Transportes e Formacao Regioal

Embed Size (px)

Citation preview

TRANSPORTES E FORMAO REGIONALContribuies histria dos transportes no Brasil

ALCIDES GOULARTI FILHO PAULO ROBERTO CIM QUEIROZ(Organizadores)

20111

Universidade Federal da Grande Dourados COED: Editora UFGD

Coordenador Editorial : Edvaldo Cesar Moretti Tcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho Redatora: Raquel Correia de Oliveira Programadora Visual: Marise Massen Frainer e-mail: [email protected] Conselho Editorial - 2009/2010 Edvaldo Cesar Moretti | Presidente Wedson Desidrio Fernandes | Vice-Reitor Paulo Roberto Cim Queiroz Guilherme Augusto Biscaro Rita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti Rozanna Marques Muzzi Fbio Edir dos Santos Costa

Impresso: Grfica e Editora De Liz | Vrzea Grande | MT

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD380.50981 T772 Transportes e formao regional : contribuies histria dos transportes no Brasil / Alcides Goularti Filho, Paulo Roberto Cim Queiroz (organizadores). Dourados : Ed. UFGD, 2011. 462p. ISBN - 978-85-61228-90-3 Possui referncias. Textos de vrios autores. 1. Transportes terrestres Brasil. 2. Transportes terrestres Desenvolvimento econmico. I. Goularti Filho, Alcides. II. Queiroz, Paulo Roberto Cim.

2

SUMRIONota dos organizadores Apresentao Flvio Saes Acumulao de capitais e sistemas de transportes terrestres no Brasil Ivanil Nunes A rota Araguaia-Tocantins de comunicao mercantil entre Gois e Belm do Par 1846/1967 Dulce Portilho Maciel Goianos e paulistas na integrao econmica de Gois Paulo Roberto Oliveira Caminhos e fronteiras: vias de transporte no extremo oeste do Brasil Paulo Roberto Cim Queiroz As ferrovias do Nordeste entre os limites econmicos e a poltica de controle e ocupao do interior do pas Jos Vieira Camelo Filho-Zuza Uma estrada de ferro da Bahia ao Rio So Francisco: controle poltico, integrao e economia regional (sculos XIX-XX) Robrio Santos Souza A reconcentrao dos fluxos e as mudanas da rede urbana do Recncavo da Bahia nos sculos XIX e XX Francisco Antnio Zorzo e Rafael Rodas Veras Filho 5 7

11

41

79

99

139

181

219

Transportes e finanas pblicas: contribuio para o estudo do lugar do dispndio em infra-estrutura viria nos oramentos provinciais e municipais de Minas Gerais, 1835-1889 Lidiany Silva Barbosa, Marcelo Magalhes Godoy e Philipe Scherrer Mendes Consideraes sobre o transporte pr-ferrovirio em So Paulo Guilherme Grandi Domnios do caf: ferrovias, exportao e mercado interno em So Paulo (1888-1917) Pedro Geraldo Tosi e Rogrio Naques Faleiros Navegao do rio Mogi-guau: a dinmica do mercado interno regional na rbita da economia cafeeira (1883-1903) Hilrio Domingues Neto Os meios de transporte e o desenvolvimento da economia paranaense at meados do sculo XX Armando Dalla Costa e Felipe Athia Padro de crescimento e sistema de transportes em Santa Catarina 1880-1945 Alcides Goularti Filho O movimento de integrao espacial e econmica da regio do Rio Grande do Sul, durante a Primeira Repblica (1889-1930) Ronaldo Herrlein Jnior e Gabriel Langie Pereira Sobre os autores

237

269 299

335

363

383

415

457

NOTA DOS ORGANIZADORESA bibliografia sobre a histria dos transportes no Brasil , sabidamente, ainda muito rarefeita. Existem, por certo, muitos novos trabalhos os quais, entretanto, quando no permanecem inditos, encontram-se dispersos em anais de congressos e peridicos especializados. Trata-se aqui, contudo, de um tema relevante em termos no apenas acadmicos como tambm polticos. Vivemos hoje, de fato, um momento em que se discute no Brasil a implantao ou ampliao de diversas rotas e eixos virios caso, por exemplo, das ferrovias Transnordestina, NorteSul e Ferroeste, das hidrovias Tiet-Paran e Paran-Paraguai e outras. Tal momento parece-nos, portanto, especialmente oportuno para a divulgao de anlises de experincias histricas que possam, talvez, auxiliar na discusso e implementao das polticas pblicas na rea dos transportes. Os autores aqui reunidos pesquisadores universitrios ligados s mais diversas instituies brasileiras e com larga experincia no campo abordado pertencem, em sua maioria, ao grupo de pesquisas intitulado precisamente Formaes econmicas regionais, integrao de mercados e sistemas de transportes, cadastrado no CNPq e por ns liderado. Nesse sentido, sua contribuio insere-se fortemente no mbito da problemtica, extremamente atual, da integrao de mercados regionais. Tal problemtica, por sua vez, aqui encarada no apenas pela ptica da Histria Econmica, mas levando em conta tambm, entre outros aspectos, os importantes contornos polticos das diversas experincias e tentativas de integrao contornos esses associados, por exemplo, s idias de ocupao e controle dos ditos sertes interiores do pas. No trabalho de organizao, esforamo-nos por dar a esta coletnea um carter o mais abrangente possvel, e acreditamos hav-lo conseguido. 5

As contribuies enfeixadas neste volume versam, efetivamente, experincias de variadas regies brasileiras, do norte-nordeste ao centro-sul. Os diferentes estudos apresentam, por sua vez, distintos graus de abrangncia. Temos, assim, textos que lanam uma mirada mais ampla, seja em termos espaciais ou cronolgicos (caso, por exemplo, dos captulos 1 e 5). Os demais, por seu turno, procuram focar regies, perodos ou mesmo processos histricos mais especficos renunciando, portanto, amplitude em favor da profundidade da anlise. Convm assinalar que no buscamos, para a composio da coletnea, uma estrita uniformidade de enfoques terico-metodolgicos entre os diversos captulos. Consideramos suficiente o fato de que todos eles se fundamentam em slidas evidncias empricas, visto que, resguardado esse princpio bsico, a diversidade de enfoques nos parece extremamente salutar. Manifestamos nossos agradecimentos a todos/as os/as autores, pelo entusiasmo com que atenderam ao nosso convite e se dispuseram a efetuar eventuais ajustes e correes em seus textos; Editora da UFGD, pela oportunidade dessa publicao, e a seus pareceristas annimos, pelas sugestes e recomendaes; e, de modo especial, ao Prof. Flvio Saes, que sempre nos incentivou neste empreendimento. Esperamos, enfim, que este livro possa despertar a ateno dos interessados no apenas no conhecimento de nossa rica e multifacetada histria econmica como no delineamento de polticas capazes de compreender o complexo sistema brasileiro de transportes e de nele intervir do modo mais adequado.

Alcides Goularti Filho e Paulo Roberto Cim Queiroz Maio 2010

6

APRESENTAOAt recentemente, nossa historiografia econmica tinha dado pouca ateno aos meios de transporte, privilegiando as atividades produtivas, em especial as voltadas ao mercado externo; acar, ouro, caf, borracha e algodo foram alguns dos produtos mais extensamente estudados em vrios de seus aspectos. certo que alguns historiadores produziram obras notveis sobre os transportes no Brasil: correndo o risco de omitir estudos importantes, podemos citar Capistrano de Abreu (Caminhos antigos e povoamento do Brasil), Srgio Buarque de Holanda (Mones), Jos Alpio Goulart (Tropas e tropeiros na formao do Brasil) e Ademar Benvolo (Introduo Histria Ferroviria do Brasil). Porm, o conhecimento mais amplo da histria dos transportes no Brasil era bastante restrito. A partir dos anos setenta do sculo XX, com a instalao dos cursos de ps-graduao, houve um aumento significativo do nmero de pesquisas sobre nossa histria econmica. Embora os temas preferenciais agricultura de exportao, minerao e tambm indstria absorvessem grande parte do esforo de pesquisa dos ps-graduandos, novos objetos passaram a receber ateno. E os meios de transporte foram um desses novos temas de pesquisas que geraram dissertaes e teses. As estradas de ferro, mais do que os outros meios de transporte, atraram a ateno dos pesquisadores. Em parte, porque sua documentao era de mais fcil acesso uma vez que as ferrovias haviam se constitudo como empresas obrigadas a publicar relatrios, balanos etc. Mas tambm porque a maior parte das ferrovias havia se constitudo em funo de uma produo exportvel. Nesse quadro, o sistema de transportes, em particular ferrovias e portos, aparecia como um complemento daquela economia exportadora que, de certo modo, era o foco central dos estudos de nossa histria econmica. 7

Mas os pesquisadores tambm comearam a explorar outras realidades, em especial uma produo voltada ao mercado interno e fluxos comerciais e financeiros que escapavam ao circuito tpico da economia exportadora. E a essas realidades corresponderiam necessidades de transportes que no eram supridas pelos meios disponveis para a economia exportadora, induzindo os pesquisadores a investigar a peculiaridade desse transporte. Ou ento, como o meio de transporte a servio da exportao podia tambm atender s necessidades do mercado interno. Em suma, foi possvel identificar situaes em que um meio de transporte podia no s servir a uma produo j existente, mas tambm fazer germinar novas atividades. Alm disso, a continuidade da pesquisa permitiu explorar outros aspectos dos meios de transporte alm daquele que lhe inerente: o deslocamento de mercadorias das reas produtoras para os locais de consumo, seja ele consumo produtivo (por exemplo, de matrias-primas) ou consumo final (por exemplo, de alimentos). Um pequeno trecho da obra de Fernando de Azevedo sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil citado no artigo de Paulo Roberto Cim Queiroz sintetiza as mltiplas perspectivas sob as quais podemos observar os meios de transporte (ou de comunicao):pelas vias de comunicao, de qualquer tipo ou natureza, no somente se realizam as trocas comerciais e econmicas, se provm de recursos e gneros alimentcios as populaes urbanas, se estabelece a ligao entre os centros de consumo e os de produo, se atende s comunicaes dos exrcitos, ao transporte e ao abastecimento de tropas, como ao trfico internacional de viajantes, mas tambm se produz e se intensifica a propagao de idias e de culturas diferentes, se fecundam as civilizaes, umas pelas outras [...]. No so, pois, somente as mercadorias, os artigos de comrcio, os produtos, mas a lngua, a cultura, as idias e os costumes que circulam ao longo dos caminhos.

A histria dos meios de transporte no Brasil passou a ser vista sob vrias ticas que, sem ignorar seu fundamento econmico, permitem entender a complexidade da constituio de um sistema de transportes. 8

Os textos reunidos nesta coletnea Transportes e Formao Regional (Contribuies histria dos transportes no Brasil) organizada por Alcides Goularti Filho e Paulo Roberto Cim Queiroz, tm a virtude de trazer ao leitor algumas dessas mltiplas perspectivas. H textos que nos remetem aos meios de transportes para as economias exportadoras; outros procuram mostrar como esses meios atenderam s necessidades do mercado interno. H aqueles que apontam elementos polticos presentes na definio de certos meios de transportes, seja na perspectiva da consolidao do territrio nacional, seja sob a tica do poder local. H tambm textos que identificam a forma pela qual os meios de transporte induziram mudanas significativas na organizao da economia de uma determinada regio; e outros que mostram como esse objetivo acabou sendo frustrado pela ausncia de condies produtivas mnimas para a dinamizao da regio. O leitor identificar facilmente essas diferentes perspectivas nos catorze artigos reunidos na coletnea. Mas tomo a liberdade de sugerir ao leitor uma questo adicional que acredito estar situada como um pano de fundo para os textos aqui reunidos e que diz respeito prpria histria dos transportes no Brasil. Recorro a Caio Prado Jnior quando identifica, primeiro, uma tendncia formao de um sistema de comunicaes internas no comeo do sculo XIX:[...] o estabelecimento de um sistema geral de comunicaes internas, que englobasse o pas todo, aparece em princpios do sculo XIX como uma tendncia muito ntida. Verificamo-lo em particular, neste ndice que o da orientao seguida no estabelecimento das linhas do correio, que comea a se organizar desde os ltimos anos do sculo XVIII. interessante notar como, via martima, se prefere a interior. [...] Mais interessante em nosso caso, e bem indicativo do ponto que ora nos ocupa, o dos correios entre o Rio de Janeiro e o Par. Organizados em 1808, em vez de seguirem a via martima, que se considerou muito demorada, escolhem o trajeto pelo centro da colnia, passando por Gois e aproveitando a via fluvial do Tocantins. Seriam mais ou menos 280 lguas por terra e 250 pelo rio.

9

Mas esta tendncia foi superada no sculo XIX por uma inovao nos meios de transporte:No correr do sculo XIX esta tendncia para a formao de um sistema de comunicaes internas ser decididamente desbancada pela introduo do vapor na navegao. A via de cabotagem voltar a ser articulao geral nica do territrio brasileiro, e retorna-se ao primitivo sistema do incio da colonizao: uma via martima, espinha dorsal das comunicaes do pas, em que se vm articular as vias de penetrao perpendiculares ao litoral, desligadas inteiramente umas das outras. Fragmenta-se assim novamente a estrutura territorial brasileira, embora com menos gravidade que no passado, pois a navegao a vapor j viera substituir as precrias comunicaes martimas de ento1.

Creio que a histria dos transportes no Brasil, em especial nos sculos XIX e XX (e talvez at hoje), organize-se em torno dessa dicotomia: a permanncia secular das vias de penetrao perpendiculares ao litoral e o esforo pela constituio de um sistema de comunicaes interior que possa articular as diferentes regies do pas. Uma dicotomia que vai muito alm dos aspectos estritamente econmicos pelas implicaes polticas, sociais e at mesmo culturais que lhe so inerentes. O leitor poder avaliar em que medida essa dicotomia se situa como um pano de fundo dos textos includos nesta coletnea e tambm o quanto ela ainda est presente nos desafios que o desigual e precrio sistema de transportes brasileiro apresenta at hoje.

So Paulo, maio 2010 Flvio Saes Professor do Departamento de Economia da FEA/USP

1 PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil contemporneo (colnia). 9. ed. So Paulo: Brasiliense, 1969, p. 264-265.

10

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASILIvanil Nunes

IntroduoO desenvolvimento da infraestrutura implantada em toda a histria dos transportes no Brasil esteve e est relacionado s estratgias dos grupos sociais e polticos hegemnicos localizados nos principais espaos econmicos do pas, que a implantam e dela se utilizam. Logo, a infraestrutura bem pouco atende ao propsito de integrao dos diversos espaos nacionais, pois, ao se criar uma linha de comrcio, o grupo dominante busca adaptar seu espao econmico lgica de circulao de suas mercadorias. Como a criao e o uso do espao econmico no so estticos, estes estaro sujeitos a contnuas transformaes, segundo cada estgio de acumulao e da reproduo de capitais. O objetivo neste captulo analisar como os sistemas de transportes terrestres, ferrovirio e rodovirio, dos principais estados brasileiros inseridos no comrcio exterior foram readequados a partir da dcada de 1950 para atenderem s novas demandas de circulao de mercadorias. A hiptese que tanto as ferrovias quanto as rodovias foram readaptadas pela ao estatal, que nelas investiram vultosos recursos pblicos, para tornarem-nas cada vez mais aptas para atenderem de modo complementar ao processo de acumulao em cada uma dessas localidades. Uma marcante caracterstica que se observa na construo da infraestrutura logstica brasileira que ela tem se ajustado, historicamente, s exigncias de reproduo do capital em mbito internacional. Em funo da maneira 11

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

como foram montadas as estruturas econmicas e de poder em mbito nacional se instituram verdadeiros arquiplagos de progresso, em detrimento de outras reas; ferrovias, portos, estradas de rodagem e outras infraestruturas passaram a atender demanda de circulao de mercadorias e beneficiar, sobretudo, aos seletos grupos que conseguiram implantar esse ou aquele modal de seu interesse como se fossem sempre relevantes para o conjunto do pas. Essas diversas localidades produtivas, s vezes isoladas umas das outras, apresentam distines entre si pelas diferentes maneiras como foram integrando-se tanto ao espao econmico nacional quanto ao internacional. O que h em comum entre esses diferentes espaos econmicos que sua afirmao econmica foi, por vrios aspectos, similar ao formato de explorao implantado desde o perodo colonial, que vinculava essas localidades dinmica econmica externa. Em algumas delas a produo era agrcola e em outras a ocupao produtiva estava embasada na extrao de minerais. O funcionamento desses plos dinmicos, desde o perodo colonial, dependia por sua vez de outros setores produtivos internos que, apesar de economicamente marginais em relao ao mercado externo, eram de fundamental importncia para o sistema exportador ao assegurar tanto o abastecimento de alimentos quanto a circulao dessas mercadorias atravs de tropas de mulas. Dessa relao entre os diversos grupos da classe dominante formada por exportadores (fazendeiros que atuam no mercado externo, mineradores, banqueiros) que se consolida o aparato estatal, bastante ambguo, liderado tanto por grupos dominantes de cunho modernizador quanto por grupos tradicionais. Se por um lado correto afirmar que a dinmica econmica externa efetivamente conectou regies produtoras ao mercado externo (primeiramente atravs do lombo de mulas e posteriormente utilizando-se de ferrovias), por outro no h como se viabilizar a grande produo ou a extrao mineira em grandes escalas sem o suporte logstico proveniente dos setores econmicos internos. Assim, os setores din12

micos das economias nacionais estariam centrados, at a dcada de 1930, em dois setores econmicos bsicos: o agro-exportador e o da produo interna. No plano externo a viabilidade de se consolidar as linhas de exportao, que envolviam a construo de portos e ferrovias, estava condicionada pelo setor financeiro e comercial das economias centrais e seus agentes locais. Da no se constituir em surpresa a fortssima presena de capitais ingleses aplicados nas ferrovias sul-americanas, durante o sculo XIX. Segundo Luxemburgo (1985), a implantao e expanso das ferrovias so esclarecedoras para se entender o processo pelo qual a penetrao do capital vai estendendo seu raio de ao do centro para a periferia. Os emprstimos para a Repblica Argentina, por exemplo, que em 1874 representavam dez milhes de libras, atingiram em 1890 o montante de 59,1 milhes. No por acaso, portanto, que a rede ferroviria daquele pas, que possua uma extenso de 3.123 quilmetros, em 1883, tivesse sido ampliada para 13.691 quilmetros dez anos depois. Particularmente, em relao Argentina, a exportao total inglesa atingia, em 1885, o valor de 4,7 milhes de libras; quatro anos depois subiria para 10,7 milhes. E o fenmeno da expanso dos trilhos neste perodo no se limitava Amrica do Sul. A rede ferroviria, que atingira seu auge em expanso na Europa por volta de 1840, passou a ser implantada na Amrica na dcada seguinte, na sia uma dcada depois, seguida pela Austrlia durante as dcadas de 1870 e 80, e na frica durante a dcada de 1890. A prpria rede ferroviria nos EUA se expandiu ao mesmo tempo em que este crescimento beneficiava diretamente a Inglaterra, de onde materiais procediam para aquele pas, sendo esta uma das principais razes do desenvolvimento das indstrias carvoeira e siderrgica inglesas: as linhas frreas estadunidenses foram ampliadas de uma extenso de 14.151 quilmetros, em 1850, a 49.292 quilmetros em 1860; atingiram 85.139 quilmetros, em 1870, e se ampliaram ainda mais, chegando a 150.717 quilmetros em 1880 e 13

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

atingindo a extenso de 268.409 quilmetros em 1890 (LUXEMBURGO, 1985, p. 291-292). No plano interno, a expanso da infraestrutura de transportes passava pela concesso pblica atravs do Estado, que era, efetivamente, a autoridade que permitia a construo dessas empresas frreas. Estado, cuja sustentao poltica era garantida por alianas existentes entre os grupos exportadores e as oligarquias no inseridas no setor exportador que, entre meados do sculo XIX e at por volta da dcada de 1930, detinham a hegemonia poltica em relao a outras classes sociais. Como o sistema de transportes est vinculado estrutura econmica, ele no , portanto, autnomo em relao circulao de pessoas e mercadorias. Logo, o formato da rede ferroviria ou de qualquer outro modal ser resultado da deciso tomada a partir de relativo consenso existente no interior da classe social que possui hegemonia poltica. Desse modo, a deciso sobre onde, como e para quem se constroem as primeiras ferrovias brasileiras no chega a constituir-se em uma resposta aos interesses de uma classe social especfica ou muito menos aos propsitos dos interesses da nao, mas aos intentos de parcelas da classe dominante, principalmente a agrrio-exportadora, o que confirma a argumentao de Fernandes (1975, p. 42) de que as classes sociais dominantes latino-americanas operam unilateralmente, no sentido de preservar e intensificar os privilgios de poucos e de excluir os demais, na maior parte das vezes buscando viabilizar seus interesses de classe que so, eventualmente, at impeditivos integrao e estabilidade da ordem social capitalista. Da combinao de fatores externos e internos, como os ocorridos no sculo XIX (com a expanso capitalista aps a Revoluo Industrial) ou incio do sculo XX (guerras mundiais e crise capitalista, em 1929), que se podem encontrar explicaes para os surgimentos de conjunturas favorveis tanto para a expanso da agroindstria quanto para a produo industrializada que modificou os mercados internos [do Brasil e de seus vizinhos], que 14

implicaram em constantes transformaes na infraestrutura de transportes brasileiros.

Ferrovias brasileiras no sistema logstico nacionalAs diversas instalaes ferrovirias foram institudas para atender aos interesses especficos de fraes da elite dominante ou a estratgias estatais, tais como o de segurana e ocupao do territrio nacional. Ao se analisar a finalidade da malha ferroviria h que se faz-lo levando em conta a sua diversidade. Vrias empresas ferrovirias dos mais variados tipos foram instaladas no Brasil desde as primeiras implantaes at o presente. Algumas eram formadas por milhares de quilmetros de linhas e outras possuam menos de vinte quilmetros. Umas foram lucrativas j nos primeiros anos enquanto outras no sobreviveram ao ato formal de sua criao. Algumas delas eram consideradas de primeira categoria, outras de terceira (BRASIL. MVOP, 1943, p.10). Desde as primeiras construes ferrovirias no Brasil, durante o sculo XIX, a iniciativa foi marcada pelo estmulo do Estado em sua tentativa de atender homogeneizao do territrio nacional, marcado ainda por imensos espaos econmicos vazios. Se por um lado o ato de construir ferrovias parece contemplar os interesses do Estado, que passa a emitir concesses que contribuam para a defesa e ocupao do espao nacional, por outro no menos verdadeiro que fazendeiros ou acionistas destas companhias e fornecedores sejam parceiros de primeira hora nestes empreendimentos. Com a ferrovia em operao, tanto os fazendeiros quanto aqueles inseridos no comrcio exterior e tambm os vinculados ao comrcio interno passaram a dispor de um meio de transporte bem mais eficiente e seguro do que aquele realizado anteriormente pela trao animal. , portanto, deste rol de interesses que surgiram as primeiras tentativas, em 1835, de se construir uma estrada de ferro que ligasse a capital 15

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

do imprio s importantes provncias da Bahia, Minas Gerais, So Paulo e Rio Grande do Sul (ADOLPHO PINTO, 1977, p. 28), localidades importantssimas, no apenas pela presena no cenrio poltico nacional, mas tambm pela importncia econmica, em funo de, nestas provncias, localizarem-se as produes das principais mercadorias da pauta de exportao brasileira no perodo, tais como o acar e o caf, dentre outras. Desde a dcada de 1830 o caf j despontava como a principal mercadoria da pauta de exportaes brasileiras. Na dcada de 1870 a participao deste produto j atingia mais de 60% dos valores obtidos, em libras, de todo o comrcio externo brasileiro (EISENBERG, 1974, p. 35). No entanto outras mercadorias, bem como outros servios oferecidos, eram importantssimos para a composio da receita das empresas frreas brasileiras, conforme se observa na Tabela 1, a seguir.

Tabela 1. Ferrovias brasileiras: mercadorias transportadas e fonte das receitas, 1906Produtos Diversos Caf Cereais Acar Sal Xarque Mate Algodo Tecidos Aguardente Fumo Couros Total Toneladas 2.971.079,6 1.215.767,7 302.171,7 298.957,9 165.668,8 88.800,2 63.068,8 60.245,8 42.281,2 34.271,9 26.280,2 25.911,4 5.294.505,2 % total 56,1 23,0 5,7 5,6 3,1 1,7 1,2 1,1 0,8 0,6 0,5 0,5 100,0 55.625.994,7 100,0 Fontes das receitas Mercadorias Passageiros Bagagens e encomendas Animais Diversos Acessrias Telgrafo/telefone Armazenagem Mil ris 34.843.414,7 13.476.055,5 3.127.913,3 2.149.554,0 1.249.207,9 398.588,6 246.299,2 134.961,5 % total 62,6 24,2 5,6 3,9 2,2 0,7 0,4 0,2

Fonte: Brasil, 1908, p. XX e XXII.

16

Pelo menos at meados do sculo XX, as ferrovias atendiam a propsitos que no se limitavam apenas aos transportes de mercadorias da grande propriedade rural, muito menos eram exclusivas transportadoras de caf. O transporte de passageiros, por exemplo, chegava a representar quase um quarto da receita total das ferrovias brasileiras. Do total de produtos transportados, pelo menos 56% eram formados por mercadorias diversas, o que atesta a diversidade da pauta de produtos transportados. Alm de atender ao transporte de passageiros, o conjunto das ferrovias brasileiras transportava outros produtos agrcolas e industriais, bem como bagagens e encomendas e animais, o que as tornava efetivo instrumento pblico utilizado por diversas camadas sociais da populao. No entanto, essas ferrovias, como quaisquer outros modais, surgiam vinculadas a produtos ou objetivos estratgicos que justificassem sua viabilidade. Em So Paulo, por exemplo, a maior parte delas surgiu motivada pelo transporte de caf, produto que foi sendo deslocado do Vale do Paraba em direo ao Oeste e ao norte do Estado do Paran. Esse processo foi se estabelecendo como principal estimulador da expanso da populao e da extenso das linhas frreas no Estado de So Paulo. Vale observar tambm que, apesar da inegvel importncia das ferrovias paulistas para o funcionamento da economia nacional, o modal ferrovirio no era menos importante para a expanso dos transportes de diversas outras partes do Brasil. Fora de So Paulo, a malha frrea continuou a ser expandida durante a primeira metade do sculo XX, numa proporo um pouco maior do que a ocorrida naquele Estado fortemente cafeeiro. Em So Paulo, a extenso das linhas foi aumentada de 3.471 km, em 1901, para 7.440 km em 1940 (114,3%); nos demais Estados brasileiros, a soma da malha frrea foi ampliada de 12.035 km para 26.811 km, o que representou aumento de 120,3% no mesmo perodo (BRASIL, 1943, p. 44). Essa expanso de mercados apoiados pelas ferrovias comeou a declinar por volta da dcada de 1940. A partir da dcada seguinte observa17

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

-se que se ampliaram os dficits operacionais das estradas, o que levou a Unio e o Estado de So Paulo a expandirem sua participao nos controles das ferrovias federais e estaduais, respectivamente, e a iniciarem ampla readequao da estrutura do modal ferrovirio nacional, que passou a direcionar essas ferrovias ao atendimento de parcelas cada vez mais especficas do mercado de transportes brasileiro: particularmente o de cargas, em detrimento dos transportes de passageiros, de pequenas expedies e de animais. Pode-se afirmar, ento, que a industrializao nacional, impulsionada pelo Estado brasileiro na dcada de 1950, e a interveno no sistema ferrovirio nacional so partes da mesma ao estatal. Entre 1935 e 1971, as ferrovias brasileiras passaram por uma profunda reestruturao econmica e operacional. Em mbito federal foi criada a Rede Ferroviria Federal S. A. (RFFSA), que agregou sob sua administrao aquelas ferrovias que pertenciam Unio, antes de 1930, e outras dez empresas frreas encampadas entre 1935-68.1 Em seu conjunto essas ferrovias pertencentes Unio apresentavam altssimos dficits operacionais, embora tenha ocorrido pequena reduo nos dficits das ferrovias pertencentes Unio entre 1917 e 1940, de 47,5% para 22,6%. Em 1953, nas ferrovias da Unio chegaram a ocorrer altssimos dficits que, na mdia, atingiram a marca de 117,6% em relao s suas receitas. Os dficits, embora menores, persistiram tambm entre as ferrovias cujas propriedades eram da Unio, mas arrendadas a terceiros nestas, apesar de apresentarem dficit de 130,1% em 1917, apresentaram supervit de 4,2% em 1940, mas incorreram novamente em dficit, de 34,5% em 1953. Entre as empresas particulares a tendncia dos saldos se mostrou decrescente: de uma mdia de supervits de 50,4% em 1917 e 18,9% em 1940,

1 E. F. Ilhus (132 km); Santos a Jundia (139 km); E. F. Santa Catarina (163 km); E. F. D Tereza Cristina (264 km); E. F Nazar (325 km); V. F. F. Leste Brasileiro (2.545 km); Rede F. Nordeste (2.655 km); R. V. Paran-S. Catarina (2.666 km); E. F. Leopoldina (3.057 km) e Viao F. R. G. do Sul (3.735 km) [cf. Revista Ferroviria, jan. 1990, p. 15).

18

essas empresas passaram a apresentar dficits de 9,3% em 1953 (BRASIL. MVOP. Estatsticas das Estradas de Ferro da Unio, 1955). Na instncia estadual foi formada a Ferrovia Paulista S. A. (FEPASA), em 1971, que, ao unificar sob um s controle as principais ferrovias estatizadas do Estado de So Paulo E. F. Sorocabana, E. F. Araraquara, Companhia Mogiana, Companhia Paulista e E. F. So Paulo-Minas passou a administrar uma malha de aproximadamente cinco mil quilmetros, que, semelhantemente ao que ocorria no restante do pas, demonstrava srias dificuldades financeiras. Em 1940, das cinco empresas que formaram a FEPASA, apenas uma apresentava dficit considervel. Das que haviam apresentado supervit em 1953, duas delas, Mogiana e Araraquara, superavitrias em 1940, mostraram-se deficitrias em 1953. A Sorocabana e a Paulista, ainda que apresentassem supervits em 1953, apresentavam saldo positivo bem inferior ao obtido em 1940 (BRASIL, 1922 e 1957; FEPASA, 1973). No incio da dcada de 1970, aquele conjunto de empresas, sob administrao da recm-fundada FEPASA, apresentou dficit operacional de 72,3% em relao receita. Mesmo empresas localizadas no Estado de So Paulo, como a Companhia Paulista, que era, desde a sua fundao, umas das mais rentveis do Brasil, passaram a fazer parte do conjunto das deficitrias ferrovias brasileiras a partir de 1961 (20%), 1962 (77%), 1963 (122%), 1964 (139%) e continuou deficitria at a sua incorporao FEPASA, em 1971 (Companhia Paulista, 1970, p. 18). De fato, parecia tratar-se do fim da era ferroviria. Da o fato desse fenmeno (encampao) aparentar para alguns autores a consolidao de uma situao em que passa a ocorrer o fim da era ferroviria quando, na realidade, tratava-se de um daqueles momentos em que o setor ferrovirio deixou de ser economicamente interessante aos investidores privados. Naquela ocasio o Estado interveio para garantir o funcionamento do sistema em benefcio de determinadas classes ou at, contraditoriamente, contra essas classes. O Estado chegou at mesmo a assumir o papel de empresrio ferrovirio por dcadas, perodo em que as ferrovias brasilei19

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

ras, sob administraes estatais, passaram pela reformulao de seus modelos de negcios at o momento em que, na dcada de 1990, os interesses econmicos privados voltaram-se, novamente, para as ferrovias brasileiras. As ferrovias brasileiras, portanto, embora tenham padecido profundo desequilbrio estrutural, no chegaram ao fim. E as principais malhas ferrovirias brasileiras que sobreviveram erradicao foram aquelas localizadas nas principais regies exportadoras, motivo pelo qual continuaram a participar ativamente do comrcio exterior atravs de suas conexes com os portos, sejam eles martimos ou fluviais. E essas linhas que resistiram erradicao atestam a importncia, desde o perodo imperial, da combinao ferrovia-porto para o funcionamento da economia brasileira. Tal qual ocorria desde o sculo XIX, as ferrovias continuaram a operar como mecanismo de atendimento aos propsitos de uma estrutura econmica exportadora em pleno sculo XXI. Porm, as ferrovias pouco participam dos fluxos de transportes que circulam entre os estados brasileiros ou entre estes e os pases vizinhos sul-americanos, ainda que os principais portos exportadores e importadores brasileiros sejam servidos pelas principais ferrovias brasileiras, tais como: o Porto de Santos [SP] (pelas ferrovias MRS Logstica e Ferroban); Porto de Vitria [ES] (pela Estrada de Ferro Vitria a Minas e Ferrovia Centro Atlntica); Porto de Paranagu [PR] (pela Amrica Latina Logstica); Porto de Angra dos Reis [RJ] (pela MRS Logstica); Porto do Rio de Janeiro [RJ] (pela MRS Logstica); Porto de Rio Grande (pela Amrica Latina Logstica); Porto de So Francisco do Sul [SC] (pela Amrica Latina Logstica); Porto de Pelotas [RS] (pela Amrica Latina Logstica); Porto de Itaqui [MA] (pela Companhia Ferroviria do Nordeste e Estrada de Ferro Carajs); Porto de Imbituba [SC] (pela Estrada de Ferro Tereza Cristina); Porto de Macei [AL] (pela Companhia Ferroviria do Nordeste); Porto de Recife [PE] (pela Companhia Ferroviria do Nordeste) e Porto de Salvador [BA] (pela Ferrovia Centro Atlntica) [BRASIL. Ministrio dos Transportes. ANTT, 21 fev. 2008]. 20

A utilizao destes portos com acesso ferrovirio tem sido crucial para a realizao das exportaes brasileiras. Em 2005, por exemplo, ano em que mais de 80% das sadas de mercadorias do pas ocorreram pela via martima, o total de mercadorias que partiu do Porto de Santos representou mais de um tero de toda a arrecadao gerada pelas exportaes brasileiras. Juntamente com os portos de Vitria e Paranagu, esse percentual chegou a significar o equivalente a 54% das exportaes pela via martima.Em 2005, o porto de Santos respondeu por US$ 32 bilhes das exportaes brasileiras devido, principalmente, ao embarque de caf no torrado (US$ 1,785 bilho), soja em gro (1,754 bilho) e acar de cana (US$ 1,5 bilho). Alm de produtos bsicos, tambm foram embarcados por Santos automveis (US$ 1,042 bilho) e tratores (US$ 461 bilhes), de onde mais foram embarcadas mercadorias. Depois de Santos, os portos de Vitria (ES) e Paranagu (PR) foram os que mais embarcaram produtos brasileiros para o exterior. No ano passado, essas duas vias venderam para o mercado internacional US$ 11,3 bilhes e 8,5 bilhes, respectivamente. No caso de Vitria, minrios de ferro aglomerados (US$ 2,5 bilhes) e celulose (US$ 1,4 bilho) se destacaram na pauta de exportao. J em Paranagu, soja em gro (US$ 1,2 bilho) e bagaos da extrao do leo de soja (US$ 1,130 bilho) foram os principais produtos (BRASIL. Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio, 2008).

No , portanto, acaso o fato de as cinco principais empresas frreas brasileiras, EFC, EFVM, MRS, ALL e FCA, que juntas realizaram quase 95% de toda a TKU2 ferroviria, em 2007, operarem nos maiores estados exportadores, nos quais tambm se localizam os maiores portos por onde se realizam as exportaes nacionais. Da totalidade das exportaes de mercadorias brasileiras aos demais pases externos Amrica do Sul, 64% foram exportadas por apenas

2 Tonelada-quilmetro til. A produo em TKU obtida multiplicando-se a tonelagem transportada pela distncia percorrida na prpria malha (BRASIL. ANTT, 2009).

21

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

trs Estados: Minas Gerais, Par e Esprito Santo. Para a Amrica do Sul, em 2007, mais de 53% das mercadorias exportadas, em toneladas, partiram apenas de So Paulo, Rio de Janeiro e Esprito Santo, conforme se pode constatar na Tabela 2, a seguir.

Tabela 2 Brasil: exportaes e importaes (mundiais e Amrica do Sul), 2007Exportaes (US$ FOB em bilhes) Mundiais (exceto Amrica do Sul) Amrica do Sul % % US$ % US$ FOB mundo toneladas mundo FOB Am Sul toneladasSP 51.734 MG 18.355 RS 15.018 RJ 14.316 PR 12.353 PA 7.925 BA 7.409 SC 7.382 ES 6.872 MT 5.131 Outros 14.155 Brasil 160.649 32,2 11,4 9,3 8,9 7,7 4,9 4,6 4,6 4,3 3,2 8,8 100,0 40.850.644 155.625.350 16.434.853 26.363.244 20.794.790 90.380.803 9.141.360 5.719.996 50.367.429 14.930.769 31.045.710 461.654.948 8,8 33,7 3,6 5,7 4,5 19,6 2,0 1,2 10,9 3,2 6,7 100,0 14.543 2.331 3.402 2.57 2.581 0.333 1.446 1.267 0.671 0.121 2.252 31.905 45,6 7,3 10,7 9,3 8,1 1,0 4,5 4,0 2,1 0,4 7,1 100,0

% Am Sul

5.390.276 20,6 1.658.384 6,3 2.341.847 8,9 4.570.837 17,5 1.929.508 7,4 1.095.214 4,2 911.604 3,5 916.762 3,5 4.021.639 15,4 1.873.740 7,2 1.475.631 5,6 26.185.443 100,0

Importaes (US$ FOB em bilhes) Totais (exceto Amrica do Sul) Amrica do Sul % % % US$ FOB mundo toneladas mundo US$ FOB Am Sul toneladasSP RS RJ PR AM ES MG BA 48.406 10.169 9.567 9.017 6.841 6.639 6.504 5.431 40,1 8,4 7,9 7,5 5,7 5,5 5,4 4,5 28.561.693 14.339.560 11.001.112 10.640.248 1.099.908 8.248.753 10.648.099 4.612.313 24,0 12,1 9,3 8,9 0,9 6,9 9,0 3,9 3.506 3.460 0.956 1.509 0.244 1.421 1.077 1.808 18,9 18,7 5,2 8,1 1,3 7,7 5,8 9,8 4.999.822 4.006.465 1.195.456 2.772.638 197.627 1.334.366 941.839 1.405.649

% Am Sul16,9 13,5 4,0 9,4 0,7 4,5 3,2 4,7

22

SC 5.002 MA 2.353 Outros 10.694 Brasil 120.624

Fonte: Brasil. Ministrio da Indstria, Desenvolvimento e Comrcio Exterior.

4,1 2,0 8,9 100,0

3.797.274 4.281.755 21.686.457 118.917.171

3,2 3,6 18,2 100,0

1.746 0.051 2.756 18.534

9,4 0,3 14,9 100,0

1.942.946 6,6 277.977 0,9 10.558.803 35,6 29.633.586 100,0

No sentido da importao essa concentrao tambm fica bastante evidente: apenas So Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro concentraram 45% do total de toneladas de mercadorias que chegaram de regies externas Amrica do Sul. De toda a importao proveniente da Amrica Sul, chegaram a So Paulo, Rio Grande do Sul e Paran aproximadamente 40% do total (em toneladas), no mesmo ano. Conforme se pode notar na tabela 3, abaixo, visvel que as ferrovias atendem a contento as demandas por exportaes de produtos bsicos como a soja e o minrio no sentido interior-porto; no entanto, tambm observvel que essas ferrovias so pouco utilizadas para o transporte de mercadorias provenientes dos maiores estados exportadores para os demais pases sul-americanos ou destes para o Brasil, por este modal. Ainda que em oito estados tenham-se utilizado as ferrovias para realizar exportaes para a Amrica do Sul, verifica-se que 90% das exportaes realizadas pelo modal ferrovirio tiveram como procedncia apenas quatro estados brasileiros: Rio Grande do Sul, So Paulo, Minas Gerais e Paran. Dessas unidades da federao em que as ferrovias mais foram utilizadas para executar suas exportaes, em apenas um, o Rio Grande do Sul, essa quantidade chegou a representar mais de 10% do total de mercadorias direcionadas, deste Estado, para os demais pases sul-americanos. Ainda assim, mesmo neste Estado o uso do modal ferrovirio ocorreu praticamente no sentido de exportao, pois no sentido de importao foi transportado apenas 0,4% do total importado pela economia gacha.

23

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

Tabela 3 Brasil Amrica do Sul: participao dos estados na circulao de mercadorias (% por modais, em 2007)Exportaes (mil toneladas)EstadosSP MG RJ RS PR SC PA BA ES MT Outros Brasil SP RS RJ PR AM ES MG BA SC MA Outros Brasil

Estados: todos os modais5.390,3 1.658,4 4.570,8 2.341,8 1.929,5 916,8 1.095,2 911,6 4.021,6 1.873,7 1.475,6 26.185,4 4.999,8 4.006,5 1.195,5 2.772,6 197,6 1.334,4 941,8 1.405,6 1.942,9 278,0 10.558,8 29.633,6

% Estados em relao Am. Sul20,6 6,3 17,5 8,9 7,4 3,5 4,2 3,5 15,4 7,2 5,6 100,0 16,9 13,5 4,0 9,4 0,7 4,5 3,2 4,7 6,6 0,9 35,6 100,0

Martimo % em relao ao Estado60,9 82,0 96,7 47,0 38,3 30,3 99,4 93,7 99,3 0,6 66,7 69,2 67,8 66,4 86,1 34,4 99,6 98,8 76,8 99,7 42,1 99,8 24,3 51,8

Rodovirio Ferrovirio Outros % em relao % em relao % em ao ao relao ao Estado Estado Estado33,6 13,5 2,8 42,0 58,7 66,9 0,6 6,1 0,6 11,8 18,4 20,9 26,2 30,5 13,8 65,5 0,2 1,0 22,4 0,3 51,4 0,2 3,6 20,7 4,1 4,2 0,5 10,5 1,4 1,8 0,0 0,1 0,1 0,0 1,9 2,4 3,4 0,4 0,0 0,1 0,0 0,0 0,8 0,0 5,9 0,0 0,0 1,1 1,4 0,4 0,0 0,5 1,7 1,0 0,0 0,1 0,0 87,6 13,0 7,5 2,6 2,7 0,1 0,1 0,3 0,2 0,0 0,0 0,6 0,0 72,0 26,5

Importaes (mil toneladas)

Fonte: Brasil. Ministrio da Indstria, Desenvolvimento e Comrcio Exterior.

24

No sentido de importao, pelo menos em cinco estados se optou tambm pelo modal ferrovirio. Porm, para apenas dois deles, So Paulo e Santa Catarina, foi transportada 90% da totalidade das cargas que entraram no Brasil por este modal. As ferrovias brasileiras atendem, portanto, basicamente aos transportes que circulam no sentido interior-porto. Desse modo, ainda que a quantidade transportada por ferrovias no Brasil possa ser equiparada realizada em pases onde mais se utiliza o modal ferrovirio, verifica-se que o volume de carga no ocorre substancialmente nem no interior do Brasil nem entre este e os demais pases da Amrica do Sul. Primeiro, porque a maior parte das mercadorias que circulam nesse mercado regional transportada pela via martima e, da parcela dessa circulao que segue pela via terrestre, bem pouco se realiza pela via ferroviria.

Industrializao e a era rodoviriaA implantao de efetivas polticas pblicas visando ampliao do modal rodovirio no Brasil na dcada de 1950 est diretamente relacionada ao processo de industrializao que efetivamente acelerou a unificao do mercado nacional e a maior integrao econmica com o mercado internacional. E o processo de industrializao que se implanta aps a Segunda Guerra Mundial no est destitudo de implicaes sociais e polticas, pois se insere dentro de um contexto, denominado por Ianni como desenvolvimentista, que teria atingido seu ponto alto poca do Programa de Metas (1956-1960). Segundo este autor:O desenvolvimentismo a ideologia da ruptura burguesa. Como tal, ele assume funes particulares, prprio do capitalismo que se constitui num pas gerado no processo de acumulao primitiva e inserido dinamicamente no capitalismo mundial. s vezes, implica numa luta pela apropriao do excedente econmico que canalizado para o exterior atravs das vinculaes [existentes na economia brasileira] com o capitalismo internacional. Neste caso,

25

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

se apresenta como nacionalista. Noutras, envolve a rearticulao da economia nacional, particularmente o setor industrial, com o capital externo. Neste caso, est associado ou conjugado com este, inserindo-se intrinsecamente na estrutura econmica internacional. Mas sempre o mesmo. sempre ideologia da burguesia industrial na fase de conquista de sua hegemonia (IANNI, 1965, p. 108).

Portanto, a industrializao no surge como uma ao acima das classes sociais e de suas fraes de classe ou como estratgia racional e imparcial do Estado brasileiro, mas se configura justamente a partir dos embates entre os vrios projetos de sociedade presentes naquele momento, cujas implicaes vo alm do processo de produo fabril em grande escala. Assim, conforme sustenta Schvarzer:A sociedade industrial no um conjunto de fbricas, seno um sistema econmico. um sistema porque a indstria no pode crescer em um vazio; [pois] necessita de instituies, empresas, tecnologias e polticas especficas que assegurem implantao e seu florescimento depois. social porque a indstria reorganiza todas as relaes humanas, cria o trabalho fabril assalariado [...], desloca gente do campo para a cidade e reconstitui as classes mdias; sua presena implica em mudanas de atitudes e condutas globais que no se limitam ao espao da fbrica. uma forma de organizao econmica porque modifica o mtodo de criao de bens e multiplica a riqueza produzida. Seu xito gera novos problemas que reclamam novas respostas... (SCHVARZER, 1996, p. 8).

Segundo Schiffer, a definio do modelo de desenvolvimento em questo a partir de 1955 centrava-se na proposta de acelerao da industrializao que era defendida tanto pela burguesia industrial voltada para o mercado interno quanto pela burguesia que defendia um desenvolvimento dependente do sistema capitalista internacional. Ambas as fraes buscavam no Estado uma atuao determinante, ao qual, segundo aquelas, deveria caber a funo de maestro do processo que implementaria a industrializao e que seria o empreendedor de obras e legislaes necessrias a sua plena viabilizao (SCHIFFER, 1989, p. 30-32). 26

O contexto desse cenrio est vinculado a um longo processo de transformao econmica e social brasileira sintetizado no Plano de Metas, no qual parecem redefinir-se os fatores de dinamismo e crescimento econmico interno e os da redefinio do Brasil na nova economia mundial aps a Segunda Guerra Mundial, que consistia basicamente em atrao de capitais que pudessem garantir o desafogo no balano de pagamentos de modo a no interromper a importao de bens essenciais, e manter a taxa de investimentos requeridos pela continuao do processo de substituio de importaes (ORENSTEIN e SOCHACZEWSKI, 1990, p. 172). Seria este ento o momento em que se consolida a implantao da industrializao pesada entre 1955 e 1961, que, segundo Schiffer:Resultou na adoo de diretrizes polticas que o pas tendeu a seguir durante a maior parte das trs ltimas dcadas. Diretrizes estas que, por um lado, induziram o aceleramento do processo de unificao do mercado nacional com vistas a viabilizar a expanso da industrializao e, por outro, conduziram este processo de modo a restringi-lo, gerando uma acumulao entravada (SCHIFFER, 1989, p. 29).

A industrializao se consolida, portanto, a partir de 1955, dentro de uma explcita estratgia estatal de privilgios aos investimentos estrangeiros que foram canalizados atravs da Instruo 113 da SUMOC, que isentava do pagamento de taxas de importao de produtos desenvolvidos com alta tecnologia a empresas estrangeiras leiam-se mquinas e automveis. Esta ao estatal teria propiciado as condies necessrias ao incremento da produo do setor privado, alm de fazer com que o Estado arcasse com os investimentos relativos expanso energtica e de transportes (SCHIFFER, 1989, p. 40). Dentre as diretrizes polticas que induziram a acelerao do processo de unificao do mercado interno destacam-se aquelas que geraram uma maior concentrao de capital e de atividades produtivas nos estados: em que j vinha ocorrendo, h dcadas, maior desenvolvimento industrial no Brasil; que j possuam uma razovel rede de transportes (portos, 27

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

ferrovias e estradas); e que mais estavam inseridos no comrcio exterior. Dois teros de todas as aplicaes estrangeiras, realizadas com base na Instruo 113 da SUMOC, direcionadas ao Brasil entre 1955 e 1960, foram destinados a So Paulo. Aproximadamente 13% foram para o que atualmente o Estado do Rio de Janeiro, menos de 6% a Minas Gerais e o restante distribudo entre os demais Estados (SCHIFFER, 1992, p. 60) estados que j despontavam dentre os de maior concentrao industrial, como se pode verificar no Quadro 1, abaixo.

Quadro 1. Estados brasileiros e respectiva participao na produo industrial nacionalEstadosRJ SP RS PR MG SC BA ES outros BrasilFonte: Cano, 1990, p. 296.

190737,8 15,9 13,5 4,5 4,4 1,9 3,4 0,1 18,5 100,0

191928,2 31,5 11,1 3,2 5,6 1,9 2,8 0,7 15,0 100,0

193922,0 45,4 9,8 2,2 6,5 1,8 1,4 0,4 10,5 100,0

Tambm se observa que mesmo antes da criao do Fundo Rodovirio Nacional, em 1945, j vinham ocorrendo nesses poucos estados, nos quais despontava considervel grau de industrializao, os maiores aumentos das frotas de automveis, nibus e caminhes. Conforme se pode verificar no Quadro 2, abaixo, essas frotas foram ampliadas ainda mais depois da entrada em vigor do Fundo que, por meio de imposto federal sobre combustveis e lubrificantes, direcionava recursos para obras 28

rodovirias: 40% se destinavam ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e os 60% restantes eram divididos entre estados e municpios, assegurando-se com essa vinculao os recursos destinados modernizao, construo e pavimentao de rodovias no Pas.

Quadro 2. Brasil: evoluo da frota de veculos automotores 1949-19651) Total de automveis e variao (%)EstadosSP RJ* RS MG PR SC BA ES MT outros Brasil

2) Total de nibus e variao (%)Total (1949) 1949- 1955- 19601955 1960 1965113,4 53,6 45,3 100,1 70,7 28,2 274,0 138,7 83,5 58,9 79,0 24,4 38,2 25,6 41,0 30,1 38,5 107,3 45,8 35,2 66,2 38,3 49,9 80,2 18,1 33,5 49,1 26,1 18,3 50,0 154,1 86,9 55,1

Total (1949)61.801 55.729 26.928 17.461 7.073 3.275 4.592 1.112 872 15.972 194.815

1949- 1955- 19601955 1960 1965

19491965

19491965297,8 282,6 115,5 276,7 231,3 123,9 817,5 421,8 530,4 393,7 283,7

136,4 42,8 160,9 781,1 3.104 59,9 27,1 119,3 345,8 2.237 89,9 47,4 19,5 234,5 1.466 64,5 88,0 76,7 446,5 1.186 146,9 77,5 168,7 1.078,0 601 138,6 44,7 208,5 965,4 436 100,6 65,7 138,5 692,6 154 118,3 39,4 151,3 665,0 119 221,4 65,0 212,5 1.557,7 79 65,2 101,6 176,8 821,8 1.789 95,7 49,6 128,6 569,0 11.171

3) Total de caminhes e variao (em %) Total 1949- 1955- 1960- 1949Estados (1949) 1955 1960 1965 1965SP RJ* RS MG PR SC BA ES MT outros Brasil 52.086 26.629 13.685 13.498 9.373 4.065 3.402 1.572 1.124 14.108 139.542 75,8 31,8 52,7 75,1 111,6 109,4 84,8 72,6 109,3 45,7 65,9 31,6 11,6 39,1 42,5 59,1 33,1 46,1 52,7 76,1 82,1 38,3 23,3 18,3 18,8 33,2 36,5 51,6 33,7 53,8 65,1 52,4 30,3 185,3 74,1 152,3 232,3 359,5 322,4 260,8 305,3 508,5 304,4 198,9

Totais 1, 2, 3 e variao (em %) Total 1949- 1955- 1960- 1949(1949) 1955 1960 1965 1965116.991 84.595 42.079 32.145 17.047 7.776 8.148 2.803 2.075 31.869 345.528

108,8 50,9 76,2 70,3 124,8 117,1 97,3 93,6 155,5 56,2 83,1

38,1 23,2 44,5 66,3 66,7 38,6 59,5 46,4 69,1 91,5 45,1

109,1 92,9 19,3 59,0 100,9 126,6 95,3 95,2 143,1 123,5 92,1

503,0 258,6 203,6 350,3 653,1 582,1 514,7 453,0 950,3 568,7 410,3

Fonte: Brasil, 1970, p. 23-4. *Para os anos 1960 e 1965 esto contidos os valores relativos ao Estado da Guanabara.

29

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

Quando se comparam os anos de 1949 e 1965, observa-se que a quantidade de automveis, nibus e caminhes em circulao no Brasil cresceu 569, 283 e 199%, respectivamente, perodo marcado por crescentes investimentos no sistema rodovirio nacional a partir de 1946 e quando se consolida, segundo Ferrari (1981), a era rodoviria fenmeno que teria se iniciado j nas primeiras dcadas do sculo e cujo marco teriam sido os congressos paulistas de estradas de rodagem realizados em 1917, 1919 e 1923 (em So Paulo, Campinas e So Paulo, respectivamente). O autor argumenta que aquele movimento estava em consonncia com o processo de instalao de montadoras e importao de automveis no Brasil. A Ford Company e a International Harvester Export Company, montadoras de caminhes, instalaram-se no Brasil em 1924 (Ferrari, 1981, p. 28-32). No ano de 1927, o Brasil se tornara o quarto maior importador de automveis dos Estados Unidos, absorvendo cerca de 10% das exportaes daquele pas (BANDEIRA, 1978, p. 208). Por outro lado teria ocorrido, no entender de Ferrari, um dos motivos pelos quais a expanso ferroviria no Brasil teria comeado a declinar logo aps a Primeira Guerra Mundial e, particularmente, no perodo de 1933-55, com conseqncias diretas para o declnio das ferrovias paulistas localizadas no estado que mais recebeu incentivos para a consolidao do sistema rodovirio. Nas palavras do autor:Podem ser considerados como marcos do declnio da rede ferroviria paulista: o incio da era rodoviria, na dcada de 20; o desenvolvimento industrial brasileiro caracterizado pelo processo de substituio de importaes no incio dos anos 30; a Lei Joppert em 1945, que criou o Fundo Rodovirio Nacional e a implantao da indstria automobilstica em 1956 (FERRARI, 1981, p. 55).

Assim, o aumento na quantidade de veculos automotores no Brasil ampliava a arrecadao do imposto rodovirio para o respectivo Fundo que, at 1974, foi utilizado como fonte de recursos para se investir na construo e pavimentao de rodovias brasileiras. 30

Figura 1. Brasil: evoluo do Fundo Rodovirio Nacional distribudo ao DNER, estados e municpios 1946-1969.

Fonte: Brasil, 1971. Valores em milhares de CR$; ano base, 1946=100.

Tal mecanismo contribua com a auto-sustentao da ampliao da atividade industrial e expanso rodoviria brasileira, pelo fato de o produto da indstria automobilstica (automveis, nibus e caminhes) se constituir, tambm, como parte do processo de industrializao em curso. Diversos so os indicadores a demonstrar que essa combinao garantiu recursos crescentes, particularmente a partir do incio da dcada de 1960, para a consolidao do sistema rodovirio nacional, conforme se pode verificar na Figura 1, acima. Pode-se verificar adiante que a maior parte daqueles recursos do Fundo Rodovirio foi direcionada para a construo e ampliao de estradas localizadas nos estados mais industrializados, que durante a dcada de 1960 mais receberam investimentos para aquele fim.

31

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

Tabela 4. Brasil: participao dos estados na distribuio (%) do Fundo Rodovirio Nacional1960 9.905 CR$ x mil 1962 28.872 1963 52.019 1964 103.332 1965 276.523 1966 367.219 1967 263.818 1968 499.226 20,5 10,0 9,1 8,2 5,8 5,3 3,6 1,9 1,3 34,5 100,0 1969 682.760 23,4 10,9 10,0 8,8 6,3 5,7 4,0 2,1 1,5 27,2 100,0

SP RJ* MG BA RS PR MT SC ES outros Total

23,3 11,0 10,5 9,0 7,2 4,0 3,8 2,1 1,1 27,9 100,0

23,6 10,9 10,2 9,0 7,0 4,7 3,9 2,1 1,2 27,4 100,0

23,3 11,4 10,3 9,0 6,7 4,7 3,9 2,2 1,1 27,6 100,0

23,9 11,2 10,0 9,1 6,5 4,7 3,9 2,1 1,2 27,5 100,0

23,0 11,6 10,0 9,4 6,5 4,7 3,9 2,1 1,2 27,6 100,0

22,7 11,3 10,1 9,8 6,5 4,9 3,9 2,1 1,2 27,5 100,0

22,6 11,1 10,0 9,8 6,4 5,5 4,0 2,1 1,2 27,4 100,0

Fonte: Brasil, 1971.

Conforme se observa na Tabela 4, acima, apenas meia dzia de estados recebeu, na dcada de 1960, mais de 60% dos recursos destinados ao conjunto da federao. No chega a constituir uma novidade o fato de, para So Paulo, localidade onde primeiramente se implantou a indstria automobilstica, terem sido transferidas a maior parte dos investimentos para a industrializao (a partir do Plano de Metas) e para a construo de rodovias (Lei Joppert). Assim, num momento em que caminhes, automveis e nibus produzidos no Brasil passaram a dispor de estradas cada vez mais modernas para atender a este amplo mercado regional em ascenso, consolidava-se de vez a posio de liderana de So Paulo na economia brasileira: aumentando as diferenciaes scio-econmicas inter-regionais, que se refletiram na territorialidade nacional na medida em que reforou a desigual implantao das condies de homogeneizao do 32

espao econmico (SCHIFFER, 1992, p. 61). Aumentava-se, portanto, a desigualdade territorial e econmica que beneficiava a economia paulista desde o incio do sculo. Antes da dcada de 1950 as empresas paulistas j utilizavam vastas redes de rodovias que lhes permitiam escoarem suas produes para as diversas divisas estaduais por este modal.

Figura 2. So Paulo e demais estados brasileiros: participao na balana comercial (internacional e intranacional)

Fonte: Cano, 1990, p. 265-266. Ano-base 1955=100. Valores em CR$x1.000.

Desde antes da Primeira Guerra Mundial, a participao do Estado de So Paulo j era bastante considervel, tanto no comrcio internacional quanto nacional, representando a maior parte das transaes comerciais internas e externas. Muito do escoamento da produo paulista e de sua 33

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

importao originria em outros estados brasileiros se realizava atravs dos servios de cabotagem ou da circulao por outras vias internas (estradas e ferrovias), o que o potencializava ainda mais a partir da dcada de 1960, com a pavimentao das estradas paulistas, conforme se pode verificar na Figura 2, acima. A combinao de industrializao e expanso rodoviria em muito ampliaram o comrcio paulista, proporcionalmente, mais para dentro do pas do que externamente. Tomando-se 1955 como ano-base, verifica-se um aumento nas exportaes deste estado de quase 250% entre 195561. Entre 1955-68, as exportaes mundiais paulistas cresceram mais de 9.000%, enquanto as demais unidades da federao tiveram suas exportaes ampliadas em mais de 12.000% no mesmo perodo. Foi pelas vias internas, tanto expandidas quanto modernizadas neste perodo, que a economia paulista parece ter sido ampliada ainda mais. As exportaes paulistas para os demais estados da federao foram acrescidas em mais de 50.000% entre 1955 e 1968, enquanto as importaes de So Paulo, provenientes daqueles demais estados, cresceram, pelas vias internas, em mais de 23.000%. Potencializava-se, assim, a partir de 1955, tanto a capacidade exportadora quanto importadora da economia paulista, que se consolida como centro da economia brasileira. O diferencial a partir da dcada de 1960 os estados em que se instala a indstria brasileira passam a contar com vasta rede de estradas pavimentadas, por onde circulam automveis cada vez mais modernos, nibus, ao invs de jardineiras, e caminhes cada vez mais potentes, que expandem o potencial de circulao dessas mercadorias produzidas nestes estados no apenas para os demais estados do territrio nacional, mas, tambm, para aquelas localidades externas (Bolvia, Uruguai, Paraguai e Argentina) antes atendidas por ferrovia. O aumento da capacidade competitiva da indstria brasileira potencializa, portanto, o desempenho do modal rodovirio em relao ao ferrovirio. 34

neste mercado de transportes de vertiginoso crescimento de participao de produtos industrializados e atendido por uma rede de estradas cada vez mais modernas e extensas que as ferrovias tiveram de competir, em condies de crescente inferioridade operacional. Algumas das conseqncias deste processo podem ser percebidas pela expanso da malha rodoviria brasileira, no perodo compreendido entre 1960 e 2006 (ver Tabela 5, abaixo).

Tabela 5. Brasil: extenso das rodovias: totais e pavimentadas1960 Pavimentadas Estados Total Total 1966 Pavimentadas Total 2006 Pavimentadas31.230 16.495 22.906 14.230 12.334 21.173 6.041 7.037 3.321 61.512 196.279

SP RJ MG BA RS PR MT SC ES Outros Brasil

9.895 4.198 13.444 3.551 8.755 5.406 3.894 5.101 3.225 18.406 75.875

2.047 356 201 142 363 28 7 59 20 805 4.028

13.954 4.320 13.504 6.055 9.765 7.113 5.338 5.443 3.225 30.675 99.392

8.667 1.268 1.386 1.212 474 769 32 200 152 2.149 16.309

205.870 25.772 280.725 138.691 159.284 125.916 94.220 107.790 31.674 599.217 1.769.159

Fonte: Brasil, 1970, p. 52; Exame, nov. 2008, p. 228-233.

Em 2006, a malha rodoviria, com 1.769.160 km, ocupava a quarta colocao mundial no quesito extenso, embora do total desta malha apenas 196.279 km (11% do total) estivessem pavimentados (Exame, nov. 2007, p. 171); vale destacar que mais de 60% de toda a malha pavimentada, portanto, as melhores rodovias brasileiras, concentram-se em apenas 35

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

meia dzia de Estados brasileiros: SP, RJ, MG, BA, RS e PR (BRASIL, 1970). Aps aproximadamente seis dcadas de efetiva combinao entre industrializao e expanso rodoviria pode-se afirmar que o desenvolvimento das infraestruturas, tambm neste perodo, esteve e est relacionado s aes dos grupos econmicos hegemnicos que operaram na economia brasileira a partir de certas pores do territrio nacional e buscam, nestas aes, adaptar seus espaos lgica da circulao de suas mercadorias.

Consideraes finaisDesde o sculo XIX observa-se que a infraestrutura tem sido construda de modo concentrado em alguns poucos estados, com visvel benefcio aos estados economicamente mais ricos fenmeno observado primeiramente com a instalao das ferrovias e posteriormente com a expanso das rodovias. Embora essa infraestrutura tenha se modificado com a industrializao, no se pode afirmar que houve um desmonte generalizado das ferrovias, pois os corredores ferrovirios montados para atender aos fluxos de transportes no sentido interior-porto continuam desde o sculo XIX a funcionar em plena atividade ainda neste incio de sculo XXI. Quanto estrutura rodoviria que vem sendo desenvolvida desde a dcada de 1950, percebe-se que esta passou a atender prioritariamente demanda por circulao dos estados mais industrializados. H uma relao direta entre a industrializao (concentrada em alguns poucos estados) e a infraestrutura rodoviria brasileira. Alguns poucos estados mais industrializados obtiveram vantagens em relao aos demais. Em apenas seis estados, os mais industrializados (SP, RJ, MG, BA, RS e PR), esto localizados 60% de toda a malha pavimentada do pas. Estes, alm de terem sua malha ampliada a partir da dcada de 1960, tiveram melhorada a qualidade de suas rodovias, que foram pavimentadas numa proporo bastante superior dos demais estados brasileiros. 36

Assim, a opo pela indstria automotiva e pelo modal rodovirio implicou na implantao de estratgias estatais que contriburam para a desativao de parcela da malha ferroviria nacional, que fora se tornando ao longo das ltimas dcadas cada vez menos competitiva em algumas modalidades de transportes tais como o de passageiros, bagagens e encomendas, e animais. As rodovias substituram tanto o trfego interno quanto aqueles que se deslocam em direo s fronteiras por melhor atender nova demanda por circulao de mercadorias industrializadas, tanto para o mercado interno (nacional e intra-regional) quanto extra-regional. Afinal:[...] a articulao da infra-estrutura espacial se plasma em um novo esquema de compartimentao na qual as ilhas com vantagens competitivas tendem a consolidar relaes privilegiadas entre si e com o mercado global em detrimento da integrao interna dos espaos nacionais. Ainda que isso possa eventualmente impulsionar o aumento localizado de correntes de comrcio intra-regional... (TAVARES e GOMES, 1998, p. 222).

Portanto, em funo do formato de circulao de mercadorias que se redesenha a infraestrutura logstica nacional, cuja caracterstica parece convergir para beneficiar as ilhas de prosperidade e seus respectivos grupos de interesse (internos e externos), que, historicamente, articularam o espao econmico em funo de sua lgica econmica e social.

37

ACUMULAO DE CAPITAIS E SISTEMAS DE TRANSPORTES TERRESTRES NO BRASIL

Referncias BibliogrficasADOLPHO PINTO, Augusto. Histria da viao pblica de So Paulo. 2. ed. So Paulo, Governo de So Paulo, 1977. Coleo Paulstica,vol.II. ANURIO EXAME 2007-2008. So Paulo: Abril, nov. 2007. 234 p. BANDEIRA, Moniz. Presena dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978. BRASIL. Ministrio de Viao e Obras Pblicas [MVOP]. Estatstica das estradas de ferro da Unio e das fiscalizadas pela Unio relativa ao ano de 1906. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comrcio, 1908. _____. Departamento Nacional de Estradas de Ferro. Estatstica das estradas de ferro do Brasil e das fiscalizadas pela Unio relativa ao ano de 1916. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional 1922. _____. Departamento Nacional de Estradas de Ferro. Estatstica das estradas de ferro do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. _____. Departamento Nacional de Estradas de Ferro. Estatstica das estradas de ferro do Brasil relativa ao ano de 1953. Rio de Janeiro: Departamento Nacional de Estradas de Ferro, 1955. _____. Retrospecto da estatstica ferroviria nacional: 1958-68. Rio de Janeiro: DNEF, 1968. _____. Estatstica das estradas de ferro do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. BRASIL. Ministrio dos Transportes. Disponvel em: . Acesso em: 13 fev. 2009. _____. ANTT (Agncia Nacional de Transportes Terrestres).Disponvel em: . Acesso em: 10 jun. 2009. _____. Anurio estatstico dos transportes. Braslia: Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (GEIPOT), 1970. _____. Anurio estatstico dos transportes. Rio de Janeiro: Serv. Graf., 1970. _____. Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior (MDIC). Disponvel em: . Acesso em: jan. 2006.

38

_____. Portos escoam 81% das exportaes brasileiras em 2005. Disponvel em: . Acesso em: 08 fev. 2008. _____. Relatrio anual de acompanhamento das concesses ferrovirias: ano 2006. Disponvel em: Acesso em: 21 fev. 2008. CANO, Wilson. Razes da concentrao industrial em So Paulo. So Paulo: Hucitec, 1990. EISENBERG, Peter. The sugar industry in Pernambuco: modernisation without change. Berkeley: University of California, 1974. FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na Amrica Latina. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. FERRARI, Mivaldo Messias. A expanso do sistema rodovirio e o declnio das ferrovias no Estado de So Paulo. So Paulo, 1981. 222 p. Tese (Doutorado) Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo. IANNI, Octvio. Estado e capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1965. LUXEMBURGO, Rosa. A acumulao do capital: contribuio ao estudo econmico do imperialismo. So Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os Economistas). ORENSTEIN, Lus; SOCHACZEWSKI, Antnio Cludio. Democracia com desenvolvimento: 1956-1961. In: ABREU, Marcelo de Paiva. 22. ed. A ordem do progresso. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. SCHIFFER, Sueli Ramos. As polticas nacionais e a transformao do espao paulista: 1955-80. 1989. Tese (Doutorado) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, So Paulo. _____. A territorialidade revisitada: Brasil ps II PND. 1992. Tese (Livre-Docncia) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So Paulo, So Paulo. SCHVARZER, Jorge. La industria que supimos conseguir: una histria polticosocial de la industria argentina. Buenos Aires: Planeta, 1996. TAVARES, Maria da Conceio; GOMES, Gerson. La CEPAL y la integracin econmica de Amrica Latina. In: Reflexiones sobre a Amrica Latina Y el Caribe. Santiago de Chile: CEPAL, Octubre 1998. (Nmero extraordinario).

39

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL ENTRE GOIS E BELM DO PAR 1846/1967Dulce Portilho Maciel

IntroduoO presente trabalho visa contribuir para a compreenso dos processos que levaram a regio Central do Brasil a adquirir as atuais condies de adensamento populacional, urbanizao e modernizao econmica e sociocultural, contrastantes, em grande medida, com as ali vigentes em um passado ainda recente, de povoamento rarefeito, ruralismo, arcasmo dos mtodos de produo e rusticidade dos modos de vida. O trabalho trata dos meios de transporte utilizados na rota comercial, em funcionamento de meados do sculo XIX at pouco alm de meados do sculo XX, entre as regies do alto rio Araguaia (sudoeste de Gois e sudeste de Mato Grosso) e do baixo rio Tocantins (noroeste do Par), alcanando o porto de Belm. Inicialmente, esta rota foi toda fluvial, embora contivesse numerosos obstculos navegao, os quais exigiam, principalmente nas pocas de guas baixas, sucessivos transbordos de mercadorias e viajantes, sobretudo depois de alcanado o rio Tocantins. No comeo do sculo XX, entretanto, a rota passou a constituir-se de trs sees: uma primeira, fluvial, entre o porto de Leopoldina (atual Aruan), no rio Araguaia, prximo da cidade de Gois (capital do estado deste nome, at 1935), e o porto do rio Tocantins, no estado do Par, onde se achasse, na ocasio, o ponto terminal da Estrada de Ferro Tocantins (EFT); uma segunda, ferroviria, constituda pela linha da EFT, entre 41

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

este ponto e o porto de Alcobaa (atual cidade de Tucuru, ponto inicial e estao principal da EFT); uma terceira, novamente fluvial (e de franca navegao), do porto de Alcobaa ao de Belm. O trabalho baseia-se, principalmente, em fontes primrias, constitudas, entre outras, por documentos reunidos e conservados pela instituio federal denominada Fundao Brasil Central (FBC)1, criada em 1943 e extinta em 1967. Parte dos referidos documentos concerne aos territrios banhados pela bacia Araguaia-Tocantins, destacando-se, entre estes, os de natureza tcnica, relativos a aspectos das condies naturais e/ou socioeconmicas existentes naqueles territrios, sobretudo, quanto ao potencial de riquezas que encerravam. Outra parte dos documentos refere-se EFT, sua trajetria histrica entrara em funcionamento em 1905 e suas condies de funcionamento, neste ltimo caso, principalmente durante o tempo em que esteve sob a administrao da FBC, isto : entre 1944 e 1967.

Integrao centro-norte no sculo XIX: o comrcio como mbilO estado de Gois situa-se, como se sabe, no centro geogrfico do Brasil, sendo que, na atualidade, sua dimenso territorial acha-se bastante reduzida, em comparao com a que possuiu durante a maior parte do tempo em pauta neste trabalho. Ao longo daquele tempo, perdeu parcelas de seu territrio em benefcio de alguns estados limtrofes e, bem assim, para a implantao do Distrito Federal, sendo que, em poca recente (dcada de 1980), viu seu territrio desmembrado para a constituio de uma nova unidade na Federao brasileira, o estado do Tocantins. O estado de Gois a ser referido neste trabalho corresponde soma dos atuais terri-

1 Esta documentao atualmente faz parte do Fundo da FBC no Arquivo Nacional Coordenao Regional do Distrito Federal, em Braslia.

42

trios de Gois, Tocantins e Distrito Federal. A maior parte do territrio goiano ao qual vou me referir, de aqui em diante, banhada pela bacia fluvial Araguaia-Tocantins. So tambm banhados por ela os estados de Mato Grosso, Par e Maranho. O territrio abrangido por esta bacia atinge cerca de 754.000 km2, nas seguintes propores (aproximadas): Estado de Gois 59%, Estado de Mato Grosso 24%, Estado do Par 13%, Estado do Maranho 4% (DOLES, 1973, p. 17). Nos primeiros anos do sculo XIX, na ento Capitania de Goyaz, as minas de ouro antes em explorao achavam-se virtualmente esgotadas, de igual modo, alis, que nas demais reas de minerao da Colnia nas capitanias de Minas Gerais e Mato Grosso, principalmente. Em 1806, o cidado portugus Francisco Rodrigues Barata, oficial de milcias em servio na Capitania do Par, encaminhou a certa autoridade colonial um plano de recuperao econmica das terras goianas2, na poca em situao de decadncia. Inicialmente, o documento contm informaes acerca da geografia fsica da regio e introduz o assunto principal do seu plano, o aproveitamento da rede hidrogrfica regional, como iniciativa indispensvel para a obteno daquele objetivo:[...] acha-se a Capitania de Goyaz situada entre 6o e 22o de Latitude, e entre 326o e 335o de Longitude... He regada pelos rios Araguay, e Tocantins, que nella tem as suas nascentes, e por outros menos considerveis, que so tributarios d`ambos, os quaes todos se renem no dito rio Tocantins, que finalmente desgua no Amazonas na Capitania do Par. Daqui facilmente se conclue, que o mais importante Commercio, que a Capitania de Goyaz pode fazer ser com a do Par e pela commodidade, que offerecem os mencionados rios, particularmente o de Tocantins, que atravessa quazi toda a Capitania, tocando a maior parte dos seus Arraiaes...,

2 BARATA, Francisco Jos Rodrigues. Memria em que se mostram algumas providncias tendentes ao melhoramento da agricultura e comrcio da Capitania de Gois. In: Universidade Catlica de Gois (Org.), Memrias goianas I. Goinia: Centauro Editora, 1982, p. 55-94.

43

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

sendo navegvel at o rio Uru. He verdade que nesta navegao sencontro algumas difficuldades..., porm estas devem vencer-se pelo methodo...3

Conforme relata o autor do plano, abundavam na capitania muitos gneros de cultura: mandioca, feijo, arroz, milho (de que se fazia po), caf, algodo, acar, aguardente de cana, anil, trigo, urucu e outros. Abundava a terra, ainda, em carnes de porco e de boi, sendo que, do couro deste, faziam-se excelentes solas. No obstante tudo isto, era a referida capitania das mais pobres, que se podem considerar na nossa America, procedendo a sua pobresa da falta dexportao dos sobreditos gneros. Naquele mesmo ano de 1806, outra autoridade colonial, Joaquim Theotonio Segurado, ouvidor em Gois, ofereceu ao ento prncipe regente de Portugal (futuro D. Joo VI) suas Memrias,4 documento no qual demonstra o quanto seria vantajoso, para a capitania de Gois, estabelecer relaes de comrcio com a do Par, diferentemente do que ocorria em relao cidade do Rio de Janeiro, ento sede do vice-reino do Brasil e praa nica com a qual as regies de minerao na colnia podiam realizar, livremente, transaes comerciais. Na ocasio, um antigo sistema de via nica (Estrada Real) ligando as reas de minerao quela cidade havia sido abolido, mas persistiam muitas limitaes ao comrcio destas com outras partes da colnia. Segundo o ouvidor, tornara-se evidente, nos ltimos tempos, que o Comercio do Rio... he prejudicial a esta Capitania e que pello contrario o do Par pellos Rios Araguaia, e Maranho [antiga denominao de certa extenso do Tocantins], a poro ao nvel das mais ricas deste Continente. Argumentava ele que:

3 As citaes feitas neste trabalho conservam o modo como foram grafadas nos locais de onde foram retiradas. Em se tratando de documentos publicados, como se sabe, freqentemente a ortografia original sofreu mudana (atualizao), ocorrida na oportunidade da editorao da obra em que foram publicados. 4 SEGURADO, Joaquim Theotonio. Memria econmica e poltica sobre o comrcio ativo da capitania de Gois. In: Universidade Catlica de Gois, op. cit., p. 33-53.

44

No h Paiz central e distante das costas 300 legoas,5 que fertilidade una a capacidade de exportar facilmente as suas produoens, como a Capittania de Goyaz. Hum vasto Paiz, cheio de pingues Campos e densas Mattas, produzindo com sobeja liberalidade todos os fructos assim naturaes da Amrica, como da Europa, Azia e frica, um Paiz regado de cintenaes de Regatos, e Rios; dos quaes alguns so navegveis at a cidade do Par; tal he a Cappitania de Goiaz, que devendo ser das mais ricas do Brazil, e devendo por isso ser das mais interessantes para a Metrpole, desgraadamente est pobre, e della pouca utilidade resulta aos Nossos Augustoz Soberanos.

Os artigos exportveis pela capitania de Gois, segundo o ouvidor, eram os seguintes: algodo em rama, algodo tecido em rsticos teares domsticos, visto que a administrao metropolitana proibia o funcionamento de manufaturas na colnia , acar, aguardente, rapadura, caf, toucinho, carne seca, sola, couros de veados, fumo e feijo. Tais artigos alcanavam preos elevados na vila de Belm, diferentemente do que ocorria na praa do Rio de Janeiro. A pauta de exportaes da capitania era, na poca, bem menos extensa do que a citada acima, e seu volume era tambm reduzido. Veja-se uma estatstica existente (DOLES, op. cit., p. 32-33) para o ano de 1809:6 acar 6.099 arrobas, arroz 5.068 alqueires, algodo - 3.974 arrobas, trigo 414 alqueires, caf 212 arrobas. Embora pouco expressivos, tais nmeros atestam o esforo em que se empenhavam os habitantes da capitania, no sentido de conservar ativo o intercmbio de mercadorias com outras regies da Colnia, principalmente com a praa do Rio de Janeiro. Anteriormente, exportavam apenas ouro e, em menor escala, pedras preciosas (sobretudo diamantes), mercadorias que, pelo pequeno volume, careciam de parcas equipagens para seu

5 Medida de distncia antiga, equivalente a 6.600 metros. 6 Alqueire antiga medida de capacidade para secos e molhados, equivalente a 13,8 litros. Arroba peso antigo de 32 arrteis, atualmente arredondado para 15 quilos..

45

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

transporte. As importaes, igualmente, sobretudo as procedentes dessa praa, constitudas de produtos manufaturados, por seu pequeno volume (com elevada densidade de valor), exigiam reduzidas equipagens de transporte. As mercadorias vindas de outras regies da Colnia escravos africanos e rebanhos de gado vacum, muar e asinino - transportavam-se por si prprios. Agora, entretanto, no comrcio de exportao, as cargas a serem transportadas eram, em regra, de grande volume e/ou peso algodo, acar, cereais, etc.

Converso da economia goiana: da extrao mineral para a produo de gneros de subsistncia novas exigncias para o transporte de mercadoriasAs transaes comerciais goianas de longa distncia, o caso dos mercados litorneos Rio de Janeiro, secundado pela Bahia , o transporte de cargas era feito principalmente em lombo de animais, preferencialmente muares. A formao de tropas de carga implicava, todavia, em investimento financeiro de considervel envergadura, em face dos elevados preos dos animais, frequentemente importados de outras regies brasileiras. A produo de excedentes exportveis em grande escala era, por outro lado, tambm problemtica. A economia goiana achava-se, na primeira metade do sculo XIX, em lento processo de converso de um sistema fundado na extrao de metais e pedras preciosas, para outro baseado na produo de gneros de subsistncia agrcolas (gros) e da agropecuria. A transio exigiu rearranjos estruturais, no que se refere aos fatores terra e fora de trabalho, bem como ao capital, sob a forma de dinheiro. No primeiro caso, as unidades de produo aurfera constituam-se de pequenos lotes de terra, geralmente localizados em reas densamente 46

povoadas, dotadas de alguns servios essenciais, entre eles, um sistema de abastecimento, no mnimo, de gneros de alimentao. As novas atividades agrcolas, diferentemente disto, desenvolviam-se em unidades de produo constitudas de grandes glebas de terra, isoladas umas das outras e, com o passar do tempo, sempre mais afastadas de ncleos urbanos estveis e, assim, de centros de abastecimento. A composio da fora de trabalho, por seu lado, tambm sofreu drstica mudana. Antes, as unidades de minerao, em sua forma tpica, faziam uso exclusivamente de mo-de-obra escrava, importada da frica e de outras regies coloniais. Agora, o nmero de escravos escasseava-se, paulatinamente, diante da incapacidade crescente da Capitania, devido ao esgotamento das minas, de fazer face a esta importao. No novo sistema, a fora de trabalho escrava foi sendo substituda, ainda que precria e lentamente, pela mo-de-obra livre escravos forros, ndios aculturados, sertanejos pobres, etc. , em certos casos, predominantemente pelo trabalho familiar. O elemento dinheiro (o ouro, cunhado em forma de moeda ou em p), tanto para fazer face s necessidades de consumo da populao, quanto para bancar os investimentos exigidos pelo processo de reestruturao da economia, constituiu-se, sem dvida, no problema de mais difcil e demorada soluo. A escassez crescente de moeda metlica levou vastas reas do territrio goiano prtica generalizada do escambo; e esta situao perduraria, em algumas delas, ainda nas primeiras dcadas do sculo XX. Nestas condies, a economia goiana voltou-se para si prpria, com base em unidades de produo para auto-consumo, a includa a produo artesanal de manufaturas tecidos grosseiros, acar, aguardente, farinha (de milho e de mandioca), fumo, artefatos de couro, utenslios em geral, etc. Deste modo, em meados do sculo XIX, a pauta de importaes da Provncia de Goyaz (denominao ps-independncia do Brasil) resumia-se a uns poucos itens: ferro, plvora, chumbo, sal e pouco mais (BERTRAN, 1988, p. 42). Nesta poca, o sal, pelo seu elevado volume, 47

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

sobressaa-se largamente dos demais itens.7 A pecuria de gado vacum, para o qual este alimento indispensvel, ao que indicam os dados sobre a importao deste item, j ento, consolidava-se e expandia-se na economia da provncia. At aquela poca, o intercmbio de mercadorias com o litoral norte do pas, via Araguaia-Tocantins, era extremamente reduzido, realizandose apenas entre algumas povoaes localizadas ao norte da provncia de Gois e a cidade de Belm. No obstante o seu pequeno volume, bem como sua intermitncia, este comrcio revelou-se muito vantajoso para os goianos que o empreenderam, visto que podiam adquirir os artigos de que necessitavam vitalmente sal e ferro (este, matria prima indispensvel na fabricao de ferramentas para a agricultura) , em Belm, por preos de 2 a 3 vezes inferiores ao que pagavam os moradores da poro sul da provncia, servida pelo comrcio com o Rio de Janeiro (DOLES, op. cit., p. 57). A pauta de exportaes para o mercado de Belm era ainda mais reduzida que a do comrcio com a ento capital, a cidade do Rio de Janeiro. Para o norte, exportavam-se principalmente couros, inclusive, sob forma j submetida a beneficiamento primrio, as solas e as peles curtidas, as primeiras de couros bovinos, as segundas de animais silvestres.

Medidas para viabilizao de uso intensivo da rotaAlm de ampliar e dinamizar o intercmbio com a praa de Belm, as autoridades goianas tinham a ambio de que os agentes do comrcio da provncia viessem a obter acesso ao comrcio atlntico, via o porto daquela cidade. Da parte deste governo, foram inmeras as providncias,

7 Segundo o ltimo autor citado, em 1828, na balana comercial do julgado de Pilar de Gois, o sal representava 2/3 do valor das importaes e equivalia a todas as suas exportaes de origem agrcola.

48

junto a diferentes instncias do governo central, no sentido de sensibilizar as autoridades para a necessidade da adoo de medidas que viabilizassem o projeto. Na poca, um dos principais obstculos ao uso da rota Araguaia-Tocantins era a presena, ao longo dela, de inmeros e belicosos grupos indgenas. Em 1846, finalmente, o governo imperial determinou algumas medidas neste sentido, entre as quais, a que se efetivou foi a implantao de um aldeamento indgena de catequese (So Joaquim de Jamimbu), para onde foram destacados um missionrio e um regimento militar. Nas dcadas seguintes, diversos outros estabelecimentos missionrios e/ou militares foram fundados,8 s margens de ambos os principais rios da bacia, entre eles, uma colnia militar nas proximidades da cachoeira de Itaboca. Esta rea, no curso do mdio rio Tocantins, era extremamente vulnervel segurana dos navegantes, dada a grandiosidade deste obstculo navegao, somente superado mediante o transbordo de cargas, por longa e dificultosa via terrestre, circunstncia da qual, com certa freqncia, aproveitavam-se as populaes autctones, para desfechar ataques aos forasteiros ali em trnsito. Naquele ano de 1846, constituiu-se uma primeira sociedade mercantil privada, sob os auspcios do governo goiano, com a finalidade de explorar o comrcio fluvial pelo Araguaia. A cachoeira de Itaboca, somada s outras que a ela se encadeiam, permanecia como obstculo intransponvel ao trfego regular de frotas comerciais. A companhia iria sobreviver

8 No sculo XIX, instalaram-se na provncia de Gois quatro presdios militares: Urupensem, fundado em 1864, na margem direita do Rio Vermelho (afluente do Araguaia), distante da cidade de Gois (capital da provncia) 83 quilmetros; Santa Maria do Araguaia estabelecido em 1859, na margem direita do Araguaia, 11 quilmetros abaixo do porto de Leopoldina (atual Aruan); So Jos dos Martrios criado em 1861, abaixo do presdio de Santa Maria; Nova Belm instalado nas cabeceiras do rio Arcos (a 380 quilmetros da capital da provncia), foi depois transferido para a confluncia do rio Bagagem com o Maranho, a 66 quilmetros da ento vila de So Jos do Tocantins. COSTA BRANDO, A. J. Almanach da provncia de Goyaz (para o anno de 1886). Goinia: Ed. UFG, 1978, p. 103-104. (Reedio).

49

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

por alguns anos (at 1854), bem provavelmente, apenas graas aos incentivos governamentais que recebia (DOLES, op. cit., p. 61). No Araguaia, a resistncia indgena, inclusive mediante ataques e destruio de estabelecimentos militares, iria constituir-se, ainda por bastante tempo, no principal obstculo ao estabelecimento de rotas regulares de comrcio com o norte do pas. Consta que, durante o regime imperial (1822-1889), Gois abrigava o maior volume de populao indgena, entre as provncias brasileiras (GARCIA, 1999, p. 145-146), composta de numerosas (cerca de duas dezenas) naes; isto : grupos autctones, diversos uns dos outros, em tradies, costumes, lnguas, etc.9 Conservavase, entretanto, na poca, o comrcio entre algumas localidades goianas do norte e a praa de Belm, levado a efeito exclusivamente por iniciativa de produtores e comerciantes.

Comunicao mercantil pelo TocantinsUma estatstica acerca do pessoal empregado no transporte de cargas pelo rio Tocantins, na poca, fornece indicaes de que j possua ali relativo dinamismo. Segundo certa fonte, entre 400 e 500 trabalhadores, para os quais a atividade era profisso (remadores, pilotos, etc.), achavamse nela ocupados, anualmente (DOLES, op. cit., p. 67). Esta fora de trabalho distribua-se pelos povoados nortistas do estado de Gois, conforme essa fonte, aproximadamente, do seguinte modo: Palma 50 pessoas, Peixe 50 pessoas, Santa Clara 30 pessoas, Porto Imperial (atual cidade

9 Segundo dados oficiais da provncia de Gois para 1886, os habitantes indgenas da provncia pertenciam aos seguintes grupos: Caraj, Caraja, Grada, Chavante, Cherente, Carij ou Canoeiro, Java, Chambio, Acro, Aricob, Caro, Tememb, Naraguag, Afolig, Apinag. Outros grupos haviam habitado ali antes, mas encontravam-se desaparecidos ou tinham se fundido a outros grupos; eram estes: Goi, Garasmassu, Guapindai, Chacriaba, Coriti ou Papapu e Cherente de Cu. COSTA BRANDO, A. J. op. cit., p. 42-44.

50

de Porto Nacional) 150 pessoas, Carolina 100 pessoas, Boa Vista 100 pessoas. Em 1855, segundo a mesma fonte, 29 barcos procedentes dessas localidades desceram o Tocantins com destino a Belm, com um carregamento total de 20.000 couros. Enquanto isto, na poro sul da provncia, a populao padecia de gravssimos problemas econmico-sociais, conforme relato do seu ento presidente:10[...] gneros importados chegaro provncia por preos to altos que os pem fora do alcance das classes menos abastadas da populao; e o pior srs, que isto acontece mesmo a respeito dos gneros de primeira necessidade, como seja o sal, cujo preo elevouse... a ponto de atingir, nesta capital [cidade de Gois], o enorme custo de 30$ rs. o alqueire, ao passo que nas povoaes do norte se vendia a 13$73 rs. o alqueire [do sal adquirido na provncia] do Par...

Nesse tempo, a produo de gneros de subsistncia no Par achava-se em grave crise, em razo do deslocamento da reduzida fora de trabalho regional para atividades de extrao de borracha, na poca em expanso, em resposta crescente demanda por este produto, por parte de economias industriais estrangeiras em processo de desenvolvimento. Ao longo do tempo, at a ecloso da primeira Grande Guerra, o Par importou alimentos e outros gneros de primeira necessidade, de mercados estrangeiros (Inglaterra, Estados Unidos, Portugal, etc.) e nacionais (Maranho, Pernambuco e Cear), para abastecimento, principalmente, da cidade de Belm (SILVA, 1978, p. 35-38; DOLES, op. cit., p. 140). Vrios desses gneros constavam da pauta de exportaes da capitania de Gois, em direo ao mercado do Rio de Janeiro e, j agora, tambm de So Paulo: arroz, feijo, acar, caf, banha de porco, algodo, etc.

10 Relatrio do Governo da Provncia de Gois no ano de 1858, apud DOLES, op. cit., p. 74.

51

A ROTA ARAGUAIA-TOCANTINS DE COMUNICAO MERCANTIL

Em matria de abastecimento, a capitania do Par carecia tambm de carne bovina, visto que dispunha de poucas reas de criao de gado, cuja produo era insuficiente para suprir a demanda regional pelo produto, sobretudo a de Belm, centro urbano em rpida expanso, graas ao crescimento das exportaes de borracha e outros produtos extrativoflorestais. No obstante este crescimento, no final daquele sculo, do total das receitas obtidas mediante taxas de exportao pelo porto de Belm (segundo dados de 1899), perto de provinha de taxas referentes a subprodutos de gado vacum, metade disto relativa ao couro e a outra metade ao sebo (SILVA, op. cit., p. 63). Por este porto escoava-se, na poca, a produo destinada ao mercado externo, de toda a vasta regio do vale amaznico. Excetuado o Par, o restante da regio era desprovido de atividades de criao de gado. Sendo assim, parece lcito aventar-se a hiptese de que tais produtos da pecuria bovina provinham, em sua maior parte, de outros centros produtores, principalmente da provncia de Gois.

A navegao fluvial na rota Gois-BelmNas ltimas dcadas do sculo XIX, as condies de navegabilidade dos rios Araguaia e Tocantins eram j bem conhecidas das autoridades goianas e paraenses. Na publicao oficial intitulada Almanach da Provncia de Goyaz, editada em 1886, uma das matrias refere-se ao assunto.11 Explica-se ali que a linha de navegao pelo Araguaia, entre Itacaya (provncia de Mato Grosso) e a confluncia deste rio com o Tocantins, divide-se em duas sees de navegao, sendo uma franca e outra de planos inclinados: a primeira comea naquele porto e segue quase em uma bacia at o presdio de Santa Maria, em