3
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Educação História da escolarização brasileira e processos pedagógicos. Turma C Professora Simone Valdete dos Santos Trabalho final da disciplina Aluna: Rossana Saute Kolodny A Maquinaria e a Contra-Maquinaria Escolar Sem dúvida, os assuntos abordados na disciplina que mais me chamaram a atenção foram o texto sobre a “maquinaria escolar”, que trouxe um panorama do porquê do modelo educacional atual, já que seguimos certas tradições de maneira alienada, o educador João Amós Comenius e sua revolucionária Didactica Magna, cujos princípios encantam-nos e instigam-nos a pensar no fazer docente no sentido da universalização da educação de qualidade e, por fim, a Escola da Ponte, que é uma espécie de materialização, de realização efetiva de alguns princípios comenianos, certamente uma reação à maquinaria escolar que perdura até hoje na maioria das escolas. Meu esforço será correlacionar aqui esses três assuntos. Vimos com o texto da maquinaria que o modelo escolar atual muito se assemelha àquele nascido da ruptura com o modelo medieval de pedagogia. Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, com o surgimento da nova classe, nomeadamente a burguesia comercial e suas novas necessidades, houve também uma transformação no modo de ensino: se antes a comunidade trabalhava junta num tipo de trabalho (corporações de ofícios) em que as crianças não eram separadas dos adultos, em que estas aprendiam com base na prática e na socialização do aprendizado, agora, com a sociedade burguesa e com os colégios, os jovens são isolados da sociedade, da família e de outros jovens pertencentes a outras faixas etárias. Note- se que isso não teria sido possível sem a noção incipiente de infância, que mais tarde, conforme vimos nas aulas em apresentações, por exemplo, sobre Cecília Meireles, adquiriria definições bem mais sofisticadas, uma vez que o bambino denotaria uma fase específica da vida na qual a formação do indivíduo adquire modificações muito específicas, necessitando, portanto, de uma educação na qual os educadores não percam de vista a fase de desenvolvimento em que as crianças (e não os “pequenos adultos”) encontram-se. Voltando ao nosso assunto, os colégios significaram um “enclausuramento” das crianças (é assustador falar isso e perceber que quase nada mudou). Os ensinamentos não mais relacionavam-se ao saber prático; apenas depois dos estudos, chegando à fase adulta, os jovens poderiam “voltar à vida real” e profissionalizar-se (reiterando: nada mudou). Fazendo um salto no tempo, vemos que depois, com a Revolução Industrial e suas consequências, a educação tornou-se uma oportunidade para instruir a classe operária. Nesse sentido, a educação seriviria como um suporte à manutenção do sistema político-econômico. Era (e é) uma educação que vem de cima para baixo; é uma educação impositiva, que não leva em consideração, quase nunca, os saberes populares (igual aos colégios dos jesuítas). Enfim, percebemos que, mesmo passando da Idade Moderna à Idade Contemporânea, as raízes do nosso sistema educacional permanecem nítidas.

Trabfinal rossana

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Trabfinal rossana

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Faculdade de Educação – História da escolarização brasileira e processos pedagógicos. Turma C

Professora Simone Valdete dos Santos

Trabalho final da disciplina

Aluna: Rossana Saute Kolodny

A Maquinaria e a Contra-Maquinaria Escolar

Sem dúvida, os assuntos abordados na disciplina que mais me chamaram a atenção

foram o texto sobre a “maquinaria escolar”, que trouxe um panorama do porquê do modelo

educacional atual, já que seguimos certas tradições de maneira alienada, o educador João

Amós Comenius e sua revolucionária Didactica Magna, cujos princípios encantam-nos e

instigam-nos a pensar no fazer docente no sentido da universalização da educação de

qualidade e, por fim, a Escola da Ponte, que é uma espécie de materialização, de realização

efetiva de alguns princípios comenianos, certamente uma reação à maquinaria escolar que

perdura até hoje na maioria das escolas.

Meu esforço será correlacionar aqui esses três assuntos.

Vimos com o texto da maquinaria que o modelo escolar atual muito se assemelha

àquele nascido da ruptura com o modelo medieval de pedagogia. Na transição da Idade Média

para a Idade Moderna, com o surgimento da nova classe, nomeadamente a burguesia

comercial e suas novas necessidades, houve também uma transformação no modo de ensino:

se antes a comunidade trabalhava junta num tipo de trabalho (corporações de ofícios) em que

as crianças não eram separadas dos adultos, em que estas aprendiam com base na prática e na

socialização do aprendizado, agora, com a sociedade burguesa e com os colégios, os jovens são

isolados da sociedade, da família e de outros jovens pertencentes a outras faixas etárias. Note-

se que isso não teria sido possível sem a noção incipiente de infância, que mais tarde,

conforme vimos nas aulas em apresentações, por exemplo, sobre Cecília Meireles, adquiriria

definições bem mais sofisticadas, uma vez que o bambino denotaria uma fase específica da

vida na qual a formação do indivíduo adquire modificações muito específicas, necessitando,

portanto, de uma educação na qual os educadores não percam de vista a fase de

desenvolvimento em que as crianças (e não os “pequenos adultos”) encontram-se.

Voltando ao nosso assunto, os colégios significaram um “enclausuramento” das

crianças (é assustador falar isso e perceber que quase nada mudou). Os ensinamentos não

mais relacionavam-se ao saber prático; apenas depois dos estudos, chegando à fase adulta, os

jovens poderiam “voltar à vida real” e profissionalizar-se (reiterando: nada mudou).

Fazendo um salto no tempo, vemos que depois, com a Revolução Industrial e suas

consequências, a educação tornou-se uma oportunidade para instruir a classe operária. Nesse

sentido, a educação seriviria como um suporte à manutenção do sistema político-econômico.

Era (e é) uma educação que vem de cima para baixo; é uma educação impositiva, que não leva

em consideração, quase nunca, os saberes populares (igual aos colégios dos jesuítas).

Enfim, percebemos que, mesmo passando da Idade Moderna à Idade Contemporânea,

as raízes do nosso sistema educacional permanecem nítidas.

Page 2: Trabfinal rossana

Tendo-se isso tudo em mente, surpreendi-me ao estudar o educador Comenius,

considerado o pai da pedagogia (não por acaso, pois, apesar de sua proposta basear-se em

suas motivações religiosas, a “antropologia teológica” comeniana foi pioneira no pensamento

crítico acerca da atuação do professor a fim de promover o pleno desenvolvimento dos

alunos).

Não sei se posso dizer que suas ideias são o oposto da maquinaria escolar, mas, com

certeza, elas propõem uma ruptura com aquele modo de educação alienadora, já que,

segundo o educador, todos os homens estão aptos a aprender tudo, e nesse “aprender tudo”,

existe a noção de aprender com qualidade. Em um trecho de sua principal obra, por exemplo,

Comenius comenta que as ciências devem ser entendidas pelos alunos de maneira que os

mesmos sintam-se seguros quanto ao próprio conhecimento, nem que para isso seja

necessário um esforço de muito tempo empregado pelo professor. Este, aliás, teria, com a

Didactica Magna, os ensinamentos sobre as condições necessárias para que se pudesse ensinar

com qualidade, mesmo que a sala de aula contivesse cem alunos para apenas um professor.

Comenius, diga-se de passagem, representa o contraste que vimos com o texto da

maquinaria: a reforma protestante é a favor da escolarização, para que todos pudessem ler os

textos sagrados (até por essa razão, foram traduzidos do latim para as línguas vernáculas,

começando pelo alemão). Em sua obra, o autor cita que o caminho para a correção da

corrupção humana, com o amor e a correspondência homem-Deus acima de tudo, é a

educação. Comenius, portanto, como pastor protestante que era, não distinguia o pensamento

pedagógico do teológico e vice-versa. Muito diferente da maquinaria escolar, em que a

educação legitima a opressão, a proposta educacional comeniana relaciona-se ao pleno

desenvolvimento de todos os seres humanos, não importando gênero ou classe social.

Por fim, mas nem tão fim assim, temos um exemplo atual de oposição à maquinaria

escolar: a Escola da Ponte, localizada na Vila das Aves, Distrito do Porto (Portugal), cuja

proposta relaciona-se ao desenvolvimento da autonomia intelectual dos alunos. Para que isso

ocorra, a escola promove uma assembleia, na qual, através de decisões democráticas, os

alunos, junto aos professores, decidem e votam medidas de solução para os problemas na

escola, bem como a definição dos direitos e deveres que os alunos consideram fundamentais

para o ano letivo. Já aí percebemos a preocupação da Escola da Ponte na formação da

consciência e participação cidadã dos alunos (estes são considerados futuros agentes

modificadores da sociedade, e não reprodutores de um modelo de sociedade que tende à

exclusão).

Além dessas assembleias, os alunos também reúnem-se em debates mais informais,

todos os dias, em favor da auto-avaliação por parte dos alunos acerca das suas atividades.

Quanto aos conteúdos, os alunos reúnem-se em grupos de estudo conforme sua área

de interesse, realizando trabalhos de pesquisa orientados pelos professores.

Isso tudo serve para comprovar os princípios da Escola da Ponte (parecidos com os

princípios comenianos), como, por exemplo, o de “assumir a Escola como formação social em

interação com o meio envolvente e outras formações sociais” e o de “formar cidadãos cada

vez mais cultos, autônomos, responsáveis e solidários e democraticamente comprometidos na

construção de uma sociedade que potencie a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades

de cada ser humano” (este último mais “comeniano” ainda). Em adição a isso, mais uma

relação da Escola da Ponte com os princípios da Didactica Magna faz-se presente: enquanto,

Page 3: Trabfinal rossana

para o pedagogo do século XVII, o ensino, a moral e a piedade são indissociáveis, para a Escola

da Ponte, o ensino, a moral e a solidariedade são indissociáveis.

Nota: os princípios da Escola da Ponte citados provêm do site oficial da mesma.

Quanto à atuação dos professores na Escola da Ponte, esta propõe núcleos de

aprendizagem, baseados nas dimensões linguística, lógico-matemática, naturalista, identitária

(estudos sociais), artística e pessoal & social. Com isso, vemos que, mesmo que os alunos

escolham um ou outro assunto para pesquisar nos seus núcleos, a Escola não deixa de

correlacionar os saberes, de modo que seus alunos sejam contemplados em todas as áreas do

conhecimento. Isso é tão verdade que José Pacheco, o fundador da Escola da Ponte, na

entrevista que vimos em aula, comenta que quando os alunos de sua escola vão para outras

escolas, acabam sendo excelentes alunos (mesmo os que entraram na Escola da Ponte em

situações desfavoráveis, conseguem “recuperar” sua essência no que diz respeito à capacidade

inerente ao ser humano de aprender (Comenius sussurrando nos nossos ouvidos)).

Considerações finais:

Não pretendo, de forma alguma, encerrar o assunto com esta breve análise acerca dos

assuntos de que mais gostei durante a disciplina. No entanto, o maior aprendizado que tive até

agora com eles é a minha nova percepção acerca da relação docente-discente, impossível de

ser percebida com minha antiga imersão inconsciente no modelo escolar proveniente da

tradição da “maquinaria”; com Comenius e com a Escola da Ponte, vislumbrei as possibilidades

de ruptura com o senso-comum da escolarização com o objetivo de se explorar e incitar a

capacidade intelectual dos alunos tanto no âmbito das ciências quanto na vida social

participativa, que deveria ser o motivo principal da educação.

Referências:

Texto “Maquinaria Escolar”

João Amós Comenius. Didactica Magna.

Site da Escola da Ponte: http://beta.escoladaponte.com.pt/