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Trecho do livro "As descobertas do Brasil"

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Muito se diz a respeito dos primeiros relatos sobre o Brasil. O já mítico “em se plantando tudo dá” é frase

corrente há pelo menos cinco séculos. As palavras do escrivão português Pero Vaz de Caminha exaltavam a nova terra descoberta como um verdadeiro paraíso terrestre. Deveria ser, não resta dúvida. Nesse mesmo contexto, sintetiza-se comumente as bases da relação entre os europeus desbravadores e os nativos a partir de um escambo curioso. De um lado, a sedutora ou ameaçadora imagem do “homem branco” e seus apetrechos da civilização; do outro, o ouro, a madeira, uma terra de riqueza exuberante. Entre as quinquilharias europeias entregues como presentes, estavam pedaços de tecido colorido, miçangas, ferramentas. E espelhos. Diz-se que, diante deles, os índios pensavam estar em contato com um artefato de outro mundo e ali se viam pela primeira vez.

Pode ser que não tenha sido exatamente assim, mas a cena empresta uma boa metáfora

para a ideia deste livro: a de um país que se enxerga pelos olhos de quem vem de fora, que tem a sua imagem construída pelo estrangeiro. Foi assim em 1500, seja pelos relatos destinados ao rei D. Manuel i, seja pelos espelhos emprestados aos primeiros brasileiros.

Quinhentos e quatorze anos depois, o Brasil é novamente sede da Copa do Mundo, depois de ter sido em 1950. Sendo o futebol parte do tripé de uma identidade forjada para o país há tempos – ao qual se somam a alegria e a sensualidade do carnaval e as maravilhas naturais –, pululam em todo o mundo matérias, ensaios e mesmo documentários sobre “ser brasileiro”. Jornalistas, escritores, cineastas, acadêmicos, todos parecem buscar explicações para um país nunca totalmente acomodado dentro das defi nições estabelecidas.

Nos últimos anos, a grande maioria dos principais periódicos internacionais passou a contar com correspondentes sediados no Brasil, em especial no Rio ou em São Paulo. Não são poucas as matérias de fôlego que

Jogos de espelhos: uma proximidade distante, uma distância tão próxima

Ana Cecilia Impellizieri Martins e Monique Sochaczewski

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buscam explicar melhor o país aos estrangeiros ou mostrar seus aspectos inusitados ou pouco conhecidos publicadas em jornais como Th e New York Times, Th e Guardian, El País e Le Monde ou veiculadas em canais de televisão como bbc, cnn e Al Jazeera. Alguns destes correspondentes depois convertem suas experiências em livros, aprofundando suas explicações sobre o Brasil para o público do exterior. Foi o caso de Alex Bellos, correspondente do Guardian entre 1998 e 2003, com seu Futebol: the Brazilian way of life. E mais recentemente, Larry Rohter, que cobriu o Brasil para o New York Times entre 1999 e 2008, com seu Brazil on the rise: the story of a country transformed.

Entre os portugueses na Bahia do século xvi e os correspondentes dos centros urbanos do século xxi, inscreve-se essa memória de um Brasil construído pelo estrangeiro. É disso que essencialmente trata Jean Marcel Carvalho França, ao apresentar com detalhes os cerca de cem relatos deixados por viajantes europeus em passagem pela porção portuguesa das Américas, entre 1506 e 1808. A região, mantida fechada ofi cialmente aos olhos europeus por parte dos portugueses, inspirou notas, esboços e relatos furtivos feitos em grande medida a partir de observações apressadas da costa. Basicamente, as cidades tratadas eram as portuárias de Rio de Janeiro, Recife (e Olinda) e Salvador. E, se nos anos iniciais o foco eram os índios e suas peculiaridades, com o tempo o interesse se volta para os colonos portugueses, suas construções e formas de vida.

Já no contexto da transmigração da família real portuguesa, em 1808, chegaram estrangeiros produzindo registros iconográfi cos signifi cativos do Brasil. Entre os britânicos estava o comerciante Richard Bates (que manteve sua estadia até 1821), assim como o

ofi cial naval Emeric Essex Vidal (1808-1809) e também Henry Chamberlain, fi lho do cônsul geral no Rio de Janeiro (1818-1820). Os ingleses Augustus Earle (1820-1824 e 1832), Charles Landseer (1825-1827) e William Burchell (1825-1830) também deixaram inúmeras aquarelas, vistas e desenhos, hoje em grande parte abrigadas em coleções brasileiras. A chamada Missão Artística Francesa, de 1816, trouxe artistas que ajudaram a construir uma autoimagem brasileira e a estabelecer as bases dos estudos artísticos no país. Jean-Baptiste Debret, Nicolas-Antoine Taunay e Auguste

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acima Claus Meyer. Vista panorâmica da Zona Sul do Rio de Janeiro.

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Grandjean de Montigny estavam entre eles e são responsáveis por um notável legado para o país.

Em 1817, por ocasião do casamento de D. Pedro i com uma integrante da dinastia dos Habsburgo, a arquiduquesa Leopoldina, foi a vez de uma missão austríaca aportar no Brasil. A missão deixaria uma série de registros iconográfi cos feitos por artistas e cientistas como Th omas Ender, Johan Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius. Entre 1824 e 1829, uma missão ofi cialmente russa, mas com integrantes de diversas origens europeias como Johann Moritz Rugendas, Antoine Hercule Florence e seu próprio líder Georg Heinrich von Langsdorff , percorreu boa parte do interior brasileiro, deixando registros variados de sua natureza e sua sociedade.

Com a invenção e a popularização da fotografi a em meados do século xix, muitos fotógrafos se mudaram para o Brasil, onde estabeleceram importantes estúdios, como o alemão Alberto Henschel, o francês Revert Henrique Klumb e o espanhol Juan Gutierrez. Eles retratavam a elite brasileira, as transformações urbanas, as cenas da escravidão, mas também auxiliaram missões científi cas e tinham suas fotos e seus álbuns enviados para exposições universais como espécie de “propaganda” do progresso e das potencialidades do país.

Já há uma rica bibliografi a a respeito deste olhar europeu sobre o Brasil do século xix, e no caso deste livro, a presença da historiadora norte-americana Teresa Cribelli marca a opção de se apresentarem novas informações e análises sobre este período de grande afl uxo de estrangeiros no Brasil, colocando em foco um olhar mais original ao revelar a experiência e a produção de seus conterrâneos ao longo dos anos 1800. Sem descuidar do pano de

fundo maior do interesse internacional no Brasil que fi nalmente se desvelava pós-1808, Teresa traz minúcias sobre o contexto de um despertar de interesse de norte-americanos pelo Brasil, sobretudo em função da corrida do ouro no fi m da década de 1840, que os levava da costa leste para a Califórnia com escalas em portos brasileiros. Para estes, o contato com o Brasil teve um papel muito importante no sentido de lidar com suas próprias questões internas, como a escravidão, e apresentava um imenso potencial de desenvolvimento com suas riquezas naturais e com um “governante esclarecido”, mesmo sendo um monarca no Novo Mundo.

Mas, se o século xix já é conhecido como o século dos viajantes no Brasil, o século xx surpreende pela mudança e, sobretudo, pela ampliação dos motivos e sentidos das viagens, que ganham contornos modernos e também dramáticos. Crises econômicas e guerras, enfaticamente na Europa, fazem do Brasil mais que somente um porto de curiosidades ou um laboratório de experiências científi cas, artísticas, antropológicas ou existenciais, mas também um destino para emigrantes e exilados. Muitos deles.

Assim, são igualmente muitos os registros que fazem sobre o país. Mas, de maneira menos perceptível, talvez por uma difi culdade de se apreender em conjunto essas representações feitas sobre o país no século xx, ou talvez ainda pela razão desses estrangeiros terem, em grande parte, assimilado o país como porto defi nitivo – dissolvendo assim sua condição original – não se perceba um corpus dessa produção “de fora”. E é, então, na tentativa de construir um quadro mais nítido da riquíssima contribuição dos estrangeiros no processo da criação de uma imagem (ou imagens) do Brasil, também no século xx, que o historiador

acima Revert Henrique Klumb. Alameda de palmeiras no Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1860).

nas páginas seguintes Margaret Bourke--White. Pós-Segunda Guerra Mundial. Refugiados alemães e deslocados ocupam cada centímetro do trem rumo à Berlim, em 1945.

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Maurício Parada destaca personagens capazes de representar essa “tradução” plural: o ex-presidente norte-americano Franklin Roosevelt, o compositor francês Darius Milhaud, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, o etnógrafo e fotógrafo também francês Pierre Verger, o fi lósofo tcheco Vilém Flusser, o crítico literário austríaco Otto Maria Carpeaux, o escritor austríaco Stefan Zweig, o poeta franco--suíço Blaise Cendrars. Não se trata do único recorte possível, é certo. Mas a abordagem escolhida é certeira em sua intenção de confi rmar a continuidade desse movimento do olhar estrangeiro, que delineia nossa própria identidade com imensa repercussão para fora e também no interior do próprio país.

Nessa trajetória, há também estrangeiros que se tornaram brasileiros. E aqui, o húngaro Paulo Rónai é dos mais belos exemplos. Aportou no Rio de Janeiro fugindo da perseguição nazista em março de 1941, graças aos laços diplomáticos estabelecidos com o Brasil ainda em Budapeste, em 1939 (quando traduziu para sua língua natal poetas como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Jorge de Lima, reunidos em uma antologia), e em seus mais de cinquenta anos no país teceu uma profunda e extensa costura entre as culturas húngara e brasileira – e também francesa –, sendo exímio tradutor, além de professor, ensaísta e crítico literário e, assim, como bem descreveu Drummond, aprendeu a ser brasileiro.1

Aqui, além de aprender, esses estrangeiros também ensinaram. Ensinaram o Brasil a conhecer o próprio Brasil. A se olhar em espelhos. E legaram ao país, como parte dele, uma identidade cultural calcada na mistura, na assimilação, na permanente descoberta. Ou melhor, nas descobertas. As descobertas do Brasil, sempre em curso.

notas

1 O português, como o aprendi,Paulo Rónai conta, fagueiro,Outra façanha dele eu vi:Aprendeu a ser brasileiro.

Poema escrito por ocasião do lançamento, em 1956, do livro Como aprendi o português e outras aventuras.

sobre as organizadoras

ANA CECILIA IMPELLIZIERI MARTINS é editora, formada em jornalismo e mestre em História Social da Cultura pela puc-Rio, onde fi naliza doutorado em Literatura com tese sobre Paulo Rónai. Trabalhou como repórter especial no Jornal do Brasil e como editora no programa Fantástico da tv Globo. Foi editora-adjunta da revista Poesia sempre e editora-executiva da Revista de história da Biblioteca Nacional. Atuou como diretora de conteúdo da Casa do Saber do Rio de Janeiro por cinco anos e foi sócia-diretora da editora Casa da Palavra de 2009 a 2014. Tem três livros publicados: Iconografi a baiana no século xix na Biblioteca Nacional (com Marcela Miller e Monique Sochaczewski), Jean Manzon – retrato vivo da grande aventura (com Francisco Carlos Teixeira) e Flora brasileira – História, arte & ciência (organizadora).

MONIQUE SOCHACZEWSKI é doutora em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais cpdoc/fgv (2012). É ainda pesquisadora-bolsista da mesma instituição e coordenadora do mba em Relações Internacionais da fgv-Rio. É coorganizadora de Iconografi a baiana do século xix na Biblioteca Nacional (2005) e autora de artigos acadêmicos e para a grande imprensa sobre a história e temas correntes do Oriente Médio.

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O BRASIL 1506 1808

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QUE VEIO DE FORAJean Marcel Carvalho França

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O B R A S I L Q U E V E I O D E F O R A

Em 1640, o culto, respeitado e infl uente poeta Jean Chapelain, literato reconhecido pelos seus contemporâneos

como um dos mais bem informados de seu tempo, lamentava em carta a um amigo, o conselheiro do rei Jacques Carrel de Sainte--Garde, que o romance vivia um processo de clara decadência entre o público letrado francês e que, gradativamente, estava sendo substituído por um gênero de qualidade duvidosa, a narrativa de viagem. Ouçamos o poeta:

A nossa nação mudou o seu gosto no que tange à leitura e, em lugar dos romances, que praticamente desapareceram com La Calprenède, as viagens ganharam crédito e passaram a ser muito bem acolhidas, tanto na corte quanto na cidade.1

Exagero de um homem refi nado, descontente com o avanço de escritos tidos por muitos, sobretudo pelos mais eruditos, como de baixa extração e limitado refi namento? Por certo, a decadência do romance e a ascensão de um gênero por vezes tão pouco cuidado, como as narrativas de viagem, inquietavam Chapelain e alimentavam a sua visão desalentadora em relação ao futuro do gosto literário francês. Entretanto, era realmente notável o espaço que os relatos acerca daqueles “mundos” distantes e diversos do “mundo europeu” vinham ganhando, desde o limiar do século xvi, entre o público letrado do velho continente.2

A história dessa crescente paixão começou antes mesmo da expansão marítima, com a primeira expansão europeia, aquela rumo ao Oriente. Muito antes de Colombo retornar de sua viagem ao que supunha ser Cipango (1492) e de Vasco da Gama em seu périplo pelo Oceano Índico (1497), a Europa já devotava grande simpatia pelos relatos de viagem.

Guillaume Le Testu, Mapa do Brasil, In: Cosmographie Universelle, 1555. Service Historique de l’Armée, Paris.

Atribui-se, em geral, aos freis Giovanni del Pian del Carpine e Guilherme de Rubruck o pioneirismo no gênero. Ambos visitaram a capital do Império Tártaro, Karakorum, em meados do século xiii, notadamente entre 1245 e 1255, e deixaram escritos sobre a inusitada missão, História dos mongóis e Itinerário (1253-1255), textos que antecedem o célebre Il Milione, do veneziano Marco Polo, conhecido um pouco mais tarde, no alvorecer do século xiv.3

O interesse que despertaram e a circulação que tiveram as narrativas de Carpine, Rubruck, Polo, Jean de Mandeville, Odorico de Pordenone e de um punhado de outros – testemunhas do que se convencionou chamar de “o primeiro descobrimento” europeu, o descobrimento do Oriente – dão, porém, somente uma pálida ideia do que viria com a invenção dos tipos gráfi cos, na metade do século xv, e a descoberta do Novo Mundo, em 1492. Inaugurou-se aí, sem dúvida, uma nova etapa da história das narrativas de viagem, cuja partida foi dada por obras atribuídas ao navegador Américo Vespúcio: Mundo novo e Quatro navegações de Américo Vespúcio, ambas publicadas em latim, na cidade de Paris, em 1503 e 1507, respectivamente. Reeditadas e traduzidas diversas vezes – somente na França, Mundo novo foi amplamente publicado no primeiro quartel do século xvi –, as cartas do fl orentino foram lidas, comentadas e citadas por muitos homens de cultura do século xvi, entre os quais Erasmo de Roterdã, Th omas More, Gomara, Pietro Mártir, Herrera e dezenas de outros. Nunca é demais recordar, ainda, que foi a leitura de Quatro navegações que inspirou o geógrafo Martin Waldseemüller a batizar de América as novas terras encontradas por portugueses e espanhóis.

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