freqüente haver diante das pessoas um único
caminho em linha reta desde a infância – um caminho para as
mulheres e outro para os homens. Raras são as encruzilhadas;
raramente alguém é colocado sozinho diante de uma decisão ...
Vive-se um dia atrás do outro. A pessoa come, sente fome, dança,
morre. Qualquer visão a longo prazo de algo que possa ocorrer em
algum momento futuro é muito limitada, e o comportamento
presciente é incompreensível e pouco desenvolvido. Igualmente
incompreensível é a possibilidade de uma pessoa deixar de fazer
algo que se sinta premida a fazer aqui e agora em nome de uma
satisfação que talvez lhe venha dentro de uma semana ou um ano,
ou sua possibilidade de fazer o que chamamos “trabalhar”. Por que
haveria alguém de fazer um esforço muscular não referido às
exigências urgentes do momento? (p. 110)
Ligados uns aos outros de modos inescapáveis e vivendo uma vida
cotidiana baseada na realidade imediata, homens e mulheres no mundo feudal
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não estão expostos a condições que favoreçam a construção e dedicação a
projetos baseados em uma referência pessoal. O “nós” vale mais do que o “eu”
na definição de cada passo, de cada rotina, de cada projeto. Na religião, por
exemplo, o isolamento é coisa para poucos privilegiados. Para o homem
comum, chegar a Deus é matéria de participação em cerimônias coletivas e/ou
de cumprimento de reverência ou solidariedade a outros (esse ponto será
retomado adiante).
Se o segredo não é possível, ele também não é necessário, pelo menos
não como nas sociedades modernas. Emoções e sentimentos podem ser
experimentados de modos mais espontâneos. O que essa espontaneidade
significa ficará mais claro quando observarmos o que acontece quando ela não
é mais aceitável. As conseqüências para cada um de os outros saberem o que
sente não são tais que justifiquem uma preparação para evitar a
espontaneidade. É por essa razão que crianças e adultos compartilham os
momentos da vida cotidiana. Apenas com a transformação dessas relações, a
criança será retirada do convívio com a família e será inventada a infância, com
um estágio da vida para o adestramento para a convivência com o mundo
adulto. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhece a infância, ou
não tentava representá-la ... É mais provável que não houvesse lugar para a
infância nesse mundo” (Ariès, 1981, p. 50)5. A reflexão, também, sendo
predominantemente oral e coletiva (porque voltada para assuntos que são de 5 Ariès (1981) afirma também: “Na sociedade feudal, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento de infância não significa o mesmo que a afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Por essa razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (p. 156).
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interesse imediato também para os outros) desenvolve-se ao conhecimento
dos outros.
Contingências sociais dessa ordem não promovem, ao contrário, inibem
uma concepção individualizada do homem. Não se pode dizer que promovam
uma percepção das relações de interdependência, uma vez que raramente o
homem é levado a refletir sobre sua condição no mundo. Mas certamente não
reservam lugar para a noção de autonomia. Será necessário ao indivíduo
encontrar novas condições para a produção de sua realização nos diversos
domínios da vida, em especial será necessário encontrar novas condições
materiais de vida, para que um sentimento de autonomia possa ser cultivado.
Essas condições passam a se concretizar com o advento de uma economia de
mercado. A conquista da autonomia pessoal, uma marca notável da vida
moderna, não se realizaria sem essas transformações. É necessário, porém,
refletir sobre a natureza e o alcance dessa autonomia. Como se argumentará
adiante, há de fato uma autonomia conquistada, no sentido de o indivíduo nas
sociedades modernas encontrar-se menos limitado pelas condições de vida
encontradas ao nascimento, e menos dependente de suas relações familiares
e sociais imediatas. Em contrapartida, os processos de interdependência no
mundo moderno assumem formas muito mais complexas e sofisticadas,
impondo muito mais exigências para a realização individual. Essas duas
dimensões da conquista da autonomia individual (a multiplicação dos
horizontes de vida e a maior complexidade da interdependência) explicam em
larga medida as concepções de homem que vão se tornando dominantes na
cultura, inclusive no campo da disciplina psicológica.
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1.2. Condições de Interdependência em uma Sociedade de Mercado.
A transição do feudalismo para o capitalismo é descrita por historiadores
como um processo desencadeado pelo crescimento da produtividade agrícola
na Europa ocidental, que se prolongou por vários séculos, e que assumiu
características peculiares em diferentes contextos geográficos e sócio-políticos.
Para fins da presente análise, interessará assinalar alguns aspectos do que as
mudanças desencadeadas pela dissolução dos laços econômicos feudais
representaram do ponto de vista das relações cotidianas de homens e
mulheres uns com os outros.
Com desenvolvimento da técnica na produção agrícola e a
intensificação da atividade comercial, a partir do século XI6, a produção até
então voltada primariamente para a subsistência começa a dirigir-se a um
mercado. O interesse na troca, na possibilidade de produzir para obter moeda,
com a qual são adquiridos os bens para a própria sobrevivência (e mais do que
isso) traz um impacto considerável sobre a atividade produtiva rural (note-se
que até o século X a população na Europa ocidental vivia quase inteiramente
em feudos e pequenas aldeias cf. Hunt & Sherman, 1993). A definição do que
produzir, como produzir, que função desempenhar no processo produtivo, tudo
passa a ser regulado por condições do mercado. Na medida em que interessa
produzir aquilo que pode representar maiores chances de sucesso financeiro
nas trocas econômicas, começa a haver espaço para vocações pessoais,
6 A expansão do comércio a partir do século XI deve-se em grande medida às cruzadas cristãs, mas, como assinalam Hunt e Sherman (1993), isso não significa que a motivação desse movimento tenha sido propriamente religiosa.
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preocupação com a efetividade produtiva dos membros do grupo e uma divisão
crescente do trabalho. Isto é, avança, no interior dos grupos, a diferenciação
das funções sociais. Rompidos os compromissos entre senhores e servos, seja
pela introdução do trabalho assalariado em substituição às relações de
vassalagem, seja pelo abandono de obrigações relativas à observância de uma
estrutura social hierárquica, abrem-se os horizontes para a conquista de uma
identidade social nova. O sucesso material ou econômico não é mais
constrangido pela condição de origem, mas dependente de uma conquista
pessoal.
Em uma outra esfera, as alternativas para dedicar-se à atividade
comercial e a outras funções (especialmente financeiras e contábeis), assim
como à produção de manufaturas, multiplicam os cursos de vida possíveis, por
meio dos quais o conforto e o reconhecimento social podem ser conquistados.
Isto é, multiplicam-se as funções sociais que cada um pode desempenhar, e as
novas funções não mais impõem o atrelamento aos laços familiares de origem.
É claro que muitas dessas novas funções e as riquezas que com elas se pode
alcançar não estarão acessíveis a qualquer um. Por exemplo, as funções
contábeis exigirão habilidades matemáticas e de leitura que poucos,
freqüentemente clérigos, dispõem. Ainda assim, é notável que a vida do
homem comum deixe de ser tão marcadamente definida por uma condição de
subsistência e tão decisivamente dependente de sua permanência junto ao
grupo de origem7.
7 Uma passagem de Sennett (1989) ilustra esse ponto, ainda que se referindo apenas a Londres e Paris e no século XVIII, um momento bem avançado do desenvolvimento do capitalismo: “Do ponto de vista social, o crescimento do comércio criou empregos nos setores financeiro, comercial e burocrático da cidade. Falar em “crescimento da burguesia” em
29
A intensificação do comércio dará origem ainda a uma condição
geográfica de vida com grandes implicações para as relações interpessoais. As
cidades, inicialmente pequenos centros de trocas, tornam-se um continente de
homens e mulheres, desconhecidos em sua imensa maioria e freqüentemente
dedicados a projetos de vida não compartilhados uns com os outros, ao
contrário, muitas vezes conflitantes com os interesses uns dos outros. É
incomparável com a “limitada e pacata vida feudal” a extensão do universo
social em que está imerso o citadino e as exigências que lhe são impostas para
uma vida bem sucedida social e economicamente. Especialmente a partir do
século XVI, as cidades tornam-se notavelmente populosas. Londres, por
exemplo, salta de 150 mil habitantes em 1595 para cinco milhões ainda no
século XIX (Sennett, 1989, p. 70). Viver nas cidades é viver em um universo
social no qual o comportamento de cada um está sujeito a regulações muito
mais complexas, e que não se definem mais por códigos de obrigações e
solidariedades definidas no plano de relações interpessoais específicas.
No século XV, os locais onde se reuniam as feiras começavam a se
transformar em prósperas cidades comerciais, cujos mercados
funcionavam durante todo o ano. A atividade comercial desenvolvida
por essas cidades era incompatível com as restrições impostas
pelos costumes e tradições feudais. A maior parte das cidades
conseguiu, após intensas lutas, libertar-se da tutela dos senhores
qualquer das duas cidades é, pois, se referir a uma classe engajada em atividades de distribuição, e não na produção. Os jovens que vinham para a cidade encontravam trabalho nessas profissões mercantis e comerciais; na verdade, havia como que uma escassez de mão de obra, pois havia mais empregos que exigiam trabalhadores alfabetizados do que jovens que sabiam ler” (p. 79).
30
feudais e da Igreja. Nos centros comerciais realizavam-se operações
financeiras: de câmbio, de liquidação de dívidas e de crédito.
Tornou-se corrente o uso das letras de câmbio e de outros
instrumentos financeiros modernos. Uma nova legislação comercial
foi elaborada pelos comerciantes dessas cidades. Ao contrário do
direito consuetudinário e paternalista que vigorava nos feudos, a
legislação comercial foi definida por um código preciso. Lançaram-se
assim as bases da lei de contratos, dos papéis negociáveis, das
representações comerciais, das vendas em leilão, enfim, de uma
série de procedimentos característicos do capitalismo moderno.
(Hunt & Sherman, 1993, pp.26-27)
Historicamente, a formação dos Estados nacionais, ao final da Idade
Média, representou uma resposta a demandas crescentes de gerenciamento
das relações interpessoais, em parte pelo alargamento do universo social de
homens que se deslocavam da vida comunitária em seus grupos de origem, na
direção de uma convivência com grupos numerosos e desconhecidos. A
instituição social do Estado, porém, representa a resposta a um conjunto mais
amplo de problemas do que o alargamento do universo social. A formação dos
Estados nacionais cumprirá, entre outros, o papel de prover a sociedade de
uma instituição reguladora das relações interpessoais que tem, sobretudo,
responsabilidades relacionadas à proteção e à garantia de cumprimento dos
contratos, agora celebrados em caráter impessoal. São as garantias do Estado,
também, que darão suporte ao descolamento do indivíduo de seu grupo de
origem, em direção à conquista de sua (nova) identidade social.
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Um número cada vez maior de funções relativas à proteção e ao
controle do indivíduo, previamente exercidas por pequenos grupos,
como a tribo, a paróquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo
transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais
urbanizados. À medida que essa transferência avança, as pessoas
isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trás os grupos
locais próximos, baseados na consangüinidade. A coesão dos
grupos rompe-se à medida que perdem suas funções protetoras e
de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e
urbanizadas, o indivíduo tem que batalhar muito mais por si. A
mobilidade das pessoas, no sentido espacial e social, aumenta. Seu
envolvimento com a família, o grupo de parentesco, a comunidade
local e outros grupos dessa natureza, antes inescapável pela vida
inteira, vê-se reduzido. Eles têm menos necessidade de adaptar seu
comportamento, metas e ideais à vida de tais grupos, ou de se
identificar automaticamente com eles. Dependem menos deles no
tocante à proteção física, ao sustento, ao emprego, à proteção de
bens herdados ou adquiridos, ou à ajuda, orientação e tomada de
decisão. Isso acontece, a princípio, em grupos limitados e especiais,
mas se estende gradativamente ao longo dos séculos, a setores
mais amplos da população, até mesmo nas áreas rurais. E, à
medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais
estreitamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada
vez mais complexas, eles se descobrem diante de um número
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crescente de opções. Mas também têm de decidir muito mais por si.
Não apenas podem como devem ser mais autônomos. Quanto a
isso não têm opção. (Elias, 1994, p. 102)
Há vários aspectos da abordagem de Elias (1994) que merecem
destaque neste ponto da apreciação do problema das relações interpessoais
em sociedades de mercado. O primeiro deles diz respeito ao fato de que as
relações de dependência entre os indivíduos se alteram, não na direção de
uma autonomia absoluta, mas em direção a uma rede muito mais complexa de
interdependência, daí a necessidade da instituição do Estado para fazer valer
compromissos mútuos. Isso significará que o indivíduo, na vida cotidiana, de
um lado, depende menos dos pequenos grupos sociais aos quais se encontra
vinculado ao nascimento, e mais a redes complexas de relações com um
universo social muito mais amplo. De outro, dada a extensão do universo social
no qual está imerso e a complexidade das relações com os homens e mulheres
que integram esse universo, não é principalmente de suas relações imediatas
(com vizinhos, colegas de trabalho, parentes, amigos etc.) que depende o
atendimento de grande parte de suas necessidades cotidianas (por exemplo,
relativas a alimentação, locomoção, vestuário etc.) ou mesmo suas aspirações
mais distantes ou de maiores “dimensões” (por exemplo, conquistar um
emprego compatível com um trajeto longo de formação, alcançar uma situação
econômica confortável e estável etc.). Para atender essas necessidades ou
realizar essas aspirações, o indivíduo deverá interagir com complexos arranjos
sociais e econômicos. O leite que o alimenta pela manhã estará disponível não
por força de sua relação com familiares que ordenham animais domésticos dos
33
quais também cuida, mas como resultado de um complexo sistema de relações
econômicas, das quais participam desde um desconhecido operador de
máquinas que confeccionam embalagens de papel e financistas responsáveis
por operações de crédito a empresas de laticínios, até operários de empresas
de conservação de estradas pelas quais transitam os caminhões que
transportam a produção daquelas empresas, todos absolutamente
desconhecidos e distantes das relações cotidianas ou imediatas dos indivíduos.
Um segundo aspecto a ser considerado é que a coesão encontrada em
grupos familiares ou de afinidade, quando a sobrevivência de cada um
depende direta e imediatamente das relações com os demais, inexiste se o
indivíduo descola-se desse grupo em direção à realização de projetos pessoais
de vida. Não se trata de abandonar um grupo, filiando-se a outro(s), mas de
deixar para trás um tipo de interação social mais solidária e espontânea, em
direção a relações muito mais complexas, onde a identidade de interesses é
muito menos presente e onde o comportamento frente aos outros precisa ser
calculado. Nas sociedades mais simples, o que promove a coesão não é uma
“vocação” para a solidariedade, mas o fato de que as ameaças externas são
constantes e a sobrevivência individual dependente das relações com grupos
de convivência imediata. Nas sociedades mais complexas, nos Estados
modernos, especialmente nas metrópoles, as condições materiais de
sobrevivência tanto dependem menos dessas relações como exigem a
dedicação do indivíduo a um projeto pessoal de vida. Quanto mais sensível a
demandas dos outros, quanto menos concentrado em seus objetivos, projetos
e horizontes de vida, menores as chances de “sucesso” material, medido
34
principalmente pelo acúmulo de riquezas (daí seu menor envolvimento com a
família de origem). Porém, se o indivíduo está menos disponível para as
demandas alheias (porque não são necessariamente, ou na mesma medida,
suas também), de outro lado ele também dependerá muito mais de si mesmo,
no sentido de que poderá contar muito menos com o suporte de seu grupo
social nas tarefas ou projetos cotidianos a que se dedica.
O terceiro ponto a ser destacado é o fato de que ao deslocar-se para
um universo social de anônimos, a identidade individual deixa de ser aquela
conferida no interior dos grupos familiares, passando a ser matéria de
conquista que, dependendo do contexto, pode ser função de uma variedade de
fatores, incluindo uma eficiente participação em “jogos” sociais, nos quais as
“aparências” tornam-se fundamentais (cf. Sennett, 1989). Isso significa que se
o indivíduo vê diante de si possibilidades de mobilidade social, também precisa
responder a exigências crescentes de comportamento social. Não é sem razão
que, a partir do século XVI, os códigos de etiqueta, ou “códigos de civilidade”
tornam-se um tipo de literatura com ampla difusão e consumo na Europa
ocidental (cf. Elias, 1939/1990b). Comportar-se adequadamente diante dos
outros torna-se uma necessidade que para ser cumprida requer um longo
aprendizado e disciplina constante. Desde um banal cumprimento, até as
seqüências de comportamentos alimentares à mesa8, tudo se torna matéria de
uma atenção cuidadosa, de comedimento, de autocontrole.
Por último, em uma sociedade de mercado, multiplicam-se as
alternativas de ação a cada momento, assim como se multiplicam os sistemas 8 Acompanha esse refinamento o surgimento dos utensílios usados à mesa: a taça individual, o prato, os talheres, o guardanapo etc..
35
de crenças que orientam o homem na vida cotidiana. Não apenas os indivíduos
podem dedicar-se a funções sociais cada vez mais diversificadas, como podem
dedicar-se a atividades de lazer cada vez mais variadas, interagir com grupos
diversos e variar sua rotina em inúmeras direções (o que vestir, como trabalhar,
que percurso fazer etc.). As reformas religiosas, por seu turno, também
instituem a diversidade da cristandade. Para nada na vida há um único (ou
poucos) caminhos a seguir, muito menos uma única referência em que apoiar a
ação. Os indivíduos, como conseqüência, podem (e precisam) decidir. Tomar
decisões torna-se uma parte rotineira da vida. E os indivíduos devem tomar
decisões por si mesmos, pois não estão disponíveis contextos de suporte
social para as tomadas de decisão. Em parte, esse afrouxamento da
determinação dos cursos de vida e dos comportamentos cotidianos, assim
como a experiência de decidir como prática rotineira explicam uma auto-
imagem de autonomia do homem moderno.
Alguns dos aspectos mencionados até aqui serão retomados adiante, na
apreciação das dicotomias psicológicas clássicas. Antes disso, porém, convém
acrescentar algumas observações sobre a diversificação das funções sociais
nas sociedades de mercado. Elias (1994) assinala que o processo de
diferenciação e multiplicação das funções sociais tem uma história mais longa
(alguns milênios) do que a transição do feudalismo para o capitalismo, mas
também experimentou uma aceleração única nos últimos séculos: “O número
de atividades especializadas ... elevou-se ao longo dos milênios, a princípio
lentamente, mas agora em ritmo cada vez mais acelerado” (Elias, 1994, p.
113).
36
Com o processo de diferenciação crescente das funções sociais a
produção das condições de sobrevivência dos grupos passou a depender de
um número cada vez maior de atividades ou passos executados cada um por
apenas alguns indivíduos.
No decorrer do tempo, não apenas multiplicou-se o número de
passos entre o primeiro e o último numa seqüência de ações, como
também um número crescente de pessoas se fez necessário para
executar esses passos. E, no decorrer desse processo, mais e mais
pessoas viram-se numa crescente dependência umas das outras,
interligadas como que por correntes invisíveis. Cada qual funcionava
como um elo de ligação, um especialista em uma tarefa limitada.
Cada qual era urdida em uma trama de ações em que um número
cada vez maior de funções especiais, e de pessoas dotadas das
capacidades para executá-las, se interpunha entre o primeiro passo
em direção a uma meta social e a consecução dessa meta. (Elias,
1994, pp. 111-112)
A especialização em uma função particular, cada vez mais diferente de
todas as funções desempenhadas pelos outros, torna muito mais complexa e
menos visível a dependência de cada um em relação a todos os outros. De um
ponto de vista imediato, o sucesso do indivíduo no exercício de uma função
particular (especialmente sob a forma de uma contrapartida em moeda)
descola-se do que acontece com todos os outros que estão próximos,
exercendo outras funções. Além disso, a função com alto grau de
especialização pode ser desempenhada sem o auxílio imediato dos outros.
37
Essa especialização acentuada favorece, assim, uma auto-imagem de
autonomia. Todavia, paradoxalmente, quanto mais especializado, mais
dependente o indivíduo se torna de muitos outros indivíduos, posto que estará
menos capacitado para uma parcela muito maior das atividades necessárias à
produção das condições necessárias à sua sobrevivência. A complexidade
dessas novas relações de interdependência contribui, porém, para torná-las de
mais difícil percepção. A emergência do indivíduo resulta, assim, não de
criações originais de homens e mulheres particulares, mas de uma
transformação expressiva das relações interpessoais.
Os avanços da individualização, como na Renascença, por exemplo,
não foram conseqüência de uma súbita mutação de pessoas
isoladas, ou da concepção fortuita de um número especialmente
elevado de pessoas talentosas; foram eventos sociais, conseqüência
de uma desarticulação de velhos grupos ou de uma mudança na
posição social do artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram
conseqüência de uma reestruturação específica das relações
humanas. (Elias, 1994, pp. 28-29)
1.3. A Emergência do Indivíduo e o Acobertamento da s Relações de
Interdependência.
Quando dizemos que uma sociedade muda, isso significa que mudam
certas práticas sociais em seu interior, assim como mudam os sistemas de
crenças que justificam ou legitimam essas práticas. A transição para o
capitalismo ilustra de modo singular os dois tipos de mudanças. Na presente
38
seção, serão assinaladas algumas mudanças nos sistemas de crenças do
mundo ocidental que foram cruciais para a consolidação de um novo padrão de
relacionamento interpessoal e para o enraizamento da auto-imagem de
autonomia. Apenas por uma questão de conveniência, os novos sistemas de
crenças serão exemplificados com referências pontuais à organização sócio-
política e econômica, às concepções religiosas, ao pensamento filosófico
acerca do conhecimento humano sobre a realidade e às prescrições para o
comportamento social. Há diversos outros domínios (por exemplo, o das artes)
nos quais vão se elaborando noções que também refletem uma concepção de
homem como indivíduo. O que acontece em cada um desses domínios de
reflexão influencia e é influenciado pelo que ocorre nos demais. É a cultura
como um todo que sofre transformações em uma dada direção, impulsionada
de modo fundamental pela mudança na base material da vida.
Com a desagregação da organização social e política feudal, rompidos
os laços locais de obrigações de solidariedades que ligavam os homens no
interior da hierarquia social, ao mesmo tempo em que se multiplicavam as
funções sociais e interesses pessoais, os conflitos encontrariam terreno fértil
para progredir, a ponto de comprometer a sobrevivência da sociedade como
um todo, se no lugar daquelas tradições e costumes não se estabelecessem
outros mecanismos de ajustamento e regulação das relações sociais. O
surgimento e expansão dos Estados nacionais, com suas leis, com o
monopólio da violência física e com o controle da atividade econômica e da
circulação da moeda, cumpriria essa função.
A extensão da intervenção do Estado nas relações interpessoais, em
39
particular nas relações econômicas, tornou-se objeto de disputa permanente
entre classes sociais e entre agentes econômicos, cujos interesses conflitantes
os mantêm em também permanente luta (cf. Hunt & Sherman, 1993). O
liberalismo clássico, pelo menos a partir do século XVIII, com o processo de
industrialização, tornou-se o pensamento econômico dominante no ocidente,
deixando para trás a ética paternalista cristã medieval. Não era possível ao
capitalismo estabelecer-se como modo de produção à luz da condenação
religiosa à busca e acumulação de riquezas. Ao contrário, as motivações que
impulsionam o homem para o enriquecimento passam a ser vistas como
virtudes necessárias para o progresso econômico. O poder regulador das
relações entre os homens, o Estado, não mais a Igreja, deve, no lugar de impor
sanções à avareza e ao egoísmo, liberar os indivíduos para que busquem o
sucesso econômico, ocupando-se de evitar que esse movimento conduza a
uma “guerra de todos os homens contra todos os homens” (Hobbes,
1651/1979, p. 77). O pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679), ainda no
século XVII, pode ser considerado fundacional para toda a doutrina liberal.
Em seu Leviatã, Hobbes (1651/1979) argumenta que em seu estado
natural todo homem deseja e busca sua satisfação pessoal, entrando em
conflito com outros homens: “se dois homens desejam a mesma coisa, ao
mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se
inimigos” (p. 74). A competição, a desconfiança e a glória constituem as três
principais causas dos conflitos. “A primeira leva os homens a atacar os outros
tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação” (p. 75).
O conflito entre motivações e interesses pessoais é reconhecido, assim, como
40
uma condição natural da vida humana. Uma vez que é da natureza humana
buscar a satisfação pessoal, não se justifica condenar suas motivações ditas
egoístas, sua avareza, ou busca de riquezas: “Os desejos e outras paixões do
homem não são em si mesmos um pecado” (p. 76) – justamente o oposto do
que pregava a ética paternalista cristã medieval.
Para que o capitalismo se estabeleça como sistema econômico será
necessário apoiar-se em um sistema de crenças que, no lugar de condenar o
acúmulo de riquezas pessoais, considere virtuosas aquelas qualidades
humanas antes vistas como pecaminosas. O individualismo, no modo como se
elabora nos discursos sobre o Estado e a economia, cumprirá parcialmente
esse papel. Se na idade média a “ganância, a avareza, o egoísmo, a ânsia de
acumular riquezas, enfim, todas as motivações materialistas e individualistas
eram severamente condenadas” (Hunt & Sherman, 1993, p.17), agora se trata
de reconhecer sua legitimidade e mesmo sua necessidade para o
desenvolvimento econômico. Em 1776, o individualismo liberal assumiu sua
forma definitiva na Riqueza das Nações (A. Smith, 1776/1988) de Adam Smith
(1723-1790), para quem as motivações egoístas também teriam uma função
importante para o desenvolvimento do capitalismo e seriam adequadamente
reguladas pela força oculta de um mercado livre (a “mão invisível” do mercado).
Antes disso, um dos “pais da América”, Benjamin Franklin (1706-1790) já
prescrevia que “tempo é dinheiro”, “crédito é dinheiro”, “o dinheiro pode gerar
dinheiro” e “o bom pagador é dono da bolsa alheia” (Franklin, 1736, em Weber,
1904-1905/2003). Max Weber (1864-1920), em sua A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo (Weber, 1904-1905/2003) remete-se aos escritos de
41
Franklin como ilustrações puras do espírito do capitalismo:
A peculiaridade dessa filosofia da avareza parece ser o ideal dos
homens honestos, de crédito reconhecido e, acima de tudo, a idéia
de dever que o indivíduo tem no sentido de aumentar o próprio
capital, assumido como um fim em si mesmo. De fato, o que nos é
aqui pregado não é apenas um meio de fazer a própria vida, mas
uma ética peculiar. A infração de suas regras não é tratada como
uma tolice, mas como um esquecimento do dever. Essa é a
essência do exposto. Não se trata de mera astúcia de negócios, o
que seria algo comum, mas de um ethos. E essa é a qualidade que
nos interessa. (p. 48)
Hobbes não via, como A. Smith (1776/1988), “virtudes” do mercado que
seriam suficientes para regular a vida econômica na sociedade. Para ele, se
em seu estado natural os homens, governados apenas por suas paixões e sua
razão, travarão uma guerra de todos contra todos, em que a sobrevivência ou a
segurança não estarão garantidas para ninguém9, uma outra solução para a
paz precisa ser encontrada. Como única saída, o homem deve renunciar, em
favor de uma fonte absoluta de poder comum, o Estado, a seu direito natural
sobre todas as coisas10. Trata-se, assim, de uma lei da natureza que a
9 Hobbes (1651/1979) provoca o interlocutor que tende a reagir à sua caracterização do homem: “Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres?” (p. 76). 10 Desse ponto de vista, há um conflito entre a visão de Hobbes (favorável a um Estado forte e centralizado) e o liberalismo clássico (que embora fundamentado na mesma concepção de homem postula menor intervenção do Estado nas relações econômicas). Para A. Smith (1776/1988), as funções dos governos estariam circunscritas a proteger o país contra invasões, proteger os cidadãos contra injustiças praticadas por outros cidadãos e construir e manter instituições públicas (importantes para a sociedade, mas que não seriam construídas por indivíduos particulares porque não atenderiam a lógica do lucro) (cf. Hunt & Sherman, 1993 p.
42
renúncia à liberdade plena é necessária como a única medida capaz de
restaurar a paz entre os homens:
Que um homem concorde quando outros também o façam11, e na
medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa
de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma
liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.
(Hobbes, 1651/1979, p. 79, itálico do original)
Se o individualismo necessário ao desenvolvimento do capitalismo
conflita com as prescrições do cristianismo medieval, uma outra referência
religiosa será necessária como suporte ético para as novas relações
econômicas. Com efeito, a multiplicação de perspectivas, típica do
renascentismo, encontra uma das mais importantes expressões justamente no
campo religioso, com a reforma protestante e a contra-reforma católica. Em
ambos os casos, o outro se torna acessório, ainda que subsistam as
cerimônias e práticas coletivas, no que há de mais fundamental para a ascese
espiritual, visto que é no indivíduo que se realizam as condições de salvação.
Ainda no final da idade média,
no mesmo momento, enquanto a vida penetra o rosto das estátuas-
colunas, toma corpo, entre os sábios que meditam sobre o texto da
Escritura, a idéia perturbadora de que a salvação não é alcançada
66). 11 Note-se que, para Hobbes (1651/1979), apenas quando outros também abrem mão de seus direitos naturais a renúncia do indivíduo é justificada. Caso contrário, “equivaleria a oferecer-se como presa ... e não a dispor-se para a paz” (p. 79).
43
apenas pela participação em ritos, numa passividade submissa, mas
se “ganha” por uma transformação de si mesmo. É um convite à
introspecção, à exploração da própria consciência, pois que a falta já
não parece residir no ato, mas na intenção, pois se considera que
ela se refugia na intimidade da alma. Para o interior do ser, em um
espaço privado que não tem mais nada de comunitário, transportam-
se os procedimentos de regulação moral. Lava-se a mácula pela
contrição, pelo desejo sobretudo de se renovar. (Duby, 1990, pp.
506-507)
Na Idade Média, já se encontrava um padrão de comportamento
religioso baseado no isolamento, no retiro, na busca interior da afirmação da fé.
Todavia, esse não era o comportamento esperado do homem comum que, ao
contrário, deveria evitar o isolamento (visto que afastado dos outros homens
tornava-me mais vulnerável às tentações do mal) e voltar-se para as
cerimônias e rituais públicos, no quais suas práticas religiosas estavam à vista
de todos. Mesmo a confissão, a princípio um ato “excepcional e público” (Duby,
1990, p. 524), só se instituiu como uma obrigação sob a forma de um ato
“discreto, periódico e obrigatório” (Duby, p. 525) no IV Concílio de Latrão, em
1215. O padrão de comportamento baseado no isolamento e na introspecção
referido acima estava reservado ao clero e, mesmo nesse grupo, àqueles
poucos que já haviam alcançado um estágio superior de afirmação da fé.
O anacoretismo, assim como inúmeros cuidados no interior dos
mosteiros para limitar a comunicação ou contato dos religiosos uns com os
outros, representava a tentativa do homem de Deus para alcançar aquele
44
estágio superior de devoção. A Regra de São Bento (480-547), estabelecia o
grau superior de perfeição a ser buscado pelo crente em Deus:
Quem se afasta do mundo transforma sua vida num jogo de azar.
Pode ganhar ou perder tudo. Acabaram-se os meios-termos da vida
comum. Será Deus ou o Diabo; antes da contemplação, a tentação.
O exemplo evangélico desses retiros é, com efeito, fornecido pelo
episódio da Tentação no deserto ... Bento, em sua Regra, define as
condições que os eremitas devem preencher: “Os que já não têm na
vida regular um fervor de noviço e que, por um exercício prolongado
no mosteiro, aprenderam a lutar contra o Demônio e se fizeram
aguerridos graças ao apoio de seus irmãos. Então, bem exercitados,
passam do batalhão fraternal ao combate singular do deserto.
Sólidos agora sem o apoio de outros, bastam-se a si mesmos para
combater, com a ajuda de Deus, unicamente com sua mão e seu
braço, os vícios da carne e dos pensamentos”. (Dalarun, 1990, p.27)
Ao mesmo tempo em que a Regra definia aquela perfeição acessível
apenas pelo respeito à “obrigação do silêncio, experiência de retiro” (Duby,
1990, p. 508), também insistia no despreparo do homem comum para aquela
provação: “Nosso Senhor Jesus Cristo advertiu seus discípulos que ainda não
têm a confirmação do Espírito Santo nem o treinamento do combate espiritual
dizendo: ‘Quanto a vós, permanecei na cidade até receberdes a virtude do
alto’” (Chartres, em Dalarun, 1990, p. 28). Ainda, “O ditado popular resume
rudemente essas belas palavras: ‘Para eremita jovem, diabo velho’” (Dalarun,
1990, p. 28).
45
O que era reservado, no mundo medieval, àquela parcela do clero
disposta a cumprir o estágio mais elevado de perfeição espiritual, penetra, com
a Reforma protestante e a Contra-Reforma católica, no cotidiano do homem
comum. Se, antes, chegar a Deus era matéria de uma dimensão da existência
na qual havia sempre o outro, seja por meio de práticas com os outros (a
participação nas cerimônias), para os outros (a caridade) ou pelos outros (as
rezas nos mosteiros, como as boas ações dos monarcas alcançavam graças
para o povo – cf. Duby, 1990), agora, encontra-se Deus no próprio íntimo – e
apenas se houver a necessária disciplina para desligar-se do mundo físico e
social externo.
As novas formas de religião que se estabelecem nos séculos XVI e
XVII ... desenvolvem uma devoção interior – sem excluir, muito pelo
contrário, outras formas coletivas de vida paroquial -, o exame de
consciência, sob a forma católica da confissão ou a puritana do
diário íntimo. Entre os laicos, a oração cada vez mais assume a
forma da meditação solitária num oratório privado ou simplesmente
num canto do quarto, num móvel adaptado para esse fim, o
genuflexório. (Ariès, 1991, p.10)
Weber (1904-1905/2003) observou tanto que o protestantismo tornou o
ascetismo medieval uma atividade terrena, quanto a função que isso teve para
instituir uma cultura propícia ao desenvolvimento do capitalismo moderno. A
disciplina, a moderação no consumo e a valorização do trabalho constituíam a
base da acumulação capitalista: “Um dos elementos fundamentais do espírito
do capitalismo moderno, e não só dele, mas de toda a cultura moderna, é a
46
conduta racional baseada na idéia de vocação, nascida ... do espírito do
ascetismo cristão” (Weber, p. 134). Hunt & Sherman (1993) também assinalam
que para a doutrina do protestantismo, “radicalmente diferente das doutrinas
medievais, a melhor forma de o indivíduo satisfazer a Deus era exercer com
zelo sua missão na terra. A diligência e a dedicação ao trabalho passaram a
ser consideradas como grandes virtudes” (p. 49). Para a ética protestante,
esse novo padrão de comportamento, que possibilitava a acumulação
individual de riquezas, não apenas estava justificado aos olhos de Deus como
realizava Seu desejo. Bastava ao indivíduo encontrar dentro de si a motivação
divina: “O princípio básico do protestantismo, o fundamento das concepções
religiosas que viriam a santificar as práticas econômicas da classe média, era a
doutrina de que os homens se justificam não mais pelas obras e sim pela fé”
(Hunt & Sherman, p. 48). Nesse caso, no lugar de prestar contas perante a
Igreja católica e suas restrições éticas (e no lugar de comprar cartas de
indulgência), bastaria ao homem comum certificar-se de que a fé era o motor
das práticas que possibilitavam a acumulação.
Todo homem devia escutar o que lhe dizia o coração para saber se
seus atos eram motivados por intenções puras e pela fé em Deus. O
homem era o juiz de si próprio. A confiança que essa doutrina
individualista depositava na consciência pessoal de cada indivíduo
despertou profundo interesse na nova classe média dos artesãos e
pequenos negociantes. (Hunt & Sherman, 1993, p. 49)
Assim, o individualismo que floresceu no seio do protestantismo tanto
libertou a emergente burguesia das obrigações com a instituição da Igreja
47
católica, tornando direta a relação de cada um com Deus, como promoveu a
justificação ética para suas práticas econômicas: “o protestantismo ...
converteu em virtudes as motivações interesseiras e egoístas, estigmatizadas
pela Igreja medieval (Hunt & Sherman, 1993, p. 48).
É importante salientar que a penetração da doutrina protestante no
mundo capitalista moderno é tão expressiva que alcança mesmo aqueles (a
classe trabalhadora) que teriam motivação política para combatê-la. O trabalho
como valor supremo, contrariando as Escrituras, de acordo com as quais foi
imposto como castigo ao homem pecador, avança sobre as relações
econômicas de modo absoluto. A esse respeito, Paul Lafargue, um militante
comunista, publicou, em 1880, um panfleto intitulado O Direito à Preguiça
(Lafargue, 1880/1999)12, no qual faz uma crítica contundente a essa tradição:
Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações
onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como
conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos,
torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor pelo trabalho, a
paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das
forças vitais do indivíduo e sua prole. Em vez de reagir contra essa
aberração mental, os padres, economistas, moralistas
sacrossantificaram o trabalho. Pessoas cegas e limitadas quiseram
ser mais sábias que seu próprio Deus; pessoas fracas e
desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que seu próprio Deus havia
12 Segundo Chauí (1999), “o Direito à Preguiça teve um sucesso sem precedentes, comparável apenas ao Manifesto Comunista, tendo sido traduzido para o russo antes mesmo deste último” (p. 16).
48
amaldiçoado. Eu, que não sou cristão, ecônomo ou moralista, no
lugar do juízo que proferiram invoco o juízo do Deus delas; no lugar
das pregações de sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora,
invoco as terríveis conseqüências do trabalho na sociedade
capitalista. (Lafargue, 1880/1999, pp. 63-64)
Os filantropos proclamavam benfeitores da humanidade aqueles
que, enriquecendo-se sem nada fazer, davam trabalho aos pobres;
era melhor semear a peste e envenenar as fontes do que erigir uma
fábrica no meio de uma população rústica. Introduza-se aí o trabalho
nas fábricas e adeus alegria, saúde, liberdade: adeus a tudo aquilo
que faz a vida bela e digna de ser vivida. (Lafargue, p.77)
Reagindo ao avanço do protestantismo, também na Contra-Reforma da
Igreja católica serão encontrados os sinais do individualismo nascente,
especialmente sob a forma de doutrinas de acordo com as quais também o
homem comum deve buscar Deus no seu íntimo. Embora a Contra Reforma da
Igreja católica tenha reiterado vários dos dogmas em que se apoiava desde o
período feudal, o isolamento, a introspecção e a oração silenciosa avançaram
no cotidiano de homens e mulheres como o caminho para a afirmação de sua
fé. Dalarun (1990) assinala que “o ideal eremítico, nunca extinto, revigorou-se
no limiar do ano 1000” (p. 25). Bem mais tarde, a clausura, o autoflagelo e a
exposição do corpo a condições físicas adversas, como forma de adestrar a
alma para o desligamento do mundo material tornam-se cada vez mais
difundidas entre as ordens religiosas e entre os homens comuns. Apesar do
fato de subsistirem (tanto no catolicismo como no protestantismo - cf. Lebrun,
49
1991) e expandirem-se, as práticas coletivas agora parecem cumprir uma outra
função. Não são mais suficientes para alcançar a salvação, como na Idade
Média, quando chegar a Deus dependia de práticas que não podiam prescindir
do outro. Diferente disso, chega-se a Deus (também) pelo que ocorre no
íntimo, na alma; a participação nas cerimônias e demais rotinas coletivas da
paróquia parece estar mais associada a dimensões sociais dos vínculos com a
Igreja. O forte controle social exercido pela Igreja Católica na Idade Média não
dará lugar a uma liberação das obrigações dos fiéis para com a instituição da
Igreja (inclusive por isso, a confissão torna-se obrigatória no século XIII). Mas a
difusão da devoção interior, favorecida também pela popularização da leitura,
definitivamente muda os modos como os indivíduos católicos passam a
compreender as possibilidades de realização no plano espiritual13. E a própria
Inquisição terá que rever sua postura frente às heresias relacionadas às formas
de devoções e submissão à Igreja, no que consiste em aspecto importante da
Contra Reforma religiosa.
O enfraquecimento político da Igreja Católica, assim como o
desenvolvimento inicial da astronomia, especialmente com o trabalho de
Galileu Galilei (1564-1642), que conferia um caráter científico a cursos de
investigação que há muito já colocava sob suspeita a doutrina religiosa sobre o
cosmo, de inspiração aristotélica (cf. Koyré 1986), desembocaram, a partir do
renascimento, na restauração do debate filosófico laico sobre os temas
humanos. Uma expressão inicial dessa mudança é encontrada no ceticismo do
século XVI, de acordo com o qual, face à falência dos sistemas de pensamento
13 Ver, a propósito, a discussão que Figueiredo (1992) oferece da vida e das concepções religiosas de Santa Tereza Dávila (1515-1582).
50
medievais, era necessário reconhecer a impossibilidade de o homem chegar a
verdades definitivas acerca da realidade (ainda que, para alguns, o homem
cético devesse conformar-se com a autoridade religiosa).
Embora no renascentismo o individualismo epistemológico ainda não
estivesse estabelecido, já ali temas individualistas invadiam o pensamento
filosófico. Michel de Montaigne (1533-1592), um típico espírito da renascença e
representante mais destacado do ceticismo do século XVI, provê em seus
Ensaios (Montaige, 1588/2000) passagens muito ilustrativas da idéia de
dissociação e inevitável conflito entre os interesses de indivíduos particulares.
Sob o título de O lucro de um é prejuízo do outro afirma:
O ateniense Dêmades condenou um homem de sua cidade que
tinha por ofício vender as coisas necessárias para os enterros, sob a
alegação de que exigia um lucro excessivo e esse lucro não lhe
podia vir sem a morte de muitas pessoas. Tal julgamento parece
estar mal pronunciado, na medida em que não se obtém benefício
algum a não ser com prejuízo de outrem, e que dessa maneira seria
preciso condenar toda espécie de ganho.
O mercador só faz bem seus negócios por causa da devassidão dos
jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquiteto pela ruína
das casas; os oficiais de justiça pelos processos e contendas dos
homens; mesmo as honras e atividades dos ministros da religião
provêm de nossa morte e de nossos vícios. Nenhum médico se
alegra com a saúde mesmo de seus amigos, diz o antigo cômico
grego, nem o soldado com a paz de sua cidade; e assim
51
sucessivamente. E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo,
e descobrirá que a maioria de nossos desejos íntimos nascem e se
alimentam às expensas de outrem. (pp.159-160)
É na reação ao ceticismo, porém, que no pensamento filosófico o
indivíduo torna-se sujeito do conhecimento. No século XVII, tanto o empirismo
de Bacon (1561-1626) quanto o racionalismo de Descartes (1596-1650)
ocupar-se-ão da tarefa de estabelecer o caminho (científico) para um
conhecimento seguro e verdadeiro, ao mesmo tempo em que útil para
submeter a realidade às necessidades e interesses humanos (no que se
articulam com as transformações econômicas de seu tempo). Seja recorrendo
à experiência sensível sistemática e disciplinada (na versão empirista), ou ao
uso metódico e regrado da razão (na vertente racionalista), o pensamento
filosófico do século XVII trará para o plano do homem singular as condições
para sua realização no domínio cognitivo da vida. O conhecimento seguro ou
verdadeiro não será mais uma matéria de revelação divina, como na filosofia
cristã medieval, mas também não será recolocado no domínio das relações dos
homens e mulheres uns com os outros. O homem que é autônomo para chegar
a Deus ou satisfazer suas necessidades materiais é também auto-
suficentemente dotado das faculdades ou condições necessárias para chegar à
verdade. O debate filosófico estará centrado na natureza dessas condições
pessoais, mas não no questionamento da autonomia individual.
A imagem do indivíduo como ser inteiramente livre, independente,
uma personalidade “fechada” que é “por dentro” inteiramente auto-
suficiente e separada de todos os demais, tem por trás de si uma
52
longa tradição no desenvolvimento das sociedades européias. Na
filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito
epistemológico. Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo
obtém o conhecimento do mundo “externo” de uma forma
inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber seus
conhecimentos de outros. ...A questão para os filósofos consiste
meramente em saber se [o indivíduo] obtém esses conhecimentos
de conexões causais aqui e agora, na base da sua experiência – se,
em outras palavras, essas conexões são uma propriedade de fatos
observáveis “fora dele” – ou se são alguma coisa radicada na
natureza da razão humana e acrescentada “de dentro” do ser
humano ao que nele entra vindo de “fora” através dos órgãos dos
sentidos. (Elias, 1939/1990b, p.237)
O individualismo epistemológico do século XVII será retomado na seção
seguinte, ao discutirmos a dicotomia objetivo-subjetivo. Ele representa a
incidência, no plano filosófico, de uma concepção de homem que no século
XVII já se encontrava enraizada nas práticas e valores do mundo ocidental,
sintetizada no conceito de indivíduo. Assim, o conceito de sujeito é a
contrapartida epistemológica do conceito de indivíduo. Se falar em indivíduo
significa pensar o homem à parte de suas relações com outros homens,
submetendo as últimas a seus interesses pessoais, falar em sujeito significará
pensar o homem à parte dos outros na sua tentativa de representar a realidade
e à parte da realidade ela mesma, o homem capaz de distanciar-se
intelectualmente da realidade e submetê-la a suas faculdades cognoscitivas e a
53
seus interesses práticos. Assim, onde for possível questionar a auto-suficiência
do indivíduo, será possível também questionar a autonomia do sujeito, daí
Figueiredo (1991) referir-se à “emergência e ruína do indivíduo” e à
“emergência e ruína do sujeito”.
Como último aspecto a ser considerado nesta seção, serão abordados os
modos como os homens, a partir do renascimento, passam a se ocupar do
comportamento social, a refletir e elaborar códigos de conduta cada vez mais
refinados, a serem observados quando na presença dos outros.
Em todas as sociedades o comportamento social é objeto de atenção e
prescrições. É variável, porém, a extensão com que esse tipo de
comportamento é regulado, assim como o tipo de exigência que passa a
atender. Na Idade Média, grande parte do comportamento social obedecia a
prescrições de ordem religiosa. Essas prescrições, porém, freqüentemente
ocupavam-se mais de dimensões éticas e morais das relações interpessoais.
No cotidiano da vida doméstica, costumes muito simples prevaleciam.
Provérbios curtos e simples, impessoais e transmitidos oralmente, informavam
sobre o comportamento requerido, por exemplo, à mesa, principal circunstância
de convívio social14. As prescrições desse período são menos numerosas e
marcadas pela “simplicidade ou ingenuidade” (Elias, 1939/1990b, p. 76). Muitas
vezes descrevem o padrão de comportamento da nobreza, ainda assim um
padrão no qual “são menos restringidos os impulsos ou inclinações” (Elias, p.
77), exemplo do que acontece em “sociedades em que as emoções são
14 Sobre o convívio à mesa na Idade Média, Elias (1939/1990b) assinala que “comer e beber nessa época ocupavam uma posição muito mais central na vida social do que hoje, quando propiciavam – com freqüência, embora nem sempre – o meio e a introdução às conversas e ao convívio” (p. 74).
54
manifestadas mais violenta e diretamente” (Elias, p. 76). Constituem exemplos
dessas prescrições:
Algumas pessoas mordem o pão e, em seguida, grosseiramente,
mergulham-no na travessa. Pessoas refinadas rejeitam essas
maneiras rudes ...
Muitas pessoas roem um osso e, depois, recolocam-no na travessa
– e isto é uma falta grave ...
O homem que limpa, pigarreando, a garganta quando come e o que
se assoa na toalha da mesa são ambos mal-educados, isto te
garanto. (Elias, 1939/1990b, p. 77)
O processo de mudança desses hábitos é abordado por Elias
(1939/1990b) como o processo civilizador, um processo de refinamento gradual
dos costumes e comportamentos sociais em direção a um maior controle sobre
as inclinações ou impulsos pessoais. Ainda que se trate de um processo que
vem de longa data, “as proibições da sociedade medieval, mesmo nas cortes
feudais, ainda não impõem quaisquer grandes restrições ao jogo de emoções.
Comparando com eras posteriores, o controle social é suave” (Elias, p. 115).
Ainda sobre a Idade Média,
as pessoas que comiam juntas na maneira costumeira na Idade
Média, pegando a carne com os dedos na mesma travessa,
bebendo o vinho no mesmo cálice, tomando a sopa na mesma
sopeira ou prato fundo ... essas pessoas tinham entre si relações
diferentes das que hoje vivemos ... Suas emoções eram
condicionadas a formas de relações e conduta que, em comparação
55
com os atuais padrões de condicionamento, parecem-nos
embaraçosas ou pelo menos sem atrativos. O que faltava nesse
mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no
mesmo grau era a parede invisível das emoções que parece hoje se
erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando.
(Elias, 1939/1990b, p. 82)
Constitui evidência de mudanças acentuadas nesse domínio da vida
cotidiana no ocidente uma nova modalidade de literatura, que a partir do século
XVI se difunde intensamente: os tratados de civilidade. Segundo Elias
(1939/1990b) a obra inaugural dessa literatura foi um tratado de civilidade (De
Civilitate Morum Puerilium) publicado por Erasmo de Roterdã (1469-1536) em
153015. Seguiram-se a esse texto inúmeros outros tratados de civilidade que
atestam a centralidade que o problema do comportamento social foi adquirindo
para a vida cotidiana e a direção das mudanças nos hábitos. Os tratados
constituem obras individuais, trazem prescrições cada vez mais numerosas,
descrevem a criação dos utensílios para a individualização do comportamento
à mesa, revelam o cuidado cada vez maior com o controle das emoções e a
ocultação das funções corporais. Constituem precursores dos modernos
manuais de etiqueta e possibilitam a reconstituição do longo processo de
refinamento de hábitos tão simples como assoar o nariz ou usar o garfo. A
referência original para esses hábitos era o comportamento na corte, onde os
códigos de conduta tinham funções específicas, freqüentemente relacionadas à
15 Ainda de acordo com Elias (1939/1990b), o Tratado de Erasmo foi mais popular do que seu Elogio à Loucura. O tratado “teve imediatamente uma imensa circulação, passando por sucessivas edições. Ainda durante a vida de Erasmo ... teve mais de 30 reedições. No conjunto, houve mais de 130 edições” (p. 68).
56
observância de uma ordem hierárquica.
Com o advento de uma nova classe social, a burguesia, que detém
poder econômico, mas não o status social da nobreza ou poder político desta e
do clero, os hábitos da corte não apenas começam a ser reproduzidos pela
classe burguesa, como daí se estendem a outros estratos sociais e passam em
todas as classes por aquele processo de refinamento16. Segundo Elias
(1939/1990b), “a burguesia é, por assim dizer, ‘acortesada’ e, a aristocracia,
‘aburguesada’, ou, para ser mais preciso, a burguesia é influenciada pelo
comportamento da corte e vice-versa” (p. 118). O refinamento revelado nos
tratados de civilidade alcança o próprio discurso sobre os hábitos e costumes.
Não apenas as funções corporais devem ser controladas quando frente aos
outros, como também falar sobre isso precisa ser evitado, para evitar embaraço
ou constrangimento.
A adoção de utensílios e o ritual de cuidados com as funções corporais
tendem a sugerir ao homem do século XX que um refinamento nos hábitos foi
motivado por questões de higiene, ou uma preocupação com a saúde
(individual ou pública). Embora algumas prescrições se prestem a esse tipo de
interpretação, um exame atento de qualquer manual contemporâneo de
etiqueta revelará uma diversidade de prescrições que não apenas não
encontram suporte nesse tipo de apelo como, muito freqüentemente, conflitam
16 “Há um círculo na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo por algumas modificações” (Elias, 1939/1990b, p. 116).
57
com recomendações mais saudáveis17. Já no século XVII, tratados de
civilidade recomendavam reter gases intestinais ou suportar alimentos
excessivamente quentes colocados na boca inadvertidamente, liberando os
indivíduos das prescrições apenas em casos excepcionais ou quando
estivessem sós (cf. Elias, 1939/1990b). Prescrições como não se servir da
melhor parte de um prato, ou não mencionar as partes do corpo justificam-se
não por qualquer noção de higiene, mas pela exigência de um controle cada
vez maior sobre as emoções e uma restrição cada vez maior à espontaneidade
da ação: “a mudança do comportamento à mesa é parte de uma transformação
muito extensa por que passam os sentimentos e atitudes humanas” (Elias,
1939/1990b, p. 124).
Elias (1939/1990b, 1994) desenvolve uma interpretação do processo de
mudança civilizadora de acordo com a qual a complexificação da vida social
em sociedades em que o Estado assume a mediação dos conflitos e a função
de proteção é acompanhada de exigências cada vez maiores na direção da
observação do próprio comportamento e controle da impulsividade. O
refinamento dos hábitos tem, assim, mais a função de coordenação dos
comportamentos dos indivíduos uns pelos outros. O autocontrole torna-se cada
vez mais um requisito para movimentar-se (e realizar-se) na complexa rede de
relações que define essas sociedades mais “civilizadas”. A extensão das
prescrições para o comportamento social corresponde à extensão com que, ao 17 Elias (1939/1990b) também comenta esse aspecto: “[o expectador do século XX] acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por ‘razões higiênicas’. Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as pessoais impunham a si mesmas” (p. 122).
58
passo que as funções sociais tornam-se cada vez mais diferenciadas, os
comportamentos de cada um precisam tornar-se previsíveis para os demais;
ao grau de exigência de coordenação do comportamento do indivíduo pelo
comportamento dos outros. Para o indivíduo submetido a tais mecanismos de
controle social, porém, os códigos de conduta podem ser assimilados
simplesmente como descrições de padrões de comportamento que funcionam
para promover sua adaptação e sucesso social. Podem, inclusive, parecer o
que lhe confere autonomia frente aos outros, ainda que por vezes sejam vistos
como aquilo que contraria sua “natureza” íntima.
1.4. Dimensões do Indivíduo e as Dicotomias Psicoló gicas Clássicas.
As seções anteriores sumarizam algumas informações relevantes para
uma compreensão da emergência e centralidade da noção de indivíduo, como
auto-imagem do homem no ocidente moderno. À medida que essa auto-
imagem vai se estabelecendo, vai se tornando mais provável que certos
fenômenos humanos sejam vistos como ocorrências pessoais ou internas, ou
explicados pela referência a ocorrências desse tipo. Vai se tornando mais difícil
compreender certas dimensões da vida do homem como relações com o
mundo, com a natureza e com outros homens. É apenas à luz dessas
transformações que se instituem as categorias de privado, subjetivo, interno e
mental na análise dos fenômenos humanos, dando origem à disciplina
psicológica (inicialmente, uma disciplina reflexiva sobre essas questões).
Nos parágrafos seguintes, as dicotomias psicológicas clássicas
(público-privado, objetivo-subjetivo, interno-externo, físico-mental) serão
59
abordadas de uma ótica particular, que tem por objetivo destacar como
funcionam para deslocar a análise dos problemas humanos de uma dimensão
relacional, para dimensões pessoais, individuais, isto é, como funcionam para
reproduzir concepções e valores de uma cultura individualista. É importante
esclarecer que ao fazer esse exame crítico não se está ignorando que
ocorrências pessoais são constitutivas dos fenômenos de que a Psicologia se
ocupa, mas apenas se estará questionando a suficiência da referência a
ocorrências do ou no homem na abordagem daqueles fenômenos, ou a sua
assimilação como objeto de estudo. Para além disso, a análise complementa
as observações anteriores enquanto referência do caráter histórico-cultural da
experiência moderna de individualidade.
O público e o privado:
A existência de uma esfera da vida à parte do universo social no qual o
homem produz cotidianamente sua sobrevivência constitui uma invenção
datada no mundo ocidental. Mais especificamente, a separação nítida entre
vida pública e vida privada institui-se com a dissolução do modo de vida feudal
e o advento de uma sociedade de mercado. Duby (1990) faz referência ao
“advento do indivíduo” ao abordar temas como a solidão e o anacoretismo na
baixa Idade Média. Como já assinalado neste Capítulo, até bastante
tardiamente na Idade Média as condições para o isolamento pessoal eram
muito limitadas e o desejo de estar só visto com desconfiança (quando
manifestado pelo homem comum, era um sinal de loucura, que justificava
inclusive despojar o homem de seus pertences – cf. Duby).
60
O isolamento físico encontrava dois tipos de “barreira”. De um lado, a
exposição da vida individual, representada pelo compartilhamento de todo
espaço doméstico e pela imposição da presença do(s) outro(s). Na moradia, ou
nos espaços de trabalho, lazer e reza, a arquitetura prevê sempre o
deslocamento em grupos. Apenas no final da Idade Média a casa sofre
processo acelerado de transformação, com a separação e especialização dos
cômodos e a criação de espaços de comunicação (corredor, hall etc.) (cf. Ariès,
1991). De outro lado, as práticas e valores sociais, que condicionavam a
satisfação pessoal e mesmo o reconhecimento social a condições de
compartilhamento da vida cotidiana com o círculo social imediato. O isolamento
não é possível, mas também não faz sentido no contexto de vida do homem
comum no mundo feudal.
A separação possível entre privado e público na sociedade feudal
correspondia à distinção entre o espaço físico e social das grandes famílias
unidas pela terra (no que o privado era simplesmente um público mais restrito)
e o espaço físico e social para além desse universo (cf. Duby, 1990). “E se vida
privada significava segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por
todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada
significa independência, também essa independência era coletiva” (Duby,
1990, p. 504).
Os rituais ou práticas religiosas, como já assinalado, também não
previam, pelo menos para o homem comum (e mesmo para noviços), o
isolamento. Eram necessariamente realizados abertamente com os outros. O
lazer era realizado na forma de jogos dos quais participavam homens e
61
mulheres, adultos e crianças. As leituras eram coletivas e os próprios autores
escreviam esperando que seus textos fossem ouvidos, não lidos
silenciosamente:
Até boa parte da Idade Média, os escritores supunham que seus
leitores iriam escutar, em vez de simplesmente ver o texto, tal como
eles pronunciavam em voz alta as palavras à medida que as
compunham. Uma vez que, em termos comparativos, poucas
pessoas sabiam ler, as leituras públicas eram comuns e os textos
medievais repetidamente apelavam à audiência para que “prestasse
ouvidos à história”. (Manguel, 1997, pp. 63-64)18
Segundo Ariès (1991), no final da Idade Média o homem encontrava-se
“enquadrado em solidariedades coletivas, feudais e comunitárias” (p. 7), “há
confusão entre privado e público” (p. 7), o que significa que “muitos atos da
vida cotidiana ... se realizam e ainda por muito tempo se realizarão em público”
(p. 7). Três fatos, porém, alteram substancialmente essa realidade. Primeiro, a
formação e a ação dos Estados nacionais, interferindo sobre os processos
sociais, assumindo funções antes desempenhadas pelos grupos ou
comunidades locais. Segundo, o desenvolvimento da alfabetização e a difusão
da leitura silenciosa, ainda que “o uso mais difundido da leitura silenciosa não
[tenha eliminado] a leitura em voz alta, que durante muito tempo havia sido a
única forma de ler” (Ariès, p. 10). Terceiro as novas formas de religião
18 Segundo Manguel (1997) “as palavras escritas, desde os tempos das primeiras tabuletas sumérias, destinavam-se a ser pronunciadas em voz alta, uma vez que os signos traziam implícito, como se fosse sua alma, um som particular” (p. 61). Também de acordo com Manguel, “ainda que se possam encontrar exemplos anteriores de leitura silenciosa, foi somente no século X que esse modo de ler se tornou usual no Ocidente” (p. 61).
62
introduzidas pela Reforma e pela Contra-Reforma. O que todos esses fatos
promovem é um afrouxamento dos vínculos com os grupos sociais (familiares,
comunitários, religiosos) aos quais homens e mulheres estavam mais
fortemente ligados. No lugar de uma convivência e compartilhamento da vida
cotidiana, das aspirações, dos medos e dos projetos, com aqueles grupos, dos
quais havia poucas chances de fuga, cada um encontrará agora as condições
para ocupar-se de seus projetos pessoais em condições inéditas até então.
Se é verdade que o contrato social requerido para a instituição do
Estado, como assinalado por Hobbes (1651/1979) implica necessariamente
restrição à liberdade individual, é também verdade que esse debate só se
instaura porque a liberdade individual constitui agora um valor e uma referência
para muitas práticas sociais. Também é verdade que a instituição do Estado
funciona para, ainda que dentro de limites, liberar cada um para dedicar-se aos
seus projetos pessoais de vida. O indivíduo não experimenta mais nas suas
relações imediatas e cotidianas a responsabilidade por solucionar os conflitos
ou criar as condições para a sobrevivência de um grupo mais amplo (e sua
própria sobrevivência, ligada à daqueles). Deslocando-se entre estranhos,
pode ocupar-se de seus objetivos pessoais e aguardar que o Leviatã faça por
todos o que antes todos deviam fazer por si mesmos19. Para usar a expressão
de Elias (1994), a instituição do Estado é essencial para que o nós deixe de ser
a referência a partir da qual cada um organiza sua vida cotidiana. Ainda hoje
19 Essa condição dá origem a uma surpreendente (para quem se acostumou a uma vida comunitária, ou a resquícios disso) indiferença face ao sofrimento, ou dificuldades alheias. A solidariedade, quando evocada, o é como exceção, em face de situações dramáticas (não diante de problemas “menores”, para os quais se pensa poder ainda aguardar pelo socorro do Estado).
63
podemos contrastar essas duas experiências sociais, observando como se
estruturam as relações econômicas, políticas, afetivas, religiosas etc. nas
grandes metrópoles e como isso se dá em grupos sociais onde prevalece a
vida simples e até onde o Estado não estendeu suas mãos20.
Com o processo de individualização, a vida pessoal organiza-se a partir
de interesses, projetos, necessidades de homens e mulheres particulares, não
necessariamente partilhados pelos que estão à sua volta. O segredo torna-se
não apenas uma possibilidade, dadas as novas condições sociais e físicas que
não mais constrangem o indivíduo à exposição permanente aos outros; torna-
se também uma necessidade, inclusive por força dos conflitos com os
interesses dos outros. A vida privada passa a ser aquela esfera da vida
cotidiana na qual um padrão espontâneo de ação subsiste, a intimidade é
acolhida, sentimentos e pensamentos encontram lugar. O território da vida
pública passa a ser um espaço de representação de papéis, de cumprimento
de regras, de comedimento, de hábitos refinados e de comportamentos
refletidos – o que no século XVIII tornará o teatro uma instituição educativa
importante (cf. Sennett, 1989)21. Como apontado por Ariès (1991), a fronteira
entre vida pública e vida privada não tem sido fixa ao longo dos anos. Pode-se
dizer que nem é a mesma para diferentes sub-culturas, ou para um mesmo
20 Há também exemplos (inúmeros, no Brasil e alhures) de sociedades mais complexas, onde a vida individual se organiza a partir de condições próprias de uma economia de mercado e onde o Estado não chegou com suas instituições. Nesses casos, homens e mulheres encontram-se mais próximos da barbárie do que da vida civilizada (de um lado) ou comunitária (de outro). 21 Sennett (1989) observa também que no século XVIII as máscaras são abolidas nas representações teatrais, em parte porque deixam de ser necessárias, na medida em que os indivíduos (todos eles, em alguma medida, e os atores e atrizes, de modo especial) estão mais bem adestrados para o autocontrole e a representação, garantindo a expressão apenas de emoções próprias das personagens e ocultando emoções e inclinações pessoais.
64
indivíduo ao longo de sua vida. Por vezes, o espaço privado resume-se ao
núcleo familiar, outras vezes não ultrapassa o laço conjugal, muitas outras
vezes significa o indivíduo fechado em si mesmo.
Figueiredo e Santi (1997) referem-se à “subjetividade privatizada” ao
comentar esse modo (“privado” ou “interiorizado”) como emoções sentimentos,
pensamentos, crenças etc. passam a ser vividos com a separação entre vida
pública e vida privada. Figueiredo e Santi mencionam que esse modo
“privatizado” de lidar com as emoções torna-se tão usual que nos parece
natural; passa a ser difícil imaginar o que seria, por exemplo, um sentimento de
felicidade experimentado de outra maneira.
Se dizemos que até certo momento da história do mundo ocidental
civilizado não se encontrava propriamente um mundo privado, isso significa
dizer que para os homens que viveram antes das transformações aqui citadas
pensamentos, sentimentos, emoções não faziam parte de sua experiência de
vida? Obviamente que sim. No entanto, esses fenômenos eram, como
continuam sendo, relações com o mundo, incluindo outros homens e mulheres,
sendo que num contexto de confusão entre público e privado o que ocorre
pessoalmente a alguém não merece a atenção que desfruta num modo de vida
“privatizado”. O pensar, o refletir sobre o mundo a sua volta, sobre os
problemas do dia a dia, a pessoa amada, tudo acontece de forma pública, em
voz alta, no diálogo com outros. Basta comparar o que acontece em sub-
culturas ainda hoje encontradas, onde a vida simples prevalece, as funções
sociais são pouco diferenciadas e o convívio comunitário dá suporte para as
relações cotidianas. Nesses grupos, o homem, ao deitar a cabeça no
65
travesseiro para dormir, não procede privadamente ao exame de como
despendeu seu dia, como enfrentou problemas, ou como poderia tê-lo feito.
Muito menos planeja privadamente seu próximo dia (planejar a vida a longo
prazo – por exemplo, o que será sua ocupação dez anos depois - chegar a ser
uma idéia fora de lugar nesse contexto). Analogamente, as emoções e
sentimentos são experimentados abertamente nas relações com os outros.
Ficar feliz é agir de modo feliz no convívio com os outros. Quando essas
relações com os outros vão se alterando é que os substantivos vão se tornando
nossos conceitos-chave para abordar a vida subjetiva. No lugar do “pensar”
(verbo transitivo direto e indireto), entra o “pensamento”, algo supostamente
contido no sujeito que pensa. No lugar do aborrecer (idem), o aborrecimento,
do amedrontar (idem), o medo, e assim por diante22. E já que estão contidos
nesse mundo privado de cada um, é observando o que se passa no indivíduo
que se encontrará o que é definidor do fenômeno. Observe-se, porém, que o
que muda essencialmente com a separação entre vida pública e vida privada,
com o fato de homens e mulheres buscarem “esconder” uns dos outros o que
pensam e o que sentem, não é que sentimentos, pensamentos etc. deixam de
pertencer ao domínio de suas relações com o mundo e com outros homens e
mulheres, mas o modo (autocontrolado, como ensina Elias, 1939/1990b) como
isso passa a acontecer.
A separação entre uma esfera da vida privada e uma esfera de vida
pública significa, então, uma transformação em duas direções: de um lado, a
22 Essa substituição de verbos por substantivos constitui um dos exemplos do que (Ryle, 1949/1984) denomina de erro de categoria, isto é “representar os fatos da vida mental como se pertencessem a um tipo ou categoria lógica (ou a um conjunto de tipos ou categorias) quando na verdade pertencem a outra” (Ryle, p. 16).
66
separação entre o interesse pessoal e o interesse coletivo; de outro, um novo
padrão de relacionamento interpessoal marcado pela representação, pelo
autocontrole, pelo comedimento. Ariès (1991) interpreta esses dois aspectos
como uma oposição entre “o homem de Estado e o particular” (p. 19), podemos
dizer, entre o indivíduo e o cidadão; e uma diferenciação entre sociabilidade
anônima e uma sociabilidade restrita, uma espontaneidade indiferenciada no
trato social versus a espontaneidade resguardada para o espaço doméstico.
Em qualquer circunstância, a construção do mundo privado corresponde à
instituição de mudanças não no interior de indivíduos, mas no plano de suas
relações com outros homens e mulheres.
O objetivo e o subjetivo:
A dicotomia objetivo-subjetivo elabora-se na reflexão sobre a
possibilidade de o homem conhecer ou representar a realidade de modo
seguro. No século XVII, essa preocupação constitui uma reação ao ceticismo e
uma tentativa de restaurar um fundamento filosófico para o conhecimento
verdadeiro. O empirismo de Bacon e o racionalismo de Descartes assumirão
como tarefa tanto explicitar por que sistemas de crença anteriores fracassaram,
mostrando-se frágeis e dubitáveis, assim como estabelecer as condições sob
as quais um conhecimento seguro, absolutamente verdadeiro, pode ser
alcançado. Tanto no empirismo como no racionalismo essas condições dizem
respeito a faculdades do indivíduo particular, não a processos sociais de
construção do conhecimento. É a razão (racionalismo), enquanto faculdade da
alma, ou a experiência sensível articulada (empirismo), que conduz ao
67
conhecimento verdadeiro. No Discurso de Descartes (1637/1979),
encontramos:
notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e
das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de
refletir bastante sobre elas, não poderíamos duvidar que não fossem
exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo.
(p. 51)
Já na versão de Bacon (1620/1979), quando o intelecto se move sem o
suporte da experiência sensível cuidadosa, o erro é inevitável.
Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e
enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a ampliá-los e
aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da
natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e
adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o
experimento julga a natureza e a própria coisa. (p. 26, Af. L)
A melhor demonstração é de longe a experiência, desde que se
atenha rigorosamente ao experimento. Se procuramos aplicá-la a
outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se proceda de
forma correta e metódica, é falaciosa. (pp. 38-39, Af. LXX)
... quando a experiência proceder de acordo com leis seguras e de
forma gradual e constante, poder-se-á esperar algo melhor da
ciência. (p. 66, Af. C)
A elevação de uma capacidade humana a tribunal da verdade contrasta
com a visão medieval acerca da prerrogativa da autoridade eclesiástica para
68
estabelecer o que vale como explicação aceitável da realidade, sempre uma
revelação Divina àqueles que estão no topo da hierarquia religiosa. Desse
ponto de vista, a modernidade representa uma conquista importante. A regra
cartesiana de “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não
conhecesse evidentemente como tal” (Descartes, 1637/1979, p. 37), isto é, “de
nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão
distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
dúvida” (Descartes, p. 37) constitui uma expressão máxima dessa mudança.
No entanto, a reivindicação do racionalismo e do empirismo do século XVII não
se faz sem o reconhecimento das limitações humanas a serem vencidas antes
que o indivíduo possa buscar o conhecimento seguro. No pensamento
cartesiano, esse problema aparece com a necessidade de tomar a dúvida
como método, tendo o cuidado de afastar do intelecto tudo que antes foi
admitido como verdadeiro sem passar pelo rigoroso inquérito da razão23.
Em Bacon (1620/1979), a desconfiança sobre as capacidades humanas
encontra expressão na Doutrina dos Ídolos ou falsas noções: “o intelecto
humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde
se poder gerar a ciência que se quer” (p. 25, Af. XLIX). Esses obstáculos ao
processo de construção de representações seguras da realidade abrangem
tanto dimensões pessoais, do indivíduo singular (os ídolos da caverna, relativos
à história pessoal de cada um), como aspectos da natureza humana (os ídolos
23 Diferente dos céticos, porém, Descartes (1637/1979) toma a dúvida como um método para chegar a verdades, não como um fim em si mesma: “Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos; pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila” (p. 44).
69
da tribo, relativos a distorções da percepção e à tendência a formular leis
gerais com base em uma experiência precária), as condições de interlocução
(os ídolos do foro, relativos à imprecisão da correspondência entre linguagem e
realidade24) e dimensões sociais/culturais (os ídolos do teatro, relativos a
sistemas de crença dominantes em uma cultura).
Tanto para Descartes como para Bacon conhecer depende de
obediência ao método (novamente o tema do autocontrole), o cumprimento de
um conjunto de preceitos que inicia, em ambos os casos, com uma espécie de
purificação do intelecto, seja pela dúvida, seja pelo afastamento dos ídolos ou
falsas noções.
No tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu
crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a
retirar-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida por
outras melhores, ou então pelas mesmas, depois de tê-las ajustado
ao nível da razão. E acreditei firmemente que, por este meio, lograria
conduzir minha via muito melhor do que se a edificasse apenas
sobre velhos fundamentos, e me apoiasse tão-somente sobre
princípios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem ter
jamais examinado se eram verdadeiros. (Descartes, 1637/1979, p.
35)
Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por
decisão solene e inquebrantável todos devem ser abandonados e
24 Diz Bacon (1620/1979): “os Ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de duas espécies. Ou são nomes de coisas que não existem ... ou são nomes de coisas que existem, mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas de forma temerária e inadequada” (p. 29 Af. LX).
70
abjurados. O intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles,
de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as
ciências, possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não
se permite entrar senão sob a figura de criança. (Bacon, 1620/1979,
pp.37-38, Af. LXVIII, itálico acrescentado)
O que se passa com o sujeito do conhecimento é, assim, duplamente
problematizado. De um lado, são faculdades ou capacidades individuais e
subjetivas que conduzem a enunciados verdadeiros, acima da dúvida. De
outro, é necessário, antes de fazer uso dessas faculdades, eliminar aquelas
condições pessoais e subjetivas que constituem obstáculo à representação
precisa da realidade. Ambos os temas, é importante notar, freqüentarão os
livros de Psicologia científica a partir do final do século XIX. Os processos
cognitivos ou de representação e as inclinações/distorções/hábitos pessoais
não deixarão de ser temas clássicos para diferentes escolas do pensamento
psicológico.
O cartesianismo, ao postular que a razão é uma faculdade da alma,
tornará central para a reflexão epistemológica o dualismo metafísico, que a
partir de Locke (1632-1704) assume a forma da distinção corpo-mente, com
ampla repercussão na Psicologia. Todavia, o que importa ressaltar neste ponto
é outro aspecto do racionalismo de Descartes, compartilhado com Bacon: a
noção de que o conhecimento verdadeiro é aquele que representa uma
realidade independente do sujeito que conhece. Com isso, há uma terceira
dimensão da problematização do que se passa com o indivíduo do
conhecimento: a noção de um afastamento entre sujeito e objeto do
71
conhecimento. A partir dessa elaboração, a verdade torna-se atributo de
enunciados que representam apenas propriedades da realidade, nada
contendo de qualidades do próprio sujeito que se dedica a conhecê-la. Na
análise de Bacon (1620/1979) isso opõe as “antecipações da mente”
(descrições da realidade pautadas mais pelos ídolos que ocupam o intelecto
humano e menos por uma observação cuidadosa e sistemática) à
“interpretação da natureza” (enunciados baseados na observação e
experimentação planejadas, e limitados pelos fatos acumulados desse modo).
Coincide com essa abordagem a distinção estabelecida por Galilei (1623/1987)
entre qualidades primárias (propriedades dos fenômenos) e qualidades
secundárias (sensações do sujeito)25.
Com a observação do método, garante-se que os enunciados sobre a
realidade constituam apenas interpretações da natureza, retratem apenas
qualidades primárias dos fenômenos. Na análise de Descartes, quando isso
ocorre, o caráter de clareza e distinção das idéias é tal que o intelecto não
poderá deixar de reconhecê-las como verdadeiras. O método, desse ponto de
vista, é o controle das inclinações, preferências, paixões pessoais, a fim de
garantir que esses não invadam as representações do mundo, comprometendo
25 Galileu exemplifica esta diferenciação assinalando que o calor não constitui uma propriedade do fogo (qualidade primária), mas uma sensação do indivíduo (qualidade secundária): “havendo já relatado como muitas sensações, que são reputadas qualidades ínsitas dos sujeitos externos, não possuem outra existência a não ser em nós, não sendo outra coisa senão nome fora de nós; afirmo que, [fui] levado a acreditar que o calor seja um fenômeno deste tipo, e que aquelas matérias que produzem e fazem perceber o calor em nós, matérias que nós chamamos com o nome geral de fogo, sejam uma multidão de pequeníssimos corpos, com determinadas figuras, movimentadas com velocidade enorme.... Mas que exista, além de figura, número, movimento, penetração e junção, outra qualidade no fogo, e que esta qualidade seja o calor, eu não acredito; considero que o calor seja uma característica tão nossa que, deixado de lado o corpo animado e sensitivo, o calor torna-se simplesmente um vocábulo (Galilei, 1623/1987, p.121).
72
sua validade. Por isso falar de método é falar de autocontrole.
O conhecimento verdadeiro é objetivo no sentido de que retrata apenas o
objeto do conhecimento, não o sujeito. E o mundo subjetivo torna-se o mundo
do sujeito que conhece, que possibilita sua apreensão da realidade e que
precisa ser controlado para assim proceder movido apenas pelas faculdades
apropriadas. Há, portanto, nessas formulações não apenas um individualismo,
conduzindo ao que Elias (1994) designa de uma concepção de homo
philosophicus na reflexão epistemológica26, mas um subjetivismo baseado na
noção de afastamento entre o ser que conhece e o mundo cognoscível.
Compreender essa gênese da problematização da subjetividade é essencial
para discutir o status que pode ser conferido aos enunciados modernos sobre
as faculdades subjetivas.
A concepção de um homo philosophicus no século XVII é compatível com
tudo o que foi assinalado acima, acerca da emergência da noção de indivíduo e
das condições sociais em que isso se deu. Há uma questão, porém, que
precisa ser equacionada na análise que vincula a emergência do conceito do
sujeito como contrapartida epistemológica do conceito de indivíduo: o fato de
que o cartesianismo reedita em ampla medida o pensamento platônico,
portanto uma concepção de sujeito formulada já na Antiguidade.
26 Há outras passagens clássicas do individualismo cartesiano, nas quais a crença na maior eficácia da ação individual são destacadas: “vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins .... assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações, pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opiniões de mui diversas pessoas, não se acham, de modo algum, tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode efetuar naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam” (Descartes, 1637/1979, pp.34-35).
73
Platão (428 a.C.-347 a. C.) inaugurou a filosofia como literatura (cf. Colli,
1988), ocupando-se da problemática do conhecimento já em uma perspectiva
que poderia ser interpretada como individualista. Em um trabalho anterior
(Tourinho, 1994b), foram assinaladas no pensamento platônico categorias
centrais do que viria a caracterizar o pensamento filosófico do século XVII:
Platão faz uma distinção entre o mundo sensível e o mundo
inteligível. O mundo das sensações é o mundo das aparências, onde
tudo flui e onde não se encontra a essência dos fenômenos.
Limitados a suas experiências sensíveis, os homens podem apenas
alcançar opiniões, instáveis, variadas e contraditórias. De outro lado,
o mundo inteligível é o mundo da razão, da alma, através da qual se
pode chegar às "idéias", sinônimo de verdade e de apreensão da
essência das coisas. Ao contrário das opiniões, as idéias se afirmam
como eternas e universais. Tem-se, aqui, tanto a afirmação
categórica da distinção entre aparência e essência, quanto a
atribuição do conhecimento da realidade a algo interior e íntimo,
diverso das experiências sensíveis, isto é, à alma. (pp. 17-18)
Há dois conjuntos de informações a serem levados em conta na
apreciação da antecipação platônica de concepções modernas do sujeito
capaz de conhecer a realidade. Em primeiro lugar, as condições sociais sob as
quais Platão escreve, em certos aspectos comparáveis ao clima social do
renascimento. Em segundo lugar, o fato de que o platonismo não dominou a
cultura ocidental ao longo da Idade Média.
Com respeito ao contexto social de elaboração do platonismo, é
74
suficiente registrar que a razão grega, na sua origem, realiza-se apenas no
campo da interlocução, do diálogo, do confronto de idéias e argumentos. Ela
floresce no espaço público, como dimensão essencial da vida política nas
cidades-Estado.
é no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se
exprimiu, constituiu-se e formou-se. A experiência social pôde
tornar-se entre os gregos o objeto de uma reflexão positiva, porque
se prestava, na cidade, a um debate público de argumentos. ...
A razão grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica,
permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro
de seus limites com suas inovações, é filha da cidade. (Vernant,
1989, pp. 94-95)
Na época em que Platão escreveu, a dialética já dava lugar à retórica.
Enquanto a dialética constituía a forma original da racionalidade grega, em que
o debate oral estabelecia a sustentabilidade de uma proposição, que não tinha
permanência fora desse embate argumentativo (cf. Colli, 1988), na retórica,
juízes externos ao embate estabeleciam a validade de discursos, que
adquiriam autonomia em relação ao contexto de confrontação de idéias – uma
condição essencial para a filosofia tornar-se um gênero literário. Inicialmente,
com Platão, um gênero literário que tentava recuperar a essência da dialética,
recorrendo à estrutura de diálogos (ainda que fosse uma imitação precária,
posto que se tratava de diálogos pensados por um único indivíduo)27.
27 Colli (1988) observa que “Platão inventou o diálogo como literatura, como tipo particular de dialética escrita, de retórica escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um público indiferenciado os conteúdos de discussões imaginárias. As esse novo gênero literário, o próprio Platão chama pelo novo nome de ‘filosofia’. Depois de Platão, esta forma de escrita
75
Platão escreve em um momento de decadência da democracia grega,
quando a retórica assumia, sobretudo, a forma de uma preocupação estilística
e persuasiva, em debates cujos oradores orientavam-se mais por interesses
particulares do que por um compromisso com a justiça ou a verdade28. A
condenação de Sócrates comprovava, para Platão a impossibilidade de
chegar-se a juízos seguros sob aquelas condições. A verdade deveria pairar
em outra dimensão das realizações possíveis do pensamento humano.
Em suma o individualismo encontrado no platonismo se explica por um
clima social no qual os processos de interlocução existentes foram
desqualificados como caminho para a elaboração de enunciados seguros. Por
outro lado, a razão de Platão não orientou o pensamento no mundo medieval
porque ali novamente os homens foram submetidos à autoridade de uma
instituição que se arrogava o direito de legislar sobre a validade de qualquer
reivindicação a conhecimento. O platonismo, ou versões dele, ressurgem (no
renascimento) apenas quando aquelas condições de submissão intelectual se
permaneceria como algo adquirido, e ainda que o gênero literário do diálogo se transforme no gênero do tratado, mesmo assim continuará a chamar-se ‘filosofia’ à exposição escrita de temas abstratos e racionais eventualmente estendidos, após a confluência com a retórica, a conteúdos morais e políticos” (p. 92). Paradoxalmente, porém, Platão não acreditava que as coisas importantes pudessem ser escritas, ou que aquilo que um homem escreve contivesse o que havia de mais importante em seu pensamento: “Platão nega à escrita, em linhas gerais, a possibilidade de exprimir um pensamento sério, e diz literalmente: ‘nenhum homem de siso ousará confiar seus pensamentos filosóficos aos discursos e além do mais a discursos imóveis, como é o caso dos escritos com letras’. Ainda mais solenemente, reafirma um pouco adiante, recorrendo a uma citação homérica: “Justamente por isso toda pessoa séria evita escrever coisas sérias para não expô-las à malevolência e à incompreensão dos homens ...’” (p. 94). 28 Para Platão, “a democracia direta favorece ... a demagogia, isto é, a arte de incensar a opinião pública por meio do talento oratório; também favorece a tirania, pois há o perigo de que um homem seduza e canalize a opinião pública em seu proveito para, em seguida, subjugá-la. A crítica platônica à democracia origina-se, fundamentalmente, de sua ‘reflexão sobre a linguagem’. Para Platão, a linguagem é eivada de armadilhas, sortilégios e perigos. A multidão, maravilhada pela palavra de um orador, pode, em conseqüência, votar cegamente contra o interesse público. É por isso que os sofistas, que ensinam a arte de seduzir e de persuadir por meio das palavras, constituem um alvo permanente para Platão” (Piettre, 1989, p. 23).
76
alteram, dando novamente lugar ao homem comum para refletir sobre o mundo
a sua volta e julgar o que tem valor como descrição desse mundo. No momento
em que isso acontece, novamente, não há espaços políticos de debate público
genuíno. Cada um, agora, deve encontrar a verdade em si mesmo, ou com
suas próprias faculdades.
A filosofia que se segue à inauguração do fundacionalismo moderno, com
Descartes e Bacon, não acompanha a crença ingênua na experiência
purificada, ou na suficiência de uma intuição racional. Mas certas categorias
analíticas formuladas no século XVII repercutirão amplamente no pensamento
filosófico posterior. Os empiristas (especialmente Hume – 1711-1776) insistirão
na noção de que toda idéia tem uma origem na experiência sensível, cujo
produto é processado por uma mente que dela produz cópias e as associa de
modos que nos levam aos enunciados científicos. Kant (1724-1804) admitirá a
impossibilidade de a mente representar a realidade de modos independentes
da experiência humana, mas isso para ele significa que as condições de
objetividade do conhecimento residem no próprio homem, em suas
capacidades subjetivas universais e a priori, com as quais é afetado
sensorialmente pelo mundo e que conferem inteligibilidade aos objetos de sua
experiência:
que a legislação suprema da natureza deve estar em nós mesmos,
isto é, em nosso entendimento, e que não devemos buscar as leis
gerais da natureza na própria natureza por meio da experiência,
mas, ao contrário, devemos derivar a natureza, em sua regularidade
universal, unicamente das condições de possibilidade da
77
experiência inerentes à nossa sensibilidade e ao nosso
entendimento. ... O entendimento não cria suas leis (a priori) a partir
da natureza; mas as prescreve à mesma. (Kant, 1783/1980, p. 53)
Há muitos refinamentos nos sistemas mencionados nesta seção e
muitos desdobramentos de suas proposições sobre a natureza e alcance do
conhecimento humano, ambos não discutidos em razão dos objetivos deste
trabalho. Também merece registro o fato de que em muitos outros sistemas do
pensamento moderno a dimensão interpessoal dos processos de construção e
validação de enunciados sobre a realidade física e social são revalorizados. O
individualismo epistemológico será objeto de muitas diferentes críticas,
especialmente ao longo do século XX, em diferentes vertentes do pensamento
filosófico e político (cf. Bernstein, 1983), o que, porém, não repercutiu na
Psicologia sob a forma de um abandono amplo das categorias de análise
formuladas no pensamento do século XVII.
Por último, assim como a dicotomia público-privado expressa
principalmente o que se passa no plano das relações interpessoais, a
dicotomia objetivo-subjetivo sintetiza os modos como o homem passa a ver sua
relação com a realidade enquanto objeto de conhecimento: uma relação
baseada nas funções ou papéis de qualidades ou faculdades pessoais e que
requer distanciamento e autocontrole para que a realização nesse domínio seja
possível. O pensar, refletir e julgar, fenômenos psicológicos abordados
centralmente na definição do mundo subjetivo nesse contexto, constituem
faculdades essenciais do sujeito singular.
78
O físico e o mental:
A idéia de que o homem é constituído por uma substância física,
corpórea, e outra imaterial, transcendental ou mental, não se origina com o
pensamento religioso cristão, embora tenha se propagado na cultura ocidental
com a difusão de idéias religiosas a esse respeito ao longo da Idade Média.
O dualismo não é um dado originário do pensamento mais antigo
[judaico-cristão] que, pelo contrário, tende a afirmar a unidade do
real e do homem em particular. Ele é fruto de formas mais
elaboradas de conhecimento, desenvolvidas sobretudo no âmbito da
filosofia grega e penetrado posteriormente na teologia. (Massimi,
1986, p.10)
Massimi (1986) argumenta que o monismo antropológico dos primeiros
padres da Igreja deu lugar ao dualismo a partir de uma assimilação das
categorias filosóficas do pensamento platônico na doutrina religiosa. Segundo
Massimi,
as idéias de preeminência da alma e de sua autonomia do corpo, da
imortalidade da alma e da identificação entre alma e vida, estão
relacionadas, nas suas origens, à investigação filosófica e à
necessidade de fundamentar a objetividade do conhecimento
humano de seu instrumento principal, a razão. É portanto no alvo da
filosofia grega, e sobretudo do platonismo, que nasce a categoria de
alma, enquanto substância, e a raiz do dualismo. De fato, o dualismo
é um efeito inevitável do surgir de uma nova forma de pensamento
analítico e auto-reflexivo. É uma criação epistemológica, antes de
79
ser uma afirmação ontológica. Todo o problema, a nosso ver, está
na medida em que procura-se transformar uma dimensão
epistemológica em realidade ontológica. (p. 22)
Retomando as colocações anteriores acerca do contexto em que Platão
desenvolve sua doutrina sobre a razão como faculdade de uma alma que pré-
existe ao nascimento do homem, é importante observar que há uma motivação
essencial para essa suposição: a desqualificação dos processos de
interlocução como meios pelos quais o homem pode chegar a enunciados
verdadeiros. Se dimensões interpessoais da existência humana não estão
qualificadas para conduzir cada um a juízos seguros, tais juízos ou não são
possíveis (a posição do cético), ou vêm de outra fonte. Na filosofia cristã
medieval, essa outra fonte era Deus, que de acordo com sua vontade e
decisão dava ao homem a chance de contemplar idéias verdadeiras. Em
Platão, porém, essa outra fonte estava encerrada no próprio homem que busca
o conhecimento.
Voltando-se ao homem singular como fonte do conhecimento seguro,
podemos alternativamente atribuir à sua estrutura e funções corporais as
capacidades cognoscitivas. No entanto, essa não será a opção platônica, visto
que o dado disponível sobre o que o corpo informa sobre o mundo sugere que
as percepções humanas são responsáveis por grande parte de nossos
equívocos ao buscar representar a realidade; propiciam-nos, no máximo,
opiniões. Há, portanto, em Platão, uma desqualificação também do corpo.
Piettre (1989) explica esse aspecto da doutrina platônica:
As idéias ou essências são percebidas unicamente pela inteligência,
80
dispensando o recurso à experiência sensível, isto é, ao testemunho
dos sentidos. Por outro lado, as opiniões, múltiplas e contraditórias,
devem sua imprecisão e mobilidade ao testemunho dos sentidos
sobre os quais elas se apóiam. (pp. 24-25)
Portanto, os sentidos constituem obstáculos ao conhecimento da
verdadeira realidade. Eles retêm a alma no estágio das opiniões
parciais e precárias, fazendo com que se tome por verdadeiro o que
nada mais é do que a aparência fragmentária e fugitiva da
verdadeira realidade. (p. 25)
O que caracteriza principalmente as realidades inteligíveis ou as
idéias é sua estabilidade, sua eternidade: seu ser. E o que
caracteriza principalmente as realidades sensíveis é sua mobilidade,
seu aparecimento e desaparecimento, seu nascimento e sua morte,
enfim, sua condição de vir a ser. (p. 26)
Segundo Ribes (2004), também em Aristóteles encontramos o dualismo
corpo-alma, porém não como substâncias independentes. Nessa visão, a
religião forjou o dualismo de substâncias, que alcançou sua formulação
definitiva com Descartes:
Em contraposição ao argumento de Aristóteles, de acordo com o
qual a alma não era um corpo, mas algo do corpo, a alma tornou-se
uma substância separada. Na concepção aristotélica, a alma não
existia sem um corpo, mas a alma não era em si mesma um corpo.
Ela sempre existia em um tipo particular de corpo. Na tradição
judaico-cristã, a alma tornou-se uma entidade separada de qualquer
81
corpo. A alma tornou-se o sujeito, no lugar de um predicado e a ela
foram atribuídas funções similares àquelas dos corpos: de ser uma
substância, mover-se por si mesma e ser afetada por outros corpos.
Santo Augustinho e Santo Anselmo foram decisivos na formulação
final de uma teoria da alma, que a convertia em uma entidade que
governa e sofre, ao mesmo tempo, as ações de um universo restrito
de corpos: os corpos humanos. Em seu Discurso do Método ..., de
1637, Descartes forneceu os argumentos racionais que formalizaram
a divisão do homem em duas substâncias, a alma (razão) e a
matéria (o corpo). Essa divisão separou as ações humanas de seus
raciocínios. O comportamento tornou-se puramente a ação
mecânica e a alma tornou-se uma mente cognitiva. (Ribes, 2004, p.
56)
Se no aristotelismo a independência de duas substâncias, corpo e alma,
não está assim formulada, o mesmo não pode ser dito do platonismo, que
claramente postulava a preeminência da alma. E, de fato, Platão constituiu a
principal referência filosófica para a doutrina de Santo Augustinho, na qual se
encontra a versão religiosa do dualismo de substâncias (cf. Jaeger, 1989).
Chega-se, assim, a um aspecto fundamental do dualismo metafísico. Ele
está assentado não em um compromisso inicial com a transcendência, mas em
uma desqualificação dos processos intersubjetivos (sociais) e sensoriais
(individuais) como fonte segura de conhecimento. Isto é, uma vez que os
processos de interlocução podem promover a aceitação de idéias falsas, e uma
vez que nenhuma referência ao corpo humano será suficiente para explicar a
82
identificação (ou reconhecimento, para Platão) de idéias verdadeiras, ao
contrário, conduzem a opiniões provisórias e conflitantes, então torna-se
logicamente necessário supor a existência de uma dimensão humana,
individual, não corpórea, imaterial, como a morada do pensamento racional,
com o qual se chega às idéias verdadeiras. O dualismo é, assim, uma
conseqüência inevitável do individualismo associado à desqualificação do
corpo.
O outro aspecto fundamental dessa compreensão do dualismo é que a
oposição corpo-mente tira de evidência o passo anterior de desqualificar o
plano das relações interpessoais como domínio das capacidades humanas
cognoscitivas. Com isso, pode-se pensar que o debate reside em saber se há
apenas uma ou duas naturezas humanas. Se o homem é só corpo, ou corpo e
alma, ou corpo e mente. Se podemos explicar suas realizações referindo
apenas o que se passa em seu corpo, ou se precisamos supor a existência de
uma mente. Do ponto de vista da análise aqui desenvolvida, o essencial vem
antes: se podemos ou não explicar as realizações humanas como realizações
dos homens nas relações uns com os outros; ou o que nos leva a abordar
essas realizações não mais como realizações sociais, mas como realizações
pessoais/individuais. Se consideramos que se trata de realizações pessoais, o
dualismo será praticamente inevitável. Soluções reducionistas organicistas,
como discursos que apoiados nas neurociências invocam para o cérebro as
capacidades cognoscitivas, permanecem no campo do individualismo,
regulados por um desconhecimento do que se passa no plano interpessoal
como essencial para a definição dos fenômenos psicológicos. Aliás, se
83
estiverem corretos, uma Psicologia deixa de ser necessária.
Em favor da tese de que a categoria do mental está antes apoiada na
desqualificação da interlocução e do corpo, convém observar que a definição
do mundo mental é invariavelmente negativa. Isto é, quando se indaga sobre a
mente, o que se obtém como resposta são referências ao que a mente faz,
suas capacidades. Por exemplo, “a mente é a instância responsável pela
cognição”. Quando se insiste em saber o que é essa instância responsável pela
cognição o que se obtém é uma descrição do que ela não é. Locke (1690/1978)
pode aqui servir de exemplo sobre como tergiversar sobre o tema.
Não me ocuparei agora com o exame físico da mente; nem me
inquietarei em examinar no que consiste sua essência; nem por
quais movimentos de nossos espíritos, ou alterações de nossos
corpos, chegamos a ter alguma sensação mediante nossos órgãos,
ou quaisquer idéias em nossos entendimentos; e, se, em sua
formação, algumas daquelas idéias, ou todas dependem ou não da
matéria. (p. 140)
Talvez esse modo de apresentar o conceito de mente revele uma
distinção importante em relação a Platão. A desqualificação do espaço de
interlocução se dá menos pelo reconhecimento desse espaço e atribuição a ele
dos vícios dos julgamentos humanos, e mais pela dificuldade em identificar as
dimensões intersubjetivas do pensamento humano, possivelmente porque as
relações nesse domínio são demasiadamente complexas para serem
discernidas facilmente, ou mesmo conceitualmente formuladas com as
categorias disponíveis inicialmente. Afinal, no mundo contemporâneo, não são
84
em assembléias públicas que as reivindicações a conhecimento e à verdade
são confrontadas e deliberadas. Os processos por meio dos quais
comunidades amplas participam da construção de um enunciado e a eles
conferem um valor de verdade envolvem muito mais etapas, atores e
mecanismos de aferição das qualidades dos enunciados. Será mais fácil supor,
sob essas condições, que os julgamentos sob os quais podemos apoiar nossa
relação com o mundo em segurança (e com certeza) são obras de mentes
individuais.
O interno e o externo:
A postulação de uma noção de interioridade também pode ser entendida
à luz das variáveis culturais examinadas neste Capítulo. Todavia, aqui
começamos com um paradoxo: se é possível considerar certas ocorrências
humanas como internas, é logicamente difícil operar com a dicotomia interno-
externo, pois o que seriam dimensões do indivíduo externas a ele? Ainda que
concordemos que o pensar é interno, o que é externo? O andar, por exemplo?
As análises de Elias (1939/1990b, 1994) mais uma vez podem lançar
luz sobre a questão de modos muito importantes. Elias (1939/1990b)
argumenta que com o processo civilizador a concepção de homem que se
torna dominante é a do homo clausus, o homem fechado em si mesmo:
A concepção de indivíduo como homo clausus, um pequeno mundo
em si mesmo que, em última análise, existe inteiramente
independente do grande mundo externo, determina a imagem do
homem em geral. Todo outro ser humano é igualmente visto como
85
“homo clausus”. Seu núcleo, seu ser, seu verdadeiro eu aparecem
igualmente como algo nele que está separado por uma parede
invisível de tudo o que é externo, incluindo todos os demais seres
humanos.
A natureza dessa parede em si, porém, quase nunca é examinada e
nunca é devidamente explicada. Será o corpo o vaso que contém
fechado em si o ser verdadeiro? Será a pele a fronteira entre o
“interno” e o “externo”? O que, no homem, é a cápsula e o que é o
conteúdo? A experiência do “interno” e do “externo” parecem tão
auto-evidentes que essas questões raramente são colocadas;
aparentemente não requerem exame ulterior. O indivíduo se satisfaz
com a metáfora espacial de “interno” e “externo”, mas não faz
nenhuma tentativa séria de localizar o “interior” no espaço. (Elias,
1939/1990b, p. 238)
O que permite a Elias (1939/1990b) conferir alguma inteligibilidade à
auto-imagem do homo clausus e à experiência de interioridade são suas
incursões na história dos costumes e na literatura da civilidade. A partir dessas
fontes, Elias chama atenção para o fato de que o padrão de comportamento
que passa a ser exigido nas relações interpessoais em sociedades complexas
é tal que requer um treino de observação do próprio comportamento e a
vigilância permanente sobre os “impulsos emocionais”. Em outras palavras, a
civilidade requer autocontrole; a impulsividade funciona contra o indivíduo. Em
todas as sociedades, o controle da impulsividade é requerido, mas em
sociedades mais simples o limite é dado externamente, são os outros que
86
impedem que o homem vá além do que é tolerável socialmente. Nas
sociedades mais complexas, o controle deve ser exercido pelo próprio
indivíduo. A coação externa funciona para treinar o indivíduo a observar a si
mesmo e agir de modos contidos.
A transformação de compulsão externa interpessoal em compulsão
interna individual, que agora continua a aumentar, leva a uma
situação em que muitos impulsos afetivos não podem ser mais
vivenciados tão espontaneamente como antes. Os autocontroles
individuais autônomos criados dessa maneira na vida social, tais
como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse
momento se interpõem mais severamente do que nunca entre os
impulsos espontâneos e emocionais, por um lado, e os músculos do
esqueleto, por outro, impedindo mais eficazmente os primeiros de
comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) sem a permissão
desses mecanismos de controle. (Elias, 1939/1990b, pp.245-246)
As práticas de autocontrole socialmente produzidas voltam-se, portanto,
às reações emocionais, que representariam padrões mais espontâneos de
ação. São essas práticas que garantirão um padrão representacional de
comportamento social, o cumprimento de papéis, ou o comportamento
esperado e previsto pela sociedade e do qual a sociedade depende para evitar
que os conflitos se resolvam pela imposição da vontade particular de alguns.
Elias (1939/1990b) avança um pouco na interpretação das razões pelas quais
essa experiência de autocontrole favorece uma noção de interioridade:
Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da
87
personalidade individual subjacente à experiência de si mesmo do
homo clausus. Se perguntamos ... o que realmente deu origem a
esse conceito de indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo,
separado de tudo o que existe fora dele, e o que a cápsula e o
encapsulado realmente significam em termos humanos, podemos
agora ver a direção em que deve ser procurada a resposta. O
controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções,
característico dessa mudança civilizadora, juntamente com o
aumento de compulsões internas que mais implacavelmente do que
antes impedem que todos os impulsos espontâneos se manifestem
direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos
de controle – são o que é experimentado como a cápsula, a parede
invisível que separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo
externo”, ou, em diferentes versões, o sujeito de cognição de seu
objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” da “sociedade”. O que está
encapsulado são os impulsos instintivos e emocionais, aos quais é
negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na
autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não
raro, como o verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A
expressão “o homem interior” é uma metáfora conveniente, mas que
induz em erro. (Elias, 1939/1990b, pp. 246-247)
A noção de interioridade seria, assim, produzida quando o indivíduo
experimenta uma espécie de “contenção” das emoções, impedindo que se
manifestem por seu aparelho motor. Podemos, porém, formular isso de outro
88
modo: o indivíduo aprende (a) a não responder emocionalmente em certas
condições sociais ou a responder de modos concorrentes ou incompatíveis
com uma resposta emocional com alguma probabilidade de ser emitida (por
exemplo, aprende a sorrir e dizer “Sim, senhor” quando um superior diz que
sua opinião está errada, no lugar de dizer-lhe impropérios) e/ou aprende (b) a
responder emocionalmente com reduzida participação do aparelho motor (por
exemplo, aprende a manifestar sua satisfação com um sorriso discreto, ou seu
medo de um inseto saindo vagarosamente do ambiente). Como para isso o
indivíduo precisa observar o próprio corpo, aprender quando respostas motoras
são evocadas como parte de uma emoção, e adestrar-se para evitar ou reduzir
esse componente motor, parece-lhe apropriada a metáfora de algo contido em
si mesmo (como se esse “eu” fosse apenas um receptáculo – a pele, talvez,
como limite - e não incluísse tudo nele contido). Trata-se, porém, de uma
metáfora, e disso é bom não esquecer. Afinal, é o indivíduo como um todo que
“sente uma felicidade” “fica apavorado”, e não uma parte sua que possa abrigar
outros conteúdos.
Há boa razão para dizer que o cérebro humano se localiza dentro do
crânio e o coração dentro da caixa torácica. Nestes casos, podemos
distinguir claramente o continente do conteúdo, o que se localiza
dentro de paredes e o que fica fora, e em que consistem as paredes
divisórias. Mas se as mesmas figuras de retórica forem aplicadas a
estruturas de personalidade, elas se tornam impróprias. A relação
entre controle de instintos e impulsos instintivos, para mencionar
apenas um exemplo, não é uma relação espacial. O primeiro não
89
tem a forma de um vaso que contenha o segundo. Há escolas de
pensamento que consideram os mecanismos de controle, a
consciência ou razão, como mais importantes, e há outras que
atribuem maior importância aos impulsos instintivos ou emocionais.
Mas se não estamos dispostos a discutir sobre valores, se limitamos
nossos esforços à investigação do que existe, descobrimos que não
há aspecto estrutural no homem que justifique chamar uma coisa de
núcleo do homem, e outra de casca. Rigorosamente falando, todo
complexo de tensões, tais como sentimentos e pensamentos, ou
comportamento espontâneo e controlado, consiste de atividades
humanas. Se em vez dos habituais conceitos-substância, como
“sentimentos” e “razão”, usarmos conceitos de atividade, fica mais
fácil compreender que, embora a imagem de “externo” e “interno”, de
casca de um receptáculo contendo algo dentro, seja aplicável a
aspectos físicos do ser humano, ela não pode ser aplicada à
estrutura da personalidade, ao ser humano vivo como um todo.
Neste nível, nada há que lembre um continente – nada que possa
justificar metáforas como a que fala do “interno” de um ser humano.
A intuição da existência de uma parede, de alguma coisa “dentro” do
homem separando-o do mundo “externo”, por mais genuína que
possa ser como intuição, não corresponde a nenhuma coisa no
homem que tenha o caráter de uma real parede. (Elias, 1939/1990b,
p. 247)
90
A análise de Elias (1939/1990b), ao mesmo tempo em que confere
inteligibilidade à noção do homo clausus, sugere as contingências sociais que
explicam por que alguém estará inclinado a admitir que suas emoções e
sentimentos são ocorrências internas, é a mesma análise que revela a
inadequação da metáfora enquanto descrição de fatos (psicológicos) reais. E
as vinculações dessa metáfora com a noção de indivíduo instituída no
renascimento são também assinaladas:
a modificação nos estilos de vida social impôs uma crescente
restrição aos sentimentos, uma necessidade maior de observar e
pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos quanto
em relação aos seres humanos. Isso deu mais valor e ênfase à
consciência de si mesmo como um indivíduo desligado de todas as
outras pessoas e coisas. O desprendimento no ato de observar os
outros e se observar consolidou-se numa atitude permanente e,
assim cristalizado, gerou no observador uma idéia de si como um
ser desprendido, desligado, que existia independentemente de todos
os demais. Esse ato de desprendimento ao observar e pensar
condensou-se na idéia de um desprendimento universal do
indivíduo; e a função da experiência, do pensar e observar, passível
de ser percebida de um nível superior de autoconsciência como uma
função da totalidade do ser humano, apresentou-se pela primeira
vez, sob a forma reificada, como um componente do ser humano
semelhante ao coração, ao estômago ou ao cérebro, uma espécie
de substância insubstancial no ser humano, enquanto o ato de
91
pensar se condensou na idéia de uma “inteligência”, uma “razão” ou,
no linguajar antiquado, um “espírito”. (Elias, 1994, p. 91)
A idéia de indivíduos decidindo, agindo, e “existindo” com absoluta
independência um do outro é um produto artificial do homem,
característico de um dado estágio do desenvolvimento de sua
autopercepção. Depende parcialmente de uma confusão de ideais e
fatos e, até certo ponto, da materialização de mecanismos de
autocontrole individuais – da separação dos impulsos emocionais
individuais frente ao aparelho motor, do controle direto sobre os
movimentos corporais e as ações.
Esta autopercepção em termos do próprio isolamento, da parede
invisível que separa o ser “interior” de todas as pessoas e coisas
“externas”, tem para grande número de pessoas na era moderna a
mesma força imediata que a convicção de que o sol girava em torno
de uma terra situada no centro do cosmos possuía na Idade Média.
Tal como antes a visão geocêntrica do universo físico, a imagem
egocêntrica do universo social certamente poderá ser vencida por
uma visão mais realista, embora emocionalmente menos atraente.
(Elias, 1939/1990b, p. 248)
A abordagem de Elias (1939/1990b) possibilita também compreender
por que certas vertentes da psicologia como profissão de ajuda se ocuparão
dos efeitos somáticos desse novo padrão de relacionamento interpessoal em
seus aspectos “psicológicos” de evitação de ativação do aparelho motor. As
“Psicologias Corporais” encontram lugar na cultura como resposta para essa
92
dimensão dos problemas psicológicos, o que parece confirmar ao leigo que sua
problemática psicológica é de fato relativa a um mundo interno e, como tal,
relativa à sua individualidade ou singularidade29. Em uma direção oposta, Elias
sugere que a noção de homo clausus seja substituída por uma concepção de
homem como parte permanente de redes de interdependência com outros
homens e mulheres.
A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída
aqui pela de “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor
grau (mas nunca absoluto ou total) de autonomia face a de outras
pessoas e que, na realidade, durante toda a vida é
fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente
delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que
os liga. Elas formam o nexo do que é aqui chamado configuração,
ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e
dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos
dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde
através da aprendizagem social, da educação, socialização e
necessidades recíprocas socialmente geradas, elas existem,
poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas
como configurações. Este o motivo por que ... não é particularmente
frutífero conceber os homens à imagem do homem individual. Muito
mais apropriado será conjecturar a imagem de numerosas pessoas
29 A relação da noção de interioridade com o controle da impulsividade provavelmente explica por que tendemos a reservar a categoria de “interno” para sentimentos e emoções, enquanto mais provavelmente referimos o pensamento ou a reflexão como “mentais”.
93
interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou
sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista
básico, desaparece a cisão na visão tradicional do homem. O
conceito de configuração foi introduzido exatamente porque
expressa mais clara e inequivocamente o que chamamos de
“sociedade” que os atuais instrumentos conceituais da sociologia,
não sendo nem uma abstração de atributos de indivíduos que
existem sem sociedade, nem um “sistema” ou “totalidade” para além
dos indivíduos, mas a rede de interdependências por eles formada.
(Elias, 1939/1990b, p. 249)
A noção de interno, assim, faz tão pouco sentido enquanto categoria
analítica para a abordagem dos fenômenos psicológicos como as categorias de
“privado”, “subjetivo” ou “mental”. Uma ciência do comportamento que busque
prover um enfoque relacional para aqueles fenômenos terá como desafio
elaborar a crítica dessas referências. Todavia, as informações aqui discutidas
mostram claramente que a caracterização de emoções, sentimentos e
pensamentos como privados, internos, subjetivos ou mentais não decorre de
um desconhecimento, de uma preferência, ou de um compromisso ideológico,
mas de complexas determinações sociais, históricas e culturais. É necessário
olhar com atenção para essas determinações, se for para identificar com maior
clareza o que podem ser caminhos consistentes para a interpretação e
investigação dos problemas reservados por essa mesma cultura a uma
disciplina psicológica.
94
CAPÍTULO 2
DIMENSÕES DA ABORDAGEM ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL PARA O PROBLEMA DA
SUBJETIVIDADE
A análise desenvolvida no Capítulo 1 indica que há boas razões
histórico-sociais para pensarmos que sentimentos, emoções e pensamentos
são ocorrências do ou no indivíduo. Há também fatores relativos à constituição
humana que favorecem aquela visão. Como todo fenômeno humano é sempre
um fenômeno que envolve o organismo humano, há sempre a possibilidade de
nos referirmos a dimensões orgânicas como evidência da interioridade dos
sentimentos e pensamentos. Uma vez tendo aprendido a observar o próprio
corpo de modos particulares30, qualquer um será capaz de relatar a certeza de
interioridade de seus sentimentos. Se, além disso, não puder ver com clareza
como se liga aos outros homens e mulheres como parte dessa experiência,
estarão dadas as condições fundamentais para que a noção de interioridade
seja bastante persuasiva.
Ao contrapor ao individualismo e subjetivismo modernos uma
interpretação comportamental para a subjetividade, assinalando o caráter
relacional de pensamentos e sentimentos humanos, este trabalho seguirá um
percurso dividido em duas etapas. Neste Capítulo, serão discutidas algumas
dimensões de uma interpretação comportamental para aqueles fenômenos e 30 A observação rotineira do próprio corpo não emergiu como prática apenas no mundo ocidental moderno. Nas culturas orientais, práticas semelhantes foram desenvolvidas, embora com certas variações e outras funções na vida cotidiana. À primeira vista, nas culturas orientais a observação do próprio corpo e mesmo exercícios de autocontrole são praticados visando uma espécie de equilíbrio corporal que se relaciona a uma concepção de transcendência; em outros contextos, são um requisito para a reprodução da hierarquia social. Em qualquer dos casos, trata-se de uma experiência bem diversa daquela descrita no Capítulo 1.
95
seus possíveis desdobramentos na análise das dicotomias psicológicas
clássicas. No Capítulo 3, serão examinadas as possíveis articulações dessa
interpretação com uma análise dos temas ressaltados no Capítulo 1 como
centrais no processo de construção da noção de indivíduo (singularidade,
autonomia e autocontrole do indivíduo).
Algumas palavras iniciais acerca da perspectiva comportamental de
abordagem para os temas da Psicologia são necessárias, com o fim de
demarcar o universo filosófico e conceitual com o qual estaremos trabalhando.
A Psicologia Comportamental foi inaugurada com o manifesto de Watson
(1913/1994) no início do século XX, uma iniciativa que buscava conferir à
disciplina o mesmo estatuto de cientificidade então desfrutado pelas ciências
naturais. A proposta de Watson assentava-se especialmente na postulação do
comportamento como objeto de estudos e da observação e experimentação
como métodos. Desde então, diferentes versões dessa abordagem foram
formuladas, vários sistemas explicativos foram desenvolvidos, definidos como
behavioristas basicamente porque elegem o comportamento como objeto. A
diversidade e mesmo conflito entre fundamentos (filosóficos e metodológicos) e
proposições encontradas nesses diferentes sistemas torna necessário explicitar
adicionalmente a referência teórico-metodológica com a qual se está
trabalhando, quando se pretende falar acerca do ponto de vista
comportamental com respeito a algum conjunto de problemas examinados pela
Psicologia.
No presente trabalho, a análise do comportamento constitui a referência
básica para a discussão da problemática da subjetividade. Embora em sua
96
origem fortemente inspirada pelo trabalho de Watson, a análise do
comportamento constitui uma abordagem mais identificada com o programa de
pesquisas e a produção intelectual de B. F. Skinner (1904-1990) e seus
colaboradores. Será com os instrumentos conceituais e o conhecimento
empírico acumulados pelos analistas do comportamento que as questões
relativas à subjetividade serão predominantemente discutidas neste e no
próximo Capítulo.
Ao referir a análise do comportamento, estamos considerando o sistema
amplo de conhecimento e de práticas profissionais desenvolvidos a partir da
obra de Skinner e seguidores. Isso inclui o que tem sido designado como
behaviorismo radical - ou contextualista31 (a vertente reflexiva e filosófica da
análise do comportamento), a análise experimental do comportamento (a
investigação científica de processos comportamentais básicos), a análise do
comportamento aplicada (a investigação aplicada dos princípios
comportamentais) e as práticas profissionais de analistas do comportamento. O
sistema analítico-comportamental é, assim, entendido como esse conjunto de
produções, que são interdependentes. Pode, também, ser pensado como
conjuntos de produções que variam, aproximando-se mais ou menos de uma
daquelas direções. Esse modo de caracterização tem prevalecido, nos últimos
anos, na explicitação da natureza e alcance da análise do comportamento (cf.
31 Skinner (e.g., 1963/1969) refere-se ao componente filosófico de seu sistema explicativo como behaviorismo radical. O termo é considerado inadequado por alguns autores (e.g., Drash, 1988; S. C. Hayes & L. J. Hayes, 1992). A alternativa mais freqüentemente referida na literatura analítico-comportamental é “behaviorismo contextualista” (cf. S. C. Hayes & L. J. Hayes), sugerido por razões de coerência epistemológica. No entanto, prevalece ainda entre os analistas do comportamento a designação “behaviorismo radical”.
97
Hawkins & Anderson, 2002; Moore & Cooper, 2003; Tourinho; 2003)32. Na
síntese de Hawkins e Anderson (2002),
podemos … identificar pelo menos quatro papéis que um analista do
comportamento pode desempenhar: analista conceitual do
comportamento, analista básico do comportamento, analista
aplicado do comportamento e praticante analítico-comportamental.
Qualquer analista do comportamento pode se engajar em qualquer
um (ou mais) desses papéis em diferentes momentos e poucos
analistas do comportamento se engajam em todos. Talvez mais
importante do que isso, ... cada um desses quatro papéis é uma
parte extremamente valiosa da análise do comportamento e cada
um merece respeito total e igual. (p. 119)
O comportamento dos organismos é assumido como objeto de estudos
da análise do comportamento. No entanto, desde a primeira incursão
skinneriana no conceito de reflexo (Skinner, 1931/1961), por comportamento
entende-se a relação do organismo com mundo a sua volta.
A análise do comportamento pretende ocupar o lugar da Psicologia
porque entende que fenômenos psicológicos são fenômenos
comportamentais. O conceito de comportamento, porém, é
empregado por analistas do comportamento para abordar relações.
Ele não designa o que um organismo faz, mas uma relação entre um
organismo e o mundo à sua volta. Por essa razão, às vezes prefere-
32 Esse tipo de caracterização da análise do comportamento reflete de modo amplo a tentativa em edificar-se como resposta ao conjunto variado de problemas reservados pela cultura à disciplina psicológica (cf. Tourinho, 2003).
98
se falar de relações comportamentais. Assim, a proposta é a de
interpretar os fenômenos psicológicos como fenômenos relacionais,
em outras palavras, fenômenos que dizem respeito às relações dos
organismos com o seu ambiente físico e social (especialmente o
ambiente social, no caso do comportamento humano). (Tourinho,
2003, p. 37)33
Relações comportamentais constituem, portanto, o objeto de estudos da
análise do comportamento. Os termos dessas relações (respostas e estímulos)
definem-se mutuamente, não existem independentemente. Em um trecho de
sua discussão sobre o caráter contextualista da concepção analítico-
comportamental dos fenômenos psicológicos, Morris (1988) assinala esse
ponto afirmando que “na visão analítico-comportamental, o ambiente
comportamental (psicológico) desenvolve-se em interação mútua, recíproca,
com o organismo comportamental (psicológico)” (p. 302).
É importante, também, registrar que muito do que será aqui
desenvolvido usufrui da interlocução com outra escola do pensamento
comportamental na Psicologia, o interbehaviorismo, sustentado especialmente
na obra de J. R. Kantor (1888-1984). Essa interlocução é possível em razão do
fato de que a análise do comportamento e interbehaviorismo compartilham
muitos pontos de vista (filosóficos e teóricos) sobre as feições que a Psicologia
deve assumir como ciência do comportamento. Uma expressiva literatura tem
assinalado a compatibilidade e mesmo a possível complementaridade entre os
33 Essa perspectiva relacional implicará conferir menor importância à topografia comportamental, no que a análise do comportamento distancia-se do fisicalismo encontrado em outras vertentes da Psicologia comportamental (cf. L. D. Smith, 1989).
99
dois sistemas (e.g., Fuller, 1973; Marr, 1984; Moore, 1987; Morris, 1984;
Morris, Higgins & Bickel, 1982; Tourinho, 2004)34, embora ainda sejam restritas
as iniciativas na direção de uma integração maior da produção nos dois
domínios35. O trabalho de Kantor é especialmente importante para dirigir a
atenção do analista do comportamento para as implicações de uma
compreensão do responder do organismo como o responder do organismo
como um todo36, para as implicações da distinção entre objeto estímulo e
função de estímulo, topografia de resposta e função de resposta. As
contribuições de Kantor são também notáveis na discussão de temas
relacionados à subjetividade, em particular sua rejeição da dicotomia interno-
externo e sua abordagem da observabilidade enquanto dimensão interpessoal
dos fenômenos psicológicos (cf. Tourinho).
Por último, cumpre ressaltar que se Skinner constitui a principal
referência para o exame que se segue sobre a temática da subjetividade, não
se pode dizer que as proposições aqui contidas são, em sua totalidade,
skinnerianas. Elas são em grande medida fundamentadas ou inspiradas nos
escritos de Skinner e de outros analistas do comportamento (assim como de
interbehavioristas), mas pretendem introduzir uma perspectiva original de
34 Morris (1984), por exemplo, assinala que “a psicologia intercomportamental é bastante explícita e sofisticada acerca de supostos metateóricos. Estes precisam ser integrados com as contribuições empíricas e conceituais do behaviorismo radical, para aumentar a aceitabilidade de uma ciência natural do comportamento” (p. 202). Há, de outro lado, notáveis divergências entre os dois sistemas (cf. L. J. Hayes, 1994; Kantor, 1970; Morris, 1984). 35 No período de 1945 a 1947 Skinner foi docente do Departamento de Psicologia na Indiana University, a convite de Kantor. Os frutos da convivência dos dois ainda estão por ser adequadamente apreciados (cf. Fuller, 1973). 36 Sobre esse aspecto, L. J. Hayes (1994), discutindo as contribuições de Kantor, ressalta: “Não são os olhos que vêem, os ouvidos que ouvem, as pernas que caminham, ou o cérebro que pensa – é o organismo como um todo que se engaja nesses atos” (p.151).
100
análise a esse corpo de conhecimento, compatível com princípios analítico-
comportamentais. Trata-se, assim, de uma abordagem diferente de outros
estudos que se ocuparam essencialmente de reconstruir o pensamento
skinneriano (e.g., Moore, 1981), ou de nele identificar certos limites (e.g.
Tourinho, 1995). Também deve ser notado que o tema pode ser tratado a partir
de uma variedade de aspectos, alguns deles desenvolvidos em estudos
anteriores (Tourinho, 1994a, 1994b, 1995, 1997a, 1997b, 1997c, 1999a, 1999b,
2004, no prelo; Tourinho & cols., 2000). Na presente discussão, serão
focalizadas apenas algumas dimensões da abordagem analítico-
comportamental para a subjetividade (eventualmente articulando colocações
pontuais de trabalhos anteriores), que possibilitam retomar o problema das
dicotomias psicológicas clássicas e a elas contrapor uma perspectiva relacional
de análise.
2.1. A Noção de Eventos Privados.
A abordagem que Skinner provê para a temática da subjetividade segue
dois cursos, a princípio complementares, mas que em um sentido particular, a
ser discutido adiante, tornam-se conflitantes: de um lado, o reconhecimento de
que há uma particularidade a ser levada em conta quando se discutem esses
fenômenos: o caráter privado de certos estímulos e certas respostas, o que os
torna inacessíveis a uma observação pública direta; de outro lado, uma
discussão das implicações do caráter funcional do comportamento verbal para
a análise da linguagem da experiência privada. Esses dois temas serão
discutidos a seguir, buscando-se caracterizar o alcance das proposições
101
skinnerianas.
Skinner (e.g., 1945, 1953/1965, 1963/1969, 1938/1991, 1974/1993)
enfatiza em sua discussão sobre os “termos psicológicos” o equívoco da
suposição de existência de um mundo mental. Grande parte de sua
argumentação ocupa-se da rejeição dessa categoria, considerando-se que (a)
inexistem evidências desse mundo e (b) a postulação de sua existência não
aumenta a capacidade de previsão e controle do fenômeno comportamental;
ao contrário, desvia a atenção do pesquisador das variáveis relevantes. A
oposição sistemática ao conceito de mente tem possibilitado uma visão de
acordo com a qual behaviorismo e mentalismo constituem em essência
projetos concorrentes na Psicologia do século XX (cf. Uttal, 2000), o que
constitui uma caracterização parcialmente correta (considerando-se a
diversidade de behaviorismos e as críticas de algumas dessas vertentes ao
mentalismo). Todavia, em Skinner, o anti-mentalismo constitui apenas um
aspecto de uma proposição mais ampla de recusar explicações do
comportamento do organismo que apelam a ocorrências do próprio organismo.
Para além do mentalismo, encontra-se em Skinner uma crítica a toda sorte de
explicação internalista, aí incluídas as explicações que apelam à
(neuro)fisiologia do comportamento (cf. Tourinho, 1999a). Em O
Comportamento dos Organismos, Skinner (1938/1991) já afirmava:
Eu já mencionei (no Capítulo Um) a visão primitiva e ainda não
totalmente vencida de que os fenômenos do comportamento são
essencialmente caóticos, mas que eles podem ser reduzidos a um
tipo de ordem através da demonstração de que eles dependem de
102
um sistema determinante fundamentalmente interno. Essa é a visão
que muito naturalmente apresenta a si mesma como uma alternativa
materialista às concepções psíquicas ou mentalistas do
comportamento. O tipo de homúnculo neural que é postulado como
a força controladora carrega uma inequívoca semelhança com o
homúnculo espiritual ou mental dos velhos sistemas, e suas funções
da mesma forma introduzem um tipo de ordem hipotética ao mundo
desordenado. (Skinner, p. 418)
Em textos posteriores (e.g. Skinner, 1953/1965, 1990 – cf. Tourinho,
1999a), reaparece o tema das causas neurais ou fisiológicas como explicações
que também interditam o projeto de uma ciência do comportamento37. O anti-
mentalismo, portanto, não sintetiza inteiramente (ou corretamente) o tipo de
causalidade a que Skinner se opõe38.
Embora dotados de uma mesma natureza física, certos eventos que são
constitutivos do objeto da Psicologia, estímulos e respostas, diferenciam-se por
uma inacessibilidade à observação pública direta; são, então, designados de
eventos privados: “um evento privado pode distinguir-se por sua acessibilidade
limitada, mas até onde sabemos não por qualquer estrutura ou natureza
especial” (Skinner, 1953/1965, p. 257). A categoria de eventos privados inclui,
assim, estímulos gerados pelo próprio corpo do indivíduo, que o afetam de
modos únicos, e respostas emitidas “em escala tão reduzida” (Skinner,
37 Trata-se, nesse caso, de um tipo de crítica antecipado e largamente desenvolvido por Kantor (1922, 1923, 1947) desde a década de 20 do século XX. 38 A este respeito, ver a extensa análise de Carvalho Neto (2001) acerca do anti-mentalismo no pensamento skinneriano.
103
1953/1965, p. 263) que não podem ser observadas pelos outros. Em princípio,
essa proposição significará que o que diferencia o pensar39 é o fato de se tratar
de uma resposta encoberta, e o que diferencia um sentimento de felicidade é o
fato de que o indivíduo pode estar respondendo a uma estimulação privada.
Esse, porém, é apenas um ponto de partida do que pode vir a ser uma
explicação comportamental ampla para a problemática de sentimentos e
pensamentos.
Em um trabalho recente (Tourinho, no prelo), observamos que a base
dessa inobservabilidade de certos estímulos e respostas, isto é, o que torna
certos estímulos e certas respostas inobserváveis, não chega a merecer uma
apreciação detalhada na obra de Skinner. Dentre os demais analistas do
comportamento, isso leva a um debate inconcluso sobre o assunto. Em linhas
gerais, a questão que se coloca é: podemos tratar como estímulos privados
quaisquer eventos (e.g., acontecimentos passados) com função de estímulos,
inacessíveis à observação pública direta, e como respostas encobertas
quaisquer respostas (e.g., votar secretamente) igualmente inacessíveis à
observação pública direta? Se respondemos afirmativamente, deixamos de
explicitar por que a cultura considera o pensar uma resposta qualitativamente
diferente do andar, ou do votar secretamente, que não pode ser observado
porque há uma barreira física. Deixamos de responder por que o individuo em
nossa cultura considera “sentir uma felicidade” (responder ao estímulo privado
39 Skinner preferirá sempre falar do “pensar” (thinking) como resposta, no lugar de falar de “pensamento” (thought) como conteúdo ou posse individual. Termos equivalentes serão usados para outros fenômenos (sonhar no lugar de sonhos, lembrar no lugar de memória, alucinar no lugar de alucinação etc.). Sobre o caso específico do pensar, Andery e Sério (2003) provêem uma análise mais detalhada. Uma interpretação para o sonhar baseada em Skinner é apresentada por F. M. Silva (2000).
104
constitutivo da “felicidade”) algo pessoal, único e especialmente importante,
mas não considera o relatar seu dia anterior como um fenômeno com as
mesmas propriedades. É importante lembrar que Skinner introduz o conceito
de eventos privados em um texto (Skinner, 1945) dedicado a discutir os
“termos psicológicos”. Trabalhar com uma interpretação genérica para o
conceito de “eventos privados” não parece a melhor solução simplesmente
porque com isso continuaríamos devendo uma explicação para a
especificidade dos fenômenos considerados “subjetivos”.
Se respondemos negativamente à interpretação genérica para o
conceito de eventos privados, precisamos ainda esclarecer o que confere a
respostas e estímulos um tipo específico de inobservabilidade. Esse tipo de
especificação é possível a partir de algumas proposições de Skinner e de
Kantor.
Com respeito aos estímulos privados, a análise de Skinner (e.g.,
1974/1993) inicia com o reconhecimento de que existe um tipo de introspecção,
uma espécie de observação pelo indivíduo do que acontece com sua
“interioridade”. No entanto, o que é observado é simplesmente o próprio corpo,
não um mundo imaterial qualquer. Esse argumento, por um lado, afasta
novamente o dualismo mente-corpo; por outro, conduz a uma identificação
problemática do mundo privado com um mundo interno:
Uma pequena parte do universo está contida dentro [sic] da pele de
cada um de nós. Não há nenhuma razão para que ela tenha um
status físico especial em virtude de se situar nesses limites e nós
105
eventualmente teremos uma explicação completa dela [fornecida]
pela anatomia e pela fisiologia. (Skinner, 1974/1993, p. 24)
Sem entrar na discussão da inconsistência encontrada na definição do
privado como interno, já abordada em outros trabalhos (e.g., Tourinho,
1997a)40, o importante a salientar é que o mundo privado diz respeito à
estimulação gerada pelo próprio corpo. Skinner (1974/1993) explicita esse
ponto de vista destacando que chamamos de privados aqueles estímulos
gerados pelo próprio corpo e que não podem afetar outras pessoas do mesmo
modo como afetam o próprio indivíduo. Ou seja, estímulos privados
corresponderiam a estímulos interoceptivos e proprioceptivos. Estímulos
exteroceptivos (e.g., visuais) gerados pelo próprio corpo não cairiam na mesma
categoria, uma vez que podem afetar os outros do mesmo modo como afetam
o próprio indivíduo. A título de exemplo, considerem-se duas condições que
podem controlar uma resposta (auto)descritiva de sentir-se envergonhado,
ambas provocadas pela alteração na circulação sangüínea na face: a alteração
da temperatura da face e a alteração na cor da face. Ambos podem constituir
estímulos (se adquirirem essa função) gerados pelo corpo do indivíduo, o
aquecimento da face um estímulo interoceptivo, a ruborização um estímulo
exteroceptivo. O que Skinner salienta é que aquela alteração corporal poderá
afetar outros sob a forma de estimulação exteroceptiva, mas nunca como
estimulação interoceptiva. Qualquer um poderá emitir a resposta verbal
“vergonha” sob controle da ruborização da face do indivíduo (estímulo
40 Observe-se apenas que a caracterização é inconsistente não apenas porque respostas não podem ser internas ou externas ao organismo, mas também porque alguns estímulos gerados pelo próprio corpo (e.g., a estimulação interoceptiva gerada por um corte na pele) não estão exatamente “dentro” do indivíduo.
106
exteroceptivo gerado pelo corpo do indivíduo “envergonhado”), mas apenas o
próprio indivíduo poderá emitir a mesma resposta sob controle da estimulação
na temperatura (estímulo interoceptivo)41. A forma de contato constitui,
portanto, uma característica essencial da estimulação privada que se articula
com a problemática dos sentimentos, embora esse contato diferenciado do
indivíduo não signifique um acesso ou conhecimento privilegiado (cf. Tourinho
& cols., 2000).
Passando para a análise das respostas encobertas, temos um tipo de
inobservabilidade gerada não por barreiras físicas (como quando alguém vota
secretamente, ou digita uma senha bancária em um aparato especial), mas por
propriedades formais e/ou relacionais das respostas (Tourinho, no prelo).
Skinner (1953/1965) refere uma “escala reduzida” das respostas
encobertas, sem especificar que propriedades estão presentes em escala
reduzida nessas respostas. Também faz referência (cf. Skinner, 1957/1992) a
uma “ordem decrescente de energia” ao discutir o responder verbal encoberto,
uma idéia que é muito interessante, na medida em que sugere variações
maiores das respostas verbais do que simplesmente abertas e encobertas
(adiante, esse aspecto será discutido). Um aspecto também muito importante
da abordagem de Skinner é que ela atribui a contingências sociais a forma
aberta ou encoberta das respostas (cf. Skinner, 1953/1965, 1974/1993,
1968/2003). Isto é, aprendemos qualquer repertório sempre na forma aberta e
respondemos abertamente ou encobertamente dependendo das contingências
41 Em várias ocasiões Skinner (e.g. 1945) menciona que a invasão por instrumentos não resolve este problema, pois neste caso os outros responderão sob controle das medidas dos instrumentos (estímulos exteroceptivos) enquanto o indivíduo poderá permanecer respondendo sob controle de estímulos interoceptivos.
107
sociais a somos expostos. Assim, não há respostas naturalmente, nem
definitivamente, abertas ou encobertas.
Tourinho (no prelo) articula as proposições de Skinner à abordagem de
Kantor (cf. Kantor & N. W. Smith, 1975), de acordo com a qual todo responder,
sendo o responder do organismo como um todo, envolve a participação de
todos os sistemas orgânicos. Seguindo a argumentação de Kantor, a
observabilidade de uma resposta varia como função tanto do grau de
participação do aparelho motor na sua emissão (propriedade formal ou
estrutural da resposta), quanto da familiaridade entre observador e observado
(cf. L. J. Hayes, 1994; Kantor & N. W. Smith, 1975; Observer, 1973, 1981)42.
Registre-se já aqui que a restrição na ativação do aparelho motor, mencionada
por Kantor na análise do caráter “inaparente” de certas respostas, é a mesma
referida por Elias (e.g., 1939/1990b) na discussão do autocontrole. Esse
aspecto será discutido no Capítulo seguinte.
Acompanhando Donahoe e Palmer (1994), pode-se dizer que a
observabilidade varia também como função dos instrumentos do observador43,
sendo possível falar em um continuum de observabilidade. Tourinho (no prelo)
acrescenta a essas fontes de variabilidade o treino de observação do
42 L. J. Hayes (1994) afirma que, de acordo com Kantor, as respostas são mais ou menos sutis e “a sutileza não é uma característica formal do evento em questão. Isto é, a sutileza não é uma propriedade de um evento particular, à parte de uma história insuficiente do observador com respeito ao mesmo. Quanto maior a história de interação de uma pessoa com eventos sutis, mais óbvios eles se tornam, pois, falando psicologicamente, os eventos observados são nada mais do que os loci de funções de resposta para os observadores” (p. 160). 43 Segundo Donahoe e Palmer (1994), “a observabilidade de uma resposta não é determinada por sua intensidade ou magnitude, mas pelas características ou instrumentos do observador ... Devemos evitar a tentação de pensar no comportamento encoberto como um tipo de comportamento, com propriedades essencialmente diferentes do comportamento aberto. Em vez disso, todo comportamento localiza-se em um continuum de observabilidade” (p. 275).
108
observador. Quanto mais adestrado para observar o responder dos organismos
e, em especial, as relações entre esse responder e contingências ambientais,
mais capacitado se está para identificar respostas que, aos olhos dos outros,
ou na relação com os outros, são encobertas.
De acordo com a presente análise, não apenas propriedades formais
(e.g., Skinner, 1953/1965), nem somente dimensões relacionais (Donahoe &
Palmer, 1994) definem a observabilidade de respostas. A proposição de
Donahoe e Palmer, no sentido de operar com a noção de um continuum de
observabilidade é aqui adotada, porém admitindo-se que os intervalos desse
continuum variam como função de propriedades formais e relacionais das
respostas.
A noção de um continuum de observabilidade de respostas, embora não
discutida por Skinner, é inteiramente compatível com sua argumentação acerca
de uma “ordem descendente de energia” (Skinner, 1957/1992, p. 438) na
análise da variação do comportamento verbal. Como assinalado por Tourinho
(no prelo), é também compatível com certas proposições de Watson
(1930/1970) acerca do pensar, quando este refere estágios de ativação da
musculatura vocal. Essa observabilidade variável, como assinalado por Skinner
(1953/1965, 1974/1993, 1968/2003) é dependente de contingências sociais.
Embora mencione que certas respostas são emitidas de forma
encoberta devido a um controle de estímulos fraco, ou por conveniência,
Skinner (1957/1992) salienta que a “evitação da punição” (p. 436) contingente à
forma aberta da resposta constitui uma razão mais importante para a emissão
encoberta de respostas verbais. Esse aspecto é especialmente importante
109
porque aqui podemos começar a fazer uma segunda ligação com a
problemática do autocontrole. Esse tema será retomado apenas no próximo
Capítulo, mas é importante registrar desde já que o modo como a sociedade
opera para promover respostas encobertas inclui (de modo preponderante) a
disposição desse tipo de contingência (a punição contingente à forma aberta da
resposta). Se examinarmos as circunstâncias em que isso ocorre, veremos que
o indivíduo responder de forma aberta produz não apenas conseqüências para
si mesmo (o próprio estímulo auditivo gerado pela resposta verbal vocal
constitui um poderoso reforço para a resposta)44, como também uma
estimulação auditiva para os outros, que pode ter diferentes funções. Quando
essa estimulação tem uma função aversiva para o outro, será mais provável
que seja punida. Em outras palavras, pode haver no responder aberto um
conflito entre as conseqüências para o próprio indivíduo e as conseqüências
para o grupo.
Passando para a questão das relações entre linguagem e privacidade,
desde a primeira proposição do conceito de eventos privados, Skinner (1945)
estende sua análise na direção de examinar os processos verbais
possivelmente envolvidos quando alguém fala de si mesmo, sob controle de
estímulos privados. Sua análise em muito se aproxima da abordagem oferecida
por Wittgenstein (1953/1988) acerca da impossibilidade de uma linguagem
privada45. O ponto de partida consiste em indagar como é possível que um
44 Nessa abordagem, estamos sempre considerando o comportamento verbal vocal, por suas implicações para a análise do pensar. 45 Vários trabalhos assinalam as similaridades (e, em alguns casos, também diferenças) entre as abordagens de Skinner e de Wittgenstein para a linguagem (e.g., Bloor, 1987; Costall, 1980; Day, 1969; Lampreia, 1992; Tourinho, 1994b; Waller, 1977).
110
indivíduo responda verbalmente sob controle de um estímulo ao qual só ele
próprio tem acesso, quando esse responder depende, para ser adquirido e
mantido, de contingências dispostas por uma sociedade.
A análise funcional desenvolvida por Skinner (1957/1992) para o
comportamento verbal, já delineada em 1945 (Skinner, 1945), postula que o
responder verbal é parte de uma relação operante da qual também participam
conseqüências mediadas socialmente (com um aspecto diferenciador de outros
comportamentos sociais de humanos e infra-humanos, nos quais também
podemos encontrar uma mediação social: a reciprocidade de papéis entre
falantes e ouvintes)46. Assim, um indivíduo aprende a dizer “maçã” diante de
uma fruta quando uma comunidade verbal reforça diferencialmente essa
resposta na presença daquele estímulo. Nesse caso, temos um operante
verbal do tipo tato, no qual “uma resposta de uma dada forma é evocada (ou
pelo menos fortalecida) por um objeto ou evento particular, ou por uma
propriedade de um objeto ou evento particular” (Skinner, 1957/1992, pp. 81-
82). Outros operantes verbais descritos por Skinner não serão aqui discutidos
em razão dos objetivos específicos deste trabalho. Mas é importante ressaltar
que, diante de conceitos, psicológicos ou de outra ordem, o que a análise
skinneriana recomenda é que não sejam tratados como rótulos de coisas ou
essências, mas como de fato se apresentam, isto é, como respostas verbais.
46 Catania (1998) esclarece a peculiaridade da mediação social no comportamento verbal: as contingências sociais tornam-se recíprocas muito cedo: a criança aprende tanto a perguntar quanto a responder e a dizer ‘obrigado’ assim como ‘de nada’. Assim, em alguns aspectos, todas as culturas verbais são sociedades de reforço mútuo” (p. 262). Adiante, Catania acrescenta: “O comportamento verbal envolve tanto o comportamento do ouvinte, que é modelado pelos seus efeitos sobre o comportamento do falante, quanto o comportamento do falante que é modelado pelos seus efeitos sobre o ouvinte. Tais reciprocidades definem o comportamento verbal” (p. 262).
111
Enquanto respostas verbais, devem ser analisados identificando-se as
contingências (sociais) das quais são função. No lugar de especular acerca de
uma ontologia da vida mental, portanto, a análise de Skinner recomenda
indagar sobre as contingências das quais nossos conceitos, como respostas
verbais, são função (cf. Moore, 2001; Leigland, 2003).
Uma concepção funcional da linguagem é encontrada também em
Wittgenstein (1953/1988), para quem a linguagem constitui uma forma de ação
humana no mundo, baseada em convenções socialmente definidas. Como tal,
suas relações com a realidade não são de representação; ao contrário, a
linguagem define a realidade, no sentido de que quando participamos de certos
“jogos de linguagem”, quando usamos certos conceitos de modos eficientes em
certos contextos, estamos configurando uma parcela da realidade a um tipo
particular de experiência com ela, estamos tornando-a diferenciada de modos
específicos, que não nos aproximam ou distanciam de nenhuma essência, mas
nos permitem interagir de modos que atendem certas necessidades. Lampreia
(1992) sintetiza esse ponto de vista assinalando que Wittgenstein
procurou combater a visão tradicional segundo a qual as palavras
representam, ou substituem uma referência e as sentenças
descrevem um estado de coisas. Mas isto não significa que ele
negue que as palavras possam ser usadas para representar uma
referência e que as sentenças possam ser usadas para descrever
um estado de coisas. O que está em questão é o que determina a
representação e a descrição. Para Wittgenstein, não é a referência,
mas todos os pressupostos envolvidos na prática de usar palavras e
112
sentenças. A ‘representação’ já se dá em um contexto que é
lingüístico e que envolve uma ‘mitologia’ e as crenças de
determinada cultura. E são essa mitologia e essas crenças que, em
última análise, determinam o significado das representações. Ou
seja, não é a realidade que se impõe à linguagem, mas, ao contrário,
é a linguagem que se impõe à realidade e determina a forma como
ela será representada. Diferentes mitologias e crenças irão levar a
diferentes representações da realidade, logo irão constituir diferentes
realidades. (p. 281)
Voltando à análise de Skinner, a comunidade verbal é quem dispõe
contingências que podem promover a instalação de respostas autodescritivas
de emoções. Segundo Skinner (1945), nesses casos, a comunidade baseia sua
ação reforçadora em estímulos públicos correlacionados com os estímulos
privados. Para o indivíduo, porém, a resposta pode vir a ficar sob controle dos
estímulos privados, ainda que disso resulte uma “imprecisão” das respostas
autodescritivas. Tanto a suposição skinneriana de que a comunidade verbal
“infere” o que acontece no mundo privado, quanto sua insistência no caráter
“impreciso” das respostas autodescritivas de sentimentos e emoções
constituem aspectos polêmicos da análise skinneriana, discutido em outros
trabalhos (e.g., Bloor, 1987; Tourinho, 1994a, 1994b). Como o próprio Skinner
(1945) assinala, as contingências sociais continuam operando na manutenção
de nosso repertório verbal, isto é, nossas autodescrições permanecem sob
controle de contingências socialmente dispostas (incluindo o controle de
estímulos em que o reforçamento diferencial está baseado) mesmo após
113
adquirirmos esse repertório. “O indivíduo adquire a linguagem da sociedade,
mas a ação reforçadora da comunidade verbal continua a desempenhar um
papel importante na manutenção das relações específicas entre respostas e
estímulos, que são essenciais ao funcionamento apropriado do comportamento
verbal” (Skinner, p. 272). Se aprendemos a atribuir “sono”, “alegria” ou
“angústia” sob controle de certas respostas abertas, dos outros e de nós
mesmos, nossas autodescrições desse tipo continuarão sob controle de
contingências baseadas nesses eventos públicos, caso contrário, deixam de
ser funcionais nas interações com os outros.
Uma apreciação mais recente de como podemos consistentemente
interpretar os conceitos mentais à luz da teoria skinneriana do comportamento
verbal e das contribuições da filosofia de Wittgenstein é oferecida por Ribes
(2004):
Os conceitos mentais são aprendidos como palavras e expressões
usadas e aplicadas corretamente em circunstâncias e situações
específicas. O aprendizado de descrições ou identificação de
estados mentais e intenções na primeira pessoa acontece do
mesmo modo que o aprendizado da identificação desses estados
em segundas e terceiras pessoas: usando e aplicando o conceito
corretamente. Aprendemos a reconhecer a circunstância na qual um
conceito tem significado ajustando-nos aos critérios,
comportamentais e situacionais, sob os quais o conceito é usado
apropriadamente. O conceito é aprendido falando e comportando-se
de uma maneira particular, não por meio de um processo elaborado
114
de discriminação de propriedades físicas ostensivas, internas ou
externas, de si mesmo ou de outros, e construindo com base nisso a
identificação, nomeação, ou descrição do estado mental ou intenção
(ou tateando estímulos privados sob controle da comunidade verbal).
Os conceitos mentais estão profundamente ligados à linguagem.
(Ribes, 2004, pp. 65-66)
2.2. Limites da Noção de Eventos Privados.
Na presente seção, pretende-se desenvolver a idéia de que a distinção
público-privado, central para a elaboração skinneriana acerca dos “termos
psicológicos”, pode funcionar para reproduzir a lógica dualista que está na
origem da definição do objeto da Psicologia (cf. Ribes, 1982; Tourinho, 1995),
ou, de modo diverso, pode funcionar para conferir inteligibilidade para aspectos
importantes da experiência de interioridade e sugerir caminhos para uma
abordagem científica (não dualista) da experiência subjetiva em geral. Em
outras palavras, as idéias de contato diferenciado do indivíduo com certos
estímulos e de restrição na observabilidade de certos estímulos e certas
respostas podem ser preservadas como recursos importantes para uma
compreensão científica de sentimentos e pensamentos, sem necessariamente
conduzir-nos a uma visão dualista dos fenômenos humanos.
Já foi assinalado acima que a idéia skinneriana de imprecisão das
respostas verbais autodescritivas de emoções é problemática porque parte da
noção de uma (im)possível (ou supostamente desejável) correspondência entre
linguagem e subjetividade. Apesar disso, é importante salientar que um
115
aspecto distintivo da análise de Skinner consiste de chamar atenção para o fato
de que nossas respostas verbais47, sob certos arranjos de contingências (por
exemplo, quando incluem contingências que promovem auto-observação e
autocontrole), podem ficar parcialmente sob controle de estímulos gerados pelo
próprio corpo (em particular, estímulos interoceptivos e proprioceptivos)48. Ao
longo de sua obra, Skinner assinalou que isso acontecia tendo por base uma
correlação entre estímulos públicos (aos quais a comunidade verbal tem
acesso) e estímulos privados (aos quais apenas o próprio indivíduo tem acesso
direto). Mais recentemente, foi demonstrado empiricamente que condições
anátomo-fisiológicas podem adquirir função de estímulo discriminativo
(interoceptivo) enquanto membros de classes de estímulos equivalentes das
quais participam também estímulos públicos (cf. DeGrandpre, Bickel & Higgins,
1992)49. Do ponto de vista da análise que vimos desenvolvendo, esse aspecto
do tratamento que Skinner provê para a relação entre privacidade e linguagem
é bastante relevante quando considerado à parte do discurso da imprecisão.
Isto é, não se trata de afirmar que a descrição de uma angústia, por exemplo, é
mais ou menos precisa, correspondendo mais ou menos precisamente a uma
condição anátomo-fisiológica particular, mas de destacar que a resposta verbal
47 Sobre outras possíveis funções de estímulos privados (eliciadora, reforçadora, ou discriminativa para respostas não verbais), ver Tourinho (no prelo). 48 Para uma apreciação crítica do alcance dessa possibilidade, ver Tourinho (no prelo). 49 Observe-se que a afirmação da equivalência entre estímulos públicos e privados está aqui circunscrita às condições sob as quais a análise do comportamento tem investigado a equivalência de estímulos (cf. DeGrandpre, Bickel & Higgins, 1992). Em particular, deve ser notado que embora equivalentes, estímulos públicos podem adquirir funções discriminativas para respostas verbais à parte de qualquer relação com estímulos privados, ao passo que estímulos privados dependem das relações (correlações ou relações de equivalência) para adquirir as mesmas funções (cf. Tourinho, no prelo).
116
“estou angustiado”, pode ficar sob controle de estímulos privados equivalentes
ou correlacionados com estímulos públicos (sejam eles quais forem, e sejam
eles variáveis ou não dentro de um certo arranjo – cf. Tourinho, no prelo).
Moore (2001) observa como esse componente da explicação skinneriana a
diferencia de outras perspectivas interpretativas:
a análise do comportamento concorda com a análise conceitual e
com Wittgenstein que o comportamento verbal não pode originar-se
sob controle de estímulos privados. De fato, admitir isso seria uma
marca do dualismo. No entanto, a análise do comportamento
argumenta que o comportamento verbal pode originar-se sob
controle de circunstâncias públicas e o controle pode então
transferir-se para estímulos privados, de modo que em instâncias
específicas o comportamento verbal em questão pode vir a ser
ocasionado por estímulos privados. Mas a distinção entre público e
privado na análise do comportamento é na realidade não uma
distinção ontológica entre físico e mental. No lugar disso, é uma
distinção de acesso. (p. 177, itálico do original)
É necessário, porém, ir além da colocação de Moore (2001) salientando
as implicações das condições sob as quais a “transferência” do controle de
estímulos (de eventos públicos para eventos privados) acontece. Em segundo
lugar, é necessário definir o exato lugar da noção de privado, a partir do
reconhecimento de que respostas verbais podem ficar parcialmente sob
controle de estímulos privados.
117
Tendo em vista o funcionamento da linguagem, isto é, a dependência do
comportamento verbal relativa a contingências sociais, o controle de respostas
verbais por estímulos privados não se descola das contingências baseadas em
estímulos públicos (isto é não passa a independer destes) apenas porque
ocasionalmente a resposta é emitida sob controle de estímulos privados
relacionados. A transferência de controle de estímulos a que Moore (2001) se
refere não é absoluta, muito menos definitiva. O controle eventual de respostas
verbais por estímulos privados só é possível porque o repertório verbal é
mantido por reforço intermitente, este sempre baseado em estímulos públicos.
Disso resulta que nossos conceitos de emoções e sentimentos não descrevem
e não podem descrever ocorrências essencialmente privadas. Olhando de
outro modo, significa que os conceitos de que dispomos descrevem eventos ou
fenômenos sempre dotados de dimensões públicas.
A análise de Skinner, porém, mostra-nos que também pode ser um
equívoco tomar os conceitos emocionais como descritivos apenas de conjuntos
de classes de eventos públicos50. Isto é, quando um indivíduo diz que está
angustiado, não apenas está descrevendo conjuntos amplos de ação, ou a
probabilidade de agir publicamente de modos específicos frente a certos
estímulos. Ele pode estar tateando uma condição corporal associada àquelas
ocorrências. Em outras palavras, Skinner está atento para aspectos da
experiência de sentimentos e emoções no mundo moderno que a diferenciam
de outros contextos sócio-culturais. Se é verdade que em culturas não
50 A abordagem skinneriana diferencia-se, por exemplo, do behaviorismo molar de Rachlin (cf. Baum, 1994) e do behaviorismo lingüístico de Ryle (cf. Ryle, 1949/1984), para os quais os conceitos emocionais não descrevem ocorrências discretas, mas constituem rótulos para conjuntos de diferentes classes de comportamentos (cf. Holth, 2001).
118
individualistas os conceitos emocionais são “empregados” sempre sob controle
de conjuntos de eventos todos públicos, também é verdade que em uma
cultura que promove permanentemente a auto-observação e o autocontrole
esses conceitos existem sob a forma de respostas verbais parcialmente sob
controle de estímulos gerados pelo próprio corpo (e que, quando afetam os
outros, a estimulação é de outro tipo).
Passando para as respostas encobertas, sendo originalmente função de
contingências baseadas na forma aberta, deve-se notar que são sempre
instâncias de respostas adquiridas e mantidas sob controle de contingências
públicas. Isto é, quando um indivíduo pensa51 (ou emite encobertamente a
resposta verbal) “o dia hoje está chuvoso”, esse pensar constitui uma instância
de uma resposta verbal adquirida e mantida sob controle de um reforçamento
diferencial provido pela comunidade verbal quando a resposta é emitida na
forma aberta. Assim, uma resposta encoberta tem sempre e necessariamente
dimensões públicas, independentemente do quanto varie em termos daquelas
propriedades (formais e relacionais) discutidas na seção anterior, que a tornam
mais ou menos facilmente identificável por terceiros.
Com as observações anteriores, pode-se argumentar que a noção de
privado é relevante para salientar certas propriedades do controle de estímulos
em respostas verbais descritivas de emoções e sentimentos e certas
propriedades de algumas respostas (em geral, aquelas que qualificamos como 51 Os conceitos de “pensar” e de “pensamento” constituem respostas verbais sob controle de eventos ou fenômenos muito diversos (e.g., como em “Eles pensam que nos enganam”, “José está pensando em escrever um livro”, “Pensando bem, é melhor aguardar a chuva passar”, “Pense bem antes de tomar uma decisão” etc.). Todavia, a discussão que vem sendo apresentada focaliza apenas o pensar enquanto resposta verbal encoberta (como em L. J. Hayes, 1994), em razão do interesse particular desse fenômeno para a discussão da subjetividade/privacidade.
119
“cognitivas” ou “mentais”52) em uma sociedade individualista. Por outro lado,
isso é diferente de postular que faz sentido categorizar os eventos que são
relevantes para uma análise psicológica, ou comportamental, como públicos ou
privados. Quando fazemos isso, podemos dizer que introduzimos uma
dicotomia que, embora não expresse um dualismo metafísico (cf. Skinner,
1945), reproduz a lógica dualista sobre a qual a Psicologia foi fundada.
Conforme assinalado no Capítulo 1, a distinção público-privado, pensada no
plano das relações dos homens e mulheres uns com os outros, dos modos
como passam a ser organizar politicamente (o conflito indivíduo/Estado) e a se
relacionar socialmente (a distinção sociabilidade anônima/sociabilidade
restrita), significa não uma problematização (ou cisão) do indivíduo/sujeito, mas
um modo de enfocar dimensões das relações interpessoais. Ao transportá-la
para o domínio psicológico de análise, tendemos a tomá-las como igualmente
apropriadas enquanto expressão de dimensões dos termos que constituem as
unidades de análise de nosso objeto de estudos (no caso, dimensões dos
estímulos e das respostas)53 e com isso passamos a operar com a mesma
lógica dualista subjacente ao cartesianismo (cf. Ribes, 1982).
Uma primeira razão para rejeitar a dicotomia público-privado consiste do
fato de que comportamentos (enquanto relações) não são fenômenos públicos
ou privados, mas fenômenos de maior complexidade dos quais podem
participar estímulos públicos e respostas encobertas. Para além disso, 52 Como apontado antes, exatamente por força de contingências que estão na origem desses conceitos, tendemos a chamar de internos os sentimentos e emoções e de mentais as atividades intelectuais. Menos freqüentemente chamamos de internas as atividades cognitivas, e menos ainda tendemos a chamar de mentais os sentimentos e emoções. 53 Ou seja, há uma diferença substancial entre o que significam os conceitos de público e de privado na Sociologia e na Psicologia, um tema ainda por ser analisado de modo aprofundado.
120
estímulos e respostas não são eventos que podem ser categorizados como
públicos ou privados. São eventos que variam ao longo de um continuum de
observabilidade, e por força não apenas de suas propriedades formais, mas
também do contexto interpessoal em que acontecem. Ou seja, observabilidade
ou inobservabilidade não constituem propriedades absolutas de estímulos e
respostas; são pólos de um continuum ao longo do qual variam certos eventos
em contextos de relações.
Na seção anterior discutiu-se mais claramente a noção de um continuum
de observabilidade de respostas, mas não se especificou em que medida o
mesmo raciocínio poderia ser empregado na discussão de estímulos. A lógica,
no entanto, é a mesma. Estímulos não são simplesmente eventos, mas
eventos com certas funções no contexto de relações comportamentais. No
caso específico dos conceitos psicológicos54, argumentou-se anteriormente que
nossas respostas verbais autodescritivas de emoções são emitidas sob
controle de eventos públicos apenas, ou sob controle de eventos públicos e
privados. Assim, também no caso dessas relações comportamentais verbais,
não há simplesmente um evento controlando a resposta, mas arranjos de
eventos. Esses arranjos podem variar quanto à observabilidade, dependendo
do grau de participação de eventos públicos e eventos privados. Isso permitiria
falar também em um continuum de observabilidade dos arranjos de estímulos
que controlam respostas autodescritivas de emoções e sentimentos. É claro
54 A presente análise de estímulos privados tem enfocado apenas as circunstâncias nas quais condições do próprio indivíduo adquirem funções discriminativas para respostas verbais em razão de que são essas as circunstâncias que importam para uma análise dos conceitos psicológicos. Como afirma Skinner (1945), “o único problema que uma ciência do comportamento pode resolver em conexão com o subjetivismo é no campo verbal. Como podemos explicar o comportamento de falar sobre eventos mentais?” (p. 294).
121
que esse raciocínio pode ser questionado, salientando-se que há estímulos
privados específicos, mas nesse caso não se trata do arranjo de eventos que
controla qualquer resposta autodescritiva de emoções e sentimentos, isto é,
estaremos referindo um evento qualquer à parte das relações que constituem
nosso objeto de análise.
Em suma, se a noção de privado ou (in)observabilidade é relevante para
uma compreensão ampla da problemática de sentimentos e emoções no
mundo moderno, a categorização de estímulos e respostas como
simplesmente públicos ou privados é desnecessária e introduz uma lógica que
pode comprometer a compreensão desses fenômenos. O pensar (como o
imaginar, o sonhar etc.) é uma relação do homem com o mundo, que não cabe
no rótulo de público ou privado. Mesmo o pensar enquanto resposta (termo
daquela relação) não pode ser estritamente privado (sempre terá dimensões
públicas). Alegrar-se, entristecer-se, angustiar-se etc. também não são eventos
discretos que possam ser definidos como públicos ou privados, mas relações
comportamentais.
A favor de Skinner, nesse debate, deve contar o fato de que sua
abordagem inicial para a questão da privacidade representou um passo adiante
na construção de uma referência comportamental para o tratamento do
assunto, afastando o dualismo metafísico da Psicologia mentalista e o
fisicalismo dos behavioristas metodológicos (cf. Skinner, 1945; Tourinho, 1995).
Os termos iniciais de sua elaboração sobre eventos privados, porém, não
sofreram grandes alterações em trabalhos posteriores. Além disso, sua rejeição
da categoria de mental serve apenas para afastar o dualismo metafísico, mas
122
não funciona para instituir uma perspectiva totalmente consistente de análise.
Sua afirmação de que “a minha dor de dentes é tão física quanto a minha
máquina de escrever, embora não seja pública” (Skinner, 1945, p. 294) pode
funcionar como uma armadilha se for interpretada em sentido estrito. Dor de
dentes não é o tipo de fenômeno que se defina por propriedades físicas,
portanto assinalar que há propriedades físicas aí envolvidas serve apenas para
que não seja tratado como fenômeno imaterial, mas não para indicar como
pode ser consistentemente tratado.
Uma segunda razão para afirmar que a dicotomia público-privado traz
problemas para uma análise comportamental de sentimentos e emoções
consiste do fato de que o conceito de privado formulado genericamente como a
propriedade distintiva de certas instâncias de sentimentos e pensamentos leva
a uma diversidade de definições não coincidentes. Essa variedade de
definições para eventos privados é notória e pode ser aqui ilustrada. Baum
(1994) sustenta que “eventos privados são eventos que nunca podem ser
relatados por mais de uma pessoa, não importando quantas outras pessoas
estejam presentes” (p. 30). De acordo com essa definição, eventos privados
são eventos que não podem ser tateados por outros, no que o aspecto verbal
torna-se central para a definição. Anderson e cols. (1997) afirmam que eventos
privados são “respostas privadas e os efeitos de estímulo dessas respostas na
pessoa que está respondendo” (p. 158). De acordo com esse ponto de vista, o
responder encoberto é que é central para a definição de eventos privados.
Anderson e cols. acrescentam haver “quatro classes” (p. 161)55 de eventos
55 O título da seção do artigo em que essa expressão aparece é “Tipos de Eventos Privados” (cf.Anderson & cols., 1997, p. 161).
123
privados: “emoções (afeto, sentimentos), pensamentos, percepções (visuais ou
outras imagens) e estimulação interoceptiva e proprioceptiva” (p. 161). As
emoções, admitidas como uma classe de eventos privados, são adiante
definidas como “uma resposta ou um conjunto de respostas ... Essas respostas
podem incluir comportamentos respondentes ... e podem incluir
comportamentos operantes” (p. 161). Moore (2000) oferece uma outra
definição: alguns fenômenos privados são condições sentidas do corpo (e.g.,
por exemplo, dores, sentimentos e emoções), enquanto outros são formas
encobertas de comportamento (o pensar, resolver problema, lembrar e
imaginar)” (p. 48). Na elaboração de Moore, os eventos privados são condições
corporais que adquiriram funções de estímulo e respostas encobertas. Todas
essas definições são de algum modo consistentes com as proposições de
Skinner, mas isso também significa que “eventos privados” é uma resposta
verbal emitida por analistas do comportamento sob o controle de conjuntos
variados de eventos. Trata-se, portanto, ela mesma, de uma resposta verbal,
para usar o termo de Skinner, “imprecisa”.
A seção seguinte discute essa noção de “evento privado” como resposta
verbal, buscando delinear uma abordagem de caráter analítico-comportamental
para os problemas da subjetividade. A partir desse ponto, deve ser notado que
o conceito de privacidade será empregado na referência a fenômenos com
diferentes graus de complexidade, dos quais participam eventos com diferentes
graus de observabilidade, não eventos estritamente privados.
2.3. “Eventos Privados” como Resposta Verbal.
124
Esta seção está parcialmente baseada em uma análise desenvolvida em
Tourinho (no prelo), a ela acrescentando alguns desdobramentos e
refinamentos, na direção de enfatizar o enfoque relacional da análise do
comportamento e suas conexões com o campo da privacidade. A proposição
central daquele trabalho é a de que quando analistas do comportamento falam
de eventos privados (como nas definições apresentadas na seção anterior)
estão se voltando para (ou estão sob controle de) conjuntos diferentes de
problemas, ou aspectos não necessariamente coincidentes de um mesmo
conjunto de problemas. A análise foi bastante motivada por uma proposição de
Friman e cols. (1998), de acordo com a qual há circunstâncias em que as
respostas verbais autodescritivas de emoções funcionam não apenas como
tatos, mas também adquirem funções de determinantes do comportamento
público, o que contrariaria uma alegação skinneriana de que esses fenômenos
não estão dotados de funções causais.
Uma das dificuldades encontradas nesse debate sobre o possível status
causal de sentimentos e emoções, que conflita à primeira vista com um
enfoque que toma o comportamento como relação do organismo como um todo
com eventos externos a ele, reside no fato de que sentimentos e emoções são
eles mesmos respostas verbais emitidas sob controle de fenômenos diversos.
Em geral, quando Skinner (e.g., 1963/1969, 1989, 1974/1993) alega que
sentimentos não causam respostas públicas sua referência é ao que “é
sentido” ou “introspectivamente observado”, isto é, as condições anátomo-
fisiológicas que em um dado momento são o resultado da história genética e
ambiental do indivíduo. Essas condições de fato não causam o responder
125
público (embora possam controlar discriminativamente – nos limites discutidos
acima – respostas autodescritivas e, em algumas circunstâncias, possam
funcionar como operações estabelecedoras, isto é, condições que alteram
momentaneamente a sensibilidade do organismo a certas contingências de
reforçamento). Todavia, quando Friman e cols. (1998) argumentam que é
necessário analisar de modo diferente as emoções, estão partindo da noção de
que as autodescrições são elas mesmas parte do fenômeno discutido como
emocional e assinalando que uma vez que essas autodescrições participam de
outras relações e entram no controle de comportamentos futuros dos
indivíduos, não é possível simplesmente dizer que não possuem um status
causal. Um trecho de Friman e cols. ilustra o ponto de afastamento em relação
à análise de Skinner.
Uma pessoa com transtorno de pânico não evita simplesmente
locais públicos; ele ou ela evita todo um conjunto de
comportamentos privados associados com aqueles lugares. A
alegação de Skinner de que a emoção e o comportamento aberto
são controlados pelos mesmos eventos está, portanto, incorreta, ou
pelo menos incompleta. Um entendimento mais completo requer
uma análise das complexas contingências verbais que estão
envolvidas na disposição humana para categorizar eventos
arbitrários (e.g., um coração agitado) como emoções negativas e
responder de modo correspondente (“Estou em pânico, tenho que
sair”). Uma análise das contingências diretas poderia revelar a base
para a esquiva de uma pessoa de lugares públicos, mas não explica
126
prontamente a esquiva de seus pensamentos e sentimentos sobre
esses lugares. (p. 149)
O modelo proposto por Tourinho (no prelo) para a análise de problemas
desse tipo, e correlatos, parte do suposto de que enquanto fenômenos
psicológicos ou comportamentais, sentimentos e emoções podem ser
abordados apenas como relações. Condições anátomo-fisiológicas, ainda que
participem de fenômenos comportamentais (afinal, trata-se de comportamento
de organismos) não definem esses fenômenos (cf. Tourinho & cols., 2000) e
em certas circunstâncias analíticas podem inclusive ser ignoradas (cf. Reese,
1996a, 1996b). Portanto, ao indagar se o responder (público ou privado) pode
ou não ser determinado por emoções e sentimentos, o que podemos estar
examinando é (a) que relações definem uma emoção ou sentimento específico
e (b) como essas relações variam com respeito ao grau de complexidade e se
entrelaçam com outras relações comportamentais.
Um sentimento específico, por exemplo, a inveja, enquanto relação
comportamental pode envolver um responder com os seguintes componentes:
a) controle discriminativo pela presença de outro indivíduo (o “invejado”),
notícias sobre o invejado, objetos do invejado etc.; b) classes de respostas
verbais (por exemplo, descrever negativamente o invejado, ou criticar suas
qualidades, fazer intrigas envolvendo o nome do invejado etc.) e não verbais
(por exemplo, tentativas de imitar o invejado, de eliminar atributos ou
propriedades do invejado); c) sensibilidade a aspectos do ambiente físico e
social do invejado e, ao mesmo tempo, a descrições negativas do invejado por
outros, enquanto estímulos reforçadores. Outras relações com o mesmo ou
127
diferentes graus de complexidade podem constituir a inveja para um segundo
indivíduo. Por exemplo, pode incluir uma autodescrição do tipo “Eu sou melhor
do que fulano”, sob controle daquela relação56. Pode também incluir a mesma
autodescrição parcialmente sob controle de uma condição corporal associada.
A presença do invejado pode adquirir funções eliciadores em relações
respondentes57 etc..
O grau variável de complexidade dos fenômenos comportamentais,
especialmente humanos, pode ser examinado tendo-se como referência as
relações que os definem e os entrelaçamentos dessas relações. Em Tourinho
(no prelo) propõe-se que o modo causal de seleção por conseqüências,
formulado por Skinner (e.g., 1981, 1990) provê uma referência produtiva para a
análise do problema. De acordo com Skinner, o comportamento humano é o
produto conjunto de contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Um
fenômeno comportamental humano, na análise desenvolvida em Tourinho (no
prelo) pode incluir relações produzidas em um ou mais desses níveis e isso
poderia ser tomado como uma referência da complexidade do fenômeno. Para
explicitar esse ponto de vista, Tourinho recupera a abordagem de Donahoe e
Palmer (1994), segundo a qual “a complexidade é o resultado cumulativo de
56 Paradoxalmente, um indivíduo que exiba o padrão descrito será considerado invejoso pelos outros, mas sua inveja dificilmente incluirá a autodescrição “Eu invejo fulano”. Em contrapartida, quando um indivíduo afirma “Eu invejo fulano”, essa resposta “funciona” nas relações interpessoais como sinal de respeito ou admiração pelo outro, não como evidência de inveja enquanto o fenômeno descrito acima. Isso acontece, para usar uma expressão de Wittgenstein (1953/1988), como resultado da gramática da palavra “inveja”, que serve a diferentes usos. No exemplo citado, estamos focalizando apenas um uso particular do conceito. Em temos comportamentais, isso significa que “invejar” (como o “pensar”, ilustrado anteriormente) constitui uma topografia de resposta verbal que pode participar de relações comportamentais diversas. 57 Em Darwich e Tourinho (2005), explica-se como relações respondentes e operantes podem entrelaçar-se em fenômenos emocionais.
128
processos seletivos repetidos” (p. 22).
As ciências históricas explicam a complexidade como resultado do
processo em três etapas, de variação, seleção e retenção ... Ciclos
repetidos desse processo em três etapas são suficientes para
produzir a complexidade organizada no mundo biológico e –
sustentamos – também no mundo comportamental. (Donahoe &
Palmer, 1994, p. 18)
Na noção de complexidade sugerida por Tourinho (no prelo), tanto a
repetição dos processos seletivos, como o nível em que se dão (filogênese,
ontogênese e cultura) constituem referências importantes. Tourinho sugere um
continuum de complexidade dos fenômenos comportamentais humanos
baseado nesse modelo. De acordo com essa proposta um fenômeno será tão
ou mais complexo do que outro dependendo de incluir relações resultantes de
um ou mais níveis de determinação. A noção de complexidade está aqui
associada a uma idéia de inclusividade. Fenômenos mais complexos são
aqueles que incluem relações produzidas por um nível adicional de
determinação. Uma representação gráfica possível dessa idéia é apresentada
na Figura 1, a seguir. Observe-se que (a) fenômenos em um nível superior de
complexidade incluem relações dos níveis anteriores e (b) o continuum não tem
apenas três segmentos, correspondentes aos três níveis de variação e seleção,
mas sugere que mesmo nos limites de um mesmo nível os fenômenos podem
variar em complexidade (dependendo das relações envolvidas e do
entrelaçamento dessas relações).
129
Figura 1: Complexidade de fenômenos comportamentais à luz do modo causal de seleção por
conseqüências.
Um continuum assim definido poderia ser útil na análise da privacidade
e teria as seguintes feições:
Proponho que a complexidade dos fenômenos comportamentais
humanos relacionados à privacidade pode ser tratada como função
de processos seletivos repetidos, envolvendo a participação de
variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Proponho que um
continuum de complexidade pode ser derivado dessa perspectiva.
Em uma extremidade desse continuum, os fenômenos
comportamentais estariam limitados a relações filogenéticas, o que
inclui respostas sob o controle de eventos que adquiriram função de
estímulo na história filogenética do homem. É claro que esse é um
zero ideal do continuum, uma vez que nenhuma relação real pode
ser interpretada como resultante apenas da filogênese. Mas algumas
respostas humanas, como o sugar o seio, ou o mover-se em direção
à voz da mãe, pelo bebê, estão claramente mais próximas dessa
extremidade do continuum.
−−−− ←←←← Complexidade de Fenômenos Comportamentais →→→→ ++++
Filogênese
Cultura
Ontogênese
130
Na outra extremidade do continuum, temos fenômenos
comportamentais constituídos por relações (entrelaçadas),
resultantes de variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A
maior complexidade resulta aqui não apenas de processos seletivos
repetidos, mas também dos tipos de variáveis envolvidas no
controle, especialmente a participação de contingências verbais que
tornam possíveis novas relações (entrelaçadas). Esse é o caso, por
exemplo, quando a raiva de alguém se define não apenas por
respostas reflexas de glândulas e músculos lisos, mas também por
um conjunto de relações que incluem uma alta taxa de respostas
agressivas em direção a um agente controlador (cf. Skinner,
1953/1965, p. 362), respostas de auto-observação, respostas
autodescritivas e outras respostas controladas por autodescrições,
todas presumivelmente estabelecidas por contingências operantes
anteriores. Nesse caso, um termo de uma relação (um estímulo ou
uma resposta) pode adquirir uma função de estímulo para outras
respostas. A resposta de agressividade de uma pessoa pode ser um
estímulo discriminativo para respostas autodescritivas, que por seu
turno podem controlar discriminativamente outras respostas em
direção ao agente controlador ou a estímulos relacionados.
(Tourinho, no prelo, pp. 22-23)
Embora possamos dizer que emoções e sentimentos têm uma base
filogenética, a história ambiental de um indivíduo produzirá um conjunto de
relações entrelaçadas que vão muito além daquela determinação. Quando
131
essa história inclui contingências culturais, um grau muito maior de
complexidade é introduzido em razão do fato de que a linguagem dá origem a
funções de estímulo derivadas (S. C. Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001),
isto é, com a linguagem introduzimos muitas novas relações como constitutivas
de um fenômeno. Um indivíduo que se comporta de determinados modos em
certos contextos e sensível (ou não) a certas conseqüências pode ser
considerado por outros “depressivo” ou não, independentemente de se
autodescrever desse modo. Todavia, quando aprende a dizer-se um indivíduo
depressivo, dependendo das contingências culturais a que tiver sido exposto,
pode estar aprendendo mais do que isso. Pode aprender, também, que sujeitos
deprimidos são um fracasso social, têm dificuldades para cumprir funções
profissionais, não são bem sucedidos afetivamente etc.. Essas descrições
entram no controle de uma ampla gama de outros comportamentos e muito
mais relações (e muito mais complexas) passam a ser constitutivas de sua
depressão.
Um raciocínio semelhante pode ser desenvolvido para qualquer emoção
ou sentimento, incluindo aqueles para os quais identificamos mais claramente
um componente filogenético. O que chamamos de medo, por exemplo, inclui
conjuntos muito variados (em extensão e complexidade) de relações
comportamentais. (Em outras palavras o “medo”, como “eventos privados” e
como todos os conceitos emocionais, pode ser entendido como uma resposta
verbal emitida em uma dada cultura sob controle de conjuntos variados de
fenômenos, por isso afirmações genéricas sobre o medo podem sempre ser
questionadas a luz de instâncias às quais não se aplicam). Dizemos que
132
crianças têm medo de ficar sozinhas, que Cebolinha tem medo de Mônica e
que jornalistas têm medo de políticos (ou que políticos têm medo de jornalistas,
dependendo do caso). Em cada situação, estamos diante de um fenômeno
com determinado grau de complexidade. A noção de inclusividade é importante
para assinalar que fenômenos mais complexos diferem tanto quanto incluem
relações adicionais. O medo mais complexo, no qual se identificam relações
produzidas por um nível cultural de determinação, não se limita a isso; inclui
relações produzidas nos níveis filogenético e ontogenético de determinação (o
que tem implicações importantes para a identificação do alcance da
intervenção verbal ou não verbal em Psicologia). Questões dessa ordem estão
mais extensamente discutidas em Tourinho (no prelo). Nos parágrafos
seguintes, são sugeridos alguns desdobramentos dessa abordagem, não
contemplados naquele trabalho.
As relações entre linguagem e sentimentos.
Em uma discussão do tema da subjetividade à luz do modo causal de
seleção por conseqüências, Andery (1997) assinala que “sem o terceiro nível
de seleção por conseqüências é impossível, por assim dizer, discutir-se a
construção da subjetividade” (p. 206). Essa afirmação deriva do que foi
discutido acima acerca da necessidade de exposição do indivíduo às práticas
de uma comunidade verbal para que seu mundo “interno” seja construído (na
verdade, para que seu próprio corpo adquira certas funções para suas
respostas verbais). Assim, os conceitos emocionais não descrevem algo que
existe antes e independentemente do comportamento verbal; ao contrário, com
133
a aquisição do comportamento verbal é que as emoções, enquanto fenômenos
experimentados pelo indivíduo na relação consigo mesmo, isto é, as emoções
enquanto fenômenos que incluem o responder verbal sob controle do próprio
corpo, passam a existir. Essa é a subjetividade de que falamos quando nos
referimos aos conceitos psicológicos.
Uma objeção pode ser levantada à proposição da dependência da
subjetividade em relação à linguagem, assinalando-se que nossos conceitos
emocionais, como apontado antes, são usados mesmo em circunstâncias em
que o fenômeno emocional apresenta um grau inferior de complexidade, em
particular, em circunstâncias nas quais não há um componente verbal. Que
isso acontece pode ser verificado quando atribuímos sentimentos e emoções a
crianças pré-verbais. Por exemplo, vemos uma criança ser afastada dos pais e
chorar e atribuímos tristeza a ela. Esse fato pode servir ao argumento de que o
sentimento existe independentemente da linguagem. Mesmo de animais infra-
humanos poderia ser dito que ficam alegres, tristes, aborrecidos, saudosos
etc..
Todavia, somos nós, seres verbais, que atribuímos tristeza à criança
pré-verbal ou a animais infra-humanos. Para a própria criança, o “estar triste”
enquanto resposta verbal não existe como parte de sua tristeza. Assim, diante
da indagação acerca da possibilidade de humanos pré-verbais (ou infra-
humanos) “possuírem” uma subjetividade, não é possível responder apenas
afirmativamente ou negativamente. Depende do que estiver sendo indagado.
Se a questão é saber se podemos encontrar em pré-verbais aquelas relações
mais simples, produtos da filogênese e da ontogênese, constitutivas de
134
emoções e sentimentos, a resposta é afirmativa58. Se a questão for saber se há
identidade entre essas relações e as relações que definem sentimentos e
pensamentos para indivíduos verbais de sociedades que promovem auto-
observação e autocontrole, a resposta obviamente é negativa. Quanto às
conseqüências de se comparar os dois graus de complexidade desses
fenômenos, dependerá dos objetivos analíticos do pesquisador.
Em suma, o componente verbal, quando existe, não simplesmente
descreve a emoção, ele é parte da emoção. Essa emoção que inclui relações
verbais produzidas pelo terceiro nível de determinação do comportamento só
existe para humanos verbais e, mais do que isso, para humanos verbais
expostos a determinadas contingências culturais. A cultura que produziu a
noção de subjetividade é a mesma que promove essas autodescrições e, por
isso também, justifica-se a compreensão de que o conceito de subjetividade
está ligado a esse grau mais avançado de complexidade de emoções e
sentimentos.
A variabilidade de emoções e sentimentos entre cult uras.
Pesquisas transculturais têm demonstrado que certos sentimentos
variam como função de contextos culturais. Em uma outra direção, há trabalhos
postulando que certas emoções são universais, produtos da seleção
filogenética. Ambas as posições serão ilustradas a seguir, sem a menção às
58 Como assinalado antes, a noção de um continuum baseado no modo causal de seleção por conseqüências não significa que se trata de um continuum com apenas três segmentos. Por exemplo, mesmo um sentimento limitado por relações ontogenéticas e filogenéticas pode ter diferentes graus de complexidade, no sentido de que pode envolver mais ou menos relações, entrelaçadas ou não.
135
diversas e sofisticadas teorias encontradas em uma literatura de Psicologia das
emoções (em razão dos objetivos específicos deste trabalho), mas sugerindo-
se que podem ser compreendidas à luz do continuum de complexidade
apresentado anteriormente.
Segundo Mesquita e Walker (2003), a idéia de determinação filogenética
dos sentimentos e emoções tem prevalecido, inclusive em grande parte dos
estudos transculturais, enquanto “os aspectos socioculturais das emoções têm
sido amplamente ignorados, pelo menos na psicologia” (p. 778). Quando os
aspectos socioculturais são levados em conta, pode-se tanto enfocar os modos
específicos como sentimentos universais são experimentados em uma dada
cultura, quanto buscar identificar sentimentos que são próprios de um universo
cultural. Exemplo do primeiro tipo de estudo é encontrado na seguinte
descrição de Mesquita e Walker:
modelos culturais da Ásia oriental ... enfatizam a harmonia relacional
e favorecem que os indivíduos ocupem seu lugar apropriado. Esses
modelos culturais desencorajam os indivíduos quanto a ocuparem
muito espaço na relação, tanto figurativamente quanto literalmente.
Assim, o comportamento expansivo, tal como a atividade somática
geral, é um sinal de que o indivíduo está tomando mais do que o seu
espaço apropriado ...
há indicação de que a expressão de felicidade, um outro
comportamento expansivo, também é raro em culturas que atribuem
uma ênfase à harmonia nas relações. As expressões de felicidade
são vistas como potencialmente disruptivas porque podem
136
contrastar dolorosamente com o estado emocional dos outros ..., ou
porque podem ser vistas como indicando a plausibilidade de um
indivíduo estar desafiando as obrigações sociais e fugindo de
responsabilidades. (p. 786)59
Russell (1991) aborda alguns achados de estudos do segundo tipo, que
focalizam emoções que são específicas de certos contextos culturais. Russell
considera que as evidências colecionadas a esse respeito demandam uma
análise mais cuidadosa e especula que as diferentes emoções podem ser
apenas a “ponta do iceberg” de processos mais amplos, envolvendo a
diversidade de sistemas de crenças sobre “a mente, o self, a sociedade, a
natureza e assim por diante” (p. 445). Em seu trabalho, oferece alguns
exemplos de conceitos emocionais próprios de certas culturas.
Um exemplo da Alemanha é a palavra Schadenfreude, que significa
o prazer derivado do desprazer de outro. Uma outra palavra é Angst:
Waiter Lowrie (1944) traduziu o livro de Kierkegaard Der
BegriffAngst sob o título de O Conceito de Pavor, mas afirmou que
“o próprio título desse livro revela um lacuna séria em nossa língua:
não temos uma palavra que traduza adequadamente Angst” (p. ix).
Um exemplo da língua japonêsa é itoshii, que se refere a ansiar pela
59 Observe-se que aqui temos um exemplo de como, em um contexto cultural diferente daquele encontrado na sociedade ocidental moderna, um tipo de auto-observação e autocontrole emergem com funções distintas (nesse caso, preservar a harmonia no interior dos grupos sociais, o que possivelmente se relaciona com a questão de respeito à hierarquia mencionada no Capítulo 1 – funções que são relevantes nesse contexto, independentemente da extensão do universo social e do grau de complexidade das relações de interdependência dos membros do grupo). Em contraste, no mundo ocidental moderno, a auto-observação e o autocontrole emergem com a valorização do indivíduo (não do grupo) e com a complexificação das relações de interdependência, cumprindo funções ligadas à necessária previsibilidade do comportamento de cada um e à harmonização de indivíduos ocupados com uma variedade cada vez maior de funções sociais.
137
pessoa amada ausente60. Uma outra palavra é ijirashii, que se refere
a um sentimento associado com a visão de alguém louvável
superando um obstáculo. ... Eu ouvi de uma mulher árabe sobre seu
deleite ao aprender a palavra em inglês frustration [frustração], pois
sua língua nativa não tinha nenhuma palavra para aquele
sentimento. (Russell, 1991, p. 426, itálico do original)
A pesquisa que focaliza uma possível base filogenética das emoções tem
resultado na apresentação de listas variadas (em número e em itens) de
“emoções básicas”. Em uma de apresentação abrangente de sua história de
pesquisas nessa área, Ekman (1993) assinala que “expressões [faciais]
universais distintivas têm sido identificadas para raiva, medo, repulsa, tristeza e
alegria61. Sobre a determinação filogenética dessas emoções, Ekman afirma
que
o que distingue as emoções de outros fenômenos psicológicos é que
nossa avaliação de um evento atual é influenciada por um passado
ancestral. Não é simplesmente a nossa história ontogenética, mas a
nossa história filogenética que faz com que uma emoção seja mais
prontamente suscitada em uma circunstância do que em outra, e
60 Provavelmente um conceito similar a “saudade”. 61 Grande parte da investigação de Ekman baseia-se no estudo de expressões faciais. Todavia, Ekman (1993) assinala que é possível haver emoção sem a contrapartida da expressão facial, o que é importante para a idéia aqui discutida de que sob práticas sociais que promovem o autocontrole as respostas emocionais podem ter outra topografia. Diz Ekman: “Há evidência de que as pessoas podem não demonstrar mudança na atividade facial visível, embora relatem sentir emoções e manifestem mudanças na atividade do sistema nervoso autonômico ... A existência dessas pessoas contradiz a proposta de Tomkins (1963) de que a atividade facial sempre é parte de uma emoção, mesmo quando seu aparecimento é inibido” (p. 388).
138
ainda assim a ontogenia tem um efeito enorme. (p. 389)62
Na literatura da análise do comportamento são também encontradas
referências a emoções “primárias” (cf. Banaco, 1999; Millenson, 1967/1975),
definidas em termos de relações comportamentais. Millenson menciona três
emoções primárias, ansiedade, elação e raiva, como resultantes de
emparelhamentos pavlovianos, com efeitos sobre o comportamento operante.
Em uma abordagem semelhante, Banaco propõe um sistema de coordenadas
baseado na apresentação ou remoção de reforçadores positivos ou negativos.
As emoções resultantes poderiam ser então interpretadas como mais ou
menos diferenciadas de acordo com a ação de contingências ontogenéticas.
Mesmo quando as emoções são abordadas como produtos
filogenéticos, encontra-se um reconhecimento da determinação cultural de
certos aspectos que definem como são “experienciadas”. Por exemplo, Ekman
(1999/2004) sugere que existem emoções básicas, distintas umas das outras e
resultantes de processos evolutivos, portanto compartilhadas por indivíduos de
diferentes culturas. Mas também reconhece que “a capacidade de representar
a experiência emocional em palavras muda em muitos aspectos a experiência
emocional” (Ekman, 1999/2004, p. 8). Com uma posição semelhante, Solomom
(2002) assinala que “a questão das emoções básicas deveria ser entendida e
abordada de maneira a capturar a riqueza e variedade da existência humana”
(p. 143).
62 A idéia de que há emoções básicas, que fazem parte do equipamento genético dos homens, parece ser pelo menos tão antiga quanto o século I a.C.. Russell (1991) revela que em uma enciclopédia chinesa desse tempo (que compilava documentos de períodos anteriores) encontra-se: “O que são os sentimentos dos homens? Eles são alegria, raiva, tristeza, medo, amor, repulsa e afeição. Esses sete sentimentos pertencem aos homens sem que os aprendam” (Chai & Chai, 1885, em Russell, p. 426).
139
Usando novamente o modo causal de seleção por conseqüências como
recurso conceitual para conferir inteligibilidade ao conjunto variado de
evidências sobre emoções e sentimentos, podemos sugerir que há emoções
(relações) selecionadas filogeneticamente (as básicas ou primárias,
independentemente de quantas e quais forem) e que estas constituem a base a
partir da qual diferentes culturas constroem diferentes universos de
sentimentos e emoções (novas relações). Cada novo sentimento significa um
tipo de diferenciação adicional introduzido por uma cultura, com base em
variações ou dimensões específicas (e.g., o controle de estímulos específico, a
freqüência, magnitude da resposta etc.) das configurações que as emoções
básicas podem assumir em diferentes contextos de vida de homens e
mulheres63. Em um contexto teórico bastante diverso da análise do
comportamento, Ratner (2000) apresenta uma abordagem para a questão da
base biológica das emoções que é compatível com essa idéia de diferenciação
cultural da experiência emocional:
A evidência apresentada acima indica que as funções biológicas que
medeiam os fenômenos psicológicos são integradas com funções
culturais-psicológicas. A integração acontece porque a biologia se
adapta às atividades culturais. As funções biológicas são o material
bruto que é moldado pelas atividades culturais. A biologia é
63 Um comentário de Russell (1991) ilustra como uma maior diversidade de conceitos emocionais representa uma maior diferenciação de uma classe de fenômenos: “algumas línguas não distinguem claramente o que o inglês trata como categorias emocionais separadas de um nível básico. Left (1973, p. 301) assinalou que em algumas línguas africanas uma memsa palavra abrange o que distinguiríamos como raiva e tristeza” (p. 430). Outros exemplos similares são encontrados nesse mesmo trabalho.
140
indispensável para a Psicologia e para a cultura. No entanto, ela não
determina seu conteúdo específico. (p. 33)
Ratner (2000) constrói uma teoria explicativa de emoções também
baseada na atividade humana. Embora a apresente como uma teoria da
atividade, há um caráter relacional evidente na sua explicação.
A ênfase em atividades como base das emoções produz a descrição
e a explicação mais vívidas das emoções porque as conecta à
riqueza vibrante da vida real. Ela relaciona as emoções às
mudanças dinâmicas que estão acontecendo na economia mundial,
aos tipos de governo e sistemas legais nos quais as pessoas vivem,
à maneira como a assistência à saúde é provida, às mudanças nas
relações familiares e nos sistemas educacionais nos quais as
crianças crescem, à arte que é produzida e à mídia à qual as
pessoas são expostas, às inovações e artefatos tecnológicos
espetaculares e à infra-estrutura física em mudança nas cidades.
Ignorar a atividade conduz a ignorar muitos aspectos culturais
específicos das emoções. Conduz também a explicações
incompletas das características, formação e função das emoções.
(p. 34)
Em suma, variáveis culturais produzem sentimentos diversos, mas
limitados por um aparato produzido filogeneticamente. Alguns sentimentos
podem ser mais o produto dessas variáveis culturais e outros podem estar mais
próximos daquela base filogenética. Desse modo, um sentimento será mais
diferenciado entre culturas quanto mais se apresentar como relações
141
produzidas por variáveis culturais específicas. Em outra direção, algumas
emoções, referidas como emoções básicas (cf. Ekman, 1999/2004), serão
menos variáveis entre culturas, na medida em que se apresentem apenas (ou
predominantemente) como relações produzidas por variáveis seletivas
filogenéticas. Dessa perspectiva, sentimentos e emoções variam ao longo do
mesmo continuum de complexidade descrito anteriormente, localizando-se em
diferentes pontos desse continuum, dependendo do quanto dele participam
relações produzidas filogeneticamente, ontogeneticamente ou culturalmente.
As diferenças entre emoções e sentimentos.
Os conceitos de emoções e sentimentos são freqüentemente usados
como sinônimos, tanto na linguagem ordinária quanto na literatura psicológica.
Algumas abordagens científicas, porém, evidenciam um interesse em empregar
esses conceitos para diferenciar certos conjuntos de fenômenos. A linguagem
então aparece como o aspecto característico do que é possível diferenciar e,
nesse caso, o continuum de causalidade delineado neste estudo pode ser útil
para a análise. Isto é, nas diferenciações disponíveis, o conceito de emoção
pode ser empregado para designar relações comportamentais relacionadas à
afetividade produzidas por variáveis filogenéticas e ontogenéticas, enquanto
sentimentos seriam aquelas relações produzidas por variáveis culturais (a partir
das emoções).
Essa alternativa de interpretação seria consistente com certas alegações
no campo da fisiologia, de acordo com as quais emoções são “estados
corporais” (se considerarmos que estão se referindo a respostas fisiológicas
142
em certas emoções) e sentimentos são “sensações conscientes”, cada tipo de
fenômeno “mediado por circuitos neuronais distintos no cérebro” (Iversen,
Kupfermann & Kandel, 2000, p. 982). Seria parcialmente consistente ainda com
a argumentação de Ekman (1999/2004) de acordo com a qual, em certo
sentido, todas as emoções são básicas, mas distintas de “outros fenômenos
afetivos” (embora ainda seja necessário examinar se nesse conceito de
emoção se incluiriam também componentes ontogenéticos). Também para
alguns sistemas explicativos em Psicologia, não comportamentais, a distinção
parece relevante. Dér (2004) assinala que para Wallon
a afetividade é um conceito amplo que, além de envolver um
componente orgânico, corporal, motor e plástico, que é a emoção,
apresenta também um componente cognitivo, representacional, que
são os sentimentos e a paixão. O primeiro componente a se
diferenciar é a emoção, que assume o comando do desenvolvimento
logo nos primeiros meses de vida; posteriormente, diferenciam-se os
sentimentos e, logo a seguir, a paixão. (p. 61).
Não está claro que para a análise do comportamento uma tal
diferenciação seja recomendada ou produtiva, sobretudo se considerarmos que
o modelo de seleção por conseqüências possibilita, com mais economia
conceitual, uma apreciação mais abrangente das diversas configurações
(relacionais) que (o que denominamos na linguagem coloquial como)
sentimentos e emoções podem adquirir para indivíduos em contato com
diferentes sistemas culturais. Assim, a referência a esse problema no contexto
da presente discussão tem apenas a função de mostrar que quando uma
143
diferenciação entre sentimentos e emoções é buscada por outros sistemas
explicativos, o resultado a que chegam baseia-se em dimensões relacionais
dos fenômenos, contempladas no modelo interpretativo aqui apresentado.
O status da fisiologia na definição de sentimentos e emoções.
Toda relação comportamental implica uma ação do organismo como um
todo (embora não se limite a isso, pois dela também participam variáveis
ambientais), portanto envolvendo todos os seus sistemas orgânicos (cf. Kantor,
1922, 1923; Kantor & N. W. Smith, 1975). Porém, certos componentes
fisiológicos de uma resposta podem ser ou não especialmente relevantes para
sua definição. Por exemplo, eventos fisiológicos podem ser críticos (Kantor
diria “mais proeminentes”) quando o indivíduo saliva, mas não terão o mesmo
papel para a (definição de uma) resposta de abrir uma porta. Dizer que o
evento é “crítico” em um caso, mas não no outro, significa que pode ter ou não
uma função específica no fenômeno comportamental sob exame, e variar
menos (na resposta de salivar) ou mais (na resposta de abrir a porta) entre
indivíduos.
Um ciência do comportamento deve evitar visões reducionistas de seu
objeto, mas precisa explicar o status da base fisiológica do comportamento. No
caso de emoções e sentimentos, os componentes fisiológicos serão mais ou
menos relevantes (ou “críticos”), dependendo do ponto do nosso continuum em
que o fenômeno se localiza.
As emoções básicas, produtos de variáveis seletivas filogenéticas,
apresentarão uma componente fisiológico mais semelhante entre os indivíduos
144
e a referência a esse componente pode ter alguma relevância para a definição
da resposta (a resposta pode ser mais tipicamente uma resposta fisiológica).
Fenômenos comportamentais (inclusive relativos à privacidade) mais
complexos, em contrapartida, revelarão uma variabilidade fisiológica muito
maior. Friman e cols. (1998) abordaram esse ponto na análise da ansiedade e
o argumento ali desenvolvido (de acordo com o qual a fisiologia da ansiedade é
a mesma de muitas outras relações comportamentais)64 aplica-se a muitas
outras instâncias de sentimentos. Amor, paixão, felicidade e outros sentimentos
positivos, por exemplo, podem diferenciar-se com respeito às relações
comportamentais envolvidas, mas compartilhar componentes fisiológicos
específicos65. A identificação desse componente será, portanto, de pouca ou
nenhuma utilidade para uma identificação do sentimento presente num dado
momento.
Resumindo, quanto mais complexo um sentimento, mais variável e
menos importante sua fisiologia para uma defição do fenômeno. E à medida
em que a fisiologia se mostra mais variável e menos relevante como
propriedade definidora de um fenômeno relativo à privacidade, é a análise
comportamental, não a fisiológica, que produzirá uma compreensão do 64 Friman e cols. (1998) exemplificam: “uma definição comum de ansiedade é a reatividade fisiológica a eventos com resultados incertos, porém potencialmente aversivos. Atravessar uma rua sem carros e ser subitamente tomado por um responder fisiológico de alta intensidade (e.g., batimento cardíaco, respiração, transpiração e pressão arterial elevados) é considerado uma instância de ansiedade ... Atravessar a mesma rua e quase ser batido por um carro produz a mesma fisiologia, mas não constitui uma instância de ansiedade. Isso seria uma instância de medo” (p. 138). 65 Saindo um pouco do foco em sentimentos e emoções, é relevante registrar que há semelhanças na atividade neurofisiológica quando são emitidas respostas que diferem quanto à presença ou ausência de certos estímulos controladores. Por exemplo, o ver e o imaginar parecem ser emitidos com o mesmo tipo de atividade neural (cf. Donahoe & Palmer, 1994). Com isso, “a interpretação do imaginar não parece requerer a postulação de quaisquer processos biocomportamentais que sejam únicos do imaginar” (Donahoe & Palmer, p. 256).
145
fenômeno. É também a intervenção comportamental, não a intervenção
fisiológica, que será requerida para solucionar problemas relacionados àquele
fenômeno.
2.4. Relações Comportamentais e as Dicotomias Psico lógicas Clássicas.
A abordagem para a subjetividade delineada nas seções anteriores, na
medida em que trata os problemas relacionados a sentimentos e pensamentos
como problemas no campo das relações do indivíduo com contingências de
seu mundo físico e social (especialmente o último), conflita com as categorias
analíticas encerradas nas dicotomias psicológicas clássicas. Na presente
seção, serão discutidos alguns aspectos desse conflito.
Como assinalado no Capítulo 1, as dicotomias psicológicas surgem
como expressão de uma visão de homem particular (própria do individualismo).
É nesse terreno que começam as dificuldades para conciliar aqueles conceitos
com o sistema explicativo analítico-comportamental. Para este último, o homem
não é um ser autônomo, que por força de suas faculdades ou qualidades é
capaz de submeter o mundo a seus interesses. Diferente disso, as
competências (e.g., cognitivas, profissionais, artísticas etc.) do homem
definem-se apenas nas relações com outros homens (uma discussão do
problema da autonomia é apresentada no Capítulo 3, adiante). Com respeito a
isso, há grande proximidade entre o ponto de vista analítico-comportamental e
a abordagem oferecida por Elias (e.g., 1939/1990b, 1994). No lugar de
indivíduos, a análise do comportamento também vê homens e mulheres
relacionando-se com o mundo físico e uns com os outros, e identifica nessas
146
relações a descrição/explicação possível para os temas de que a Psicologia se
ocupa.
Uma análise científica do comportamento despoja o homem
autônomo e transfere o controle que se tem dito que ele exerce
sobre o ambiente. O indivíduo pode então ser visto como
particularmente vulnerável. Ele será a partir de então controlado pelo
mundo a sua volta e em grande parte por outros homens. (Skinner,
1971/2002, p. 205)
Na análise do comportamento, as relações do homem com o mundo são
examinadas enquanto relações funcionais, produzidas por variáveis
filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Variáveis culturais, por seu turno,
modelam o comportamento individual, e são selecionadas ao fazerem isso, por
seu efeito para o grupo e não para o indivíduo particular (esse aspecto também
será discutido no Capítulo 3, adiante). A partir disso, é necessário olhar para o
responder humano como parte de um sistema mais complexo do que
simplesmente o que representam enquanto ação do indivíduo. É necessário
examinar sua função no contexto de relações que podem ser mais ou menos
complexas (em geral, muito complexas – especialmente mais complexas do
que é possível investigar experimentalmente). Mesmo quando um indivíduo
formula isoladamente um enunciado sobre uma parcela qualquer da realidade,
um Robinson Crusoé qualquer, que explique a cor de seus sapatos ou o trajeto
dos astros, esse fenômeno será inteligível apenas à luz de sua história
ambiental. Onde há linguagem (e só com ela o Robinson Crusoé pode formular
147
qualquer descrição da realidade) há mediação social66, há relações específicas
com parcelas da realidade que se tornaram diferenciadas para o homem por
força de sua exposição a ambientes sociais sofisticados.
Certas relações comportamentais verbais são produzidas por ambientes
sociais que promovem a auto-observação e um responder diferenciado sob
controle de condições corporais. Algumas vezes, condições corporais que se
relacionam de modos especiais com sentimentos e emoções (em alguns casos,
alterações fisiológicas eliciadoras de respostas motoras, ou condições
estabelecedoras). As funções adquiridas pelas condições corporais sob tais
contingências são únicas, mas também inteligíveis apenas como parte de
arranjos complexos de contingências. Do mesmo modo que a complexidade
das relações de interdependência dificulta a percepção das ligações com os
outros homens e mulheres (cf. Elias, 1994), a complexidade das contingências
que promovem uma diferenciação das condições corporais em relações
emocionais favorece uma visão da emoção como ocorrência do ou no
indivíduo. Nos dois casos, a ciência funciona para contrariar o “conhecimento”
imediato, em particular, funciona para contrariar concepções confortáveis e
sedutoras baseadas no que o leigo é capaz de discriminar acerca de suas
relações com o mundo, mostrando-as como descrições precárias (de um ponto
de vista da instrumentalidade científica) de fenômenos que só se tornam
66 Apesar de ter afirmado, em 1945 (Skinner, 1945), que o que importa para o Robinson Crusoé não é se ele concorda com alguém, mas se consegue lidar de modos efetivos com a realidade, Skinner (1971/2002) reconhece que Crusoé tem “débitos com a sociedade” (p. 123), pois se tivesse chegado à ilha em que viveu isolado ainda bebê, sua história “teria sido diferente” (p. 124).
148
inteligíveis quando unidades mais amplas e medidas mais sofisticadas são
empregadas para a análise.
Algumas considerações adicionais podem ser feitas acerca dos
problemas aqui examinados, considerando cada uma das dicotomias
psicológicas clássicas.
A dicotomia público-privado.
Há uma diferença fundamental entre a separação público-privado na
Sociologia (assim como na Economia, na Política etc.) e na Psicologia. Na
Sociologia, a separação expressa o afastamento dos homens uns dos outros,
seja do ponto de vista do compartilhamento de funções e obrigações, seja do
ponto de vista da sociabilidade. Nesse contexto, porém, o privado nem sempre
está limitado pelo universo individual (pode alcançar o núcleo familiar, ou
outras relações) e nunca conduz a um inquérito metafísico67. Na Psicologia, a
separação público-privado não apenas funciona para postular-se um
isolamento individual, isto é, para elevar o indivíduo particular a unidade de
análise, como freqüentemente mostra-se associada a um subjetivismo, ou
dualismo metafísico. Esta observação é importante para que se entenda que a
afirmação da separação público-privado em outros contextos analíticos não
fundamenta a adoção dessa referência na Psicologia com as feições
assinaladas.
Skinner (e.g., 1945) encontra na dicotomia público-privado uma saída
para evitar o dualismo metafísico, ao mesmo tempo em que garante que 67 Provavelmente por essa razão a distinção público-privado não conduz, na Sociologia, a um debate tão extenso ou freqüente quanto na Psicologia.
149
enquanto ciência do comportamento a disciplina psicológica continuaria a
voltar-se para seus problemas originais (relacionados à subjetividade). Para
Skinner, é muito importante o fato de que a distinção público-privado é uma
distinção de fronteiras, não de natureza. A (in)observabilidade (pública e direta)
passa, assim, a ser a dimensão que torna diferenciados os fenômenos
relativos à subjetividade, o que justifica que recebam um tratamento
diferenciado.
Em sua discussão do privado como inacessível à observação pública,
Skinner (e.g. 1945) faz referência a estímulos e respostas. Isto é, são certos
estímulos e certas respostas que por razões discutidas anteriormente mostram-
se inacessíveis à observação pública direta, ao passo que podem assumir
certas funções em relações comportamentais. A partir desse reconhecimento,
porém, vamos encontrar em Skinner (e.g., 1974/1993) e em outros analistas do
comportamento (e.g., Anderson e cols., 1997) referências a fenômenos
comportamentais mais complexos, que na realidade se definem como relações,
e ainda assim são descritos como eventos privados. Esse vem a ser um
aspecto problemático dos usos do conceito de eventos privados na análise do
comportamento. Se, por um lado, é verdade que estímulos e respostas podem
ser inacessíveis à observação pública direta, por outro, estímulos e respostas
existem enquanto tal apenas no contexto de relações, que necessariamente
têm dimensões públicas. Os eventos da subjetividade, sentimentos e
pensamentos, em particular, enquanto relações comportamentais não são
propriamente públicos, nem privados. São relações das quais podem participar
(sob certas condições) eventos inacessíveis à observação pública direta, mas
150
das quais também participam eventos observáveis. Sendo essa uma conclusão
derivada do próprio sistema explicativo da análise do comportamento, temos
que essa abordagem psicológica provê alguns instrumentos conceituais para a
superação, na Psicologia, da categoria de privado como descritiva de
instâncias de seu objeto de estudos, ao mesmo tempo em que equacionam o
problema da (in)observabilidade de certos termos das relações
comportamentais.
Também a partir de Skinner (1945), analistas do comportamento
tenderão a classificar termos de relações comportamentais como públicos ou
privados. A mesma ciência, servindo-se da interlocução com outros sistemas
explicativos pode postular que não é bem assim. Primeiro, a observabilidade de
certos termos das relações comportamentais não constitui simplesmente uma
propriedade intrínseca a esses eventos, mas é uma propriedade dependente
da relação observador-observado. Segundo, a propriedade de observabilidade
de estímulos (considerando-se o que controla autodescrições de emoções e
sentimentos) e respostas varia ao longo de um continuum, como função de
aspectos formais e relacionais.
Pode-se questionar (e.g., Ribes, 1982) se há sentido em valorizar a
observabilidade restrita de certos estímulos e certas respostas, quando esse
tipo de restrição pode ser encontrado na análise de uma infinidade de relações
comportamentais não conectadas com o tema da subjetividade. É bom lembrar,
no entanto, que para a cultura ocidental moderna a inobservabilidade de
estímulos e respostas constitui um problema de interesse especial apenas
quando conectada com a problemática do autocontrole e é isso que justificará
151
uma atenção especial às instâncias de inobservabilidade relacionadas com a
subjetividade ou privacidade.
A noção de privado assim formulada, é importante ressaltar, não se
conecta com as noções de mental, de interno, ou de subjetivo. A noção de
privado, não sendo um rótulo para o fenômeno comportamental ou psicológico,
apenas sinaliza que sob certas contingências a observabilidade de um termo
da relação comportamental poderá ser restrita - não naturalmente ou
irremediavelmente restrita, mas circunstancialmente restrita. As contingências
sob as quais isso acontece são contingências culturais que precisam ainda ser
identificadas de modos mais precisos. Os estudos históricos e sociológicos
oferecem uma direção para essa investigação, o processo de individualização
no mundo moderno. Como assinalado anteriormente, essa observabilidade
restrita pode também emergir sob outras contingências culturais, mas talvez de
um modo que não dá origem à investigação e teorização psicológicas.
A dicotomia objetivo-subjetivo.
A idéia de separação entre um mundo objetivo e um mundo subjetivo
está assentada em uma visão representacional da linguagem, duramente
criticada ao longo do século XX, especialmente a partir do trabalho de
Wittgenstein (1953/1988). A adoção de uma concepção funcional da
linguagem, como na análise do comportamento, conduz necessariamente a
uma dissolução desse dualismo, uma vez que implica considerar que todas as
descrições (de pensamentos e sentimentos, ou da realidade física que cerca os
indivíduos) são função da exposição a parcelas do universo, sob controle de
152
certas contingências do reforço que tornam essas parcelas mais ou menos
diferenciadas, ou diferenciadas quanto a uns ou outros aspectos.
Para Skinner, uma vez que todo responder verbal é função de
contingências de reforço, enunciados científicos sobre a realidade não são
mais objetivos do que descrições concorrentes (poéticas, literárias, ou
jornalísticas), não estão mais próximas de uma essência ou propriedade
fundamental da realidade. Diferenciam-se apenas porque são mais eficientes
em promover a previsão e controle dos fenômenos68.
É um erro ... dizer que o mundo descrito pela ciência é, de alguma
forma, mais próximo "do que realmente existe", mas também é um
erro dizer que a experiência pessoal do artista, compositor, ou poeta
está mais próxima "do que realmente existe". Todo comportamento é
determinado, direta ou indiretamente, por conseqüências, e os
comportamentos de ambos, o cientista e o não cientista, são
modelados pelo que realmente existe, mas de maneiras diferentes.
(Skinner, 1974/1993, pp. 140-141)
De outro lado, conceitos emocionais não descrevem um mundo
“subjetivo”, próprio do sujeito, à parte da realidade compartilhada por todos.
Novamente, onde há linguagem, há uma base pública para todas as
68 É verdade que a noção de método, inaugurada no século XVII, subsiste na ciência moderna e implica seguir um conjunto de regras de modo a evitar que características pessoais interfiram negativamente na produção de conhecimento. Há porém, duas observações a fazer. Primeiro, as características “pessoais” não são tão pessoais assim, mas apenas não compartilhadas por todos os membros de uma dada comunidade (o que é pessoal é uma história ambiental, não algo contido no sujeito). Segundo, há uma distância entre afirmar que as contingências sociais responsáveis pelo fazer científico funcionam para limitar a interferência de inclinações pessoais e supor que a descrição científica descreve uma realidade independente. Ela descreverá sempre uma realidade enquanto objeto investigado sob controle das práticas de uma comunidade verbal.
153
descrições.
Os processos verbais envolvidos nos modos como em sociedades
complexas as descrições sobre a realidade (inclusive a realidade “psicológica”)
são construídas e validadas são os mesmos encontrados em sociedades mais
simples, porém as relações entre os indivíduos são muito mais complexas
devido à extensão (muito maior) do universo social que participa desses
processos e os modos (diferentes do debate face a face) como isso acontece.
É mais fácil, sob as novas condições, considerar que as descrições a que se
chega resultam do pensamento ou da reflexão pessoal (desse mundo particular
do sujeito) e/ou do controle de outros aspectos da vida “subjetiva”, mas a
postulação de faculdades pessoais aqui meramente substitui o que não pode
ser especificado por ser muito complexo.
A dicotomia físico-mental
Um passo importante para a postulação da categoria de mental consiste,
como assinalado antes, em tratar fenômenos relacionais como ocorrências
individuais. Uma vez instituída essa lógica, o debate acerca da natureza (física
ou mental) daquelas ocorrências reproduzirá o dualismo. Quando indagamos
se podemos atribuir uma natureza física a certo evento, estamos admitindo que
se trata de evento com respeito ao qual faz sentido indagar acerca de suas
dimensões físicas, e com respeito ao qual negar essa dimensão física significa
considerá-lo dotado de uma natureza especial. Por essa razão, no lugar de
afirmar, como Skinner (1945) que uma dor de dentes tem dimensões físicas,
será mais produtivo afirmar que dor de dente não é uma ocorrência do ou no
154
indivíduo, mas uma relação do indivíduo com o mundo na qual certas
condições corporais adquirem uma função. A dor, sendo ela própria um
responder sob controle de estímulos (públicos e privados), não é física ou
mental, embora dela participe um organismo (portanto, um ser dotado de
dimensões físicas, assim como químicas, elétricas etc.).
Assim, a superação do dualismo físico-mental depende menos de uma
afirmação da existência de dimensões físicas nos fenômenos humanos, e mais
da afirmação do caráter relacional desses fenômenos. Essa perspectiva pode
usufruir das proposições analítico-comportamentais tanto quanto essas
proposições instituem uma lógica relacional de análise dos fenômenos
humanos. Isso acontece quando no lugar de substâncias (como “pensamento”)
analisamos atividades humanas (como o “pensar”) e as relacionamos a
contingências de reforço, e quando destacamos que mesmo na ausência de
outros, o responder verbal é mediado socialmente, isto é, constitui um
fenômeno dependente de contingências sociais.
Uma vez abandonado o individualismo, o mentalismo torna-se
desnecessário. Se a capacidade de homens e mulheres refletirem criticamente
acerca do mundo a sua volta, coletarem evidências empíricas de relações entre
eventos e contrastarem-nas com descrições possíveis da realidade,
sistematizarem descrições abrangentes e econômicas de classes de
fenômenos, se todas as capacidades desse tipo forem consideradas
capacidades que requerem e se realizam no plano das relações uns com os
outros, a questão de uma natureza mental da capacidade reflexiva deixa de ser
colocada.
155
Para que a lógica relacional seja persuasiva na Psicologia, será
necessário nela acomodar o reconhecimento de uma especificidade dos
fenômenos considerados relacionados à subjetividade. Isso é feito quando se
destaca a observabilidade restrita de certos estímulos e certas respostas; os
primeiros (estímulos), em razão de se tratar de condições corporais que
adquirem uma função para o responder de um indivíduo, que não podem
adquirir para o responder de terceiros; as últimas (respostas), em razão de
dimensões estruturais (grau de participação do aparelho motor) e relacionais
(história de interação observador-observado, instrumentos e treino de
observação do observador) que as tornam menos evidentes do que respostas
tipicamente motoras.
Provavelmente será necessário que um combate anterior seja vencido,
antes que a lógica relacional seja aceita, no lugar da lógica individualista e
subjetivista que sustenta a crença em um mundo mental, isto é, será
necessário vencer, ou superar, a concepção de homem dominante nesta
cultura. De certo modo, essa é uma batalha que já vem sendo travada e não
apenas pela análise do comportamento. Concepções anti-mentalistas e anti-
representacionistas da linguagem, em particular a perspectiva funcional de
Wittgenstein (1953/1988) tiveram ampla repercussão no pensamento ocidental
do século XX, com penetração em várias esferas da cultura e das
humanidades. Na sociologia, a concepção anti-individualista de Elias (e.g.,
1994) alcançou notável reconhecimento a partir da década de 70 do século XX,
sobretudo na Europa. Na filosofia, o neopragmatismo de Rorty (e.g., 1982,
1988, 1993) caminha na mesma direção, enfatizando os processos dialógicos
156
como o campo de construção e validação de nossas reivindicações a
conhecimento, como o espaço no qual se definem, a cada momento de nossa
história intelectual, os critérios com base nos quais tomamos nossas crenças
como verdadeiras.
Se não virmos o conhecer como a posse de uma essência, a ser
descrita por cientistas ou filósofos, mas antes como um direito, pelos
padrões correntes, a acreditar, estaremos então no bom caminho
para ver a conversação como o contexto último em que o
conhecimento deve ser compreendido. O nosso foco passa da
relação entre os seres humanos e os objectos do seu inquérito para
a relação entre padrões alternativos de justificação, e daí para as
efectivas alterações nesses padrões que formam a história
intelectual. (Rorty, 1988, p. 300, itálico no original)
Não por acaso, alguns trabalhos assinalam certas aproximações
possíveis do pensamento skinneriano com Wittgenstein (e.g., Bloor, 1987;
Costall, 1980; Day, 1969; Lampreia, 1992; Tourinho, 1994b; Waller, 1977) e
com Rorty (e.g., Lamal, 1983, 1984; Leigland, 1999; Tourinho, 1994b). Quem
sabe em breve serão também algumas referências acerca de aproximações e
interlocuções possíveis entre Skinner e Elias.
A dicotomia interno-externo.
Interno e externo constituem conceitos que podem ser empregados na
descrição da localização de objetos ou eventos, tendo-se como referência
alguma fronteira, a partir da qual se diz que os objetos ou eventos estão de um
157
lado (dentro) ou de outro (fora). A gramática desses conceitos (para usar
novamente o termo wittgensteiniano) requer, portanto, a indicação das relações
espaciais entre o que é contido e o que o contém. Uma bola pode estar dentro
de uma caixa, assim como um livro pode estar dentro de uma casa. Quando se
diz que pensamentos e sentimentos são eventos internos, há duas
possibilidades: (a) ignorar o requisito de especificar uma fronteira e usar os
conceitos de interno e externo com um sentido metafórico impreciso, ou (b)
postular que a pele constitui a fronteira. No primeiro caso, abdicamos de prover
uma descrição científica para sentimentos e pensamentos. No segundo,
deixamos de considerar sentimentos e pensamentos como eventos do
organismo como um todo e passamos a trabalhar com a idéia de que pensar e
sentir são atividades de parte(s) do organismo (ainda por serem especificadas).
As duas posições sustentam a noção de mundo interno, que assim invade o
discurso do leigo e do cientista.
A opção de ignorar o requisito de especificar uma fronteira para a
definição da interioridade freqüentemente aparece quando a noção de
interioridade vem associada ao mentalismo. O mundo mental é que é interno.
Nesse caso, há uma impossibilidade lógica notória. Se o mundo mental não
está dotado da propriedade de extensão encontrada no mundo material, se não
pode ser localizado espacialmente, como pode localizar-se dentro ou fora de
alguma coisa?
A opção de considerar sentimentos e pensamentos como eventos sob a
pele significa tratá-los como ocorrências de partes do organismo, o que
conduz a um reducionismo organicista. Esse reducionismo pode funcionar para
158
evitar o mentalismo, mas não para instaurar um objeto de investigação
psicológica. Se o “pensar”, por exemplo, for identificado com a atividade do
sistema nervoso central, podemos considerá-lo uma ocorrência interna ao
organismo. Todavia, neste caso, trata-se de um tipo de fenômeno que se
confunde com o objeto das neurociências, não requerendo o exame de uma
disciplina psicológica. Quando dizemos que o pensar constitui um fenômeno
psicológico, que requer o exame de uma ciência psicológica, isso deve
significar que independentemente do grau de participação do sistema nervoso
central na emissão da resposta, o fenômeno se estende para além disso, tem
uma outra dimensão – relacional -, que o define como objeto dessa outra
ciência.
O que favorece conceber sentimentos e pensamentos como fenômenos
internos é não apenas a crença de que qualidades do ou no próprio indivíduo
possibilitam-no representar o mundo e realizar-se em diversos domínios de sua
vida (sua razão, fé, vocação, personalidade, convicção, determinação etc.
impulsionam para o sucesso), como também o modo particular como
sentimentos e pensamentos são vividos.
Com uma abordagem relacional para sentimentos e pensamentos
deixam de fazer sentido as categorias de interno e externo. O pensar não está
dentro do homem, como não estão o andar, o pintar, ou o ministrar uma aula.
Em todos os casos, estamos diante de relações das quais participam respostas
do organismo como um todo. Do mesmo modo, o alegrar-se, aborrecer-se ou
amedrontar-se não se localizam no interior do homem, mas constituem
relações nas quais certas condições corporais adquirem uma função. A noção
159
de um mundo interno ou sob a pele, referida até por Skinner (e.g., 1953/1965),
quando discutida à luz da perspectiva relacional analítico-comportamental se
definirá por essa dupla abordagem: o reconhecimento da especificidade de
relações nas quais condições corporais adquirem certas funções e a afirmação
dos limites dentro dos quais isso ocorre (cf. Malerbi, 1999; Matos, 1999;
Micheletto, 1999; Tourinho, 1999b).
A idéia de que o caráter encoberto de algumas respostas não significa
que deixam de ser respostas do organismo como um todo, mas podem implicar
uma participação reduzida do aparelho motor na sua emissão, está em acordo
com a análise desenvolvida por Elias (1939/1990b) com respeito ao que
sustenta a noção de interioridade na auto-imagem do homo clausus. Para
Elias, é o autocontrole, a vigilância sobre o próprio corpo para evitar que
respostas emocionais alcancem o aparelho motor, que dá origem a uma
experiência de interioridade dos sentimentos e emoções. Isto é, o autocontrole
de que Elias trata diz respeito exatamente à emissão de certas respostas
(emocionais) com reduzida participação do aparelho motor. No Capítulo 3, a
seguir, esse tema será desenvolvido.
160
CAPÍTULO 3
SUBJETIVIDADE , EVENTOS PRIVADOS E RELAÇÕES COMPORTAMENTAIS
No Capítulo anterior, delineamos uma caracterização de fenômenos
psicológicos, em particular sentimentos, emoções e pensamentos, como
relações do homem com o mundo, que não se tornam inteligíveis à luz dos
conceitos de privado, subjetivo, mental ou interno, mas apenas a partir da
especificação da dependência funcional entre estímulos e respostas, que pode
materializar-se em fenômenos com graus variados de complexidade e
observabilidade. À luz das análises ali desenvolvidas, o sistema explicativo
analítico-comportamental pode ser reconhecido como um sistema que não
reproduz o individualismo e o subjetivismo que historicamente fundamentaram
a edificação da Psicologia como disciplina independente. Aquelas análises,
porém, embora contrariem crenças e conceitos psicológicos modernos, não
explicam suficientemente algumas questões importantes destacadas em
trabalhos históricos, como aqueles mencionados no Capítulo 1. Em particular, a
individualização, a autonomia e o autocontrole do homem que vive nas
sociedades modernas, aos quais a problemática de sentimentos e
pensamentos encontra-se estreitamente vinculada, constituem temas que
precisam ser ainda examinados. O presente Capítulo ocupa-se desses temas,
discutindo como podem ser tratados à luz de princípios analítico-
comportamentais e como suas conexões com a problemática de sentimentos e
pensamentos podem ser produtiva e coerentemente interpretadas. O exame
dos temas não altera a interpretação analítico-comportamental desenvolvida no
161
Capítulo 2, mas confere-lhe um novo enquadre, que estende o alcance de suas
contribuições e favorece, dentre outros, o diálogo com disciplinas que se
ocupam de problemas afins.
3.1. A Individualização.
O processo de individualização no mundo moderno pode ser enfocado a
partir de duas referências. A primeira consiste do fato de que cada homem ou
mulher vem a ser único(a), singular, diferenciado(a) de todos(as) os outros
homens e mulheres a sua volta em aspectos considerados muito relevantes.
Sob essa ótica, a individualidade, ou singularidade do indivíduo, implica o
reconhecimento de que mesmo no interior de uma cultura compartilhada por
outros homens e mulheres cada um merece atenção por aquilo que lhe é
pessoal, próprio, inconfundível com os atributos do vizinho ao lado (em outras
palavras, sua “subjetividade”).
Uma segunda abordagem possível para o processo de individualização
consiste em examinar relações de contingências que definem a diferenciação
de homens e mulheres uns dos outros na vida cotidiana, e que ganham
importância especial nas sociedades de mercado. Homens e mulheres sempre
foram diferentes uns dos outros, em muitos aspectos, e isso, em outros
contextos culturais, não deu origem ao conceito de indivíduo, a conjuntos de
práticas e crenças baseadas na auto-imagem do homo clausus, enfim, a uma
cultura individualista e subjetivista. Quando a diferenciação se torna muito
importante, o que muda não é o fato de que atributos pessoais diferem, mas o
fato de que relações de contingências importantes na vida cotidiana se
162
transformam. Esse segundo percurso analítico coloca então em destaque a
peculiaridade do processo de individualização nas sociedades de mercado,
buscando identificar contingências que explicam a emergência da
individualidade como categoria do pensamento moderno.
O primeiro tipo de abordagem para o processo de individualização é
claramente desenvolvido na literatura analítico-comportamental. Na introdução
de seu Sobre o Behaviorismo, Skinner (1974/1993) enumera vinte concepções
equivocadas acerca das realizações e do alcance da análise do
comportamento. Uma dessas concepções veicula a idéia de que a análise do
comportamento “se preocupa apenas com princípios gerais e, portanto,
despreza a singularidade do indivíduo” (p. 5). Há, nessa crítica, uma confusão
entre a investigação de regularidades dos fenômenos comportamentais e a
aplicação do conhecimento daí derivado ao exame do comportamento
individual. Ela talvez reflita o fato de que o desenvolvimento da análise
experimental do comportamento só foi acompanhado tardiamente por um
interesse maior na sua aplicação (especialmente em contexto de terapia verbal
face a face), assim como na interpretação de fenômenos complexos. Se é
verdade, porém, que o sistema explicativo skinneriano oferece leis gerais do
comportamento, sua aplicação na intervenção frente ao comportamento
individual parte do reconhecimento do caráter idiossincrático das relações
comportamentais que resultam da história ambiental particular de cada
organismo69.
69 Na terapia analítico-comportamental, esse reconhecimento constitui o ponto de partida para a intervenção e repercute sobre todos os aspectos (e.g., técnicos e éticos) que a compõem. Segundo Samson e McDonnell (1990), “uma análise funcional pode ser altamente complexa e, como decorrência, específica ao indivíduo. É improvável que sejam exatamente as mesmas as
163
Todo organismo humano é único, diz Skinner, enquanto resultado de
múltiplas determinações, que, no entanto, não o tornam senhor de seu destino
como pessoa, do destino de sua espécie, ou do destino de seu grupo.
O indivíduo é no máximo um lócus no qual muitas linhas de
desenvolvimento se agrupam de um modo único. Sua
individualidade é inquestionável. Cada célula em seu corpo é um
produto genético único, tão única quanto a marca clássica da
individualidade, a impressão digital. E mesmo no interior da cultura
mais uniforme, cada história pessoal é única. ... Mas o indivíduo
permanece meramente um estágio em um processo que se iniciou
muito antes dele vir a existir e que continuará longamente após ele.
Ele não tem qualquer responsabilidade última por um traço da
espécie, ou por uma prática cultural, embora tenha sido ele que
passou pela mutação ou introduziu a prática que se tornou parte da
espécie ou da cultura. (Skinner, 1971/2002, p. 209)
O modo causal de seleção por conseqüências constitui o instrumento
conceitual com o qual é interpretado o caráter idiossincrático dos repertórios
que resultam da história ambiental de um indivíduo. De acordo com esse
intervenções que as análises funcionais podem recomendar para dois problemas que pareçam ser similares. Quaisquer similaridades entre as intervenções estarão relacionadas à similaridade das funções a que os problemas servem. Isso significa que não é possível, quando se usa uma abordagem analítica funcional, fazer generalizações amplas sobre a intervenção a ser realizada ou sobre o estilo com que deve se apresentar” (p. 260). Também discutindo a terapia analítico-comportamental, Neno (2005) assinala que “as fontes de individualização em uma intervenção clínica podem ser de três ordens. Uma primeira diz respeito à variabilidade das relações comportamentais, ao caráter idiossincrático das relações comportamentais que definem os problemas de cada indivíduo em atendimento. Em razão disso, qualquer modelo de intervenção, para ser eficiente, precisará ser sensível àquela variabilidade e prover condições para que seja adequadamente contemplada em suas estratégias” (p. 221).
164
modelo explicativo, cada indivíduo é o produto único de uma conjugação de
determinações filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A singularidade desse
indivíduo pode ser formulada em termos comportamentais: o que o diferencia
de todos os demais são seus repertórios, ou uma probabilidade alterada de agir
de determinados modos sob controle de certos estímulos. Os processos
seletivos produzem, também, um organismo alterado do ponto de vista
anátomo-fisiológico, mas esse constitui um domínio das ciências biológicas
(embora venha a se tornar relevante, em termos discutidos adiante). Uma
probabilidade de resposta diferenciada, resultante dos processos seletivos,
define a pessoa ou o self, segundo Skinner (1974/1993) (ou várias
pessoas/selves, quando repertórios concorrentes forem adquiridos, sob
controle contextual).
Um membro da espécie humana tem identidade no sentido de que é
um membro e não outro. Ele começa como um organismo e torna-se
uma pessoa ou self na medida em que adquire um repertório de
comportamento. Ele pode tornar-se mais de uma pessoa ou self se
ele adquire repertórios mais ou menos incompatíveis apropriados a
diferentes ocasiões. (p. 247)
Aqui, as relações comportamentais não estão sendo enfatizadas, mas
estão subentendidas nas referências a probabilidades de resposta, ou a
repertórios. Em outro momento da análise skinneriana, fica menos evidente
que seu enfoque continua relacional. Sua noção de singularidade aproxima-se
daquela que prevalece no mundo moderno quando Skinner estabelece uma
distinção entre pessoa e self. Em acordo com o modo causal de seleção por
165
conseqüências, Skinner (1989) diferencia os produtos de cada nível de
determinação: “a seleção natural nos dá o organismo, o condicionamento
operante nos dá a pessoa e ... a evolução das culturas nos dá o self (p. 28). O
self, nesse caso, não corresponde mais ao repertório comportamental em si
(embora o que é promovido por contingências culturais sejam novas relações
comportamentais), mas a um conjunto de condições “internas”. Trata-se de
condições internas que, por força da exposição do indivíduo a certas práticas
culturais, passam a adquirir funções (únicas) para o comportamento individual,
tornam-se funcionalmente diferenciados para o próprio indivíduo (e apenas
para ele). Mas Skinner contrasta o repertório (produzido pela ontogênese) dos
estados produzidos pela cultura.
Uma distinção mais clara pode agora ser feita entre pessoa e self:
uma pessoa, enquanto um repertório comportamental, pode ser
observada por outros; o self, enquanto um conjunto de estados
internos que acompanham o comportamento, só é observado
através do sentimento ou da introspecção. (Skinner, 1989, p. 28,
itálico acrescentado)
Temos, assim, uma espécie de concessão à lógica subjetivista que
orienta a interpretação moderna da individualidade. Não que aquilo que é
“introspectivamente observado” por cada um não seja singular, único. Afinal, na
abordagem de Skinner é o próprio corpo que é introspectivamente observado e
este, como produto também singular dos processos seletivos, será diferenciado
para cada um. Mas tomar essa especificidade como referência para a
discussão da individualidade recoloca o problema no plano do que acontece no
166
indivíduo. De todo modo, pode ser suficiente lembrar que quando as condições
corporais assumem funções como resultado da exposição a contingências que
promovem auto-observação e autocontrole, o que temos são novas relações
comportamentais, também definidoras da singularidade do homem-em-relação-
com-o-mundo.
Uma maneira de ir além desse tratamento consiste em pensar a
individualização no plano das relações de contingências encontradas na vida
cotidiana de homens e mulheres que vivem nas complexas sociedades de
mercado. A análise que se oferece a seguir tem esse objetivo. Ela será
desenvolvida tomando como exemplo um campo específico, o das relações
econômicas, podendo ser estendida para outras esferas. Esperamos com ela
ilustrar o segundo percurso possível para um tratamento analítico-
comportamental do processo de individualização.
O argumento desenvolvido por Skinner (1986/1987a) em O Que Há de
Errado com a Vida Cotidiana no Mundo Ocidental constitui um bom ponto de
partida. Skinner afirma que o mundo ocidental foi eficiente em solucionar vários
problemas da vida cotidiana e promover condições de conforto e segurança
bastante avançadas em comparação com outras culturas. Mas, ao mesmo
tempo, certas práticas culturais no ocidente têm funcionado para erodir
contingências de reforço. Skinner explica que há dois efeitos do reforço: um
efeito de fortalecimento da resposta (ao qual os analistas do comportamento se
voltam em suas investigações operantes) e um efeito de prazer. Certas práticas
culturais têm sido selecionadas no ocidente, segundo Skinner, pelo efeito de
prazer do reforço, independentemente de efeito fortalecedor de respostas.
167
A erosão das contingências de reforço significa que eventos antes
contingentes a certas classes de respostas, deixam de sê-lo. O responder do
indivíduo deixa de produzir certas conseqüências, ou o acesso às
conseqüências passa a independer do responder. Com isso, (a) a manutenção
daquelas classes passa a depender de outras conseqüências (em muitos
casos, coercitivas), caso em que os indivíduos deixam de contatar as
conseqüências que antes mantinham aquele responder, ou (b) as classes de
respostas entram em extinção e o indivíduo não entra em contato com outros
efeitos do comportamento. Assim, “quando as conseqüências fortalecedoras do
comportamento foram sacrificadas pelo bem das conseqüências de prazer, o
comportamento simplesmente tornou-se fraco” (Skinner, 1986/1987a, p. 26,
itálico do original). Um papel reservado à análise do comportamento aplicada
consistiria justamente de promover a compreensão e o fortalecimento das
contingências de reforço.
Skinner (1986/1987a) discorre sobre cinco exemplos de práticas
culturais que ilustram a erosão das contingências de reforço. Dois dos
exemplos dizem respeito à questão do trabalho. No primeiro caso, as
contingências de reforço foram erodidas quando a produção dirigida para o
mercado conduziu à alienação do trabalhador em relação ao produto do seu
trabalho70. O comportamento do trabalhador industrial, diferente do artesão, ou
do lavrador que planta para a subsistência, não é mantido por suas
70 Não se trata, aqui, de um problema apenas de economias capitalistas, nas quais apenas uma classe detém os meios de produção, mas de qualquer economia na qual a produção é voltada para o mercado e, com isso, a divisão do trabalho avança e a relação imediata trabalho-produto do trabalho é rompida: “A alienação tem pouco a ver com exploração, pois os empresários também são alienados das conseqüências do que fazem, assim como os trabalhadores em Estados socialistas” (Skinner, 1986/1987a, p. 18).
168
conseqüências diretas – o produto de seu trabalho. Freqüentemente, o
trabalhador não só não tem acesso, como sequer faz contato com esse
produto. No lugar disso, seu comportamento é mantido por contingências que
não funcionam exatamente para fortalecer o trabalhar71.
No segundo exemplo, a referência é ao comportamento do empregador,
que passa a ter acesso ao produto do trabalho sem trabalhar72. Com isso, o
empregador evita o contato com eventuais conseqüências aversivas do
trabalhar, mas também com outros efeitos fortalecedores. Ele pode alcançar
um conforto e bem estar únicos, mas como resultado de comportamentos que
não são aqueles antes fortalecidos por esses eventos. E face à independência
funcional de respostas e estímulos antes constitutivos de relações de
contingências, sua vida poderá ser a um mesmo tempo confortável e
monótona. A variedade de interações possíveis com o mundo, a experiência de
operar de diferentes modos sobre o mundo e entrar em contato com diferentes
conseqüências, que podem tornar a vida interessante e surpreendente, dá
lugar a umas poucas respostas emitidas muito freqüentemente. “Ao vencer a
guerra por liberdade e a busca de felicidade, o ocidente perdeu sua inclinação
71 O dinheiro pode funcionar como um reforço generalizado, mas mesmo quando o trabalhador recebe um salário deve-se considerar que: a) o dinheiro “está sempre um passo mais longe do tipo de conseqüência reforçadora à qual a espécie se tornou originalmente suscetível” (Skinner, 1986/1987a, p. 18); e b) salários mensais não constituem conseqüências estritamente contingentes ao trabalho. “Os salários pagos pela quantidade de tempo trabalhado, estritamente falando, não reforçam de modo algum o comportamento” (Skinner, p. 19). 72 No mesmo exemplo, Skinner (1986/1987a) faz também referência a recursos de que o homem comum lança mão para evitar o trabalho, como a invenção de instrumentos eletrônicos como controles remotos e outros aparelhos que permitem acessar muitos reforços apenas com a resposta de pressionar botões. “Considere a extensão com que aparelhos para economizar trabalho nos tornaram apertadores de botões. Apertamos botões em elevadores, telefones, painéis, vídeo gravadores, máquinas de lavar, fornos, máquinas de escrever e computadores, tudo no lugar de ações que pelo menos teriam um pouco de variedade” (p. 20).
169
para agir” (Skinner, 1986/1987a, p. 25). Além disso, onde há menos
variabilidade, há menores chances de sobrevivência do grupo. Assim,
o que há de errado com a vida no ocidente não é que ela tem muitos
reforçadores, mas que os reforçadores não são contingentes aos
tipos de comportamento que sustentam o indivíduo ou promovem a
sobrevivência da cultura ou da espécie. (Skinner, 1986/1987a, p. 24)
Partindo dessa argumentação de Skinner, podemos abordar a questão
da individualização salientando um aspecto não discutido das novas
contingências que passam a operar no plano da realização material dos
indivíduos: o fato de que as conseqüências contingentes ao trabalhar passam a
ser outras (em geral, o salário) e deixam de ser contingentes ao
comportamento de um conjunto de homens e mulheres e passam a ser
contingentes ao trabalhar individual. A moeda introduz (também) essa
possibilidade. Um produto industrializado (e.g., uma televisão) não pode
funcionar como conseqüência reforçadora para o comportamento de produzi-lo.
No lugar disso, o comportamento do trabalhador que o produz é mantido por
um salário que, na melhor das hipóteses tem uma relação indireta com os
eventos que podem manter o comportamento de trabalhar (algumas vezes nem
é contingente ao trabalhar). Além disso, ainda que o comportamento de vários
trabalhadores seja requerido para produzir um bem (como a televisão), as
conseqüências que mantêm o comportamento de cada um são independentes,
não compartilhadas.
A individualização neste terreno torna-se, assim, uma questão de
dissociação das conseqüências que mantêm o comportamento de trabalhar de
170
grupos de homens e mulheres. A especialização crescente de suas funções é
acompanhada pelo distanciamento cada vez maior entre as conseqüências que
mantêm o comportamento de cada um. Conseqüências que não apenas
diferenciam-se daquelas que modelaram o trabalhar originalmente, como
também tornam o trabalhar de um indivíduo cada vez mais independente do
trabalhar do outro em um sentido particular e crucial, isto é, do ponto de vista
das conseqüências que o mantêm. Em contraste, em sociedades coletivistas,
onde a produção é dirigida para a subsistência, o comportamento de trabalhar
de cada um é mantido por uma conseqüência que afeta o comportamento de
todos. Quando a sociedade é hierárquica - por exemplo, quando há servos e
senhores que usufruem do trabalho dos servos em troca de proteção e cessão
da terra - não há igualdade, mas a independência das conseqüências
contingentes ao trabalhar pode ainda inexistir.
No interior de grupos sociais com alto grau de individualização, essa
dissociação das conseqüências que mantêm o trabalhar de cada um traz várias
implicações. As relações de poder tornam-se cada vez mais assimétricas, as
relações afetivas são reguladas por aspectos econômicos (mais do que pelos
costumes ou tradições), os contratos invadem o espaço privado de modo a
ratificar o acesso diferenciado de cada um aos bens acumulados etc..
Algo semelhante aparece em outros domínios das vidas de indivíduos.
Considere-se, por exemplo, a mudança da leitura coletiva em voz alta, para a
leitura individual silenciosa. No primeiro caso, uma mesma conseqüência o
acesso a uma literatura sagrada ou profana, a comentários, reflexões etc. é
compartilhada por grupos de indivíduos contingentemente a comportamentos
171
diversos (não só o comportamento de ler do letrado, mas também os
comportamentos de organizar o grupo para a leitura, providenciar o livro,
preparar o alimento para as reuniões etc., de outros membros do grupo). No
segundo caso, o da leitura silenciosa, o acesso às mesmas conseqüências (ou
melhor, a algumas daquelas conseqüências) se dá individualmente73. Além
disso, o acesso independe, do ponto de vista imediato, do comportamento do
outro. O comportamento do próprio indivíduo lhe basta. Por último, como se
trata de um comportamento que não precisa afetar o outro, pode ser emitido na
forma encoberta.
Essa condição representa um tipo de independência de indivíduos, mas
apenas do ponto de vista imediato. Além do fato de que o indivíduo vive em
uma rede complexa de relações, que o tornam dependente de muitos outros
indivíduos (ainda que não o perceba), o conjunto das práticas mantidas por
esses grupos repercute, num prazo maior, sobre a sobrevivência do grupo
como um todo. A sobrevivência do grupo passa a ser a principal conseqüência
compartilhada com os outros, mas, nesse caso, uma conseqüência não
contatada na vida cotidiana; no lugar disso, uma conseqüência remota demais
para controlar o comportamento atual dos indivíduos. Contingências especiais
passam, então, a ser requeridas, contingências que podem promover o que
Skinner (1968/2003) denominará de autogerenciamento ético (discutido
adiante, na seção sobre autocontrole). Nesse ponto, o processo de
individualização articula-se com a questão da privacidade. Onde a
73 A propósito, voltando ao tema de Skinner, sobre a invenção de dispositivos para ter acesso a certas conseqüências sem ter que emitir os comportamentos que originalmente as produziram, e emitindo comportamentos cada vez mais repetitivos, temos agora os livros em áudio, que propiciam o acesso aos textos contingentemente apenas à resposta de apertar botões.
172
sobrevivência do grupo é um evento remoto, a sociedade precisa dispor
contingências novas para garantir um comportamento previsível (não
impulsivo) de cada um (entra aqui, também, o papel do Estado). Como
assinalado no Capítulo 2, a privacidade emerge em grande medida como
função de práticas sociais que promovem auto-observação e autocontrole. As
conexões do autocontrole com a individualização tornam essa última também
um aspecto a ser considerado para a análise da privacidade.
Retornando à questão econômica, em uma sociedade de mercado, os
bens individualmente acumulados têm importância crucial para definir a
posição de cada um na hierarquia social, assim como seu status nos diferentes
contextos de interação com os outros. A dissociação das conseqüências
contingentes ao trabalho de cada um (e especialmente a possibilidade de
acesso a essas conseqüências sem o trabalho) funcionará também a favor de
construção de riquezas pessoais diferenciadas. Esse aspecto corresponde em
grande medida ao que significa a individualização nessas sociedades, visto que
o poder econômico passa a ser a principal referência para a localização de
cada um nas redes de relações sociais. E desse ponto de vista, o grau de
mediação das relações econômicas pela moeda constitui um bom indicador do
grau de individualização em uma sociedade. Quanto mais as relações entre os
homens e mulheres são mediadas pela moeda, maior a individualização
encontrada na sociedade; em grupos ainda comunitários, essa mediação está
menos presente.
O estabelecimento da dicotomia indivíduo-sociedade, longamente
discutida por Elias (1994), pode ser examinada por essa ótica. Os homens e
173
mulheres falam de sua vida cotidiana como o seu “grupo”, a sua “família”, a sua
“comunidade” quando seus comportamentos são em grande medida mantidos
por conseqüências que afetam de um ponto de vista imediato os
comportamentos dos outros membros do grupo (seja no interior de uma
sociedade igualitária, ou hierárquica). Tenderão a falar de si mesmos como
“indivíduos”, e dos outros como “sociedade”, quando seu comportamento é
mantido por conseqüências que não afetam imediatamente o comportamento
dos outros (e quando não são imediatamente afetados por conseqüências
contingentes aos comportamentos dos outros). Uma passagem de Elias é
ilustrativa do problema:
Desde a Idade Média européia, o equilíbrio entre a identidade-eu e a
identidade-nós passou por notável mudança, que pode ser
resumidamente caracterizada da seguinte maneira: antes a balança
entre as identidades-nós e eu pendia maciçamente para a primeira.
A partir do Renascimento, passou a pender cada vez mais para a
identidade-eu. Mais e mais freqüentes se tornaram os casos de
pessoas cuja identidade-nós enfraqueceu a ponto de elas se
afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós. Enquanto,
em épocas anteriores, as pessoas pertenciam para sempre a
determinados grupos, fosse a partir do nascimento, fosse desde
certo momento de sua vida, de tal modo que sua identidade-eu
estava permanentemente ligada a sua identidade-nós e era amiúde
obscurecida por ela, o pêndulo, com o correr do tempo, oscilou para
o extremo oposto. A identidade-nós das pessoas, embora decerto
174
continuasse sempre presente, passou, então, muitas vezes a ser
obscurecida ou ocultada, em sua consciência, pela identidade-eu. (p.
161)
A análise desenvolvida nesta seção pretende sugerir, finalmente, que a
mudança ilustrada por Elias (1994) pode ser examinada à luz das relações de
contingências envolvidas na realização de homens e mulheres - por exemplo,
no campo econômico, mas também em muitos outros, na mesma medida em
que em cada um penetra a cultura individualista.
Se cada um se torna um indivíduo não apenas porque seu repertório é
único, mas também (e, talvez, principalmente) porque em sua vida cotidiana
despende a maior parte de seu tempo em atividades mantidas por
conseqüências que não mantêm igualmente o comportamento dos outros,
então cada um será mais requerido a auto-observar-se e autocontrolar-se na
medida necessária para que cada outro possa também buscar sua satisfação
pessoal.
3.2. A Autonomia .
Este trabalho tem afirmado em muitos momentos que a emergência de
uma condição de autonomia foi essencial para o processo de individualização e
para a construção da subjetividade moderna. Como se acomoda essa
proposição em um sistema explicativo que entende o homem como produto de
sua história ambiental? Para responder essa questão, comecemos com uma
caracterização mais precisa do que é a crítica que analistas do comportamento
tecem à noção de autonomia, ou, mais especificamente, à noção de liberdade.
175
O comportamento humano, sendo uma interação do homem com o
mundo, consiste de uma relação de dependência funcional entre respostas e
estímulos. Apenas no contexto de relações desse tipo, uma ação do homem
pode ser apropriadamente designada uma resposta, e aspectos do mundo
físico e social são apropriadamente considerados estímulos. Uma parte ou
aspecto do mundo físico e social que não tenha função para uma resposta, não
constitui exatamente um estímulo, assim como uma ação ou movimento do
organismo não vem a ser uma resposta se não participa de uma relação
funcional com estímulos. Muitas vezes, falamos de comportamento como
sinônimo de respostas e esse é o caso quando discutimos se os
comportamentos humanos são determinados pelo ambiente ou não. Portanto,
se com a indagação sobre a autonomia, estivermos inquirindo sobre a
possibilidade de uma resposta independer de relações de contingência com
estímulos, a análise do comportamento terá sempre uma resposta negativa.
Todo responder do organismo é função de (participa de relações funcionais
com) contingências de reforço. A resposta é sempre um termo de uma relação
comportamental. Essa noção de modo algum implica passividade do homem,
visto que o ambiente que afeta seu comportamento não existe enquanto tal de
modo independente do responder do organismo, ele é produzido por esse
responder, isto é, “o comportamento está continuamente produzindo as
condições de sua produção” (Sério, 1997, p. 210). Isso vale mesmo para
alguém que não se comporta de acordo com os padrões de uma subcultura
dominante (isto é, para alguém que age sob controle de contingências
dispostas por outras subculturas):
176
Mesmo aqueles que se destacam como revolucionários são quase
inteiramente produtos convencionais dos sistemas que subvertem.
Eles falam a língua, usam a lógica e a ciência, observam muitos dos
princípios éticos e legais e empregam as habilidades práticas e o
conhecimento que a sociedade os concedeu. Uma pequena parte de
seu comportamento pode ser excepcional, talvez dramaticamente
excepcional, e teremos que procurar razões excepcionais em suas
histórias idiossincráticas. (Atribuir suas contribuições originais a seu
caráter taumaturgo como homens autônomos não constitui, é claro,
qualquer explicação). (Skinner, 1971/2002, p. 124)
Isso significa que a liberdade constitui uma ficção que merece ser
abandonada? Em termos. Uma análise comportamental do problema começa
com a indagação: “sob que condições, emitimos a resposta verbal ‘liberdade’”?
Freqüentemente falamos de liberdade quando não há controle baseado em
reforçadores negativos (punição positiva, ou reforço negativo). Para Skinner,
essa é a base da “literatura da liberdade”, que cumpriu um papel importante na
história do ocidente, ao motivar os indivíduos para a luta contra o controle
aversivo do comportamento.
Algo que podemos chamar de “literatura da liberdade” foi delineada
para induzir as pessoas a escaparem de ou atacarem aqueles que
agem para controlá-las aversivamente. O conteúdo dessa literatura é
a filosofia da liberdade, mas as filosofias encontram-se entre aquelas
causas internas que precisam ser examinadas. (Skinner, 1971/2002,
p. 30)
177
A literatura da liberdade, no entanto, se volta apenas para situações em
que um tipo específico de controle é encontrado, e ignora que o controle existe,
e freqüentemente os indivíduos não lutam contra ele, em muitas outras
circunstâncias74. Em particular, o controle sob a forma de contingências
baseadas no uso de reforçadores positivos encontra pouca reação e mesmo
reconhecimento. Os indivíduos tenderão menos a se ver como controlados
quando são positivamente reforçados por agir de determinados modos e
tenderão a reagir menos a essa forma de controle. Isso acontece porque a
questão da liberdade e do controle é enfatizada no mundo moderno a partir de
como os indivíduos se sentem. Isto é, respostas verbais do tipo “liberdade”
tendem a ser emitidas sob controle de relações ou condições corporais a elas
associadas, em que o controle aversivo inexiste. Na presença do sentimento de
liberdade, supõe-se ainda que o controle em geral está ausente. Dada sua
associação com estímulos aversivos, a noção de controle adquire um valor
negativo na cultura ocidental, o que dificulta a disseminação do planejamento
de contingências para a solução de problemas humanos75.
74 Em uma passagem, Skinner (1971/2002) afirma que “uma das coisas mais notáveis da luta por liberdade do controle intencional é a freqüência com que ela não existe. Muitas pessoas têm se submetido aos mais óbvios controles religiosos, governamentais e econômicos por séculos, lutando por liberdade apenas esporadicamente, quando lutam. A literatura da liberdade prestou um contribuição essencial à eliminação de muitas práticas aversivas no governo, na religião, na educação, na vida familiar e na produção de bens” (p. 31). 75 Skinner (1971/2002) discute longamente esse problema. Segundo ele, a reação ao controle não deveria ser generalizada: “O problema é libertar os homens não do controle, mas de certos tipos de controle e isso pode ser resolvido apenas se nossa análise levar em conta todas as conseqüências” (Skinner, 1971/2002, p. 41). No âmbito das relações interpessoais, não há como ignorar a função que o comportamento de um indivíduo pode ter para o comportamento de outro (ou seja, como o comportamento de um pode controlar o comportamento de outro: “muitas práticas sociais essenciais ao bem estar da espécie envolvem o controle de uma pessoa por outra e ninguém que se preocupe com as realizações humanas pode suprimir essas práticas” (p. 41). A reação ao controle funciona, enfim, contra os indivíduos e as culturas: “Não fosse pela nossa generalização desavisada de que todo controle é errado, lidaríamos com o ambiente social de modo tão simples quanto lidamos com o ambiente não social.
178
Há duas situações principais em que analistas do comportamento
empregam o conceito de controle: para falar dos objetivos de sua ciência (a
afirmação da previsão e controle como os fins últimos da ciência) e para
afirmar a dependência funcional do comportamento (ou respostas) em relação
a estímulos (a afirmação de que todo comportamento é controlado pelo
ambiente). No primeiro caso, já foi sugerido (S. C. Hayes, 1993) que o melhor é
falar de “previsão e influência” como objetivos da ciência do comportamento,
visto que face à multideterminação do comportamento é possível apenas
reduzir, mas não eliminar totalmente a variabilidade comportamental.
No segundo caso, da dependência funcional entre respostas e
estímulos, pode-se dizer que a noção de controle significa nada mais do que
sensibilidade. O comportamento humano é controlado pelo ambiente no
sentido de os homens e mulheres são sensíveis ao mundo que produzem ou
com o qual interagem, isto é, não são indiferentes ao mundo a sua volta como
um todo (embora possam sê-lo com respeito a algumas parcelas ou aspectos
desse mundo, dependendo sempre de sua história ambiental).
O sentido em que o conceito de autonomia é empregado nos trabalhos
mencionados até aqui não conflita com essa noção de sensibilidade aos
eventos do mundo com o qual o indivíduo interage. Ao contrário, diz-se que é
apenas quando o indivíduo passa a interagir com um ambiente social diferente,
Embora a tecnologia tenha libertado os homens de certos aspectos aversivos do ambiente, ela não os libertou do ambiente. Aceitamos o fato de que dependemos do mundo a nossa volta e simplesmente alteramos a natureza da dependência. Da mesma maneira, para tornar o ambiente social tão livre quanto possível de estímulos aversivos, não precisamos destruir o ambiente ou escapar dele; precisamos redesenhá-lo (Skinner, 1971/2002, p. 42).
179
quando fica sob controle das novas contingências de um ambiente social, que
poderá experimentar alguma autonomia.
Embora a alegação de uma autonomia possa ser vista como compatível
com a noção de determinação ambiental, ela não significa exatamente o
sentimento de liberdade referido por Skinner. O que está em jogo quando se
diz que o indivíduo moderno tem certa autonomia é não apenas o fato de
experimentar um sentimento de liberdade (pela eliminação de certos controles
aversivos, o que de fato ocorre para algumas culturas ou grupos), mas
principalmente o fato de que ele é exposto a um ambiente no qual os cursos de
ação possíveis estão multiplicados e freqüentemente ele tem que tomar
decisões, ou fazer escolhas. As contingências sociais são tais nessas
situações, que as possíveis conseqüências de cada alternativa de ação não
são evidentes, entre outras razões porque distanciam-se temporalmente da
ação (diferente do que acontece quando a sobrevivência do indivíduo vincula-
se estreitamente com a sobrevivência do grupo, em que conseqüências
imediatas prevalecem e variáveis sociais muito freqüentemente limitam as
chances de escolha). Esse é um aspecto insistentemente assinalado por Elias
(1994)76.
Quer o indivíduo o recorde ou não, o caminho que ele tem que trilhar
nessas sociedades complexas – comparado ao que se abre para o
indivíduo das sociedades menos complexas – é extraordinariamente
rico em ramificações e meandros, embora não na mesma medida, é
76 O outro lado desse tipo de autonomia é o fato de que as conseqüências das escolhas pesam sobre o indivíduo particular, o que torna as ocasiões de tomar decisões circunstâncias que envolvem riscos pessoais.
180
claro, para os indivíduos de diferentes classes sociais. Ele passa por
um grande número de bifurcações e encruzilhadas em que se tem
que decidir por esse ou aquele caminho. Quando se olha para trás, é
fácil deixar-se tomar pela dúvida. Eu não deveria ter escolhido um
rumo diferente? Não terei desprezado todas as oportunidades que
tive naquela ocasião? Agora que consegui isto, que produzi isto ou
aquilo, que me tornei um especialista nisto ou naquilo, não terei
deixado que se perdessem muitos outros dons? E não terei deixado
de lado muitos coisas que poderia ter feito? É próprio das
sociedades que exigem de seus membros um grau muito elevado de
especialização que grande numero de alternativas não utilizadas –
vidas que o indivíduo não viveu, papéis que não desempenhou,
experiências que não teve, oportunidades que perdeu – sejam
deixadas à beira do caminho. (pp. 109-110)
Ainda que sem recorrer ao conceito de autonomia, há uma literatura na
análise do comportamento que enfoca precisamente o problema da escolha
entre cursos de ação possíveis e que alarga o enfoque oferecido para a
questão da determinação ambiental do comportamento, abrangendo
dimensões que dizem respeito à possibilidade permanente de um indivíduo
poder comportar-se de modos variados. O ponto de partida dessa literatura é a
noção de esquemas concorrentes, a idéia de que um organismo pode estar
exposto, a um mesmo tempo, a diferentes contingências de reforço,
respondendo a um ou outro de vários arranjos de contingências. Isto é, “um
esquema concorrente consiste de dois ou mais esquemas individuais ou
181
componentes, que estão disponíveis ao organismo ao mesmo tempo”
(McDowell, 1989, p.154). Quando identificamos esquemas concorrentes a que
um organismo está exposto, podemos supor (prever) que responderá a um ou
outro esquema dependendo de certas propriedades77 das relações respostas-
conseqüências. E podemos mesmo influenciar sua escolha, o que conduz a um
reconhecimento importante sobre de que modos podem ser alteradas
probabilidades de operantes concorrentes. Souza e Andery (2004) introduzem
a questão assinalando que
a pesquisa sobre esquemas – isto é, sobre como o arranjo de
conseqüências afeta o comportamento, tem mostrado que diferentes
tipos de arranjos entre respostas e conseqüências podem gerar e
manter padrões altamente regulares de comportamento (Ferster &
Skinner, 1957/1992). Esse conhecimento é importante, seja para
sintetizar comportamentos novos – isto é para planejar e
implementar esses arranjos, de modo a gerar comportamentos de
interesse, seja para entender e alterar padrões ocorrendo em
situações naturais. Mas talvez a contribuição mais importante seja a
noção, fortemente generalizável, de que todo comportamento ocorre
no contexto de outros comportamentos e que os efeitos das
conseqüências de um comportamento são sempre relativos, são
função do contexto de reforço (Baum, 1974; Hernstein, 1970;
McDowell, 1989) isto é, o valor reforçador de uma mesma
77 “a proporção de respostas em uma dada alternativa ... é igual à proporção de reforços obtidos daquela alternativa. Essa relação se mantém se o tempo despendido no responder é medido, no lugar da taxa de resposta” (McDowell, 1989, p. 154), isto é, a proporção de tempo despendido em um responder é igual à proporção de reforços obtidos nessa alternativa.
182
conseqüência varia dependendo de quais são os outros reforçadores
disponíveis. (p. 2)
A lei da igualação consiste de uma proposição matemática da relação
entre respostas e reforços em esquemas concorrentes. “De acordo com a
teoria da igualação, o efeito do reforço contingente só pode ser entendido em
termos do contexto total de reforço no qual ocorre” (McDowell, 1989, pp.155-
156). Essa formulação já incorpora uma contribuição de Hernstein (1970), que
assinalou que os organismos estão expostos a esquemas concorrentes mesmo
quando procedimentos experimentais programam o reforço contingente a uma
única classe de respostas. Todo comportamento envolveria uma escolha,
mesmo quando isso não é óbvio ou planejado, na medida em que sempre há
outros cursos de ação possíveis. Assim, “as equações [propostas por
Hernstein, 1970] estabelecem que o comportamento é determinado não
apenas pelo reforço contingente (r), mas também por todo outro reforço provido
pelo ambiente” (McDowell, 1989, p.155).
Face ao que estabelece a lei da igualação todo responder de um
indivíduo é função não apenas do reforço contingente a uma classe de
respostas, mas também da disponibilidade, na mesma situação, de outros
reforços contingentes a outras classes de respostas. Quando um indivíduo se
encontra, por exemplo, em uma praça, pode fazer muitas coisas diferentes e
ser reforçado. Pode caminhar, conversar com o vendedor de jornais, jogar
futebol, comprar um sorvete, observar os pássaros, brincar com as crianças,
namorar etc.. A probabilidade de o indivíduo conversar com o jornaleiro
dependerá não apenas do reforço contingente a essa classe de respostas, mas
183
da taxa de reforço contingente a cada outra possibilidade de ação. Uma
conseqüência importante da lei da igualação consiste do fato de que a
probabilidade de emissão de uma classe de respostas pode ser alterada sem
que o esquema correspondente seja alterado, simplesmente como resultado de
uma alteração na taxa de reforço contingente a classes de respostas
concorrentes. Por exemplo, a probabilidade de o indivíduo conversar com o
jornaleiro poderá ser alterada simplesmente modificando-se a taxa do reforço
contingente a brincar com as crianças. Do mesmo modo, uma criança pode
chorar menos (um responder mantido por atenção social) como resultado de
um aumento na taxa de reforço de respostas de brincar. Um adolescente pode
despender mais tempo apostando em jogos eletrônicos quando se altera a taxa
de reforço contingente à prática de esportes. Um professor pode dar mais aulas
quando se altera o reforço contingente à elaboração de artigos. O contexto de
esquemas concorrentes define, assim, as probabilidades de resposta de um
indivíduo. A validade da lei da igualação em seus diferentes refinamentos (cf.
McDowell, 1989) encontra amplo suporte empírico, com várias espécies. Além
disso, “a evidência disponível indica que a teoria da igualação se sustenta nos
ambientes humanos naturais tanto quanto no laboratório, e que ela tem
aplicações terapêuticas úteis” (McDowell, p.156). Sobre as aplicações da
teoria, Mijares e M. T. A. Silva (1999) assinalam:
Uma das conseqüências mais importantes dentro da teoria e da
prática comportamental derivada da lei da igualação e
especialmente da hipérbole [de Hernstein], é que, para poder
predizer como determinado reforçador vai afetar o comportamento, é
184
necessário levar em consideração o contexto no qual esse
reforçador é contingente ao comportamento, isto é, levar em
consideração os outros reforçadores presentes no meio e
contingentes a outras respostas. Por exemplo, a lei da igualação
oferece um marco referencial que permite compreender os “efeitos
colaterais” inexplicados do reforço ou da extinção, freqüentemente
relatados na literatura e às vezes chamados por críticos da terapia
comportamental de “substituição de sintoma”. Por exemplo, vários
autores relataram que a taxa de comportamentos inadequados
dentro de aula diminui quando comportamentos acadêmicos são
reforçados; outros informaram que a freqüência do comportamento
de auto-estimulação diminui quando outros comportamentos não
relacionados são reforçados; igualmente, outros tantos estudos
mostram que comportamentos adequados diminuem em freqüência
quando outros comportamentos, também adequados, são reforçados
(McDowell, 1988). Segundo a teoria da igualação, esses efeitos
colaterais não são inexplicáveis, mas são conseqüências da
mudança do contexto reforçador do ambiente. Assim, a teoria prediz
que qualquer intervenção que acrescente ou remova reforçadores,
mudando a quantidade total de reforços no ambiente, não apenas
mudará o comportamento que é objeto de intervenção, mas também
os outros comportamentos emitidos nesse ambiente. (p. 47)
A escolha está, portanto, contemplada em uma ciência comportamental
que reconhece como unidade de análise não apenas respostas específicas ou
185
relações de contingência específicas, mas também o contexto de
possibilidades concorrentes de comportamento dos indivíduos. A idéia de que a
escolha vem a ser ela mesma determinada pela taxa relativa de reforços pode
parecer contrariar a idéia de que os indivíduos escolhem agir de um ou outro
modo, mas o que está sendo afirmado é que esse escolher não existe
independentemente das conseqüências de cada escolha. E de um ponto de
vista empírico, a dependência funcional das escolhas está estabelecida.
Partindo-se, então, do fato de que a análise do comportamento
reconhece (e tem produzido evidências) que os organismos estão
permanentemente expostos a arranjos concorrentes de contingências, que
sempre há vários cursos de ação possíveis, e que a probabilidade de um
indivíduo agir de um ou outro modo é determinada apenas probabilisticamente,
podemos avançar na interpretação das particularidades desse fenômeno nas
culturas (individualistas) em que a noção de autonomia floresceu e tornou-se
central.
Um primeiro aspecto a ser considerado é que um mundo baseado na
exploração e transformação radical do ambiente e no desenvolvimento
tecnológico cria muito mais alternativas de ação para o indivíduo,
comparavelmente com ambientes culturais menos complexos. A cada
momento, há uma variedade muito maior de classes de respostas com alguma
probabilidade de serem emitidas e há muito mais variação topográfica dentre
de uma mesma classe de respostas. Exemplo do primeiro caso são as
inúmeras profissões que sintetizam as funções sociais disponíveis numa dada
sociedade. Como exemplo do segundo caso há os diversos modos de
186
alimentar-se, envolvendo o uso de utensílios cada vez mais variados, em
contexto também bastante diversificados. Paradoxalmente, como apontado
antes, esse é o mesmo ambiente cultural que promove a estereotipia
topográfica e o responder repetitivo (considere-se a freqüência do “apertar
botões” nesse ambiente), quando certas práticas culturais são selecionadas
com base no efeito de prazer do reforço. De qualquer modo, há nas sociedades
modernas, muito mais situações que designamos de escolha do que nas
sociedades mais simples. Isto é, o sujeito nessas sociedades mais complexas
está mais permanentemente exposto a arranjos concorrentes de contingências
mais numerosos. Em razão disso, escolhe mais – não porque é mais
autônomo, mas porque o ambiente exige.
Mais fundamental é outra particularidade dos esquemas concorrentes
em sociedades complexas: o fato de que muito freqüentemente as
conseqüências para os cursos de ação possíveis são muito atrasadas, muitas
vezes jamais contatadas pelos indivíduos. Um indivíduo que vive em uma
sociedade mais simples tende a escolher entre pescar ou caçar, conversar ou
jogar, beber água ou aguardente etc.. Além de menos numerosas, as
alternativas de ação têm em comum o fato de que produzem conseqüências
contatadas pelos indivíduos imediatamente, ou no máximo em prazo curto (a
distância temporal das conseqüências parece variar com o grau de
complexidade das sociedades). Nas sociedades mais complexas, como as
sociedades de mercado, a distância temporal entre a resposta e a
conseqüência é maior. O indivíduo escolhe hoje pagar ou não um plano de
previdência, para ter uma aposentadoria melhor trinta anos depois; escolhe
187
hoje declarar ou não ao fisco o seu ganho financeiro, para fugir de uma multa
cinco anos depois; escolhe hoje um curso profissionalizante, para dez anos
depois talvez alcançar uma função social bem remunerada. Esses são tipos de
escolha para os quais um adestramento especial será necessário. A
impulsividade infantil precisará dar lugar à capacidade de ponderar
conseqüências atrasadas da ação. A formação para a vida nessas sociedades
exigirá um novo tipo de educação.
A capacidade de estimar conseqüências muito atrasadas dos vários
cursos de ação possíveis será tão mais necessária quanto mais se realiza um
terceiro aspecto peculiar dos esquemas concorrentes a que os indivíduos das
sociedades modernas estão expostos: a maior distância (em magnitude ou
valor reforçador) das conseqüências contingentes a cada curso de ação. No
mundo moderno, escolher entre x e y significa não apenas ter acesso a um
reforço um pouco maior ou um pouco menor, um pouco mais freqüente, ou um
pouco menos freqüente. Significa muitas vezes realizar-se ou não
(materialmente, afetivamente etc.), viver muitos ou poucos anos além da
aposentadoria, tornar-se uma celebridade ou um anônimo, poder manter uma
família ou viver na solidão etc.. As escolhas nesses contextos contêm a
possibilidade de uma mudança muito significativa em aspectos importantes da
vida a longo prazo; elas não envolvem simplesmente o conforto ou a satisfação
imediatos do indivíduo.
Uma última observação sobre a autonomia no mundo moderno, pensada
à luz da noção de esquemas concorrentes: como as conseqüências de maior
magnitude ou maior valor reforçador produzidas por certas escolhas são
188
freqüentemente muito atrasadas, o comportamento de escolha dessas
alternativas freqüentemente vem a ficar sob controle de outras contingências,
contingências sociais que funcionam para promover a escolha do curso de
ação que produz as conseqüências atrasadas. Em um trabalho sobre as
relações entre assertividade e autocontrole, Marchezini-Cunha (2004) definiu
os dois tipos de conseqüências:
ao longo deste trabalho serão utilizadas as expressões
“conseqüências sociais específicas” e “conseqüências reforçadoras
em geral”. Conseqüências sociais específicas terão, aqui, o sentido
de aprovação ou desaprovação de dado comportamento pelo grupo.
Já conseqüências reforçadoras em geral (ou conseqüências
aversivas em geral) poderão ser entendidas como satisfação de
outras necessidades, conseqüências mediadas socialmente ou não,
mas em sentido diverso àquele específico de
aprovação/desaprovação. (p. 3)
Ou seja, uma última particularidade da autonomia de que fala Elias
(1994), ou do comportamento de escolha em sociedades complexas é que a
probabilidade de um curso de ação não é necessariamente função da
proporção de reforço (atrasado) contingente a esse e a outros cursos de ação,
mas de uma relação entre magnitude e atraso do reforço em esquemas
concorrentes nos quais se incluem contingências sociais de
aprovação/desaprovação não necessariamente conectadas com outros
eventos possivelmente reforçadores.
189
A sociedade, porém, tende a introduzir contingências para influenciar as
escolhas do indivíduo apenas naquelas circunstâncias em que a escolha
produz não apenas uma conseqüência para ele mesmo, mas também uma
conseqüência para o grupo. Por exemplo, a sociedade dispõe contingências
especiais para favorecer a prática de esportes, no lugar do consumo de drogas.
Nesse caso, a sociedade intervém para aumentar a probabilidade do
comportamento que favorece o grupo. Quando não estão em jogo
conseqüências para o grupo, e quando as conseqüências que afetam apenas o
próprio indivíduo são muito atrasadas, as escolhas podem ser função de muitas
outras variáveis relacionadas à história ambiental do indivíduo, por vezes muito
difíceis de aferir, o que fortalece uma visão de autonomia.
Por exemplo, mesmo em sociedades complexas, os esquemas
concorrentes envolvem conseqüências que não são atrasadas, e que não
representam um conflito indivíduo/grupo. O indivíduo pode escolher beber leite
ou suco, pegar um elevador ou uma escada rolante, viajar ou comprar um
carro, jogar damas ou dominó etc. Essas são situações em que esquemas
concorrentes estão operando e que podem ser explicadas recorrendo-se à lei
da igualação. Não ilustram, porém, toda a problemática da autonomia individual
no mundo moderno78.
Em suma, a autonomia encontrada nas sociedades modernas tanto se
explica em termos da exposição permanente de indivíduos a esquemas
concorrentes de reforço, que exigem escolhas, como, em alguns casos, a partir
de particularidades desses esquemas nessas sociedades, em termos da 78 Voltando ao continuum de complexidade dos fenômenos comportamentais, podemos dizer que essas são situações em um ponto intermediário daquele continuum.
190
distância temporal entre respostas e conseqüências e a participação de
contingências sociais adicionais quando os cursos de ação possíveis envolvem
um conflito entre conseqüências para o indivíduo e conseqüências para o
grupo. Nesse ponto, a questão da autonomia se articula com o problema do
autocontrole.
3.3. O Autocontrole.
Análises como a desenvolvida por Elias (1939/1990b, 1994) apontam
para a importância do autocontrole na definição da experiência subjetiva
moderna. Elias (1994) salienta que a particularidade do processo de
individualização no mundo moderno é que ele vem acompanhado de uma
exigência crescente de autocontrole.
Aquilo que visto por um aspecto se apresenta como um processo de
individualização crescente é, visto por outro, um processo de
civilização. Pode-se considerar característico de certa fase desse
processo que se intensifiquem as tensões entre os ditames e
proibições sociais, internalizados como autocontrole, e os impulsos
espontâneos reprimidos. Como dissemos, é esse conflito no
indivíduo, essa “privatização” ... que desperta no indivíduo a
sensação de ser, “internamente”, uma coisa totalmente separada, de
existir sem relação com outras pessoas, relacionando-se apenas
“retrospectivamente” com os que estão “fora” dele. (Elias, 1994, p.
103)
Na medida em que vão se dissociando as conseqüências que mantêm o
191
comportamento de cada um (que cada um vai sendo mais diferente de todos os
demais porque suas relações com o mundo são cada vez mais
particularizadas) e na medida em que isso acontece em um contexto de
relações de dependência interpessoal indiretas muito complexas, mais e mais
autocontrole vai sendo exigido do indivíduo e, desse modo, vai se construindo
sua “interioridade” e ele vai se vendo como autônomo. Podemos formular o
problema do seguinte modo: quanto mais idiossincráticas as relações
comportamentais que definem a vida cotidiana dos indivíduos, em contextos de
contingências concorrentes cada vez mais numerosas e que envolvem um
conflito de conseqüências para o indivíduo e para o grupo, mais e mais vão
sendo exigidos do indivíduo a auto-observação e a emissão de
comportamentos autocontrolados. Como resultado disso, o indivíduo deve
observar mais o próprio corpo, fazer mais escolhas e responder sob controle de
conseqüências em geral atrasadas, ou conseqüências sociais imediatas
específicas do tipo aprovação/desaprovação. Esse padrão de comportamento
envolverá um responder reflexivo com participação cada vez mais reduzida do
aparelho motor e um responder emocional sem os componentes motores
selecionados filogeneticamente. Por “responder reflexivo” entendam-se aqueles
repertórios de exame, apreciação elaboração conceitual e deliberação sobre
aspectos do mundo a sua volta. Por “responder emocional”, entendam-se
aquelas relações (ou conjunto de relações, mais ou menos complexas) que se
originam a partir das chamadas emoções básicas ou primárias.
No Capítulo 1, assinalamos que para Elias (1939/1990b) a noção de
interioridade se torna persuasiva na medida em que os “impulsos naturais”
192
precisam ser contidos e nisso consiste o autocontrole. Tal contenção significa,
para Elias, que os “impulsos emocionais” não podem atingir o aparelho motor.
A metáfora do homo clausus seria assim justificada pela experiência que cada
um tem de vigiar o próprio corpo para conter as emoções “naturais”. Um
analista do comportamento pode considerar dispensável esse tipo de
abordagem, alegando que permanece no campo de uma lógica internalista.
Todavia, a argumentação de Elias vai justamente na direção oposta,
assinalando as redes de interdependência entre os homens e as dimensões
dessas redes (complexidade, sob a forma de extensão das redes e existência
de muitos elos de mediação da dependência) que tornam difícil aos indivíduos
visualizá-las. Toda a análise de Elias tem a função de tornar inteligível a auto-
imagem de autonomia e ainda assim apontar seu caráter ilusório. Portanto,
estamos diante de um autor que opera com uma lógica relacional, não
internalista, na análise de problemas de interesse central para a Psicologia.
Que contribuições mais específicas sua análise provê para uma abordagem
comportamental desses problemas? Diversas, dentre elas a indicação de
algumas variáveis culturais de relevância central no mundo moderno, a
proposição de que o autocontrole constitui uma chave para a discussão dos
fenômenos emocionais tal como se configuram nessa cultura e a sugestão de
que um aspecto importante dessa configuração consiste da forma de emissão
de certas respostas: com restrita participação do aparelho motor, ou
simplesmente a emissão de respostas com dimensões motoras concorrentes
(e.g., sorrir em um momento de desagrado).
Na análise do comportamento, o autocontrole recebe um tratamento
193
diverso. Não se trata de “conter emoções”, mas de responder sob controle de
conseqüências com maior atraso e maior magnitude, quando esse responder
concorre com outro(s) (impulsivos) mantido(s) por conseqüências imediatas de
menor magnitude (cf. Hanna & Todorov, 2002; Rachlin, 1974, 1991; Skinner,
1974/1993, 1968/2003). Segundo Rachlin (1991), “retire a questão temporal e a
questão do autocontrole será também eliminada” (p. 264). Há, no entanto, um
terreno comum às duas abordagens, que será aqui enfatizado: a relação entre
autocontrole e dimensões éticas do processo de individualização.
Muito freqüentemente, nas sociedades modernas, o indivíduo está
exposto a contingências concorrentes que envolvem um conflito entre
conseqüências (imediatas) para si mesmo e conseqüências atrasadas (para si
mesmo e para os outros) (e.g., cada um pode jogar seu lixo no mar quando vai
à praia, ou acondicioná-lo em recipientes próprios e transportá-lo para o local
de coleta; pode pescar a qualquer momento, ou apenas fora do período de
reprodução das espécies; pode respeitar as leis de trânsito, ou dirigir de acordo
com sua urgência e conveniência etc.). Nesses casos, a impulsividade traz
uma conseqüência negativa para o grupo como um todo, ainda que represente,
para o próprio indivíduo, de um ponto de vista imediato, um conseqüência
positiva. Rachlin (1991) assinala que
o que quer que leve uma pessoa a sacrificar prazeres imediatos para
seu próprio bem no futuro pode também levar uma pessoa a
sacrificar bens individuais em prol de bens sociais. A idéia
subjacente à analogia é que cooperar com outros geralmente resulta
em bens maiores a longo prazo para o indivíduo (embora isso possa
194
não acontecer o tempo todo). (p. 284)
Skinner discute o autocontrole a partir de duas óticas. Uma primeira (cf.
Skinner, 1953/1965) diz respeito à possibilidade de o próprio indivíduo dispor
contingências que favoreçam a emissão do comportamento autocontrolado79.
Neste caso, as “técnicas de autocontrole” funcionam do mesmo modo que as
estratégias para controle do comportamento do outro: altera-se o ambiente e,
como resultado, a probabilidade de certas classes de respostas é alterada
(e.g., desliga-se a televisão para aumentar a probabilidade do comportamento
de ler, coloca-se pouco dinheiro na carteira para reduzir a probabilidade de
fazer despesas etc.)80. Uma outra, e talvez principal, ótica desenvolvida por
Skinner diz respeito às circunstâncias nas quais a sociedade introduz
contingências que favoreçam o comportamento autocontrolado e/ou inibam o
comportamento impulsivo. Neste último caso, estamos no terreno da ética.
A ética é principalmente uma questão de conflito entre
conseqüências imediatas e remotas. Como podemos abrir mão de
79 Skinner refere-se às situações em que o indivíduo manipula variáveis para alterar a probabilidade de outros comportamentos como exemplos do que tem sido denominado como “resolução de problemas”, “tomada de decisão” e “autocontrole” (cf. Nico, 2001). Sobre a diferença entre tomada de decisão e autocontrole, Nico afirma que “o que caracteriza a tomada de decisão é o desconhecimento prévio, por parte do sujeito que se comporta, das conseqüências a serem produzidas por um e outro comportamento. Assim, diferentemente do autocontrole, o comportamento de tomar uma decisão não consiste na aplicação de um conjunto de técnicas de modo a tornar mais provável uma resposta antecipadamente identificada. O que define a tomada de decisão é a emissão de certos comportamentos que aumentam a probabilidade de optar por, decidir qual curso de ação será tomado. Dessa forma, um indivíduo torna-se mais capaz de tomar uma decisão quando se comporta de modo a produzir conhecimento acerca das contingências envolvidas em um e outro comportamento” (p. 16). A discussão apresentada neste trabalho sugere, porém, que autocontrole e tomada de decisão confundem-se quando se trata de esquemas concorrentes que envolvem conseqüências imediatas e atrasadas, para o indivíduo e para o grupo. 80 Diz Skinner (1953/1965) que ao manipular as variáveis o indivíduo “controla-se precisamente como controlaria o comportamento de qualquer outro, por meio da manipulação de variáveis das quais o comportamento é função. Ao fazer isso, seu comportamento é um objeto próprio de análise, e finalmente deve ser explicado por variáveis que se situam fora do próprio indivíduo” (pp. 228-229).
195
uma recompensa de modo a evitar uma punição mais tarde, ou
admitir uma punição em nome de uma recompensa mais tarde? As
culturas têm ajudado a resolver o problema, provendo
conseqüências imediatas que têm os mesmos efeitos que as
conseqüências remotas. Elas envergonham seus membros que não
conseguem abrir mão das recompensas imediatas, ou se recusam a
admitir a punição imediata, e louvam aqueles que conseguem. Se
comer muito sal e açúcar fosse mais sério, isso seria considerado
vergonhoso. (Skinner, 1987b, p. 6)
Contingências sociais podem funcionar para promover o responder
autocontrolado, mesmo quando os esquemas concorrentes envolvem
conseqüências apenas para o próprio indivíduo (e.g., a sociedade pode dispor
contingências que favoreçam práticas esportivas relacionadas a uma vida mais
saudável)81. No caso das sanções éticas82, porém, estamos diante da
circunstância específica em que o responder impulsivo do indivíduo pode
81 Marchezini-Cunha (2004) e Nico (2001) fornecem boas sistematizações das possíveis relações de autocontrole. Na descrição de Marchezini-Cunha, “as relações de autocontrole podem ser didaticamente categorizadas da seguinte maneira: (1) situações nas quais o autocontrole é originado somente do conflito entre as conseqüências diretas do comportamento do indivíduo; (2) situações nas quais o conflito entre as conseqüências do comportamento é acentuado por sanções éticas impostas pelo grupo. As situações da categoria (2) podem ser ainda subdividas em (a) conjunto de condições sob as quais o grupo impõe sanções éticas como forma de facilitar o autocontrole e assim “proteger” o indivíduo das conseqüências aversivas de seu comportamento impulsivo e favorecer um comportamento vantajoso para o indivíduo; e (b) conjunto de condições sob as quais as sanções éticas visam a promoção do autocontrole, evitando assim conseqüências que seriam reforçadoras para o indivíduo, mas aversivas para o grupo (p. 29). 82 Uma definição para “sanções éticas” é elaborada por Marchezini-Cunha (2004): “sanções éticas podem ser compreendidas como estímulos aversivos dispostos pelo grupo com a função de reduzir a freqüência de uma resposta impulsiva, como também podem ser interpretadas como regras, alterando a função de certos estímulos, colocando assim o comportamento do indivíduo sob controle de estímulos que não o controlariam sem a regra. Por exemplo, a pena de 2 anos de reclusão por porte ilegal de arma (sanção como conseqüência aversiva) e a regra ‘biscoitos recheados são constituídos de substâncias cancerígenas’ (regra alterando a função do estímulo, aumentando a probabilidade de autocontrole)” (p. 31).
196
produzir conseqüências aversivas para o grupo. As sanções tornam-se
necessárias porque o responder autocontrolado do indivíduo, que favoreceria o
grupo, não chega a ser instalado. As conseqüências são muito atrasadas e
freqüentemente o indivíduo sequer faz contato com elas. Assim, uma
estimulação suplementar, social, entra em ação para evitar a impulsividade83.
Trata-se, em geral de uma punição contingente ao comportamento impulsivo
(uma punição cuja magnitude, para ser eficaz, varia acompanhando mudanças
nas conseqüências de respostas concorrentes – ou seja, varia acompanhando
o contexto de reforços disponíveis). Como resultado, os esquemas
concorrentes a que o indivíduo encontra-se exposto incluem contingências
sociais que produzem um autocontrole sob a forma de “comportamento de
esquiva socialmente instalado” (Nico, 2001, p. 85)84.
Ora, o responder do organismo que pode alterar o ambiente físico e
assim afetar os outros é o responder com (determinada) participação do
aparelho motor85. Assim, o autocontrole, em circunstâncias de conflito ético,
mesmo pensado enquanto um responder sob controle de conseqüências 83 Nico (2001) assinala que “esta pode ser apontada como uma diferença em relação ao primeiro conjunto de condições sob as quais o grupo leva o indivíduo a autocontrolar-se [categoria 2a]. Sob aquelas condições, o indivíduo em algum momento entra em contato com as estimulações aversivas diretamente produzidas pelo seu comportamento – a ressaca por ter bebido, a dor no estômago por ter comido muito, a perda de fôlego por ter fumado etc.; no presente caso, as estimulações aversivas produzidas pelo seu comportamento, agregadas àquelas produzidas por muitos outros homens, no mais das vezes não são experienciadas pelo indivíduo que assim se comporta. Portanto, neste segundo caso, é ainda menos provável que o indivíduo se autocontrole, sendo o planejamento de conseqüências especiais, na forma de sanções éticas, o único modo possível de estabelecer tal comportamento” (p. 77). 84 Um discussão mais detalhada do uso de estímulos aversivos na promoção do autocontrole, é encontrada em Nico (2001). 85 Algumas vezes a ativação do sistema circulatório também afeta o outro, sob a forma de uma ruborização do indivíduo. Formas mais avançadas de autocontrole (e.g., técnicas refinadas de representação) incluem a evitação dessa resposta fisiológica. Ainda que não controladas, respostas fisiológicas são em geral respondentes condicionados ou incondicionados. Embora possam ter dimensões públicas, não produzem conseqüências aversivas para o grupo.
197
atrasadas, ou sanções sociais imediatas, envolve uma resposta com restrita
participação do aparelho motor, ou uma resposta com componente motor que é
concorrente com aquela que seria impulsiva86.
Como já assinalado, o papel da ativação (restrita) do aparato motor na
definição do caráter (parcialmente) encoberto de certas respostas é abordado
por Watson (1930/1970), Skinner (1957/1992) e Kantor (Kantor & N. W. Smith,
1975). É também a questão levantada por Elias (e.g., 1939/1990b) ao discutir o
autocontrole nas sociedades modernas. Também esses autores chamam a
atenção para a importância de contingências sociais punitivas para a produção
dessas respostas encobertas. Essas contingências são dispostas socialmente
não por seu efeito para o indivíduo, mas por seu efeito para o grupo.
Na discussão oferecida por Andery (1997) acerca as práticas culturais que
produzem a subjetividade, somos chamados a atenção para esse aspecto
crucial de uma interpretação analítico-comportamental: práticas culturais
produzem repertórios individuais, mas são selecionadas por seus efeitos para o
grupo87, não para o indivíduo.
as contingências responsáveis pela construção da subjetividade ...
são ... um conjunto de contingências que só permanecem por suas
conseqüências em termos da sobrevivência do grupo praticante.
86 Essas possibilidades têm conexão com uma problemática discutida no âmbito clínico como comportamentos assertivos, agressivos e passivos (cf. Marchezini-Cunha, 2004). 87 Algumas vezes, dependendo das relações de poder no interior dos grupos, as práticas podem se manter por seus efeitos (proveito) para alguns subgrupos: “Se o futuro dos governos, religiões e sistemas capitalistas fosse congruente com o futuro da espécie, nosso problema estaria resolvido. Quando se descobrisse que um determinado comportamento ameaça a espécie, as instituições o declarariam ilegal, pecaminoso, ou dispendioso, respectivamente, e mudariam as contingências que impõem. Infelizmente, os futuros são diferentes. Armas nucleares são construídas para garantir a sobrevivência de governos e religiões, não a sobrevivência da espécie”. (Skinner, 1987b, p. 7).
198
Não se pode, portanto, compreender a subjetividade como mero
conjunto de resultados de interações entre indivíduos, uma vez que
estas interações são mediadas pela comunidade verbal, uma
comunidade que mantém um conjunto de práticas por suas
conseqüências para o grupo ...
talvez a subjetividade aparentemente tão absolutamente individual e
singular só sobreviva enquanto puder ser também social e
diretamente ligada à sobrevivência do grupo social. (p. 206)
É à cultura que interessa o autocontrole e é por visar esse autocontrole
que a cultura promove a discriminação de condições corporais e a
transformação das relações tidas por um responder emocional espontâneo.
Isso não significa que algo fica contido dentro do sujeito autocontrolado (exceto
como uma metáfora). Mas significa que sobre as relações emocionais primárias
a cultura opera transformando-as e produzindo relações com graus cada vez
maiores de complexidade (por exemplo, do ponto de vista dos entrelaçamentos
entre relações diversas, verbais e não verbais, com componentes abertos e
encobertos etc.), das quais participam respostas parcialmente encobertas não
encontradas nas relações que definem as emoções primárias (o responder
emocional referido no início desta seção). Do mesmo modo, significa que
outras classes de respostas relacionadas à “cognição”, o responder reflexivo
mencionado anteriormente, tornam-se parcialmente encobertas por força da
individualização, exposição do indivíduo a esquemas concorrentes cada vez
mais numerosos, necessidade de estar permanentemente fazendo escolhas e
conflito de conseqüências (imediatas/atrasadas, maior/menor magnitude, para
199
o indivíduo/para o grupo etc.).
O padrão autocontrolado de comportamento interessa à cultura (no
mundo ocidental) por várias razões. O alto grau de complexidade das relações
entre os indivíduos torna importante para a sobrevivência do grupo a
previsibilidade do comportamento de cada um (utilizando um único de muitos
exemplos possíveis, imagine-se como ficaria comprometida essa sobrevivência
se todos os habitantes de uma grande metrópole dirigissem automóveis
impulsivamente). O desenvolvimento tecnológico e a especialização das
funções multiplicam os cursos de ação possíveis (multiplicam os reforços
disponíveis em cada contexto de ação) tornando impossível para a sociedade
controlar diretamente, a cada momento, o comportamento individual em favor
do grupo. A dissociação das conseqüências que mantêm o comportamento de
cada um introduz um grau inédito de conflito entre conseqüências para o
indivíduo e para o grupo (inexistente em sociedades menos complexas).
Pensar as relações que definem emoções, sentimentos e pensamentos,
sob as variáveis culturais aqui referidas, a partir de suas articulações com as
questões da autonomia, individualização e autocontrole pode ser produtivo
porque assim tem-se uma referência dos tipos de variáveis para as quais olhar
ao buscar compreender aquelas relações. Uma emoção ou sentimento não
constitui simplesmente uma estimulação interoceptiva, ou um responder verbal
sob controle de uma condição corporal (e, assim, não será suficiente discutir
como essa autodescrição se instala, ou se é precisa ou não). De mesmo modo,
o pensar não é simplesmente um responder encoberto (portanto, não será
suficiente discutir se adquire ou não funções para outros comportamentos). A
200
análise do comportamento poderá avançar em sua abordagem de sentimentos,
emoções e pensamentos na medida em que considerar as relações concretas,
nas vidas dos indivíduos de uma cultura, em que esses fenômenos vêm a
existir.
3.4. Fugindo à Lógica das Dicotomias Psicológicas C lássicas:
Complexidade, Acessibilidade e Relevância de Relaçõ es
Comportamentais.
Toda a argumentação aqui desenvolvida demanda estudos adicionais,
conceituais e de outros tipos, para que sua possível contribuição seja aferida.
Dentro dos objetivos estabelecidos, ela organiza conceitualmente um conjunto
de problemas, mas de um modo que merece ser explorado, refinado. Ela
oferece direções para o tratamento de alguns problemas importantes, nos
limites do sistema explicativo analítico-comportamental. Sua capacidade de
contribuir para estudos empíricos, básicos e aplicados, precisa ainda ser
avaliada, assim como sua possível contribuição para a intervenção do analista
do comportamento, especialmente o clínico, que é cotidianamente instado a
interpretar o comportamento verbal descritivo e emoções, sentimentos e
pensamentos.
A discussão oferecida para os temas da individualização, autonomia e
autocontrole permite pensar em termos de relações comportamentais os
fenômenos complexos considerados instâncias de sentimentos, emoções e
pensamentos, fugindo, assim, da lógica dualista que está na origem das
dicotomias psicológicas clássicas. Ela permite restaurar na análise as
201
complexas relações de interdependência entre homens e mulheres, que ficam
obscurecidas com aquelas dicotomias. Porém, ela faz isso sem ignorar os
problemas que estão na origem daquelas dicotomias; ao contrário, procurar
trazê-los à luz com um enfoque relacional.
Na análise desenvolvida, não se tornam necessários os conceitos de
interno, mental ou subjetivo. Quando muito podemos empregar o conceito de
privado, mas não como característica do fenômeno psicológico ou
comportamental. Com a análise oferecida, podemos sugerir que o conceito de
privado serve para chamar a atenção para a especificidade de um fenômeno
que existe enquanto tal sob certas contingências culturais. Mas “privado” é uma
propriedade de termos daquelas redes de relações, não uma propriedade das
relações em si mesmas. Sentimentos, emoções e pensamentos, desse ponto
de vista, não são privados, embora se definam como relações das quais podem
participar estímulos e respostas cuja observabilidade, sob certas condições, é
restrita.
Considerando-se que o enfoque relacional é que recoloca os problemas
humanos no plano das relações de interdependência entre homens e mulheres,
a superação das dicotomias clássicas não se dá pela afirmação dos pólos que
atendem critérios de uma visão monista. Não é afirmando que sentimentos,
emoções e pensamentos são todos eles fenômenos públicos, objetivos, físicos,
ou externos que se visualizam as dimensões relacionais funcionais desses
fenômenos. No lugar dessa lógica, podemos indagar quais são as novas
relações que dão origem à auto-imagem do homem autônomo e enclausurado
em si mesmo.
202
Certas características das relações que definem a individualização,
autonomia e autocontrole na cultura ocidental moderna mostram-se relevantes
para compreender aquela auto-imagem e suas repercussões nos modos como
sentimentos, emoções e pensamento são vividos. Uma compreensão mais
avançada dessas características exige do analista do comportamento um
exame de práticas culturais, o que parece fugir aos domínios de seu objeto de
estudos. Skinner (e.g., 1990) chega a sugerir que esse é um objeto de parte da
antropologia. Podemos, no entanto, indagar se é possível evitar essa incursão
nas práticas culturais sem com isso limitar o alcance de nossa análise desse
conjunto particular de fenômenos (e, talvez, de outros). Na medida em que
essas variáveis definem o próprio fenômeno, a resposta é negativa. No próprio
Skinner (1953/1965), por outro lado, e em outros analistas do comportamento,
como nos lembram Andery, Micheletto e Sério (2005), encontra-se o
reconhecimento de que fenômenos sociais são também objeto da análise do
comportamento.
Uma leitura dos volumes dos últimos anos de alguns periódicos
freqüentados por analistas do comportamento (e.g., The Behavior Analyst,
Behavior and Philosophy e Behavior and Social Issues) evidencia, na verdade,
um interesse cada vez maior de analistas do comportamento pelas
contingências culturais (a proposição do conceito de metacontingências
constitui um desses exemplos – cf. Glenn, 1988, 1991) e um esforço para
incorporá-las em suas discussões dos fenômenos psicológicos ou
comportamentais. Ou seja, na prática, analistas do comportamento estão se
voltando às práticas culturais como parte de seu objeto de estudos (ainda que
203
a elas não se dirijam com os mesmos instrumentos da investigação
experimental). O presente trabalho, como um esforço na mesma direção, não
está propondo um tipo novo de investigação, mas apenas voltando-se para um
problema específico: a subjetividade. A complexidade do problema recomenda
que o percurso analítico aqui seguido seja tomado como possíveis direções
para investigações futuras (o que também não é muito diferente dos outros
esforços de analistas do comportamento para explicar o comportamento
humano complexo).
204
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inexistência de programas de pesquisa amplos sobre a temática da
subjetividade na análise do comportamento88, conseqüência de uma dedicação
mais sistemática ao assunto apenas nos últimos anos, significa que estamos
ainda em uma etapa de construção conceitual, na direção de estabelecer
problemas relevantes, enfoques pertinentes e alternativas metodológicas para
esses estudos. Em um contexto desse tipo, cada passo pode apenas remover
algumas inconsistências e sugerir algumas direções para os próximos passos.
Trabalhos como os de Anderson e cols. (2000) e Friman e cols. (1998) são
contribuições desse tipo, orientados principalmente por demandas da aplicação
clínica da análise do comportamento. Com o presente estudo esperamos estar
também dando um passo desse tipo adiante, partindo de uma interlocução com
uma literatura diversificada (não apenas analítico-comportamental).
Não faz parte da tradição da análise do comportamento buscar a
interlocução com outros sistemas explicativos psicológicos ou de outras
áreas89. Ao contrário disso, alguns analistas do comportamento (e.g., o próprio
Skinner, 1971/2002) por vezes sugerem que a disciplina está sozinha na
promoção de uma visão de homem que conflita com aquela produzida pela
88 Programas de pesquisa sobre o controle do comportamento por auto-regras existem, são muito relevantes e seus produtos podem contribuir para uma discussão analítico-comportamental das descrições encobertas de contingências (e.g., Simonassi, Tourinho & A. V. Silva, 2001). Mas esses programas não se voltam especificamente aos problemas instituídos pela noção de subjetividade, como examinados ao longo deste trabalho. 89 A leitura dos textos de Skinner mostra que se trata de um autor que buscou conhecer pontos de vista muito variados sobre os fenômenos e os problemas humanos. Todavia, isso não se reflete em citações de outros autores, ou em um encorajamento ao leitor para usufruir de uma literatura diversa. Sobre o comportamento de citar de Skinner, a partir do momento em que seu sistema explicativo começa a tomar feições próprias, ver Andery, Micheletto e Sério (2002).
205
cultura individualista, subjetivista. Todavia, a idéia de que a análise do
comportamento se encontra em uma posição única, singular na cultura
ocidental, na medida em que se opõe às doutrinas mentalistas; que está na
contracorrente das idéias encontradas nos principais sistemas de crenças com
repercussão no mundo moderno, encontra pouca sustentação quando se
consideram as obras de autores das mais variadas disciplinas nas
humanidades. Já se mencionou a importância do anti-mentalismo veiculado na
filosofia da linguagem de Wittgenstein (1953/1988), no pragmatismo de Rorty
(e.g. 1988) e na sociologia de Elias (e.g., 1994), todos com notável
repercussão no pensamento do século XX90. Outros tantos exemplos podem
ser encontrados nestas e outras disciplinas.
Elaborações como as de Elias (e.g., 1939/1990b) constituem
contribuições relevantes a uma interpretação relacional dos problemas
psicológicos, do mesmo modo que as argumentações de Wittgenstein
(1953/1988) acerca da impossibilidade de uma linguagem privada. Essas
elaborações informam sobre possíveis percursos de uma interpretação
relacional, assim como contribuem para uma compreensão mais avançada das
práticas e valores contra os quais essa interpretação deve ser edificada.
No presente estudo, iniciamos com um exame das condições sociais
sob as quais se elaboraram as dicotomias psicológicas clássicas. Com essa
contextualização fica mais fácil notar que o individualismo e o mentalismo que
prevalecem na cultura ocidental moderna não resultam simplesmente de uma
ignorância sobre os fatos descritos por uma ciência do comportamento (e por
90 Sobre o enfoque relacional e a noção de função em Elias, ver Waizbort (1999).
206
outras ciências que assinalam as relações de interdependência entre os
homens e mulheres), mas de contingências sociais muito complexas que
tornam muito persuasivas as noções de indivíduo e de mente. Compreender
essas contingências, investigar o que representam do ponto de vista da
regulação da vida cotidiana de homens e mulheres, é crucial tanto para
promover um conhecimento avançado das relações comportamentais que
definem sentimentos, emoções e pensamentos, como para pensar em intervir
no nível cultural, em promover uma nova forma de vida, baseada em valores
mais ligados à variabilidade comportamental e à sobrevivência da espécie91.
A elaboração da noção de eventos privados representou um passo
importante na construção de uma abordagem para a subjetividade, que se
revela crítica do dualismo e da noção de autonomia. Com ela, a Psicologia
enquanto ciência do comportamento pôde começar a se voltar para problemas
embaraçosos para uma ciência empírica, porém centrais para qualquer
pretensão de edificar-se como sistema psicológico. A referência a estímulos
privados e respostas encobertas funciona para afirmar que permanecemos no
terreno dos fenômenos comportamentais quando nos voltamos para
sentimentos, emoções e pensamento. Mas esse é um ponto de partida, não um
91 De certo modo, a discussão aqui desenvolvida pode também ser conectada com o debate sobre metacontingências (cf. Todorov, Martone e Moreira, 2005; Glenn, 1988, 1991). Todavia, ao buscar esse tipo de elaboração, será necessário notar que não é a subjetividade individual, não são os conjuntos de relações definidoras da subjetividade de um indivíduo, que podem constituir uma metacontingência, ainda que práticas culturais sejam responsáveis por sua produção. Apenas a partir da identificação de produtos agregados das relações que definem a subjetividade de vários indivíduos poderíamos falar de metacontingências. Talvez possamos considerar que a coordenação dos comportamentos de grupos sociais amplos, em relações complexas, de modo a tornar previsível (probabilisticamente) o comportamento de cada um, seja um desses produtos agregados das práticas culturais responsáveis pela construção da subjetividade no mundo moderno. Esse tipo de abordagem, porém, requer, ele mesmo, um exame mais sistemático, que foge aos objetivos do presente estudo.
207
ponto de chegada, como tornam evidentes os debates encontrados na
literatura analítico-comportamental mais recente, sobretudo as proposições de
analistas do comportamento com atuação clínica.
Alguns analistas do comportamento (e.g. Skinner, 1953/1965)
argumentam que para objetivos práticos, de controle (ou influência) do
comportamento, bastam os instrumentos conceituais e metodológicos
desenvolvidos na abordagem do comportamento publicamente observável.
Talvez isso seja verdade na abordagem do comportamento individual menos
complexo e/ou em circunstâncias nas quais o analista do comportamento tem
acesso amplo a informações da história ambiental do indivíduo. É muito
improvável que se sustente face a repertórios complexos, que incluem relações
verbais diversas, em contextos sociais sofisticados como aqueles discutidos ao
longo deste trabalho e quando o analista do comportamento tem acesso restrito
à história ambiental. Nesses casos, evitar a abordagem de sentimentos,
emoções e pensamentos não deve constituir exatamente a melhor solução
prática.
Se a noção de eventos privados constitui um ponto de partida,
precisamos examinar o que vem depois. Deixando para trás as dicotomias que
obscurecem as relações de interdependência, o presente trabalho sugere que
um percurso possível consiste em tratar sentimento, emoções e pensamentos
como conjuntos de relações com graus variáveis de complexidade, construídas
em um contexto cultural específico, que confere àquelas relações dimensões
usualmente referidas com os conceitos de singularidade, autonomia e
autocontrole.
208
Para uma análise comportamental, a noção de singularidade significará
não apenas o caráter idiossincrático do repertório de cada um, não apenas o
fato de que cada um é único (em qualquer cultura) do ponto de vista das
relações que vem a estabelecer com o mundo a sua volta, mas principalmente
o fato de que face à dissociação das conseqüências que mantêm o
comportamento individual, o responder emocional e reflexivo sofrerá
transformações do ponto de vista de seus componentes motores, com
implicações diversas, ainda por serem adequadamente analisadas (de um
ponto de vista comportamental)92.
As dimensões de autonomia podem ser interpretadas com o
reconhecimento de que todo homem ou mulher é sensível ao mundo a sua
volta, de que há uma dependência funcional entre suas respostas e
ocorrências desse mundo. No entanto, será necessário considerar que cada
um está permanentemente exposto a esquemas concorrentes, que se
multiplicam quanto mais complexo o ambiente social, face ao qual deve tomar
decisões ou fazer escolhas. A diversificação das funções sociais constitui
apenas um exemplo dessa multiplicação de alternativas de ação. A auto-
reflexão necessária quando esquemas concorrentes envolvem conseqüências
muito atrasadas e individualizadas (assim como sua dependência de outras
contingências sociais) constitui um outro elemento a ser levado em conta.
Nesses contextos, o indivíduo escolhe mais, não porque é mais autônomo, mas
porque o ambiente exige. Suas escolhas têm um impacto que vai além do
conforto ou a satisfação imediatos. E a sociedade só intervém para favorecer 92 A psicossomática e outras áreas da Psicologia têm enfocado essas conseqüências, por uma outra ótica.
209
cursos específicos de ação quando estão em jogo também conseqüências que
afetam o grupo. É por isso que alguns autores falam da modernidade como
uma época de desamparo.
O autocontrole pode ser interpretado como um responder também
sensível a contingências ambientais, portanto não representando uma forma de
autodeterminação. Mas é necessário considerar que o autocontrole assume
características (e freqüência) peculiares sob certas contingências do mundo
moderno. Nessa direção, as chamadas “técnicas de autocontrole” (cf. Skinner,
1953/1965) são menos importantes do que o autocontrole como forma de
autogerenciamento ético, quando se está diante de um conflito entre
conseqüências para o indivíduo e conseqüências para o grupo, um conflito que
se acentua de modos originais em uma cultura individualista. Sob esses
conflitos é que o autocontrole representará uma transformação do responder
reflexivo e emocional do ponto de vista de seus componentes motores. Essa
transformação, freqüentemente baseada na punição social, requer por seu
turno um exame à parte, que leve em conta os efeitos diversos da punição,
que, como diz Skinner (1971/2002), não funciona simplesmente para reduzir a
probabilidade de uma resposta93.
A singularidade, autonomia e autocontrole como categorias analíticas,
convém reiterar, foram sugeridas pelo exame de informações históricas sobre a
problemática da subjetividade, que tomou como referência as dicotomias
93 Afirma Skinner (1971/2002): “Uma pessoa que foi punida não estará simplesmente menos inclinada a comportar-se de uma dada maneira; no melhor dos casos, ela aprende como evitar a punição. Algumas maneiras de fazer isso são mal adaptadas ou neuróticas, como nos famosos “dinamismos freudianos”. Outras maneiras incluem a esquiva de situações nas quais o comportamento punido é provável de ocorrer e fazer coisas que são incompatíveis com o comportamento punido” (p. 81).
210
psicológicas clássicas (Capítulo 1). A análise a partir daí desenvolvida, sobre o
alcance das proposições de Skinner e as possibilidades de fazer avançar a
abordagem analítico-comportamental para o tema (Capítulos 2 e 3), usufruiu
daquele esforço de interlocução com disciplinas afins, na área das
humanidades. Outras iniciativas de interlocução com as mesmas ou outras
ciências (inclusive das áreas biológicas) podem conduzir a novas e produtivas
sistematizações dos problemas aos quais uma ciência do comportamento deve
se voltar94. A objetividade na definição de seu objeto e dos modos eficazes de
produzir descrições de regularidades desse objeto não é incompatível, na
análise do comportamento, com um diálogo mais fecundo com disciplinas afins.
Ao contrário, pode ser muito importante para aumentar nossa compreensão
desse objeto e tornar inteligível para outras áreas o ponto de vista
comportamental e suas contribuições (hoje, limitadamente reconhecidas) para
a solução dos problemas humanos.
94 Também sobre a possibilidade de usufruir da interlocução com as ciências biológicas, é interessante observar o exemplo de Elias (1990a), que em dado momento dedicou-se ao estudo da medicina: “Só mais tarde compreendi com clareza que o estudo da medicina fora uma das experiências fundamentais que me estimularam a abandonar a filosofia para me consagrar à sociologia. Mas até os anos 60, quando dava minhas aulas de introdução a alunos de sociologia, tinha às vezes ao alcance da mão um crânio humano desmontável. Parecia-me que um estudante de sociologia devia ter algumas noções essenciais da estrutura do sistema nervoso humano, para ser capaz de se aproximar da concepção do homem indispensável à compreensão de contextos sociais, ou seja, uma concepção do homem como fundamentalmente organizado para viver em meio a homens , animais, plantas e minerais” (p. 99).
211
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