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Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências HumanasDepartamento de Línguas Clássicas e VernáculasÁrea de Filologia e Língua Portuguesa
(Dis)fluência e narratividade:um estudo de caso sobre a fala do idoso
Introdução aos Estudos de Língua Portuguesa IIProfessora: Marli Quadros Leite
Noturno – 1° horário
Gabriel Bueno da Costa, n°USP: xxxxxxJoão Paulo Ferraz, n°USP: xxxxxx
Jonathan Castellano, n°USP: xxxxxxRodrigo Oliveira Silva, n°USP: xxxxxx
São Paulo2010
Introdução
O trabalho teve início na seleção dos locutores, pelo perfil interessante para a
empreitada, trata-se de dois locutores relativamente hábeis no uso da palavra. Ele, 92
anos, professor de Letras, escritor e crítico literário, ela, secretária, 51 anos. Dadas tais
características, buscou-se verificar a ocorrência de marcas “características” da fala dos
idosos. Sabendo-se tratar de um homem de letras, leitor ávido, com profundo e extenso
domínio do léxico e das regras gramaticais, pode-se à primeira vista, com um olhar
menos atento, fazer uma leitura superficial da ocorrência das marcas características da
fala do idoso, tão explicitamente presentes no corpus do presente trabalho. Um olhar
atento, porém, observará uma performance discursiva eventualmente superior à de
falantes mais jovens, apesar das frequentes ocorrências de diversas dessas marcas
comuns aos idosos.
O diálogo foi gravado no apartamento de L1, que é parente distante de L2.
Segundo sua própria definição, são primos em 8º grau: o bisavô dele (L1) é tataravô
dela (L2). O objeto do diálogo é a história da família, de interesse de ambos os
interactantes, e característica usual da fala de um idoso, por promover uma volta ao
passado.
Diversos fatores estabeleceram a hierarquia e assimetria no processo
interacional: 1) o próprio objeto do diálogo, que remonta ao passado, sendo este um
claro domínio de L1, em cuja memória residem as informações apresentadas, por tê-las
testemunhado ele mesmo, e às quais L2 somente tem acesso por registros de terceiros;
2) o ambiente onde ocorreu ao diálogo, o apartamento de L1, sendo portanto L2 e o
documentador convidados de L1; 3) a vida e formação acadêmica de L1, que aflora em
L2 um profundo sentimento de admiração e respeito; e ainda 4) a diferença de idade
entre L1 e L2. Tais fatores concorrem para que L1 tenha o domínio e o controle do
diálogo.
Embora apresentando uma performance discursiva surpreendente para sua idade,
são frequentes e significativas as marcas da fala dos idosos percebidas em L1 no diálogo
gravado, sabendo-se que tais marcas ocorrem no registro de qualquer falante,
independentemente de sua idade, porém com maior intensidade e frequência entre os
idosos, tais como (dis)fluências em todas as suas variações, hesitações, gaguejamentos,
descontinuidade tópica, segmentos parentéticos, entre outros. Observa-se também uma
característica digna de nota, a adequação do discurso ao ouvinte, explicitando-se como
falante culto, possuidor de “maior consciência da variação linguística e de sua
adequação à grande diversidade de situações de comunicação” (CASTILHO & PRETI,
1987: 3).
Segue neste trabalho uma breve mas clara análise de algumas das marcas
identificadas no diálogo, interessante em seu conteúdo e em sua forma, ilustrativo e
esclarecedor das características já identificadas por diversos autores e estudiosos,
comprovando a validade e precisão de seus estudos.
A fluência na linguagem dos idosos
Antes de mais nada, é necessário estabelecer uma classificação para a idade do
informante principal (ao qual nos referiremos doravante como L1), o que é o fator mais
relevante do diálogo gravado e transcrito e que constitui o corpus de nossa análise. O
falante L1 tem 92 anos de idade (este dado chama a atenção já a priori porque a
expectativa média de vida do brasileiro é de 72,5 anos1, e em seguida pelas
conseqüências que a idade traz às habilidades de fala) e provavelmente haveria quase
consenso absoluto em classificar-lhe como um idoso.
Porém, para nossa análise esta definição não é o bastante, pois há uma grande
faixa etária coberta pela definição do item lexical “idoso” em nossa língua e nos parece
que, para melhor examinar a fala de L1, precisaremos ser mais exatos, pois uma pessoa
de, digamos, 65 anos de idade, seria também classificada como idosa, desaparecendo
assim a diferença de quase 30 anos no exemplo usado. Adotaremos então o conceito
usado por Preti (1991:26) que acata a divisão bastante comum, conforme ele próprio,
entre “idosos jovens” e “idosos velhos” (porém, não totalmente sem ressalvas, ainda
segundo ele, pois essa divisão não levaria em conta variantes individuais genéticas e/ou
oriundas das condições de vida de cada um). Neste caso, o falante L1 encontra-se na
categoria dos “idosos velhos”, ou seja, com mais de 80 anos.
Se considerarmos a fala de L1 como um processo psicofísico e como tal
aceitarmos que, como outros processos físicos, ele é afetado pelo envelhecimento
natural do organismo, podemos dizer sem receio que haverá reflexos na comunicação de
qualquer falante que são previsíveis e detectáveis durante o envelhecimento. Não
1 IBGE (www.ibge.gov.br/brasil_en_sintese/default.htm), consultado em 14/11/2010.
obstante, é necessário mencionar que há outros fatores responsáveis pela formação das
características da fala dos idosos e que nosso objeto de estudo não são esses diversos
fatores, bem como nenhum outro, mas sim as marcas características na fala dos idosos,
as quais procuraremos identificar, nomear e analisar.
As características de que falamos não são necessariamente específicas e
presentes somente na fala dos idosos, mas são sim características também presentes na
fala de quaisquer indivíduos, incluindo os mais jovens, porém não com a intensidade e
força com que aparecem na fala dos idosos, especialmente os “idosos velhos”, como diz
Preti²:
Em geral, pode-se dizer que o levantamento das características peculiares à fala do
idoso, sobretudo do “idoso velho”, nos diversos níveis de análise, mostra-nos que as diferenças
básicas entre essa linguagem e a dos falantes mais jovens residem muito mais na intensificação das
características comuns a ambos, do que propriamente a traços específicos. É o que ocorre com as
repetições e suas várias espécies, com os anacolutos, com as parentéticas. E, sobretudo, com as
pausas, as hesitações e as auto-correções.(p.49)
O reflexo que se projeta na fala do idoso devido a essas características é a
descontinuidade, definida por Castilho (Castilho, 1988, apud Preti, 1991) como
“fenômeno absolutamente normal na linguagem oral” e que “refere-se às várias formas
de rupturas que podem ocorrer nos níveis pragmático, sintático, lexical e discursivo”.
Como dito anteriormente, embora normais, esses fenômenos tendem a ser mais agudos
na fala dos idosos justamente pela perda da performance discursiva, que é uma atividade
psicofísica e que por natureza tem a sua execução concomitante à sua produção,
exigindo rapidez e precisão, contrastando com a lentidão de raciocínio um pouco mais
acentuada, comum aos idosos. Uma das marcas mais perceptíveis no diálogo é o
problema da (dis)fluência.
(Dis)fluência
W. Chafe (Chafe, W.:1985, apud Preti:1991, 42) observa que a marca que mais
chama a atenção na fala dos idosos é o que ele chama de “disfluência”. Os elementos
que constituiriam essa “disfluência” seriam as repetições, retomadas, gaguejamentos e
hesitações. Embora L1 tenha uma ótima performance discursiva quando se leva em
consideração a performance esperada de um falante de 92 anos (talvez devido às
especificidades qualitativas do indivíduo), há muitos exemplos que caracterizam essa
“disfluência” no discurso de L1. Os casos de gaguejamento podem ser vistos nas linhas
23 e 27, por exemplo. Na linha 23, o falante L1 começa a articular a mesma palavra por
três vezes, antes de prosseguir com o discurso, e isso se repete novamente ainda na
mesma linha:
L2 eu lembro que você foi até pro Rio uma época L1 [ (na época eu disse) eu vou pro Rio... L2 éh:::
L1 quando eu fo/ ma / ma/ an/ antes de ir para o Rio eu diss/ ma/ an/ antes
Já na linha 27, a ocorrência não é tão “forte”, mas ainda sim bastante perceptível
para o ouvinte. No entanto, em ambos os casos, a ocorrência não prejudica a
compreensão do que é dito. Já na linha 88, há um caso em que o gaguejamento ocorre
em consecução com uma reconstrução sintática, impedindo assim a compreensão desse
trecho para os seus interlocutores:
L1 (era uma pessoa) muito inteligente...desastrado... desastrado El/ na vida ele foi
sempre (querer faz/ El/)ele tinha uma mentalidade um pouco fora da cidade... ele
gostava de
Por vezes, quando L1 gagueja (e também em outras ocasiões), ele se utiliza das
repetições, seja enquanto está em busca do termo que procura, seja para manter a posse
do turno, estratégia conhecida e observada com freqüência na fala de todos. Note-se que
as repetições, diferentemente das paráfrases, tem um caráter de automatismo
(Tannen:1985, apud Preti:1991, 47). Já as paráfrases, segundo Preti (Preti:1991),
necessitam de muito mais criatividade por parte do falante, sendo portanto menos
usadas na fala dos idosos. De fato, não há registros desta natureza no corpus. Vejamos
alguns casos de repetições: linhas 59, 56 e 69 (mesma informação), 100, 129. Nas linhas
56 e 69, a mesma informação é apresentada, sendo que na primeira aparição ela tem
caráter referencial, ou seja, é uma nova informação apresentada aos ouvintes.
Entretanto, na segunda aparição ela é apresentada dentro da seguinte estrutura sintática:
“...porque morreu em noventa/nós fomos lá em Cacha em noventa e cinco... um mês
depois que ele morreu”, onde novamente a informação aparece (talvez sem que L1 se dê
conta) e de novo ela é apresentada, como se o fato não fosse conhecido dos ouvintes. Na
linha 129, vemos que a repetição se alia ao gaguejamento:
L1 é Flávio... () eu já / eu já / eu já contei pra você que o pai do coronel Jorge Flávio... casou com uma irmã do Manoel Pinto () ... e eu / eu tinha o retrato
Isso mostra que há várias aparições de marcas discursivas que podem ocorrer
simultaneamente em um mesmo ponto, onde um fenômeno pode, na verdade, funcionar
como um gatilho para o outro.
Quanto às hesitações, Preti (1991:38) lembra que elas são fruto - não
unicamente, mas também - dos lapsos de memória, que por sua vez são conseqüência da
lentidão no processamento da informação:
Ao nível sintático, os exemplos 1 e 2 testemunham um número muito grande de
interrupções, além de frases com elementos subentendidos. [...]Agravando esses problemas, temos
os lapsos de memória que atingem o “vocabulário ativo”, que decresce com a idade. Eles se
manifestam, por exemplo, nos truncamentos, nas hesitações, nos alongamentos e nas pausas
freqüentes.”
Nas linhas 129, 216 e também em 12m51s (trecho não transcrito, mas disponível
no CD contendo a íntegra da gravação do diálogo) podemos identificar a aparição de
hesitações. Na linha 216, vemos um exemplo do que Preti disse sobre o lapso de
memória: o falante L1 hesita (e se vale também da repetição – quatro vezes o artigo
definido “o” é mencionado) enquanto procura pelo nome para dar continuidade ao seu
discurso:
L1 o/ o/...o/ o/ João Reis casou com a Naza/ com a Oracina
Preti (Preti, 1991:43) diz que o lugar mais comum para a aparição das hesitações,
gaguejamentos e pausas será justamente antes de sintagmas nominais e outros
substantivos ou nomes. Isso se deve às falhas da memória.
Descontinuidade Tópica
Do ponto de vista interacional, um diálogo tende a apresentar diversas mudanças
de tópico que ocorrem naturalmente ou são propostas por um dos falantes. De qualquer
modo, geralmente há uma marcação na mudança tópica, o que pode não acontecer na
fala dos idosos. Falaremos de um exemplo apenas, não transcrito, mas que pode ser
observado aos 14m57s do CD com o diálogo completo. No trecho, podem-se identificar
vários tópicos que não são desenvolvidos, mas apenas mencionados de passagem
durante o discurso. O falante primeiro menciona uma casa que pertencia a seu avô,
discorre sobre o motivo dele ter se desfeito da casa, coisas que ele desgostava, nova
casa comprada pelo avô, primeira vez que experimentou guaraná, características da
nova casa, novamente razão do avô ter vendido a casa (sino), e finalmente acaba falando
sobre os diferentes toques do sino aos 16min44s. Durante todo esse período, o falante
L2 e o Doc. interpelam o falante L1 pedindo alguns detalhes, porém não participam
ativamente na construção de material referencial para estes tópicos. Vale dizer que essa
característica está de certa forma ligada à característica da Narratividade na fala dos
idosos, que tratamos em outro momento, sendo este o motivo pelo qual nos
contentaremos em prover somente um exemplo.
Segmentos Parentéticos
Ainda dentro da observação da disposição tópica do diálogo, notamos em
diversos momentos o que Preti (Preti, 1991: 37) chama de segmentos parentéticos, que é
a interrupção brusca ou a sobreposição de tópicos, marca ligada também à narratividade
e à maior dificuldade dos idosos em centrarem-se no tópico (devido à deterioração das
capacidades psicofísicas). Segmentos parentéticos são caracterizados pela mudança de
tópico pela lembrança ou alusão a algum elemento que causam uma descontinuidade
tópica (Castilho:1998). O exemplo usado no item anterior (aos 16m44s da gravação),
mostra como os tópicos vão sendo puxados por uma palavra ou algum outro elemento
que compõe determinado tópico. O falante L1 fala primeiro sobre a casa que pertencia a
seu avô, onde o elemento lexical “avô” o leva a desenvolver o outro tópico: coisas que o
avô não gostava na casa, que por sua vez menciona o lugar onde experimentou guaraná
pela primeira vez e assim por diante.
Anacolutos
Como último elemento, mas não menos importante ou recorrente na fala dos
idosos, está o anacoluto. O dicionário Escolar da Língua Portuguesa2 define o termo
anacoluto como o “abandono de uma construção sintática iniciada para a adoção de
outra”. Como mencionado por Preti (Preti:1991,38) e já citado anteriormente, há uma
correlação entre as falhas da memória e a dificuldade e a lentidão no processamento das
informações por parte dos idosos, com o truncamento e os anacolutos presentes em seu
discurso. Desse modo, seria natural se encontrássemos os anacolutos onde já
verificamos haver hesitações, gaguejamentos, repetições, etc. De fato, há anacolutos nas
linhas 23,27, 68 e 100, usadas anteriormente como exemplos. Mas também há aparição
do fenômeno em diversos outros pontos, como nas linhas 54, 65, 95, 103, 155, 168,
199.Vejamos os exemplos das linhas 54:
L1 .... mas ess/ ess/ ele morreu
Também na linha 65:
L1 eu tenho ... eu tenho/ eu sou da::: /da idade do irmão dele... Arnaldo... e ele é da idade do
E por último na linha 95:
L1 el/ t/ tinha escrevia no jornal...()
Em todos estes exemplos, as construções sintáticas escolhidas inicialmente não
são terminadas, e depois da ruptura criada no discurso, uma nova estrutura aparecerá e
levará a cabo a execução da ideia inicial de outra maneira.
Como resultado, podemos concluir que ainda que L1, falante de 92 anos possua
uma performance excepcional dada a sua idade (aliás, sua performance é tão boa senão
melhor que a de muitos falantes mais novos), podemos identificar facilmente algumas
marcas bastante significativas e recorrentes em seu discurso, marcas da fala de um
idoso.
2 Dicionário Escolar da Língua Portuguesa / Academia Brasileira de Letras. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
Processo Interacional
Segundo Beth Brait, “A interação é um componente do processo de
comunicação, de significação, de construção de sentido e que faz parte de todo ato de
linguagem”; e devemos observar o texto verbal como “um jogo de representações em
que o conhecimento se dá através de um processo de negociação, de trocas, de normas
partilhadas, de concessões” (Brait, 1999 : 194).
Para isso, devemos levar em conta a situação em que o diálogo acontece, no
nosso caso, considerando os tipos de situações de interlocução propostos em sua análise,
temos uma “conversa informal, espontânea, travada entre amigos (parentes),
conhecidos, sem preparação prévia” (Brait, 1999 : 205), e isso ocorre dentro de uma
situação de comunicação direta, de interação face a face, onde a informante L2
encontra-se na residência de L1 por convite deste.
Ainda é importante ressaltar os traços caracterizadores dos participantes, que
entre outros pontos distintivos, possuem uma grande diferença de faixa etária; a
consideração desse atributo dentro do diálogo é altamente relevante na constituição do
fator hierárquico, pois, como o tópico principal do trecho analisado é a história dos
antepassados dos informantes, acaba sendo natural que L1 tenha mais acesso a
lembranças e recordações do que L2, já que aquele possui uma idade muito mais
avançada que este e testemunhou pessoalmente muitas dessas histórias, com isso L1
exerce um maior domínio sobre a conversa.
Na maior parte da narrativa de L1, o informante L2 limita-se a exprimir
sobreposições, repetições e a usar marcador ahn-han; esses recursos refletem sua
atenção, solidariedade e cooperação à construção do ato conversacional de L1, como
pode ser visto no trecho da linha 13 até a linha 20 da transcrição, em que L1 revela a L2
o contato que teve com sua parenta:
L1 há uns dois anos atrás... essa moça me telefonou... disse que era minha [ [
15 L2 Ahn-han Ahn-hanL1 parenta... tinha vontade de me conhecer... disse olha com muito prazer
[L2 Ahn-hanL1 mas agora não falei pra ela porque eu não tô passando bem...eu tava com
um negócio na perna né que não podia andar direito 20 L2 eu lembro que você foi até pro Rio uma época
Ainda demonstrando a hierarquia existente nesse texto oral, vale notar que as
sugestões das propostas dos sub-tópicos, ou temas, praticamente ocorrem apenas diante
da aceitação de L1, como exemplo a interrupção feita por L2 no turno de L1 (linha 76
da transcrição), ao indagá-lo sobre quem seria o parente que morava em São Paulo,
enquanto no momento ele relembrava passagens da vida do seu primo mais querido que
havia morrido:
L1 a morte do Paulo pra mim... foi muito penosa... porque morreu em noventa/nós fomos lá em Cacha em noventa e cinco... um mês depois que
70 ele morreu [L2 Ahn-hanL2 (...)ele / ele morava aqui em São Paulo?
[L1 Não / não lá
75 [L2 Não... quem que morava
aqui em São Paulo?[
L1 (...) ele me procurava ele telefonava e eu sabia de tudo por causa 80 dele... () caiu aquela
[L2 o:::lha que legalL1 ponte hein:::... pessoal brigou com sicrano (sabia de tudo)
[85 L2 ((risos)) contava as fofoca toda ((risos)) não ficou mais
sabendo... desligou de Cacha ((risos))
A pergunta foi totalmente ignorada por L1 que continuou elaborando seu texto.
Com isto, coube a L2 cooperar com L1 e demonstrar interesse no assunto que já estava
em andamento.
A forma como esses aspectos aparecem na sequência textual é que dimensiona o
maior ou menor grau de simetria ou assimetria do processo interacional, conforme a
autora expõe (Brait, 1999 : 207).
Ela também afirma que “para que a troca de turnos aconteça é indispensável um
tema, “alguma coisa” para qual a conversa possa convergir, que dê motivos para a
continuação do evento interacional e tenha um desenvolvimento graças ao esforço de
cada um dos participantes.” (Brait, 1999 : 209)
Pela análise do processo interacional do nosso texto oral, podemos confirmar
que os falantes não somente trocam informações e expressam ideias, mas também
constroem o texto juntos, desempenhando papéis que, como exposto acima, lembram
uma partida de um jogo, visando à atuação de um participante sobre o outro.
Narratividade
O diálogo analisado tem forte presença de histórias do passado, em geral
envolvendo recordações sobre parentes. Como um dos principais tópicos da conversa
como um todo é justamente a genealogia familiar, esse tipo de narratividade evocando
situações de outras épocas já apareceria com frequência.
Além disso, um dos informantes, L1, é um chamado “idoso velho”, de acordo
com a definição de Dino Preti (Preti, 1991: 16) já explicada anteriormente. Nesses
casos, Preti aponta que um elemento importante dos diálogos dos “idosos velhos” é a
presença de narrativas, em geral rememorando passagens de outras épocas. O autor
discute várias definições de narrativa, enfatizando que um ponto comum entre elas é que
“o texto deve recapitular eventos do passado” (Preti, 1991: 104).
O diálogo analisado corrobora os estudos realizados por Preti. Em vários
momentos, o informante L1 conta alguma história, muitas vezes envolvendo parentes e
suas ações em tempos idos. Preti nota que é importante lembrar que:
“as narrativas na conversação se apresentam como unidades definidas,
momentos em que o narrador ou falante tem a posse do turno e as interrupções que
possam ocorrer, embora não sejam normais, se apresentam predominantemente como
contribuições por meio das quais o ouvinte demonstra que continua exercendo seu papel
de ouvinte e, portanto, não está reivindicando a palavra” (Preti, 1991: 104).
Temos vários exemplos disso, no trecho analisado. Em um deles, L1 começa a
contar como foi seu contato com Ana Flávia Caran(i) de Moraes, prima de L2. Quando
está lembrando que Ana Flávia ligou para ele, tentando marcar de se encontrar (linha
13), L1 disse que estava com um problema na perna e precisaria adiar esse encontro
(linhas 16 e 19). L2, com posse de outras informações que ainda não tinham sido
mencionadas por L1, disse que “eu lembro que você foi até pro Rio uma época” (linha
20), citando mais um fato que dificultou esse encontro de L1 com a prima dela. Em
seguida, L1 retoma a história de seu contato com Ana Flávia, dizendo que foi de fato
para o Rio de Janeiro, mas antes disso havia se comprometido a encontrá-la:
L1 há uns dois anos atrás... essa moça me telefonou... disse que era minha [ [
15 L2 Ahn-han Ahn-hanL1 parenta... tinha vontade de me conhecer... disse olha com muito prazer
[L2 Ahn-hanL1 mas agora não falei pra ela porque eu não tô passando bem...eu tava com
um negócio na perna né que não podia andar direito 20 L2 eu lembro que você foi até pro Rio uma época
[
L1 (na época eu disse) eu vou
pro Rio...
Ou seja, L2 interrompeu a narrativa de L1, mas apenas citando um fato que ela
julgou importante para que a história dessa tentativa de encontro entre L1 e Ana Flávia
fosse contada. Logo em seguida ao comentário de L2, L1 utiliza esse dado para
continuar sua narrativa do (des)encontro entre ele e Ana Flávia.
Baseando-se em formulações teóricas anteriores, Preti explica, inicialmente, que
a narrativa pode se apresentar de três maneiras distintas na interação: por meio de uma
reprodução, de uma notícia ou de uma afirmação (Preti, 1991: 104 e 5). A narrativa tipo
reprodução em geral baseia-se em fatos que acabaram de ocorrer, “em que o falante
traria a realidade recém-ocorrida para o presente” (Preti, 1991: 105). Já a notícia traria
fatos mais distantes no tempo, sintetizando-os, “colocando em destaque apenas o
essencial” (Preti, 1991: 105). Já a narrativa tipo afirmação teria distanciamento ainda
maior no tempo e um caráter sintético. O próprio autor, porém, questiona se o fator
distanciamento no tempo pode identificar os vários tipos de narrativas na interação.
“Conforme veremos, na conversação de idosos, mecanismos de memória podem trazer
para a reprodução fatos muito distanciados no tempo” (Preti, 1991: 105), lembra ele.
Preti prefere enfocar “um fator mais atuante, de ordem interacional”, ou seja, a
“conveniência de reproduzir, reviver, refazer certos fatos”, levando em conta a
experiência do narrador “e as expectativas do ouvinte” (Preti, 1991: 106).
O diálogo analisado mostra um “idoso velho” em geral hábil para detectar essa
conveniência, a partir do contexto. Em vários momentos, partindo de dados fornecidos
por L2 sobre parentes em comum, ou pessoas que ela conheceu em visitas à cidade, L1
recorda histórias que envolvem as pessoas citadas, mas sem narrativas exaustivas,
dando fluência ao diálogo. Em vários momentos, aliás, L2 participa dando informações
e fazendo relações entre essas pessoas, também estimulando a fluência do diálogo.
L2, por exemplo, em dado momento diz que gostaria de “fazer uma ligação”
(linha 120) entre alguns de seus antepassados. A partir do nome de alguns deles ditos
por ela, L1 questiona se Flávio Antônio de Moraes “é o pai do coronel Jorge Flávio”.
Segue-se então um animado diálogo, com várias trocas de turno, demonstrando o
interesse de ambos. Quando L2 cita, por exemplo, “esse monte de Flávio...” (linha 127),
L1 assalta o turno e prossegue, perguntando se “já contei pra você que o pai do coronel
Jorge Flávio...casou com uma irmã do Manoel Pinto” (linha 129), e seguem-se então
mais algumas trocas de informações:
120 L2 isso... eu tava querendo fazer uma ligação... porque eu tenho dois
Moraes... assim dois ramos de Moraes... eu tenho esse do an/ do do José
Flávio de Moraes que era filho... do Flávio Antônio de Moraes... lá de
Lavras... que eu descobri
L1 esse é o pai do coronel Jorge Flávio?
125 L2 é avô do coronel Jorge Flávio... era Flávio Antônio de Moraes... que eu
[
L1 avô do coronel Jorge Flávio
L2 acho que é daí que vem esse monte de Flávio... () esses Flávios todos
[
130 L1 é Flávio... () eu já / eu já / eu
já contei pra você que o pai do coronel Jorge Flávio...
Não há no diálogo analisado, porém, um aspecto citado por Preti como comum
nas conversas envolvendo um idoso e outra pessoa mais jovem, quando o mais velho
sutilmente se autovaloriza (Preti, 1991: 110), como uma estratégia de preservar sua
face, dizendo nas entrelinhas que os tempos antigos eram melhores. L1 frequentemente
faz alusão a fatos do passado, mas em nenhum momento tece comparações entre aquele
tempo e o atual, limitando-se a contar histórias que podem interessar a L2 e ao
documentador. Outro item citado por Preti que não aparece no diálogo registrado é o
uso de arcaísmos. L1, um falante bastante culto, mostra um domínio de diferentes
registros, pois evita um discurso empolado, preferindo um registro adequado a uma
conversação informal, com familiares e/ou amigos, realizada em sua própria casa.
Nesse caso, o exemplo de L1 está de acordo com a afirmação de Ataliba
Teixeira de Castilho e Dino Preti, segundo a qual são os falantes cultos que “possuem
maior consciência da variação linguística e de sua adequação à grande diversidade de
situações de comunicação” (CASTILHO & PRETI, 1987: 3).
Considerações Finais
A análise realizada neste trabalho corrobora e exemplifica estudos anteriores que
enfocaram a fala dos idosos. Como notou Dino Preti e conforme discutido
anteriormente, as características das falas desse grupo populacional não são
essencialmente diferentes das dos mais jovens, variando apenas em uma questão de
ênfase, em pontos como descontinuidades, anacolutos, presença de narrativas, entre
outros já citados.
Há, em uma parcela dos grupos mais jovens, certo preconceito diante da fala
dos idosos, vista por aqueles como lenta, desconexa ou excessivamente centrada no
passado. Acreditamos que, com o estudo desse tipo de fala, é possível desmistificar essa
visão e entender melhor as características do falar dos mais velhos, que se de fato
podem ter algumas dificuldades extras para se comunicar, não deixam de ter muito a
ensinar e a trocar com as gerações posteriores. Portanto, a desmistificação, a
compreensão e o respeito pela fala dos idosos só pode ser benéfica não somente para os
idosos, mas para toda a sociedade.
Referências Bibliográficas:
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São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1999 – 4ª edição. (Projetos Paralelos:
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CASTILHO, Ataliba Teixeira de, PRETI, Dino (orgs.). “Apresentação”. In: “A
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