Livro Curriculo e Formacao

Embed Size (px)

Citation preview

Cludio Orlando Costa do Nascimento Rita de Cssia Dias Pereira de Jesus

CURRCULO E FORMAODIVERSIDADE E EDUCAO DAS RELAES TNICO-RACIAIS

Setembro 2010 1

Os Autores Esta obra pode ser reproduzida sem autorizao prvia dos autores.

Edio e Impresso Editora Progressiva

(CIP)

Dados internacionais de catalogao na publicao

N244 Nascimento, Cludio Orlando Costa do. Jesus, Rita de Cssia Dias Pereira de. Currculo e Formao: diversidade e educao das relaes tnico-raciais. Curitiba: Progressiva, 2010, 338pgs. - p. : il. ISBN - 978-85-60124-21-3 1.Currculo 2. Formao do currculo 3. Etnicidade. I. Jesus, Rita de Cssia Dias P. de. II. Universidade Federal do Recncavo da Bahia, NEAB Recncavo. III. Ttulo. CDD 371.3

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECNCAVO DA BAHIA

REITOR PAULO GABRIEL SOLEDADE NACIF VICE-REITOR SLVIO LUIZ DE OLIVEIRA SOGLIA PR-REITORIA DE ADMINISTRAO ROSILDA SANTANA DOS SANTOS PR-REITORIA DE GESTO PESSOAL MARIA INS ALMEIDA DE OLIVEIRA PINTO PR-REITORIA DE GRADUAO DINALVA MELO DO NASCIMENTO PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO CARLOS ALFREDO LOPES DE CARVALHO PR-REITORIA DE PLANEJAMENTO WARLI ANJOS DE SOUZA PR-REITORIA DE EXTENSO AELSON SILVA DE ALMEIDA PR-REITORIA DE POLTICAS AFIRMATIVAS E ASSUNTOS ESTUDANTIS RITA DE CSSIA DIAS PEREIRA DE JESUS

3

NCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS DO RECNCAVO DA BAHIA ANTONIO LIBERAC CARDOSO SIMES PIRES COORDENADOR

CONSELHO CONSULTIVO Antonio Liberac Cardoso Simes Pires (UFRB presidente) Eurpedes Funes (UFC), Eugnio Lbano Soares (UFBA), Nicolau Pares (UFBA), Eduardo de Oliveira (UFBA), Mary Del Priore (IHGB RJ), Geraldo da Silva (UFT), Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (UFPE), Carmem Alveal (UFRN), Solange Pereira da Rocha (UFPE), Luiz Felipe de Alencastro (Sorbonne IV- Frana), Eliane Cavalheiro (UNB), Suzana Viegas (Universidade de Coimbra Portugal), Rafael de Bivar Marquese (USP) e Lvio Sansone (UFBA).

PARECERISTA Eduardo David de Oliveira

4

Aos Professores Felippe Serpa (in memorian), Teresinha Fres Burnham, Roberto Sidnei Macedo, Nelson Pretto, Dante Galef e Maria Inez Carvalho, nossa gratido!Cludio Orlando Costa do Nascimento Rita de Cssia Dias Pereira de Jesus

5

Em particular, ao meu lho Levy Orlando, aos sobrinhos Luiz Gomes (Lula), Rodrigo Costa, Ansio Costa, Diogo Costa e caro Pinheiro.Cludio Orlando

Em particular, a Thales e Ailim Dias e Tamiris Leoni.Rita de Cssia Dias

6

SUMRIO

Apresentao.....................................................................11 I O/A PROFESSOR/A-PESQUISADOR/A TEM UMA BIOGRAFIA 1. Histria de vida e formao. Rita de Cssia Dias..............................................................17 2. Ser-sendo professor-pesquisador... Autobiografia, implicaes e diversidade. Cludio Orlando Costa do Nascimento........................................43 II CURRCULO E FORMAO EM QUESTO 3. Influxos na formao: currculo, formao docente e debates contemporneos. Rita de Cssia Dias..............................................................59 4. Professores-atores-autores: teorias emergentes e a insustentabilidade de uma nica narrativa na formao de professores. Cludio Orlando Costa do Nascimento........................................77 III POLTICAS DE FORMAO, CURRCULO E CIDADANIA 5. Tenses Polticas na Formao de Professores: narrativas docentes no contexto da reforma. Cludio Orlando Costa do Nascimento........................................99 6. Contingncias na formao docente: interfaces entre cultura, raa, gnero e religiosidade. Rita de Cssia Dias.............................................................129 IV EXPERINCIAS DE CURRCULO E FORMAO 7. Os Observatrios Etnoformadores em Mutupe: Projeto Historiar e os dirios de formao de professores. Cludio Orlando Costa do Nascimento......................................145 7

8. Currculos em percursos formativos: problematizando a vivncia dos cursos de Licenciatura em Pedagogia. Rita de Cssia Dias.............................................................203 V CURRCULO, FORMAO E DIVERSIDADE 9. Bricolagens culturais como dispositivos de formao: flaneurismo em dialogia no Carnaval da Bahia. Cludio Orlando C. do Nascimento e Mary Cludia Cruz e Souza....................................................231 10. Descolonizando o outro no espelho: identidades nas fronteiras do currculo. Rita de Cssia Dias.............................................................245 VI CURRCULO E FORMAO: ABORDAGENS TNICO-RACIAIS 11. Os refluxos da formao: a questo tnico-racial, as polticas pblicas e a eqidade. Rita de Cssia Dias.............................................................257 12. Os Observatrios Etnoformadores em Salvador: Currculo e Formao tnico-Racial. Cludio Orlando Costa do Nascimento......................................281 13. Polticas afirmativas e formao acadmica: uma perspectiva de ao. Rita de Cssia Dias.............................................................301 14. A UFRB e a educao das relaes tnico-raciais. Rita de Cssia Dias e Cludio Orlando Costa do Nascimento............313 Referncias......................................................................325

8

BAOB

O Baob nos inspira. Uma rvore que simboliza a memria dos nossos ancestrais, os conhecimentos e expresses de sabedorias dos nossos antepassados. Inspira-nos a pensar uma Pedagogia Afirmativa, um currculo como dispositivo de ao, resistncia, ou melhor, de uma re-existncia definida pelo respeito e promoo da diversidade. Desta forma, nos referimos a uma educao que afirma uma existncia, ampla e inteira, com florescimento e enraizamento de atitudes que propiciem a diversidade e a educao das relaes tnico-raciais.Baob Esse canto uma forma de orao Ele fala da nossa tradio Dos nossos antepassados Os ancestrais do outro lado do mar Que com suas sabedorias e histrias Esto aqui e l, Baob! Uma semente foi plantada Trazida por Sacerdotes Africanos Fincada em solo baiano Os ancestrais atravessaram o mar Com suas sabedorias e histrias Esto aqui e l, Baob! Esse canto fala ao corao Diz sobre nossa formao, nossa identidade Histria, Cultura e Ancestralidade... Por isso, temos que cantar, falar e ensinar, Baob!

Cludio Orlando (Inspirado nos lhos do Recncavo: Mateus Aleluia, Maria Bethnia e Jorge Portugal. Uma ao armativa pr-implantao da Lei 10.639/03) 9

10

APRESENTAO

experincia aquilo que nos passa, ou que nos toca ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma [...] esse o saber da experincia o que se adquire no modo como algum vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da sua vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experincia no se trata da verdade do que so as coisas, mas do sentido ou do sem sentido do que nos acontece [...] por isso ningum pode aprender da experincia de outro a menos que essa experincia seja de algum modo revivida e tornada prpria. Larrosa

Neste livro se inscrevem duas trajetrias de vida que se entrelaaram pela amizade generosa, a cumplicidade terica, e pela anidade tica e poltica. So trajetrias que por si se imbricaram nos caminhos da formao acadmica e da atuao prossional, e que conuram para a elaborao de um repertrio terico que se complementa e aprofunda na proximidade. O que nos propomos a oferecer, nesta composio, uma sntese das interfaces entre as nossas diversidades, os nossos referenciais tericos, nossas experincias de formao1, nossa vivncia pessoal-prossional, nossas implicaes pedaggicas, tnico-raciais e aquilo que podemos elaborar, avaliar e conjugar nas variadas e signicativas experincias que expomos. Por admitir e reconhecer a importncia de estudos representativos no campo do currculo, da formao, da diversidade e das relaes tnico-raciais, nos lanamos num empreendimento que revela e arma nossa implicao, nossas autobiograas, assumindo o desao posto por Amlcar Cabral e relembrado por Ubiratan Castro ao dizer:1 Nesta produo integramos excertos adaptados e/ou ampliados dos textos apresentados em nossas teses de doutoramento registradas nas referncias do livro.

11

Cada negro letrado no Brasil tem a obrigao de sistematizar as suas prprias lembranas. assim que a experincia de cada um um trecho de realidade vivida, de muita valia para ns mesmos e para os outros, e que as narrativas nascidas da se transformem em currculo, bem como uma pauta formativa da nossa sociedade, que historicamente jogou o negro nos sofrimentos atrozes da desigualdade, negou e silenciou a sua cultura e religiosidade, tornando-o uma ausncia sociocultural e histrica em muitos espaos importantes da nossa sociedade. (CASTRO, U. 2007).

Cabe registrar que a criao na Universidade do Recncavo da Bahia UFRB, do Ncleo de Estudos Afro Brasileiros do Recncavo da Bahia (NEAB Recncavo), representa essa condio de - negros e negras comprometidos com as experincias vividas, as expresses de sabedorias, os conhecimentos situados, com os discursos que se transformam em currculo, institurem sentidos formativos e realidades diferenciadas. No mbito da UFRB, as proposies em torno da implantao de polticas pr-equidade se deram a partir da Pr-Reitoria de Polticas Armativas e Assuntos Estudantis PROPAAE, que, a partir de 2006, atravs do Ncleo de Educao, Diversidade e Cultura (NUDEC)2 lanou as bases para a constituio de um grupo de docentes e pesquisadores para promover o debate e a implantao das polticas armativas, das aes pr-diversidade e incluso social no Recncavo. O NEAB Recncavo constitui-se organicamente como grupo, gerando sustentabilidade institucional, infra-estrutura, gesto partilhada, realizao de trabalhos de iniciao cientca, de concluso de curso e projetos de ps-graduao, atravs do projeto enviado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientco e Tecnolgico - CNPq. Essa empreitada possibilitou e favoreceu o ingresso no PROGRAMA UNIAFRO, organizado pela Comisso Assessoria de Diversidade para Assuntos Relacionados aos Afro-descendentes (CADARA), da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) e Secretaria de Ensino Superior (Ministrio da Educao - MEC). A produo da presente obra, representa a nossa implicao e compromisso com a implantao da Lei 10.639.2003, que trata da incluso nos currculos das escolas de educao bsica da temtica, Histria e Cultura Africana e Afro-Brasileira, uma questo concernente2 Sob a gesto do Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira, poca, professor do Centro de Formao de Professores da UFRB, Campus de Amargosa.

12

Educao das Relaes tnico-Raciais, por conseguinte, pertinente s polticas de currculo e formao e o nosso compromisso institucional com o Programa UNIAFRO. Currculo e Formao: Diversidade e Relaes tnico-Raciais uma produo inspirada na noo de diversidade como um referencial poltico, epistemolgico, pedaggico, antropolgico, logo se consubstancia numa perspectiva que valoriza as interdependncias e complementaridades dos nossos discursos, das experincias, das vivncias, dos estudos e produes, notadamente, no que se relaciona temtica tnico-racial e suas implicaes educacionais. Optamos por uma abordagem complexa, contextualizada, que dialoga de forma crtica com os cenrios atuais, nos quais h narrativas que buscam, em nome de uma diversidade, escamotear a pertinncia dos discursos raciais, das aes armativas, resultantes das lutas e conquistas empreendidas, especialmente, pelos negros e negras, organizados em diversos grupos polticos, sociais, acadmicos, religiosos, dentre outros. Evocamos as noes de currculo e formao como dispositivos culturais relacionados aos processos constitutivos das diversidades, nesse sentido, as polticas pedaggicas pr-formao de identidades implicam em compreenso de situaes em que os sujeitos aprendem e ensinam atravs de vivncias, resistncias e lutas. Correspondemos ao desao lanado por Amlcar Cabral e reiterado nas palavras de Anzalda, citado por MCLAREN (2000), ao armar que os membros de culturas historicamente ameaadas tm que teorizar sobre identidade todos os dias, tm que calcular como so vistos pelos outros e como eles querem ver-se.

Cludio Orlando C. do Nascimento Rita de Cssia Dias P. de Jesus

13

14

-IO/A PROFESSOR/APESQUISADOR/A TEM UMA BIOGRAFIA

15

16

1HISTRIA DE VIDA E FORMAORita de Cssia Dias P. de JesusO professor-educador que no seja capaz de lidar internamente e em profundidade consigo mesmo no se encontra aparelhado para proporcionar experincia semelhante a uma outra pessoa humana; no ser capaz de proporcionar ao educando uma experincia de implicao consigo prprio quem no foi capaz de experiment-la em si. Joaquim Gonalves Barbosa

Vivemos um tempo de processos rpidos, de uma memria uida e de um cotidiano veloz e movedio que se esgara e modica quase que instantaneamente, dada a profuso de acontecimentos e dos meios de publiciz-los; uma fugacidade que demarca diferenas, singularidades, alteridades, semelhanas, continuidades, ressonncias, processos geo-histricos que singularizam e universalizam, inventando o outro, recriando o eu (Iani, 2000). Encontramo-nos em um momento de trnsito em que espao e tempo se cruzam para produzir guras complexas de diferena e identidade, passado e presente, incluso e excluso (Bhabha, 1998), isso nos impe uma reviso dos modos pelos quais vivemos e nos relacionamos e da forma como representamos a ns mesmos e s nossas sociedades. Em um mundo de interaes - sociais, tecnolgicas, interpessoais-, as tenses entre as tradies e o novo que se institui em sua multiplicidade, tm nos levado a repensar os processos tempo/espaciais por meio dos quais se constroem e so difundidos os conhecimentos, as tradies e as subjetividades, em um tempo em que as formas de armazenamento e difuso de informaes e, portanto, da prpria memria, v-se ampliada formidavelmente pelos recursos tecnolgicos, o nimo contra 17

o esquecimento, o desaparecimento histrico e a morte se revigora, a memria vem tona como um esforo para instituir e preservar o patrimnio cultural da humanidade, seja atravs dos esforos coletivos e institucionais (museus, bibliotecas, memoriais, monumentos etc) ou atravs dos atos individuais biogrcos, de preservao da histria pessoal (dirios, cartas, blogs, comunidades virtuais, biograas etc) que so tambm a histria vivida em um espao-tempo coletivo. Em face destas caractersticas tem sido fortalecida a proposio de estudos e aes formativas memorialistas que admitam a perspectiva epistemolgica da histria de vida.[Por denio reconstruo a posteriori], a histria de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existncia. Alm disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer uma certa coerncia por meio de laos lgicos entre acontecimentos-chaves (que aparecem ento de uma forma cada vez mais solidicada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenao cronolgica. Atravs desse trabalho de reconstruo de si mesmo o indivduo tende a denir seu lugar social e suas relaes com os outros. (grifo nosso). (POLLAK apud CATTANI et alli 2000, p.19)

Logo, abordar a formao por meio da narrao de histrias de vida que serve de anncio para as reexes, conexes e extrapolaes havidas a partir delas -, tocar na complexidade das comunicaes que se estabelecem entre o pensado, o negociado, o vivido e aquilo que projetado, perspectivado aps a anlise da experincia, e o que o juzo de valor gerado a partir dessas conexes e dissenses, buscar estabelecer de forma o mais profunda possvel uma escrita e uma leitura de si, como abordagem terico-metodolgica, uma forma pela qual a um s tempo se objeto e sujeito implicado da/na formao. E como conseqncia disso, o indivduo que se dene, o faz tambm em relao ao tipo de sociedade na qual se engaja e que est disposto a construir, pois a memria construda tanto individual quanto socialmente, sendo, portanto, fonte de ressignicao, pois traz as convivncias, as interaes que nos permitiram ser o que ns somos, ser o que nos tornamos, mostra-nos os elos sociais e tambm as dissociaes que foram realizadas, torna-nos sbios pela incorporao de muitas vidas, de muitas experincias (individuais e coletivas) entrelaadas nossa, tirando das sombras a identidade social que tambm nos compe, 18

(HAMPTT BA, 2003), guisa do que tambm nos diz Nvoa (1995) a nossa matria so as pedras vivas, as pessoas, porque neste campo os verbos conjugam-se nas suas formas transitivas e pronominais: formar formar-se. (p.32) Esse entendimento coaduna-se singularmente com o lugar proposto por Boaventura Santos (2002) para o indivduo e sua subjetividade. Ele nos diz parafraseando Clausewitz: todo conhecimento emancipatrio auto-conhecimento (p.83), argumentando que a cincia moderna ao mesmo tempo que consagrou o homem como sujeito epistmico o expulsou na condio de sujeito emprico, e defendendo que o carter autobiogrco do conhecimento-emancipao plenamente assumido como um conhecimento compreensivo e ntimo que no nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos.(SANTOS, 2002, p.84)Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectrias de vida pessoais e colectivas (enquanto comunidades cientcas) e os valores, as crenas e os preconceitos que transportam so a prova ntima do nosso conhecimento, sem o qual nossas investigaes laboratoriais ou de arquivo, os nossos clculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligncias absurdas sem o nem pavio. No entanto, este saber das nossas trajetrias e valores, do qual podemos ou no ter conscincia, corre subterrnea e clandestinamente, nos pressupostos no-ditos do nosso discurso acadmico. (SANTOS, 2002, p.84)

Acompanho o argumento de Boaventura Santos ao analisar o empreendimento da pesquisa e as estratgias metodolgicas nas diferentes cincias, identica a necessidade de ora aproximar sujeito e objeto (como na Antropologia social atravs de mecanismos como o trabalho de campo etnogrco e a observao participante), ora distanci-los dada a intimidade entre sujeito e objeto, como o caso da sociologia que aumentou essa distncia atravs de metodologias de distanciamento como os mtodos quantitativos, a entrevista estruturada, a anlise documental e o inqurito sociolgico. Nessa denio da forma da escrita memorialstica que no distingue o humano do no-humano, uma forma de pesquisa espontnea, como entendido por Grard Mendel, uma vez que dedicada imerso em um sistema de referncia do ofcio e da vida, chega a mim tambm a advertncia para o cuidado necessrio com o ufanismo do indivduo que conta a sua prpria histria, e tal qual outro artista 19

qualquer, destaca as nuanas mais favorveis e obnubila os traos menos harmoniosos do modelo. Aquele cuidado de, ao narrar em perspectiva o vivido, negociado e cotejado luz no s das experincias, mas de uma comunicao estabelecida com o arcabouo terico que permite analisar as vivncias, no cair na tentao, sempre carismtica, de desvirtuar a forma das memrias, ou a voz dos interlocutores alheios e/ou desinteressados da existncia do narrador-memorialista, fazendo recair sobre suas palavras e pensamentos, e sobre fatos, relembrados fortuita e aleatoriamente, organizados em um simulacro, que os torna os argumentos irrefutveis do discurso construdo, como se escritos ou ditos para mim, para raticarme, autorizar-me, aquela advertncia tambm feita por Walter Benjamin ao tratar da obra memorialstica de Proust,[...] o importante para o autor que rememora no o que ele viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de Penlope da reminiscncia. Ou seria prefervel falar do trabalho de Penlope do esquecimento? [...] No seria esse trabalho de rememorao espontnea em que a rememorao a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penlope, mais que sua cpia? Pois aqui o dia que desfaz o trabalho da noite. (BENJAMIN apud CATTANI, 1991, p.24-25)

Norteada por estes dois vrtices e admitidos inclusive, como condies para a escrita, deno a obra memorialstica como uma caminhada da Penlope que desfaz o novelo, atenta aos esquecimentos, pois h aqueles que constituem a memria e os que a silenciam, enredando as lembranas e reexes numa espcie de caleidoscpio, atravs do qual ao xar no que o real-vivido, abre-se o campo para o que o intangvelesquecido e para o que o pensado-desejado, numa espcie de fractal, tornando o possvel algo realizvel, na alucinada potencialidade das combinaes, das clivagens, das reentrncias, das sobressalncias, das absores e das lacunas dos esquecimentos, das alegrias e frustraes tambm presentes nas escolhas. As memrias relacionam-se a processos de subjetivao complexos, que incluem sensaes e imagens mentais, eventos pblicos, situaes vivenciadas e compartilhadas, ancoram-se em espaos, grupos, objetos; os indivduos recordam-se de forma singular, mas neste recordar est a memria social, pois os indivduos no so autmatos, nem to pouco dissociados.Em formao, as histrias de vida tocam as fronteiras do

20

racional e do imaginrio. Por um lado, a sua perspectivao temporal impe a organizao sinergtica de uma herana revisitada, aqui e agora, luz dos desejos e das questes do presente, e de um devir em inveno, povoado de mltiplas expectativas projetadas desde a infncia; por outro, a encenao de um itinerrio ou de uma errncia em histria, a partir de uma escolha de referncias, sem dvida objetivveis e racionalizadas, mas numa forma narrativa que lhe pregura o sentido (direo e signicao). Isso leva o indivduo a compor uma viso imaginria de si mesmo. (JOSSO, 2004, p.263)

Seja essa viso de si, imaginria, idealizada, confessional ou real, ela o sem hierarquizaes. Ao narr-la, o sujeito estabelece os vnculos entre o que tem da sua singularidade, daquilo que irrepetvel e que constitui a sua identidade e tudo o mais que a sua herana cultural, familiar, histrica, social. E, dessa forma, ento prov a fora motriz da renovao dos coletivos humanos. Como bem diz Marie-Christine Josso as sociedades e as culturas apresentam-se como sistemas abertos, inovadores que tm uma certa capacidade de adaptao graas a essa propriedade de autopoisis de cada indivduo. (Josso, 2004, p.264). O conceito de (auto)poisis, do latim poyesis, signica a produo, a fabricao do prprio existir humano, individual e social, objetiva e subjetivamente (Macedo, 2002), a abertura do ser em seu processo criativo de auto-formao em conexo com o mundo. Estamos, portanto, no campo movente da subjetividade, de uma criao contnua do que nos constitui, o que passa pelo reconhecimento e pela aceitao das referncias pessoais, como pesquisadora, no quadro dos referentes tericos de que me valho, uma vez que a escolha do objeto pe em condio de reciprocidade e intercmbio os lugares do sujeito e do objeto, e situada de uma forma bastante singular, pelo posicionamento tico e terico diante dele, uma voz que no neutra e por isso mesmo, se v autorizada. Nietszche em seu livro autobiogrco intitulado Ecce homo de como a gente se torna o que a gente , uma epgrafe recorrentemente utilizada por ele, pontica: minha sagacidade, ter sido muitas coisas em muitos lugares a m de poder me tornar uno a m de poder chegar a ser um (Nietszche, 2003, p.95), um saber e um ser constitudos de experincias.A experincia um passo, uma passagem. Contm o ex do exterior, do exlio, do estranho, do xtase. Contm tambm

21

o per de percurso, do passar atravs, da viagem, de uma viagem na qual o sujeito da experincia se prova e se ensaia a si mesmo. E no sem risco: no experiri est o periri, o perigo. (LARROSA, 2005, p.67)

Isto se coloca para mim, como pesquisadora, de uma forma bastante instigante, pois minha trajetria inicial e tudo que nela foi constitudo como norma e como um modelo a se estabelecer, viu-se alterada pelo que de forma autnoma, auto-determinada, pude constituir como itinerncia de vida e formao, uma experincia concreta de multirreferencialidade constituda pelas diferentes presenas culturais, vivenciais, tericas e os diferentes cenrios, contextos e eventos, na conjuno dos quais constituo essa trajetria. A errncia do sujeito nesse processo pode ser analisada sem antinomias, ela simplesmente vivncia, aquilo que permite entrar em contato com outras lgicas, outras concepes e saberes individuais e culturais que constituem um processo ativo e interativo de subjeticaes pessoais de anlise-identicao-alheamentoacolhimento-internalizao, que ora libertam, ora aprisionam, pelo juzo de valor que lhe inextrincvel, mas que ainda assim, de forma auspiciosa, franqueia a liberdade para que o indivduo se lance neste cotejar da vivncia, para faz-lo no s como uma retrospectiva mas como um lanar-se, ousadamente, na projeo, na prospeco (que busca a natureza e o valor do que pensa e vive) que vai adiante e ao longe, na aventura do que deseja tornar-se, como pessoa, como ser, como formador/a de si e do outro, pois a memria no um recipiente passivo de impresses. , pelo contrrio, um processo ativo de busca de signicado que reestrutura os elementos a serem lembrados de forma a conserv-los, reorden-los ou exclu-los, como entendem Fentress & Wickman (1992). dessa perspectiva que a todo o tempo questiono se a memria qual se recorre comporta a noo de conjugao do tempo em presente, passado e futuro, estanques e isoladamente considerados. Se ao tocar no que se deniu chamar de questes contemporneas como as culturas, as identidades, as diferenas, atravs do cotejar com a prpria vivncia e experincia, no se est de uma certa forma tentando conspurcar o prprio ninho, atribuindo ao passado tornado presente pelo discurso, a capacidade de projeo de um futuro, uma espcie de non plus ultra nessa capacidade de interpretao, visto que essa releitura do passado feita atravs dos questionamentos, dos desejos, dos projetos e das perspectivas de vida, so atualizadas no presente, foi atualizada no passado e poder s-lo naquilo que projeta-se para o futuro, exatamente 22

porque o fazemos no dilogo entre o que pensamos desse vivido, a fonte na qual se busca a perspectiva propositiva do presente. Vendo o futuro no s como uma aposta, mas tambm o presente que minimamente previsto, ao ver os dados sendo rolados a todo momento, como nos dizia Felippe Serpa, na impermanncia do uxo temporal, mimetizado nos uxos de vida social, cultural, poltico e econmico, que reorganizam e reinventam estes mesmos uxos, vivendo no presente, como o el da balana, equilibrando numa e noutra mo, o passado e o futuro, em um devir constante. Memria pretexto e contexto. Pois as memrias no so objetos, diz-nos Nunes (1987):So experincias vividas interiormente, o que as distinguem do conhecimento. Se o conhecimento s nos pertence de forma contingente, as memrias so indissoluvelmente nossas, fazem parte de ns e nos constituem. Estamos no centro delas e s quando elas fazem conscientemente parte de ns podemos partilh-las com os outros. A recordao, portanto, no se separa da conscincia, mantendo com ela uma via de mo dupla. As memrias dizem quem somos. Integram nosso presente ao passado, tanto na perspectiva de que inventamos um passado adequado ao presente, quanto o contrrio. (NUNES, 1987, p.4)

por isso que a noo de temporalidade entendida como uxo en train de se faire - tem um vulto signicativo na discusso aqui iniciada. O que defendo o experimentar do lapso do tempo narrado como o inacabamento vivo do sentido de uxo em fatos, acontecimentos e ocorrncias vivenciados em tempos singularizados, particulares que conguram o cenrio do enredo das diferentes experincias de vida, que podero vir a se comunicar e assim, constituir uma histria pessoal que pode se tornar coletivizada, pelas suas (des)semelhanas, tal como ocorre nos processos emergentes em sistemas complexos, nos quais os agentes individuais do sistema decidem e atuam de forma individual e local, mas sua ao, tornada coletiva pela correlao dessas individualidades, produz um comportamento global, aquilo que Steven Johnson (2003) ao discutir a concepo de emergncia, denomina de sistema bottom-up. Narrar e/ou descrever o que se processa atravs desses enredos, onde atuam diversos e independentes atores, escrever como em um desenho feito em decalque, por mais que se tente ser el ao marco 23

original, os traos fogem marcao e criam outros contornos, outras formas e possibilidades, constituindo assim, o espao metafrico e real das singularidades.Somos, ento, de incio levados a considerar a narrativa como tendo uma autenticidade que se fundamenta na capacidade do autor de reconstituir, por um lado, aspectos da sua interioridade e, por outro, na capacidade de no-los reconstituir, na sua dimenso simblica, alimentada pelas diferentes fontes do imaginrio cultural pelas quais o autor se interessou ou com que esteve em contato ao longo da vida. A projeo de si num futuro mais ou menos prximo obriga, de resto, as pessoas a inventarem cenrios possveis daquilo em que desejam tornar-se, em seu fazer e em seu ser, em relao com o mundo. (grifo nosso). (JOSSO, 2004, p.264)

difcil a qualquer ser humano dar as costas prpria biograa, s suas experincias de vida e s conseqncias delas para a formao do que o constitui como indivduo, quilo que o torna o que . Isto tambm indesejvel, especialmente, quando estamos nos referindo aos processos de formao daqueles que se denem como educadores/as. Entendo que ser sempre necessrio considerar que em quaisquer processos de formao, s dimenses que esto no campo da tcnica, precisam ser associadas a compreenso dos contextos que permitiram o uxo daquela formao. assim que os estudos sobre as histrias de vida ganham azo e credibilidade no mbito dos estudos sobre a formao de professores/as3. Samos de um momento de concentrao exclusiva na consolidao de uma competncia tcnica, para um outro estgio que alia a ela, uma competncia humana, formar-se conhecer-se, proferir-se, autorizar-se. O registro das memrias foi sempre um elemento presente na histria da humanidade. Por meio de diferentes tecnologias, os seres3 Desejo considerar na elaborao deste texto a preocupao com a dimenso de gnero na linguagem, tentando escapar do monoplio que o uso do masculino como subjetivao na escrita, fao isto como uma forma de questionamento da representao do feminino em nossa sociedade e na produo do conhecimento. No tendo encontrado outra forma, optei pelo duplo artigo o/a e suas variaes. Reconheo no ser esse simulacro o mais adequado nem to pouco o mais expressivo, mas desejo, inclusive pelo incmodo que este formato provoca, sublinhar a necessidade de questionarmos tambm esta forma de subjugao e subalternidade da presena feminina.

24

humanos perpetuaram seu modo de vida, as relaes sociais, o lugar dos indivduos nas sociedades, suas crenas religiosas, suas conquistas, sua forma de lembrar do passado - desenhos rupestres, afrescos, cermica, escultura, pinturas, textos, lendas, mitos, contos etc. Em tempos de avanadas tecnologias, o registro das memrias ganha outra vitalidade e forma, pois alm do contato com a memria como registro xo, esttico e estvel, h tambm a possibilidade de interao, de uma espcie de revival atravs dos meios interativos das gravaes, dos vdeos, dos lmes e da innidade de recursos disponveis na www, e nos suportes de software livre. O registro permite no s xar a memria social, dos fatos efetivamente vividos, mas tambm inventar outras memrias, selecionando dos fatos, dos registros e por m, da histria, aquilo que no interesse preservar ou divulgar, interferindo assim, diretamente, no s na memria individual, mas principalmente, na memria coletiva, disso a histria da humanidade plena de exemplos. assim, que a todo momento, histrias esto sendo criadas, perpetuadas, esquecidas, exaltadas, ou simplesmente, apagadas. Propus como desao em um estudo acadmico4, acionar a memria para compor a histria que narro em um exerccio de investigao, confrontao, pesquisa, indagao. Portanto, falar daquilo que retido pela memria, e transbord-lo como uma histria, no to somente falar do passado, questionar o que tem signicado para a formao, para a constituio pessoal. , por conseguinte, que como memorialista conecto o universo dos acontecimentos vividos-criados em uma policentralidade. Uma vez que ao falar de si, de mim, da histria pessoal real ou ctcia -, cada pessoa que estabelece esse dilogo, o faz inserindo-se num contexto, permitindo ressonncias, numa teia de lembranas ou (re)criao de eventos e pessoas que raticam a sua histria pessoal num movimento coletivo, a substncia social da memria que aparece naquilo que paulatinamente individualiza o sujeito. Anal, ningum se constitui isoladamente, no se sozinho. por este motivo, que pesquisadores como Nvoa, Dominic, Goodson, Josso, Cattani, Canetti dentre outros, passam a sustentar que o uso dos relatos das histrias de vidas de professores/as - o uso de narrativas autobiogrcas - possibilita ver o indivduo considerando a histria e o seu tempo, o indivduo e sua sociedade, esclarecendo assim, escolhas, desistncias, nfases, omisses, contingncias, opes individuais e coletivas, polticas de sentido que se convertem em4 Tese de Doutorado. PPGE/FACED/UFBA.

25

signicaes no exerccio, seja da vida como um todo, ou na experincia prossional, em particular. A histria de vida pode se congurar, portanto, em uma anlise do processo de formao prossional, a partir de um empreendimento historiogrco, que tem nfase nos aspectos da insero social e cultural da pedagogia e da educao. Compe, outrossim, um conjunto das representaes sobre o mundo social, o iderio que as pessoas admitiram para estabelecer relaes em sociedade. No se trata apenas de entrar em contato com o que a vida ensina, mas com aquilo que se aprende atravs das experincias que so vivenciadas e/ou desperdiadas, considerando que elas tm uma maior possibilidade de terem sido geradas, escolhidas ou preteridas, para serem contadas pelos prprios indivduos em formao, o que potencializa o seu poder de formao. So estudos que permitem captar as dimenses em que as histrias individuais se conectam a processos histricos e sociais, onde processos nos planos micro e macro, objetivos e subjetivos podem ser examinados.A originalidade da metodologia de pesquisa-formao em Histria de Vida situa-se em primeiro lugar, em nossa constante preocupao com que os autores de narrativas consigam atingir uma produo de conhecimentos que tenham sentido para eles e que eles prprios se inscrevam num projeto de conhecimentos que os institua como sujeitos. (JOSSO, 2004, p.25)

So, portanto, biograas educativas do que tratamos aqui, conforme entende Josso (2004), pois permitem que ao reetir sobre o passado sejam formuladas proposies tanto para o presente quanto para o futuro, [...] a conscincia nasce quando interpretamos um objeto com o nosso sentido autobiogrco, a nossa identidade e a nossa capacidade de anteciparmos o que h de vir (Josso, 2004, p.29). a ao de mulheres e homens sobre a realidade, que leva sua prpria transformao e transformao da sociedade. Concordo com Ferraroti citado por Cattani (2001) quando diz que:Cada vida humana se revela, mesmo em seus aspectos menos generalizveis como sntese vertical de uma histria social. Cada comportamento e ato individual aparece em suas formas nicas como sntese horizontal de uma estrutura social. [...] nosso sistema social est inteiro em nossos atos,

26

em nossos sonhos, delrios, obras, comportamentos e a histria desse sistema est por inteiro na histria da nossa vida individual. (FERRAROTI apud CATTANI, 2001, p.64)

A temtica das histrias de vida tem se tornado recorrente nos dias atuais, a partir da reabilitao do sujeito e do ator, e da Teoria dos Sistemas (Bertalanffy), descortinando uma forma de centramento nos sujeitos aprendentes, na auto-formao, especialmente quando se trata da formao de professores/as, girando em torno de dois eixos: um projeto terico de compreenso biogrca da formao e da autoformao atravs das perspectivas de pesquisa-formao e o uso de abordagens biogrcas a servio de projetos. (Josso, 2004, p.22). H uma grande aproximao da temtica das histrias de vida com os ensaios de ego-histria propostos por Pierre Nora (1989), atravs dos quais ele pretendia que historiadores franceses realizassem a experincia de serem historiadores deles prprios, nada de inovador, uma vez que o uso das autobiograas sempre foi uma fonte de destaque entre os recursos utilizados pelos historiadores, principalmente na historiograa mais tradicional. Entretanto, esse antigo uso que permitia aos historiadores escreverem autobiograas centradas apenas nas aes dos biografados, sem referncias aos seus contextos, inclusive histricos, foi veementemente rechaado a partir da segunda metade do sculo XX, por serem meras apologias de histrias ociais. Essa reao fez com que o indivduo desaparecesse quase que totalmente das narrativas histricas, tornado-as histrias das estruturas sem face (estruturas sociais e econmicas, classes e movimentos sociais). A partir da dcada de 80, do sculo XX, o uso da biograa foi reavaliado e readmitido por inmeros historiadores que comearam a abordar a questo com problemticas renovadas, incluindo a meta de ser uma base documental da memria que seja relevante para a compreenso da histria das idias e da cultura, a exemplo do que intencionavam os organizadores do projeto que visa a registrar os depoimentos orais sobre as trajetrias pessoais e prossionais dos mais destacados intelectuais das cincias humanas no Brasil.5 A histria de vida permite ao memorialista a anlise social to cara historiograa, mas associada possibilidade de o sujeito interrogar-se, defrontar-se consigo mesmo no seu processo e trajetria de formao pessoal e prossional, como nos adverte Michael de Certeau,5 Conversas com economistas brasileiros I e II, Conversas com lsofos brasileiros, Conversas com historiadores brasileiros e Conversas com cientistas polticos brasileiros.

27

de reconhecer o presente no seu objeto e o passado nas suas prticas. A narrativa de inspirao autobiogrca, longe de ter uma organizao restritiva, quer se instalar como um dilogo -, que revela traos da formao, da trajetria intelectual, das formas de estudo e pesquisa, peculiaridades da vida privada, reexes sobre o exerccio prossional -, e como tal, se ver entrecortada pelos interlocutores ora personagens dos fatos e episdios relatados -, ora pelos cenrios da narrativa - os contextos e todos os recursos que sero necessrios para fazer o fato algo compreensvel e articulado -, ora com o quadro terico que serve de lastro para as discusses com os pensamentos dos autores evocados. Estabeleci em meus estudos, uma conversao, elaborada em forma de intertexto6, caracterizada o mximo possvel pelo tom informal, um meio de atender ao desejo de perguntar, de interpor, de colocar-se com a inquietante expectativa da resposta, que muitas vezes, o/a leitor/a tem. Considerando nesse contexto, o que sinaliza Ortega quanto estranha e dupla condio do dizer: todo dizer deciente diz menos do que quer; e todo dizer exuberante - d a entender mais do que se prope. Em alguns casos, simplesmente pude rememorar fatos, episdios e conversas com outros personagens que tm nomes; noutros, valendome de notas de observao, de documentos que xaram minhas experincias, de fotograas, de textos, das notas margem dos textos lidos, das entrevistas realizadas, das sesses de estudo, das aulas s quais assisti, dos eventos de que participei, os grupos focais realizados ao longo da minha itinerncia acadmica, e uma innidade de anotaes que acabam congurando uma espcie de dirio de campo da minha prpria elaborao intelectual, acabam por demarcar aquelas concepes que se tornaram sensibilizadoras para minha anlise porque sinalizam aspectos importantes da realidade que enfoco, e que como tais, imergem, emergem e submergem no texto em um movimento cadenciado de descoberta contnua de uma tessitura enraizada, expressada na forma de um intertexto, estrutura de escrita que conecta e articula todos estes elementos sem distines delimitadoras de onde no texto vivncia (campo), onde referncia (teoria) e onde opinio (concluses e ilaes). Portanto, enfoco a histria de vida ora como texto, contexto e6 Intertexto construo que advm da tcnica de anlise contrastiva constante, formulada por Burnham (1988) e aprimorada no NEPEC Ncleo de ensino, pesquisa e extenso em currculo, tecnologia e conhecimento FACED/ UFBA.

28

pretexto para abordar aspectos tericos, contextos scio-histricos e fatos que considero relevantes para a abordagem das temticas que so alvos de meus estudos. As histrias de vida nos fornecem um belo lastro porque ao enfoc-las, abarcamos a vida em todos os seus aspectos, visando a sua globalidade, nas dimenses passadas, presentes e futuras, articuladas em uma dinmica que prpria das histrias narradas, porque ao rememorar, pode-se, em boa medida, escolher o que acionar na memria e o porqu de faz-lo. (Le Goff). A imerso nas experincias vividas e a reexo sobre elas permitem quele que deseja perscrutar o seu processo de formao, instalar questionamentos que se referem sua constituio como pessoa e como prossional, pode-se perguntar: como cheguei a ser o que eu sou? Quais as minhas caractersticas pessoais signicantes para a minha atuao prossional? O meu desenvolvimento pessoal se articula com o prossional? Quais as inuncias pessoais que tenho como professor/a?. Como deno portanto, a minha identidade prossional a partir da minha prtica pedaggica que se institui em um cenrio de tenses e conitos entre acomodaes,assimilaes e mudanas, na interface entre os aspectos pessoais e prossionais?A formao do professor como prossional reexivo passa necessariamente pela qualidade e competncia tcnicopoltica e investigativa que o mesmo estabelece com sua prxis de trabalho docente/educativo a partir do conhecimento na ao, reexo na ao, reexo sobre a ao e sobre a reexo na ao. (SCHN, 1995, p.81)

Este exerccio, verdadeira anamnsia, descortina aspectos subjetivos que tm conexo com o desenvolvimento prossional, com a forma pela qual efetivada a docncia e como caracterizado o trabalho docente. Lamentavelmente, quase sempre, ao discutirmos as polticas e programas para a formao docente, o fazemos do ponto de vista eminentemente dos conhecimentos tcnico-cientco-pedaggico e disciplinar, e desconsideramos os aspectos das subjetividades que interferiram nas formas como constitumos o nosso modo de pensar, de estabelecer nossas prioridades, de entender e atuar no mundo, modo este que se estabelece a partir de caractersticas pessoais de pertencimento de raa, gnero, classe social e orientao sexual, opo religiosa, denio poltica etc, ou seja, do conhecimento de si e de seu tempo/espao. 29

As polticas de sentido, ento estabelecidas, tm grande relevncia quando tratamos da memria coletiva construda pelas especicidades dos sujeitos, especialmente se a estes indivduos foi usurpado o direito de ter e narrar a sua prpria histria, uma situao recorrente quando tratamos das minorias raciais, tnicas, religiosas, de gnero etc, em nossa sociedade. Ao dedicar-me a fazer um estudo de cunho autobiogrco (portanto, singular e de autonomizao subjetiva) o que pretendo inscrever a minha histria, e fazer ecoar a minha voz sobre a constituio da identidade negra no campo tensionado dos estudos sobre a prosso docente na contemporaneidade. Ao faz-lo, atravs de uma prtica reexiva que enfoca os contextos e as condies em que vivi as experincias que relato, com todo o deslocamento do egocentrismo que me foi possvel, falo das marcas sociais da formao de uma educadora negra, com tudo o que poltica, social, cultural e historicamente isto signica. Esta singularidade est diretamente ligada forma como o poder de narrar (-se), de proferir, conecta-se ao grau de invisibilidade conferida a populaes negras no interior das sociedades ao longo da histria recente.Ao se denunciar a relao entre o poder dos dominantes de reservar para si o direito memria, de impor sua verso do passado aos dominados, de menosprezar as rememoraes do homem comum, principalmente de proibir a transformao da memria em experincia, colocou a nu um dos dispositivos mais autoritrios e insidiosos do colonialismo da tecnocincia sobre o pensamento atual. [...] Na dcada de 80[...] revalorizou-se, sob o conceito de experincia, a memria e sua relao com a vida prtica, mas principalmente se demonstrou a relao entre o trabalho da memria e a emergncia e constituio de um sentimento de identidade. (CATTANI et alli, 2000, p.23)

Muito j se falou sobre a funo da memria coletiva como elemento reforador de um sentimento de pertencimento real como o de raa, etnia, gnero, e tambm de um pertencimento simblico, denido pela apropriao e valorao que dada pelo indivduo ao patrimnio cultural que acessa por pertencer a determinado grupo. Essa memria coletiva que assumida individualmente ponto fundamental para a 30

estruturao de uma diferena simblica (Halbwachs). Estas diferenas simblicas podem estar inscritas nas formas pelas quais a memria registrada. Convencionou-se que a memria deve estar escrita (sob suas diferentes formas), o que acabou por relegar outras formas tradicionais de registros vivos. Rero-me especicamente memria que transmitida oralmente, pelos mais velhos, pelos sbios, pelos ancestrais, nos crculos, nas rodas, nas reunies familiares e religiosas, nas representaes, nos cantos, nas lendas, nos mitos, nas danas e nos rituais. A exemplo do que feito pelos gris, pajs, caciques, senhoras e senhoras, nossos antepassados negros, indgenas e ciganos. Estas formas de preservar a memria so formas culturais associadas a grupos humanos e suas formas de organizao; esto eivadas de esteretipos ociais, e para infortnio coletivo, foram historicamente negligenciadas e estereotipadas. No meu entendimento, a priorizao de uma determinada forma de registro da memria, associa-se diretamente s formas de excluso e silenciamento que poderosamente operam em nossa sociedade, e que roubam de populaes e grupos humanos no s sua existncia concreta, mas o seu sentido, a sua transparncia e capacidade de propagao, tanto quanto aquilo que a sua verdade. O resultado deste cenrio brutal, especialmente porque estas formas culturais de preservao e propagao da memria tm uma marca tnico-racial muita denida: so memrias de negros, ndios, ciganos e populaes aborgenes que esto sendo simplesmente apagadas. Tento assim, reportar- me ao que a memria e a prpria existncia tm de conexo no s com o que visto e sentido e ento, possvel de ser narrado, mas tudo aquilo experimentado que torna factvel o empreendimento da narrativa, seus signicados e sensaes. Mais que uma memria organizada de fatos e eventos, pretendo colocar-me em contato com as conexes que pude estabelecer atravs dessas experincias7 para a minha formao docente, e ao faz-lo, colocar mais prximo, aquele que comigo reinventa esta itinerncia, pela leitura, extrapolaes e as apropriaes possveis a partir delas. O que se constitui no espetculo da pesquisa encarnada, os seus sucessos, bons augrios e seus descaminhos, desencontros, fracassos, como uma forma de assegurar a/ao leitor/a no o contato com o resultado7 Experincia, segundo Josso (2004) so vivncias particulares, [...] vivemos uma innidade de transaes, de vivncias; estas vivncias atingem o status de experincias a partir do momento que fazemos um certo trabalho reexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado, percebido, sentido.(p.48)

31

do empreendimento, mas seu processo de fazer, que pode, esse sim, encaminhar para outros resultados, outras concluses, abrindo para a/o leitor/a a possibilidade de ser ele ou ela, de fato, um/a interlocutor/a que pode alterar o rumo da prosa. Lvi-Strauss, diz que o o objeto da pesquisa em cincias antropossociais da mesma natureza do seu pesquisador, ao ser relido por Macedo (2002), ao excerto ele acrescenta: preciso nos convencer de que o objeto do conhecimento das cincias humanas deseja, pensa, faz opes e se movimenta, ou est crivado de desejos e sentimentos, tal qual o seu estudioso (Macedo, 2002,p.43). Vi-me encarnando este pressuposto, em uma espcie de entropia, uma vez que ao iniciar o meu projeto de doutoramento em 2002, intencionava investigar os currculos dos cursos de pedagogia, seguindo as concluses decorrentes dos resultados da pesquisa do Mestrado, atravs da qual em um estudo contrastivo8, investiguei os projetos de formao para a cidadania, inscritos nos currculos dos cursos de Ensino Mdio em escolas das redes pblica e privada de Salvador - Bahia, analisando como estavam sendo construdas e/ou impostas, atravs dos currculos escolares, as identidades dos cidados, imersos em diferentes contextos scio-econmicos e culturais. Ao contrastar essas propostas curriculares voltadas para pblicos de origem social, cultural e tnico-racial diferentes, identiquei como uma caracterstica:[...] que o indivduo no se separa do seu contexto scioeconmico e cultural, sendo dele um reexo, o que disso se distingue entra como exceo; as identidades (raa, origem social, consso religiosa, condio scioeconmica etc) so condicionantes do seu lugar social, as escolas repetem este padro, pondo na prtica propostas diferenciadas, adequadas aos diferentes contextos. [...] tal currculo forma o indivduo certo para o lugar social a ele adequado, numa ao que mantm as desigualdades sociais, em que pesem os discursos integradores e a prtica emancipadora de alguns professores. (JESUS, 2001, p.182)

Estas concluses zeram com que eu me voltasse para os currculos dos cursos de formao de professores/as em instituies de nvel superior de ensino pblico, a m de perscrutar como eles abordavam,8 Cidado no papel? A construo da cidadania atravs das propostas curriculares das redes de ensino pblico e privado de Salvador

32

na formao de novos/as professores/as, a questo da identidade racial negra, dada a invisibilidade que tanto o tema quanto os indivduos tinham nos projetos curriculares e no interior das escolas, procurando encontrar na formao desses prossionais, a gnese daquelas questes atinentes s identidades, cujos reexos negativos pude detectar nos alunos das escolas que pesquisei, a exemplo: falta da participao instituinte, negao do pertencimento tnico por alunos/as e professores/as, baixa estima pessoal, apatia diante das questes sociais mais amplas (poltica, desenvolvimento social, econmico etc), descrena na possibilidade de mudana social, fracasso escolar dos alunos negros, estigmatizao (de gnero, de orientao sexual, religiosa, de local de moradia, dentre outras). Uma vez que contedos, temticas ou atividades com enfoque positivo na diferena e do que dela decorre, conguram-se numa imensa lacuna na formao dos/as estudantes do ensino fundamental e mdio ao superior, especialmente no que tange formao da identidade racial, tema de incontestvel relevncia no cenrio da educao baiana/ brasileira, haja vista a preponderncia tanto numrica quanto qualitativa (elementos culturais, artsticos, estticos, religiosos, econmicos) da populao negra e afro-descendente na formao da nossa sociedade. Decorridos quatro anos de estudos no curso de doutorado, as mudanas sociais e as conquistas do povo negro atravs da sua organizao poltica e dos movimentos sociais, zeram-se reetir nas polticas pblicas. As decorrncias do seminrio Internacional realizado na UNB em 1995, no qual o ento presidente da Repblica, Fernando Henrique Cardoso, assumiu o compromisso de desenvolver aes compensatrias para a populao negra, bem como, as conseqncias da III Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata (Durban - frica do Sul em 2001), a criao da SEPPIR Secretaria de Reparao e Promoo da Igualdade Racial no mbito federal, acompanhada pelo Governo Estadual da Bahia com a Secretaria Estadual de Promoo da Igualdade, os debates no Congresso Nacional em torno do Estatuto da Igualdade Racial, a criao do Programa Nacional de Aes Armativas em 2002, a publicao e implantao do Parecer do Conselho Nacional de Educao que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais em 2004, a Lei 10.639/03, que institui o ensino de histria da frica e da cultura afrobrasileira em toda a rede ocial de ensino brasileira a adoo de polticas de reserva de vagas nas instituies baianas, UNEB em 2002, a UFBA em 2005, UFRB em 2006, a destinao de recursos pblicos federais (PROUNI, UNIAFRO, Conexes de Saberes, dentre outras signicativas conquistas, provocaram uma alterao no meu objeto de pesquisa, uma vez que ele se moveu e se transformou no tempo, ao acompanhar o processo histrico 33

que o constituiu socialmente e que na minha vivncia, se converteu em um tema to marcado e encarnado que se tornou a narrativa de minha prpria histria de vida. assim que passo a discutir, atravs da narrativa da histria de vida, a nfase na diferena existente nas polticas curriculares. O tom confessional quase incoercvel da histria de vida, longe de ser uma exposio desnecessria ou mesmo indesejada, em tempos de olhos que tudo vem e bocas que tudo revelam, quer demonstrar pelo depoimento, a vida vivida em carne viva, como disse Clarice Lispector, ao desvelar em sentimentos e vivncias, as mais comezinhas, de um cotidiano desconsiderado, a inteireza da vida em suas proezas, infortnios, percalos que so, na maioria das vezes, o ponto central do estmulo para as mudanas pessoais. Neste empreendimento acadmico de pesquisa-formao pude me valer da tcnica do dirio de itinerncia denido por Bordieu (2002) como um instrumento de investigao que representa um percurso estrutural de uma existncia concreta tal qual se manifesta pouco a pouco, e de uma maneira inacabada, no emaranhado dos diversos itinerrios percorridos por uma pessoa ou por um grupo. (BORDIEU, 2002, p.134) Ao enfocar a perspectiva da histria de vida, do vivido e narrado no campo dos atos formativos, inelutavelmente, est-se tratando do campo da autorizao reivindicada e conquistada pelo/a sujeitopesquisador/a, de poder escrever em primeira pessoa, de tornar-se seu prprio autor, de fabricar os sentidos da sua existncia, ao reconhecer sua autoridade e legitimidade na composio do texto que constri das suas experincias e situaes de vida e as interpretaes que delas faz, sem desconsiderar que as inuncias sociais, culturais e psicossociais interagem e nos afetam. Esta autorizao da escrita e leitura de si coloca o/a sujeitopesquisador/a no cerne mesmo da construo do conhecimento, pois nesse exerccio, e com base em suas experincias, armam-se como verdadeiros geradores de conhecimento, muito privilegiados porque enfocam prticas, fazeres, carreiras, condutas, o que valoriza e qualica as experincias e as subjetividades em ao, em interao social (Blumer), uma vez que elabora estratgias e informaes, no ao sabor exclusivo das demandas externas, mas de acordo a como o/a sujeito-pesquisador/a dena as situaes que enfrenta, como as interpreta e compreende, mediando, portanto, a ordem social e sua histria pessoal. Esse crculo de implicao tem como pressuposto o fato de que o objeto da cincia constitudo por algum, e que esse indivduo no neutro, pe na seleo do seu objeto, sua prpria existncia. O mundo 34

que eu investigo visto pelas lentes do que sou, do que me tornei, sendose um mundo criado segundo esse prisma, no qual o que vejo me serve de mscara ou de espelho, segundo um ponto de vista que se apresenta como de singularidade. Isso no o torna nem fetichizado, nem natural, to somente, um objeto-sujeito indexalizado. Este duplo ser/estar objeto-sujeito da construo narrativa nos remete questo do papel do sujeito-ator no empreendimento epistemolgico. De um antigo debate entre os campos sociolgico (ator) e psicolgico (sujeito), chegamos defesa do que Ardoino (1998) chama de trptico, agente-ator-autor que est diretamente associado s expectativas e ao projeto que atribui tais ou quais caractersticas aos protagonistas em questo. Na perspectiva metodolgica da Histria de Vida se articula de uma forma complexa a relao entre aquele que goza o vivido, aquele que narra a vivncia e aquele que provoca a experincia, estabelecendose uma composio dessas identidades que se refaz a cada cenrio, o que requer deste sujeito-ator-epistemolgico uma abordagem mltipla e multirreferenciada do seu objeto porque o faz tambm enquanto sujeito-objeto de pesquisa, especialmente aqui, onde trato da dialogia na formao de professores/as9. Estas caractersticas fazem da implicao um marco diferenciador desta abordagem. Isto me permite exercitar a simultaneidade existente em todo ato formativo, pois ao tempo em que implico o outro que vivencia comigo a experincia, sou tambm implicada por ele na situao na qual interagimos. A implicao como defendida por Barbier :[...] um engajamento pessoal e coletivo do pesquisador, em e por sua prxis cientca, em funo de sua histria familiar e libidinal, de suas posies passada e atual nas relaes de produo e de classes, e de seu projeto sciopoltico em 9 Desejo considerar na elaborao deste texto a preocupao com a dimenso de gnero na linguagem, tentando escapar do monoplio que o uso do masculino como subjetivao na escrita, fao isto como uma forma de questionamento da representao do feminino em nossa sociedade e na produo do conhecimento. No tendo encontrado outra forma, optei pelo duplo artigo o/a e suas variaes. Reconheo no ser esse simulacro o mais adequado nem to pouco o mais expressivo, mas desejo, inclusive pelo incmodo que este formato provoca, sublinhar a necessidade de questionarmos tambm esta forma de subjugao e subalternidade da presena feminina.

35

ato, de tal sorte que o investimento, que necessariamente a resultante disso, parte integrante e dinmica de toda atividade de conhecimento [...] o sistema de valores ltimos (os que o ligam vida), manifestados em ltima instncia, de uma maneira consciente ou inconsciente, por um sujeito em interao na sua relao com o mundo, e sem a qual no poderia haver comunicao. (BARBIER, 2002, p. 101-102.)

A perspectiva empregada prima por estar in betwen, comunicando teoria e prtica-vivncia, movimentando-se entre os processos dialgicos com as realidades vividas e analisadas, em uma implicao epistemolgica (Barbier, 2002) que engaja o pesquisador em um nvel profundo, uma radiograa do ser que se orienta pelo rigor e pela radicalidade, como bem nos orienta o Prof. Felippe Serpa. Esta uma abordagem transversal que posiciona o sujeito em suas relaes com trs universos de sentido que emergem de trs imaginrios: pulsional, social e sacral. (Barbier, 2002). Em sendo assim:[as teorias] ao serem colocadas em contato com o mundo recriam, a partir de seus pontos de vista, essa congurao, que, por sua vez, propiciar novos processos que faro surgir novas teorias, em um constante movimento de atualizao, no necessariamente progressivo. (CARVALHO, 2002, p. 5152).

neste veio que se apresenta como seminal a abordagem feita atravs do enfoque multirreferencial, entendida a partir da teorizao de Jacques Ardoino (1998),(a abordagem multirreferencial) prope-se a uma leitura plural de seus objetos (prticos e tericos), sob diferentes pontos de vista, que implicam tanto vises especcas quanto linguagens apropriadas s descries exigidas, em funo de sistemas de referncias distintos, considerados, reconhecidos explicitamente como no-redutveis uns aos outros, ou seja, heterogneos. (ARDOINO, 1998, p.24)

, portanto, a inteligibilidade das prticas sociais realizada de uma forma multidimensional, diferenciadora, que reconhece, distingue e diferencia os sentidos diversos que podem involucrar os termos e suas representaes, uma narrativa autntica que no reduz elementos uns 36

aos outros e que, portanto, torna-se mais adequada, por conseguinte, compreenso dos complexos fenmenos humanos. O pensamento multirreferencial apresenta a proposta de uma aproximao e uma leitura plurais dos objetos postos sobre sua tica, implicando, portanto, linguagens apropriadas essa leitura e aproximao. movido por necessidades de combinar, conjugar, harmonizar, articular realidades heterogneas, compreend-las e acompanh-las como fenmenos vivos, sejam estas realidades conceitos, noes, situaes, ou ainda, prticas sociais, como , por exemplo, quando tratamos da educao. O pensamento complexo se adqua muito bem a esta tarefa por se entregar busca de um saber que no redutor (nem na sua amplitude, nem na sua profundidade), ou seja, no se sabe tudo, nem se sabe completamente. O conhecimento movente, circulante e, portanto, mutante e dinmico, no podendo ser reduzido a conceitos desconectados que desconsiderem os sistemas que integram. Metodologicamente, essa compreenso leva a nos situarmos epistemologicamente num espao metodolgico no qual separar e distinguir nunca cortar; unir e conjugar nunca totalizar, mas sim, pensar globalmente junto com a retroatividade e a recursividade, do global e do parcial. (Macedo, 2002, p.22), reconhecendo que o campo das prticas sociais o campo da opacidade, da indexalidade, de perspectivas cuja aproximao e entendimento se do mais favoravelmente, se observados de ngulos diferentes e complementares que trazem em si a possibilidade da contradio e do paradoxo, uma vez que cada referente o limite do outro, na medida da inteligibilidade que permite. Segundo Macedo (2002), torna-se importante alertar que a especicidade da inspirao complexa e multirreferencial:[est na] armao das limitaes dos diversos campos de saber, da tomada de conscincia dos vazios criativos, da necessidade do rigor fecundante e da conscincia da nossa ignorncia enquanto inquietao. [...] H, nesse sistema de pensamento, uma cosmoviso, uma viso de homem e de educao, na qual deseja fertilizar um certo humanismo radical, incessantemente inquietado, uma certa contra-instituio epistemolgica humanamente fundada. (MACEDO, 1998, p.62-64)

Diz-nos Lourau (1998) que a multirreferencialidade constitui uma aprendizagem do indeterminado que comea (e nunca termina) com 37

a anlise da nossa implicao, [...] uma familiaridade inata ou adquirida (conquistada) com o campo da pesquisa. (p.115). Esta familiaridade primordialmente composta de fenmenos psquicos, afetivos, opacos, rugosos, enquanto o distanciamento, a desimplicao eminentemente cognitiva por conseguinte, uma fonte e um meio de conhecimento. Ao citar Bachelard e sua referncia s condies psicolgicas de uma nova pesquisa Lourau, rearma este posicionamento:Por que vocs cam to sucintos quando falam das condies psicolgicas de uma nova pesquisa? Dem-nos principalmente suas idias vagas, suas contradies, suas idias xas, suas convices sem prova (...) Digam-nos o que pensam, no ao sair do laboratrio, mas nas horas em que saem da vida comum para entrar na vida cientca. (BACHELARD, apud LORAU, 1998, p.115).

Sugere-se, portanto, uma aventura na busca do conhecimento, rompendo com as categorias de anlise prvias, estabelecendo conceitos e categorias novas, que articulam novas fronteiras, novas trajetrias, outras experincias de interao e integrao entre os sujeitos seus saberes, fazeres e quereres, intencionalidades que norteiam a busca do conhecimento, captando assim, a profundidade horizontal das relaes conscientes e, tambm, inconscientes, entre pessoas e, entre pessoas mquinas e coisas produzidas na interao virtual e simultnea (Santos, 1998). Esta perspectiva est com os ps no presente, no cenrio das constataes, mas se quer projetar em movimentos transformacionais para o futuro, no contexto das transformaes neste mesmo presente. Em um estudo com esta inspirao, mostra-se uma vis atractiva natural, a opo pelos etnomtodos. E ao fazer esta opo percebese que ao narrar a histria de vida, se faz dialogando com vrios dos sujeitos relacionados aos processos pessoais de formao, e esse dilogo realizado em um tempo no qual o que est posto como passado vem para o discurso presenticado, como a forma de atualizao daquelas experincias esparsas no contexto scio-cultural em que se est inserido, ora descritas em sua cotidianeidade. As concepes da etnometodologia e da etnopesquisa crtica (Macedo, 2000, 2006), so intercomunicantes por se ocuparem das organizaes scio-culturais em uxo, situaes relacionais, formadas por atores educativos, e mediada pela linguagem. 38

A etnometodologia, segundo Alan Coulon (1998), o projeto cientco de analisar os mtodos ou os procedimentos que so utilizados pelos indivduos, os atores sociais, para realizar satisfatoriamente as diferentes operaes que realizam em sua vida cotidiana: os etnomtodos, ao que Garnkel chama de o raciocnio sociolgico prtico, aqueles procedimentos intersubjetivamente construdos, que as pessoas conhecem e utilizam para denir suas aes, ordenar suas atividades, tomar decises, enm, para exibir condutas que so consideradas racionais, tpicas. So estas prticas sociais, situaes, acontecimentos, fazeres, relatos, testemunhos e suas representaes, as ocorrncias e intenes e projetos vivenciados, quer individual matria da referncia -, quer coletivamente, que se tornam a matria bricolada da referncia do/a pesquisador/a que tenta mais entender do que explicar ou elucidar a realidade que se revela heterognea, sistmica e complexa. justamente onde, segundo Ardoino (1998):[...] os efeitos de sentido deslancham jogos de signicaes, intencionalidades, invocando sempre uma fenomenologia, uma hermenutica, uma axiologia, interrogaes ticas, vises de mundo e, por conseguinte, dimenses propriamente loscas e polticas, que permanecem indissociavelmente ligadas, atravs dos dados que constituem, de fato, as prticas sociais implicadas, aos efeitos de fora. (ARDOINO, 1998, p.41)

A histria de vida tem uma consistncia e uma temporalidade que lhe so prprias, - face singular profuso das situaes reconstitudas, e teoricamente tensionadas, so carregadas de subjetividade, alteridade e autorreferencialidade, o que torna a prpria abordagem etnogrca aqui ensejada, uma ruptura epistemolgica rumo compreenso do ato formativo, que na sua singularidade individual, pode ser indexado a coletividades (organizaes, grupos, movimentos, sociedades etc), pois permite ver e, qui, compreender como as relaes sociais mudam, como as pessoas mudam, como mudam suas vises de mundo (Woods, 1990). Isto tudo implica na forma como compreendo a relao teoria-prtica na formao, o modo pelo qual associo epistemolgica e politicamente esta formao a um projeto de sociedade que se constri, se consolida ou se deteriora nos diferentes espaos em que 39

possvel atuar. Implica ainda, no poder que se institui pela vivncia da anlise que valida ou rechaa as idias que so postas pela memria ocial, pelos livros e pelos mestres que se encarregam de transmitir uma dada concepo de formao, de prtica e de postura prossional e pessoal do sujeito em formao, o que permite compreender mais que julgar o processo de formao, e assim, reelabor-lo, relativiz-lo e recontextualiz-lo. Esta dmarche acaba por constituir no s um arcabouo metodolgico, mas tambm ideolgico, confere ao estudo a natureza de uma pesquisa implicada, interessada, intencional, poltica, pois, eu, como pesquisadora, insiro-me e me afeto pela problemtica objeto do meu estudo. Por outro lado, em diferentes medidas a experincia de muitos outros indivduos em busca da constituio de sua identidade. Por se interpenetrarem sujeito-objeto ganham uma dimenso ontolgica mais alargada, o que termina por inscrev-lo no mbito de uma problemtica social mais ampla que trata da excluso/incluso das diferentes identidades do contexto social contemporneo. A abordagem na histria de vida que defendo, algo que se inspira no que se referia Nietszche (2003) ao dizer: para aquilo que a gente no alcana atravs da vivncia, a gente tambm no tem ouvidos, fez com que a busca dessa compreenso se aproximasse da perspectiva de uma descrio densa10, uma vez que plena de interpretaes e signicaes. Admito esta densidade porque ao dizer o que se , pela histria de vida, fala-se de uma unidade que se constitui por uma multiplicidade, uma singularidade mltipla, estranha, irregular e pouco explcita, captada pelos recursos dos etnomtodos.Fazer a etnograa como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas suspeitas e comentrios tendenciosos, escrito no com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitrios de comportamento modelado. (GEERTZ, 1973, p.20.)

Edgar Morin registrou em um de seus textos a seguinte expresso: minha vida intelectual inseparvel de minha vida [...] No sou daqueles10 De acordo com o que preconizado por Clifford Geertz, na sua obra A interpretao das Culturas, ao denir o objeto do empreendimento etnogrco, tomando de emprstimo uma expresso cunhada por Ryle.

40

que tm uma carreira, mas dos que tm uma vida, justamente seguindo o lastro desse entendimento que defendo, atravs da leitura implicada que fao dos acontecimentos, o imbrincamento que pude estabelecer entre a discusso em torno dos meandros da formao acadmica nos espaos pblicos de formao que vivencio, e as polticas de sentido instaladas e postas em curso sobre a constituio da identidade racial negra nos currculos e prticas institudas,11 voltada para as relaes entre a memria e a formao docente, face s demandas contemporneas, tendo como pano de fundo a trajetria de formao pessoal e prossional, uma endoetnografia12 (Macedo, 2002), numa perspectiva auto-biogrfica, uma aproximao do que tem sido recentemente demarcado como o campo de um estudo de histria de vida.

11 Texto adaptado da Tese de Doutoramento intitulada: De como tornar-se o que se : narrativas implicadas sobre a questo tnico-racial, a formao docente e as polticas para equidade. PPGE/FACED/UFBA, 2007. 12 A abordagem endo-etnogrca inspirada na epistemologia qualitativa permite compreender como as relaes sociais mudam, como as pessoas em formao mudam, como mudam suas vises de mundo, como a realidade escolar conituase pela possibilidade da mudana [...] podendo constituir-se em savant de linterieur (Boumard, 1989), na medida em que os resultados de suas descries formem um corpus compreensvel do que se passa dentro de uma micro-realidade coletivamente vivida e politicamente interessada. (Macedo, 2002, p.172)

41

42

2SER-SENDO PROFESSOR-PESQUISADOR13... AUTOBIOGRAFIA, IMPLICAES E DIVERSIDADE14Cludio Orlando Costa do NascimentoFormar sempre formar-se... (Antnio Nvoa, 2002) De quem o olhar que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, quem continua vendo enquanto estou pensando? (Fernando Pessoa)S o olhar para dentro reconhece o percurso, apropriandose dos seus sentidos. O caminho dissociado das experincias de quem o percorre apenas uma proposta de trajeto, no um projeto, muito menos o prprio projeto de vida. O caminho est l, mas verdadeiramente s existe quando o percorremos e s o percorremos quando o vemos e o percebemos dentro de ns.

(Rubem Alves)13 Optei por um estilo de escrita pessoal, utilizando, inclusive, a primeira pessoa do singular, o que no deve ser entendido como uma falta de rigor, e sim, uma opo pela subjetividade, pela sensibilidade, pela exibilidade, condies postas nos estudos de inspiraes etnogrcas. (MACEDO, 2000). Ser-sendo professor-pesquisador representa uma inspirao ontolgica no campo da formao continuada. Um conceito extrado do livro O Ser-sendo da Filosoa, de autoria do professor Dante Augusto Galef (2001). 14 Texto extrado do captulo Minhas itinerncias e implicaes com a questo da formao continuada de educadores, que integra a Pesquisa intitulada: O que querem os professores ante ao continuada de professores, (NASCIMENTO, 2007).

43

A escrita deste texto refora o posicionamento de que o pesquisador no est fora da situao pesquisada, de que os olhares intencionais, que recortam temas, constroem conexes, produzem questes para estudos, escondem/revelam permanentes imagens relacionadas sua histria de vida, experincia pessoal/prossional, dentre outros aspectos relativos aos diversos nveis de implicao. Em outras palavras, nessa oportunidade, ao reescrever minha (auto)biograa, minhas memrias de formao, busco observar observando-me, explicitar o contexto, o tempo-lugar de onde narro as minhas histrias de vida, as experincias, os saberes, ao tempo em que, sinto-me impelido a produzir novas questes, novos sentidos consoantes com os avanos ocorridos no campo da pesquisa sobre formao continuada de professores. Essa (auto)biograa/implicacional deriva do texto Minhas itinerncias e implicaes com a questo da formao continuada de educadores, que integra a Pesquisa intitulada: O que querem os professores ante a formao continuada: Itinerncias, produo de sentidos e autorias nas narrativas docentes. (NASCIMENTO, 2003) e do texto O Pesquisador tem uma Biograa, da Tese intitulada: Observatrios etnoformadorees: Outros olhares em/na formao continuada de professores, (NASCIMENTO, 2007). E dentre as atualizaes realizadas, destaco: a observao dos vieses/marcos referentes s vivncias de formao, o que representa uma ateno mais consciente das minhas implicaes nas situaes formativas. Ressalto, tambm, que esse enfoque expressa meu posicionamento poltico-epistemolgico em relao s concepes de conhecimento em educao. Uma posio em conformidade com o que Santos (2002) chamou de paradigma emergente, em contraposio ao dominante. O que representa assumir uma nova perspectiva acerca da produo do conhecimento e aqui, em especial, na pesquisa sobre formao de professores, na medida em que inclui e articula as dimenses socioculturais. Em sntese, tratando-se de pesquisa e formao de professores, essa abordagem contemplou, numa primeira instncia, as circunstncias, os vieses, as interdependncias e complementaridades relativas aos aspectos (auto) biogrcos e implicacionais presentes na minha trajetria de formao, ao tempo em que contribuiu signicativamente para que os(as) professores(as), sujeitos da Pesquisa, pudessem reetir sobre as suas prprias narrativas, com a inteno de compreender as relaes estabelecidas entre vivncias, experincias e implicaes na formao continuada. Situaes em que os(as) professores(as) em 44

formao observam observando-se, descrevem descrevendo-se, reetem reetindo-se. Pretendi tambm dialogar com a reexo feita por DeloryMomberger, quando na escrita da apresentao do livro Produzir sua obra: o momento da tese, do professor Remi Hess, indaga se O pesquisador tem, ele, uma biograa? (DELORY-MOMBERGER, 2005, p.15). Assim como ela, concordo que essa empreitada de biograzao precisa ser reetida e tematizada nas suas relaes e implicaes histricas, sociais, culturais, familiares [...] um percurso biogrco a partir de um eixo exploratrio determinado (DELORY-MOMBERGER, 2005, p.15-16). A re-escrita apresentada a seguir compreende alguns marcos referenciais que constituem minha histria de vida, vivncias e implicaes relativas ao conhecimeno de si (SOUZA, 2006), formao e pesquisa na rea da educao, em especial, no campo da formao de professores(as).

HISTRIAS DE VIDA E IMPLICAES NA FORMAO DE PROFESSORESLembrar lidar com tempos, espaos, vivncias, experincias, itinerrios de sentidos. As histrias reconstitudas aqui representam esse exerccio de observao consciente das minhas implicaes, dos temas e problemas, ou seja, das situaes signicativas que contriburam para eu me tornar o que sou 15.

A INFNCIA E A INICIAO NA ESCOLAAs primeiras lembranas esto relacionadas s vivncias de infncia. A minha iniciao na educao infantil implicou numa srie de rituais relacionados transio, ampliao de referncias e prticas em relao aos novos espaos, tempos e grupos sociais. O ingresso na escola foi cercado de muitas expectativas e apreenses, sentimentos que a escola, em geral, compreende como naturais nessa fase de adaptao. Considero que os apoios do meu pai e da minha me foram muito importantes para essa iniciao. Os cuidados, atenes e providncias relacionadas ao fardamento, ao transporte, merenda, ao material didtico, ao dever de casa foram me ensinando a valorizar e a gostar da escola como um lugar de brincadeiras, de relaes e aprendizagens.15 Noo de formao a partir Nietzsche, Escritos sobre educao, So Paulo: Ed. Loyola; Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2003, apresentada pela Profa. Maria Ins Carvalho, no Congresso de Pesquisadores do Recncavo Sul Universidade Federal do Recncavo da Bahia, no perodo de 08 a 11 de maio de 2007, em Amargosa-BA.

45

Penso que essa era a ordem das minhas motivaes, curiosidades e interesses; em primeiro lugar estavam as brincadeiras, depois as relaes de amizade com a professora e colegas e, posteriormente, valorizava as novas aprendizagens construdas nesse lugar. Lembro-me, mais claramente, da minha criana a partir dos oito anos de idade, quando brincava de escola, numa escola de verdade. Isso por que, mesmo antes de freqentar a escola pblica ocial Escola Baronesa de Saupe e Escola Estadual Alfredo Amorim j morava durante as frias e nos nais de semana na escola da minha tia Chiquinha, como carinhosamente era chamada. Ento foi na Escola Santa Rita de Cssia, na Rua Baro de Cotegipe, que eu comecei a brincar de me tornar professor. Na escola de tia Chiquinha, lembro-me perfeitamente das carteiras arrumadas nas salas, dos materiais didticos e at das imitaes e representaes que eu e meus primos fazamos das aulas. Experimentvamos ao mesmo tempo ser aluno e ser professor. Naquela poca falvamos sobre passar dever, fazer chamada e dar falta, vou dizer a seu pai e vou te botar de castigo. Tambm sonhvamos muito com as histrias que crivamos, com as experincias cientcas de germinao, de mudanas de temperatura e de presso atmosfrica que inventvamos. No parque, sempre fazamos ginstica e brincadeiras, onde experimentvamos cuidar e reclamar. Tambm vivencivamos nossas alegrias e nossos medos. Lembro-me de quando apareceu um gato enorme, cego de um olho; imaginvamos que ele trazia histrias e mensagens de terror. Um gato contador de estrias de assombrao! Isso nos fascinava, e ao mesmo tempo nos ameaava. Tambm eram muito signicativos os rituais religiosos e cvicos que realizvamos na escola real e na escola de brinquedo. Sempre cantvamos no incio das aulas nos ptios das Escolas, os hinos; Nacional, da Bandeira, da Independncia, do Dois de Julho, do Senhor do Bonm, e depois, dentro das salas, rezvamos e pedamos a Deus um bom dia de aula. Considero oportuno lembrar, que aprendi muito com as histrias de vrias outras tias-tias, ou seja, outras tias-professoras, tias que tambm exerciam a prosso de professora: tia Diva; tia Lourdes; tia Jacinira; tia Jandira, atravs das histrias festivas e culturais realizadas em Cassenda e, posteriormente, numa escola na cidade de Candeias, na qual eu passava minhas frias juninas. Tia Jurene, que conta com muito orgulho, que no perodo da sua primeira investidura (primeira experincia como professora) ela se tornou professora na cidade de Porto Velho, e 46

que no perodo das frias de nal de ano, quando retornava a Salvador, seus alunos e familiares enchiam um vago de trem de presentes da roa. Ainda tia Jacira/Chiquinha, tambm conta muito orgulhosamente, que sua primeira investidura ocorreu em Cabaceiras, na cidade de Castro Alves.

A OPO PELA PEDAGOGIA E A INSPIRAO FREIRIANAMinha primeira opo de estudo foi Pedagogia. Cursei Licenciatura em Pedagogia com opo em Superviso Escolar, na Universidade Catlica de Salvador (UCSAL). Perodo de intensa participao no movimento estudantil em defesa da escola pblica, da democratizao e qualidade da educao na Bahia e no Brasil. Na condio de dirigente do Diretrio Acadmico (DA), fui indicado, em um encontro estadual de estudantes de pedagogia, para integrar a Executiva Nacional dos Estudantes de Pedagogia (ENEPE), responsvel pelas discusses da reformulao do currculo desse curso, e pela realizao dos encontros nacionais de estudantes. Nos dois anos em que estive como representante da Bahia, realizamos dois encontros baianos e os encontros nacionais de Cuiab MT e de Florianpolis SC, sendo as temticas quase sempre relacionadas formao docente e formao do(a) pedagogo(a).

FORMAO DE PROFESSORESNo decorrer dessa trajetria, vivenciei minha primeira implicao como educador na formao de professores. Essa primeira experincia surgiu a partir de uma proposta de trabalho em escolas comunitrias de Tanquinho de Lenis, na Chapada Diamantina. Naquela ocasio, meados da dcada de 80, z a opo de deixar o cargo de Operador de Processos Petroqumicos no Plo de Camaari (COPENE), para participar de um projeto vinculado ao Centro de Estudos e Ao Social (CEAS), que realizava formao de professores de escolas comunitrias em Lenis e em Salvador, nos bairros de So Gonalo do Retiro, Sete de Abril, Pau da Lima e no Subrbio Ferrovirio. A condio de recm-formado em Pedagogia, num perodo em que o currculo do Curso simplicava a compreenso das cincias da educao, adotando quase que exclusivamente as contribuies das psicologias comportamentalista e cognitiva, como forma nica de conhecimento dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem humana, dicultou a minha compreenso das experincias e vivncias culturais, que eram produzidas pelos professores e pelas escolas comunitrias. Entretanto, o trabalho de formao realizado pela equipe dos professores formadores era bastante crtico e focado nas demandas e potencialidades dos professores e das escolas comunitrias. 47

Conseqentemente, pude perceber outras abordagens sobre educao, e re-signicar o olhar construdo na minha formao inicial. Dentre as novas abordagens, destaco as contribuies de Paulo Freire, sobretudo pela forma como se implica e (re)inventa a condio existencial humana. A perspectiva dialgica freireana me ensinou a conviver e a construir com o outro, com o diferente. O que fundava nossas relaes era uma tica de vida, de resistncia e luta. Nessa experincia de formao, a realidade percebida e interpretada se constitua no tema, no problema e tornava-se um desao pedaggico coletivo. Em minha experincia na formao de educadores em Plataforma, o foco era relacionado s questes ambientais. Lembro-me de uma das atividades, quando debatamos a possibilidade de realizar um trabalho ecolgico, de educao ambiental atravs da coleta seletiva do lixo, e de repente uma professora me indagou se eu sabia que as crianas brincavam no lixo. Para essas crianas o lixo no era lixo, era brinquedo. Ento, percebemos que estvamos diante de um grande e complexo desao, quando, inicialmente, a professora imaginava e argumentava sobre a impossibilidade de fazer o trabalho que representava, para as crianas, a perda dos seus brinquedos, do seu lazer, das suas fantasias.

ITINERNCIAS SOCIAIS E IMPLICAES MULTICULTURAISAinda no Subrbio Ferrovirio iniciamos a construo de um projeto no Parque So Bartolomeu--Piraj, um projeto multicultural, que tinha como propsito de desenvolver um processo de formao comunitria, de jovens guardis do Parque e de professores(as) das escolas municipais de Salvador, abordando aspectos histricos, culturais, religiosos e ambientais. Estive outra vez envolvido e participando de um cenrio de formao continuada que tinha como estratgia a mobilizao social em defesa do Parque e das comunidades suburbanas situadas em seu entorno. Considero que essa experincia marcou minha iniciao em relao s questes tnico-raciais, aos estudos histricos e culturais dos ndios e dos Negros, no que concernem s contribuies desses povos para independncia e constituio da nossa Cidade, do nosso Estado, do nosso Pas. Esse cenrio multicultural favoreceu, signicativamente, para que eu pudesse compreender minha implicao e pertencimento tnico-racial e, fundamentalmente, contribuiu para uma reexo acerca das relaes de poder estabelecidas nesses contextos socioculturais.

48

O DESAFIO DA FORMAO CONTINUADA DE PROFESSORESUma outra vivncia, que ora passo a relatar ocorreu no incio dos anos de 1990, quando junto a Jumara Novaes Sotto Maior e Patrcia Dias, construmos uma experincia coletiva denominada Desao Ncleo de Estudos e Ao Pedaggica, com o propsito de trabalhar a formao continuada de professores, a partir de projetos que inclussem a participao e cooperao de educadores, secretarias municipais, escolas e sindicatos. Nessas atividades de estudo, publicao e formao continuada construmos relaes com outros espaos com propostas muito signicativas, com outros educadores: Peter McLaren, do Colgio de Educao da Universidade da Califrnia; Estanislao Antelo e Slvia Serra da Universidade de Rosrio e do Centro de Estudos em Pedagogia Crtica de Rosrio; Tomaz Tadeu e Silva e Fernando Becker da UFRS; Pablo Gentili da UERJ; Snia Kramer da UFRJ; Madalena Freire do Espao Pedaggico; Terezinha Fres Burnham do NEPEC-UFBA; Stella Rodrigues da UNEB; Csar Leiro da UFBA e UNEB, que teve uma participao mais orgnica junto ao Desao; Elizeu Souza da UNEB, Cleide Terzi do Ronca e Terzi de SP, Carmem Campoi da USP, Vera Placco da PUC-SP etc. Seria impossvel enumerar os temas dos encontros de formao continuada; no entanto, considero oportuno salientar que as temticas se articulavam com as perspectivas crticas e progressistas de polticas pblicas de educao, de currculo de formao inicial e continuada. Nesse perodo, participamos ativamente dos debates sobre a reforma do ensino, sobretudo na defesa das propostas oriundas das comunidades escolares, das entidades sindicais e representativas dos professores. Portanto, tnhamos uma posio divergente da poltica que o Ministrio da Educao (MEC) implantou na reorganizao do currculo da escola bsica. Para ns, os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), associados proposta de construo de novos projetos pedaggicos por escola, se constitua em uma estratgia de desautorizao do saber e do fazer docente. Uma estratgia de interveno e implementao de uma poltica atravs de uma pea tcnica e burocrtica. Assim estava caracterizado o tensionamento entre a perspectiva de formao continuada que trabalhvamos e a perspectiva verticalizada e homogeneizadora do Programa Parmetros em Ao. O sentimento compartilhado nas conversas com esses educadores, e tambm nas atividades de formao expressavam uma profunda 49

indignao com relao aos mtodos que o Ministrio da Educao (MEC) adotava para legitimar sua proposta de implantao da reforma. O texto dos PCN denominado documento introdutrio, enviado estrategicamente para que alguns educadores zessem suas contribuies e dessem seus pareceres16, representava um desrespeito no s a esses prprios educadores, mas, sobretudo, ao pensamento pedaggico brasileiro. Esse documento introdutrio j se constitua em um documento pronto, encomendado pelo MEC junto a alguns consultores, inclusive aqueles que conceberam a reforma do ensino em outros pases da Amrica Latina e da Europa.

PEDAGOGIA CRTICA E MOBILIZAO SOCIALConseqentemente, alm de realizarmos formao nas escolas e no sindicato dos professores, tambm realizvamos mobilizao social. Nessa oportunidade, realizamos um grande encontro internacional, denominado Seminrio Internacional de Pedagogia Crtica. Uma estratgia de problematizao do macro discurso hegemnico, das polticas educacionais impostas de forma verticalizada, dos modelos j programados, enm, das concepes arcaicas de currculo e de formao continuada desenvolvidos em vrias escolas. Um outro acontecimento muito importante foi o perodo em que, na condio de professor do ensino bsico, estive implicado com as polticas prticas de formao de professores no mbito do Sindicato dos Professores (SINPRO). Essa vivncia ocorreu motivada por duas situaes de referncia: como base sindical, quando estive como professor das disciplinas Psicologia da Educao e Estrutura e Funcionamento do Ensino no curso de Magistrio do Instituto Social da Bahia (ISBA), e, como coordenador pedaggico, quando participei das discusses de concepo e da realizao das atividades de formao continuada, atravs de cursos, jornadas e congressos. Vale destacar que nesse momento, meados dos anos 90, os professores faziam o debate em defesa de uma outra qualidade de educao, de escola e de formao discente e docente, diferente dos discursos de formao docente comprometidos com o empreendedorismo individual e com a qualidade total. Esse debate tambm circulava em dois outros espaos em que eu trabalhava na poca; como professor substituto da disciplina Psicologia da Educao, na Faculdade de Educao da Universidade Federal da Bahia e em uma escola de ensino fundamental, onde exercia a funo de coordenador pedaggico.16 Vide posies da FACED/UFRGS, ANFOPE e ANPED.

50

O MIAC: A EXPERINCIA DA DIVERSIDADE E A FORMAO MULTICULTURAL EM REDEDurante alguns anos, a minha trajetria esteve relacionada a outras experincias. O trabalho junto ao Movimento de Intercmbio Artstico Cultural pela Cidadania (MIAC) possibilitou-me uma vivncia de formao conjunta entre jovens e educadores, tendo a arteeducao, a cultura, diversidade e arte como veios articuladores de outras abordagens. Um contexto multicultural de formao continuada com o propsito de atuar junto aos espaos de formulao de polticas pblicas, nas instituies pblicas de sade e educao, e tambm nos movimentos sociais. Nessa oportunidade realizei o curso de Gesto em Rede para os coordenadores do movimento. Minha participao orgnica na Rede MIAC se deu atravs do Frum Paulo Freire, um coletivo de educadores que realizava trabalho de formao de professoras em escolas comunitrias, embasado nas contribuies freirianas. Em geral, essas atividades eram realizadas em escolas localizadas nos bairros de Pau da Lima, 7 de abril e em Fazenda Grande do Retiro. A experincia de interaes pautadas na diversidade favoreceu que crissemos o grupo denominado ERE Espao de Referncia tnico Racial, que introduziu na Rede MIAC a discusso referente s aes armativas e a implantao da lei 10.639-03, que obriga que as escolas incluam no currculo a Histria e a Cultura Africana e Afro-brasileira e assegure educao das relaes raciais. Posteriormente o ERE se tornou ERE-GEGE, incluindo a temtica de gnero como poltica pblica e de f