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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA LAURO INÁCIO DE MOURA FILHO TRANSTEXTUALIDADE E HERMENÊUTICA NA COMÉDIA DE ARISTÓFANES: O POETA COMO MESTRE DA CIDADE FORTALEZA 2012

Transtextualidade e hermenêutica na comédia de Aristófanes ... · O POETA COMO MESTRE DA CIDADE FORTALEZA 2012. LAURO INÁCIO DE MOURA FILHO ... vigente desde os dias do grande

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    DEPARTAMENTO DE LITERATURA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA

    LAURO INCIO DE MOURA FILHO

    TRANSTEXTUALIDADE E HERMENUTICA

    NA COMDIA DE ARISTFANES:

    O POETA COMO MESTRE DA CIDADE

    FORTALEZA

    2012

  • LAURO INCIO DE MOURA FILHO

    TRANSTEXTUALIDADE E HERMENUTICA

    NA COMDIA DE ARISTFANES:

    O POETA COMO MESTRE DA CIDADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Cear como requisito final para obteno do ttulo de Mestre em Letras na rea de Literatura Comparada.

    Orientadora: Profa. Doutora Ana Maria Csar Pompeu

    FORTALEZA

    2012

  • quele que me deu o flego de vida!

    memria de Lauro Incio de Moura, que em poucos anos de

    convivncia marcou de forma indelvel a minha vida.

    Francisca Sabino de Moura, que, alm de me, tambm

    exerceu o papel paterno.

    Soraya Cavalcante de Moura e aos nossos filhos, Lauro Incio

    de Moura Neto, Luciana Incio Cavalcante de Moura e Letcia

    Incio Cavalcante de Moura, os quais, mesmo quando eu estava

    em casa, suportaram a minha ausncia.

  • Agradecimentos

    Missionria Ruth Doris Lemos (in memoriam), pelo

    testemunho de vida.

    Ao Pastor Joo Kolenda Lemos, por introduzir-me no estudo da

    lngua grega.

    minha Professora Ana Maria Csar Pompeu, pela dedicao e

    longanimidade.

    Aos Professores Orlando Luiz de Arajo e Francisco Edi de

    Oliveira Sousa, pela contribuio em minha formao.

    A todos que compem a Igreja Evanglica Assembleia de Deus

    em Nova Metrpole, pela resignao de verem-se diversas vezes

    como ovelhas que no tm pastor.

    Universidade Federal do Cear, pela formao acadmica.

    FUNCAP, pelo apoio financeiro, durante 24 meses.

  • RESUMO

    Aristfanes o principal representante da comdia grega antiga. Algumas de suas obras foram as nicas a sobreviver at os nossos dias com textos integrais. Suas peas, seguindo a tradio oral do poeta sbio desde Homero, demonstram possuir uma ampla cultura a respeito de vrias esferas do mundo de ento: poltica, msica, histria, literatura etc. No entanto, de todo esse conhecimento presente na comdia de Aristfanes, a cultura literria se destaca de uma forma especial. Vrios poetas so aludidos, citados, parodiados etc. no texto de Aristfanes. Dentre eles, porm, Eurpides ocupa um lugar de destaque. Esse tragedigrafo eleito pelo poeta cmico como saco de pancadas literrio. Todo esse conhecimento revelado na comdia aristofnica, especialmente o literrio, pode simplificar ou dificultar o entendimento do leitor ulterior. Diante disso, apresentamos dois aportes tericos que ajudaro o leitor hodierno a entender com menos dificuldade o teatro de Aristfanes. O primeiro deles a proposta exegtica de Schleiermacher, presente em sua Hermenutica: arte e tcnica da interpretao. A hermenutica schleiermacheriana servir de princpio norteador para a compreenso da comdia aristofnica de modo geral. O segundo a proposta da transtextualidade de Grard Genette, tratada no livro Palimpsestos: a literatura de segunda mo. A transtextualidade de Genette servir de fundamento para o entendimento, especificamente, da cultura literria que encontramos na obra de Aristfanes. Essas duas propostas tericas tm se revelado como importantes ferramentas de interpretao para a comdia de Aristfanes. Sem elas, o leitor ulterior encontrar dificuldades para entender, de forma satisfatria, o sentido textual proposto por aquele comedigrafo. Palavras-chave: Teatro; Comdia Grega; Aristfanes; Hermenutica; Transtextualidade.

  • ABSTRACT

    Aristophanes is the main representative of the ancient Greek comedy. Some of his works were the only ones to survive until our days with full text. His plays, following the oral tradition of the wise poet from Homer, shown to possess a broad culture with respect to various spheres of the world then, politics, music, history, literature etc.. However, all this knowledge in this comedy of Aristophanes, the literary culture stands out in a special way. Several poets are alluded to, quoted and parodied so. in the text of Aristophanes. Among them, however, Euripides occupies a prominent place. This tragedigrafo is elected by the comic poet as a "punching bag" literary. All this knowledge revealed in Aristophanic comedy, especially literary, can simplify or complicate further the understanding of the reader. Therefore, we present two theoretical approaches that will help today's reader to understand more easily the theater of Aristophanes. The first is the proposal of Schleiermacher exegetical present in his Hermenutica: arte e tcnica da interpretao. Hermeneutics schleiermacheriana serve as a guiding principle for understanding the Aristophanic comedy in general. The second is the proposal of transtextuality Grard Genette, treated in the book Palimpsestos: a literatura de segunda mo. The transtextuality of Genette serve as a foundation for understanding, specifically, the literary culture that we find in the work of Aristophanes. These two theoretical proposals have been shown to be important tools for interpreting the comedy of Aristophanes. Without them, the reader will later find it difficult to understand, in a satisfactory manner, the text proposed by the sense that comedy writer. Keywords: Theatre, Greek Comedy, Aristophanes; Hermeneutics; Transtextuality.

  • SUMRIO

    Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08

    Captulo Um: O Poeta como educador da cidade na comdia de Aristfanes . . . . . . . 14

    1.1 As evidncias do poeta como mestre da cidade no texto de Aristfanes . . . . . . 15

    1.1.1 As evidncias da cultura musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

    1.1.2 As evidncias da cultura poltica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

    1.1.3 As evidncias da cultura histrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

    1.1.4 As evidncias da cultura militar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

    1.1.5 As evidncias da cultura religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

    1.1.6 As evidncias da cultura econmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

    1.1.7 As evidncias da cultura literria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

    Captulo Dois: Hermenutica em Acarnenses: a equiparao do leitor moderno

    com o espectador ou leitor original de Aristfanes . . . . . . . . . . . . . . 64

    2.1 A hermenutica de Schleiermacher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

    2.1.1 A relao entre a hermenutica e os textos clssicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

    2.1.2 Interpretao e compreenso dos textos clssicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

    2.1.3 A hermenutica e o sentido textual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

    2.1.4 Compreender: romper distncias e barreiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

    2.2 A equiparao como condio para entender o papel do poeta educador . . . . . . 79

    2.2.1 Equiparao ou comentrio? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

    2.2.2 A equiparao com o contedo lingustico do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

    2.2.3 A equiparao com o contedo mitolgico do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

    2.2.4 A equiparao com o contedo internacional do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

    2.2.5 A equiparao com o contedo festivo do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

    2.2.6 A falta de equiparao com o contedo do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

    Captulo Trs: A transtextualidade como ferramenta para equiparao com o

    contedo literrio do poeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

    3.1 A transtextualidade de Grard Genette . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

    3.2 O arquitexto na mira da comdia grega antiga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

    3.3 O hipotexto da comdia aristofnica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

  • 3.4 A comdia de Aristfanes como hipertexto de Eurpides . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

    3.5 A transtextualidade como ferramenta de equiparao com o poeta . . . . . . . . . . 128

    3.5.1 Reconhecendo a intertextualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

    3.5.2 Reconhecendo a paratextualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

    3.5.3 Reconhecendo a hipertextualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

    Consideraes Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

    Referncias Bibliogrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162

  • INTRODUO

    A comdia grega antiga no era simplesmente uma opo de entretenimento para os

    cidados atenienses. Sua importncia ia bem alm da diverso, cumprindo um papel social

    muito mais nobre: o da formao dos cidados. A comdia, porm, no foi a pioneira no

    cumprimento dessa tarefa formadora. Precederam-na a epopeia e a tragdia.

    O fato de a epopeia e, posteriormente, a tragdia terem exercido uma funo didtica

    tornou-se um desafio para a comdia: manter a tradio do poeta como educador da cidade,

    vigente desde os dias do grande Homero (DUARTE, 2000). Acerca dessa tradio pedaggica

    da literatura grega, escreveu Maria de Ftima (1997, p. 58):

    A tragdia aparecera como a herdeira direta da epopeia homrica, da poesia

    hesidica e de toda uma tradio literria que sentia vivo o compromisso de ensinar

    e aconselhar o povo que a escutava. Com esse dever, a tragdia herdava tambm a

    glria da criao potica grega.

    A tradio em torno da figura do poeta como educador na Grcia era to forte que

    Plato chegou a considerar Homero como o formador do homem grego (DUARTE, 2000, p.

    14). Seguir os passos do autor da Ilada e dos demais cultores desse gnero era o ideal das

    geraes seguintes de poetas gregos. A glria da qual gozava o nome de Homero s recairia

    sobre os novos poetas que mantivessem viva a chama da tradio pedaggica da literatura

    grega.

    Essa tradio, conforme Maria de Ftima destacou acima, foi um dos mais fortes

    legados da epopeia tragdia. Ignorar ou rejeitar essa herana levaria o poeta inovador ao

    fracasso e ao descaso por parte do povo: Se Homero, Hesodo, Arquloco sobreviveram e so

    venerados como o manual em que cada um bebeu a instruo elementar, os inovadores so

    considerados em geral com animosidade. (SILVA, 1997, p. 20).

    A manuteno dessa tradio era, exatamente, o desafio que a comdia tinha diante de

    si, pois o didatismo, que tornou-se verdadeiramente a prpria justificao da obra literria,

    razo primeira da sua existncia e mrito (SILVA, 1997, p. 58), no pouparia nem mesmo a

    comdia. Mas como fazer os cidados gregos ouvirem um ensinamento que transmitido

    atravs da brincadeira e da piada? O que os comedigrafos gregos, por conta da natureza

    intrnseca do gnero que cultivavam, deveriam fazer para serem levados a srio no

    cumprimento da funo de educadores? Eis o desafio que a comdia grega antiga precisava

    vencer, a menos que desejasse a apatia e ou a animosidade do pblico.

  • 9

    Empenhados na soluo dessa questo, os poetas cmicos encontraram uma forma de,

    mesmo brincando, serem reconhecidos como educadores do povo: a invectiva pessoal.

    Atravs dos ataques pessoais, os comedigrafos no s faziam rir, mas contribuam com a

    formao do povo grego. Acerca dessa soluo encontrada pelos comedigrafos, Maria de

    Ftima (1997, p. 102) escreveu o seguinte:

    Por um lado, havia a considerar o empenhamento social, diretamente associado misso didtica, que sempre fora prerrogativa das formas literrias consagradas. Como poderia a comdia conformar este papel sua prpria natureza jocosa e risonha? A invectiva pessoal a resposta. [...] O ataque direto, que desde sempre se associava comdia como seu suporte natural, assumia agora uma dimenso nova e digna, de fonte de ensinamentos e veculo de conselhos.1

    Uma vez encontrada a forma de cumprir a sua tarefa pedaggica, a comdia consegue o

    seu lugar ao sol. Finalmente, por volta de 486 a.C., ela reconhecida oficialmente como

    forma literria e dramtica em Atenas2 (ARISTFANES, 2006, p.7). Diante desse

    reconhecimento, os poetas cmicos puderam dar voz aos seus ensinamentos.

    Contudo, no bastava ter voz. Era necessrio ter contedo: conselhos, correes,

    exortaes etc. O reconhecimento que a comdia acabara de conquistar trazia consigo uma

    grande responsabilidade. Diversos poetas cmicos evidenciaram em seus textos que tinham a

    conscincia desse peso que recaia sobre seus ombros. Cratino, por exemplo, escreveu:

    . (Dionisos, fr. 48E3) Que vena aquele que melhor falar cidade!4

    Noutra comdia, Qurones, encenada por volta de 436-431 a.C., Cratino demonstra

    novamente a sua conscincia em relao ao papel de educador:

    , . (Qurones, fr. 235) Eis a razo porque ns, os Qurones, aqui estamos: Para vos darmos os nossos conselhos.

    Aristfanes tambm o faz em Acarnenses, vv. 500-501:

    . .5

    1 Cf. tambm Duarte (2000, p. 78). 2 No se deve confundir o reconhecimento da comdia como forma literria oficial com a sua origem, o que se deu em pocas bastante remotas. 3 A numerao seguida pela letra E correspondente edio de Edmonds (1957); nos demais casos, edio de Kock (1880). 4 Exceto quando for indicada outra, as tradues dos fragmentos so de Maria de Ftima (1997).

  • 10

    Porque o que justo tambm do conhecimento da comdia. Ora o que eu vou dizer arriscado, mas justo!6

    Acerca dessa conscincia pedaggica, Ana Maria comentou (2004, p. 20):

    O conceito pedaggico da poesia: o poeta um mestre de seus concidados e a genuna poesia a que torna os homens melhores (Rs 1003ss.). Esta ideia est presente em Aristfanes, desde Acarnenses, a primeira pea das quais nos chegaram, e tambm est presente nos outros poetas cmicos. Em Plato, h a preocupao com o poder educativo da poesia, tratado especialmente na Repblica.

    Os poetas cmicos, motivados por essa conscincia, permearam suas peas com o

    ensino daquilo que acreditavam ser justo. Inevitavelmente, os conselhos dos poetas mestres

    vinham atrelados e at edificados no conhecimento de mundo comum aos cidados atenienses

    de ento. Dessa forma, encontramos na comdia grega conselhos e ensinos ligados a cenas

    que envolvem os mais variados assuntos: poltica, mitologia, literatura, economia, histria,

    geografia, filosofia, teologia, militarismo, msica e muito outros.

    Como se fundamentavam no conhecimento de mundo comum aos cidados atenienses,

    os ensinos e conselhos da comdia eram facilmente compreendidos pelo pblico original,

    tanto os espectadores quanto os leitores7. O que Oliveira diz acerca da pardia literria se

    aplica aos demais assuntos presentes no texto cmico: evidente que a pardia s sentida

    como tal enquanto o receptor consegue contrast-la com o seu referente ou matriz. Supe,

    portanto, que o destinatrio grande conhecedor da tragdia que est a ser parodiada. (1991,

    p. 35).

    No resta dvida de que o poeta cmico era compreendido pelo seu pblico. At

    porque, em nome do seu papel de educador, ele procurava falar de modo e de assuntos

    inteligveis. Caso contrrio, o prprio poeta estaria comprometendo o didatismo que garantiria

    o reconhecimento e a glria populares de sua comdia.

    5 O texto grego de Acarnenses, exceto quando for indicado outro, o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906). 6 A traduo de Acarnenses de Maria de Ftima (1980), que, em alguns casos, tentamos dispor em versos. 7 No se deve achar que no existiam leitores naquele momento histrico. O prprio Aristfanes, em vrios trechos de Rs, faz meno dos leitores daquela poca. durante a leitura de Andrmeda que Dioniso (cf. vv. 52-67) tem a ideia de ir ao Hades buscar Eurpides, que retratado como representante da cultura livresca (cf. vv. 943 e 1409). O coro da mesma pea afirma que os espectadores eram dotados de sabedoria e habilidades adquiridas com a leitura (cf. vv. 1109-1118). possvel que Aristfanes, alm de simples meno dos leitores, tenha escrito suas peas para divulg-las entre eles. O argumento em favor dessa ideia vem de um trecho da parbase das Nuvens (vv. 518-527), no qual o coro, depois de revelar a insatisfao do poeta diante da derrota sofrida no concurso das Grandes Dionsias de 423 a.C., anuncia o lanamento da nova verso da pea, que talvez no tenha sido preparada para ser encenada novamente. Segundo Adriane Duarte (2000, p. 21), o autor teria revisto Nuvens com o intuito de faz-la circular entre leitores, que podiam no ser muitos, mas que j existiam ento.

  • 11

    Partindo dessas verdades ligadas ao didatismo da comdia grega antiga, a presente

    dissertao tentar apresentar elementos que orientem a interpretao e a posterior

    compreenso do leitor hodierno em relao ao teatro de Aristfanes. Essa orientao se faz

    necessria porque o entendimento do leitor ulterior no se d de modo imediato como

    acontecia com o pblico ateniense do sculo V a.C.

    Sem a noo de como proceder interpretao da comdia de Aristfanes, o leitor

    moderno deixar de perceber satisfatoriamente o contedo do ensinamento de vida

    transmitido pelo poeta aos seus contemporneos. Pode at ser possvel que o leitor posterior

    consiga captar o enredo geral das peas, mas a profundidade dos pensamentos contidos em

    cada trecho que forma o todo das mesmas passar despercebida.

    Privado do entendimento bsico da comdia aristofnica, isto , do entendimento do

    texto em si, o leitor de hoje ser privado tambm da possibilidade de aplicar prpria vida os

    princpios ticos, morais, polticos etc. que o poeta educador dirigiu ao seu pblico original.

    Afinal de contas, no se pode esquecer que o objetivo de sua poesia era tornar os homens

    melhores (POMPEU, 2004, p. 20), e no apenas os atenienses.

    Em relao estrutura, a presente dissertao divide-se em trs captulos. No primeiro,

    mostraremos a riqueza cultural que existe na comdia de Aristfanes. Na funo de poeta

    educador, Aristfanes deixa transparecer em seu texto as evidncias de uma ampla bagagem

    cultural. Inclusive, uma parcela significativa do conhecimento que se tem acerca da Grcia

    nos sculos V e IV a.C. vem das peas desse comedigrafo.

    Tomando apenas exemplos retirados de Acarnenses, que ser o corpus da dissertao,

    mostraremos as evidncias da cultura do poeta como educador da cidade. Apresentaremos,

    sem a menor pretenso de exauri-las, as evidncias de sete reas do saber presentes no teatro

    aristofnico: msica, poltica, histria, militarismo, religio, economia e literatura.

    No segundo captulo, tentaremos mostrar como as evidncias culturais presentes no

    teatro do poeta podem interferir, facilitando ou dificultando, na interpretao e,

    consequentemente, na compreenso do leitor ulterior. Nessa demonstrao, recorreremos

    proposta hermenutica de Schleiermacher (2005, 2009).

    Na fundamentao terica que inicia esse captulo, apresentaremos o que aproxima e o

    que distancia as hermenuticas schleiermacheriana e contempornea. Veremos que a

    hermenutica contempornea manteve e considerou vlidas diversas premissas da proposta de

    Schleiermacher, dentre elas a equiparao: tentativa de superao da distncia que separa o

    leitor original do leitor ulterior (SCHLEIERMACHER, 2005, p. 111).

  • 12

    Na segunda seo desse captulo, mostraremos, novamente com exemplos de

    Acarnenses, que a equiparao uma tarefa necessria para entendermos o papel do poeta

    educador. Depois de mostrar que a equiparao no deve ser confundida com os comentrios,

    apresentaremos a carncia que o leitor moderno tem de realizar a equiparao com os

    seguintes contedos do poeta: lingustico, mitolgico, internacional e festivo.

    Sem a equiparao, o leitor hodierno deixar de evocar, de modo satisfatrio, o sentido

    textual proposto pelo poeta. Encerramos o segundo captulo com exemplos de trechos de

    Acarnenses em que a equiparao no foi realizada, o que refora, de forma inversa, a

    necessidade de se realizar essa tarefa.

    Por fim, no terceiro captulo, apresentamos a importncia que tem para o leitor posterior

    a equiparao com o contedo literrio do poeta. Para isso, recorremos a outra proposta

    terica: a transtextualidade, de Grard Genette (2006, 2010).

    Depois de conceituar os termos transtextualidade, hipertexto e hipotexto, dentre outros

    que utilizaremos, procuramos demonstrar que a comdia grega antiga elegeu o arquitexto

    trgico como o alvo de suas invectivas, bem como Eurpides como seu hipotexto

    predominante. Embora no tivesse sido o nico nem o primeiro, Aristfanes utilizou a

    tragdia euripidiana como hipotexto de uma forma especial. Sendo assim, o reconhecimento

    da relao transtextual entre o comedigrafo e o tragedigrafo imprescindvel ao leitor

    ulterior que deseja interpretar e compreender a comdia aristofnica.

    Na parte final do terceiro captulo, esforamo-nos para confirmar a nossa hiptese

    principal: sem o conhecimento mnimo da tragdia de Eurpides, a interpretao e a

    compreenso da comdia de Aristfanes sero prejudicadas. A equiparao com o contedo

    euripidiano do poeta cmico uma das principais, seno a principal, tarefa a ser realizada

    pelo leitor moderno.

    Os objetivos gerais, portanto, da presente dissertao so dois. Primeiro: confirmar que

    a equiparao schleiermacheriana o princpio que deve nortear o leitor hodierno na

    interpretao da comdia grega antiga, da qual Aristfanes o nico representante com peas

    inteiras. Segundo: demonstrar que um conhecimento mnimo das tragdias de Eurpides

    exigido do leitor ulterior que deseja entender satisfatoriamente o papel do poeta educador no

    teatro aristofnico.

    So tambm objetivos especficos: (1) mostrar que a comdia de Aristfanes uma rica

    fonte de informaes culturais da Grcia dos sculos V e IV a.C.; (2) dar evidncias de que a

    hermenutica de Schleiermacher, chamada de exegese pela hermenutica contempornea,

    continua tendo grande validade para os estudos dos textos clssicos de modo geral; (3)

  • 13

    demonstrar a existncia de uma intensa relao transtextual entre Aristfanes e Eurpides; (4)

    esclarecer que o fato de Eurpides ter sido o alvo principal da invectiva cmica grega no

    significa dizer que fosse um mau poeta; (5) comprovar que a traduo utilizada pode facilitar

    ou dificultar o entendimento do leitor que no conhece o grego.

    Ao longo de todo o trabalho, procuramos colocar nos exemplos os textos gregos

    seguidos de suas tradues. De modo geral, o texto grego de Acarnenses que utilizamos o da

    edio de F. W. Hall et W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906). Em alguns casos

    especficos, utilizamos o texto grego estabelecido por Victor Coulon (In: ARISTOPHANE,

    1958), o que ser indicado em nota de rodap. A traduo portuguesa da mesma obra a de

    Maria de Ftima de Sousa e Silva (In: ARISTFANES, 1980), que em determinados excertos

    procuramos ordenar em versos.

    Em relao aos esclios de Acarnenses, adotamos a edio de Dinforfii (1838), cuja

    traduo nossa. Para os fragmentos de Aristfanes, usamos a obra de Kock (1880) e para os

    de Eurpides, a de Nauck (1889). O texto grego das demais obras citadas e suas respectivas

    tradues sero indicados em nota apenas na primeira vez que surgirem.

  • O POETA COMO EDUCADOR DA CIDADE

    NA COMDIA DE ARISTFANES

    O texto aristofnico manifesta um cabedal de conhecimentos bastante relevante. Sua

    cultura estende-se s mais variadas direes que se possa imaginar, indo desde as prticas

    cotidianas mais banais at as complexas conjunturas poltico-econmicas internacionais. Seu

    conhecimento abarca tanto as singelezas da vida campesina quanto a corrupo que abundava

    nas grandes cidades. As prticas juvenis e os vcios dos homens idosos foram igualmente

    revelados na produo literria de Aristfanes.

    Para quem est acostumado com a rapidez e a facilidade com que as informaes e os

    conhecimentos se propagam nos nossos dias, a abundncia cultural da comdia de Aristfanes

    pode no significar nada. Contudo, quem ciente da realidade ligada aquisio cognitiva do

    mundo helnico anterior ao sculo IV a.C. no tem essa mesma viso.

    Para se ter uma ideia, at o sculo V a.C., em relao transmisso do conhecimento, a

    oralidade predominava sobre a escrita, pelo menos na Grcia antiga (DUARTE, 2000, p. 15).

    A escrita j existia no incio desse sculo e at mesmo muito antes dele, mas a transmisso

    oral predominava sobre ela. Tal predominncia, no que concerne difuso do conhecimento,

    manter-se- at o fim do referido sculo.

    Nesse momento especfico da histria grega, os rapsodos eram figuras importantssimas.

    Eles eram alguns dos principais divulgadores do conhecimento. Atravs da oralidade, ou

    melhor, da musicalidade, eles difundiam o conhecimento, especialmente aquele contido nas

    grandes epopeias.

    Entretanto, a partir do final do sculo V a.C., comea a existir uma difuso cada vez

    maior da escrita como parte essencial do processo de transmisso do conhecimento. Contudo,

    no se pode achar que esse aumento na difuso da escrita na Grcia antiga fosse parecido com

    o que vemos hoje.

    Todos os textos, por exemplo, eram copiados manualmente, o que tambm no era uma

    atividade que todos sabiam exercer. O nmero de pessoas que sabiam escrever no era

    grande. Tambm no existiam as grandes e famosas livrarias, onde fosse possvel adquirir

    alguns livros. Tudo era muito rstico e limitado. Isso restringia bastante a proliferao de

    livros e, consequentemente, a difuso do conhecimento.

    Foi, precisamente, nesse momento peculiar da histria grega que Aristfanes viveu e

    escreveu suas peas. No perodo em que a oralidade estava apenas comeando a perder o seu

  • 15

    reinado em relao transmisso do conhecimento, os textos aristofnicos, seguindo a

    tradio oral do poeta sbio desde Homero, j demonstraram possuir uma ampla cultura a

    respeito de vrias esferas do mundo de ento.

    Para darmos um nico exemplo rpido, a literatura cmica de Aristfanes manifesta um

    exmio conhecimento at mesmo de obras recm-escritas, as quais se disseminariam cada vez

    mais nos anos posteriores. Nas Tesmoforiantes, por exemplo, encenada em 411 a.C.,

    encontramos uma parodia da Helena, de Eurpides, apresentada em concurso no ano anterior.

    Alm dessa, vrias outras obras de autores trgicos e cmicos de ento so alvos da pardia,

    da aluso, da citao, da crtica e, at mesmo, do escrnio expressos nas peas do nosso poeta.

    Tudo isso d cultura revelada no texto de Aristfanes um valor especial. Suas

    comdias no eram apenas textos com algum valor cultural, mas textos ricos em informaes

    culturais daquele tempo. Assim como as obras de squilo, Sfocles e Eurpides em relao

    tragdia, as comdias de Aristfanes estavam bem frente de seu tempo.

    1.1 As evidncias do poeta como mestre da cidade no texto de Aristfanes

    Uma vez tendo comentado sobre a largueza cultural da produo literria do nosso

    comedigrafo, necessrio demonstrar o comentrio feito. Esse o momento de se responder

    seguinte pergunta: possvel afirmar com segurana que o texto aristofnico revela o poeta

    como mestre da cidade?

    Poucos textos confiveis contendo dados biogrficos de Aristfanes sobreviveram at os

    nossos dias (EURPIDES; ARISTFANES, 1986, p. 71). Em contrapartida, muitos textos

    escritos pelo prprio Aristfanes no sucumbiram tirania do tempo. Para ser mais exato,

    onze de suas comdias sobreviveram integralmente at hoje1, alm de vrios fragmentos2.

    Essa uma das maiores glrias de Aristfanes. Nenhum outro representante da comdia

    antiga grega conseguiu tal proeza. O mximo que os outros conseguiram foi legar-nos alguns

    fragmentos3!

    1 Aristfanes escreveu mais de quarenta comdias, das quais sobreviveram integralmente as seguintes: Acarnenses (425 a.C.), Cavaleiros (424 a.C.), Nuvens (423 a.C.), Vespas (422 a.C.), Paz (421 a.C.), Aves (414 a.C.), Lisstrata (411 a.C.), Tesmoforiantes (411 a.C.), Rs (405 a.C.), Assembleia de Mulheres (392 a.C.) e Pluto (388 a.C.). 2 Theodorus Kock (1880) publicou uma excelente obra contendo os fragmentos de diversos comedigrafos da Antiguidade Clssica: Comicorum atticorum fragmenta. 3 , justamente, dessa exclusividade que decorre a grande importncia de Aristfanes para o estudo da comdia, em especial o da grega antiga.

  • 16

    No sabemos, exatamente, o porqu dessa exclusividade de Aristfanes. A razo da

    sobrevivncia integral das onze comdias de Aristfanes tanto pode estar nas qualidades do

    prprio poeta quanto pode ser uma mera questo de sorte. Essa dvida uma tima sugesto

    para pesquisas posteriores. Contudo, independentemente das razes, somente as comdias

    aristofnicas transpuseram os dois milnios da era crist.

    Essas onze comdias sobreviventes so uma das nicas e mais relevantes fontes de

    informaes de que dispomos sobre os sculos V e IV a.C., perodo em que Aristfanes viveu.

    Elas revelam prolas da cultura daqueles sculos. Mais que isso, elas revelam muito da

    prpria pessoa, da histria e do conhecimento de Aristfanes. Isso pode soar estranho se

    aplicado aos textos de determinadas escolas literrias, mas em relao a Aristfanes e suas

    comdias, isso perfeitamente possvel.

    Mesmo sabendo que devemos ter cautela para no confundirmos histria com fico

    nem misturarmos o poeta-escritor com o poeta-pessoa, no podemos ignorar a existncia de

    obras com carter autobiogrfico, cujos exemplos so abundantes tanto na literatura de lngua

    portuguesa quanto nas demais. Foi esse o caso de Aristfanes. Ele revelou muito de si mesmo

    em suas comdias, especialmente nas parbases, sees especficas da comdia grega antiga

    em que o coro se dirigia aos espectadores em nome do poeta.

    A identificao entre Aristfanes e sua obra to grande em vrios momentos que a

    professora Adriane da Silva Duarte, em seu clssico O dono da voz e a voz do dono: a

    parbase na comdia de Aristfanes (2000), chega a declarar que, em Acarnenses, existe uma

    clara simbiose entre o poeta e a personagem principal (p. 29). Ao se referir s parbases de

    Cavaleiros, Vespas e Paz, Adriane afirma ainda que nessas comdias, observa-se a

    consolidao de um discurso uniforme e coerente nos anapestos, que nos permite identificar o

    poeta-personagem como o dono da voz que nos chega atravs do corifeu. (p. 9-10).

    Aristfanes manifestou muitos fatos da sua vida particular em outras parbases. Atravs

    da parbase das Nuvens4, por exemplo, sabemos da sua frustrao em ter ficado em terceiro e

    ltimo lugar no concurso em que apresentou essa pea, considerada por ele mesmo como a

    mais engenhosa de suas obras (Nuvens, vv. 518-527):

    . , , ,

    4 O texto de Nuvens que chegou at ns uma espcie de segunda edio realizada pelo prprio poeta (DUARTE, 2000, p. 10). O prprio poeta nos revela isso nos versos 523-524.

  • 17

    : : , . .5 Espectadores, vou dizer-vos a verdade sem rebuos, Sim, em nome de Dioniso, o que me criou. Tomara eu possa vencer e ser considerado um bom poeta, Assim como verdade que vos julguei espectadores sagazes E esta a mais engenhosa de minhas comdias E achei conveniente fazer-vos prov-la em primeiro lugar, Esta pea que me deu o maior dos trabalhos. Mas, depois, bati em retirada, vencido por homens grosseiros, Eu que no o merecia. isso que vos censuro, A vs que sois inteligentes, em cuja homenagem tanto me esforcei. Mas nem mesmo assim, espontaneamente, nunca hei de trair os espertos.6 (grifo nosso)

    A frustrao descrita no fragmento acima nada tem a ver com as personagens ou com o

    enredo das Nuvens e sim com o prprio Aristfanes, poeta real que apresentou vrias

    comdias nos concursos de teatro em Atenas (DUARTE, 2000, p. 136-137).

    Entretanto, esse desvelamento feito pelo prprio Aristfanes no se d somente nas

    parbases. Nosso autor tambm manifesta informaes de sua pessoa e histria em outras

    partes das suas comdias. Ainda em relao aos Acarnenses, Adriane Duarte (2000, p. 71)

    afirma que no prodo, o coro se dirige a Dicepolis com palavras que poderiam bem ser do

    poeta. Realmente, o fragmento abaixo, que no faz parte da parbase, s faz sentido se

    atribudo a Aristfanes (Acarnenses, vv. 299-302):

    : : , . , 7 No paro nada. No me venha com histrias. O meu dio por ti mais forte ainda do que por Clon8, Que hei-de retalhar para fazer calado para os cavaleiros. No vou dar ouvidos a essas histrias sem fim.9 (grifo nosso)

    O dio expresso pelo coro, no trecho acima, , na verdade, o dio do prprio poeta por

    Clon. Em Acarnenses, no existe relao alguma entre o coro e Clon. Isso nos faz confundir

    5 Exceto quando for indicado outro, o texto grego de Nuvens o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906). 6 Traduo de Gilda Maria Reale Starzynski (1967), que tentamos dispor em versos. 7 O texto grego de Acarnenses o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906), exceto quando for indicado outro. 8 Clon foi demagogo e estratego de grande influncia em Atenas durante o primeiro perodo da Guerra do Peloponeso, o qual acusou Aristfanes de trair a prpria cidade numa comdia apresentada em 426 a.C. (cf. Acarnenses 377-381). Essa desavena entre os dois terminou no tribunal Ateniense, fato que acirrou mais ainda os nimos do poeta contra o demagogo. 9 Todas as citaes em portugus de Acarnenses so da traduo de Maria de Ftima de Sousa e Silva (1980), que tambm procuramos organizar em versos.

  • 18

    o coro da comdia com o prprio autor da pea. Com isso em mente, Duarte (2000, p. 59) diz

    que a proximidade to grande que se torna difcil distinguir o criador10 da criatura11.

    Essa simbiose, no entanto, no ocorre apenas entre o poeta e o coro. Algo semelhante

    ocorre com o poeta e as personagens. Vrias vezes, as personagens de Aristfanes se

    confundem com a sua pessoa. Vejamos o discurso abaixo, de Dicepolis (Acarnenses, vv.

    377-381):

    . , Eu prprio estou bem lembrado das que passei com Clon, Por causa da comdia do ano passado. Depois de me ter arrastado a tribunal, Atirou-me uma catadupa de calnias por aquela boca fora, Que mais parecia um verdadeiro Cicloboro. (grifo nosso)

    inegvel que, no texto acima, Aristfanes e o seu personagem, Dicepolis, se

    confundem. No foi Dicepolis que Clon arrastou ao tribunal por causa de alguma comdia.

    Clon nem mesmo personagem dessa comdia. Quem passou por essa experincia foi o

    cidado real chamado Aristfanes. A identificao entre o poeta e o heri de Acarnenses to

    grande que Adriane (2000, p. 57) afirma categoricamente que esse excerto s faria sentido da

    tica do comedigrafo.

    Como se pode ver, o poeta revela muito de sua prpria pessoa, histria e cultura em suas

    peas12. Sendo assim, a comdia de Aristfanes uma rica fonte de informaes, tanto acerca

    da cultura helnica nos sculos V e IV a.C. quanto da cultura do prprio comedigrafo e dos

    seus espectadores.

    Estabelecer como corpus as onze peas integrais de Aristfanes no seria vivel; afinal

    de contas, juntas, elas tm aproximadamente 15.300 versos. Diante disso, nesse primeiro

    captulo, utilizaremos somente exemplos extrados de uma nica comdia, a mais antiga

    delas: Acarnenses.

    A pea comea com Dicepolis, um campons, aguardando o incio da assembleia do

    povo, no recinto da Pnix13. Ao chegar cedo, de manhzinha, o aldeo fica decepcionado ao

    10 O poeta Aristfanes. 11 O coro formado pelos acarnenses, ao qual se refere o comentrio de Adriane Duarte. 12 Para maiores detalhes acerca da identificao entre Aristfanes e sua obra, conferir (DUARTE, 2000, p. 36, 55-62, 152). 13 A Pnix uma colina na parte interna da cidade de Atenas, onde ocorriam as assembleias populares de ento.

  • 19

    ver a colina vazia. Nem mesmo os prtanes14 haviam chegado. Por volta do meio-dia, depois

    de iniciada a reunio com um atraso enorme, o Arauto concede a palavra ao primeiro orador,

    Anfteo, que diz ter sido encarregado pelos deuses de negociar a paz com Esparta15. A

    proposta de paz rechaada com violncia por todos, exceto por Dicepolis, que contrata

    Anfteo como seu embaixador particular, a fim de negociar a paz com os espartanos. Antes

    mesmo do fim da assembleia, Anfteo sai para cumprir sua misso. Pouco depois a assembleia

    encerrada, o que tambm marca o fim da primeira cena.

    Quando Anfteo retorna, Dicepolis recebe dele a to desejada paz e celebra as saudosas

    Dionsias Rurais16. Contudo, o campons nota que Anfteo no trouxe apenas a paz, mas

    tambm a companhia dos enfurecidos acarnenses17, inflamados por saber que algum se

    disps a negociar a paz com os seus piores inimigos. Quando percebem que Dicepolis foi o

    responsvel pela ida de Anfteo terra dos lacedemnios, querem irredutivelmente apedrej-

    lo. Diante do aperto, o campnio se apodera de um refm e obriga os enfurecidos acarnenses a

    lhe dar a oportunidade para fazer um discurso em defesa de sua prpria vida, o que faria com

    o pescoo no cepo. Se o fizesse bem, salvaria sua pele, caso contrrio, morreria! Os habitantes

    de Acarnas aceitam a proposta.

    Diante da gravidade da situao e para fazer um discurso brilhante, Dicepolis vai

    buscar o auxlio de Eurpides, que representado como o mestre dos discursos falaciosos.

    Com muita relutncia, Eurpides entrega quase todos os recursos que utiliza em suas

    tragdias, especialmente os que foram usados no Tlefo18. Munido de toda a artimanha

    retrica, o aldeo apresenta o seu discurso de defesa, que divide o coro dos acarnenses:

    metade continua querendo mat-lo e metade se deixa convencer pelo discurso.

    Por se sentir em desvantagem, a metade que deseja mat-lo pede a ajuda de Lmaco19,

    que atende prontamente ao chamado. Dicepolis e Lmaco discutem, brevemente, acerca dos

    benefcios e prejuzos decorrentes da guerra. Nas palavras do prprio coro: Este homem [,

    Dicepolis,] saiu vencedor com a sua argumentao, pois soube levar o povo a mudar de ideia

    em relao s trguas. (vv. 626-627). Nesse momento, inicia-se a parbase.

    14 Os prtanes eram os responsveis por presidir a assembleia. 15 Os atenienses estavam em guerra com os espartanos h, aproximadamente, seis anos, desde 431 a.C. 16 Eram um festival associado ao deus Dioniso, celebrado geralmente no ms de dezembro. O principal acontecimento das festividades era um cortejo falofrico, cujo significado estava ligado a um culto propiciatrio da fertilidade. 17 Habitantes de Acarnas, um dos demos circunvizinhos de Atenas que mais sofria com as invases espartanas, da o grande dio pelos espartanos. 18 Tragdia de Eurpides, encenada em 438 a.C. 19 Lmaco foi um dos maiores estrategos do exrcito ateniense. Em Acarnenses, eleito como a personificao da guerra.

  • 20

    Na cena seguinte, Dicepolis resolve abrir um mercado para negociar com todos os

    peloponsios, megarenses e becios (vv. 720-970). O primeiro a vir para negociar com o

    campons um megarense, que disfara suas filhas de porcas e as troca por mercadorias

    insignificantes: alho e sal. O prximo a vir comercializar com Dicepolis um tebano, que

    troca diversas iguarias por um produto peculiar de Atenas: um sicofanta20. Esses dois

    momentos de negociaes fazem graa de um modo especial. A cena do megarense uma

    pardia da farsa de Mgara, uma primitiva forma de comdia, citada na Potica de Aristteles

    como tal. J a cena do tebano com o sicofanta parece fazer referncia ao Hracles com os

    krkopes, espcie de smios. O comedigrafo em Acarnenses faz uma revista do gnero

    cmico, comeando com o hino flico nas Dionsias Rurais (tambm referido por Aristteles

    como precursor da comdia), cantado pelo prprio Dicepolis Cidade Justa, que representa

    a voz do poeta, na pea.

    Depois de ter abastecido sua casa com os produtos trazidos pelo megarense e pelo

    tebano, o campons celebra outro festival, o dos Cngios21. Enquanto Dicepolis festeja,

    Lmaco, um lavrador e um noivo lhe pedem um pouco daquilo que negociou com os

    estrangeiros. Mas ele no cede a nenhum pedido, exceto o de uma mulher recm-casada

    porque, na viso do campons, mulher e no tem culpa da guerra. (v. 1062).

    Na iminncia de se celebrar a festa dos Cngios, aparecem dois arautos: um que

    convoca Lmaco, imediatamente, para defender Atenas da investida de uns salteadores

    becios e outro que, a pedido do sacerdote de Dioniso, chama Dicepolis para celebrar os

    Cngios. Nesse instante vemos um grande contraste entre Dicepolis, que usufrui de todas as

    delcias dos Cngios, e Lmaco, que se prepara para ir guerra. O contraste se mantm at

    que o estratego sai batalha. Um pouco depois, aparece outro mensageiro que vem anunciar a

    triste sorte de Lmaco (vv. 1174-1181):

    , : , , , . , , , . servos da casa de Lmaco! gua, aqueam uma panela de gua. Arranjem ligaduras, uma pomada, compressas,

    20 Delator dos produtos originrios dos pases e povos considerados inimigos de Atenas. 21 A festa dos Cngios, que acontecia durante as Antestrias, comemorava o fato de rapazes e moas terem ultrapassado a infncia. O destaque desse animado festival era a excessiva ingesto de vinho da ltima colheita.

  • 21

    Um penso para lhe por no tornozelo. O fulano, ao saltar um fosso, magoou-se numa estaca, E torceu um p, desmanchou o tornozelo. Para mais, foi cair em cima de uma pedra, Rachou a cabea, e acordou a Grgona do escudo.

    A comdia termina com outro grande contraste: de um lado, Dicepolis, que festeja

    alegremente a festa dos Cngios, e Lmaco, de outro, lamentando amargamente sua sorte.

    Alm dos sofrimentos decorrentes das feridas, o guerreiro tem que suportar o debochado

    escrnio do campons, que passa a ser seguido gentil e alegremente pelo mesmo coro de

    acarnenses que antes queria mat-lo.

    De modo geral, Acarnenses uma apologia paz. Se as guerras existem, deve-se aos

    prprios homens que no fazem aquilo que est ao seu alcance para estabelecer as trguas. Os

    insensatos preferem sofrer as agruras decorrentes da guerra a usufruir as delcias advindas dos

    tempos de paz.

    1.1.1 As evidncias da cultura musical

    Em diversos trechos de Acarnenses, encontramos evidncias da presena do

    conhecimento do poeta relativo msica. Uma das primeiras referncias textuais pode ser

    encontrada j na cena inicial dessa pea, quando Dicepolis est na Pnix, aguardando a

    chegada daqueles que vo participar da assembleia. Enquanto estava a esperar, o campons

    fala consigo mesmo (Acarnenses, vv. 12-16):

    ; , . , . Bem podem imaginar o abalo que no foi para o meu pobre corao. Pelo contrrio foi uma alegria quando, depois de Mosco, Entrou Dexteo para cantar uma becia. Ainda este ano me senti morrer, at vesgo fiquei, Quando vi despontar Cris para tocar o hino rtio. (grifo nosso)

    Embora tenhamos poucas informaes acerca deles, sabemos que Mosco, Dexteo e

    Cris eram trs nomes ligados musica contempornea de Aristfanes. Notemos que o poeta

    no apenas cita os referidos nomes, mas tambm faz uma crtica acerca do desenvolvimento

    artstico de cada um deles. Para Dicepolis, foi uma alegria ver Dexteo suceder Mosco, o que

    demonstra a superioridade artstica daquele em relao a este. A superioridade de Dexteo

    confirmada por um escoliasta que comentou acerca dele (ARISTFANES, 1980, p.107-108):

  • 22

    , isto , o melhor tocador de ctara e vencedor nos jogos

    Pticos22.

    Cris, alm de Mosco e Dexteo, tambm recebe um juzo de valor por parte de

    Dicepolis: Ainda este ano me senti morrer, at vesgo fiquei, quando vi despontar Cris para

    tocar o hino rtio. Est bvio que, para o aldeo, Cris era um msico de m qualidade. Ele

    depreciado novamente nos versos 864-866:

    . ; ;

    DICEPOLIS (arremetendo para os flautistas)

    Basta! Vo-se enforcar! Suas vespas, Vocs desandam da minha porta ou no desandam? Donde viro a voar estes Ceridezinhos todos? Um raio que os parta! E v de virem aqui para a minha porta, com os seus zumbidos de cana rachada.

    Acarnenses no a nica comdia de Aristfanes em que podemos encontrar um juzo

    de valor sobre Cris. Esse msico tambm desdenhado pelo coro em duas outras comdias

    do nosso poeta, Paz (vv. 950-955) e Aves (vv. 851-858):

    ; , , .23 CORO

    Vamos, metam-se em brios! Porque se Cris vos pe a vista em cima, Apresenta-se a para tocar flauta, mesmo sem ter sido convidado. E ento, certo e sabido que, Ao v-lo suar as estopinhas para mandar uns sopros, Vocs vo acabar por lhe dar uma esmola.24 25

    , , , .

    22 Traduo nossa. 23 O texto grego de Paz, exceto quando for indicado outro, o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906). 24 Traduo de Maria de Ftima de Sousa e Silva (1984). 25 Seguimos a edio de Victor Coulon (In: ARISTOPHANE, 2009), pois na edio de F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906), encontramos IY SACERDOTE.

  • 23

    , .26 CORO

    Os meus parabns! Estou totalmente de acordo. Vou fazer coro contigo para pedir que hinos longos E solenes sejam entoados em honra dos deuses; Mais ainda, que, para lhes conciliar as boas graas, Se lhes sacrifiquem um carneirito ou coisa que o valha. Que toe, toe, toe o grito ptico e que Quris27 Acompanhe flauta o meu canto.28

    Voltemos aos solilquios de Dicepolis em Acarnenses, vv. 12-16.

    Enquanto aguarda o incio da assembleia do povo na Pnix, alm dos nomes dos msicos

    supracitados, o campons menciona, da mesma forma crtica, dois estilos musicais: becio e

    rtio. Segundo Maria de Ftima (In: ARISTFANES, 1980, p. 108), o primeiro um canto

    maneira becia. Olson (In: ARISTOPHANES, 2002, p. 70) complementa dizendo que esse

    canto inicia lentamente, mas em seguida torna-se mais vigoroso. J o segundo estilo, o rtio,

    diferia bastante do becio. Em nota explicativa para o v. 16, Maria de Ftima declara que o

    hino rtio que essa personagem executava era um hino guerreiro (In: ARISTFANES, 1980,

    p. 108), dentro da tradio da msica de Terpandro (In: ARISTFANES, 2006, p.60).

    Como se v, j nessa cena inicial de Acarnenses, possvel notar uma amostra da

    cultura musical presente na comdia de Aristfanes. Porm, esse no o nico trecho da obra

    em apreo em que podemos verificar o conhecimento acerca do universo da msica que o

    teatro aristofnico revela.

    Na ocasio em que Dicepolis estabelece o seu mercado, encontramos outra referncia

    cultura musical de Aristfanes. No intervalo entre a sada do megarense e a entrada do tebano,

    o coro pronuncia o seguinte (vv. 836-851):

    . [...] , , , CORO

    um felizardo este homem! [...] Ests livre de esbarrar na praa com Cratino,

    26 O texto grego de Aves o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906), exceto quando for indicado outro. 27 Quris e Cris so duas transliteraes possveis para . 28 Traduo de Maria de Ftima de Sousa e Silva (1989).

  • 24

    Nas suas passeatas, e que ele venha ao teu encontro Com os eternos cabelos cortados... gal, com uma navalha; Ou esse miservel do rtemon, Autor de msica atamancada (grifo nosso)

    Nos versos acima, Aristfanes, por meio do coro, faz uma nova critica musical, desta

    vez a rtemon. Nos vv. 850-851 do texto estabelecido por Victor Coulon (In:

    ARISTOPHANE, 1958, p. 49), lemos o seguinte: ,

    , que traduzimos por o miservel rtemon, cujas msicas so demasiadamente

    rpidas29.

    Pelo que vimos do comentrio feito por Dicepolis em relao ao estilo becio de

    Dexteo (v. 14), percebemos a sua preferncia pelo gnero musical que se inicia de forma

    lenta e, posteriormente, vai acelerando o ritmo. Por ser um compositor de msicas muito

    aceleradas, rtemon estigmatizado em Acarnenses.

    Outra demonstrao do conhecimento musical presente em Acarnenses pode ser vista

    no texto da cena em que Dicepolis se prepara para celebrar a festa dos Cngios. Durante os

    preparativos, Lmaco envia um mensageiro ao mercado do campons, a fim de comprar uns

    tordos e uma enguia do Copas (cf. vv. 960-963), mas o velho aldeo se recusa

    veementemente a vender qualquer produto a Lmaco. Leiamos suas palavras (vv. 966-970):

    : : , . . DICEPOLIS

    No, ca breca! Nem mesmo que ele me desse o escudo! Se quer peixe fumado, que agite os penachos. E se ele barafustar, eu chamo os fiscais. (Empunha os chicotes. O mensageiro de Lmaco foge.) Vou mas pegar nestas mercadorias todas para mim, E vou l para dentro, ao som das asas dos tordos e dos melros. (grifo nosso)

    A informao musical desse fragmento est no verso 970: [...] ao som das asas dos

    tordos e dos melros. Ao coment-lo, Van Daele (In: ARISTOPHANE, 1958, p. 55) diz o

    seguinte: Parodie de quelque chanson du temps (Scholiaste).30 Sendo assim, conforme a

    informao do escoliasta citado por Daele, o v. 970 contm uma pardia de uma cano

    daquela poca. Para parodiar uma cano, obviamente, necessrio conhecer a verso

    29 Numa traduo mais literal teramos: o miservel rtemon, que muito rpido nas msicas. 30 Pardia de alguma cano da poca (Escoliasta).

  • 25

    original. Desse modo, o referido verso de Acarnenses evidencia que os textos de Aristfanes

    tambm revelam o conhecimento da letra de algumas msicas de ento, alm dos msicos e

    estilos.

    Logo nos versos subsequentes a esses que acabamos de ver, o coro de Acarnenses faz

    uma nova apresentao da cultura musical presente na produo teatral do nosso poeta (vv.

    971-984):

    , , , . . , , , , CORO

    Ests a ver, cidade, este homem sensato, este poo de sabedoria, E o que ele conseguiu depois de fazer as trguas? Produtos para vender, uns de uso caseiro, outros bons para comer quentes. Sem mexer uma palha, tudo que bom lhe vem parar s mos. Em minha casa, nunca mais hei-de acolher a Guerra. No, na minha presena, minha mesa, No h-de ela cantar aquela cano de Harmdio. como um bbado, um estroina, Que se mete numa casa onde reina a felicidade E s arranja sarilhos. (grifo nosso)

    A mesma cano recebe uma nova aluso nos vv. 1085-1094:

    . . : . , , , , , , . . MENSAGEIRO

    Vem depressa para o banquete. Traz a cesta e o cngio. Foi o sacerdote de Dioniso que te mandou chamar. Vamos, despacha-te! O banquete est j muito atrasado, e por tua causa. Todo o resto est prontinho, Leitos, mesas, almofadas, mantas, Coroas, perfumes, guloseimas e j l esto as cortess! ,

  • 26

    Tortas, bolos, pezinhos de ssamo, boroinhas de mel, bailarinas, A cantiga Querido Harmdio tudo pronto h que tempos. Vamos l, despacha-te, depressa! (grifo nosso)

    Nos dois trechos acima, temos referncias de uma determinada msica conhecida como

    Cantiga de Harmdio. Essa cantiga de mesa, que tinha um teor militar, celebrava Harmdio,

    o libertador de Atenas da opresso dos Pisistrtidas, o qual, auxiliado por Aristogton,

    assassinou o tirano Hiparco durante a celebrao das Panateneias, em 513 a.C. Van Daele (In:

    ARISTOPHANE, 1958, p. 56) afirma que a letra dessa cano de mesa comeava assim:

    Bien aim Harmodios, ah! non tu nes pas mort, ou seja, Ah, querido Harmdio, tu no

    devias estar morto! 31.

    Como ltimo exemplo da cultura musical presente na produo textual do nosso poeta

    cmico, cito os vv. 1178-1186, que mostram a narrativa do mensageiro em relao aos

    detalhes do momento em que Lmaco se fere:

    32

    , , , . , : , .33 MENSAGEIRO

    O fulano, ao saltar um fosso, magoo-use numa estaca, E torceu um p, desmanchou o tornozelo. Para mais, foi cair em cima de uma pedra, rachou a cabea, E acordou a Grgona do escudo. Ao ver a sua pluma de valentao espatifada De encontro s pedras, desatou numa choradeira desgraada: sol glorioso, esta a ltima vez que te vejo, Antes de deixar a luz. J no sou deste mundo. Acabou de dizer estas palavras e foi cair num riacho. (grifo nosso)

    Segundo a narrativa do mensageiro, Lmaco, depois de se machucar todo, [...] desatou

    numa choradeira desgraada (v. 1183). Aparentemente, esse verso no apresenta informao

    alguma relacionada msica. No entanto, quando o lemos na lngua grega, notamos que

    31 Para maiores detalhes sobre os feitos de Harmdio, cf. Herdoto (V, 55-65; VI, 123) Tucdides (VI, 53-59) e Aristteles (A Constituio dos Atenienses, XVIII-XX). 32 Novamente seguimos a edio de Victor Coulon (In: ARISTOPHANE, 1958), pois na edio de F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906), encontramos SERVO DE LAMACO. 33 O v. 1185, no texto estabelecido por Hall e Geldart, difere do texto grego editado por Victor Coulon: . .

  • 27

    existe uma clara aluso existncia de uma cano. A aluso musical deve-se ltima

    palavra do verso: .

    Em seu dicionrio, Isidro (1990, p. 363), apresenta os seguintes significados para o

    substantivo neutro : membro, articulao; membro da frase musical; canto rtmico;

    canto instrumental; canto acompanhado de msica; melodia; palavra que se repete

    constantemente. Como se v, a maioria das acepes dessa palavra tem um teor musical.

    O mesmo substantivo aparece outra vez no texto de Acarnenses, no meio do discurso

    parabtico. E, semelhante ao que ocorreu no v. 1183, ele est ligado a um contedo musical,

    no qual a Musa de Acarnas est sendo invocada pelo coro. Leiamos o texto (vv. 665-675):

    . , , , , . Vem c, Musa de Acarnas, impetuosa, Ardente como fogo, plena de vigor. Como das brasas do carvalho Salta uma chama atiada pelo sopro favorvel do abanador, Quando se tem mo peixes para fritar, Ou quando se mexe um molho de tasos, Com os seus anis brilhantes de gordura, Ou se amassa o po, assim vigorosa Vem a mim at mim, teu concidado, com o teu canto34 Bem timbrado, de tom rstico. (grifo nosso)

    Nesse segundo fragmento, em total concordncia com as acepes propostas por Isidro

    (loc. cit.), o substantivo neutro , que aparece no v. 674, foi traduzido como canto. O

    valor musical desse substantivo reforado pelos adjetivos , bem timbrado, e

    , de tom rstico.

    Atravs desses dois trechos, vv. 1178-1186 e vv. 665-675, notamos que Aristfanes usa

    o substantivo com um sentido musical, o que natural e, at mesmo, bvio. Com isso

    em mente, podemos voltar ao v. 1183, que Maria de Ftima traduziu por: De encontro s

    pedras, desatou numa choradeira desgraada. Ao verter por choradeira, ela

    obscureceu o teor musical desse verso.

    Em nossa opinio, seria melhor traduzir , por

    contra as pedras, entoava uma cano lamentosa. Dessa forma, o referente musical fica

    mais explcito, especialmente ao que ele prenuncia. A expresso entoava uma cano

    lamentosa o prenncio da cano que ser entoada por Lmaco, logo em seguida: sol

    34 A palavra que Maria de Ftima verteu por canto o mesmo substantivo neutro em questo: .

  • 28

    glorioso, esta a ltima vez que te vejo, antes de deixar a luz. J no sou deste mundo. (vv.

    1184-1185).

    Conforme foi antecipado pelo v. 1183, os dois versos seguintes so parte de uma cano

    lamentosa entoada por Lmaco. perfeitamente possvel que tais versos fossem parte de uma

    cano bem conhecida dos espectadores de Acarnenses. Contudo, essa hiptese,

    lamentavelmente, no confirmada por nenhum escoliasta.

    Mesmo que os vv. 1184-1185 no fossem parte de uma cantiga real conhecida pelos

    contemporneos de Aristfanes, a cultura musical do poeta continua sendo atestada pelo

    trecho em questo. Se a cantiga existiu, Aristfanes a conhecia, o que comprova sua cincia

    relacionada ao mundo musical da poca. Se a cantiga no existiu, aqueles versos revelam os

    dotes de compositor do comedigrafo, o que evidencia mais ainda a sua cincia musical.

    Todos esses exemplos extrados de Acarnenses (vv. 12-16; 665-675; 836-850; 864-866;

    966-970; 971-984; 1085-1094) servem para demonstrar a cultura musical que est presente na

    comdia de Aristfanes. Cultura que se revela na distino dos bons e maus msicos, na

    conscincia e crtica dos diversos estilos musicais, na aluso de ttulos ou na pardia de

    trechos de cantigas, por exemplo.

    1.1.2 As evidncias da cultura poltica

    A comdia de Aristfanes, como acabamos de ver, permeada por um bom

    conhecimento relacionado ao mundo da msica. Entretanto, a literatura aristofnica

    demonstra estar principalmente atenta aos acontecimentos polticos de seu tempo, tanto os

    nacionais ocorridos em Atenas quanto os internacionais35.

    O conhecimento poltico presente na literatura de Aristfanes pode ser percebido em

    quase todas as peas. Em algumas, o teor poltico permeia apenas algumas cenas ou poucos

    versos. Contudo, em outras, a abordagem poltica bem maior, funcionando at mesmo como

    eixo norteador dessas comdias. o caso de Acarnenses, Cavaleiros, Nuvens36, Vespas e Paz,

    que combatiam a poltica belicista de alguns demagogos atenienses.

    35 Pelo fato de as cidades-estado gregas se aproximarem bastante do conceito moderno de nao, resolvemos utilizar o termo internacional tanto para outros pases Prsia, por exemplo quanto para as demais cidades-estado gregas: Esparta, Tebas, Mgara etc. 36 Em Nuvens, cuja temtica est mais voltada para a educao juvenil e para os novos sbios sofistas, a abordagem poltica ocupa uma posio secundria. Contudo, mesmo diante dessa primazia do tema educacional e filosfico, Adriane Duarte (2000, p. 51) inclui essa comdia entre aquelas que se opem, abertamente, s polticas de manuteno da guerra.

  • 29

    Adriane Duarte, no excerto abaixo, comprova com exatido aquilo que acabamos de

    afirmar (2000, p. 51, grifo nosso):

    O perodo inicial coincide com a estreia do comedigrafo no ano de 427 a.C. e est bem documentado. Cinco das suas onze peas que se conhecem completas pertencem a este grupo: Os Acarnenses (425), Os Cavaleiros (424), As Nuvens (423), As Vespas (422) e A Paz (421). Como o intervalo entre elas anual, pode-se traar com alguma segurana as principais caractersticas que sua obra tinha ento. Essas comdias tm em comum a stira aberta cidade de Atenas, sobretudo poltica belicista levada a termo por lderes demagogos durante o primeiro perodo da Guerra do Peloponeso (o que alimenta mas no sustenta a ideia de um Aristfanes pacifista).

    Das cinco peas mencionadas h pouco, uma essencialmente poltica: Cavaleiros

    (DUARTE, 2000, p. 84). Nessa comdia, Aristfanes ataca, vorazmente, Clon, que foi

    estratego durante a primeira parte da Guerra do Peloponeso. Esse demagogo era, abertamente,

    defensor da manuteno da guerra entre Atenas e Esparta, postura poltica que o nosso poeta

    combater duramente.

    Sobre o carter essencialmente poltico de Cavaleiros, Adriane Duarte escreveu em seu

    livro O dono da voz e a voz do dono (p. 84):

    Em 424 a.C., o ano seguinte apresentao d Os Acarnenses, Aristfanes inscreveu no mesmo concurso das Leneias aquela que seria a sua pea mais poltica, Os Cavaleiros. Cleo, figura de referncia na comdia anterior, agora um dos antagonistas, o escravo Paflagnio, encarregado de administrar a despensa do patro, Demos da Pnix, ou seja, o Povo da Assembleia. Sua ascendncia sobre seu senhor baseada na concesso de pequenos favores, quase todos de ordem gastronmica, e, principalmente, na adulao. Em compensao, desvia para si as melhores iguarias.

    Diante desses fatos, Cavaleiros, sem dvida, seria a pea mais adequada para

    demonstrar o conhecimento poltico presente na obra do nosso comedigrafo. Contudo, a fim

    de nos mantermos fiis ao corpus estabelecido para esse primeiro captulo, procuraremos

    comprovar a cultura poltica presente no texto de Aristfanes apenas com exemplos extrados

    de Acarnenses.

    J frisamos que Acarnenses, como um todo, tem um teor poltico. Essa comdia assim

    como Cavaleiros, Nuvens, Vespas e Paz uma oposio poltica belicista defendida por

    alguns demagogos que se beneficiavam com a manuteno das guerras, especialmente

    daquela contra os espartanos. Contudo, o veio poltico de Acarnenses no percebido apenas

    em sua estrutura geral. Tambm podemos not-lo de modo especfico em vrios versos e

    cenas.

    J na cena inicial, aquela em que Dicepolis est participando da assembleia do povo,

    encontramos uma das primeiras evidncias do conhecimento poltico presente na obra de

    Aristfanes. Depois que Anfteo, o enviado dos deuses para negociar a paz, expulso com

  • 30

    hostilidade da assembleia, o Arauto anuncia a presena dos embaixadores enviados ao Grande

    Rei37 e cede-lhes a oportunidade para discursar.

    De posse da palavra, um dos embaixadores comea a fazer o relato da viagem at a

    Prsia. Em seguida, passa a dar detalhes do tratamento recebido no pas do Grande Rei. Em

    vrios momentos, com um tom carregado de ironia, Dicepolis interpela o emissrio de

    Atenas. Os comentrios do campons sobre a embaixada so muito irnicos e revestidos de

    uma dura crtica.

    Terminando o seu discurso, o embaixador ateniense chama o Olho do Rei38,

    Pseudartabas, que o havia acompanhado desde a Prsia. Com um grego estropiado, o

    representante do monarca persa pronuncia assembleia um discurso incompreensvel.

    Aproveitando-se da ininteligibilidade da mensagem de Pseudartabas, o enviado de Atenas

    mente para a assembleia dizendo que o Rei lhes enviaria ouro.

    No convencido das palavras de nenhum dos dois ltimos oradores, Dicepolis apanha

    um porrete e interroga o Pseudartabas, ameaando-lhe dar uma surra, caso no lhe

    respondesse tudo. Nessa ocasio, o brbaro confessa que a cidade de Atenas est sendo lesada

    pela prpria embaixada que enviara Prsia.

    Nesse trecho especfico, Acarnenses (vv. 61-125), vemos uma amostra do conhecimento

    poltico presente na comdia de Aristfanes. De forma muito criativa, esses versos criticam

    uma postura poltica adotada por Atenas. A crtica diz respeito ao envio de embaixadas a

    diversos pases, a fim de conquistar apoio financeiro e militar. O objetivo do possvel apoio

    era alcanar as condies necessrias para derrotar Esparta, inimigo-mor de Atenas na Guerra

    do Peloponeso.

    Como comum em todos os textos cmicos, a crtica a essa postura poltica de Atenas

    feita por meio de uma grande brincadeira, cujo alvo inicial a embaixada enviada

    especificamente ao rei da Prsia39. O poeta, em primeiro lugar, escarnece do tempo

    demasiadamente longo que tais embaixadas gastavam em suas misses. O prprio embaixador

    diz (Acarnenses, vv. 65-67):

    .

    37 Entre os gregos, o rei da Prsia era denominado de Rei ou Grande Rei (Acarnenses, v. 65). Na ocasio, o rei persa era Artaxerxes I, que reinou de 465-424 a.C. 38 Olhos e ouvidos do Rei, expresso atribuda aos familiares do Rei da Prsia e a alguns de seus cortesos, em quem o monarca tinha grande confiana. 39 No se deve pensar que aqui h, necessariamente, uma referncia a determinada embaixada real.

  • 31

    EMBAIXADOR

    Fomos por vs enviados junto do Grande Rei, Com um salrio de duas dracmas por dia, No arcontado de Eutmenes. (grifo nosso)

    A referncia ao arcontado de Eutmenes40 revela que aquela misso tinha comeado

    onze anos antes. Era um tempo muito longo para se obter resultados to incuos41. Poucos

    versos mais adiante, o poeta troa novamente do longo tempo gasto por aquela intil

    embaixada. Foram, por exemplo, quatro extensos anos s para a embaixada chegar ao pas do

    Grande Rei. Sem falar nos oito meses que ficaram esperando o rei persa descer do alto de

    uns peni...nhascos com seu exrcito. Era muito tempo gasto em nada! Leiamos um trechinho

    do relatrio do prprio embaixador (Acarnenses, vv. 80-82):

    : , . EMBAIXADOR

    Ao fim de quatro anos, chegamos corte do rei. Mas ele tinha sado com o exrcito para... cagar, E h oito meses que estava a fazer no alto de uns peni...nhascos de ouro.

    A cena da embaixada enviada ao Grande Rei (Acarnenses, vv. 61-125), em segundo

    lugar, critica os altos salrios pagos aos embaixadores, que nenhum resultado positivo traziam

    para Atenas. Cada emissrio daquela delegao, de acordo com o depoimento do prprio

    embaixador, era remunerado com um salrio de duas dracmas por dia (vv. 65-67):

    . EMBAIXADOR

    Fomos por vs enviados junto do Grande Rei, Com um salrio de duas dracmas por dia, No arcontado de Eutmenes.

    No verso 90, Dicepolis faz uma nova referncia ao salrio pago aos embaixadores

    enviados para junto do Rei:

    .

    40 Eutmenes fora arconte onze anos antes da encenao de Acarnenses, isto , em 437 ou 436 a.C. 41 O prprio Olho do Rei havia declarado que Atenas era vtima do dolo de seus embaixadores (cf. v. 114).

  • 32

    DICEPOLIS

    Ora a est porque nos fazias essa velhacaria de nos apanhares duas dracmas.

    Para percebermos como essa remunerao era expressiva, basta lembrarmos da quantia

    que era dada aos cidados atenienses que participavam de uma sesso da assembleia do povo:

    trs bolos42. No discurso de Filoclon, em Vespas43 (vv. 1120-1121), encontramos uma

    referncia a essa paga:

    ' , .44 Em suma, a minha opinio que, no futuro, o cidado Que no tiver aguilho, no receba o tribolo.45

    Sendo assim, enquanto o cidado ateniense recebia trs bolos para participar da

    assembleia popular, cada embaixador enviado ao rei persa era remunerado com duas dracmas

    dirias, o que equivalia a doze bolos por dia46. Portanto, cada embaixador recebia

    diariamente, chovendo ou fazendo sol, quatro vezes mais que o cidado comum, quando

    participava da assembleia. Ao multiplicarmos esse valor ao longo de onze anos, teremos uma

    ideia dos altos custos que o envio de uma embaixada representava!

    No trecho em que Lmaco chamado para defender a metade do coro que no se deixou

    convencer pelo discurso de Dicepolis, encontramos outra referncia alta remunerao dada

    s embaixadas. Dessa vez, o salrio maior que o dado embaixada enviada aos persas. A

    misso diplomtica enviada Trcia47 parecia receber diariamente trs dracmas, ou seja,

    dezoito bolos. Leiamos o trecho, no qual o campons esbraveja com Lmaco (Acarnenses,

    vv. 599-606):

    , , , , , , , .

    42 Ou um tribolo. 43 Vespas, de modo geral, contm uma crtica ao desejo desenfreado, por parte dos cidados atenienses, de arrastar uns aos outros para os tribunais. Essa atitude leva Aristfanes a comparar os atenienses a verdadeiras vespas, com seus ferres prontos para atingir qualquer um. No entanto, no contexto desses versos, o ferro diz respeito coragem e disposio de enfrentar os inimigos, os Persas, no caso. 44 Exceto quando for indicado outro, o texto grego de Vespas o estabelecido por F. W. Hall e W. M. Geldart (In: ARISTOPHANIS, 1906). 45 Traduo de Junito Brando (1986). 46 O valor de cada dracma correspondia a seis bolos. 47 Teoro o personagem de Acarnenses que representa a misso diplomtica enviada a Sitalques, o rei da Trcia (cf. vv. 134-173).

  • 33

    Foi por estar farto dessas e de outras, que eu fiz trguas, Ao ver homens de cabelos brancos nas fileiras, E moos como tu a escapulirem-se. Uns esto na Trcia com um soldo de trs dracmas, Uns Tismenos, uns Fenipos, uns trafulhas de uns Hiprquides; Outros junto de Cares, outros com os Cones, uns meio Geres, Meios Teodoros, uns gabarolas de Diomia, Outros na Camarina, outros em Gela, e outros em de rir com ela. (grifo nosso).

    Possivelmente, os versos acima fazem referncia a algumas embaixadas enviadas pela

    cidade de Atenas. Ao coment-los, Maria de Ftima (In: ARISTFANES, 1980, p. 121)

    afirma o seguinte: As misses diplomticas tinham-se tornado um meio de um pequeno

    nmero de privilegiados escaparem guerra. Ser eleito para participar de uma embaixada era

    sinnimo de ter um emprego pblico com salrios altos por muitos anos!

    Todas essas expensas com as embaixadas representavam um encargo considervel para

    as finanas pblicas de Atenas. , exatamente, essa postura poltica adotada pelos atenienses

    que fora alvo das crticas que acabamos de ver. Agora podemos entender, perfeitamente, a

    exclamao de Dicepolis (Acarnenses, v. 67): , isto , Coitadinhas das

    minhas dracmas!48.

    O texto de Acarnenses ainda brinca com outra questo relacionada aos referidos

    embaixadores. De acordo com o prprio relatrio emitido pelo embaixador, alm de gastar

    tempo demais e de receber salrios elevados, as embaixadas atenienses viviam a esbanjar luxo

    e mordomia (vv. 68-89):

    , , . [...] . [...] : . [...] : . De fato foi desgastante a nossa peregrinao pela plancie do Castro, instalados em tendas, Confortavelmente estendidos em carros, Mortos de fadiga. [...] Depois da recepo, fomos forados a beber, Em taas de cristal e ouro, Um vinho puro, muito doce.

    48 Traduo nossa.

  • 34

    [...] Ento fez-nos uma recepo e mandou-nos servir, inteirinhos, Uns bois assados no forno. [...] E mais ainda, por Zeus! Serviu-nos tambm uma ave com trs vezes O tamanho de Clenimo. O nome que lhe davam era Velhaco.

    No se pode esquecer que, para Aristfanes, o problema da guerra contra os

    lacedemnios se resolveria com poucas despesas e de forma muito simples. A guerra no seria

    resolvida com embaixadas que buscavam apoio de aliados para fortalecer Atenas belicamente.

    Estabelecer umas trguas com os espartanos era tudo o que precisaria ser feito49. Dicepolis

    resolveu o seu problema com apenas oito dracmas (vv. 130-133):

    : . Toma l estas oito dracmas e vai, em meu nome, Fazer trguas com os Lacedemnios, s para mim, Para os meus filhos e para a minha mulher. E vocs vo mandando embaixadas e deixem-se ficar pasmados espera.

    A terceira e mais pesada crtica de Aristfanes, em Acarnenses, vv. 61-125, o

    resultado obtido por aquelas embaixadas. Quando Dicepolis pergunta se o Grande Rei

    enviaria ouro para Atenas, o Pseudartabas responde que no. Diante dessa resposta, o

    campons faz uma nova pergunta, na qual encontramos o resultado do trabalho das

    embaixadas. Vejamos as perguntas dirigidas por Dicepolis ao Pseudartabas (vv. 113-116):

    ; (.) ; (.) , . O Grande Rei vai-nos mandar ouro? (Pseudartabas acena que no) Quer dizer ento que estamos a ser enganados pelos nossos embaixadores? (Pseudartabas acena que sim, e os eunucos imitam-no.) Foi grega que estes tipos aqui fizeram que sim com a cabea; No h dvida nenhuma de que so mesmo de c.

    Como se v, a resposta do Pseudartabas e seus eunucos foi clara e moda grega (v.

    115): sim, Atenas era vtima do dolo de seus embaixadores. Com base em Acarnenses, esse

    era o nico resultado colhido em se enviar embaixada para buscar o apoio financeiro e militar

    de outros povos: prejuzos decorrentes de fraude.

    49 Essa tese vai, novamente, ser defendida por Aristfanes em Lisstrata, na qual uma greve de sexo promovida pelas mulheres obrigaria seus maridos, atenienses e espartanos, a fazer trguas.

  • 35

    Para Aristfanes, enviar embaixadas ao estrangeiro, especialmente Prsia,

    representava um grande erro poltico. O poeta no estava esquecido das investidas persas

    contra a Grcia. Ele no olvidava das clebres batalhas de Maratona (490 a.C.) e Salamina

    (480 a.C.), nas quais os gregos conseguiram rechaar os exrcitos brbaros. Era um erro

    buscar o apoio daqueles que h to pouco tempo queriam conquistar Atenas e toda Grcia.

    Os persas viam a Guerra do Peloponeso como um meio de enfraquecer as duas

    principais potncias gregas, Esparta e Atenas, e, consequentemente, de alcanar os seus

    planos de conquista da Grcia, os quais foram anteriormente frustrados. Por isso, procuravam

    ajudar ora os espartanos, ora os atenienses, na expectativa que se destrussem e que no

    existisse vencedor ao fim da guerra (DUARTE, 2000, p. 237).

    Consciente desses fatos, o nosso comedigrafo no via com bons olhos aquela poltica

    internacional adotada por Atenas em seus dias. Aristfanes representa a grande ameaa que os

    pretensos aliados brbaros traziam para Atenas na cena em que a segunda embaixada retorna

    de sua misso na Trcia (cf. Acarnenses, vv. 134-173).

    A embaixada liderada por Teoro parece ter sido mais bem sucedida do que a primeira.

    Pois, embora tambm no tenha trazido ouro como a embaixada que retornou da Prsia, a

    segunda comisso trouxe consigo o exrcito dos odomantos, escolhidos por Sitalques, rei da

    Trcia, para socorrer Atenas na guerra contra Esparta.

    Os odomantos, segundo Van Daele (In: ARISTOPHANE, 1958, p. 18), eram o povo

    mais brbaro e mais sanguinrio de toda a Trcia. No dizer de Teoro (Acarnenses, vv. 159-

    160),

    , . Estes homens, se se lhes der duas dracmas de salrio, S com a infantaria, so capazes de arrasar a Becia de uma ponta outra.

    Em sntese, a vinda dos odomantos, como resultado prtico da misso Trcia, seria a

    salvao de Atenas na guerra contra Esparta.

    Porm, ao final das contas, as coisas no sairiam da forma como foram planejadas.

    Aqueles que supostamente seriam uma soluo tornam-se um motivo de runa e sofrimento

    para Dicepolis. Os odomantos, em vez de auxiliar, trazem um grande prejuzo ao rstico

    campons, pilhando os seus alhos (Acarnenses, vv. 161-165):

    ; . , .

  • 36

    ; A esses tipos? Duas dracmas a esses circuncidados? Gemer o que resta aos marinheiros, os salvadores da cidade. (Os Odomantos roubam-lhe o saco.) Ai que desgraa a minha! Estou perdido! Os Odomantos esto a pilhar os meus alhos. Vocs largam j esses alhos ou no largam?

    Seria exatamente isso que ia acontecer com Atenas, se continuassem a enviar

    embaixadas para buscar apoio de estrangeiros, especialmente dos persas. Em vez de auxlio,

    receberiam a pilhagem dos bens e da prpria ptria. Essa a mensagem de teor poltico que o

    poeta d atravs do velho Dicepolis.

    Embora sejam umas das mais significativas, as cenas das embaixadas no so as nicas

    a servir de evidncia do conhecimento poltico presente na obra de Aristfanes. Ao longo de

    toda comdia, encontramos outras evidncias dessa cultura especfica do poeta. No discurso

    de defesa feito por Dicepolis diante dos acarnenses, por exemplo, temos outra demonstrao

    desse saber presente em Acarnenses. Vejamos, primeiramente, o texto (vv. 515-534):

    , , , , , , : , . , : : . , , . Havia entre ns uns fulanos no me estou referindo cidade (fixem bem isto, no cidade que me estou referir!) Uns tipinhos miserveis, de mau quilate, uns infames, Que no valem nem um tosto furado, meios estrangeirados, Que denunciavam os mantozinhos de Mgara. Onde quer que vissem um pepino, uma lebre, Um leito, um dente de alho, ou um gro de sal, Punham-se a dizer: Isto de Mgara e naquele mesmo dia vendia-se tudo. Estes eram casos sem importncia e correntes na nossa terra. Mas uns rapazes de viagem para Mgara metem-se nos copos durante o jogo do ctabo e roubam a cortes Simeta. Ento os Megarenses, espicaados pelo desgosto, Roubam a Aspsia, como represlia, duas cortess.

  • 37

    E foi assim que estalou a guerra Em toda a Grcia, por causa de trs prostitutas. Irritado com o fato, Pricles o Olmpico, Lanou o raio, fez ouvir o trovo, ps a Grcia em polvorosa E estabeleceu leis redigidas maneira de cantilenas: Que nem em terra, nem em praa, nem no mar ou continente, permanea o Megarense.

    A tnica do campons, nesse segmento do discurso, novamente pacifista. Com isso em

    mente, Dicepolis brinca com as causas banais da Guerra do Peloponeso. Em seu gracejo, ele

    afirma que a guerra comeou to somente por causa de trs prostitutas (v. 529)50. claro

    que no se deve ver tal afirmao como histrica51, e sim como uma piada e certamente uma

    aluso a Herdoto que lista os raptos de mulheres como primrdios das inimizades entre

    Gregos e Persas na sua obra sobre as guerras mdicas. Entretanto, em meio a essa piada, o

    aldeo menciona uma deciso poltica real idealizada e defendida por Pricles: o decreto de

    Mgara.

    O decreto de Mgara determinava a expulso dos megarenses e seus produtos de todos

    os mercados e portos de Atenas e do seu imprio. Em sntese, era um pesado embargo

    comercial aplicado a Mgara, o que causaria a runa da cidade e levaria seus habitantes fome

    e misria. As verdadeiras razes do decreto de Mgara no foram as trs prostitutas, e sim a

    tentativa de fortalecer e expandir o poder estratgico de Atenas (ARISTFANES, 1980, p.

    16-17, 119).

    Os megarenses, impelidos pela fome e misria decorrentes do decreto, buscaram auxlio

    junto dos espartanos no sentido de exigir a revogao do embargo ateniense. A forma como

    Atenas se recusa atender ao pedido espartano o estopim para que a guerra inicie,

    principalmente porque a rivalidade entre as duas potncias gregas vinha se avultando h anos.

    Com o envolvimento de outras cidades-estado, o decreto de Mgara passou a estender-se aos

    espartanos e becios, alm do megarenses.

    Em Acarnenses, vv. 515-534, transcrito h pouco, Aristfanes critica os resultados

    funestos desencadeados por uma medida poltica imprudente: o decreto de Pricles. Para o

    poeta, o nico resultado concreto do embargo a Mgara foi a Guerra do Peloponeso52, sem

    50 Plutarco (2010, p. 125) tambm faz referncia a essa piada: Mas os Megarenses negaram o assassinato de Antemcrito e atribuam as culpas a Aspsia e Pricles, citando estes versos clebres e conhecidos de Acarnenses: Jovens embriagados que iam para Mgara, roubaram uma prostituta, Simeta: Os Megarenses excitados pelo desgosto roubam, por sua vez, duas prostitutas de Aspsia. 51 Aristfanes e Tucdides at coincidem em alguns pontos, por exemplo: na tentativa espartana de evitar a guerra e na recusa ateniense em revogar o decreto (cf. Acarnenses, vv. 535-539; Tucdides I.80-139). Entretanto, eles divergem quanto aos reais motivos do decreto de Pricles, que foi o estopim para a Guerra. Enquanto Aristfanes brinca com o caso das prostitutas (Acarnenses, v. 529), Tucdides (I.55) acredita que a causa real estava na antiga rivalidade entre Atenas e Esparta e os seus respectivos aliados. 52 Em Paz, vv. 601-611, tambm encontramos uma referncia a essa consequncia do decreto de Mgara.

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    falar na privao dos deliciosos produtos vindos dos pases embargados (cf. Acarnenses, vv.

    885-894).

    Acarnenses no somente revela a deciso poltica adotada por Pricles, mas apresenta

    igualmente as diversas implicaes advindas do embargo idealizado por aquele grande

    estadista.

    Os vv. 540-546, que fazem parte do mesmo discurso de defesa proferido por Dicepolis

    diante dos enfurecidos acarnenses, contm uma brincadeira com grande sagacidade poltica.

    Leiamos o trecho (Acarnenses, vv. 540-546):

    , : , . , ; : , , , Pode haver quem diga: No era preciso tanto. Mas ento o que preciso, digam l? Ora vejamos: se um lacedemnio viesse por a fora num navio E pusesse venda um cozinho dos Serfios que tivesse encontrado, Vocs deixavam-se ficar sossegadinhos em casa? No faltava mais nada! Tratavam mas de por logo no mar trezentos navios E a cidade enchia-se do tumulto dos soldados, de gritaria a respeito do trierarco.

    No v. 542, E pusesse venda um cozinho dos Serfios que tivesse encontrado,

    notamos o quanto era apurada a conscincia poltica que permeia o texto do poeta. Com muita

    sutileza, ao mencionar os Serfios, Aristfanes estava fazendo referncia Confederao de

    Delos, que era encabeada por Atenas. Segundo Van Leeuwen (1969, apud ARISTFANES,

    1980, p. 120), Serifo, ilha das Cclades, era a menor de todas as cidades participantes daquela

    confederao. Sendo assim, ao mostrar um cozinho de Serifo como causa suficiente para

    iniciar uma guerra, o poeta est ironizando a intolerncia poltico-militar de Atenas. Era como

    se estivesse dizendo: Diante da mais insignificante ofensa, um cozinho encontrado, feita ao

    menor dos seus aliados polticos, Serifo, Atenas est disposta a comear uma sangrenta

    guerra!

    1.1.3 As evidncias da cultura histrica

    At aqui j mostramos, com base apenas em Acarnenses, as evidncias da vasta

    bagagem de conhecimentos musicais e polticos presentes na comdia de Aristfanes.

    Contudo, essas no so as nicas reas que esto evidentes na literatura daquele

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    comedigrafo. O teatro aristofnico tambm comprova estar permeado por vrias informaes

    de cunho histrico.

    Nosso poeta no s conhecia a histria de sua cidade e de seu povo, como tambm,

    partindo dos erros e acertos dos acontecimentos histricos, procurava ensinar lies de vida

    para os seus espectadores. Igualmente ao que fez com a msica e a poltica, Aristfanes

    permeou seus textos com a cincia que tinha acerca de histria. Adriane da Silva Duarte

    reconhece que, nos textos aristofnicos, existe uma grande quantidade de referncias a

    personalidades ou fatos da histria ateniense (2000, p. 11).

    A comdia de 425 a.C.53 tambm foi agraciada com amostras de um conhecimento

    acerca de histria. Na verdade, muito daquilo que mostramos em relao ao conhecimento

    poltico, tambm serve para demonstrar o conhecimento histrico presente na obra de

    Aristfanes. Por exemplo, o decreto de Mgara no foi uma criao cmica de Aristfanes;

    foi, antes, uma medida poltica histrica, acontecida em 433 a.C.54, que recebeu rpidas

    aluses nos vv. 515-534 de Acarnenses. Pricles que, inclusive, j estava morto h quase

    cinco anos antes da encenao dessa pea55 foi igualmente um estadista histrico, e no uma

    simples personagem de fico.

    O mesmo pode ser dito da Confederao de Delos. Firmada historicamente em 478-77

    a.C., essa liga no foi uma fico do teatro cmico de Aristfanes (cf. Acarnenses, v. 542).

    Tal associao, cinquenta anos antes da encenao de Acarnenses56, fez parte da histria

    poltica de Atenas. A intolerncia ateniense s mais insignificantes ofensas dirigidas contra os

    aliados, por menor que eles fossem, tambm no foram criaes teatrais57 (cf. vv. 540-546).

    Esses trs temas o decreto de Mgara, Pricles e a Confederao de Delos eram

    todos fatos histricos conhecidos pelo criador de Acarnenses e referenciados nessa pea.

    Alguns eram mais antigos a Confederao de Delos, por exemplo e outros, mais recentes,

    como o decreto de Pricles. No entanto, todos eles j faziam parte do passado e da histria

    ateniense. O poeta, simplesmente, apresentou tais fatos histricos sob a tica da comdia, que

    tambm conhecia o que justo (cf. Acarnenses, v. 500).

    Embora bastassem para comprovar a cultura histrica presente na obra de Aristfanes,

    os exemplos supracitados no so os nicos que podem ser vistos em Acarnenses. Outra

    53 Acarnenses. 54 Cf. Lima (2006, p. 94). 55 Pricles morreu em 429 a.C., vtima da peste que comeou a assolar Atenas em meados de 430 a.C. 56 Aristfanes ainda nem mesmo tinha nascido quando a Liga de Delos foi firmada. 57 Cf. Plutarco (2010, p. 41).

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    demonstrao desse conhecimento especfico pode ser vista no discurso parabtico dessa

    pea, no qual o coro composto pelos velhos carvoeiros de Acarnas diz (vv. 676-701):

    : , , , , , : , . [...] , , , ; , , . ; Ns os velhos, os antigos, temos uma censura a fazer cidade. No encontramos junto de vs, na velhice, o tratamento devido a quem combateu no mar. Temos passado maus bocados. Agora, na velhice, vemo-nos implicados em processos e, com a vossa permisso, somos gozados por oradores ainda moos, contra quem no somos nada, com o nosso ouvido duro e voz de cana rachada. Posdon, o deus protetor, o nosso nico bordo. A titubearmos de velhice, ali ficamos junto tribuna, sem vermos outra coisa que no sejam as trevas em que se debate a justia. [...] Ser que justo liquidar assim um velho de cabelos brancos, em frente de uma clpsidra, depois de ter passado tantas canseiras, depois de ter enxugado mil vezes o suor quente e viril do seu rosto, depois de ter sido um heri em Maratona para defender a sua cidade? Nos tempos de Maratona, ramos ns os perseguidores; agora somos perseguidos por uns miserveis, e mais ainda, samos derrotados. Contra isto ser que mesmo um Mrpsias teria alguma coisa a d