86
Por convencao os textos sao impresses em caracteres escuros so- bre fundo claro. Apesar de virem de regioes obscuras da sociedade dos homens, as palavras fixam-se no papel escuras em fundos claros, neutros, como se quisessem esquecer sua origem complexa, ambigua, perigosa, para exibirem-se como limpas, nitidas, claras. E assim se exige tambem as ideias que elas expoem. E tambem quando elas sao fala- das. E assim deve ser o orador, o cientista, o escritor academico. Lim- po, claro, nftido. E tambem a escola, a educagao do corpo, a ginastica. Certa vez, convencionou-se tambem que a arte verdadeira deve- ria ser suja, escura, obscura, como se ela nao quisesse expor sua face solar, clara, positiva. E assim deveria ser o artista. Sujo, obscuro, pro- blematico. E tambem a rua, o funambulo, o trabalhador das minas, o circo. O exagero destas duas afirmacoes leva-nos a afirmar que deveria- mos buscar uma opiniao media. Nao. Para que algo significative seja revelado, as coisas devem ser misturadas, colocadas em tensao. Bus- car sentidos na aproximagao problematica de linguagens diferentes. Traducao. Traduzir de uma linguagem para outra para que algo de ver- dadeiro e inesperado surja ora do texto, ora da imagem e ai achar tre- chos da historia que ficaram perdidos e obscurecidos pela historia ofi- cial. Traducao tambem da imaginagao, do desejo e da historia do pesquisador, dos trechos perdidos e obscurecidos pela sua historia oficial. Como se uma pesquisa pudesse ser ao mesmo tempo uma historia pessoal profundamente social. Milton Jose de Almeida EDITORA AUTORES - ASSOCIADOS Z : CO . .-TT:<*-* •• r -*>* » -.i . "

TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

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Page 1: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

Por convencao os textos sao impresses em caracteres escuros so-

bre fundo claro. Apesar de virem de regioes obscuras da sociedade

dos homens, as palavras fixam-se no papel escuras em fundos claros,

neutros, como se quisessem esquecer sua origem complexa, ambigua,

perigosa, para exibirem-se como limpas, nitidas, claras. E assim se exige

tambem as ideias que elas expoem. E tambem quando elas sao fala-

das. E assim deve ser o orador, o cientista, o escritor academico. Lim-

po, claro, nftido. E tambem a escola, a educagao do corpo, a ginastica.

Certa vez, convencionou-se tambem que a arte verdadeira deve-

ria ser suja, escura, obscura, como se ela nao quisesse expor sua face

solar, clara, positiva. E assim deveria ser o artista. Sujo, obscuro, pro-

blematico. E tambem a rua, o funambulo, o trabalhador das minas, o

circo.

O exagero destas duas afirmacoes leva-nos a afirmar que deveria-

mos buscar uma opiniao media. Nao. Para que algo significative seja

revelado, as coisas devem ser misturadas, colocadas em tensao. Bus-

car sentidos na aproximagao problematica de linguagens diferentes.

Traducao. Traduzir de uma linguagem para outra para que algo de ver-

dadeiro e inesperado surja ora do texto, ora da imagem e ai achar tre-

chos da historia que ficaram perdidos e obscurecidos pela historia ofi-

cial. Traducao tambem da imaginagao, do desejo e da historia do

pesquisador, dos trechos perdidos e obscurecidos pela sua historia oficial.

Como se uma pesquisa pudesse ser ao mesmo tempo uma historia

pessoal profundamente social.

Milton Jose de Almeida

EDITORAAUTORES

- ASSOCIADOS

Z :CO

. .-TT:<*-* •• r-*>* » -.i . "

Page 2: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

O corpo movel, livre, leve, agil. Muitas

vezes comico. O corpo rfgido, retesado. O

corpo limpo, consertado. O corpo contro-

lado, construido, modelado. O. corpo atle-

tico. A estetica do corpo.

O corpo contorcido, pesado. O corpo

destrufdo, destrogado, atrofiado, espoliado.

Ainda assim, o corpo. Corpo impregnado

de valores. Corpo marcado pelas condigoes

de vida. Vivendo ritmos, desenvolvendo

agoes, assumindo posigoes, posturas. Dife-

rentes, variadas, opostas, contraditorias.

Imagens do corpo. Imogens da educocdo

no corpo. Imagens que vao se produzindo

no fio de um discurso despretensioso e belo,

em uma composigao sui generis de palavras

e figuras e desenhos e pinturas, em que o

texto e o corpo se mostram em espetaculo.

No flo desse discurso, qual trapezista em

busca de equilibrio, somos instigados, de-

safiados a um exerdcio do olhar, exercfcio

dos modos de conceber o corpo e seus

modos de agao e movimento. Somos con-

vidados a experimentar muitas leituras do

corpo e do texto.

E sobre a ginastica que a autora nos fala.

Sobre a ginastica como uma forma de ati-

vidade culturalmente valorizada. E sobre

praticas que vao se instituindo e se insti-

tucionalizando nos modos de sentir e de vi-

ver o co/po. Na narrativa que se constroi,

ela nos informa e nos envolve e nos encanta,

enquanto analisa e apresenta, de maneira

inteiramente original, uma rica trama de

IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

ESTUDO A PARTIR DA GINASTICA FRANCESA

NO SECULO XIX

CARMEN LUCIA SCARES

3a

CoLEgAo EoucAgAo CONTEMPORANEA

AUTORESASSOCIADOS

Bibslctec

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Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SR Brasil)

Scares, Carmen LuciaImagens da educagao no corpo : estudo a partir da ginastica francesa no seculo XIX /Carmen Lucia Scares. - 3. ed. - Campinas, SP : Autores Associados, 2005.

Bibliografia.ISBN 85-85701-53-6

I. Educagao fisica - 2. Ginastica- Franca - Seculo 19 I. Titulo.

97-5400 CDD-613.7

Indices para catalogo sistematico:

I. Corpo : Educac,ao fisica 6 I 3.7

I" Edigao - marco de 1998Impresso no Brasil - dezembro de 2005

Copyright © 2005 by Editora Autores Associados

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uina edilora educativa a servifo da cultura brasileira

Av. Albino J.B. de Oliveira, 901 - CEP 13084-008 - Campinas - SPPabx/Fax: (19) 3289-5930

E-mail', [email protected] on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial"Prof. Casemiro dos Reis Filho"Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CHIJDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida Mot/aWalter E. Garcia

Diretor ExecutiveFldvio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

Coordenadora EditorialErica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

Diagramacao e ComposicaoVlad CamargoErica Bombardi

RevisaoMargarette de Souza FreitasAline Marques

CapaCriacao a partir de Paul GauguinEiaha Ohipa (Nao ao Trabalho), 1896, eilustracaoGinasio Normal Mililar eCivil de Amoros, 1820Milton Jose de Almeida

Arte-Final Reg. 005044Vlad Camarga

Impressao e AcabamentoGrafica

1

SUMARIO

LlSTA DE FlGURAS

PREFACIO A 3a EoigAo

PREFACIO A 2a EoigAo

PREFACIO

CAPITULO UM

AsIMAGENS

CAPITULO Dois

EDUCAQAO NO CORPO: A RUA, A FESTA, o CIRCO, A GINASTICA

CAPITULO TRES

O CORPO MOLDADO: A LlMPEZA E A UTILIDADE

17

33

CAPITULO QUATRO

O CORPO AOESTRADO: O INDIVIDUO, DlSCIPLINADOR DE Si MESMO 81

BIBLIOGRAFIA 139

BibliotecaSet-:....

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LlSTA DE FlGURAS

FIGURA I Polichinelos e saltimbancos ou O barraco dos saltimbancos

(Polichinelles et saltimbanques ou la Baraque dessaltimbanques), quadro de Giandomenico Tiepolo pintado porvolta de 1793.

Fonte: Guillou, 1995, p. 135.

FIGURA 2 O drco (Cirque), quadro de Georges Seurat, pintado em I 89 I.Fonte: Strasser, 199 I, Apresentagao.

FIGURA 3 Amoros conduzindo uma aula, em Paris, I 820.Fonte: Zoro, 1986. Encarte especial.

FIGURA 4 A fenfacao de santo Antonio (La tentation de saint Antoine) (de-talhe), quadro de jeronimus Bosch, pintado por volta de 1500-1510.Fonte: Franga, 1994, pp. 80-81.

FIGURA 5 A famflia de Carlos IV, quadro de Francisco de Goya, pintado entreISOOe 1801.Fonte: Wright, s.d., p. 35.

FIGURA 6 Ginasio ao ar livre, por volta do ano de 1840, catalogadas por

Jean Zoro.Fonte: Zoro, 1986, p. 23.

FIGURA 7 Exercicio no portico, por volta do ano de 1836, catalogadas porJean Zoro.Fonte: Zoro, 1986, p. 80.

FIGURA 8 No Circo Fernando: a amazona, quadro de Toulouse-Lautrec, pin-

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tado em I!Fonte: Mundo dos museus, 1967, p. 62.

FIGURA 9 Mademoiselle La/a no Circo Fernando (Mademoiselle La/a auCirque Fernando), quadro pintado por Edgar Degas em 1879.Fonte: Huttinger, 1977, p. 48.

FIGURA 10 O clown no circo (Le down au cirque), quadro de Pierre-AugusteRenoir, pintado em 1868.Fonte: Dulout, 1994, p. 41.

FIGURA I I O combate do carnaval e da quaresma (Le combat de carnavalet careme), quadro de Pieter Bruegel, pintado em I 559.Fonte: Mascheroni, 1993, s/p.

FIGURA 12 O mane/'o de armas.Fonte: Zoro, 1986, p. 148.

FIGURA 13 jogos infantis (Les jeux d'enfants), quadro de Pieter Bruegel, pin-tado em I 560.Fonte: Mascheroni, 1993, s/p.

FIGURA 14 O Boneco de palha, quadro pintado por Francisco de Goya, 1791 -1792.Fonte: Wright, s.d., p. 21.

FIGURA 15 Os pequenos gigantes, quadro pintado por Francisco de Goya,1791-1792.Fonte: Wright, s.d., p, 23.

FIGURA 16 Garotos brincando de so/dados, quadro pintado por Francisco deGoya por volta de 1777-1785.Fonte: Wright, s.d., p. 22.

FIGURA 17 A danca dos camponeses (La danse des paysans), quadro dePieter Bruegel, pintado por volta de 1568.Fonte: Os Grandes..., 1986, n. 18, p. 54.

FIGURA 18 Danca nupcial ao ar livre, quadro de Pieter Bruegel, pintado em1556.Fonte: Os Grandes..., 1986, vol. 2, n. 18, p. 56.

FIGURA 19 O enterro da sardinha, quadro de Francisco de Goya, pintado en-treosanos de I 8 l 2 e 1819.Fonte: Wright, s.d., p. 45.

FIGURA 20 Jogos, s.d.Fonte: Zoro, 1986, p. 1 1 0 .

FIGURA 21 O tecelao (Le tisserand), quadro pintado por Van Gogh em 1884.Fonte: Guillou, 1995, p. 1 2 1 .

FIGURA 22 e 23 jogo com bola, 1880(?)-1899.Fonte: Zoro, 1986, pp. 47 e 203.

FIGURA 24 A dama e o licorne (La dame a la licorne), tapegaria (detaihe) defins do seculo XV Reprodugao em cartao. Musee des Thermes.Fonte: Musee des Thermes, 1991 (cartao).

FIGURA 25 Cape/a Sistina (detaihe), Michelangelo.Fonte: Os Grandes..., 1986, vol. 2, n. 16, p. 12.

FIGURA 26 O descanso dos mineiros: o jogo (La pause des mineurs: lejeu),quadro pintado por Henry Perlee Parker em 1836.Fonte: Guillou, 1995, p. 120.

FIGURA 27 O batalhao escolar, 1885.Fonte: Zoro, 1986, p. 209.

FIGURA 28 A cruz de ferro, aparelhos de ortopedia, illustration, 1868.Fonte: Corbin, 1991, vol. 4, p. 604.

Page 6: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX.

Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419.

FIGURA 3 I Fachada do Ginasio Normal Militar, criado e dirigido pelo Cel.

Amoros. Imagens respectivamente retiradas de Jean Zoro e de

Eduardo de Los Keys.

Fonte: Zoro, 1986, p. 23; Reys, 1961. Anexo.

FIGURA 32 Ginastica elementar de Amoros: marchas e corridas. Desenhos

reproduzidos a partir de jean Zoro, Marcel Labbe. Os desenhos

apresentados pelos autores aqui utilizados foram reproduzidos di-

retamente da obra do proprio Amoros - o Atlas que acompanhao Manuel d'Education Physique, Cymnastique et Moral.

Fonte: Zoro, 1986, pp. 80 e 86; Labbe, 1930, vol. 2, pp. 3 I,39e45.

FIGURA 33 Aparelhos de Amoros: mastros verticals. Imagens reproduzidas

a partir de Jean Zoro e Jose L. H. Vazquez.Fonte: Zoro, 1986, p. 74; Vazquez, 1988, p. 36.

FIGURA 34 Aparelhos de Amoros: barras, paralelas e cavalo. Imagens repro-duzidas a partir de Jose Luis Hernandez Vazquez.

Fonte: Vazquez, 1988, pp. 37, 43, 44 e 45.

FIGURA 35 Amoros: aparelhos paraaprender a nadar. Imagens reproduzidasa partir da obra de jean Zoro.

Fonte: Zoro, 1986, pp. 138-139.

FIGURA 36 Amoros, Exercidos de salvamento.Fonte: Reys, 1961 . Anexo.

FIGURA 37 Saltos sobre o cavalo. O cavalo em diferentes epocas. Imagensreproduzidas a partir de Eduardo de Los Reys e Jean Zoro.

Fonte: Reys, 1961 . Anexo. Zoro, pp. 228 e 229.

FIGURA 38 jogos, seculo XVI. Imagens reproduzidas a partir de Celestino F

M. Pereira.

Fonte: Pereira, s.d., pp. 583, 589 e 736.

FIGURA 39 llustragao de capa do livro Germinal de Emile Zola em edigaofran-

cesa de Garnier-Flammarion.

Fonte: Zola, 1968. Capa.

FIGURA 40 Dispositive experimental para registrar os movimentos do torax,

do abdomen e tambem o debito de ar expirado durante o can-

to. Imagens reproduzidas de Georges Demeny.

Fonte: Demeny, 1 9 3 1 , p. 95.

FIGURA 41 Estagao fisiologica do Parque dos Prfncipes. Imagens reproduzidasa partir de Jean Zoro.

Fonte: Zoro, 1986, p. 234.

FIGURA 42 Fonoscopio Demeny. Imagens reproduzidas a partir de GeorgesDemeny.

Fonte: Demeny, 1 9 3 1 , p. 275.

FIGURA 43 e 44 Marey. Cronofotografias. Imagens reproduzidas a

partir de Michel Frizot (org.) e Jean Zoro.

Fonte: Frizot, 1987, pp. 25, 42 e 44; Zoro, 1986,

p. 235.

FIGURA 45 Cronofotografo Demeny. Imagens reproduzidas a partir de JeanZoro.

Fonte: Zoro, 1986, p. 236

FIGURA 46 Entrada do metro, Paris (Entree de metro), Hector Guimard,I 899. Construction du metro. Traversee de la Seine du Chatelet,

1907. Archives Hachette.

Fonte: Clay, 1975, p. 12.

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FIGURAS 47, 48, 49, 50 e 51 Ginastica sueca. Imagens reproduzidas a

partir de Marcel Labbe.

Fonte: Labbe, 1930, vol. 2, pp. 173,

175,203, 207, 275, 276, 277, 278, 246,

247, 248, 249, 281,283 e 284.

FIGURA 52 Cenas das minas de carvao. Imagens reproduzidas a partir de

Georges Demeny.

Fonte: Demeny, 1924, pp. 308-309.

FIGURA 53 Imagens reproduzidas a partir de Celestino F. M. Pereira.

Fonte: Pereira, s.d., pp. 580 e 246.

FIGURAS 54, 55, 56, 57 Demeny apresenta uma ligao de ginastica e exer-

cicios destinados as mulheres - ginastica francesa.

Imagens reproduzidas a partir de Georges

Demeny e Jean Zoro.

Fonte: Demeny, 1920, p. 49. Figural. Zoro,

1986, pp. 36, 90, 102, 126 e 130.

FIGURA 58 Espartilhos. Imagens reproduzidas a partir de Georges Demeny

e Jean Zoro.

Fonte: Demeny, 1 9 3 1 , p. 229; Zoro, 1986, p. 77.

FIGURA 59 Batalhoes escolares. Imagens reproduzidas a partir de Jean Zoro.

Fonte: Zoro, 1986, p. 208.

FIGURA 60 O uso da forga nos trabalhos. Imagens reproduzidas a partir de

Georges Demeny.

Fonte: Demeny, 193 I, pp. 180, 1 8 1 , I 82e 183.

PREFACIO A 3a BDICAO

DA MODERNIDADE, DA EDUCACAO DO CORPO, DOSSEUS ECOS CONTEMPORANEOS

Raymond Williams, em Cultura, alerta-nos para uma dimensao eminentemen-

te historica da produgao artfstica, qual seja, a condigao de produgao das obras de

arte. Sem remeter a Walter Benjamin - outro grande expoente da critica a moder-

nidade -, suas consideragoes permitem indagar se em algum momento a obra de

arte teve, de fato, uma aura que a projetasse como legado do esclarecimento, aura

esta que se teria perdido em urn dos movimentos da modernidade. Ao recuperar

essa dimensao da produgao artistica ou cultural, Williams permite pensar o

entrecruzamento de duas dimensoes fundamentais da experiencia moderna: I. a

mudanga de padroes culturais que se deslocam de uma perspectiva mutualista para

uma que afirma o individuo como elemento central na nova configuragao social que

se instaura; 2. a emergencia desse novo mundo que e, a despeito do que o diferen-

cia, devedorde umatradigaoseletivade longa duragao. Assim, segundo essa pers-

pectiva, a modernidade mantem vestfgios de um passado que representou a semen-

teira do turbilhao que submeteria diferentes culturas ao imperativo da organizagao,

do calculo, da precisao, do controle, em uma palavra, da administragao. Como ten-

dencia historica, um passado demarcado pela tensao entre o velho e o novo, o cien-

tffico e o sensivel, o mitico e o objetivo, que conhece a sua plena realizagao, nao em

um perfodo precise, mas em um longo processo de afirmagao do novo ethos que

representaria a civilizagao, consubstanciado na grande cidade.

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Entre processes passados infirmados pelo o/focento, e possfvel dar destaqueaquilo que inadvertidamente, e nao sem problemas, podemos denominar "culturas

populares", que partilhavam uma nogao de vida comunitaria, paulatinamente substi-tuida pela experiencia que marcou o flaneur. Aquelas formas de vida comunitaria que

representavam maneiras proprias de operar com a natureza e com a sociedade, nao

coincidentes com os novos designios cientificistas que se afirmavam, e que marca-riam tab fortemente a educagao do corpo no Ocidente.

Em contrapartida, a efervescencia da urbe do seculo XIX produziria uma pro-

fusao de experiendas transformadoras da sensibilidade artfstica, seja na forma deescolas, teorias, tendencias ou tecnologias. E certo que esse processo demoraria achegarem terras brasileiras. Mas como marca inalienavel da modernidade, seus ecos

reverberariam em diferentes lugares e tempos, com enfases e profundidades naomenos plurals. Como epitome desse processo, uma Europa arcaica debatia-se con-tra a Revolucao Industrial, contra o Palacio'de Cristal e as reformas de Haussmann,

levadas a cabo como apanagio do sangue de 1848.Pois e na confluencia desses elementos, desses produtos, desses processes -

culturas populares, cientificismo, arte, tecnologia, educagao do corpo - que Car-men Lucia Soares se embrenha para nos conduzir por uma trama na qual o "novo"apropria o "velho" para se afirmar como "revolucionario". O mundo do povo conce-bido pelo velho Brueguel, que assiste nao sem resistencia ao seu eclipse, narradopor Williams sobre outro tempo e lugar, enseja, junto a outros elementos, o nasci-mento de uma tecnologia de cuidados com o corpo sem precedentes na historia.Com o acento particular na educagao que moldaria o homem industrioso, industrial,

monada substantiva que invadiria exposigoes, cafes, galerias: a rua. Pois aquela cultu-ra, patrimonio identitario sem nome, posto que marcado pela experiencia comum,alimentaria o ventre de um discurso que prescreveria doutrinas, exerdcios, meto-dos para que todos fossem cada vez menos cada um. Ou seja, o mundo reencantava-se, as promessas do esclarecimento nao se cumpriam, e o turbilhao atingia em cheioas formas de pensar na (re)conformagao da sociedade.

Longo processo este, inconcluso por certo. Aberto, portanto, a possibilidadehistorica. E Carmen ajuda-nos a ver como a rua se confundia com a festa, que erabrinquedo e guerra, dor e prazer, pulso e morte. Mas esse movimento lentamentee solapado pelos designios da cientificidade que atingiria as telas, os cromos, os tri-Ihos, o ago o corpo; sem esquecermos que tornariam a aflorar os seus rnais inos-pitos pressupostos na experiencia que liga a Paris de Hausmmann a Guernica dePicasso. Tempo de mutilagao e salvacionismo. Tempos de corpos serem educados.Tempos de discursos e praticas serem mobilizados para a sua educagao.

Funambulos e outros artistas que tomavam as ruas, esses trabalhadores

"apostatas" das causas da ciencia, do trabalho, da tecnica "cientffica", seriam justa-

mente os fornecedores do material que fomentaria as experiencias que prescreve-riam a corregao, a perfeigao, a educagao corporals. Nao sao experiencias simples:

a tecnica vodferava; a matematica pontificava; a natureza era captada em uma dimen-sao sem precedentes. E as sequencias de fotos que Carmen da a ver e propoe ana-lisar chocam quando comparadas com as imagens que abrem o seu estudo, essas

sim, ainda que ficgao - postos que sao "arte" - .encarnadas, vividas, encharcadas dehumanidade ate pela partilhaque estao a representar. Mundo pulsante das ruas, mundo

frio dos laboratories! Duas vidas, dois modelos de corpos, imbricados na lembran-

ga de que a sua raiz e a vida daqueles artistas do povo que tinham como o seu traba-lho explorar os limites dos seus corpos. Estranhos apostatas aqueles, que unifica-vam vida e trabalho nos seus corpos! Ajudaram a criar as "ciencias do movimento

humano" com o seu trabalho mambembe, execravel, maldito.Curioso liame este da historia, que liga o contexto do Rabelais de Bakhtin as

experiencias dos campos de concentragao nazistas. O corpo que morre e mata; que

vive e viola; e violado e ri! Curioso tambem este tema do corpo: intangfvel nas suasmarcas, nao reduzfvel a nenhum padrao, pouco conhecido na sua complexidadehistorica. Duplo corpo! Corpos! Se encerram dificuldades inauditas, o que dizer dasua educagao? Se a formagao nao e mensuravel pelo quantum dos modelos mate-

maticos, como proceder historicamente para compreender a educagao do corpocomo premissa do processo de formagao? Questoes para muitos projetos, muitos

investimentos, muitas reflexoes. Questoes tocadas, abertas, tomadas como objetopor Carmen, que das entranhas das representagoes da arte e da tecnica nos estra-nha com a maxima que teria sido o corpo transformado em maquina um dos pon-tos de inflexao da modernidade. Nao basta mata-lo; e precise educa-lo! Quem sabe

reinventa-lo, nao como representagao artistica, mas como objeto de saber. Corpo-maquina, saber-coisa!

Percorrendo Demeny, a literatura, afotografia, a iconografia, cortados em suas

perspectivas diacronicas, Carmen oferece-nos um mapa - aberto, plurivocal — depossibilidades postas pela marcha do esclarecimento, a partir do projeto que ungia ocorpo na sua dimensao utilitaria, filha da organizagao de um tempo que viu a grandefabrica levar as ultimas consequendas a redugao do corpo ao imperative do calculo,nao sem que uma ou multiplas retoricas se desenvolvessem para justificar as atroci-dades nasfabricas, nas ruas, nas minas, nos campos. Corpos reduzidos acoisas;homens, mulheres e criangas com as suas dignidades achincalhadas. Triste legado doesclarecimento europeu que se espraiava pelo mundo! No Brasil daquele tempo, a

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escravidao, essa marca tangivel da degradagao humana, corporalmente visfvel, mo-

ralmente reprovavel. Aqueles eram, ainda, tempos da ferula, que marcava no corpo

infante os limites das suas possibilidades de expressao. Os tempos eram de regozi-

jo, pelo menos para aqueles que vislumbravam republica, industrializagao, urbaniza-

gao, modernizagao no Brasil, a imagem e semelhanga de terras europeias.

Mas se o trabalho de Carmen pelo que propoe ja ajuda a pensar um processo

de educagao do corpo para a reorganizagao da cultura nos moldes da urbe europeia,

as imagens e representagoes com as quais trabalha permitem ainda um pouco mais.

Permitem que mapeemos, tambem em um esforgo diacrfinico, a insistencia de de-

terminadas praticas em permanecer como resqufcios da incultura de um mundo

patogenico. E nos tempos de hoje voltamos o nosso olhar para as criangas do sisal,

das minas de carvao, da prostituigao; voltamos nossos sentidos para a explosao

xenofoba, para o aniquilamento do diferente, para a banalizagao da dor do outro.

Dor que se manifesta ainda naquilo que seria inimaginavel na modernidade dos pri-

meiros tempos: a negagao do trabalho, do mais rudimentar dos trabalhos, aquele

das maos, dos bragos, corporal. Pois mesmo esse trabalho, da apologia de perso-

nagens e tradigoes tao distintas, hoje se esvai como promessa nao cumprida. Para-

doxalmente, quando alguns vivem justamente da venda dos seus corpos: herois ou

"barbaros" modernos, atletas, estrelas, criangas, mulheres, trabalhadores informais,

tern em comum o investimento que se faz sobre os seus corpos para consignar

mais pontos no projeto que nos extrai a humanidade. Alguns, anonimos; outros,

idolos universais. Tbdos, estilhago de um tempo que elevou o corpo e a sua educa-

gao no adro dos sacriffcios da civilizagao pela consolidate do moderno. Pois esse

"moderno" precisa ser questionado em suas bases e em seus pressupostos. Mas

precisa ser lembrado como o tempo-projeto que banhou o mundo de esperanga,

de Utopia, de resistencia. Saudade do seculoXIX? Seria exagero, porcerto! Mas

entendido como auge de um mundo que acreditou nas possibilidades humanas, voltar

a Bruegel e Boch, passando por Rabelais e o grotesco, chegando a Amoros e Demeny,

e um exercfcio estimulante para aqueles que querem e pensam a historia como

possibilidade. Dai Williams poder nos alertar para a longa revolugao que represen-

tou a obliteragao de formas alternativas de organizagao da sociedade. Formas alter-

nativas nas quais o esforgo e a habilidade corporals eram condigao de vida e realiza-

gao para a maior parte dos homens e mulheres que faziam do seu dia-a-dia razao de

trabalho e festa, lugar e tempo de celebragao da vida, pelo que ela nos reserva de

dor e prazer. Dor que seria de forma sub-repticia, transformada em norma de con-

duta, em estilo de vida, em sofrimento apaziguado pelo entretenimento. Hoje o tra-

balho e outro, a fruigao e pouca, tambem e outro o corpo e a sua educagao. Mas do

exercfcio de Carmen podemos apreender as marcas de um tempo de ebuligao, no

qual projetos eram disputados, tendencias solapadas, vitorias encetadas. Os venci-

dos ficaram como memoria a martelar na consciencia do presente cinico. A beleza

no horror? Se recuperarmos atopicafreudiana, a beleza e um dos motores que

ajudaram a perpetuar o horror. Ou, pelo menos, o modelo de beleza que fez do

corpo o cenaculo oracular de um mundo que se perdeu da sua humanidade. E que

e humano justamente pelo que nos apresenta de inconcluso! Esse processo, artis-

ticamente focalizado por Carmen Scares nessas paginas, esta aberto. Algumas cau-

sas ainda podem ser ganhas. E ao historiador cabe fazer lembrar sempre aquilo que

nuncafoi farsa, mas os obices de um mundo que estranhou a si mesmo e o qual

continuamos a estranhar nas nossas indagagoes sobre essas distancias espago tem-

porais que aproximam arte e ciencia, ficgao e realidade, narrativa e experienda.

Curitiba, primavera de 2005

Marcus Aurelio Taborda de OliveiraProfessor do Departamento de Teoria e Pratica de Ensino

e do Programa de Pos-Graduagao (area tematica de historia e historiografia da

educagao) da Universidade Federal do Parana

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PREFACIO A 2a EDICAO

A educagao e o processo pelo qual as sociedades asseguram a transmis-sao dos conhecimentos, e dos valores fundamentals, das geragoes mais ve-Ihas para as geragoes mais novas. Ate hoje, em cada sociedade e indepen-dentemente do seu estadio de desenvolvimento ou dos modelos de educagaoconcebidos, este e o meio que assegura a cultura. A preparagao para a vidasup5e a educagao fisica, um conjunto mais ou menos extenso e complexo de

principles, de metodos e de tecnicas a partir dos quais se estruturam manei-

ras de fazer, verdadeiro know-how indispensavel a vida humana e social.A educagao dos seres humanos elabora-se no sentido de favorecer a

adaptagao ao meio natural e fisico.tanto quanto humano e social. A aprendi-

zagem das actividades que inserem os seres humanos no mundo da vida e umvalor da vida humana e social. Descuidar esta area, de preservagao de tudo

quanto e considerado valioso e significative, e comprometer as hipoteses desobrevivencia e de continuidade das sociedades tal como as conhecemos. Astecnicas, de que a ginastica faz parte, representam um fenomeno de cultura

que necessita de maior atengao para que se compreenda, com clareza e afas-tada das tensoes ideologicas que, sem duvida, as utilizaram, qual o seu valore qual o seu sentido social no quadro de uma sociedade em mudanga e queaspirava a uma maior justiga social. No territorio do corpo, esse mediadorsingular, os interesses cruzavam-se ontem, como hoje, entre os valores hu-manos mais profundos e as profanagoes mais hipocritas. Este e o espago e otempo do ser humano, da sua vida individual e colectiva. Um territorio que e

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indispensavel salvaguardar, nas formas e nas fungoes, certamente, mas sem

que se esquega, em momento algum, que este e o espago verdadeiramentesagrado onde se definem e defendem os limites entre a liberdade e o abuso.

Como acontece no processo de constituigao de alguns factos da cultura,

a institucionalizagao da educagao fisica ocorre num periodo alargado. E esteum tempo longo, no qual se inscrevera a sua construgao teorica e a elabora-gao minuciosa e sistematica de propostas concretas de operacionalizagao. E

no seio de uma Europa que se pensa a si propria e aos seus limites, onde osproblemas do homem e da sociedade se impoem e suscitam animado deba-

te, flnos argumentos e o confronto fecundo entre perspectivas eruditas e

esclarecidas e as propostas consistentes de mudanga e de consolidagao de

valores entendidos como fundamentals, que as possibilidades de educar ad-quirem uma importancia social e polftica, de facto, moderna. Este periodo,que se podera compreender entre o tempo dos fundadores, como John

Locke, Henri de Boisregard e, tambem, Jean Jacques Rousseau, entre outros,e com clareza desde os finals do seculo XVII, e a sua integragao como uma

discipliha escolar, acessfvel a maioria da populagao, facto que se verificara se-gundo ritmos e orientagoes distintas por toda a Europa e por todo o Ociden-te, desde os infcios do seculo XIX, e o momento em que se estruturam ospoderes proprios da sociedade democratica de que o Estado-nagao e uma

instituigao fundamental e o cidadao uma nogao revestida de uma responsabi-lidade outra.

E nos interstfcios de uma sociedade na qual a tecnica e a inteligencia sesobrepoem, com lentidao, aos valores do nascimento e de prerrogativasanacronicas, que a educagao dos mais jovens assenta, tambem, com. particu-lar preocupagao, na formagao do caracter e da vontade, atraves do corpo e

do exercicio fisico, isto e, de uma actividade moderada e regular devidamen-te orientada. O olhar distanciado, que as ciencias procuram, sugere as linhas

de poder que a palavra de Foucault revela, o alargamento das redes deinterdependencia e de as configuragoes esbogadas entre os grupos socials queElias explica, os confrontos entre os defeitos incrustados no corpo social e osexcesses incontidos que essa mesma realidade apresenta, as necessidades eas expectativas que o estudo de Crespo desenterra ao expor as texturasmultiplas e as tensoes da sociedade portuguesa, os limitados centres e asinfindaveis periferias onde se jogam os poderes e as politicas de que nos elucidaHobsbawm, avangam em sentido diverso das festas e das formas de subver-sao em que a comunidade de Thorndike se revigorava e em que Bakhtin atenta.

Os termos da racionalizagao entendida como necessaria, face aos valores dodesenvolvirnento e do progresso, indicam a verticalizagao dos corpos, a

higienizagao dos habitos publicos e privados, a normalizagao dos comporta-

mentos.No caudal de problemas, de propostas e de iniciativas rasgadas por en-

tre quotidianos que se procuram distintos, as tecnicas, os metodos, as expli-

cagoes inspiradas e legitimadas no processo cientifico, irrompem pelo seculoXIX como uma das solugoes que, no quadro educative, poderiam contribuir

para uma transformagao desejada. Demarcar campos de intervengao, valori-

zar orientagoes precisas e marginalizar correntes demasiado proximas de sa-tisfagoes imediatas, luxuriantes e inibriadoras, constituiu uma das tarefas a que

se langaram alguns. O empreendimento individual inscrevia-se nas formas decomportamento a que se aspirava. Amoros, como Demeny, como tantosoutros, personificavam o indivfduo que nao sogobra, que enfrenta os obsta-

culos e concretiza, justamente pela acgao persistente e altruista, as atitudesde uma outra nobreza em formagao.

O corpo, vigoroso, altivo, autonomo, e o primeiro sinal de um mundoem estruturagao. A imagem de elegancia, de sobriedade, de comedimento,de perfeito auto-domfnio. A correcgao das indumentarias escuras, das cami-sas e dos colarinhos brancos, do movimento adequado e das capacidades que

se desenvolvem pela vontade, pela regularidade, pela repetigao e pelo exer-cicio, pelo ensaio e pelo erro, a imagem de eficiencia acompanha cada cor-rente. Nao pelo visivel ou, sequer, pelo visual. Mas pelo que transmite den-

tro do sentido yisado - um ser humano complete, em condigoes de fazerfacea uma sociedade mais exigente, mais complexa e diffcil mas, tambem, deseja-va-se, menos desigual. Aos desdobramentos desgarrados de contorcionismosinuteis, opoe-se a ideia mestra da utilidade, da justeza, do servigo. Na verda-de, numa sociedade outra, onde o colorido da corte, o evenemenfaristocra-tico e circular, os minuetes e as contra-dangas, a esgrima de efeito e as exibi-

goes de alta escola onde o carroussel distinguia cavalos e cavaleiros, nao saoexclufdos, que a arte e como o ar, indispensavel, mas restringem-se, progres-sivamente, a cerimoniais de familia, memoria do que tende a extinguir-se. E a

arte, ha que a buscar.Como Barthes assinala, o sentido passa, como um discurso, um texto,

por entre os indivfduos e as imagens que os olhares percebem. Nesta pers-pectiva, outros individuos, outras praticas, outros discursos, animam os com-portamentos tendo em vista garantir, acima de tudo, que algo, de importan-

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te, de extraordinario, de tao essencial, se preserve. E esta e uma area de todos,

nao de alguns.A obra de Carmen Lucia Scares, feita de exigencia e de rigor, conduz-

nos a um universe de possfveis em confronto, de alternativas que se jogam

por entre situagoes e poderes diversos. No fulcra das tensoes que se mani-festam, o corpo e o territorio das forgas de uns e de outros, os interesses eas necessidades de uma sociedade em mudanga, as fraquezas que se deseja-

va transformar em acgao verdadeiramente social e util. Em particular, a pro-

posta edificada por Amoros, primeiro autor de uma ficha de avaliagao desti-nada a que proprios jovens procedessem a analise das suas capacidades eavangos bem como as dos seus colegas, elemento decisive do trabalho reali-

zado e instrumento de medida fundamental na afirmagao do valor do exerci-cio ffsico. Ou a orientagao de Demeny, apurada segundo princfpios segurosmas nao suficientes entre outros interesses que se esbogam.

No trabalho de Carmen Lucia Soares, as imagens animam-se de senti-do, seguidas por um texto denso, salpicado de notas preciosas feitas de da-dos reunidos com extreme cuidado. Por este texto, porem, avangamos semcansago. O interesse que desperta em cada linha prende-nos do principle aofim. Como se de uma viagem se tratasse, por um pais repleto de aspectosinteressantes disposto a ser explorado com gosto por especialistas, iniciados

ou simples curiosos.Na verdade, a viagem realizada suscita a vontade de prosseguir, de con-

tinuar na senda das propostas e das linhas avangadas. A par da riqueza de in-

formagao prestada, assente na consulta das fontes originals, na integragao dosconhecimentos feita de compreensao dos problemas, na utilizagao segura daliteratura da epoca como um outro elemento propicio ao entendimento, a

curiosidade desperta representa uma qualidade pouco frequente entre multi-ples escritos produzidos pelos especialistas. Esta e uma caracteristica da au-tora que nao se subordina aos modelos rigidos da escrita cientifica americana

e eleva a um outro nivel o trabalho apresentado. De facto, a natureza do temaapela, precisamente, a essa forma: feita de sensibilidade e de autenticidade.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2002

M. HasseProfessors associada agregada daUniversidade Tecnica de Lisboa,

Faculdade de Motriddade Humana

PREFACIO

O que se ve quando se olha um texto, quando se olha uma imagem? Oolhar comega a ler o texto, o olhar comega a ver a imagem, o texto diz, aimagem mostra. O texto principia a conduzir o olhar em seu trajeto da es-

querda para a direita, em seu grafismo ordenado, em suas linhas horizontalsque comegam a completar paginas. Um texto revela-se pouco a pouco, acu-mulando sentidos trazidos pelas palavras, pela sintaxe. A forma texto e tam-bem a forma de pensar o que o texto diz. Os significados das palavras saotambem os significados de como elas se mostram. Entao tambem se ve umtexto. Um texto e uma imagem.

A imagem - uma gravura, uma pintura, uma fotografia - revela-se de umaso vez. Permite que o olhar, delimitado somente pelas bordas, comece a ve-la a partir de qualquer ponto, vagueie por ela em diferentes diregoes, perma-

nega onde quiser, imagine. A forma imagem, com suas linhas, superficies,perspectivas, manchas, e tambem a forma de pensar o que a imagem mos-tra. Os significados das imagens sao tambem os significados de como elas se

mostram. E ai as imagens tornam-se signos. Entao, tambem se le uma ima-gem. Uma imagem e um texto.

Por convengao os textos sao impressos em caracteres escuros sob fun-do claro. Apesar de virem de regioes obscuras da sociedade dos homens, aspalavras fixam-se no papel, escuras em fundos claros, neutros, como se qui-sessem esquecer sua origem complexa, amblgua, perigosa, para exibirem-secomo limpas, nitidas, claras. E assim deve ser o orador, o cientista, o escritor

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academico. Limpo, claro, nitido. E tambem a escola, a educagao do corpo, a

ginastica.Certa vez, convencionou-se tambem que a arte verdadeira deveria ser

suj'a, escura, obscura, como se ela nao quisesse expor sua face solar, clara,positiva. E assim deveria ser o artista. Sujo, obscuro, problematico. E tambem

a rua, o funambulo, o trabalhador das minas, o circo.O exagero destas duas afirmagoes leva-nos a afirmar que devenamos

buscar uma opiniao media. Nao. Para que algo significative seja revelado, as

coisas devem ser misturadas, colocadas em tensao. Buscar sentidos na apro-ximagao problematica de linguagens diferentes. Tradugao. Traduzir de uma lin-guagem para outra para que algo de verdadeiro e inesperado surja ora do

texto, ora da imagem e ai achar trechos da historia que ficaram perdidos e

obscurecidos pela historia oficial. Tradugao tambem da imaginagao, do dese-jo e da historia do pesquisador, dos trechos perdidos e obscurecidos pela sua

historia oficial. Como se uma pesquisa pudesse ser ao mesmo tempo umahistoria pessoal profundamente social.

As palavras que voce vai ler e as imagens que voce vai ver querem ser

lidas e vistas juntas e separadas. Juntas para que o leitor ganhe a imaginableque Ihe falta e a imagem ganhe a estabilidade de que carece. Separadas paraque cada uma conte a sua historia. Juntas-separadas para que o leitor cons-

trua outra historia e imagine novamente este pequeno momento do seculoXIX. Isto quer dizer tambem que as imagens neste livro nao querem ser merasilustragoes do texto, nem o texto explicar a imagem. Que o leitor passeie porelas imaginando outros significados e acrescentando explicates verdadeirasaquelas que o autor explica. Pode se contar a mesma historia tantas vezesquantos escritores quiserem faze-lo. Escrever e urn exercicio de liberdade,nao de submissao. Nenhum metodo pode ter a pretensao de aprisionar averdade, e acreditar nos autores e um exercicio politico dos leitores.

Milton Jose de Almeida

Professor doutor da Faculdade de Educagaoda UNI CAMP e coordenador do

Laboratorio de Estudos Audiovisuais - OLHO

C A P I T U L O U M

As IMAGENS

Fig. I Giandomenico Tiepolo, Polichinelos e saltimbancos (ou Obarraco dos saltimbancos), por volta de 1793

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Fig. 2 Georges Seurat, O c/rco, 189 I

Fig. 4 Jeronimus Bosch, A tentagao de santo Antonio (detaihe), porvolta de 1500-1510

Fig. 3 Amoros conduzindo uma aula, 1820

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Fig. 5 Francisco de Goya, A famflia de Carlos /I/ 1800-1801

Fig. 6 Ginasio ao ar livre, 1840

Fig. 7 Exercido no portico, I 836

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Fig. 8 Toulouse-Lautrec, No Oreo Fernando: a amazona, I 888

Fig. 9 Edgar Degas, MademoiselleLala no Oreo Fernando, I 879

Fig. 10 Pierre-Auguste Renoir,O down no c/rco, 1868

Fig. I I Pieter Bruegel, O combate docarnaval e da quaresma, 1559

Fig. 12 O manejo de armas

Fig. 13 Pieter Bruegel, Jogos infantis, 1560

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Fig. 14 Francisco de Goya, O bonecode pa/ha, 1791-1792

Fig. 15 Francisco de Goya, Os pequenosgigantes, 1791-1792

I

Fig. 17 Pieter Bruegel, A danca dos camponeses, por volta de I 568

Fig. 16 Francisco de Goya, Garotos brincando de so/dados,por volta de 1777-1785

mmFig. 18 Pieter Bruegel, Danga nupcial ao ar llvre, 1556

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Fig. 20 Jogos, s.d.

Fig. 19 Francisco de Goya, O enterro da sardinha, I 812 -18 19

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Fig. 21 Van Gogh, O tece/ao, 1884

fr

Fig. 22 yo^o com oo/a, 1880(?)-1 899

Fig. 23 yo,?o com Z>o/a, 1880(?)-1899

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Fig. 24 /4 cfeA7?a e o //come, tapegaria (detaihe), fins do seculo XV

Fig. 25 Michelangelo, Cape/a Sistina, Roma (detaihe)

Fig. 26 Henry Perlee Parker, O descanso dos mineiros: o jogo, 1836

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IK HATAIM.ON S4,6*,., ;<f̂ ™*» ;. *•• 951

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Fig. 27 O batalhao esco/ar, 1885

C A P I T U L O D O

EDUCACAO NO CORPOA RUA, A FESTA, O CIRCO, A GINASTICA

y\ / a Europa, ao longo de todo o seculo XIX, a ginastica cientifica afirma-

JL \ se como parte significativa dos novos codigos de civilidade. Exibe um

corpo milimetricamente reformado, cujo porte ostenta uma simetria nunca an-

tes vista. Nada esta solto ou largado. Nada esta fora do prumo. Este corpo fe-

chado e empertigado desejou banir qualquer vestigio de exibigao do organico e,

sobretudo, qualquer indicio de perda de fixidez, qualquer sinal de um estado de

mutagao.

Forma-se no seculo XIX, de um modo mais precise que em outros momen-

tos da historia do homem ocidental, uma pedagogia do gesto e da vontade, configu-

rando-se, assim, uma "educa^ao do corpo", ja reconhecida como importante.

Os silencios contidos nos gestos esbogam imagens que devem ser internalizadas

em posigoes e comportamentos. A ginastica, com suas prescribes, enquadra-se

nesta pedagogia e faz-se portadora de preceitos e normas.

O corpo e o primeiro lugar onde a mao do adulto marca a crianca, ele eo primeiro espaco onde se impoem os limites sociais e psicologicos que fo-ram dados a sua conduta, ele e o emblema onde a cultura vem inscreverseus signos como tambem seus brasoes1.

I. Vigarello, 1978, p. 9. Ver tambem Foucault (1986, p.80), para quern o "[...] contro-le da sociedade sobre os individuos nao se opera simplesmente pela consciencia ou pela ideo-logia, mas comega no corpo, com o corpo. Foi no biologico, no somatico, no corporal queantes de tudo investiu a sociedade capitalista. O corpo e uma realidade biopolitica".

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18 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO EDUCACAO NoCoRpo 10

Os corpos que se desviam dos padroes de uma normalidade utilitaria nao inte-ressam. Desde a infancia, ou melhor, sobretudo nela, deve incidir uma educagaoque privilegie a retidao corporal, que mantenha os corpos aprumados, retos ou comosublinhaVigarello, que os mantenha -em verticalidade2,

O corpo reto e o porte rigido comparecem nas introdugoes dos estudos so-bre a ginastica no seculo XIX. Estes estudos, carregados de descrigoes detalhadasde exercicios fisicos que podem moldar e adestrar o corpo, imprimindo-lhe esteporte, reivindicam com insistencia seus vinculos com a ciencia e se julgam capazesde instaurar uma ordem coletiva. Com estes indicios, a ginastica assegura, neste mo-

menta, o seu lugar na sociedade burguesa.Sua pratica, em diferentes paises da Europa, faz nascer um grande movimento,

que foi chamado, genericamente, de Movimento Ginastico Europeu3. Como ex-pressao da cultura, este movimento constroi-se a partir das relagoes cotidianas, dosdivertimentos e festas populares, dos espetaculos de rua, do circo, dos exerciciosmilitares, bem como dos passatempos da aristocracia. Possui em seu interior prin-cfpios de ordem e disciplina coletiva que podem ser potencializados.

Para sua aceitagao, porem, estes principles de disciplina e ordem nao sao sufi-exigido o rompimento com seu nucleo primor-cientes. Ao(movimento aoastj

dial, cuja caracteristica dominante se localiza no ca'mpo dos (6TvertjrnentQs^j>E, portanto, a gradatiya aceitagao dos principles de ordem e disciplina formula-

dos pelo Movimento Ginastico Europeu e o, tambem gradativo, afastamento de seunucleo primordial que vai, pouco a pouco, afirmar a ginastica como parte da educa-gao dos individuos. Uma ginastica que estara reformulando seus preceitos a partir daciencia, da tecnica e das condigoes^poTiticas de uma Europa que, no seculo XIX,consolida-se como centrddo Ocidente.

Porem, e possivel destacarque o reconhecimento da ginastica pelos circulos inte-lectuais e fator decisive para sua aceitagao por uma burguesia que a deseja transformadae, assim, devolvida a populagao como conjunto de preceitos e normas de bem viver. Ea partir deste reconhecimento que, de fato, a ginastica passa a ser vista como praticacapaz de potencializara necessidade de utilidade das agoes e dos gestos. Como praticacapaz de permitir que o individuo venha a intemalizar uma nogao de economia de tem-po, de gasto de energia e de cultivo a saude como principles organizadores do cotidiano.

E estas sao as metas de um poderque, desde o seculo XVIII, vem construindo

uma nova mentalidade cientifica, pratica e pragmatica, baseada na ciencia e natecnicacomo formas especificas de saber.

2. Vigarello, 1978. p. 9.3. Esta expressao & utilizada por Langlade & Langlade (1986).

Deste modo, o seculo XIX merece a atengao daqueles que desejam compreen-der o homem e a sociedade do Ocidente. A Europa, que consolida uma dupla revolu-gao4, e o lugar da formagao de um novo homem e de uma nova sociedade regida porum "espirito capitalista" que passa a dominar quase exclusivamente aquele presente.

Este tempo/espago regido por este "espirito" afirma e difunde uma crenga des-medida no chamado progresso e ancora-se nas conquistas da ciencia, esta novareligiao do homem oitocentista, que cria e (re)cria praticas sociais a partir, exclusiva-mente, de parametros ditados pelo "metodo cientifico", positive em si5.

Uma ideologia cientificista impregna a vida de individuos, grupos e classes, trans-formando a sociedade em um grande organismo vivo que tende a evoluir do inferiorao superior, do simples ao complexo, e onde tudo pode (e deve) ser medido, clas-sificado, comparado, definido e generalizado a partir da descoberta constante de "leis".

A partir de visoes de mundo geradas no interior de teorias evolucionistas, organi-cistas e mecanicistas, o seculo XIX realiza a grande revolugao cientifica dos labora-tories, da industrializagao e do crescimento de disciplinas e de instituigoes sociais6.

ConformeobservaVovelle, a "ideologia cientificista junto com umafilosofiabiologica apoiam este sistema, que associa a explicagao idealista (do progresso darazao) a explicagao materialista e mecanicista (os triunfos da vida sobre a morte)"7.

A ciencia deste periodo dirige um certo tipo de esquadrinhamento da vida emtodas as suas dimensoes, pretendendo estabelecer uma ordem logica nas ativida-des e um adequado aproveitamento do tempo ou, mais precisamente, uma eco-nomia de energias.

A ginastica e constitutiva desta mentalidade. Destaca-se pelo seu carater ordena-tivo, disciplinador e metodico. E possivel afirmar que, ao longo do seculo XIX, sur-gem inumeras tentativas de estender sua pratica ao conjunto da populagao urbanacada vez mais numerosa e potencialmente "perigosa" para os objetivos do capital.Havia ainda mais uma vantagem na aplicagao da ginastica: a suposta aquisigao e preser-vagao da saude, compreendida ja como conquista/responsabilidade individual, podiaocorrer como decorrencia de sua pratica sistematica, afirmavam higienistas e peda-gogos, como criticos dos "excesses do corpo" vividos por acrobatas e funambulos.

4. Cf. Hobsbawm (1982, p. I 8) "nao seria exagerado considerarmos esta dupla revo-lu$ao - a francesa, bem mais politica, e a industrial (inglesa) - nao tanto como coisa quePertenca a historia dos dois paises que foram seus principals suportes e simbolos, mas simcomo a cratera gemea de um vulcao regional bem maior."

5. Sobre o assunto, consultar, entre outros Bernal (1975, vol.1 e 3); Comte (1983);Luz (1988); Lowy (1987).

6. A esse respeito ver Durkheim (1983, pp. 78-79); Luz (1988, pp. 78-79).7. Vovelle, 1991, p. 144.

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20 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

Abarcando uma enorme gama de praticas corporais, o termo ginastica8, perten-cente ao genera feminino, de designacao feminina e que historicamente se constroi apartir de atributos culturalmente definidos como masculinos -forca, agilidade, virilida-de, energiaAempera de carater, entre outros - passa a compreender diferentes prati-cas corporais. Sao exercicios militares de preparagao para a guerra, sao jogos popula-res e da nobreza, acrobacias, saltos, corridas, equitagao, esgrima, dangas e canto9.

Em suas primeiras sistematizagoes na sociedade ocidental europeia, o termoginastica foi assim compreendido. Quando os circulos cientfficos se debrugam so-bre o seu conteudo, desejam entao aprisionartodas as formas/linguagens das pra-

ticas corporais sob uma unica denominagao: ginastica.O Movimento Ginastico Europeu foi, portanto, um primeiro esbogo deste

esforgo e o lugar de onde parti ram as teorias da hoje denominada educagao flsica no

Ocidente. Balizou o pensamento moderno em torno das praticas corporais que seconstrufram fora do mundo do trabalho, trazendo a ideia de saude, vigor, energia e

moral coladas a sua aplicagao.Este e o movimento que pode ser pensado como o conjunto, sistematizado

pela ciencia e pela tecnica, do que ocorreu em diferentes pafses ao longo de todo oseculoXIX, especialmente naAlemanha, Suecia, Inglaterrae Franga10.

Assumido pelos Estados Nacionais, este movimento apresentava particularida-des do pais de origem, mas, de um modo geral, acentuavafinalidades muito semelhan-tes, como, por exempio, regenerar a raga e promover a saude em uma sociedademarcada pelo alto fndice de mortalidade e de doengas, sem contudo alterar as condi-goes de vida e de trabalho. Em um outro piano, as finalidades completavam-se pelodesejo de desenvolver a vontade, a coragem, a forga, a energia de viver para servir apatria nas guerras e na industria. Mas a finalidade maiorfoi, sobretudo, moralizar osindivfduos e a sociedade, intervindo radicalmente em modos de ser e de viver1'.

Com estas finalidades, este movimento foi consolidando-se tambem a partir dediferengas, sendo a mais radical aquela que ocorreu na Inglaterra. La, a pratica corporal

8. Sua origem etimologica vem do grego gymnikos, adjetivo que e relative aos exerci-cios do corpo, e de gimn(o), elemento de composigao culta que traduz a ideia de nu, do gregogymnos, "nu, despido", nao coberto, que se limita a ser alguem ou alguma coisa, puro e sim-ples, sem acess6rios ou sem modifica$6es... que nao traz vestuario exterior, que so traz aroupa interior, a tunica; sem armadura ou armas (MACHADO, 1977, vol. 3, p. 151). Consultarainda, Arnaud e Camy (1986, pp. 54 e ss).

9. Sobre o assunto, consultar: Pereira (s.d.); Langlade & Langlade (1986); Crespo (1990).10. Sobre o assunto, consultar Pereira (s.d.), pp. 423 e ss., especialmente.I I. Em trabalho publicado em 1994 intitulado Educagao fisica: raizes europeias e Bras/7,

desenvolvo o tema de modo mais detido (SCARES, p. 1994).

EuucAcAo NO CORPO 21

que se afirmou foi o jogo esportivo, constituindo entao um movimento que acaboupor desenvolver, aprimorar e consolidar a compreensao do esporte moderno12.

Nos demais pafses europeus, afirmou-se a ginastica, cujo conteudo basicofora definido a partir de parimetros formulados pela cultura grega, que a compreen-dia ligada a ideia de saude, beleza e forca. Ciencia e arte, entao, explicitavam paraesta cultura as diferengas de aplicagao, as possibilidades de classificagao, bem comoos efeitos dos exercicios sobre os indivfduos. Explicitavam, ainda, a relagao diretaque se acreditava existir entre a ginastica e o desenvolvimento do carater, da moraledavirtude13.

Ciencia e tecnica parecem ter sempre comparecido para afirmar a ginastica comoinstrumento de aquisigao de saude, de formagao estetica e de treinamento do sol-dado. Comparecem, sobretudo, para revelar a ginastica como protagonista do quee racional, experimentado e explicado.

E e somente a partir da revelagao do carater cient'rfico da ginastica que a burgue-sia do seculo XIX inicia urn lento processo de tentativa de diferenciar sua aplicagaoentre os militares e a populagao civil.

Solicitava-se da ciencia, entao, o estabelecimento de diferengas, nao de oposi-coes, e pensava-se, sobretudo, na preservagao da disciplina e da ordem, tao caras ainstituigao militar.

Na Franga, havia uma vontade manifesta de sistematizar saberes que permitis-sem a compreensao da ginastica a partir de canones cientfficos. Desejava-se fazerdela um objeto de investigagao cientffica e, desse modo, aparta-la definitivamente deseus vinculos populares. E sao estes aspectos, bastante acentuados, que afazemmultifacetada e contraditoria em seu desenvolvimento no seculo XIX, tornando-a,assim, referenda para o desenvolvimento deste trabalho.

12. O movimento esportivo expandiu-se, tal qual expandiu-se o modo de ser e de viverda burguesia inglesa. O esporte conscientiza, aliena, (re)cria e afirma o homem burgues: audaz,agil, educado, obediente e, sobretudo, cumpridor e adorador de regras sociais, morais, fisi-cas... Este movimento cria o gosto pelo aparato burocratico do esporte moderno, este imen-so universo de signos, simbolos e linguagens que encantam multidoes e que ja serviu e aindaserve as mais dispares ideologias.

Fenomeno de massas, espetaculo de plasticidade quase coreografica, o esporte, em suasdiferentes manifestac,6es, cada vez mais desenvolve-se colado, ou como expressao de formasespecificas de saber, como exempio: a ciencia e a tecnica. Como marca da passagem de homense rnulheres pelo mundo, situa-se no ambito da cultura.

Para o senso comum, o esporte ou os esportes significam qualquer forma de exercitagaofisica e exercem um fascfnio que, monitorado pela midia, transforma-se quase em fetiche. Aesse respeito, consultar Pereira (s.d., pp. 347 e ss.); Grieswelle (1978); Spivak (I988b, p. 178),Bracht (1997).

13. Para maiores informagoes, consultar Jaeger (1989).

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22 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO EDUCACAO NO CORPO 23

Cabe registrar tambem que os homens de ciencia que na Franga dedicaram-seao estudo da ginastica declaravam-se profundos admiradores da cultura grega, jul-gando-se, inclusive, seus legitimos continuadores jjercebiam a ginastica como im-portante instrumento de recuperagao daquela cultura e sociedade, por eles identificada

como portadora da mais absoluta harmoniaT7A ginastica entao deveria ser pensada pelo aparato cientifico disponivel e assim

colocada em igualdade com outras praticas socials, explicada e sistematizada. Deviatornar-se obrigatoria para a sociedade em geral, bem como pratica regular em todos

os currfculos escolares.A base de saberes que serviu para estruturar um conhecimento mais precise

sobre a ginastica localizou-se principalmente na anatomia e fisiologia, a partir das quais,meticulosamente, foi-se estruturando um grande esboco do que se poderia chamar

de "teoria geral da ginastica". Como se podera observar nos primeiros trabalhos sobreginastica, nao ha o menor descuido com a globalidade do corpo em agoes especifi-cas, nas quais explicates tambem especificas para cada agio foram buscadas, nada

escapando aos mil olhos da ciencia.Autores como G. Demeny*, E. Marey", F. Lagrange***, renomados cientis-

tas que se debrugavam sobre o estudo e o aperfeigoamento do gesto no traba-

* Georges Demeny nasceu em Dowai, Franca, em 12 de junho de 1850. Entre os anos de1860 e 1872, seguiu o curso de matematicas especiais e, em seguida, na Sorbone, em Paris, dedi-cou-se ao estudo da fisiologia. Biologo, fisiologista e pedagogo fundou o Circulo de Ginastica Racio-nal, cuja atividade incluia cursos, palestras e publicacoes destinadas aos professores que ensinavamginastica. Juntamente com o medico e fisiologista E. J. Marey, fundou a Estacao Fisiologica do Parquedos Pnncipes e dirigiu o laboratorio de fisiologia de 1880 at£ 1894. No ano de 1900, organizou oCongresso Internacional de Educacao Fisica. Os debates desse congresso permitiram reformas naArmada e suas teses e conclusoes propagaram-se pelo estrangeiro. Em 1902, organizou o curso deeducacao fisica da Escola Normal e Militar de Joinville le Pont e foi nomeado professor de fisiologia.Nesta escola, tambem organizou o laboratorio de pesquisa fisiologica. No ano de 1903, organizouo primeiro curso superior de educacao fisica na Franca - Lycee Janson-de-Sailly. Georges Demenymorreu em Paris, em 26 de dezembro de 1917 (Cf. REY-GOLLIET, 1930, pp. 63-121).

** Etiene Jules Marey (1830-1904), medico e fisiologista frances que generaliza o empregode aparelhos que servem para o registro grafico de fenomenos fisiologicos. Juntamente com ofisiologista Auguste Chauveau, estuda ainda a atividade cardiaca, lei de Marey, lei da variacaoperiodica da excitabilidade cardiaca e lei da uniformidade do trabalho do coracao. Colocouigualmente em destaque a cronofotografia (1892); O Metodo grafico nas dencias experimenta/s,1878; estudo da locomocao animal pela cronofotografia, 1887. Com seus estudos, afirmou omovimento humano como objeto de estudo cientffico (Petit Robert, 1993, p. I 148).

*** Fernand Lagrange (1845-1909). Medico e fisiologista, dedicou parte de seus estudospara esclarecer questoes relacionadas a higiene e terapeutica e sua relajao com a utilizacao domovimento. Criou assim urna teoria do movimento embasada em medicoes e seriesfotogametricas. Procurou demonstrar as relacoes entre as atividades cardiopulmonares e otrabalho muscular (PEREIRA, s.d., p. 401).

Iho, elegem a ginastica come instrumento privilegiado pa7a treinar o gesto har-monico e economico. \

Afinados com o Estado constituido, exojjtam a moral de classe (burguesa) afir-\mando, em seus tratados sobre a ginastica, o "culto" a saude, ao corpo e a patria. )

"Oculto", contudo, o raciocinio que cria os meios, bem mais profundos e maiores/do que a ginastica, para a obtengao da saude. De uma saude que nao pode ser obtidanem preservada em condigoes miseraveis e degradantes a que estava sujeita a maioria dapopulagao que exerciaalgum tipo de "trabalho livre" na industria, no comercio, nas mi-nas. Lugares que fazem nascer e crescer o tab propalado progresso no mundo ora do-minado pela ciencia e pela tecnica, estas musas da burguesia que realizam o seu triunfo.

\A ginastica, entao, passa a ser apresentada como produto acabado e compro-vadamente cientifico. Radicaliza, no universe das praticas corporals existentes, avisao de ciencia como atividade humana capaz de controlar, experimentar, compa-rar e generalizar as agoes de indivfduos, grupos e classes^

~- Do menor gesto do trabalhador em "atividade produtiva" na industria e fabrica,que se afirmam como expressao do dominio do homem sobre a natureza, ate amais ousada acrobacia, seria a ciencia a prescrever, indicar e ditar, enfim, o modo derealizar a tarefa... a formajde viyer. A ginaslica cientifica apresentava-se comocontraponto aos usos do corpo como entretenimento, como simples espetaculo,pois trazia como princfpio a utilidade de gestos e a economia de energia.—-

Desse modo, praticas corporals realizadas nasfeiras, nos circos, onde palha-gos, acrobatas, gigantes e anoes despertavam sentimentos ambiguos de maravilha-mento e medo passam a ser observadas de perto pelas autoridades.

O circo e uma atividade que exerce grande fascinio na sociedade europeia doseculo XIX. Ali o corpo e o centra do espetaculo, de todas as "variedades" apresen-tadas pela multifacetada atuagao de seus artistas.

Conforme observa Catherine Strasser14, nas duas ultimas decadas do seculoXIX, o circo surgia como a encarnagao do espetaculo moderno e seu sucesso erainegavel nas diferentes classes sociais que, inclusive, assistiam ao mesmo espetaculoporem em dias e horarios especiais. Nas artes plasticas, tambem, o seu registro esingular: Seurat, Degas, Renoir, Toulouse-Lautrec trabalharam em seus quadrostodaa orgia de movimentos e cores que o circo oferecia.

Mas tudo isso nao impediu o crescente receio da famflia burguesa, de profissionaisque "cuidavam" do corpo, como, por exemplo, os medicos, de higienistas e filantroposfrente a este universe que se apresentava de modo tao encantador e, porque nao dizer,

14. Cf. Strasser, 1991, pp. 6 e ss.

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24 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

"perigoso" para a ideia de disciplina e ordem burguesas, sobretudo no que se refere»aos usos do corpo. A razao basica do crescente receio era a constatacao de que o

universe gestual proprio do circo apresentava uma total ausenda de utilidade. O corpoali exibido em movimento constante despertava o riso, o temor e, sobretudo, aliberdade. Havia uma inteireza ludica na gestualidade de cada personagem: o anao, opalhago, o acrobata, a bailarina (Figura 2). Esta inteireza nao cabia na sociedade cindida,fundada e erigida pelo pensamento burgues. A atividade fisica fora do mundo do tra-balho devia ser util ao trabalho. A atividade livre e ludica, encantatoria do acrobatadevia ser redesenhada no imaginario popular. Em seu lugar e a partir daquele univer-

so gestual, nasceriam as "series de exerciciosffsicos", pensados, exclusivamente, apartir de grupos musculares e de fungoes organicas, a serem aplicados com finalida-

des especificas, uteis, e nao como mero entretenimento.instalava-se, tambem, com forga nunca antes vista, um desejo de controlar o

divertimento do povo, o tempo fora do trabalho. Conforme observa Hobsbawm,no divertimento dos pobres, especialmente na primeira metade do seculo XIX, va-mos encontrar basicamente "revistas de contos sentimentaloides, circos, pequenasexibiooes com uma atragao principal, teatros mambembes e coisas semelhantes"15.

Nos meios urbanos, sao diferentes manifestagoes ludicas de carater popularrealizadas com base nas atividades de artistas circenses que se impoem. Elas trazemainda os restos de uma concepgao de mundo popular, a ambivalencia caracteristicada cultura popular da Idade Media e do Renascimento. De uma cultura nao oficial ede um territorio e datas proprias: a praga publica, a rua e os dias de festa16.

Equilibristas, funambulos, volantins, palhacps, bailarinas, contorcionistas, anoes,personagens que chegam e partem, transitorias, nomades (Figura I).

Qual era o seu lugar? O seu lugar era o mundo inteiro conhecido e, principal-mente, imaginado. Era sempre o lugar onde houvesse gente que se dispusesse a rir,a aplaudir, a se embevecer com as peripecias do corpo, de um corpo agil, alegre,cheio de vida porque expressao de liberdade e, sobretudo, resistente as regras enormas. Estes artistas viviam na contramao, fora da ideia de utilidade de agoes. Oseu mundo era desinteressado. Suas vidas faziam-se mais de trajetos do que de lu-gares a se chegar e, assim, desterritorializavam a ordem do espago17. Suas apresen-taooes aproveitavam dias de festas, feiras, mantendo uma tradicao de representar ede apresentar-se nos lugares onde houvesse concentragao de pessoas do povo.

15. Hobsbawm, 1982, pp. 292-293.16. As analises a que procedo em relacao ao tema cultura popular na Idade Media e

Renascimento estao baseadas nas obras de Bakhtin (1987, 1993).17. Ver o excelente trabalho de Duarte (1993).

EPUCACAO NO CORPO 25

Artistas, estrangeiros, errantes. Situados no limite da marginalidade fascinavamas pessoas fincadas em vidas metrificadas e fixas. Eram ao mesmo tempo elemen-tos de barbaric e de civilizacao nos lugares poronde passavam. "Barbaras: noma-des, sem vinculos sociais fixos, quase vagabundos. Civilizados: pessoas que viaja-ram, conheceram varias cidades e ate mesmo outros paises, elegantes, com possese vestes admiradas e invejadas..."18.

Compunham assim todos os atos do "teatro do povo"19 e cada vez mais des-pertavam o medo nas autoridades, pois seu modo de ser e viver desafiava as insti-tuigoes, tao caras a sociedade que as inventara de modo tao profundo. Traziam ocorpo como espetaculo. Invertiam a ordem das coisas. Andavam com as maos, lan-gavam-se ao espago, contorciam-se e encaixavam-se em potes, em cestos, imita-vam bichos, vozes, produziam sons com as mais diferentes partes do corpo, cus-piam fogo, vertiam Kquidos inesperados, gargalhavam, viviam em grupos. Opunham-se assim aos novos canones do corpo acabado, perfeito, fechado, limpo e isoladoque a ciencia construira, da vida fixa e disciplinada que a nova ordem exigia.

Nos escritos sobre a ginastica cientffica no seculo XIX encontra-se, de modosistematico, a negagao de elementos cenicos, funambulescos, acrobaticos. Encon-tra-se, sobretudo, uma retorica de recusa aos espetaculos proprios do mundo cir-cense e das festas populares onde o corpo ocupa o lugar central.

Faradoxalmente, porem, e a ginastica cientffica que se oferece como espetacu-lo "controlado" dos usos do corpo, um espetaculo protegido e trazido para dentrodas instituigoes. Assim, pode-se indagar, por exemplo, o que eram as classes dealunos de ginastica nos ginasios amorosianos em Paris, na primeira metade do secu-lo XIX, senao uma confirmagao do espetaculo institucionalizado? E afigura do mes-tre, o coronel Amoros*, vestido em seu magnifico uniforme militar, dirigindo pes-

18. Duarte, 1993, p. I 15.19. Esta expressao e tomada^de Crespo (1990, p. 443).* Francisco Amoros y Odeano nasceu em Valenca, Espanha, em 19 de feverelro de 1770.

Sua vida militar iniciou-se aos 9 anos de idade quando ingressou no exercito espanhol. Em 1781,com 17 anos, foi nomeado 2° tenente e, em I 803, coronel. Foi secretario particular do rei deEspanha, Carlos IV a quern tambem adestrava em alguns exercicios, bem como tutor de seu filho,o infante Don Francisco de Paula, entao com a idade de 12 anos. A base da educacao do infanteespanhol foi a ginastica, a esgrima, a natagao e a equitacao, base que, mais tarde, adotaria na Franca.No levante espanhol contra a dominacao napoleonica, francesa, Amoros declarou-se inimigo deFernando VII e uniu-se a Jose Bonaparte, ficando do lado dos franceses. Foi deportado para a Francaem 1814 e, em 1815, tornou-se membro da Sociedade para a Instrucao Elementar, em Paris, ondeapresentou um estudo sobre as vantagens do Metodo de Pestalozzi. Em 1816, naturalizou-se francese iniciou seus empreendimentos para a criacao dos ginasios. A partir de 1820, comecou a publicarseus estudos sobre a ginastica. Amoros morreu em Paris, em 8 de agosto de 1848, aos 78 anos de'dade. Cf. Del Pozo (1986). Ver tambem Serninario Francisco Amoros..., 1988; Keys, 1961.

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26 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

soalmente as classes de alunos de diferentes idades, nao estaria encarnando a figura

do artiste, daquele que se exibe? (Figura 3).O coronel Amoros convidava com regularidade ao seu ginasio a imprensa e o

grande publico de Paris, sempre avido em assistir espetaculos sensacionais. Nestes

momentos, Amoros brindava-se com uma ocasiao singular de abrilhantamento pes-

soal. No decorrer de sua "aula" (ou seria de seu "espetaculo"?), chegava a arrancar

aplausos de uma plateia desprovida de conhecimentos para julgar seu conteudo, mas

sempre disposta a prestar homenagens a quem (o artista?) soubera criar exercicios

e evoluoSes deveras emocionantes20.

Percebe-se neste episodic a tentativa de valorizagao do espetaculo institucional,

por seu lado, carregado de insignias militares e que se afirmava pela sua propria nega-

gao. As palavras que seguem, pronunciadas pelo coronel Amoros, sao singulares:

O Ginasio Normal nunca foi e nao pode tornar-se um espetaculo, jaque tenho a honra de dirigi-lo, ja que todos os meus alunos nao fazem asbelas coisas que eles realizam para divertir espectadores mas somente parase disporem a serem uteis ao Estado21.

Nestas palavras, percebe-se que o corpo, no "espetaculo institucionalizado",

deve apresentar e afirmar aooes previsfveis, controladas, e que demonstrem o seu

util aproveitamento na vida cotidiana. Ha aqui uma nitida demonstragao da busca de

identidade da ginastica cientifica com a ordem estabelecida.Assim, a retorica da negagao do circo nos escritos sobre a ginastica cientffica no

seculo XIX foi-se ampliando. Acentuou-se, por exemplo, o temor ao imprevisivelque o circo, aparentemente, apresentava. Seus artistas de arena, em suspensoes e

gestos impossiveis e antinaturais; a mutagao constante de seus corpos transformou-

se numa ameaga ao mundo de fixidez que se desejou criar.Afirmava-se, por exemplo, que, enquanto na-ginastica se aprendia a adquirir

forgas, armazenar e economizar energias humanas, no circo os artistas faziam o uso

desmedido de suas forgas e gastavam inutilmente as energias. Contraditoriamente,

porem, e nas atividades'circenses que a ginastica tem um de seus mais solidos eixos.Portanto, a retorica da negagao do circo nos escritos sobre a ginastica no seculo XIX

parece repousar em aguas mais profundas. E que o circo, os espetaculos de ruas e

20. Cf. Del Pozo, 1986. p. 294.21 . Amoros, 1838, pp. 262-263. Cf. Andrieu (1988, p. I 19), a obra de Amoros foi

publicada pela primeira vez em 1820 e reeditada em 1838 e 1848. Utilize, neste trabalho, aedi$ao de 1838, que pode ser encontrada, para consulta, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

EPUCACAO NO CORPO 27

feiras traziam consigo, marcadamente, uma compreensao do corpo enraizada na

fertil cultura comica e popular da Idade Media e do Renascimento. Esta cultura revela

um certo tipo de imagens e, mais amplamente, uma concepgao estetica da vida pra-

tica, a qual Bakhtin chamou de realismo grotesco22.

No realismo grotesco,

[...] o corpo e a vida corporal adquirem simultaneamente um caratercosmico e universal; nao se trata do corpo e da fisiologia no sentido res-trito e determinado que se tem em nossa epoca; [...] O porta-voz doprinciple material e corporal nao e aqui o ser biologico isolado nem oegoista individuo burgues, mas o povo, um povo que na sua evolugaocresce e se renova constantemente [...] As manifestacpes da vida mate-rial e corporal nao sao atribuidas a um ser biologico isolado ou a um indi-viduo "economico" particular e egoista, mas a uma especie de corpopopular, coletivo generico [...] A abundancia e a universalidade determi-nam, por sua vez, o carater alegre e festivo (nao cotidiano) das imagensreferentes a vida material e corporal23.

Nestas imagens, o corpo aparece fundido com todo o universe material que o

circunda e com todos os corpos que se aproximam. Nelas sao tambem evidencia-

dos todos os signos de abundancia e de fecundidade, que, interpenetrando-se, for-mam algo que se mostra sempre inacabado. O corpo, assim, exibe um estado per-

manente de gestagao e de parto, de campo a serfecundado. Outra caracteristicabasica destas imagens e o constante estado de mutagao, de rompimento com toda

22. Cf. Bakhtin (1987, pp. 18 e ss.), "no realismo grotesco [...] o 'alto' e o 'baixo' possuemai um sentido absolute e rigorosamente topografico. O 'alto' e o ceu, o 'baixo' e a terra, a terra eo principle de absorc.ao (o tumulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreigao (oseio materno). Este e o valor topografico do alto e do baixo no seu aspecto c6smico. No seuaspecto corpora/, que nao esta nunca separado com rigor do seu aspecto cosmico, o alto e repre-sentado pelo rosto (a cabe$a) e o baixo pelos orgaos genitais, o ventre e o traseiro. O realismoirotesco e a parodia medieval baseiam-se nessas significances absolutas". Cito ainda uma definigaodo grotesco, trazida por Bakhtin da obra de L. Pinski, O realismo na epoca renascentista: "No gro-tesco, a vida passa por todos os estagios, desde os inferiores inertes e primitivos ate os superioresrnais moveis e espiritualizados, numa guirlanda de formas diversas porem unitarias. Ao aproximar° que esta distante, ao unir as coisas que se excluem entre si e ao violar as noc,6es habituais, ogrotesco artistico se assemelha ao paradoxo logico. A primeira vista, o grotesco aparece apenascorno engenhoso e divertido, mas, na realidade, possui grandes possibilidades".

23. Bakhtin, 1987, p. 17. Ainda cf. Bakhtin (1987, p. 23), "uma das tendencias'undamentais da imagem grotesca do corpo consiste em exibir dois corpos em um: um que daa vida e desaparece e outro que e concebido, produzido e lanc,ado ao mundo [...] Do primeirose desprende sempre, de uma forma ou de outra, um corpo novo".

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28 IMAGENS PA EPUCACAO NO CORFO

superficie que se mostra plana. Desta mutagao constante surgem, entao, corposcujas partes ganham formas de animals ou de objetos e nos quais narizes e bocas semultiplicam como orificios que vao permitir a penetragao do mundo neste corpo.Do mesmo modo, ganha significacao tudo aquilo que cresce, que muda a forma que

possui. Sao falos colossais e inumeras protuberancias que se afirmam como aquiloque esta sempre prestes a sair para o mundo e nele penetrar. O corpo grotesco vivea plena comunicagao com o universe e com os outros corpos (Figura 4).

Mas imagens grotescas, ha uma inversao topografica do corpo. Neste corpo,

os orgaos genitais, as excrecoes e tudo o que e "baixo" possui um profundo sentido

ambivalente, regenerador. O pensamento da elite, sobretudo o religiose, desconside-rava a "topografia baixa". Ela representava os infernos, as tentagoes, a sujeira, o quedevia ser contido, escondido. Valorizava o "alto", onde se localiza a cabeca, o coman-do deste corpo. Valorizava as permanencias e condenava a mutabilidade, as iriver-soes. Este pensamento desejava afirmar um outro corpo: solitario, fechado, limpo ecompletamente acabado. Neste novo corpo, nao devia aparecer nada que represen-tasse crescimento ou que pudesse sugerir inacabamento ou traces de imperfeigao.

Contudo, onde sobrevive o grotesco, sobrevive um tipo determinado deousadia, de invengao, de associacao e aproximacao de elementos heterogeneos

e distantes.O circo e outras formas de exibicoes de rua carregavam, ainda, a heranca de um

universe grotesco. Acentuavam, desse modo, "a repulsa misturada de fascinio que asculturas do Ocidente, a partir da Renascenca, tern experimentado pelo anomalo"24.

As exibicoes de rua, os circos, libertavam o espontaneo que fora aprisionadopelo saber cientifico, faziam renascer formas esquecidas da inteireza humana. Exibiamo que se desejava ocultar e despertavam imagens adormecidas no coragao dos ho-

mens. Eram dissonantes a sociedade que se afirmava no seculo XIX.

Descortinava-se, assim, a luta ardua travada por uma burguesia que desejavatodo o poder contra este "outro", que nao e seu espelho e insiste em aparecer, emconfrontar seus postulados de transparencia, de ordem, de limpeza, de fixidez.

Para veneer este "outro", eram necessarias transformagoes profundas nos

animos, vontades e costumes dos individuos. Era necessario ''criar um homemnovo em sua aparencia, linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de umespago remodelados, atraves de uma pedagogia do signo e do gesto que prece-de do exterior para o interior"25.

EDUCACAO NO CORPO 20

Compondo esta "pedagogia do signo e do gesto", a-ginastica ganha espago eafirma-se como forma especifica de treihamento do corpo e da vontade deste ho-mem novo que se desejou criar ao longo de todo o seculo XIX.

Como modelo tecnico de treinamento do corpo, esta atividade humana ex-

pressou, na primeira metade do seculo XIX, a visao da mecanica predominante,entao, nos meios cientificos. O corpo devia ser moldado, inclusive, pelo uso de ti-

pos especiais de aparelhos que se destinavam a corrigir e melhorar posturas consi-deradas inadequadas do ponto de vista medico, ortopedico e estetico.

De um modo geral, disseminava-se a ideia de modelagem do corpo. As maes

burguesas, por exemplo, desejavam "consertar" os corpos de suas filhas que nao seenquadravam no padrao estetico em voga. Assim, conforme observa A. Corbin, "im-

poem terriveis aparelhos a suas filhas um tanto defeituosas; atraves do uso da cruzde ferro que mantem o dorso rigido, pretende-se aumentar os 'dotes esteticos' dassenhoritas casadouras"26.

Ja na segunda metade do seculo XIX predomina nos estudos do corpo o cha-

mado modelo energetico proposto pela termodinamica. Este modelo aparece como

um sistema de forgas e em seguida como um motor, em que os objetivos sao maisrequintados. O que se destaca, entao, e o adestramento do corpo, uma agao queespecializa a modelagem.

O instrumental mais adequado para esta agao foi a ginastica, uma atividade quenao estava mais restrita aos meios rriilitares, ja havia atingido tambem a vida civil, conr

ferindo aos corpos a sua maxima potencia.»Nesta segunda metade do seculo XIX, a ginastica francesa fora totalmente re-

novada e redesenhada a partir de um requintado conjunto de trabalhos cientificos.Ela se preparava, desse modo, para atender as finalidades estabelecidas por uma so-ciedade que preconizava uma retidao de posturas e habitos de vida considerados"saudaveis".(vicios posturais e doengas pulmonares deviam ser combatidos com

series especificas de exercicios fisicos, desenvolvidos pela ginastica cientifica) Ate asmulheres comegaram a receber um tratamento especial e, assim, alertadas, de for-ma contundente, a abandonarem todos os artiffcios da moda como espartilhos, porta-seios, saltos altos, pegas que formavam uma couraga e impediam o desenvolvimen-to corporal harmonioso da "futura mae". E neste periodo tambem que foram inicia-das, de forma mais sistematica, pesquisas que resultaram em propostas de exerci-cios fisicos e praticas corporals especificas as mulheres.

24. Bosi, s.d., p. 1 9 1 .25. Perrot, 1991, vol. 4. p. 17. 26. Corbin, 1991, vol. 4, p. 608.

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M

LMAGENS DAEDUCACAO NO CORPO

males que afligiam uma sociedade ainda perplexa com suas proprias criao5es_e_as-

sombrad.a-coirj_os rumps do seu destino. _.

Fig. 28 - Aparelhos de Ortopedia, 1868.

Fig. 29 - Aparelho Zander para extensao dacoluna vertebral e para respiragao provocada.

Fig. 30 - Aparelho Zander A3 e A 5/6 para aextensao e aflexao de bragos e a abdugao.

BibliotecaSetofial-Ct,°:-u4

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C A P I T U L O T R E S

O CORPO MOLDADO

A LIMPEZA E A UTILIDADE

/I s primeiras decadas do seculo XIX, a ginastica francesa ja surgia pau-_Z. JL tada por proposiooes baseadas na ciencia e voltadas a vida civil, mui-to embora um forte espirito militar ainda a percorresse de forma marcante.

Neste periodo, a ginastica francesa esteve ligada a uma personagememblematica e, de certo modo, contraditoria: o coronel espanhol FranciscoAmoros y Odeano, Marques de Sotelo, deportado para a Franga peio apoio quedeu ao exercito de Napoleao I na invasao espanhola.

A cidade de Paris e onde Amoros passa a viver desde o ano de 1814. Estacidade apresentava-se de modo assustador com sua aglomerac,ao de casas, pes-soas, inteligencias. Parece que nas ruas desta cidade sobravam sempre os ras-tros de grandes homens do mundo das artes e da ciencia. Nos corpos que tran-sitavam nos bulevares alojavam-se desejos, segredos e misterios. Escondidosou mostrados, os sentimentos de identidade ou de repulsa ao Estado animavamestes seres urbanos.

Amoros se mostrou plenamente identificado com a Franga que restauraraa Monarquia e, de certo modo, impusera claros limites aos objetivos e valoresda Revolugao de 1789. Esta escolha politica tornou-o merecedor de apoiooficial do governo frances, um apoio que, de alguma maneira, teve desdobra-mentos que acabaram por definir os rumos iniciais da ginastica cientifica fran-cesa.

Foi, portanto, a partir deste apoio oficial recebido que Amoros pode imprimiruma forma mais definida aos estudos sobre a ginastica que fizera desde fins doseculo XVIII, em Madrid. Nesta cidade, enquanto comandava um regimento, fez

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34 TMAOENS PA EPUCACAO NO CORPO

de seus recrutas alunos de ginastica, aplicando ali todos os conhecimentos cienti-

ficos e tecnicos que reunia sobre o assunto1.

Para desenvolver e aplicar seu trabalho ginastico, Amoros inspirou-se nas ideias

pedagogicas do suico Jean Henri Pestalozzi (1746-1827), que acentuava a necessi-

dade do exercicio flsico na educacao das criancas como um meio de formagao nao

somente fisica, mas tambem estetica e sensorial2.

A solidez demonstrada por Amoros ao longo de 13 anos sensibiliza o rei de Espanha,

Carlos IV (Figura 5), que no ano de 1806 Ihe entrega a soma de 1.000.000 francos para

a montagem e instalacao de um Ginasio no Real Institute Pestalozziano, instituigao que

formava engenheiros e oficiais. Aquele ginasio foi entao provide de todos os aparelhos

e instrumentos que Amoros inventara e recriara em sua carreira militar3 (Figuras 6 e 7).

Para aquele ginasio, seguindo o exemplo do infante don Francisco de Paula, filho do

rei Carlos IV e de quem Amoros era preceptor, vao tambem os filhos da aristocracia

madrilenha, e o espago converte-se, rapidamente, no centra oficial da pritica ginastica4.

E no ginasio madrilenho que, com base nos principles pedagogicos pestalozzianos,

Amoros dedicou-se entao a criar series sistematizadas de exercfcios ffsicos, jogos e

dangas, valendo-se sempre da musica e do canto para cadenciar aquelas atividades. A

utilizagao constante da musica e do canto permitiram-lhe antever, ainda muito jovem,

o papel determinante do ritmo na organizagao e condugao dos movimentos5.

loda esta base de conhecimentos desenvolvida e aplicada por Amoros em Madrid,recebeu impulso na Franga, pais que efetivamente ampliou e divulgou sua obra, tanto

na forma de publicagoes como na criagao de ginasios para a pratica da ginastica.

Amoros foi, de certo modo, seduzindo as autoridades parisienses com suas ideias

sobre a ginastica, as quais, expostas com requinte de detalhes demonstravam, inclusi-ve, possibilidades de ampliar sua aplicagao ao meio civil e ate mesmo escolar, algo pouco

discutido na epoca6.

1. A este respeito, consultar Keys, 1961, pp. 7-18, especialmente. Philippe, 1930, vol. I,pp. 7-60.

2. Ver especialmente Pestalozzi (1936).3. Cf. Del Pozo (1986, p. 290), o ano de criagao do ginasio de Amoros em Madrid e

1806, data que confirma ser aquele, um dos primeiros ginasios criados no mundo. Cabe aindaregistrar que Amoros foi o diretor do teal Institute Pestalozziano de Madrid ate o ano de 1808.

4. Cf. Carretero, 1988, p. 71, Amoros relata este fato em seu Nouveau manuel d'educationphysique, gymnastique et morale, 1838, p. I I I .

5". Cf. Philippe, I 930, vol. I, p. 8.6. Amoros e nomeado, em 1815, "Mariscal de campo para los refuerzos", e declarado

membra da "sociedad para la Ensefianza en Paris" e, em 1816, e naturalizado frances; cf. Andrieu,1988, p. I 19. Quanta a instituicao escolar, cabe esclarecer que Amoros nao criou o seu sistema deginastica para aquela instituicao-, muito embora os interessados pela educacao escolar, e entre eleso praprio Amoros, encontrem principios gerais para o ensino da ginastica na escola em sua obra.

£

Fig. 3 I - Fachada do Ginasio Normal Militar criado e dirigido pelo Cel. Amoros.

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i F.D1 ICACAO NO CORPO

Alem de sua capacidade de argumentagao, haviatambem a construgao dosginasios, que, de fato, acumulavam toda a sua experiencia vivida na Espanha. Decerto modo, foram os ginasios que nao so concretizaram suas ideias, mas tam-

bem alargaram a confianga das autoridades em seu trabalho7.A ginastica parece ter sido uma ponte que permitiu Amoros transitar da aris-

tocracia espanhola para a aristocracia francesa. Um de seus ginasios, por exem-plo, foi construido por ordem do rei da Franca, Luis XVIII, em um terreno -antigo Parque de Artilharia de Crenelle. Este ginasio civil e militarfoi concluido

em I 820 e Amoros nomeado seu diretor civil e militar8.Entre as atividades que la ocorriam, destacam-se grandes festas civicas, rea-

lizadas anualmente, nas quais eram conferidos premios aos alunos de Amorosque houvessem realizado um ato de virtude e bondade por um meio ginasticocomo, por exemplo, o salvamento de alguem que se esta afogando, o que exige

o ato de nadar9.Esta instituigao, desde sua inauguragao, foi transformada em "palco" onde

ocorriam verdadeiros "espetaculos" de demonstragao de forga fisica e destre-zas, portanto, em espago oficial de divulgagao de um modelo de treinamento docorpo e da vontade: o lugar onde se aprende a fazer o correto uso das forces

fisicas e morals.De um modo geral, os inumeros ginasios amorosianos construidos na Fran-

ga constituiram-se em verdadeiros santuarios onde se treinava, de modo siste-matico, um outro modo de ser. Deles sairiam os homens e mulheres fortes,

vigorosos e bons.Ali treinavam-se as agoes corporals que, determinadas pela utilidade e pre-

cisao, deviam estar muito proximas da vida real. Para demonstrar esta proximi-dade, Amoros desenvolveu um tipo de trabalho no qual seus alunos, a cada mes,praticavam as acpes corporais, laaprendidas, em bosques, rios, cachoeiras e ter-renos bem acidentados. Com este tipo de trabalho, buscava estabelecer, de for-

7 Cf Philippe (1930, vol. I, pp. 8-9), o primeiro ginasio amorosiano foi instaladoentre os anos de 18 16 e 1817, na Llnstitucion Durdan, localizado ao lado do Jardin des Plan-tes, pr6ximo ao antigo Gymnase de J. Verdier, n. 9 da Rue Daubenton, entao chamada Rued'Orleans. Ver ainda Spivak, I988a, p. 140.

8. Cf. Andrieu, 1988, p. 120.9. Amoros, 1838. Cabe ressaltar que todo o capftulo 10 desta obra e dedicado as reflexoes

e propostas em torno de acoes de beneficencia e exercicios ginasticos adequados a estas acoes,em que a coragem e fundamental, conforme pode-se observar na afirmacao de Amoros queabre este capitulo: "nos podemos aprender a fazer o bem como o mal e a coragem se aprendetal qual se aprende a virtude; pois nada daquilo que honra verdadeiramente o homem nao Ihevem sem aprendizagem e esforcps" (AMOROS, 1838, p. 453).

O CORPO MOLDAPO 37

ma muito precisa, a relagao dos exercfcios praticados com sua utilizagao na vidacotidiana. Desse modo, Amoros acreditava estar descartando, definitivamente,a ideia que associava a ginastica a frivolidade e ao entretenimento. Isto porquedesejava, tambem, deixar claro que o grande objetivo de seu trabalho era a edu-cagao moral. A ginastica era apenas o meio mais adequado para realiza-la. E edu-car era, sobretudo, criar normas de conduta que fossem individualmente

interiorizadas para serem socialmente mais eficazes. A criacao de uma segundanatureza a partir da norma deveria ser de tal forma internalizada que tornar-se-iaa propria natureza.

Assim, era necessario ir alem das condutas impostas a partir da submissaoa norma geral. Os efeitos plenos da norma seriam atingidos quando, alem daimposicao social, o proprio indivfduo passasse a se empenhar para tornar-se seuproprioamo10.

A ginastica pensada por Amoros insere-se no conjunto das normas de con-duta moral e de pedagogias que se elaboram para formar ou reformar o corpo,regulando corretamente suas manifestagoes e educando a vontade. E o corpoque objetiva a agio educativa e moral por excelencia "[...] os gestos sao signose podem organizar-se em uma linguagem; expoem a interpretagao e permitemum reconhecimento moral, psicologico e social da pessoa"1 '.

Amoros vislumbrou uma educagao integral baseando-a, sobretudo, no exer-cicio ffsico. Havia em sua obra uma clara percepgao das relagoes existentes en-tre o ffsico e o moral e entre normalidade fisica e moral. Ele antecipou em algu-mas decadas enunciados classicos pronunciados no fim do seculo XIX pelosociologo E. Durkheim12, para quern educar era moralizar.

A importancia atribuida ao seu trabalho na Franga deve-se, sobretudo, aocarater cientifico que buscou para justificar a necessidade da ginastica destinada,com especificidade, aos militares e aos civis.

As pretensoes de Amoros em relagao ao alcance de sua obra sao encon-tradas de forma sintetica em sua definigao de ginastica como

[...] a ciencia fundamentada de nossos movimentos, de suas relagoes com

nossos sentidos, nossa inteligencia, nossos sentimentos, nossos costumes,

e o desenvolvimento de todas as nossas faculdades. A ginastica abarca a

pratica de todos os exercicios que tendem a tornar o homem mais cora-

10. Revel, 1991 , vol. 3, p. 172.I I • Idem, ibidem.12. De Durkheim, ver especialmente As regras do mgtodo sodologico.

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joso, mais intrepido, mais inteligente, mais sensivel, mais forte, mais astu-to, mais desembaracado, mais veloz, mais flexivel e mais agil e que nosdispoem a resistir a todas as intemperies das estacoes, a todas as varia-coes climaticas; a suportar todas as privacoes e contrariedades da vida; aveneer todas as dificuldades; a triunfar sobre todos os perigos e todos osobstaculos; a prestar, enfim, servigos de destaque ao Estado e a humani-dade. A beneficencia e a utilidade publica sao o objetivo principal da gi-nastica; a pratica de todas as virtudes sociais, de todos os sacrificios, osmais dificeis e os mais generosos sao seus meios; e a saude, o prolonga-mento da vida, o aprimoramento da especie humana, o aumento da for-ga e da riqueza individual e publica sao seus resultados positives'3.

A abrangencia de aspectos que formam o individuo e buscada por Amorosnesta compreensao de ginastica. Emerge all a preocupacao de torna-la ciencia e

explicitam-se seus fundamentos nafisica e na biologia.Asintoniacom enunciados pestalozzianos14 tambem ganha relevo quando

aponta as relacoes existentes entre movimentos corporals, inteligencia, senti-dos e sentimentos. Finalmente, o seu desejo de aumentar a forga e a riquezaindividual e publica atesta suas preocupacpes com o bem comum e com a or-dem estabelecida. Pretende, sobretudo, desenvolver o carater, objetivando, pelaginastica, educar o individuo para servir ao Estado em qualquer situagao.

Merece destaque nesta analise, ainda, a ideia muito presente na sociedade

oitocentista de "dominar" a natureza e de "molda-la" ao seu proprio modo. Aginastica esteve fortemente vinculada a esta ideia, sobretudo no que diz respeitoas questoes ortopedicas e aos aparelhos, tao presentes na obra de Amoros'5.

Seus estudos sobre a "analise mecanica do movimento", por exemplo, per-mitiram importantes conclusoesf as quais direcionaram, de certo modo, a cria-53.0 de aparelhos de ginastica que vieram auxiliar na melhoria da postura dos in-

dividuos, bem como dos movimentos corporals em geral.

• ,<nat ->M\ 'T 1 esta definicao foi elaborada13. Amoros, 1838, p. I . Cf. Del Pozo (1986, p. ̂ ^S^ que pronunciou em

por Amoros dez anos antes da publicaSao de seu hvro d rante o^d.sc q P^ ̂ ̂ ̂

,820 ao inaugurar o curso de educacao fis-ca na ̂ Wj1^ grandes fll6sofos da an-meiros a chamar CIENCIA a ginastca, segu.ndo o,exe^nnplo de ag g ^ .tiguidade. Ate entao, a palavra ARTE apareaa como a ma,s aoequ

e renascentista". d . 191 e ss.

It. fobr.0 r q r n

Gymnastique et Morale, 1838.

O CORPO MOLDADO 30

Assim, e possfvel afirmar que Amoros eliminou duvidas, ambiguidades, ecriou um campo de certezas, sendo sua obra a expressao de uma solida estru-tura cientifica, tecnica e filosofica. A citacao a seguir, constitufda de 17 itens, apre-senta de modo sintetico aquilo que Amoros considerava essencial em sua obra,cuja reuniao forma o que chamou de "ciencia da ginastica geral":

" 1° - Exercfcios elementares ou movimentos graduados das extremidades su-periores e inferiores, acompanhados de diferentes ritmos, para dar regulari-dade e conjunto aos movimentos, e cantos para desenvolver a voz, aumentara resistencia a fadiga e dar um direcionamento moral ao metodo.2° - Andar e correr sobre terrenes faceis ou dificeis, e permeados de obstacu-los; deslizar e patinar para se acostumar a percursos longos e fatigantes ou apercursos curtos e perigosos, a fim de alcangar o inimigo que foge, de inter-romper sua retirada, de substituir a cavalaria, de conquistar um terreno eleva-do, de surpreender um posto e decidir a vitoria.3° - Saltar em profundidade, extensao e altura, em todas as direcoes, parafrente, para tras, de lado, com ou sem armas, com a ajuda de um bastao ou deuma vara, de um fuzil ou de uma langa.4° - A arte dos equilibrios e a passagem sobre piquetes, traves fixas, moveishorizontais ou inclinados, a cavalo, em pe, para frente ou para tras, por cimae por baixo, para habituar-se a passar sobre riachos ou precipicios, com a aju-da de um tronco de arvore, de uma vara ou de uma ponte estreita sem gradede protecao.5° - Transpor barreiras, muros, valas, barrancos ou torrentes, sem ser detidopor nenhum obstaculo, com o auxilio de um instrumento ou sem nenhum re-curso, carregando um fardo, um doente, uma crianga ou sem levar nada.6° - Lutar de varias maneiras, para desenvolver a forca muscular, a agilidadedo corpo, a resistencia a fadiga, e triunfar sobre seu adversario nos combatesindividuals, arrancar-lhe uma bandeira, mesmo sendo ele duplamente forte,ou faze-lo prisioneiro. Essas lutas ocorrem com ou sem instrumentos.7° - Subir com o auxilio de escadas de madeira, em pe ou tombadas, fixas oumoveis, pela frente ou por tras, so com os pes, sem servir-se das maos, oucom as maos sem servir-se dos pes, carregado ou nao; subir ate o alto de ummuro com ou sem instrumentos, ao topo de um mastro ou de uma vara detodas as grossuras possiveis, da mesma forma que ao longo de uma corda comnos ou lisa, fixa ou movel, diagonal ou inclinada, esticada ou frouxa, e tambempor escadas de corda, pela de Bois-Rose ou pela escada amorosiana de inven-cao recente, e descer ou deixar-se deslizar de todas as maneiras possiveis,servindo-se dos objetos que encontrar.8° - Atravessar um espago qualquer, sobre um riacho ou um precipicio, ou deuma construcao a outro ponto, mantendo-se suspense pelos bracos, maos e

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40 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORFO

pes ou somente pelas maos, com o auxflio de uma trave, de uma vara, de uma

barra de ferro ou de uma corda esticada ou frouxa.

9° - Nadar nu ou vestido, com ou sem fardos, e, sobretudo, com armas de

fogo; mergulhar e manter-se por bastante tempo sob a. agua; fazer uso, com

destreza, de todo tipo de escafandros e de maquinas para merguiho, e apren-

der a retirar uma pessoa da agua sem ser arrastado por ela.

10° - Carregar, estando parado ou em movimento, com destreza e seguranca,

corpos incomodos e pesados, por vezes homens ou criancas, para salva-los de

um perigo, retira-los de um campo de batalha, ou forga-los a se render, puxar

para si, levantar, arrastar e empurrar pesos ou massas consideraveis, para apli-

car todos esses procedimentos a um grande niimero de situacpes de guerra

ou de interesse publico.

I I ° - A esferistica antiga e moderna, atletica e militar, em todas as suas moda-

lidades; bolas de diferentes pesos e tamanhos, e a arte de langar, com a mao,

setas, dardos, lancas, pedras e todo tipo de projeteis de guerra, e de atingir

um alvo.I 2° - O tiro ao alvo e a objetos em movimento com bestas, arcos, fuzis,

mosquetas, bacamartes, pistolas.

I 3° - A esgrima a pe ou a cavalo, e o manejo de todo tipo de armas brancas

tais como espadas, sabres, baionetas, facas de caga, espadoes, machados de

combate e de sapador, tenazes e alavancas.

14° - Aequitacao e o volteio sobre cavalos de madeira, primeiramente, e sobre

cavalos vivos, em seguida, para acostumar os infantes a montar agilmente na

garupa de um cavalo, mesmo que ele esteja em movimento, a atravessar assim

riachos, e a serem transportados pela cavalaria, para se apossar do cavalo pela

garganta ou de qualquer outro ponto de um so golpe. Os cavaleiros aprende-

rao tambem a montar e desmontar rapidamente, a pegar um objeto caido no

chao, sem deixar o cavalo, e varies outros exercicios ginasticos indispensaveis

para homens que, ficando as vezes a pe, sao obrigados a saber transpor um

obstaculo, carregar fardos, correr, escalar, etc...

I 5° - As dancas pirricas ou militares, e as dancas de sociedade mais ou menos'

desenvolvidas, de acordo com as aplicacoes que o aluno devera dar a elas. A

dan fa cenica ou teatral pertence ao funanbulismo e nao pode entrar no nosso

projeto.I 6° - Para os alunos civis e os alunos militares que se destinam a ser diretores

e professores, sao dadas ligoes de canto e de expressao musical, mais elabo-

radas; e mostrada a eles a influencia da musica sobre o aperfeicoamento moral

do homem, as modificacoes salutares e vantajosas que ela pode fornecer aos

costumes, ao carater e a educagao; a energia que ela pode inspirar, os no-

bres sentimentos e as paixoes louvaveis de que ela pode serfonte. Sao dadas

tambem ligoes de fisiologia, a fim de que eles aprendam a tomar consciencia

O CORPO MOLDADO 41

de seus movimentos e suas funcoes; a conhecer o carater, o temperamento

e as capacidades de seus alunos, a utilizar os meios mais convenientes para a

obtengao dos resultados desejados. Recebem ligoes de tecnologia ginastica

para a construcao de maquinas, instrumentos convenientes as diversas cir-

cunstancias.

17° - Alem desses exercicios ginasticos gerais e especiais, esse metodo em-

prega outros que tendem a melhorar a resistencia a fadiga, a trabalhos peno-

sos e as intemperies das estagoes, ou que servem para aumentar a destreza e

tornar os alunos habeis. A arte de modelar com todo tipo de materials perten-

ce a este grupo; pois nada amplia tanto os recursos do espfrito e da invengao

quanto o habito de imitar os objetos e de dar formas a materia. Mas, nesse

caso, sao modificadas as aplicagoes desses principles e desses trabalhos, de

acordo com a profissao especial que cada aluno deva seguir"16.

Tem-se aqui, portanto, um atestado da sintonia de Amoros com uma so-

ciedade que, cada vez mais, valorizava praticas que estivessem respaldadas pela

ciencia e pela tecnica. Praticas que pudessem responder aos desafios da nature-

za, aos desafios criados pelos homens e, sobretudo, resultassem em agoes uteis

a sociedade.

Parece que Amoros conseguiu demonstrar uma relagao direta que poderia

existir entre "sua" ginastica e a saCJde dos indivfduos, bem como a tao ansiada

utilidade das ao5es humanas. E tudo baseado em extensa argumentagao cientifi-

ca em que aparecem em relevo as nocoes de anatomia, fisiologia17 e mecanica

do movimento, acrescidas da musica, do canto e da filosofia.

Em suas propostas de ginastica havia a preocupagao constante de descartar

qualquer empiria, razao que o levava a demonstragoes sistematicas de enuncia-

dos cientfficos para explicar os exercicios fisicos.

Os registros que fez Amoros sobre os exercicios fisicos ao longo de sua

vida atestam uma sintonia com os conhecimentos cientfficos mais atualizados do

tempo em que viveu. Seus estudos sobre a mecanica do movimento permitem

afirma-lo como um precursor da ciencia da analise e mecanismo do movimento

16. Amoros, 1838, pp. V-X (grifos meus).17. Amoros empreendeu estudos detalhados sobre a composicao corporal, os diferentes

orgaos e suas funcoes, os tecidos e os aparelhos. Detem-se largamente no estudo do aparelholocomotor e de todo o esqueleto humano, fazendo descricoes de todos os ossos, o quedemonstra a importancia que passava a ter, naquele momento, a osteologia. Seus estudoss°bre os ligamentos, as articulacoes e a independencia de cada uma na realizacao dos^ovimentos atestam seus conhecimentos de sindesmologia, completado pela miologia, quehe permite fazer descricoes precisas e detalhadas de todos os musculos conhecidos.

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42 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

que seria, na segunda metade do seculo XIX, desenvolvida na Franga pelofisiologista E. J. Marey e seu discipulo G. Demeny.

Em relagao a estudos sobre o equilibrio estatico e dinamico do ser huma-no, Amoros conseguiu estabelecer importantes principios, baseado em conhe-cimentos sobre as leis gerais da mecanica. Seus trabalhos destacavam a impor-tancia destas leis para a compreensao do papel do centra de gravidade na obten-gao do equilibrio e execugao de exercfcios, conforme pode ser constatado nacitagao a seguir.

[...] o centre de gravidade, considerado a partir das regras da mecanica

geral, e o ponto situado no interior de um corpo, em torno do qual todos

os outros pontos desse corpo se encontram em equilibrio. O conheci-

mento das leis do equilibrio e a pratica dessas mesmas leis sao necessa-

rios ao homem. Ele nao pode executar nenhum movimento sem que faga

aplicagao delas; e sua vida, assim como a de seus semelhantes, depende,

em varias circunstancias, da precisao e exatidao com que essas aplica-

goes ocorrem. O equilibrio pode ser encarado como a equidade de nossos

movimentos; esta para eles, assim como a justiga esta para a moralidade

de nossas agoes18.

De estudos precisos e detalhados teoricamente sobre as leis da mecanica,Amoros parte para as possfveis aplicagoes ao homem em agoes, como, por exem-plo, a marcha e a corrida. Em relagao a primeira, seus estudos apontam desde amecanica mais elementar relativa aos deslocamentos constantes do centre de gravi-dade, ate sua aplicagao com fins terapeuticos, o que Ihe valeu a aprovagao dos me-dicos, que, por seu lado, passaram tambem a divulgar aquela pratica.

As marchas foram largamente tratadas na obra de Amoros. Ele as classificavacomo um exercfcio de facil aplicagao que podia ser executado em diferentes terre-nos, condigao que as tornava mais ou menos complexas do ponto de vista do es- .forgo para realiza-las. Desse modo, entao, as marchas poderiam ser aplicadas tanto

a um coletivo, como, por exemplo, os militares, quanta a individuos isoladamente,ou seja, a populagao civil.

Amoros tomou as diferentes formas de deslocamento no espago como pos-sibilidades de treinamentofisico. Aos estudos detalhados que empreendeu sobrea marcha, acrescentou outros acerca da corrida, neles destacando as singularida-

18. Amoros, 1838, p. 173. Todo o capitulo 2 desta obra 6 dedicado ao estudo das leisda mecanica e sua relagao com o corpo humano.

Fig. 32 - Ginastica elementar de Amoros: Marchas e Corridas.

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44 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

des de uma e outra. Algumas de suas conclusoes em torno dos principals aspec-

tos que estruturam os atos de corner e marchar estao registradas a seguir.

A corrida difere da marcha na medida em que o centre de gravidade per-manece, a cada passo, um pequeno instante no ar, em meio ao salto que fa-zemos alternadamente sobre cada perna, enquanto na marcha, um dos pesso deixa o solo ou a base de sustentacao quando aquele que fez o movimentoja estiver bem estabelecido sobre o novo ponto de apoio. Dessa forma, acorrida e um movimento de progressao irregular, que se da atraves de umasequencia de saltos executados alternadamente por uma perna que da umgolpe no solo, enquanto a outra muda de lugar, para colocar-se a frente ouatras, de acordo com a direcao da corrida. Deve-se cair sobre a ponta dospes, apoiar o minimo possivel o calcaneo ou o calcanhar no solo, multiplicarbastante os movimentos, realiza-los com uma extensao proporcional a daspernas de cada corredor, para evitar deslocamentos bem como a fadiga queo corpo sofre quando as passadas sao grandes demais. Esses movimentos vio-lentos diminuem tambem a velocidade da corrida, e sao feios e ridicules".

No conjunto das observagoes tecnicas e possfvel encontrar a preocupagao de

Amoros com a beleza. Nao bastava o carater de eficiencia numa corrida, era tam-

bem necessaria a existencia da beleza, que seria conseguida pela harmonia dos mo-

vimentos e pelo seu ritmo constante.

Independentemente da classificagao das corridas, que se dava de acordo com

as distancias percorridas, a velocidade imprimida e a qualidade do terreno onde secorria, a harmonia e o ritmo deviam estar sempre presentes, pois eram os elemen-

tos determinantes da beleza nas corridas20.

Amoros recorria, tambem, a autores da antiguidade, sobretudo aos gregos,

para falar sobre as corridas e imprimir-lhes um carater heroico. Assim, por exem-plo, citava Homero, para quem nao podia haver jamais "maior gloria para um ho-

mem do que aquela de brilhar nos combates da corrida"21.

A recorrencia constante a enunciados cientificos e filosoficos o respaldava dian-te da sociedade francesa e, de certo modo, autorizava a abrangencia, por ele dese-

19. Amoros, 1838, p. 256.20. E possivel aqui fazer uma relacao com o moderno atletismo. Encontramos entre suas

provas as corridas, classificadas em corridas de velocidade, fundo, meio fundo, com barreiras,com obstaculos e de revezamento, de acordo com distancias percorridas e velocidades.Encontram-se ainda as provas de saltos, classificados em salto em extensao, em altura, triple ecom vara e, por fim, os lancamentos de disco e dardo e o arremesso do peso e do martelo.

21. Homero apud Reys, 1961, pp. 90-91.

O CORPO MOLDADO 45

jada, de seu trabalho. Assim, ao universe datecnica, da precisao e da beleza, agrega-

va-se aquele de carater moral e as corridas, dessaforma, transformavam-se em ins-

trumento de "educagao moral" dos alunos.

Para a aplicagao das corridas, por exemplo, Amoros envolvia um grande nume-

ro de alunos, aos quais entregava, na saida, marcas individuals, ou seja, o tempo

necessario para percorrer uma dada distancia. Aqueles que a superassem seriam os

campeoes e deviam ser entao aplaudidos. A explicate dada por Amoros merece

destaque: "Eu fago aplaudir os vencedores de cada pelotao pelos vencidos que te-

nham disputado a vitoria, para habitua-los a ser justos, a louvar o merito que seus

rivais podem ter e a evitar o baixo e funesto sentimento da inveja"22.

As corridas, portanto, eram valiosos instrumentos de formagao moral e, ao mes-

mo tempo, uma "forma correta" de uso do corpo em agoes uteis. No meio civil, por

exemplo, estiveram sempre vinculadas ao salvamento de pessoas, afugas e perse-

guigoes de ladroes e bandidos, bem como a necessidade de locomover-se em dis-

tancias nem sempre proximas e providas de meios de transporte que nao o proprio

corpo. E esta autonomia corporal era um objetivo buscado por Amoros. Assim, ex-

plicados os detalhes relacionados ao carater moral e instrumental das corridas, ele,

ainda, acrescentava-lhes uma outra fungao relacionada a alma humana e afirmava que

"as vezes a corrida e um recurso para nos libertarmos de ideias que nos atormentam

e assim tambem e benefica para a saude da alma tanto quanta a do corpo"23.

Se no meio civil as corridas foram assim tratadas e enaltecidas, no meio militar

apenas Ihes foi acrescentado o que e especifico deste meio, ou seja: as agoes com

o porte de armas, os assaltos e os treinamentos em terrenos mais acidentados24.

Todos estes estudos e conclusoes acerca das marchas foram desenvolvidas,

basicamente, a partir da analise e mecanica do movimento, referencial que estru-

turou tambem o estudo dos saltos, considerados instrumentos de grande utilidade

na vida civil e militar25.

Conforme as analises de Amoros, os saltos eram atividades de diffcil ensina-

mento, pois se realizavam em breves instantes, razao pela qua), para ensina-los, eranecessario uma educagao intelectual paralela a educagao ffsica. De todos os ramos

da ginastica, o salto e aquele de maior complexidade, que oferece maior perigo e,

portanto, exige de professores e alunos um cuidado redobrado26.

22. Amoros, 1838, p. 282.23. Idem, p. 271.24. Idem, pp. 286 e ss.25. Em relacao aos saltos, tambem £ possivel fazer uma rela^ao com o moderno

atletismo e suas provas. Ver nota n. 20.26. Cf. Amoros apud Reys, 1961, pp. 61 e ss.

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46 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

Se o ato de saltar e, do ponto de vista fisico, diffcil, complexo e perigoso, sao

estas dificuldades que devem reforgar a importancia de seu ensino, uma vez que, do

ponto de vista moral, este ato ira:

habituar o coragao e a cabega a realizar agoes audazes e perigosas, a tomarresolugoes oportunas e a percorrer espagos consideraveis no ar, sem perdera cabega ou a faculdade de raciocinar, sem tremer ou abater-se como ocorredemasiado frequentemente aqueles que nao se tenham exercitado nuncaou que nao tenham experimentado nunca as repetidas sacudidas do corpo.

Estes exerddos devem ser conduzidos com muita circunspecgao e metodo17.

Note-se a observagao feita acerca da necessidade de circunspecgao e metodo

para a arte de saltar. A agio audaciosa possufa prescrigoes precisas. O perigo era me-

dido, previsto; a distancia e a attura, milimetricamente calculadas. O treino objetivava a

diminuigao do risco pela ampliagao da capacidade de raciocinar, de usar a razao em

situagoes-limite e, ainda, de elevar a moral, manter a calma e realizar a agao na qual

"saltar" erafatordeterminante.

Saltos, corridas e marchas eram, portanto, poderosos instrumentos de educacao

ffsica e moral. Afirmar, progressivamente, estas agoes corporais como meios de educa-

gao moral dos indivlduos era um desejo de Amoros. E e assim que introduz em sua obra

o canto, ali compreendido a partir de tres objetivos basicos: a) regular os exercicios,

imprimir-lhes um ritmo; b) desenvolver os pulmoes (orgao da respiragao por excelen-

cia); c) educar moralmente o aluno28.

O canto era considerado por Amoros "como a expressao mais energica das

paixoes da alma, (sendo assim) o instrumento de civilizagao, de moralizagao e de

regeneragao mais poderoso que existe"29. Portanto, apresentava-se com inumeras

vantagens para o desenvolvimento de virtudes, podendo inspirar o amor a Deus, a

juventude, ao rei, as leis e a patria. Seu emprego na ginastica cumpria, assim, dupla

finalidade: desenvolver o aparelho respiratorio e, ao mesmo tempo, virtudes. E "

possivel inferir que os cantos, mais do que voltados a uma melhoria da capacidade

respiratoria^ buscavam um efeito politico de integragao social tornando-se, assim,

elementos de moralizagao30.

27. Amoros, 1838, p. 68 (grifos meus).28. Amoros, 1838, dedica todo o capitulo III de sua obra a estudos e propostas de

como desenvolver a voz a partir do canto.29. Idem, pp. 104-1 13.30. Para informacoes mais detalhadas acerca da importancia atribuida ao canto, consultar

Amoros (1838, pp. I l l , 153 e ss. especialmente).

O CORPO MOLDADO 47

As letras das estrofes que se seguem atestam a assergao registrada pois, conforme

afirmava o proprio Amoros, tinham por finalidade inspirar o desejo de se adquirir belas

qualidades da alma, o desprezo aos vicios, comover os coragoes frios e ferozes, elevar

o espfrfto, engrandecer a alma e inspirar ideais sublimes3'.

"Un homme sans courage et sans activite,Enerve chaque jour par sa lache paresse,

Sans vertus, sans talents, eprouve que sanscesseLes vices et I'ennui suivent I'oisivete".

"Um homem sem coragem e sem atividade,Por sua frouxa preguica irritado constantemente,

Sem virtudes, sem talentos, comprova queininterruptamente,Os vicios e o tedio acompanham a ociosidade".

"Ne nous laissons jamais aller a la paresse;Faisons tous nos devoirs avec la memeardeur:Le degut suit toujours I'indolente mollesse;

La peine surmontee augmente le bonheur".

"Nao nos deixemos jamais chegar a preguica,Facamos todos os nossos deveres com a mesmavivacidade:O desgosto acompanha sempre a indolente fra-queza;A dificuldade vencida aumenta a felicidade".

"Le coeur est notre code: en traits ineffacablesLa nature y grava ces deux mots: Aimez-vous.

Les vertus sans I'amour en nous sont peudurablesAimons-nous... O models! que ce precepeest doux!".

"O coracao e nosso codigo: em tracps indeleveisA natureza nele gravou estas duas palavras: Amai-vos.As virtudes, sem o amor, em nos sao pouco du-raveisAmemo-nos ..." mortals! Quao doce e esse pre-ceito!".

"La haine est, mes amis, un setiment horrible;Un coeur honnete et bon do'rt I'ignorertoujours.II est si doux d'aimer, hair est si penible,Qu'un seul instant de haine empoisonnenos jours".'II n'est rien surement dont on ne vienne a bout,

"O odio e, meus amigos, um sentimento horrivel;Que um coracao honesto e bom deve sempreignorar

E tao doce amar, odiar e tao horrivel,Um s6 instante de odio pode nossos diasenvenenar"."Nao h4 nada certamente que nao se alcance,

3 I. Os compositores do rei, tanto na Espanha quanto na Franca, foram aqueles quecompuseram a quase totalidade dos cantos utilizados por Amoros em seu metodo de ginas-tica. Ver Amoros, 1838, p. I I I .

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TMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

Avec du temps, des soins et de la patience.On peut tout ce qu'on veut; ce n'est que

I'indolence.Qui trouve a chaque instant des obstaclesa tout".

"Courage, amis, courage!Gardons-nous de cederQuand ou voit le rivageOn est pres d'aborderCourage, amis, courage!

Courage, amis, courage !Meprisons la douleur,Le rocher de I'orageNe craint pas la fureur".

"DOminateur de la nature,REponds, Dieu clement, a ma voix;Mlroir de la justice pure,FAcpnne mon coeur a tes lois.SOLdat fidele a ta consigne,LA remplir comblera mes voueux;SI de te plaire je suis digne,DO renavant je suis heureux".

"Contre les vices et les crimesTournons nos efforts magnanimes,Et luttons avec fermete.De sa gloire I'homme est le maitreEt la nature le fit naitre".

Com tempo, cuidados e paciencia.Querer e poder, e somente a indolencia.

Quem encontra obstaculos em tudo, a todo ins-tante".

1°"Coragem, amigos, coragem !Cuidado para nao ceder !Quando vemos a margem,Estamos perto de abordar.Coragem, amigos, coragem!

Coragem, amigos, coragemDesprezemos a dor,O rochedo, da tempestadeNao teme o furor".

Senhor da natureza,Responde, Deus clemente, a minha voz;Espelho da justica pura,Modela meu coragao segundo tuas leis.Soldado fiel a tua ordem,Atende-la, fara cumprir meus votos;Se de Te agradar eu sou dignoDoravante serei feliz".

"Voltemos nossos esforgos com ardorContra os vicios e a criminalidade,E lutemos com firmeza.De sua g!6ria o homem e o senhor.Para buscar a imortalidadeO fez nascer a natureza".

O canto ocupava um lugar de destaque na obra amorosiana, seguindo, assim,os caminhos trilhados por pensadores da antiguidade, como Plutarco, que afirmavaas vantagens que podiam ser retiradas do exercicio diario da voz atraves do canto.

O CORPO MOLDADO 40

Estas vantagens nao se resumiam somente a saude, mas eram uteis tambem "para otreinamento das forgas, nao digo daquelas que sao proprias dos atletas, mas da forgae. do verdadeiro vigor das principals vfsceras do corpo, de onde depende principal-mente o restabelecimento da saude"32.

A utilizacao do canto exigia tambem um profundo conhecimento de musica.Os diferentes ritmos tinham finalidades precisas e estavam relacionados muito dire-tamente com o conteudo que se desejava passar ao aluno. Por exemplo, os ritmoslentos e graves eram sempre utilizados para conteudos series; ja os calmos e mo-derados serviam para explicar o pensamento filosofico.

A importancia atribufda a musica no conjunto da obra amorosiana e inegavel,como tambem o e o carater moral dela esperado, de instrumento de aperfeigoa-mento moral do homem. Amoros vale-se novamente do pensamento grego, agorapara argumentar a favor da musica. Cita Aristoteles, para quem a musica influencia naretidao dos julgamentos humanos33. Cita Platao, para quem a musica e a ginasticasao as duas bases principals de todo o processo educacional. A musica, porque en-cerratodas as formas de discursos, seja em prosa, seja em verso, e tern porfinali-dade formar a alma e a ginastica como aquela que abarca todos os exercfcios parafortificar o corpo34. Nas conclusoes a que chegou acerca do lugar a ser ocupado pelamusica e pelo canto na aplicagao dos exercfcios ffsicos, Amoros expos, de certomodo, o seu projeto estetico. Para ele,

A musica e o canto servem ainda para equilibrar os efeitos dos exercfcios do

corpo que poderiam dar ao espfrito e ao carater uma aspereza e uma rude-

za excessivas. Sua poderosa influencia suaviza e modera o excesso de forga

muscular que designamos com o nome de temperamento atletico e mantem

a sensibilidade numa medida adequada35.

Formar o homem forte e integrado na emergente sociedade burguesa, mas,sobretudo, o homem sensivel, foi um dos grandes objetivos de Amoros com o seumetodo de ginastica.

Amoros desejava que a ginastica, acompanhada do canto e da musica, fosseestendidaa um numero maiorde pessoas. Criou entao um conjunto de exercitacoesfaceis, que nao exigiam o uso de materiais e podiam ser executados em qualquer

32. Plutarco apud Amoros, 1838, p. 108.33. Amoros, 1838, p. 110. Sobre as relacoes entre gesto e musica, ver o excelente

trabalho de Pinto (1997).34. Amoros, 1838, p. 110.35. Idem, p. 109.

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SO IMAGENS DAEDUCACAO NOCORFO

lugar. Chamou a este conjunto de exercitagoes de Ginastica Elementar, uma ginasti-ca que podia ser ensinada a diferentes indivfduos, grupos sociais e instituigoes. Esteconjunto de exercitagoes era, entao, adequado "[...] as maes, as criangas de poucaidade ... as casernas, campos, escolas particulares, fabricas, prisoes e em casa"36.

A Ginastica Elementar era constituida por marchas, corridas, flexionamentosgraduais de bragos e pernas, exercicios de equilfbrio, deforga individual e de destre-zas multiplas. Seu objetivo basico: desenvolver qualidades ffsicas e, deste modo, aresistencia a fadiga. Seu fim ultimo: educar moralmente seus praticantes37.

Desse modo, a ginastica poderia ter um carater bastante generico, com proce-dimentos de ensino bastante simples e, assim, atender a um numero grande e diver-sificado de pessoas. Isto, porque, conforme Amoros, "todos devem ser destros,fortes, velozes, ageis, flexfveis, perseverantes, corajosos e bons"38.

Porem, paralelamente a este carater generico, a ginastica deve se complexificar,particularizar e, desse modo, atender as diferentes profissoes como cavaleiros, sol-dados, marinheiros, bombeiros ou, ainda, atender ao homem indolente, ao medro-so, ao doente, ao convalescente39.

Assim, aquele que ensinava ginastica devia estar atento as necessidades dos in-divfduos e grupos que a ele se dirigiam. Neste contexto, Amoros destacava, acimade tudo, a importancia de conhecer o carater do aluno. Somente a partir deste co-nhecimento era possivel melhor dirigir-lhe a vontade, corrigi-lo ou voltar-lhe as cos-tas se persistisse nos erros, pois

um homem de um grande espirito, de um grande talento, mas insenslvel,

mas fraco e desajeitado, e um homem imperfeito, e que para ser perfeito (na

medida em que o homem pode se-lo), e precise unir a inteligencia, ao saber,

a bondade e a possibilidade de faze-la atuar e de praticar as virtudes carita-

tivas e uteis a humanidade40.

O CORPO MOLDADO SI

36. Amoros, 1838, p. XI.37. Para Amoros (1838, p. XI), a educac,ao ginastica pode ocorrer desde o momento em

que a crianca comeca a fazer uso de seus sentidos e dar a seus movimentos impulsao e vontade.38. Amoros, 1838, p. XIV. A ideia basica de Amoros, de reunir num mesmo local - o

ginasio - um grande numero de pessoas e "comandar" uma serie de exercicios fisicos comobjetivos de melhorar habilidades fisicas e preservar/manter a saude, sugere uma aproximac.aocom as academias de ginastica da sociedade contemporanea. Se, alem desta primeira ideia,trouxermos o conceito de saude utilizado por Amoros, ou seja, saude reduzida a seus aspectosde natureza bio!6gica, a aproximagao torna-se mais tentadora e possivel. Todavia, mesmocom estas e outras evidencias, e prudente nao ceder a este impulse inicial, sobretudo porquea ginastica de academia, hoje, e um tema que carece de estudos mais abrangentes.

39. Idem , p. XIV.40. Idem , p. XV.

Desenvolver estes principios, tornar cada homem um soldado da patria e umbenfeitor da humanidade, era tarefa da ginastica amorosiana. Em meio a grande mi-seria humana e social que expoe as entranhas do capitalismo triunfante, com as po-pulagoes urbanas sendo dizimadas porfome e epidemias, Amoros seguia seu cur-so, alheio atodo conflito, alheio ao clima pre-revolucionario de 1848. Seguia de-senvolvendo seu ideario triunfalista e monarquico, mas absolutamente sintonizado

com as conquistas da ciencia positiva predominante.Entre as ideias em voga no campo cientifico estava aquela que, oriunda das leis

da mecanica, destacava a possivel analogia entre o corpo humano e as maquinas,esta criagao humana que sempre exerceu enorme fascfnio ao seu criador. Amorosinseriu-se plenamente neste clima e desenvolveu inumeros estudos nos quais afir-

mava que "o corpo humano e uma maquina que, sem escapar as leis mecanicas,evolui nas suas leis e se adapta porque e uma maquina consciente"41.

Seus trabalhos sobre a locomocao humana estiveram sempre baseados nas

leis da mecanica e, deste modo, representaram significativos avangos para a sua com-preensao na epoca. A analogia que estabeleceu entre o corpo humano e a maquinafoi apenas mais uma demonstragao de conhecimento e identidade com as principaisideias cientificas em voga, sobretudo porque desejava fazer uso de "maquinas" e de"instrumentos" na execugao de exercicios fisicos. Maquinas em sua obra eram to-das as construgoes fixas, cujo transporte para lugares distintos era impossivel. Estas

construgoes, dadas as suas caracterfsticas de solidez e tamanho, podiam recebersobre si mesmas duas ou mais pessoas. Ja os instrumentos eram compreendidosno ambito de tudo o que fosse manipulavel e de facil transporte por uma ou duaspessoas42.

O cuidado que demonstrava com as maquinas e instrumentos reflete o seu de-sejo de marcar a diferenga com o circo, os acrobatas, funambulos e artistas de feira.Para Amoros, a ginastica feita em maquinas e instrumentos era aquela que lidava maisde perto com qualidades morais e virtudes. Sua pratica, portanto, exigia locais apro-

priados, como, por exemplo, um ginasio43. Para a sua construgao, Amoros inspirou-se nos gregos, de quem retirou as ideias basicas. Assim, uniu um ginasio a um esta-

41. Cf. analises de Philippe (1930, p. 33). Ver tambem La Mettrie, 1982.42. Amoros, 1838, p. I. Ver tambem Vazquez (1988, pp. 29-64). Ao que Amoros

denominava "maquina", hoje denomina-se "aparelho" de ginastica.43. Uma explicacao do piano e projeto geral do Ginasio Normal, Militar e Civil, dirigido

por Amoros, pode ser encontrado na p. 57 e seguintes de sua obra ja aqui citada. Ver aindaSpivak, I988a, p. 140. O Ginasio Civil e Militar, do qual Amoros foi o diretor, funcionou de1820 a 1837. O seu fechamento foi ordenado pelo Rei Luis Philipe, cansado de interminaveispedidos e das incansaveis reclamajoes de Amoros.

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Fig. 33 - Aparelhos de Amoros. Mastros Verticals.

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Fig. 34 - Aparelhos de Amoros. Barras, Paralelas e Cavalo.

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54 IMAGENS PA EPUCACAO NO CORPO

dio, sendo o primeiro destinado a sua ginastica com as maquinas, instrumentos, e osegundo destinado ao que chamou de Ginastica Elementar. Estes dois espagosfor-mavam, entao, o ambiente completo para a correta aplicagao de seu metodo.

Em sua obra estao registradas barras fixas e moveis, barras paralelas, esca-das, cordas, cavalo, portico, trapezio. Mas, o que eram estas "maquinas" senaotudo aquilo que fora utilizado por acrobatas e funambulos durante toda a IdadeMedia e Renascimento? Aquilo que ainda era largamente utilizado pelo circo?Amoros tinha clareza do lugar de onde vieram estes aparelhos. Quando fazia alu-sao ao trapezio, por exemplo, procurava mostra-lo em sua origem, ou seja, comoo triangulo que fora utilizado por acrobatas e funambulos italianos na Idade Media.

Todavia, seu maior desejo era afirmar um projeto cientifico e estetico. Ocultar,assim, contradicoes. Acrobacias no solo e em maquinas, por exemplo, faziam parte

de sua ginastica mas nao seria desejavel associa-la a funambulos e artistas de circo.Os vfnculos, nao so ideologicos, que Amoros tecera com determinadas faccoes daelite francesa exigiam-lhe que acentuasse seu distanciamento do mundo do circo e,ao mesmo tempo, sua aproximacao com o mundo da ciencia e dos preceitos mo-rais que a burguesia afirmava.

Desse modo, Amoros so faz alusao aos exercfcios cenicos ou funambulescosno conjunto de sua obra, afirmando que nao os exclui, mas que Ihes imprime sem-pre um carater de utilidade. Reafirma tambem que o proposito de seu metodo naoe o de entreter, nem de divertir por meio de demonstragoes e usos de forca ffsica

e muito menos fazer dos exercfcios um mero e frivolo prazer44.As acrobacias ern seu metodo de ginastica serao transformadas em agoes uteis

para serem executadas com precisao a partir de princfpios cientificos ditados pelamecanica do movimento. Se restavam ainda aproximacoes com os exercfcios cenicosou funambulescos, Amoros as justificava pela utilidade que poderiam ter aqueles exer-cfcios para a sobrevivenda em situagoes-limite. Afirmava assim que, por vezes, as pes-soas podiam achar-se em situagoes nas quais necessitassem ficar de cabeca para bai-xo, em equilibrio invertido sobre as maos, em locais pouco usuais, como escadas,troncos etc. e, se nao dominassem certas destrezas fisicas, podiam perder a vida45.

Ja no circo, a logica da movimentagao corporal era outra, pois

O sistema de movimentos desse corpo e orientado em fungao do alto e

do baixo (voos e quedas). Sua expressao mais elementar - por assim di-

O CORPO MOLDAPO 55

44. Cf. Amoros (1838, p. 204), na p. 204, ha a afirmajao de Amoros na qual se le:"Meu metodo e meus exercfcios param onde a utilidade cessa e onde comeca o funambulismo".

45. Idem, p. xii.

zer, o fenomeno primeiro do comico popular - e um movimento de roda,

isto e, uma permutagao permanente do alto e do baixo do corpo e vice-

versa (ou seu equivalente, a permutagao da terra e do ceu). Reencontramo-

lo em varies outros movimentos elementares do palhago: o traseiro insiste

obstinadamente em ocupar o lugar da cabeca e a cabeca do traseiro. A outra

expressao do mesmo princfpio e o papel enorme do inverse, do contrario,

do dianteiro-traseiro, nos movimentos e agoes do corpo comico.

[...] a topografia corporal funde-se com a topografia cosmica: distinguimos no

arranjo do espago no circo ou nos palcos de feira os mesmos elementos to-

pograficos da cena onde se apresentavam os misterios: terra, inferno e ceu

(mas, naturalmente, sem a interpretagao religiosa): sentimos ai igualmente

os elementos cosmicos: ar (saltos e numeros acrobaticos), agua (exerciciosaquaticos), terra e fogo46.

O mundo do circo trazia imagens de luz e riso, do grotesco e do sublime e,sobretudo, do corpo como centra de entretenimento. Em suas passagens, o circodeslocava os habitantes das vilas e cidades das rotinas binarias do trabalho e do des-

canso. Seus integrantes "acenavam com a possibilidade de uma vida de alargamentode contomos e fronteiras em oposigao a famflia, ao trabalho fixador, a vida estabelecidaem um lar imovel numa so cidade"47.

Rompiam assim com a ordem das instituigoes. A diversao que apresentavamera completamente descomprometida, nao pretendiam "educar" ninguem... apenasencantar. E e este encantamento que atemorizava, era a ausencia de fixidez quedesestruturava as formas habituais de controle. "Desde a sua chegada e em cadamomento do espetaculo, os circenses tinham, como unicas propostas, cultuar oriso, o sonho, afluidez e a mutagao constante de homens e animais, numa criatividadeintensa e cativante"48.

Mergulhada entao em um mundo de luz, sons, gestos e risos, a plateia do circopodia romper com os comportamentos civilizados. Aquele espago delimtado por lonas,o tablado centrado, a claridade constante, fazia da plateia parte do espetaculo; ela eraestimulada ao riso, a gritaria, a expor as sensagoes de suspense, de medo, de alegria.

Ao voltar o rosto para o alto, a fim de avistar os equilibristas nos

trapezios e arames, cada espectador fitava uma especie de super-homem,

intrepido, ousado, que parecia trazer implicito em cada um dos seus cal-

46. Bakhtin, 1987, p. 309.47. Duarte, 1993, vol. I, p. 93.48. Idem, p. 241.

Bibliotsca Setorial • CEFO - UFES

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TMAGENS UA EUUCACAO NO CORPO

culados movimentos a potencia de sempre acertar [...] o fascinio exerci-do sobre os cidadaos comuns inspira-se na execucao de atos emissoresde signos de liberdade, desafio e aventura49.

E os atores do circo projetam esses signos a partir do corpo. O seu talento

ancora-se em qualidades ffsicas e e a partir delas que procuram a superagao de si

mesmos (Figuras 8 e 9).Nos espetaculos circenses ha uma obsessiva exploragao da ultrapassagem de

lim'rtes... O autodesafio e uma constante. O corpo nao e um limite das potencialidades

humanas, mas, pelo contrario, e o seu ponto de partida. Engolem espadas, cospem

fogo, langam fogo pelos olhos, apresentam a concepgao grotesca de corpo em uma

singular utilizacao de seus orificios. Ignoram a concepgao de corpo fechado e os

limites espaciais definidos pelas regras de civilidade da sociedade burguesa.

Acrobatas, trapezistas e funambulos desprezavam o peso de seus corpos, ig-

noravam a ameaga da queda. Langavam-se ao espago como se fossem portadores

de asas invisfveis. Aos olhos da plateia, voavam, trocavam de lugar em pleno ar e

desenhavam, no vazio do espago, com seus corpos, linhas imaginarias por onde

seguiam. Nas cordas e arames, funambulos exibiam o requinte do equilfbrio mo-

vel... tudo se apresentava em uma espantosa harmonia instavel50.

Em sua instabilidade e ambivalencia, o circo permitia a plateia transitar entre omundo magico de acrobatas, equilibristas e funambulos, estes seres que apareciam

divinamente humanos, para expressoes de aberracao - o contorcionista - e, assim,

para o limite do humano em diregao a vida animal.

Em suas mutacoes (os contorcionistas), aproximavam-se explicitamen-te da animalidade, transformando-se em seres como ras e lagartos... Maisuma vez, o publico defrontava-se com um universe plenamente material,fisico, corporeo. As possibilidades do artista encontram-se no corpo51.

O sentimento de medo ou de repulsa despertado pelos contorcionistas era

seguido pelo descompromisso do palhaco. Cabia-lhe tao somente despertar o riso,

um riso completamente alheio a pretensoes educativas. Fazer a plateia rir desmedi-

damente, transformar aquele momento em uma grande festa que invade tudo e to-

dos com muito riso (Figura 10).

49. Duarte, 1993, vol. 2, pp. 251-252.50. Idem, pp. 249-250.51. Idem, p. 260.

O CORPO MOLDADO 57

O riso e uma forga vital constitutiva do humano. Nos tempos sombrios e obs-

curos da Idade Media, em que o homem vivia mergulhado no medo, aterrorizado

por tudo - pelo natural e pelo divino -, o riso desempenhou um papel fundamental

no alargamento da consciencia humana. Possuia uma relagao essencia com a verda-de popular nao-oficial, fazia parte da visao de mundo comica e popular52.

Seguindo a analise de Bakhtin, enquanto o serio associava-se ao oficial, ao vio-

lento, a interdigoes e restrigoes, ao medo e a intimidagao que dominavam a Idade

Media, o riso supunha o domfnio sobre o medo. O sentimento do homem medie-

val em relagao ao riso e o de vitoria sobre o medo53.

No Renascimento, o riso tern um valor muito profundo de concepgao de mundo,

[...] e uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundonasuatotalidade, sobre a historia, sobre o homem: e um ponto de vista par-ticular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, emboranao menos importante (talvez mais) do que o serio [...] somente o riso [...]pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo54.

O riso trazido pelo circo no seculo XIX recolocava a inteireza do ato de rir

descomedido, o riso grotesco, o riso como visao de mundo. O publico "ri as garga-

Ihadas", "se despedaga de rir", "se mata de rir", ri das ambiguidades do palhago, dasinfindaveis pancadarias, do numero de vezes em que morre e ressuscita.

O elogio da ilusao, da agressividade vivida alegremente pelo palhago, a rela-tividade da dor e da morte, o descompromisso com valores morals - expres-so na baixeza dos ditos e gestos do down- e a criacao de uma corporalidadeviva e criativa tornavam o circo um local tentadoramente perigoso55.

Por esta razao, havia o desejo nao mais contido de redesenhar o lugar do cor-

po como espetaculo, fosse pela ousadia de gestos de risco, pelo atrevimento das

personagens comicas ou pela ambiguidade de sentimentos causados na exibigao das

aberragoes. Tudo devia tomar outra configuragao a partir da ciencia.

A ludicidade, magia, risco e alegria, caracterfsticas visiveis do mundo do circo,

deviam serabafadas em nome do que se acreditou ser precisao, utilidade, rendi-

mento. Lentamente vai se construindo um deslocamento daquele mundo encantatorio

52. Bakhtin, 1987, p. 78. Ainda sobre o riso, ver Baudelaire, 1991.53. Idem, p. 78.54. Idem, p. 57.55. Duarte, 1993, vol. 2, p. 270.

L

Page 42: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

58 IMAGENS PA EDUCACAO NO CORTO

feito de plasticidade e magia para os laboratories de analise do gesto56. De um mun-

do desinteressado e alegre onde o equilfbrio e calculado e avaliado somente pelo

prazer de confrontar-se com o risco, onde a ousadia de uma acrobacia responde

apenas aos seus efeitos de plasticidade e magia, passa-se para as analises metrificadas

dos cientistas. O universo de signos, sentidos e significados daquelas praticas corpo-

rais e descaracterizado e atacado com veemencia, especialmente pelos medicos.

Vivia-se um momento no qual se desejava criar um corpo civilizado57, um cor-

po em que nao existissem excesses, no qual os gestos fossem comedidos e, so-

bretudo, economicos e uteis a finalidades precisas. O corpo como espetaculo esta-

va fora do receituario de "vida saudavel" construido pela sociedade oitocentista, so-bretudo pelo discurso medico58.

Para o ideario burgues que se desejou universal, tudoteria utilidade, nada podia

ou devia ser desinteressado e a finalidade suprema das agoes se concentrava no lucro.Ate nas exercitagoes ffsicas descobriu-se um valor que se relacionava com a produgao,

quer na industria, quer na quantidade de filhos para servir ao capital e a patria59.

Nas analises empreendidas por W Sombart sobre aformacao do individuo burgues,

destaca-se a necessidade de "estabelecer uma ordem logica nas atividades e um aprovei-

tamentoadequadodotempo, queeoque se poderiachamarde economia das energias"60.

O CORPO MOLDAPO so

56. Os laboratories de analise do gesto estruturam-se na Europa a partir de 1870, ditadospela logica da racionalizacao do trabalho. A economia de forcas, o gasto de energias sao aspectosque comec,am a ser considerados na computa$ao dos lucres. Tratarei deste assunto ao longodeste trabalho.

57. Ver Elias, 1993. O processo civilizador, em que ha um rico detalhamento de codigos, degestos e atos corporais considerados como civilizados, os quais devem ser incorporados pelosindividuos na sociedade.

58. As restricoes medicas e pedagogicas, embora insistentes e bastante divulgadas, nao chegarama abalar o gosto popular em relacao aos espetaculos circenses, em especial, ao corpo como espetaculo.Duarte (1993, vol. 2, pp. 258 e ss.) cte como exemplo o contorcionista, este ser em transformacao,em mutacao; portanto, contririo a fixidez exigida pela sociedade. As restricoes medicas nunca chegarama "abalar o gosto pela exibicao dos contorcionistas, nem mesmo a aura magica que os cercava aosolhos do publico, ja bem mergulhado no controle do corpo, de suas posturas e gestos".

59. O numero de filhos aqui se insere num debate de carater moral; a fecundidade tambemdevia ser toil. Cf. Bakhtin (1987, p. 274), a fecundidade foi um motivo dominante na cultura popularda Idade Media e do Renascimento, nas imagens grotescas. Foi uma forca solida e poderosa e naocaberia na racionalizacao burguesa do tipo: "a fecundidade dos cidadaos, o crescimento da populacaosao a defesa militar mais segura da cidade".

60. Sombart, 1986, p. 121 . Ainda cf. Carpeaux (1963, vol. 5, pp. 2 1 1 6 - 2 1 17), asapancoes da burguesia datam do "trecento". Eram burgueses os poetas e politicos das cidadesitahanas daquele tempo. Burgueses tambem eram Lorenzo Medici e os humanistas do"quatrocento" ... Burgueses eram os puritanos de "Commonweal" de Cromwel e Milton.Burgueses eram os dramaturges e poetas que rodeavam Luis XV, "ce grand roi burgeois".Burgueses eram os "dissenters" ingleses do seculo XVIII, o publico de Addison e Steele, doromance e do teatro sentimentais e da poesia pre-romantica. Burgueses eram os oradores da

Ora, aquela agilidade demonstrada pelos acrobatas e funambulos haveria de ser util.

Era precise pensa-lafora daquele universo, que ao olhar burgues se mostrava desregra-

do, ocioso e "quase" imoral, em que nascera. Os acrobatas e funambulos eram a ma

consciencia, o irracional dos cfrculos cientfficos que elegiam a "ginastica cientffica" como

pritica corporal capaz de contribuir naformacao do corpo civilizado. Contraditoriamen-

te, porem, todo aquele universo de ousadia e risco com as atividades corporais fetes no

mundo do "teatro do povo", foi a base da metrificacao e classificagao cientffica.

Ciencia e tecnica, como formas especificas de saber, determinarao os angulos

corretos de cada alavanca que possui o corpo visto como maquina; indicarao o quanta

de forga e precise imprimir para um impulse e um salto; quais as partes do corpo(totalmente esquadrinhado) sao mais resistentes. As atividades corporais entao,

paulatinamente, sao classificadas, analisadas e, meticulosamente, redesenhadas pe-

las rnaos dos homens de ciencia. Devem reaparecer no interior de um projeto cien-

tifico, estetico e, sobretudo, distante de seu nucleo primordial.Surgem, entao, como o lado verdadeiro de um avesso que deve ser escondido,

difamado, olhado com desconfianca porque vindo de um espago que insiste em nao

enquadrar-se na metrificacao e quantificacao burguesa e cientffica. Afirmam-se entao como

o correto, o verdadeiro, o necessario porque util. Um minimo de risco com o maximo

de precisao, tendo como consequencia "benefica" a utilidade daagio corporal.Precisao, sistematizacao, rigor, experimentacao, controle. E este o universo

terminologico no qual mergulha o conjunto das atividades corporais, antes livres e

praticadas como rituais de viver.Pensadores da Antiguidade e do Renascimento sao invocados e, muitas vezes,

tern suas obras deslocadas e roubadas de sua inteireza para afirmar a ginastica cien-

tifica e os novos canones do corpo limpo e civilizado. Um caso exemplar deste des-

locamento e o tratamento dado a obra de r\abelais, que se vale de uma linguagem

singular, a qual Bakhtin chama de "vocabulario da praca publica". Sua literatura e cheia

de imagens da festa medieval, com seus gigantes, anoes, loucos e todos os meca-

nismos de inversao.Conforme sublinha Goulemot, a literatura de P\abelais erigiria, de modo mais

amplo, "a concepgao grotesca de corpo e valorizaria o vil material e corporal contra

uma visao ao mesmo tempo aristocratica, crista, humanista e cortesa do homem"6'.

Revoluc.ao Francesa. Nestas epocas de transicao, agiu, hist6rica e literalrnente, a burguesia;mas sempre imitando o estilo de outras classes, as mais alias da sociedade. So depois de1830, venceu, com a burguesia, o estilo de vida burgues: a economia livre e o parlamenta-rismo, os trajes masculinos s6brios sem qualquer vesttgio de pitoresco.

61. Goulemot, 1978, vol. 3, pp. 376 e ss.

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60 LMAGENS BA EPUCACAO NO CORPO

Rabelais e, portanto, um autor mergulhado nas imagens grotescas, e um repre-sentante da literatura comica e popular do Renascimento (Figura I I).

Costuma-se assinalar a predominancia excepcional que tern na obra de Rabelais

o principle da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comi-

da, da satisfagao de necessidades naturais e da vida sexual. Sao imagens exage-

radas e hipertrofiadas [...] as imagens referentes ao principio material e corpo-

ral em Rabelais (e nos demais autores do Renascimento) sao a heranga [...] da

cultura comica popular, de um tipo peculiar de imagens e, mais amplamente,

de uma concepgao estetica da vida pratica que caracteriza essa cultura e a

diferencia claramente das culturas dos seculos posteriores62.

Os pensadores da ginastica, ao longo de todo o seculo XIX, retiram-lhe osvinculos com este universe e realgam apenas o Rabelais "medico humanista epedagogo, [que] se ocupa de uma propaganda aberta da cultura do corpo e do seudesenvolvimento harmonioso"63.

Pantagruel" e Gargantua65 passam a aparecer sempre como ginastas e naocomo gigantes, que, por definigao, encarnam a imagem grotesca do corpo. Sao aspersonagens tfpicas de toda a cultura comica e popular da Idade Media e do

Renascimento em que se inscreve a obra de Rabelais.Os pensadores da ginastica "limpam" a literatura rabelaisiana e extraem dela so-

mente os elementos que apontam para o novo canon corporal, em que se encontra

um corpo completamente pronto, num mundo exterior todo acabado ... um

unico corpo; [que] nao conserva nenhuma marca de dualidade; basta-se a si

mesmo, fala apenas em seu nome; o que Ihe acontece so diz respeito a ele

mesmo, corpo individual e fechado ...[...] Todos os atos e acontecimentos so

tern sentido no piano da vida individual: estao encerrados nos limites do

nascimento e da morte individuals desse mesmo corpo, que marcam o co-

mecp e o fim absolutes e nao podem jamais se reunir nele66.

62. Bakhtin, 1987, pp. 16-17.63. Bakhtin, 1993, p. 291.64. Rabelais, 1939.65. Rabelais, 1986, pp. 126-134. Neste livro, o capitulo largamente utilizado pelos

pensadores da ginastica e o de n. 23, em que se encontram elementos do pensamento classico. Oepisodic da "segunda" educacao de Gargantua e posto em relevo uma vez que, naquela educacao,sao acentuados os aspectos de ordem, disciplina, uso adequado do tempo, a par de uma educacaointelectual "equilibrada", com um uso correto do corpo pelos exercfcios ffsicos.

66. Bakhtin, 1987, p. 281.

O CORPO MOIJJADO 6l

Torna-se necessario sublinhar que, mesmo com toda a forga que emana daspropostas que inscrevem a ginastica cientifica como protagonista oficial das priticascorporais, sobrevive a concepgao de corpo do realismo grotesco no circo, nafeira,nas varias formas atuais do comico67. Lugares onde ainda e possfvel apreciar o acro-bata executando um equilibrio invertido (parada de maos) como uma grande e cal-culada brincadeira com o corpo - um movimento encarnado na vida e do qual eleparte para outras e mais ousadas peripecias corporais. No mundo da ciencia e datecnica esta mesma agio recebera um tratamento meticuloso e visara a realizagao deobjetivos tais como o desenvolvimento da forga dos membros superiores e da cai-xatoracica, ao mesmo tempo em que deverao ser enaltecidas a coragem, a vitalida-de e a forga de cariter. Sua finalidade sera, sobretudo, de utilidade: formar o homemforte que produza mais com o menorgasto de energias.

Os grupos de artistas, as companhias de marionetes, os saltimbancos - ho-mens e mulheres que viviam a liberdade das ruas e nelas ganhavam a vida com suasrepresentagoes corporais - passam a ser alvo de preocupagao de autoridades e dehomens de ciencia das cidades que julgavam suas praticas subversivas ao novo mo-delo de praticas corporais protagonizadas pela ginastica cientifica, na qual havia rigore fundamentagao para cada gesto.

Como ja se afirmou aqui, o que predominava como espetaculo e como mo-delo de atividade fisica fora do mundo do trabalho, para a populagao em geral eram,precisamente, as atividades circenses e outras exibigoes de rua, nas quais funambulose acrobatas ocupavam a cena central. Aquelas praticas corporais dominavam as aten-goes e eram consideradas como a verdadeira ginastica aos olhos do povo. Entao,como marcar a diferenga? Como delimitar os espagos de uma e outra?

Jorge Crespo, analisando este problema em Portugal no seculo XIX, registra aira dos medicos que viam as concepgoes de ginastica serem "degradadas" pela divul-gagao de atividades fisicas que nao se enquadravam no rigor da ciencia. Vale-se, paratal, dos estudos realizados em 1836 pelo medico G. Centazzi na obra intitulada Con-sideragoes gerais sobre os exercfdosgymnast/cos, eas vantagensque deles resu/tarao.

He tal o approbio que o vulgo tern langado sobre a palavra Gymnastica,

que raro he pronuncia-la em publico sem que logo nos nao venham a ideia

a danga na corda, e os saltos mortaes: no entanto a Gynastica, foi entre as

grandes nagoes, e entre os sabios antigos, huma arte das mais nobres, das

mais bellas, das mais cultivadas, e d'aquelas aonde a Hygiene, a therapeutica,

e tanto o ramo civil como militar, encontrarao abalisados recursos...

67. Bakhtin, 1987, p. 25.

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62 IMAGENS PA EPUCACAO NO CORPO

Hoje, por desgraca, meia duzia de charlataes puladores tern torna-

do a seu cargo de a tornar (a ginastica), quase ridicula aos olhos de todos;

mas quern nao tera visto sobre o tablado dos teatros, ou no meio d'uma

praca publica, a par de exercicios ginasticos, exercicios chymicos e fisi-

cos, tambem aviltados pela imperfeita execugao deles, de que um vaga-

bundo qualquer lanca mao para ganhar preguicpsamente a sua vida e

quern deixara apesar disso de conhecer as imensas vantagens que da Ffsica

e da Chymica nos resultarao"68.

A "ginastica cientifica" ja estava sendo considerada nos objetivos de cons-trucao de um outro mundo, no qual todo o dinamismo espontaneo seria rede-finido. E o objetivo mais claro neste mundo era o de reunir e preservar as ener-gias ja existentes e abundantes no cotidiano e, ao mesmo tempo, libertar estepotencial de energia para realizar agoes mais eficazes e construir o futuro. Ha-via um claro proposito de evitar, a todo custo, o desperdicio inutil de energias.

Amoros foi aquele que, de certo modo, concretizou um projeto cientificoe estetico redefinindo all o lugar do corpo na sociedade. As agoes corporais,entao, surgiam sempre vinculadas a utilidade e a prudencia, algo que julgava au-sente do mundo do circo, das exibigoes de feira, lugares que tinham o corpocomo espetaculo. A prudencia entao era enaltecida pelas palavras de pensado-res da antiguidade como Horacio, para quem "a forga sem a prudencia despren-de-se dela mesma; quando e regulada pela sabedoria, os deuses se comprazemem auxilia-la"69.

A ginastica estaria rigorosamente no campo da mais absoluta precisao e segu-ranga, marcando, portanto, a diferenga com a ousadia e audacia de funambulos eacrobatas. Era como se a ginastica fosse a representante oficial da sociedade bur-guesa: produtiva, metrificada, segura, precisa, util, prudente...70

Outra demonstragao deste desejo estava no tratamento dado ao uso das "ma-quinas", que fora, por alguns, acusada de "ginastica de circo". Amoros revidava qual-quer acusagao, valendo-se daquilo que possuia um valor perante a sociedade: ascomprovagoes cientificas ja amplamente divulgadas.

O CORPO MOLDADO 63

68. Centazzi apud Crespo, 1990, pp. 459-461.69. Horacio apud Amoros, 1838, p. 109.70. Cabe registrar ainda as analises de Andrieu (1988, p. 120), a respeito das distincoes

que pretendia Amoros, quais sejam: "ensinar uma Ginastica seria e que inspire confianca, umaGinastica racional de formacao, que nada tenha que ver com as diversoes nem os espetaculos,nem tampouco com as proezas dos homens fenomeno, dos saltimbancos, dos volantis ou dosHercules de feira".

Apoiava-se, paratal empreendimento, nostrabalhos desenvolvidos na Sueciapor P. H. Ling71, detentor de grande prestigio nos circulos cientificos da Franga, sen-do inclusive considerado o precursor da ginastica cientifica.

Fazendo uso bastante criterioso de aparelhos72, a ginastica sueca desenvolveraum solido conhecimento basico acerca do tema. O trabalho com os aparelhos in-cluia nao so a execugao de exercfcios, mas tambem a compreensao, pelo aluno, desua construgao e das inumeras possibilidades de modificagao, de acordo com ascircunstancias de uso. Aos professores cabia o fornecimento de modelos e de di-mensoes adequadas de cada aparelho, os quais eram entao adaptados aos alunosporeles mesmos.

Aparelhos tais como barras, espaldares, trapezios, entre outros, possuiam me-didas muito precisas que foram codificadas a partir de estudos sobre as possibilida-des de cada movimento corporal neles realizados. Suas dimensoes estavam, por-tanto, associadas aos estudos acerca da mecanica dos movimentos que, por suavez, eram explicados a partir da mecanica das maquinas e, especialmente, da forgaempregada na execugao dos movimentos.

Baseado entao na obra de Ling, Amoros pode justificar, em certa medida, osaspectos cientificos presentes na utilizagao de aparelhos. Conforme seus estudos,compreende-se que para a utilizagao correta das "maquinas" e necessario deter-seno estudo da forga e de sua aplicagao, pois sendo ela "uma potencia que produz umefeito, pode ser util ou prejudicial aos interesses publicos e aos interesses particula-res, conforme seja bem ou mal empregada"73.

Para Amoros, o lugar do mau emprego das forgas era o circo, onde os acroba-tas em seus aparelhos exibiam proezas feitas com a forga fisica sem considerar e

L

71. Para as informacoes que se seguem, tomei por base a obra de Pereira (s.d., pp. 300-306). Pehr Henrik Ling, fundador do metodo sueco. nasceu em 1776 e morreu em 1839.As bases iniciais da ginastica sueca sao dadas pela ginastica alema de Guths-Muths, de Viethe de Pestalozzi, somadas a orientacao filosofica de Schelling. Nao pode tambem ser esque-cida a forte influencia intelectual dos enciclopedistas e pedagogos, tais como Rousseau, Basedowe Salzmann.

72. Na literatura sobre ginastica, encontramos o termo "aparelho" para denominaraquilo que Amoros chamava de "maquinas".

73. Cf. Amoros (1838, pp. 323 e ss.), onde se encontram explicacoes detalhadasacerca dos usos da forca nos exercicios fisicos em geral, naqueles executados nos aparelhos,bem como os tipos de forca existentes e sua aplicacao. Cabe ainda registrar o que a palavraforja Ihe sugere: " diremos somente que a palavra forca e tao apropriada para exprimirtodo tipo de poderes ou de faculdades que possufmos em um grau superior, que dizemos,forga de animo, forca de espirito, de mem6ria, de imaginacao, de julgamento, de um bomsenso, da mesma forma que dizemos, forca de coracao, forga motriz, forga das circunstan-cias, forga publica, forga de opiniao, etc, etc." (Amoros, 1838, pp. 363-364).

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TMAOENS DA EDUCACAO NO CORPOr

O CORPO MOIDAOO 65

avaliar os riscos decorrentes, sem criterios de seguranga e, sobretudo, sem ne-

nhuma utilidade, com o fim unico do entretenimento74.

Na retorica da recusa pelo temor ao circo, nao era considerada uma categoria privi-

legiada de sua existencia - o trabalho, uma escola de labor coletivo, de aprendizagem cons-

tante, que tern inicio, praticamente, com o nascimento de cada individuo que vive no circo.

Aprendia-se ali com rigor, disciplina e treinos proprios. Havia um trabalho ininterrupto e

preciso para a realizagao de cada espetaculo, para sua preparacao e seu sucesso75.

O circo era um lugarde construgao e reconstrucao de saberes e priticas, de cons-

tituigao de singularidades. Desse modo, sua forma de existencia sempre escapava aos

enquadramentos. Atransmissao de seus saberes era oral, sem livros que normatizassem

e estabelecessem regras, deveres. Seu nomadismo afirmava outras possibilidades de vida76.

Seus integrates parecem sempre ter compreendido a sabedoria que pode existir

noconstanteirevir, nostrajetosque, comofios, tecemateiadavida, em que

[...] a fixidez e sempre momentanea. E um equilfbrio ao mesmo tempo preca-rio e perfeito, que dura o que dura um instante: basta uma vibragao de luz, aaparigao de uma nuvem ou a mais (nfima oscilagao datemperatura para que opacto de quietude se rompa e se desencadeie a serie de metamorfoses. Cadametamorfose, por sua vez, e outro momento de fixidez ao qual sucede umanova alteragao e outro insolito equilibrio. Sim, ninguem esta so e cada mudan-ca aqui provoca outra mudanga la. Ninguem esta so e nada e solido: a mudan-ga se resume em fixidez, que sao acordos momentaneos. Devo dizer que aforma da mudanga e a fixidez ou, mais exatamente, que a mudanca e umabusca incessante de fixidez? Nostalgia da inercia: a preguica e seus paraisoscongelados. A sabedoria nao esta nem na fixidez nem na mudanga, mas nadialetica que as une. Constante ir e vir; a sabedoria esta no instantaneo77.

Para Amoros, convicto defensor de uma estetica da fixidez e da norma, este univer-

so era assustador. Nao cabia na assepsiada nova ordem social que se consolidava. Desse

modo, buscava, atodotempo e portodas asformas posslveis, mostrarseu distanciamento

do espetaculo circense, afirmando-o, tao somente, como uma mera exibigao de forga

ffsica, ousadia e ausencia de utilidade e prudencia.

Assim, seus aparelhos de ginastica deviam ser vistos como potencializadores de

virtudes morais e qualidades fisicas. Eram os estudos de mecanica que explicavam seus

usos, dimensoes e adequacao aos alunos, pois o proposito de Amoros sempre fora o

74. Cf. Amoros, 1838. p. 213 .75. Strasser, 1991, pp. 47 e ss.76. Ler o instigante trabalho de Silva, 1996.77. Paz, 1988, p. 16.

de desenvolver qualidades fisicas com aplicagao adequada de forgas e com fins uteis:

salvamentos, combates, disposigao para o trabalho e tantas outras que envolvam a cora-

gem, a tempera decarater, abondade...

Com observagoes desta natureza esperava Amoros comprovar que seu traba-

lho se definia a partirde enunciados cientificos, por comprovagoes precisas e, supos-

tamente, isentas de erros.

Do ponto de vista de uma pedagogia, havia em sua obra uma preocupagao com a

progressao dos exercfcios e com a utilizacao, tambem progressiva, de suas maquinas78.

Seu desejo sempre fora o de transformartodas as agoes corporais civis de bravura, co-

ragem, ousadia em "boas agoes". Atraves da ginastica, entao, era possivel enobrecero

homem, torna-lo grande e, desse modo, contribuir para o engrandecimento da humani-

dade, fim ultimo do metodo amorosiano.

Amoros indica nos (tens gerais de sua obra79o ato de nadarnu ou vestido, com far-

dos e, sobretudo, com armas defogo, bem como o ato de transporter, com destreza,

corpos incomodos, por vezes homens ou criangas. Nestas indicagoes quer, de um lado,

evidenciar a necessidade de precisao e utilidade destes meios ginasticos e, de outro, realgar

que o salvamento de pessoas e da esfera e do interesse publico e nao somente militar.

Desse modo, havia em sua obra, tambem, uma atengao especial ao manejo das ar-

mas. Em sua opiniao, elas nao podiam estar a servigo dos caprichos e das frivolidades das

paixoes, motives recorrentes dos duelos que viviam o seu auge naquele tempo (Rgura 12).

Amoros desejava afastar o manejo de armas deste universe das paixoes incontrolaveis

e aproxima-lo de seu mundo limpo. Afirmava a destreza com as armas em sua obra, por-

que as considerava uteis tanto a aplicagoes belicas, quanta ao treino fisico e a educagao moral.

Preparar o individuo para o combate e desenvolver a coragem, a tempera de cariter e a

audacia eram as finalidades que estabeleceu para serem alcangadas com este conjunto de

saberes em que a esgrima foi eleita como eixo para o ensino do manejo de armas em geral.

Paralelamente a importancia atribuida ao uso das armas, Amoros ressaltava, em

sua obra, o ensino da equitagao. A afirmagao deste ensino era justificada pela utilidade

de se obter destrezas fisicas de montar e desmontar um animal, estando este parado

ou em movimento, a passar com ele por rios, elevagoes e outros obstaculos, alem de

aprender a fazer os volteios80, movimentos muito apreciados por aqueles que pratica-

vam a equitagao na Franga oitocentista.

78. Amoros considerava o octogno uma maquina singular, que permitia fazer um gran-de numero de exercfcios e era, portanto, essencial num ginSsio. Cf. Keys, 1961, pp. 90-91.Sobre os aparelhos/maquinas de Amoros, ver, ainda, Vazquez (1988, pp. 29-64).

79. Estes itens sao em numero de 17 e estao registrados na nota n. 16 do cap. 3, nestelivro.

80. Os volteios constitufam-se em um conjunto de exercfcios acrobaticos executadossobre o cavalo, sem o uso dos estribos.

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Fig. 35 - Amoros. Aparelhos para aprender a nadar.

77

Fig. 36 - Exercicios de salvamento.

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1870 • Pieds rfglablcs. 1930 - Corps cuir, remboiire(Long. 1,90 m).

1960 - Roulettes pour le transpon WTO - Ancrf au sol. 1976 - IMglage pw u(Long. t,6flm).

KM?)-Corps etscltc en bois. I7W-B .trtcllltonte".' 1810 m-ChwaldtJahn 4 Leipzig"' 1S17 • Clleval tic dbs. 1*50 - Imitation ctleval vivanl (Part

Fig. 37 - Saltos sobre o Cavalo. O Cavalo em diferentes epocas.

O CORPO MOLPADO 6Q

O uso de armas e de animais era algo comum no cotidiano daquela sociedade.Animals e armas eram instrumentos de sobrevivencia, de transporte, de trabalho.Todavia, o que Amoros vai pontuar em seu metodo em relagao as armas e aosanimais e algo muito diferente e que contem canones e insfgnias especificas, quaseritualisticas. E neste sentido que a esgrima e a equitagao nao chegaram nunca a serensinadas a populagao em geral, permanecendo como distintivo de classe. A no-breza as inclufa no conjunto de suas praticas educativas. Os militares, geralmenteadvindos da nobreza, ja possuiam aquele saber. Quanta ao conjunto dos exercitos,o treinamento nas armas e montaria era uma necessidade e tinha finalidade definida.

Portanto, o treinamento especffico fazia parte da vida militar.De um modo geral, e possivel afirmar que o espirito militar percorre com muito

vigor as proposigoes amorosianas e, ate mesmo no ambito da danca, suas indica-goes privilegiam as dangas pirricas, dangas guerreiras, de origem dorica, dangadas tantoem Atenas quanta em Esparta. Desde a infancia, o homem grego era exercitado nestasdangas, cujo objetivo era inicia-lo nas artes guerreiras do combate. Amoros as inclufaem seu metodo e emprestava, dos cantos, os acordes para sua execugao. A refe-renda as dangas de sociedade era feita somente para afirmar que sua aplicagao deviaficar a cargo dos alunos. Ja ao fazer referenda as dangas cenicas ou teatrais, era maisenfatico e explicitava sua rejeigao. Classificava-as como pertencentes ao funambulismoe, como tal, voltadas a "meras" exibigoes, a espetaculos cuja finalidade era somenteo entretenimento, razao suficiente para retira-las de seu piano de trabalho.

Amoros estabeleceu e afirmou, com suaobra, uma forte sintonia com a ideiade uti-lidade que permeavaa nova sociedade capitalista. Conforme as analises de Alvin Gouldner,

os uteis eram aqueles cujas vidas nao giravam evidentemente ao redor do ocio e

do entretenimento, mas que cumpriam ramos economicos rotineiros, nos quaisproduziam bens e servigos comerciais...81.

As ideias amorosianas inscreviam-se com intensidade e precisao nesta cul-tura utilitaria. Respondiam, assim, aos apelos de ordem, de disciplina, de fixidez.Atuavam no corpo e pretendiam, a partir dele, pela autodisciplina, a extensaodesta ordem a sociedade.

Foi este ambiente cultural, em que prevalecia a ideia de utilidade, que pas-sou a considerar as mulheres, estes seres tratados com indiferenga ate oseculo XIX. Amoros concebeu exercfcios ffsicos especfficos para as mulheres,pois acreditava que educando-as na arte ginastica, estaria educando as maes e

81. Gouldner, 1979, p. 67.

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70 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

estas, por sua vez, carregariam consigo seus filhos, que entao, desde muito cedo,e guiados pelas maos das maes, seriam iniciados nesta educagao fisica e moral82.

Ate o jogo, esta primordial forma de relagao do homem com o mundo que o cercafoi compreendido por Amoros com carater util, como uma atividade que cria ordem,bastando ao professor somente dirigi-la. O jogo era para ele a atividade que, de modomais completo e amplo, permitia ao professor conhecer o carater e os vicios de seusalunos. E no jogo que o aluno se encontra mais desarmado, sendo mais facil, para oprofessor, tomar as medidas que desejar para dominar vicios e at'rtudes pouco civilizadas.Os odios, as maldades e o acirramento das paixoes sao tao funestos no jogo como navida; portanto, dominando-os no jogo por meio da agao segura do professor, o alunoestara pronto para domina-los em sua vida.

Somadas a estas finalidades morals, o ensino dos jogos tambem estava voltado parao desenvolvimento fisico dos individuos. A moldagem do corpo devia torna-lo simetrico,ambos os lados deviam ser igualmente tratados em um jogo, especialmente naqueles cujoenredo incluia as acpes de lancar e arremessar objetos. Havia nestes jogos a recomenda-cao incisiva da necessidade de se exercitar em ambos os lados do corpo, bem como dese ampliar progressivamente a distancia para os langamentos e arremessos.

Esse detalhamento no tratamento do ensino dos jogos demonstrava a preocu-pacao de carater metodologico de Amoros na busca de treinar, com maior eficacia,as habilidades especificas de arremessar e receber objetos em distancias variadas,sabendo posicionar-se corretamente para tal acao. A precisao destas acpes execu-tadas em um jogo demonstrava a capacidade do individuo de reproduzi-las, quandonecessario, na vida cotidiana e/ou quando chamado a servir a patria nas guerras.

Os jogos, para Amoros, eram, assim, mais uma possibilidade de treino de acpesffsicas e morais uteis para a vida diaria e/ou militar83 e em momento algum lembra-dos como parte significativa dafesta popular. Mesmo porque, esta festa (Rguras 17,18 e 19) popular da Praca Publica tambem devia ser objeto de controle. Nela haviaum gasto desmedido de energias. O controle exercido sobre a festa, contudo, naodevia aboli-la mas, sim, desnaturaliza-la, restringi-la. A festa devia ser enquadrada emracionalizagoes utilitarias e percebida apenas como necessidade biologica de descan-so periodico, de recuperagao para o trabalho. Conforme as analises de Bakhtin, "afesta e isenta de todo o sentido utilitario (e um repouso, uma tregua etc). E a festa

82. Amoros, 1838, p. xii. Ver tambem Aja, 1988, pp. 15-27. Na Franca, a educagaofisica das mulheres e assunto tratado de modo amplo e profundo pelos continuadores deAmoros, como, por exemplo, Georges Demeny.

83. Cf. Amoros, 1838, os jogos tambem permitem a realizacao de trabalhos coletivos.Por exemplo, nos jogos com bola e possivel que 100 alunos se exercitem ao mesmo tempo.

JOGO DE BOLA QUE L.EMBRA O CROQUET.

GOLFE.

IOGO COM ARCO.

Fig. 38 Jogos, seculo XVI

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72 LMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

que, libertando de todo o utilitarismo, de todafinalidade pratica, fornece o meio deentrartemporariamente em um universe utopico"84.

E era deste universe que tambem emergiam os jogos, atividades que sempre

projetavam inumeras imagens, ern que se via

uma especie de formula concentrada e universalista da vida e do processo historico;

felicidade/infelicidade/ascensao/queda, aquisicao/perda, coroamento destrona-

mento. Uma vida em miniatura desenvolvia-se nos jogos (traduzida na linguagem

dos simbolos convencionais), de forma muito direta. Ao mesmo tempo, ojogofazia

o homem sairdostrilhosdavidacomum, liberava-odas suas leis e regras, substitute

as convengoes correntes outras convengoes mais densas, alegres e ligeiras85.

Os jogos, com seus codigos e sentidos proprios, profundamente interligados,alargavam o universe utopico da vida em festa com suas predigoes, adivinhaoSes eaugurios de todos os tipos (Figuras 13, 14, 15, 16,20).

A Franga foi um dos pafses europeus que em grau bem mais elevado teve emseu passado uma alta tradigao popular em jogos. Esta superioridade manteve-se aolongo de toda a Idade Media e Renascimento, que, inclusive, acentuaram e mantive-ram o culto e o cultivo destas atividades populares, "algumas das quais relacionadascom a vida professional, mas todas praticadas atraves dos tempos com carater perio-dico nas festividades locais e regionais"86.

Amoros, de certo modo, desejou redesenhar os jogos, apartando-os de um uni-verso de festa e de imagens utopicas. Em seu piano de trabalho, os jogos deviam estar aservigo da formagao do carater; deviam ser parte da educagao ffsica e moral do homemnovo que a sociedade burguesa exigia. Portanto, integrados na cultura utilitaria.

Este contexto tambem o levou a enveredar por discussoes em tomo de uma moraldo trabalho. Se os jogos podiam educar para o trabalho, certamente, os trabalhos ma-nuais potencializavam esta educagao. Desse modo, compreendeu-os como parte daginastica e afirmou-os como o meio mais adequado para ocuparo tempo das criangas.

Os trabalhos manuais foram, entao, enaltecidos e comparados as profissoesmanuais com o sentido de enobrece-las. A referenda tao pungente a estas ativida-des mais uma vez atesta a filiagao de Amoros ao pensamento de Pestalozzi.

Conforme os estudos de Los Keys87, Amoros afirmava ser um homem queconsiderava todas as profissoes dignas e compativeis com a ginastica, especialmente

84. Bakhtin, 1987, p. 241.85. Idem, p. 204.86. Pereira, s.d., p. 470.87. Keys, 1961, p. 104.

O CORPO MOLDADO 73

as profissoes manuais (Figura 21). Desejava que os seus professores de ginasticativessem tambem outra profissao e zombava daqueles que o acusavam por ter emseus ginasios professores que eram tambem carpinteiros.

Ha aqui uma "sabedoria" na interpretagao das necessidades que se caracteriza-vam pela divisao do trabalho e criagao de fungoes novas, cada vez mais especfficas,a serem desempenhadas. A necessidade de um treinamento ffsico, mental e, sobre-tudo, moral nunca fora tao evidente. E Pestalozzi e um dos interpretes desta ordemsocial dividida que vai se afirmando com o capitalismo.

Embora as evidencias da intervengao humana nos rumos da sociedade ja fossem

incontestaveis e a ciencia ja fosse uma nova religiao, Pestalozzi acreditava que a ordemsocial fora criada por Deus, sendo o destino dos homens ja tragado. Aceitar sua condigaode nascimento sem revolta e desempenhar bem a suafungao social "herdada" significavarespeito ao Criador e possibilidade de ser virtuoso, conformando-se com o que Ihe forareservado. Assim, ofilhodoaldeaoseriaaldeao, do comerciante, comerciante... eavidacorreria mansa nas veias ardentes deste "corpo social" cujo cerebro era o mercado e cujaalma era o lucro. A educacao caberia contribuir com esta situagao, desenvolvendo habitose atitudes para que os indivfduos aceitassem de bom grado a sua pobreza88.

As virtudes estavam entao acima da riqueza e da pobreza, A bondade e as boasagoes, de igual modo, eram a propria essencia do homem. E dentro deste espfritoque se insere a obra amorosiana. E e assim que sustenta a necessidade perene deservir ao rei, ao Estado e a Deus. Seus estudos mostram ser indispensavel a forma-gao especifica de um professor de ginastica.

Basicamente, aquela formagao seria constftuida por um conhecimento no campoda filosofia, por ligoes de canto e de expressao musical. Era forte a ideia de umaeducagao dos sentidos e de um aprimoramento da sensibilidade. Para moldar ocorpo, era necessario um refinamento do espfrito.

Os saberes sensfveis constitufam o primeiro momento da formagao do pro-fessor de ginastica. De posse deles e que se passava aos conhecimentos cientfficosfornecidos pela anatomia e fisiologia89.

Estas ciencias, pela importancia que possufam na sociedade da epoca, conferiamlegitimidade aqueles que delas faziam uso em suas profissoes. No caso da formagaodo professor de ginastica, estas ciencias permitiam-lhe a compreensao dos movimen-tos corporals e das suas fungoes, bem como a possibilidade de proceder a interpreta-goes acerca do carater de seus alunos, sobretudo daqueles portadores de taras biolo-

88. Ponce, 1986, p. 143.89. Ver Amoros (1838), em que aparecem ideias sobre a forma$ao do professor ao longo

de toda a obra. Ver tambem Reys (1961), onde se encontram estas ideias ao longo de toda a obra.

Setor !a! - CEFQ. (JF

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74 TMAGENS PA EDUCACAO NO CORFO

gicas. Cabe acentuar que, neste periodo, quando as explicagoes comegam a deslocar-

se da flsica para a biologia, o organico vai assumindo uma preponderancia nas explica-

goes do social dadas pela ciencia. Afirma-se neste momento uma naturalizagao dos

fatos sociais, o que permite pensar que os homens surgem determinados por uma

natureza biologica que os aprisiona em um terrfvel fatalismo hereditario90.

Para alem deste universe de doutrinas biologicas, a formagao do professor de

ginastica, na perspectiva amorosiana, comportava ainda um conjunto de saberes bas-

tante singular: a "tecnologiaginastica", cujo conteudo era, basicamente, constituido

por nogoes de calculo e geometria voltadas para a construgao, reforma e criagao de

maquinas e instrumentos para as aulas. A inclusao destes saberes atesta o fascfnio

que as maquinas em geral despertaram nos homens do seculo XIX91.

A formacao do professor de ginastica completava-se pela compreensao profun-

da do principal objetivo do metodo amorosiano, qual sej'a: desenvolver as faculdades

fisicas e morais dos indivfduos. As faculdades puramente fisicas eram delimitadas em

torno da forga, agilidade, velocidade, destreza e resistencia92. As faculdades fisicas e

morais eram a regularidade, a graciosidade, o zelo, a energia e, finalmente, a perseve-

ranga. Por fim, Amoros destaca as faculdades puramente morais: a sabedoria, a preci-

sao, atemperanga, a bondade, a generosidade e o amorao bem.

Esta formagao ffsica e moral perseguida pela ginastica amorosiana faz surgir uma

ideia forga, propria do romantismo93, qual seja, a reinvengao do heroi e a dinamizagao

do mito da nagao.

Os alunos de Amoros eram ensinados, ate mesmo atraves dos cantos, a

servir ao rei, a patria e a Deus. Deviam ser virtuosos, leais e praticar o bem em

90. Desenvolvi esta tematica de modo mais amplo no trabalho de dissertagao demestrado, publicado em 1994, Educagao Flsica: raizes europeias e Bras//; ver especialmenteos capitulos I e 2 (SCARES, 1994). Ver ainda Rosen, 1979; Luz, 1988; Costa, 1983; Bisseret,1978; Canguilhem, 1986.

9 I. Fasclnio este que persiste de forma quase absoluta nos nossos dias, inclusive emrelac.ao a ginastica.

92. Na moderna fisiologia do treinamento desportivo encontramos uma vigorosadiscussao e considerate em torno destas qualidades/capacidades ffsicas, evidentementeampliadas pelos avancos do conhecimento neste campo da pesquisa do exercfcio fisico. A esserespeito, ver Barbanti (1979, pp. 98-290); Schmolinsky (1982, pp. 47-55 e 114 -119 ) ;Weineck, s.d., pp. 52-190 especialmente.

93. Cf. Carpeaux, 1962, vol. 4, pp. 1652 e 2009. O Romantismo e um movimento literarioque, servindo-se de elementos historicistas, mfsticos, sentimentais e revolucionarios do pre-romantismo, reagiu contra a Revolugao e o classicismo revificado por ela; defendeu-se contra oobjetivismo racionalista da burguesia, pregando como unica fonte de inspiracao o subjetivismoemocional - "e um fenomeno de reacao a Revolucao Francesa (que) encerrou de inicio uma crfticada civilizacao e da sua evolucao...". Ver ainda Hobsbawm, 1982, pp. 275-299 especialmente.

OCORPOMOLPAPO 75

qualquer situagao. Mas estas caracteristicas, tao marcadamente aristocraticas, de-

viam estar vinculadas ao pragmatismo utilitarista da burguesia. As agoes deviam

ser uteis e nao apenas boas ou belas ou leais.

Mas e preciso situar Amoros como um fundador9"1, como aquele que reconhece

um terreno ja existente, derruba antigos muros para a construgao de novas fronteiras e

resgata valores heroicos do passado; acompanha a expansao da racionalidade burguesa

vinculada a restauragao e aos ideais monarquicos. Vive numa epoca em que se definiram

as classes sociais: uma nobreza que nao tern mais poder, uma grande e uma pequena

burguesia em franca ascensao, um campesinato e, finalmente, um operariado crescente.

Neste quadro politico e ideologico, Amoros falou a voz do monarca, mas ba-

seou seu conteudo na racionalidade burguesa e, assim, afirmou uma Franga conserva-

dora na politica e na moral, mas modema nas realizagoes de campanha para a constru-

gao e consolidagao de um estado nacional. Foi porta-voz desse nacionalismo.

Cabe, todavia, nao esquecer os fundamentos de seu metodo, sua estrutura,

os criterios rigorosos para sua aplicagao e, sobretudo, o significado para todo o

desenvolvimento da moderna educagao fisica.

Conforme os estudos de M. Spivak, e possfvel afirmar que em seu tempo, pri-

meira metade do seculo XIX, Amoros soube criar a necessidade da ginastica, locais

apropriados a sua pratica - os ginasios - a aplicagao de um metodo segundo pianos

determinados e, sobretudo, soube colocar em agio a formagao de quadras especia-

lizados. Pode-se afirmar "verdadeiramente que gragas ao seu esforgo, ajudado talvez

por momentos propfcios, acabou-se criando uma consciencia nova, uma mentalidade,

uma especie de mistica que seus discipulos souberam depois perpetuar"95.

As ideias amorosianas sao a semente da ginastica cientffica em solo frances.

Seus continuadores irao radicalizar a necessidade da ciencia, esta nova deusa que ja

reina absoluta sobre os homens e, assim, estender a ginastica a um numero maior

de pessoas. O reduzido numero de praticantes de ginastica, desde finais do seculo

XVIII ate meados do seculo XIX, devera seraumentado.

Apos a Revolugao de 1848 e durante todo o Segundo Imperio, constata-se

um acentuado desenvolvimento da ginastica. Ela passa a ser comercializada e

vista como um negocio em beneficio de uma sociedade que troca de atitudee comega a por em moda a cultura e a forga. Reina entao um ambiente muito

favoravel para o corpo, uma boa disposigao da mentalidade e a convicgao

94. Acerca desta afirmagao, ver Del Pozo (1986, pp. 277-279 especialmente). Esteautor considera Amoros um fundador da ginastica francesa e espanhola.

95. Spivak, I988a, pp. 137-145.

iotecaSetonai-CtfO-UFcS

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76 IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

republicana que reconhece sua educagao e substitui a nutris pelo medico, os

militares e os professores. Neste clima propido, o corpo se converte em ob-

jeto de cuidados, os quais vao muito alem da ginastica corretiva, ou seja, da

ortopedia. junto dos exercicios nobres, os jogos tradicionais gozam tambem

de certo prestigio e a novidade radica, sobretudo, no uso que deles faz a nova

sociedade que se forma depois da revolugao"96.

Com Amoros, cria-se uma paixao pela cultura do corpo e se revela urn verda-

deiro modelo de aprendizagem coletiva do exercicio. Surge com ele um tipo de sis-tematizacao e aprofundamento que ira se generalizar na segunda metade do seculoXIX, sobretudo com os estudos de Marey e Demeny. Aquele que ensina ginastica

comeca a ter uma competencia afirmada.Todavia, conforme as analises feitas por Vigarello97, essa competencia da-se

com o apoio da medicina ou, melhor dizendo, sob atutela desse saber. E aquele queensina ginastica viu-se entre algumas tecnicas do Exercfto e aautoridade da medicina,

condenado a uma autonomia servil.O ensino da ginastica integrava-se, no infcio do seculo XIX, a busca tanto de

eficacia militar quanta de eficacia no trabalho. Os corpos cujas qualidades e destrezasfisicas eram determinantes para a sobrevivencia do individuo e da ordem social quese afirmava, deviam serformados parafungoes socials definidas. A sociedade ne-

cessitava de soldados, operarios e maes.Objetivava-se uma eficacia do movimento, um domfnio do corpo com finalida-

des de aplicagao precisas do gesto nas guerras e na industria. Cabia a ginastica ajudar

a recuperar e manter a saude.Quando o tema da degeneraeao fisica, na Franga, mostra-se em contornos nftidos

a sociedade do seculo XIX, sao colocadas em relevo praticas que podem diminuf-la e ateestanca-la. A ginastica, entao, impoe-se como modelo tecnico apropn'ado a educagao,nao so a eficacia, mas tambem a economia e conservacao das energias humanas.

E possfvel afirmar que as prescrigoes amorosianas sobre o exercicio ffsico per-

maneceram como referenda apos sua morte em 1848.

96. Andrieu, 1988, p. 115 . Naquilo que foi possivel constatar e interpretar das fontesconsultadas, Amoros foi um dos primeiros a transformar a ginastica num produto que podiaser vendido; portanto, num "negdcio". Foi tambem aquele que criou um tipo especifico depropaganda em torno da necessidade da educagao do corpo. Certamente este aspecto mer-cantil e propagandistico que Amoros instaurou, tambem permite uma aproximac.ao com asacademias de ginastica de nossos dias - grandes mercados criados para atender a uma signi-ficativa fatia de consumidores de produtos que prometem transformar corpos e mentes.

97. Vigarello, 1978, pp. 157 e ss.

O CORPO MOLDAPO 77

Ate os quixotes do cientificismo do seculo XIX, Bouvard e Pecuchet, persona-gens de G. Flaubert, valem-se daquelas prescrigoes para efetuarem a sua "patetica ehilariante travessia do saber"98.

Flaubert fez um estudo minucioso da obra amorosiana descrevendo-a emdetalhes, com rigor e precisao, no capitulo VIII de seu Bouvard e Pecuchet".Neste romance ha um momento no qual aquelas personagens se debrugam

sobre manuais cientfficos que tratam dos cuidados de si. E ali que Flaubert in-troduz a ideia em voga da utilizagao da ginastica como meio de melhorar a sau-de e o temperamento. Para tal, suas personagens passam a consultar o manual

de Amoros no qual encontram ilustragoes precisas sobre o modo de exerci-tar-se, observando-as entao com a maxima atengao.

Aqueles jovens de cocoras, de tronco fletido, de pe, dobrando as per-

nas, abrindo os bracps, mostrando o punho, erguendo fardos, cavalgando

traves, subindo escadas, cabriolando nos trapezios...100.

Ao mesmo tempo em que observam com deslumbramento as ilustragoes,ressentem-se da impossibilidade de possufrem um ginasio e um vestibule para osaparelhos que sobre eles exercem enorme fascinio. Entristecem-se pela falta de umhipodromo, de uma piscina, de uma montanha artificial.

Superando o desencanto das ausencias, passam a improvisar aparelhos. Umatflia abatida no jardim serve-lhes de mastro horizontal, cabos de vassoura transfor-mam-se em bastoes ortossomaticos, pedagos de freixo101 torneados pelo car-

pinteiro da casa substituem a falta de halteres. Animados, seguem as indicates deAmoros e passam a pularfossos e a saltarvalas com o auxflio de varas e

Para seguir as prescrigoes do manual, procuraram tornar-se ambidestros, ao

ponto de se privarem da mao direita temporariamente. Fizeram mais: Amoros

indica os versos que se devem cantar durante os exercicios, e Bouvard e

Pecuchet, marchando, repetiam o hino de n° 9: um rei, um reijustoeum bem

sobre a terra... E quando batiam no peito: Amigos, a coroa e a gloria...

98. Cf. Calvino (1990, pp. 128-129), ao analisar a obra de Flaubert.99. Esse i o ultimo romance de Flaubert, publicado ap6s sua morte. Consultei a 2a edi$ao da

tradugao brasileira editada pela Nova Fronteira e a edigao francesa da Brodard et Taupin.100. Flaubert, 1981, p. 171, edi$ao brasileira; Flaubert, 1994, p. 178, edic,ao francesa.

As ilustrac.6es a que se refere Flaubert fazem parte de um atlas de posturas fisicas que compoemo tomo 2 da obra de Amoros.

101. Freixo £ uma arvore da famflia das oleaceas (FERREIRA, 1986, p. 811).

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78 IMAGENS PA E DUCACAO NO CORPO

Durante a corrida: seja nosso o animal tfmido!

Atinjamos o cervo rapido!

Sim, nos venceremos!

Corramos, corramos, corramos!"102.

O requinte de detalhe da literatura de Flaubert poe em relevo os aspectos maissignificativos da obra de Amoros, tais como a sua ginastica elementar, o canto, a uti-lizagao de aparelhos, o ginasio e ainda a importanda da ginastica como meio de sal-vamento, aspecto que exaltava os animos de Bouvard e Pecuchet.

Flaubert escrevia tornado pela ideia de exatidao, de exatidao maxima entrepalavras, frases, obj'etos, movimentos. Esta sua procura por exatidao, traco caracte-ristico dos romancistas realistas, revelava a influencia da exatidao cientifica, dos me-

todos cientfficos sobre a realidade vivida. Sua objetividade, porem, esteve sempremergulhada na ironia e, desse modo, colocou em relevo a cegueira humana, a ce-gueira daqueles que acreditam cegamente em suas proprias criagoes103.

Observador sistematico, Flaubert faz uma literatura que bem pode servir deespelho da realidade, da natureza, da condigao humana, enfim, da sociedade doshomens. A literatura e expressao das contradigoes humanas,.de suas grandezas emiserias. E este seu papel como arte.

Bouvard e Pecuchet sao herois que permitem-lhe ironizar a crenga absoluta depo-sitada na ciencia, nos livros e preceitos cientfficos como lugares onde se aprende tudo.

Para os simplonos autodidatas, cada livro da acesso a um mundo, mas

sao mundos que se excluem mutuamente ou que com suas contradic.6es

destroem toda possibilidade de certeza. Por mais boa vontade que tenham,

falta, aos dois escriturarios aquela especie de graca sugestiva que permite

adequar as nocoes ao uso que delas se quer fazer ou ao gratuito prazer que

delas se espera tirar, dom esse que nao se aprende nos livros10'1.

Bouvard e Pecuchet apresentam, assim, o deslumbramento do homem co-mum com o conjunto de verdades, de conquistas e de soluooes que a ciencia e atecnica revelam no seculo XIX. A ginastica era, para eles, mais um campo de saberque aparecia explicado, sistematizado e passivel de ser utilizado como meio eficazde recuperacao e manutencao da saude.

102. Flaubert, 1981, p. 172, edicao brasileira; Flaubert, 1994, p. 180, edicao francesa. Estecanto era utilizado por Amoros para o treino das corridas de velocidade (AMOROS, 1838, p. 271).

103. Ver, a respeito, Canetti, 1990, p. 76; Carpeaux, 1963, vol. 5. pp. 2201-2202especialrnente.

104. Calvino, 1990, pp. 128-129 .

O CORPO MOLDADO 7Q

A utilizagao do manual de Amoros por Flaubert em seu romance permite infe-rir que havia, na sociedade francesa, a divulgagao ou, talvez, popularizagao da ginas-tica cientffica. E as prescrigoes amorosianas mostraram-se acessiveis a populagao

civil, marcando, ao mesmo tempo, um distanciamento das praticas circenses, dosacrobatas de rua e dos artistas de feira.

Isso tudo revela o que Amoros conseguiu: criar algumas condigoes para a gi-nastica tornar-se parte efetiva de uma mentalidade cientffica. Este processo, entao,vai permitir que se obtenha uma compreensao bem mais elaborada do exerciciofisico ao longo de todo o seculo XIX.

Da ideia predominante de modelagem do corpo caminha-se para a ideia deadestramento do corpo. Esta concepgao, repleta de indagagoes, comega a encon-trar respostas em um novo modelo de ciencia que e fornecido pelatermodinamica -

o modelo energetico105. A este modelo soma-se o conceito de evolugao, cunhadopor Darwin106 a partir da historia natural, e obtem-se, entao, as bases para a elabo-ragao de uma concepgao de corpo adestrado.

Este novo modelo nao implica abandono total das primeiras sistematizaoSestragadas por Amoros107, mas, sim, uma retomada a partir de novos parametros.

A sociedade francesa, entao, acentuou o seu combate a toda empiria e as de-monstragoes de forga em exibigoes espetaculares do corpo. Desejava uma educa-gao ffsica, mas nao aceitava mais atletas de feira nem soldados como instrutores.

Este desejo criou uma forte reagao no ambito estatal, na iniciativa privada e noscfrculos cientfficos. E foram estes ultimos que buscaram respostas praticas para aten-der aquele desejo da sociedade.

105. Sobre a importancia da termodinamica no desenvolvimento da ciencia, ver Bernal,1976, vol. 3, pp. 590-602 especialrnente.

106. Charles Darwin publica A Origem das Espedes em 1859.107. Amoros teve muitos continuadores de sua obra. Os de maior renome foram Laisne

e o coronel d'Argy. Cabe tamb^m registrar a transferencia do Ginasio Normal e Militar doParque de Crenelle para a escola de Joinville-le-Pont em 22 de junho de I 852 (Cf. Pereira,s.d., pp. 315-316).

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C A P I T U L O Q U A T R O

O CORPO ADESTRADOO INDIVIDUO, DISCIPLINADOR DE SI MESMO

O s circulos cientificos no seculo XIX estavam, ainda, investidos de uma auradeificada que a sociedade Ihes imprimira. Suas proposigoes, geralmente

aceitas, apareciam como verdades a serem seguidas, crengas a serem cultuadas. Ocarater multiple e contraditorio das praticas humanas, e a ciencia e uma delas, foisempre deliberadamente ocuttado.

No seculo XIX, a partir da biologia e da historia natural, novos conceitos dohomem e da vida em sociedade foram estabelecidos e com eles, contraditoriamen-te, formas de dominacao aceitas porque cientificamente "explicadas" e "comprova-das". O darwinismo, por exemplo, com o conceito de evolugao, forneceu os me-Ihores argumentos de carater biologico para afirmar a liberdade de mercado e a nao

intervengao do Estado na vida economica. A sociedade, este grande organismo vivoque evolui do inferior ao superior, deveria deixar funcionar a selegao natural e a livrecompetigao. Vence o mais forte, o mais apto, "naturalmente"'.

I. A concepcao de evolucao das especies, cf. Luz (1988, pp. 104-105), "[...] fornece ummodelo teorico para a ideia de progresso intelectual da humanidade, como forma especifica deevolucao do inferior (mais primitivo, mais simples) para o superior (mais elaborado, mais comple-xo); a medida que a biologia e a historia natural - e as ciencias fisicas em geral - podem embasar,atraves da concepcao de ordem natural, a categoria de ordem, tao fundamental no pensamentosociologico positive; na medida em que estas disciplinas fornecem um modelo evolutive para aexplicacao das mudangas na sociedade, e que, desta forma, a historia social pode ter uma analogiana hist6ria natural, otimista, harmonica e equilibrada, apesar de eventuais episodios cruentos que alei da sobrevivencia do mais forte explica. A mao invisfvel da Natureza conduz todos os eventos,mesmo os sociais, para o "melhor", isto e, para o progresso e o aperfeicoamento da humanidade".

Page 54: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

Fig. 39 llustragao de capa de livro Germinal de E. Zola

OCORPOADECTRADO 83

Nesta segunda metade do seculo XIX, ha um deslumbramento em relagao as

descobertas cientfficas no campo biologico. Florescem as teorias raciais2 e predo-

minam os estudos acerca do desenvolvimento da sociedade a partir de explicates

fundadas em leis biologicas. No campo da medicina, sao abandonados o discurso e

a pratica da medicina social3, que procuravam demonstrar a origem e a causa das

doengas a partir da realidade social excludente forjada pelo capitalismo.

No romance Germinal, de E. Zola, ha um contorno nitido de imagens que

apresentam a realidade social sem disfarces, esta mesma realidade que fora objeto

de atengao da medicina social.

Naquele romance, Zola busca criar personagens reais, um meio real, e ofere-

cer ao leitor "um fragmento da vida humana"4. Uma de suas personagens e o medico

Vanderhaghen. Ele "atende" aos chamados do cortigo onde moram os mineiros, per-

sonagens centrais de Germinal. Aquela moradia, nas maos de Zola, era a propria

expressao da exclusao social e escravidao que fora imposta, pelo capitalismo, ao

chamado "trabalhador livre". "Vivia-se ali como sardinha em lata; de uma extremidade

a outra, e nada da vida intima se conservava oculto, nem mesmo para as criangas"5.

O Dr. Vanderhaghen, ao chegar ao cortigo, aproxima-se imediatamente da en-

ferma, uma meninazinha, de nome Alzira, nascida ja com acentuado desvio cifotico

em sua coluna vertebral, que mal Ihe permitiaficar em pe. Aquele corpinho aleijado

tornava-se ainda mais fragil pela falta de alimento, de luz, de ar puro nas cercanias das

minas. A descrigao de Zola do estado de Alzira e singular:

Desembrulhada da sua coberta, a pequena tiritava a claridade dubia,

de uma magreza de ave agonizando na neve, tao mirradinha, que nem se via

i

2. Sobre o assunto, consultar Bernal, 1977, vol. 6, pp. I I 18-1 I 19 especialmente;Bisseret, 1978, p. 43; Luz, 1982. p. 172 especialmente.

3. Cf. Rosen (1979, p. 78), desde "o seculo XVIII varies medicos reconheceram anecessidade de abordar a medicina e a higiene, levando em consideracao sua insercao social,mas coube ao seculo XIX desenvolver a ideia da medicina como ciencia social e finalmenteformular com maior precisao e clareza o conceito de medicina social".

4. "Hoje a qualidade mestra do romancista e o senso do real. E e a isso que eu gostaria dechegar. O senso do real e sentir a natureza e representa-la como ela e" (ZoLA, 1995, p. 26). EmZola, encontra-se de modo muito nitido a tendencia de tingir de ciencia experimental a literatura.Seus metodos de trabalho literario sao inspirados no trabalho de cirurgioes e fisiologistas famosos,como por exemplo Claude Bernard. Seus individuos personagens, seus tipos coletivos, sao verdadeirasexemplificacoes de conceitos e nao meras abstracoes personificadas (Cf. CARPEAUX, 1963, vol. 5,p. 2389 e ss.). A escola realista/naturalista, a qual pertenceu Zola, reivindica um certo enobrecimentodo romance pois, para os integrantes daquela escola literaria, o "romance se transforma em analisecritica das paixoes e comportamentos contextualizados" (CARONI, 1995, p. 15).

5. Zola, s.d., p. 22, edicao portuguesa; Zola, 1968, p. 43, edicao francesa.

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84 IMAGENS DA E DUCAQVO NO CORPO

a corcunda. Contudo, sorria, com um sorriso desvairado de moribunda, os

olhos muito abertos, enquanto as maozinhas se Ihe crispavam sobre a cavi-

dade do peito"6.

O Dr. Vanderhaghen, vivendo aquela realidade todos os dias, mesmo nao pos-suindo convinces pol'rticas, curvava-se ante a crueza daquela cena e admitia que Alziramorrera de fome: "Ela morreu, mas foi de fome, a tua pequena. E nao e so ela, aindaagora vi a outra, all ao lado... Todos me chamam, e eu nao Ihes posso ajudar; o quevoces precisam e de carne"7.

Mas apesar de ser obvia a constatagao de que a doenga era a expressao mais"viva" das condigoes de miseria a que estava submetida a maioria da populagao, afir-

mava-se de modo contundente a medicina bacteriologica, cujas descobertas vaopermitindo a recondugao dos procedimentos medicos aos limites do organico. Asdoengas infecciosas poderiam, entao, ser explicadas nos seus aspectos bacteriolo-gicos e nao seriam mais "perturbadas" por reflexoes e consideragoes socials depolfticas medicas8.

O desenvolvimento da ginastica francesa que floresce neste momento trans-forma esta pratica em mais uma receita destinada a melhoria da saude e ao aprimo-ramento moral dos individuos e da sociedade, distante da compreensao de que aquelasuposta melhoria estava intimamente ligada a uma alteragao radical das condigoes devida, daquela vida retratada com tanta forga, por exemplo, na obra de Zola.

Embora alguns estudiosos da ginastica deste perfodo fagam alusao ao elevadoindice de mortalidade e baixa longevidade da populagao urbana parisiense, as pres-crigoes ginasticas tendem a uma crescente afirmagao e aceitagao como pratica quaseredentora, senao pelos seus efeitos fisicos, por aqueles de natureza moral.

Fruto da abordagem de ciencia, tipica do seculo XIX - o positivismo -, a ginas-tica cientifica segue seu curso e aprimora-se, de certo modo alheia as dores e mise-rias das muitas 'Alziras" que povoavam as minas, os campos e as cidades da Franga

oitocentista.A afirmagao da ginastica a partir dos trabalhos de Amoros, dar-se-a, particular-

mente, pela contribuigao de estudos especfficos no campo da anatomia, fisiologia eanalise do movimento humano. A estes estudos, somam-se aqueles desenvolvidospara a ginastica, acentuando o seu possfvel caraterterapeutico'.

6. Zola, s.d, p. 261, edigao portuguesa; Zola, 1968, pp. 388-389, edi^ao francesa.7. Zola, s.d, p. 261, edi$ao portuguesa; Zola, 1968, p. 389, edi^ao francesa.8. Ver a respeito Donangelo e Pereira (1979, p. 58 especialmente).9. A ginastica, desde o mundo grego, sempre esteve ligada a medicina e a terapeutica em

geral. No seculo XIX, esta ligacao acentua-se sobretudo porque confere status a esta pratica.

Fig. 40 Dispositive experimental para registrar os movimentos dotorax, do abdomen e tambem o debito de ar expirado duranteo canto.

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TTMAOENS DA EDUCACAO NO CORPO

Ganham destaque, sobretudo, os estudos relatives as doengas pulmonares e

aos problemas respiratorios. A ginastica passa a compor a terapeutica daquelas doen-gas e a enfase a uma educagao da respiragao e acentuada. Os estudos sobre a res-piragao partem de conhecimentos ja consolidados no campo da quimica, ciencia queestabelecera uma ordem em suas complicadas experiencias empfricas desde o se-

culo XVIII. Elucidara, por exemplo, processes quimicos fundamentals como a com-bustao e elementos quimicos fundamentals como o oxigenio10,

Assim, e possfvel constatar o inicio de um segundo momento da ginastica naFranga que, embora pontuada por questoes militares, estara muito proxima de cien-

tistas, medicos, higienistas e laboratories.O corpo torna-se cada vez mais objeto de estudos e cuidados. Multiplicam-

se as pesquisas sobre o movimento e sua utilizagao na vida cotidiana e, particular-mente, no mundo do trabalho. Os estudos no campo da fisiologia avangam e per-mitem analises mais precisas sobre o esforgo, a fadiga e a repetigao de gestos do

trabalhador.Cientistas franceses que se dedicam ao estudo do exercfcio ffsico mantem al-

guns principios das prescrigoes suecas; porem, procuram apoiar-se, sobretudo, namecanica, na higiene, na patologia, na anatomia e na fisiologia.

Sao as preocupagoes com a produgao que fazem avangar as pesquisas sobre ouso adequado de forgas e a economia de gestos necessaries a uma dada agio. Ocorpo vivo, em movimento, passa a ser visto como o centra do aparelho produtivo1'.

Com a utilizagao progressiva e cada vez mais especifica de maquinas no mundo

do trabalho, a forga fisica teve sua importancia bastante reduzida para a populagao. Orelevante passou a ser a obtengao e sustentagao de urna outra qualidade fisica, aresistencia e, sobretudo, a resistencia ao desgaste nervoso, a fadiga. Desponta en-tao uma nova ciencia, a ergonomia'2, ciencia da fadiga, das relagoes entre o homem

e a maquina no processo de trabalho.Em Paris, nos anos 80 do seculo XIX, no Centra do Parque dos Principes, ha

um laboratorio de analise do movimento, onde oja renomado medico e fisiologistaEtiene Jules Marey se dedica a pesquisas fundamentais sobre o movimento continue

realizado pelo trabalhador.

10. Hobsbawm, 1982, p. 305. Cf. este autor, a quimica foi aquela ciencia que, entretodas da epoca, teve a mais imediata e intima relacao com a pratica industrial.

I I. Perrot, 1988, p. 78 especialmente; Deleule e Guery, 1975.12. Ergonomia, palavra que se origina a partir do grego ergon = trabalho e significa o

estudo cientifico das condicoes (psicofisio!6gicas e socioeconomicas) do trabalho e das reiacpesentre o homem e a maquina (Le Nouveau Petit Robert, 1994, p. 806).

O CORPO ADESTRADO 87

Utilizando a cronofotografia13, um metodo que permitia a analise do movimen-to por meio de fotografias tiradas sucessivamente e com iguais intervalos de tempo,Marey procedia a estudos de seu objeto privilegiado: o corpo em movimento.

Como colaborador de Marey e chefe da estagao de fisiologia daquele laborato-rio, encontramos George Demeny. Ambos trabalharam juntos tambem no labora-

torio do Colegio de Franga e produziram, durante 15 anos, os estudos mais exatos

e rigorosos sobre a locomogao humana e os movimentos do homem em geral.Foram Marey e Demeny que criaram os processes precisos do metodo grafico,cronografico, e ate mesmo o cinematografico, para a compreensao do movimento

humano a partir de estudos do movimento dos animais14. Suas pesquisas, somadasas de outros cientistas da epoca, permitiram um novo e decisive impulse as ques-toes relativas a educagao ffsica.

Apoiados em novas e importantes sfnteses teoricas, como, por exemplo, adescoberta das leis da termodinamica que permitiram a compreensao das relagoes

entre calor e energia, consolidaram, para o estudo dos gestos humanos, uma racio-nalidade dada a partir da maquina. O corpo humano e visto entao como "um conjun-to mecanico animado por um motor cuja combustao invisfvel deve ganhar em efi-ciencia que pode ser medida"15.

A linguagem industrial e seus calculos de rentabilidade consolidam-se comofontes de analogias com as pesquisas sobre o gesto. Elabora-se com requinte ummodelo de corpo util e umatecnologia do organico conceitualiza-se com afmalidadede fazer crescer a chamada eficacia funcional16.

Numeros, medidas, comprovagoes, ou seja, dados atestam o positivismo triun-

fante da segunda metade do seculo XIX, em que a visibilidade mensuiivel dos resul-tados das pesquisas era imprescindivel.

Vivia-se o desejo nao mais contido de construir normas unicas. Vivia-se o fas-cinio pelos modelos fixes e generalizaveis. E e este contexto que abraga a ginasticapor percebe-la como capaz de revelar, a partir de sua sistematizagao cada vez mais

13. A cronofotografia foi uma importante etapa para a cinematografia moderna e muitoutilizada pelos artistas plasticos que desejavam pintar o movimento. Ver, a esse respeito, asobservacoes de Paz, 1993, p. 47.

14. A ciencia da epoca e, em particular, as pesquisas sobre a decomposicao do movimentorealizadas por Marey e Demeny, a partir da cronofotografia, fascinavam os artistas do perfodo.O pintor Georges Seurat, por exemplo, embora preferisse sempre "o realismo da imaginacao",acompanhava de perto aquelas pesquisas. Cf. Strasser, 1991, pp. 28-29.

15. Vigarello, 1978, p. 211 .16. Idem, ibidem.

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88 TMAORNS »A£DUCACAO NO CORPO

apurada, uma visao totalmente nova do movimento corporal e, tambem, de sua apli-

cagaonotrabalho17.A pritica da ginastica, desde Amoros, fora pensada como possibilidade de edu-

car o corpo para desempenhar funcoes uteis a sociedade. Mas a ciencia da epoca,

primeira metade do seculo XIX, limtera o empreendimento de Amoros. Nao havia

ainda a possibilidade de utilizacao de certos conhecimentos. Foi precise esperar a

segunda metade do seculo XIX para proceder ao requinte de analises empreendi-

das por Marey e Demeny, em um momento em que a "educagao do corpo" com-

parece totalmente reconhecida.

A partir das pesquisas realizadas com Marey, dos progresses da cronofotografia,

do cinema lento e do metodo grifico, Demeny pode dedicar-se a ate entao incipiente

fisiologia aplicada. A ginastica, entao, comeca afascina-lo, dadas as possibilidades que

apresenta para uma "educagao do movimento".Nela se revela o exito do ensinamento a partir do "gesto educado", do "domi-

nio das forgas" e sua distribute adequada pelo corpo, da postura ereta. A ginastica

e agrande responsavel pelavisibilidade deste "corpo educado".

Mas, era indispensavel, sobretudo, cuidar do tenue fio que separa o necessario

aperfeigoamento corporal do virtuosismo, dos usos do corpo e de suas forces

"educadas" em exibigoes inuteis, em diversoes diletantes. A ginastica nao poderia

aparecer ligada a universes em que o gasto de forgas nao era medido nem econo-

mizado. Dai a necessidade de alguem com "conhecimento" para ministra-la.

Conforme Demeny, este "alguem" deveria reunir os conhecimentos do sabio,

bem como aqueles do pratico para entao adapta-los ao aperfeiooamento do ho-

mem18. Tal qual Amoros desejaformar um profissional do ramo.Demeny denomina este profissional com uma expressao bastante curiosa: "en-

genheiro biologista"19. Esta denominagao, contudo, sugere algumas interpretacpes.De certo modo, parece revelar uma tentativa de Demeny de aproximar ainda mais

a ginastica de dois campos ja reconhecidos e destacados da sociedade oitocentista,

sobretudo nos circulos cientificos: a engenharia e a biologia.A engenharia desenvolvera uma apurada tecnologia nas construgoes de gran-

des estagoes de estradas de ferro, pontes e palacios publicos, atestando, inclusive,

uma tentativa de fazer destas construgoes obras de arte ou, como afirma Hobsbawm,

"monumentos as belas artes"20.

17. Idem, pp. 215 e ss.18. Demeny, 1931 , pp. 24-25.19. Idem, p. 24.20. Hobsbawm, 1988, p. 315.

Fig. 41 - Estagao fisiologica do Parque dos Prfncipes.

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Fig. 42 - Fonoscopio Demeny.Fig. 43 - Marey. Cronofotografias.

i oteca Sstoria! - CEFD - UFL.

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Fig. 44 - Marey. Cronofotografias.

GT

Cr

OP

Fig. 45 - Cronofotografo Demeny.

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04 DA EPUCACAO NO CORPO

A biologia, por sua vez, atingia de modo direto o homem social e estava vincu-lada ao conceito de evolugao, cuja importancia ja era incontestavel ao final do

seculo XIX.Mas, ha urn outro angulo a ser considerado nesta importancia atribufda a bio-

logia. Conforme observa Hobsbawm, a biologia, sob a forma de racismo, forneceos elementos essenciais para a elaboragao da ideologia igualitaria da burguesia, des-

locando a culpa das desigualdades humanas da sociedade para a "natureza", Dessemodo, a biologia acabou tornando-se "potencialmente a ciencia da direita politicacomo tambem a ciencia dos que desconfiavam da ciencia, da razao e do progresso"21.

Assim, tornava-se possfvel, mais que em qualquer momento, navegar em cer-tezas, evidencias, estatfsticas e onde predominava uma visao tecnificada da vida hu-mana. A eficiencia organica, a planificagao do trabalho, as descrigoes e os numerosmostrados sempre com mais exatidao por uma fisiologia cardiopulmonar atestavama soberania da ciencia. E a ginastica compunha este mosaico de certezas. Nele naocabiam indagagoes, apenas agoes uteis e passfveis de comprovagoes experimentais.

O "artiffcio da duvida"22 passava ao largo.Demeny23 desenvolvera enorme sintonia com este mundo de certezas em que

a precisao e a economia de energias eram predominantes. E e deste lugar existenciale conceitual que retira as bases cientfficas da educagao ffsica a que denominou deracional e harmoniosa. Com suas pesquisas pretendeu opor-se as prescrigoes gi-nasticas que privilegiavam aforga, por considera-las brutais e pouco adequadas forados cfrculos militares. Sua compreensao de educagao ffsica, desse modo, foi bas-tante pragmatica. Ele a percebe mais como um conjunto de meios destinados a en-sinar o homem a executar todos os tipos de trabalho mecanico, com a maxima eco-

nomia possfvel no gasto de forga muscular24.Suas preocupagoes voltavam-se para a forma do movimento em suas implica-

goes fisiologicas, pois estava interessado na vida. Afisiologia colava-se a vida e, por-tanto, estava alem dos estudos que a anatomia, com seus cadaveres, podia fornecer.

Guardadas as diferengas das agoes no tempo, Demeny, tal qual Amoros, foi

21. Hobsbawm, 1988, p. 351.22. Valery, 1991, p. 100.23. Ha uma unanimidade entre os autores consultados em considerar G. Demeny o

"chefe" da ginastica francesa deste periodo e aquele que divulga esta ginastica para o mundoocidental. Cf. Rey-Golliet, 1930; Pereira, s.d.; Bonorino, Molina e Medeiros, 1931; Rice,1926; Mackenzie, 1923; Roy, 1 9 1 3 .

24. Esta compreensao acerca da educagao fisica e encontrada ao jongo de toda a obrade Demeny, especialmente nos livros Les Bases Scientifiques de /'Education Physique eMecan/sme et Education des Mouvements.

Fig. 46 Hector Guimard, Entrada do metro, Paris, 1899

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of) IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

tambem um fundador25. Apoiado na ciencia, que julgava ser a unica safda para a edu-cagao fisica superar a falta de reconhecimento da sociedade acerca dos seus efeitossobre o indivfduo, indica o caminho que julgava mais adequado para superar aquele

estado de coisas, afirmando que:

So ha um meio de sair desse estado: e precise questionar os fatos, reu-

nir documentos, coordena-los e, a partir deles, formular leis. A doutrina da

educacao ffsica deve repousar sobre os resultados da mecanica, da fisica, da

qufmica e da biologia. Ela se torna, entao, senao uma ciencia, pelo menos

uma aplicacao da ciencia a educagao... A ciencia pura limita-se a conhecer as

leis que relacionam os fatos entre si. A ciencia acumula documentos sobre

documentos, divide-se em uma infinidade de ramos particulares; seu limite

e o porque das coisas. Ela lanca, as vezes, duvida e confusao em nosso espi-

rito, sem atenuar nossas miserias. Isso tudo nao nos torna melhores ou mais

felizes. A ciencia destruiu as crencas que formavam uma barreira aos nossos

descaminhos; ela deve substituir essas crengas por regras igualmente seve-

ras e mais positivas. A humanidade liberou seu capital de fe focalizado nas

superstigoes; ela deve reencontra-lo e emprega-lo na religiao do progresso.

Precisamos de pontos fixos na vida; e em direcao a luz que devemos

caminhar. Nao se trata de saber tudo: as forgas da natureza, uma vez con-

quistadas, podem ser dirigidas contra nos".

Neste trecho de uma de suas obras, encontramos Demeny, o homem do fimdo seculo, tornado de sentimentos ambfguos em relagao ao mundo que a razaodescortina, ao poder que a razao confere, as crengas que a razao desloca.

Como um missionario da nova religiao, a religiao do progresso, Demeny des-lumbra-se com a ciencia e aprofunda em si a consciencia do poder, quase absoluto,por ela revelado. Dedica-se entao a sistematizar as conquistas no campo da pesqui-sa do movimento afirmando, ja nas decadas finais do seculo XIX e infcio do

25. Demeny, juntamente com Marey e F. Lagrange, podem ser considerados fundadores daanalise dos movimentos e da medicina desportiva contemporanea (PEREIRA, s.d., p. 449).

26. Demeny, 1931, pp. 21-22. A insistente busca de vinculos da ginastica/educacaofisica com a ciencia e ainda, nos dias de hoje, uma questao em aberto na area. E interessanteobservar que Demeny faz referenda a uma base cientifica para a educacao fisica e, assim,mesmo seguindo caminhos abertos por Amoros, nao acata com tranquiiidade a afirmacao deque a "... Ginastira e a ciencia fundamentada de nossos movimentos, de suas relacoes comnossos sentidos, nossa inteligencia, nossos sentimentos..." (ver nota 13 cap. 3). Neste traba-Iho, nao ignore esta questao e, ao recuperar parte da historia do conceito de ginastica/educa-cao fisica, acredito estar contribuindo para este debate.

O CORPO ADESTRAJX) 07

seculo XX, uma caracterfstica marcante na concepgao francesa de ginastica/educa-gao ffsica: o ecletismo27.

Da experiencia inglesa, buscou aproveitartodo o cabedal de praticas corporaisao ar livre, como, por exempio, aquela relativa aos jogos em geral (Figuras 22 e 23).Todavia, tratava dos jogos com muita cautela e nao concordava com a exacerbagaodo carater competitivo e seus inumeros concursos, por considerar que esta aborda-gem se destinava a uma minoria e

A educagao ffsica dirige-se atodos, aos fracos sobretudo. Nao e precise res-

tringir, como se faz muito frequentemente, a educagao ffsica a simples prati-

cas atleticas. Estas servem antes para utilizar as forgas que para adquiri-las

[...] sem pretender tais superioridades ffsicas, todos podem se desenvolver e

sair de um estado deploravel de inferioridade nesse aspecto.

O fraco e timido, bastante suscetivel em questoes de amor proprio;

nao se deve desencoraja-lo, mas ao contrario, atraf-lo para o exercfcio do

qual ele tanto necessita. Ele deve ser o objeto da atengao complacente do

educador preocupado com a prosperidade e o futuro de seu pafs. Os fracos

constituem a maioria. Urge elevar o nfvel medio de uma nagao em lugar de

se procurar produzir alguns indivfduos singulares.

A educagao ffsica nao e o atletismo, nao e a busca da forca pela forca;

seu objetivo e mais elevado, ele diz respeito ao poder mesmo de um povo

enquanto fonte de energia e produtor de trabalho28.

Demeny esta mergulhado na constatagao obvia daqueles que defendem a re-ligiao do progresso, qual seja, a de que o capital esta matando sua mais preciosafonte de lucro: o trabalhador.

Em Paris de fins do seculo XIX, Demeny constata que, metade de sua popu-lagao morre ate os 21 anos e resta apenas um tergo aos 46 anos. Na Franga, umquarto das criangas nascidas morre ate 3 anos.Nao resta mais que a metade dissoaos 41 anos e um quarto aos 68 anos29.

Demeny prossegue com seu registro, assinalando que a par deste quadro demortalidade, avangam de modo assustador as doengas degenerativas, a diminuigao

daestaturaeaesterilidade. Aumentatambem, dia a dia, onumerode crimes, deiitose a loucura.

27. Sobre o assunto ver Pereira, s.d., pp. 473-476; Langlade e Langlade, 1986, pp. 254-268; Rey-Golliet, 1930, pp. 63-129, entre outros.

28. Demeny, 1931, pp. 1-2.29. Idem, pp. 9-10.

BibliotecaSs-/..;;1

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08 IMAGENS DA EIXJCACAO NO CORPO

Ora, em sua visao de higienista convicto, a causa de todos estes problemasresume-se a ma higiene, a ma educagao fisica, a ma educagao, a um mau emprego

das forgas no trabalho.E diante deste quadro e das causas que aponta que a sua "defesa" dos fracos se

expoe. O fraco e fraco porque nao sabe fazer uso adequado de suas forgas, naoaprendeu como potencializa-las, nao sabe cuidar de si. Cabe ao governante, pelas

vias institucionais, educa-lo para superar sua fraqueza, elevar sua auto-estima e, as-

sim, elevar todo o poder de um povo.Estava dado entao, para Demeny, o papel social da educagao fisica: ela ensinaria

ao individuo como evitar o desperdicio de forgas nas atividades e, assim, seria taobenefica para formar atletas como para melhorar a condigao dos fracos.

Com este papel social, a educagao fisica francesa pensada por Demeny deve-

ria, entao, agregar saberes que pudessem potencializa-lo. Desse modo, procurouassimilar saberes e praticas ja consolidadas em outros paises, como, por exemplo,os jogos ao ar livre, largamente utilizados pelos ingleses tendo, porem, cautela aoemprega-los, dado o carater excessivamente competitivo que estas atividades po-deriam tomar. Parece claro que Demeny, ao assimilar os jogos para sua educagaofisica, desejou instrumentaliza-los, atribuindo-lhes fungoes uteis, rompendo, assim,com o jogo como representagao livre dos processes da vida, como parte viva das

festas e ritos populares.Seguindo em seu proposito de agregar saberes, incorporou dos suecos sua

concepgao estetica do exercicio ginastico, demonstrando assim seu reconhecimen-to por aqueles que, muito antes dos franceses, pensaram formas gimnicas para a

populagao civil.Por fim, de seus compatriotas franceses buscou as tecnicas de aplicagao da gi-

nastica militar que se desenvolvera de modo bastante promissor ao longo de todo oseculo XIX. Em relagao aos franceses, contudo, cabe assinalar que, embora a ginas-tica militar tivesse predominado, houve em suas prescrigoes preocupagoes bastantenitidas voltadas a sua aplicagao para a populagao civil, nas quais os jogos ao ar livreforam largamente utilizados, sobretudo nas proposigoes amorosianas.

Herdeiro do pensamento frances, essencialmente enciclopedista e universalista,Demeny incorpora uma dada visao da Franga como foco de irradiagao da cultura,como centra aglutinador de interpretagao e de critica do seu proprio pensamento,

bem como da cultura mundial em geral.Conforme assinala Celestino E M. Pereira30, o ecletismo da educagao fisica na

30. Pereira, s.d., pp. 444-445; ver ainda Rey-Golliet, 1930, pp. 63-99.

O CORPO ADESTRADO 00

Franga deriva desta circunstancia, ou seja, de que a educagao fisica que hoje nos edada a conhecer, localiza os seus fundamentos cientfficos e pedagogicos em um es-pago geografico bem determinado: os paises proximos e que mantinham um con-tato com a Franga.

O pensamento frances sobre a educagao fisica foi bastante critico e analitico. Deum modo geral, a apreciagao que fez dos problemas indica que nunca orientou-se deforma ortodoxa. A preocupagao basica foi sempre colocar em relevo, de forma bas-tante contundente, os fundamentos teoricos dos problemas e o seu carater especu-lativo, quer sob o ponto de vista filosofico, quersob o ponto de vista cientifico31.

Patria de Claude Bernard*, fundador da fisiologia, a Franga procurou criar aolongo de todo o seculo XIX uma concepgao de educagao ffsica estruturada na expe-riencia alheia (inglesa e sueca particularmente) e, ao mesmo tempo, nos modernosensinamentos da ciencia que la se estruturavam.

A educagao ffsica e, para os franceses, um problema formativo. Mas e um pro-blema relacionado intimamente com as questoes de natureza politica, social e eco-nomica, em que a educagao escolar e nao escolar aparecem em relevo, pois e dasua natureza socializar o individuo e equacionar parte significativa dos problemassociais. Conforme Demeny,

O individuo, abandonado a si mesmo, pode as vezes encontrar condicoes

favoraVeis a seu desenvolvimento, mas, em geral, ele vegeta, ele nao pode

superar os obstaculos e os entraves que encontra, e nao atinge o grau deflorescimento completo de sua natureza.

O efeito benefico da educagao nao cessa conosco; nossos descenden-

tes herdam nossas qualidades ffsicas; e precise ter tambem um patrimonio a

Ihes deixar. O Estado deve, por essas razoes, ocupar-se da educagao dajuventude32.

Sua crenga tambem na educagao, e na educagao estatal, vendo-a inclusive comoo lugar da aplicagao das descobertas da ciencia e da tecnica, levou-o a integrar variascomissoes formadas pelo Ministerio da Instrugao Publica.

Na ultima decada do seculo XIX, Demeny identifica-se plenamente com osideais educacionais da Terceira Republica na Franga com Jules Ferry, quando se bus-

31. Pereira, s.d., pp. 444.

* Claude Bernard, 1813-1878. Fisiologista e medico, formou-se em farmicia na cidade deLyon e em medicina na cidade de Paris. Em 1855, ooipou a cadeira de medicina experimental noCollege de France. E considerado o fundador da fisiologia moderna (Petit Robert, 1993, p. 215).

32. Demeny, 1931, p. 9.

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Fig. 47 Ginastica sueca

Fig. 48 Ginastica sueca

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102 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

ca, sobretudo, uma unidade nacional e se valoriza o merito, a conquista pelo esforgoe capacidade individuals. Sua compreensao da educagao fisica leva-o a crer que, atra-ves dela, fortalegam-se nao somente fisica, mas sobretudo moralmente o individuoe a sociedade.

O ecletismo da educagao fisica na Franga, particularmente aqui destacado nasobras de Amoros e Demeny, foi motivado por razoes que vao de necessidadesmilitares a necessidades utilitarias de aplicagao imediata.

E possivel assinalar, entao, que o ecletismo de Demeny procurou estabelecerum sentido nacional ao problema da educagao fisica, buscando e identificando, nasrevelagoes da ciencia, as possiveis e necessarias solugoes.

O seu metodo ecletico e tambem conhecido como "escolafrancesa"33. Afisio-logia e ai posta em relevo para a classificagao e concepgao dos exercicios fisicos, ate

entao predominantemente analisados sobre bases anatomicas. Afisiologia ira per-mitir a compreensao das possibilidades de aperfeigoamento funcional e das qualida-des ffsicas daf decorrentes. Com uma solida base fisiologica, a escola francesa naose limitava apenas ao estudo dos orgaos e dos musculos, mas preocupava-se so-bretudo com a globalidade do fundonamento do organismo.

A escola francesa de Demeny, com base na fisiologia, vai colocar a vida no cen-tro de suas preocupagoes, indagagoes, e buscar a compreensao das principals fun-goes vitais. Vai tambem demonstrar redobrada atengao ao ainda misterioso sistemanervoso e constatar que ele pode ser melhorado pelo exercicio ffsico.

O exercicio nao deve ser considerado somente um meio de desenvol-

ver os musculos, mas sobretudo uma educagao dos centres nervosos que os

comandam, tendo em vista uma melhor utilizagao de nossa energia34.

Na prescrigao de exercicios fisicos, Demeny afirma em sua obra que o siste-ma nervoso deve serabordado de imediato, pois todas as agoes empreendidas peloindividuo estao sob o dominio desse sistema. Afirma ainda que os movimentos a

serem executados devem assumir uma relagao direta com as necessidades e o es-tilo de vida de cada um. A melhor utilizagao de nossa energia, tese central da obra deDemeny, ocorre pela necessaria dosagem e medida do valor e utilidade de todo equalquer esforgo e, ao mesmo tempo, pela rejeigao de tudo o que for superfluo. Eassim que

33. Cf. Pereira, s.d.; Langlade e Langlade, 1986; Bonorino, Molina, Medeiros, 1931.34. Demeny, 1924, Apendices, note 5, p. 534.

Fig. 49 Ginastica sueca

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Fig. 50 Ginastica sueca

>.**r̂

Fig. 51 Ginastica sueca

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OCORPOADESTRADO 707

Fig. 52 - Analise Cronofotografica da passagem da marcha a corrida.

Cada movimento pode ser estudado, igualmente, do ponto de vista fisiologi-

co, isto e, em relacao aos seus efeitos sobre o corpo, e do ponto de vista

pedagogico e educative, isto e, em relacao as vantagens que ele proporcio-

na ao indivfduo35.

O resultado desses estudos e analises do movimento humano permitiu a cria-gao de regras gerais para proceder analises do movimento a partir de leis gerais da

mecanica36. E foi este acumulo de saberes tecnicos e cientificos das ultimas decadasdo seculo XIX que permitiu a Demeny proceder a conclusoes bastante inovadoraspara o seu tempo acerca da importancia da energia dinamica. Esta e uma das conclu-soes centrals de sua obra, que o levou a confrontar-se com as prescribes do siste-ma sueco de ginastica, cuja tese central se acenta sobre a execugao de exerciciosestaticos e sincopados37.

Ao contrario destas prescrigoes, a escola francesa e, particularmente, a obra deDemeny, tendo a fisiologia e nao a anatomia como base, ira afirmar que a vida naose manifesta nunca sob a forma de energia estatica, mas sim dinamica, por um traba-Iho com um tipo especffico de movimento que deve ser continue e complete. 'Aginastica e movimento e nao imobilidade, a flexibilidade nao pode ser o resultado demovimentos executados com rigidez"38.

Para Demeny, a rigidez na execugao de um movimento e considerada comoum inutil dispendio de energia. A execugao dos saltos, corridas e marchas devemexpressar um modelo de destreza, de flexibilidade e, sobretudo, de economia, poiscada trabalho deve possuir uma atitude economica e seus efeitos nao podem estarrestritos as fungoes da vida animal, mas influir sobre a moral do homem, sobre aatividade dos centres nervosos e sobre as fungoes mais elevadas do cerebro39.

A economia de energia na execugao dos movimentos esta diretamente ligada aeste desenvolvimento harmonico do organismo. Afadiga e, para Demeny, o resul-tado de um mau emprego das forgas e de nogoes inadequadas de como executaros movimentos e

35. Idem, p. 7 I.36. Existem cinco leis de mecanica dos movimentos: lei do menor esforgo; lei da

distribuicao dos esforcos de acordo com as resistencias a veneer, lei do relaxamento dosmusculos e lei da ine>cia das massas (idem, pp. 72-73).

37. Ver, a este respeito, Rey-Golliet, 1930, pp. 73-88; Pereira, s.d., pp. 450-483;Bonorino, Molina e Medeiros, 1931 , pp. 129 e ss.

38. Demeny, 1920, p. 10. Ver tamb£m Demeny, 1931 .39. Demeny, I 93 I, pp. 246 e ss.

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TMAr.FNS DAEDUCACAO NO CORFO

A mais tangivel manifestacao do aperfeic,oamento dos centres nervosos con-

siste na coordenacao dos movimentos voluntaries. Sabemos quanto a edu-

cagao proporciona em termos de ordem e de economia em nosso dispendio

de forc,as e de energia; conseguimos, atraves do habito, produzir mais traba-

Iho e um trabalho mais perfeito com menos fadiga.O aperfeic,oamento dos centres nervosos so se adquire pelo exercicio;

mas aqui nao e, como seria para o efeito higienico, a dose ou quantidade de

trabalho que importa, mas o modo e a perfeigao da execugao dos movimen-

tos40.

A maneira perfeita de executar um dado movimento implica, sobretudo, o en-

sino e aprendizagem de um universe tecnico. Dominando aquele universe, qual-

quer movimento poderia ser executado com o menor dispendio de energia. Aqui

esta colocada a ideia de economia de forces, tao presente na obra de Demeny, ideiaesta que o faz acreditar na necessidade de uma educagao para o esforco, pensando,

inclusive, em fazer como decorrenda desta educagao uma melhor adaptagao ao mun-

do do trabalho41.Tendo como pressuposto basico a economia de forgas e a necessidade de uma

educagao para o esforco, Demeny formula principios gerais para a educagao fisica e

para qualquer trabalho ginastico. Sao eles:

1. Dar aos movimentos, desde o princlpio, uma forma natural e uma direcao util,

preparando metodicamente para um trabalho sem especializacao nem auto-

matismos, executando-os como se faz com as aplicagoes.

2. Adquirir simultaneamente a forga e a flexibilidade, com a independencia das

contracoes musculares, eliminando as inuteis e aprendendo a contrair e a re-

laxar oportunamente.3. Buscar em todo trabalho a assodacao economica das contragoes musculares,

quer dizer, a participate dinamica de todo o corpo, mesmo que em movi-

mentos localizado, pois todo esforgo e resultante de agoes parciais bem defi-

nidas e bem precisas.4. Buscar um bom ritmo de trabalho que durante o perfodo de repouso permita

a completa recuperacao das forcas.5. Realizar durante o trabalho uma respiragao bem ritmada, sem paradas na ins-

piracao e na expiragao, em que os movimentos das costelas e do diafragma

estejam em sintonia.6. Evitar esforcos estaticos e paradas bruscas. Ao contrario, executar os movi-

40. Idem, p. 246.41. Ver Goellner, 1992, pp. 58-60 especialmente.

O CORPO ADHSTRADO 100

mentos em toda a sua possivel amplitude, em todas as direcpes e seguindotrajetorias contfnuas e bem diversificadas.

7. Nao deixar nada ao acaso; despertar sempre a atengao para formas variadas

do movimento e por uma execugao perfeita.

8. Desenvolver o sentido da orientagao no espago e o equilfbrio mediante exer-

cfcios cada vez mais complexos e diffceis. Porem, sempre associados a energia,

flexibilidade, graga, facilidade, beleza e a utilidade dos movimentos42.

Tomando estes principios como basicos nas prescrigoes da arte de exercitar-se, Demeny espera que os individuos, de posse de um domfnio tecnico em relagao

ao uso adequado de suas forgas, possam usufruir dos efeitos do exercicio fisico

bem dosado. Desse modo, poderao ampliar significativamente as qualidades fisicas

indispensaveis a uma vida saudavel e, ao mesmo tempo, a um aumento de produ-

tividade. Isto, porque, para Demeny, o aperfeigoamento moral dos homens esta

ligado ao seu estado fisico, e um exercicio fisico bem aplicado deve ter um efeitohigienico, estetico e, sobretudo, moral.

Do ponto de vista higienico, o exercfcio fisico deve atuar na harmonizagao dasgrandes funooes, como a respiragao, circulagao, digestao e controle nervoso, o queacaba por determinar uma condigao otima de saude.

Ja o efeito estetico sugere uma educagao da forma e da atitude, dando enfasea beleza. Para Demeny,

A nocao de beleza nao deve estar limitada a conformac.ao do rosto; ela

abrange a conformacao do corpo inteiro. Os artistas, impregnados das obras-

primas antigas, buscaram, na proporgao dos membros e do tronco, estabele-

cer um tipo de beleza; mas limitaram-se as medidas exteriores e as relacoes

numericas, uteis principalmente ao escultor pratico. Podemos ir mais longe e

de forma mais precisa. A beleza so pode existir no homem vigoroso, em ple-

na posse de seus recursos fisicos; ela e a consequencia da perfeigao de seus

orgaos e e inseparavel da agilidade e da forc,a adquirida pelo exercfcio43.

A beleza, conforme Demeny, foi abandonada como atributo humano no pe-

rfodo da Idade Media. A exaltagao mistica, acompanhada de um desprezo pela cultu-ra corporal, permitiu que o corpo se degenerasse de forma nunca vista: 'A arte gotica

deixa, sobre esse ponto de vista, documentos interessantes que passam uma im-pressao deploravel44 (Figura 24).

42. Demeny, 1928, pp. 214-216 .43. Demeny, 1 9 3 1 , pp. 159-160.44. Idem, p. 160.

BiWioteca Sstorial • CEFD • UFES

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4SD, , FnlJCACAO NO CORPO

Para Demeny, a retomada da beleza como atributo humano so reaparece naarte com o Renascimento (Figura 25). O tipo de beleza inspirado na antiguidade clas-

sica ressurge com grande forga e se impoe como modelo.

Em lugar da mascara placida e sem expressao dos deuses e atletas, as

obras desse periodo sao mais completas, senao mais perfeitas: afisionomia

desperta; as emocoes da alma se unem a beleza da forma para dar a ela mais

vida, harmonia e expressao"15.

Conforme as analises de Demeny, o ideal de beleza varia ao longo do tempo,e um individuo nunca e considerado belo em absolute, mas, de forma relativa, porreunir caracteristicas comuns a sua raga. Mas, Demeny esta interessado em definira beleza mais cientificamente; quer desvincular-se de convengoes existentes. Pre-tende associar a beleza a ideia de aperfeigoamento fisico e adaptagao ao meio. Suge-re que este e, certamente, um terreno muito mais positive e assim indica o que

seriam as condigoes da beleza:

Em resumo, todo homem normal, gozando de boas condigoes de sau-

de e de forga media, possui uma estrutura ossea solida, simetrica, sem des-

vios; ele apresentatambem musculos desenvolvidos e aparentes sob a pele,

espaduas carnudas e bem colocadas, o peito largo e bem aberto, o ventre

volumoso e com paredes musculosas: esses sao os atributos da beleza46.

A beleza, portanto, aparece na obra de Demeny como a consequencia de umadada disciplina, em que o exercicio fisico passa a ter um lugar privilegiado. Este exer-cicio tambem deve ser belo, deve expressar a harmonia geral do corpo.

Demeny trabalha entao com o conceito de coordenagao, considerando a be-

leza e a graga das movimentos a consequencia de uma perfeita coordenagao"17. Seusestudos sobre este tema partem sempre da importancia atribuida ao sistema nervo-so na definigao desses movimentos e, sobretudo, na representagao mental deles.

Todo movimento voluntario e precedido de um ato nervoso que o co-

manda e ha nesse ato os elementos necessaries a garantir sua precisao. A

vontade faz os musculos se moverem como a mao comanda os cordoes de

uma marionete.

OCOKPOADEgTRAlX) 111

O ato nervoso pode existir independente do ato muscular, ele pode

ser separado do movimento, nao ser seguido por este, basta representar

mentalmente as contragoes musculares sem avangar para a execugao dasmesmas'18.

Sendo a coordenagao uma qualidade fundamental na execugao dos movimen-tos, Demeny e categorico ao afirmar que, para obte-la e, por consequencia, obter

agilidade na arte de utilizar as proprias forgas, e precise uma educagao do sistemanervoso. Um homem bem coordenado utiliza sua energia da forma mais adequadae obtem como resultado movimentos harmonicos. Um ato voluntario e, paraDemeny, a expressao de movimentos harmonicos.

A harmonia traz a beleza. Um movimento nao e belo se nao e correto, preciseou bem definido. Assim, ele deve estar de acordo com o fim estabelecido e o seuresultado deve ser util e, sobretudo, obtido com economia de forgas. Contribuempara esta formagao a ideia de educagao dos sentidos, que, para Demeny, e inseparavelda educagao de nossos outros orgaos. "Nossa vida de relagao nao pode ser aper-feigoada sem ela, sem a educagao de nosso aparelho sensitive'"19.

O use da expressao "aparelho sensitive" permite apreender em Demeny umaideia de integragao dos sentidos e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de trabalharapenas um, de forma isolada. Para ele, um sentido isolado fornecera nogoes incom-pletas sobre as coisas, e somente o trabalho com todos os sentidos podera contri-buir para a obtengao de nogoes suficientes sobre as coisas.

Em sua obra, Demeny acentua uma vez mais a importancia da compreensaodo sistema nervoso, uma vez que e nos centres nervosos que se tratam todas assensagoes recebidas pelos orgaos dos sentidos.

E tarefa de um individuo saudavel associar as diferentes nogoes, faze-las con-cordar entre si e ir reduzindo-as a uma ideia cada vez mais clara, ate chegar ao traba-lho final que e realizado pelos centres nervosos, cuja fungao 6 tratar as sensagoesrecebidas. Ha af uma educagao recfproca, uma interpretagao das sensagoes cujo re-sultado e um conhecimento mais precise da natureza50.

Demeny destaca a necessidade de aperfeigoamento dos sentidos e sugere queo exercfcio constante, metodico e progressive cumpre tal tarefa. Acrescenta, ainda,que este aperfeigoamento e influenciado diretamente pelo repouso ou o excessode atividade, pela fadiga e esgotamento conforme as leis gerais do trabalho. Por fim,

45. Idem, ibidem.46. Idem, p. 1 6 1 .47. Demeny, 1 9 3 1 , p. 261.

48. Idem, ibidem.49. Idem, p. 269.50. Idem, ibidem.

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IMAGENS DA E DUCACAO NO CORPO

afirma que os orgaos dos sentidos exigem cuidados muito especiais de higiene paramanter sua integridade.

A partir destas afirmagoes basicas sobre os sentidos, Demeny detem-se noestudo de cada sentido em particular: o tato, a visao, a audigao, o olfato e o gosto.

Sobre o tato, afirma a necessidade de exercfcios bastante delicados para apren-der a distinguir"[...] ostecidos, osmetais, apreciaropolimentoou aasperezadosobjetos, sua dureza, sua temperatura e seus movimentos de vibracao"5'.

O tato tambem ja e entendido como um sentido que se reparte sobre todo ocorpo e que se especializa nas maos, motive pelo qual Demeny faz severas restri-goes aos exercicios de locomogao com as maos, ao ato de trepar e, sobretudo, aouso das barras fixas e de todos os aparelhos de ginastica, considerando-os inconve-nientes. O uso das maos com estes fins retira-lhes toda a delicadeza de textura,fazendo-as assemelhar-se aos pes52.

Com estas observagoes, afirma seu distanciamento do conjunto de praticasffsicas proprias de acrobatas e artistas circenses, em que a inversao do corpo, o apoiosobre as maos e o uso de aparelhos e uma constante.

Porta-voz da ginastica cientffica, Demeny a afirma como superior, como evolu-gao de um estagio primitive no qual localiza as acrobacias. Se o uso das maos parafins acrobaticos sobre o solo e/ou em aparelhos retira a sensibilidade e delicadezadas maos, o que dizer do uso nao so das maos mas do proprio corpo no trabalho?O que dizer do corpo como instrumento de trabalho?

A revolugao industrial acentua a degradagao de homens, mulheres, criangas.Mergulha-os em um universe de embrutecimento de sua sensibilidade.

Os lugares onde passam seus dias sao as fabricas, as minas. Destes (cones doprogresso sobram-lhes apenas as sombras. E de sombras que suas vidas se fazem.E nas sombras que seus corpos se "educam". Corpos sem cor que se desenvolvemmimetizados por este mundo do trabalho, pela "miseria hereditaria", como disseraE. Zola, em seu romance Germinal, cujos personagens centrais sao mineiros. Minei-ros que porgeragoes e geragoes crescem misturados a lama e a escuridao da mina.Mineiros que desenvolvem pulmoes da cor da hulha que carregam e transportamem interminaveis dias nos quais nunca veem o sol (Figura 26).

Nestes lugares, surgia, de modo inequfvoco, o avesso do mundo limpo e docorpo asseptico apresentados por Demeny. Ali surgia tambem a ausencia da inteire-za humana em seus estudos, inteireza esta revelada pela arte literaria.

51. Idem, p. 270.52. Idem, p. 271. Ver ainda a analise detalhada que faz Demeny (1924) das possibilidades

de locomocao com os membros superiores (ver especialmente pp. 378-419).

O CORPO ADESTRADO 113

E possfvel dizer que o romance oitocentista, sobretudo o romance realista, emsuas emanagoes do vivido, conduz a uma identificagao dos avessos e das ruelas quese desejam obscurecidas pela nevoa opaca da sociedade que se quer oficial.

O romance pode ser a cidadela de nos outros, pois "seus herois habitam emnos; sua musica penetra em nosso ser"53. O corpo que nos mostra e contraditorio,multifacetado. Nao se esgota nas prelegoes de habitos e atitudes. Pelo contrario,precisa romper com elas para manter-se vivo.

O requinte e profundidade dos estudos de Demeny sobre o corpo, sobre ossentidos humanos marcam decisivamente, por um lado, um campo de saber e, as-sim, contribuem para um tipo de conhecimento sobre o homem. Por outro lado,contudo, desaparecem feito espuma do martocada pelo vento quando encontrama realidade fetida das sobras de ar das fabricas, as escuras e umidas galerias que cor-tam o interior da terra e fazem as minas. Nelas deve penetrar o homem, a mulher,a crianga. Deve adaptar-se nestas veias que se estreitam a medida que se distanciamda luz, da claridade do dia. Estes caminhos que conduzem as entranhas da terra eforgam os corpos a se vergarem continuamente, feito arvores plantadas em grutas.

E. Zola vai descrever a descida ao interior da mina como o mergulho

numa noite escura, cega e ardente... Para cortarem a hulha, tinham de estar

deitados de lado, com o pesco$o torcido, os bragos levantados, e brandindo

cada um a picareta de cabo curto54.

A umidade, as temperaturas instaveis nos diferentes espagos da mina, os gasesda terra... Devia haver ali tambem uma aprendizagem, uma educagao e, sobretudo,uma auto-educagao dos sentidos para suportaras entranhas da terra, buscar em meioas trevas, pelo tato, pontos solidos para apoiar-se e nao submergir por inteiro nahulha cortada.

Zola descreve o desembarago de uma personagem, uma mineira muito jovemde nome Catherine, em movirnentar-se atraves de posturas rastejantes, bastanteadequadas ao trabalho da mina. Catherine ensina a um novo operario, de nomeEtienne, recem chegado a mina, a necessidade da paciencia, da agilidade e, parado-xalmente, de uma delicadeza de gestos para nao por abaixo as frageis estruturas queousavam sustentar a terra. Assim, ela demonstra que

O corpo devia estar inclinado, com os bracos bem retesados, de modo que

53. Perrot, 1991, vol. 4, Introducao, p. 12.54. Zola, s.d., pp. 33-35, edicao portuguesa; Zola, 1968, p. 62, edi^ao francesa.

Page 70: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

Fig. 53 - Cenas das Minas de Carvao.

O CORPO ADESTRADO 115

empurrasse com todas as forgas, com ombros e com os quadris. Ele acom-

panhou-a numa viagem vendo-a subir, com os quadris cafdos e os punhos

tao embaixo que parecia trotar a quatro pes, como um desses animais anoes

que trabalham nos circos. Ela suava, arquejava, estourava por todas as jun-

tas; mas sem uma queixa, com a indiferenga do habito, como se a miseria

comum consistisse, para todos, em viverem assim dobrados55.

E se no corte e carregamento da hulha havia uma necessidade de o corpo estardobrado, quando aquela atividade cessava, e ate mesmo fora da mina, os mineiros"acocoravam-se, com os cotovelos nos flancos e as nadegas apoiadas sobre os cal-canhares [...] sem sentirem a necessidade de um calhau ou de umatabua para sesentarem"56.

Auto-educavam-se para sobreviver. Seus corpos, com o tempo, tambem gas-tavam menos energia, internalizavam os codigos da economia de forgas sem nenhu-ma explicagao cientifica, mas tao-somente por esta enorme capacidade que tem oser humano de adaptar-se para nao morrer, antes de buscar as formas de transfor-mar, para daf viver.

A personagem de Zola, de nome Etienne, rapidamente adaptou-se aquelemundo, e em alguns meses ja

Respirava sem Ihe custar as poeiras do carvao, via claro as escuras, suava

descansado, afeito a sensagao de ter desde a manna ate a noite a roupa

ensopada sobre o corpo. Alias, nao esbanjava desastradamente as forgas;

tinha Ihe vindo uma destreza de bom operario57.

O corpo ali aprendia silenciosamente os gestos, a utilizagao das forgas. O tem-po tornado pelo trabalho era quase o absoluto. Dispensava-se qualquertreinamen-to extra... O corpo adestrava-se no proprio trabalho para suportar o trabalho. Asmaos que sangraram em um primeiro contato com o corte da hulha, em um segun-do contato ja se mostravam adestradas e recobertas por uma camada de dor que astornavam ageis e que um dia as tornariam insensfveis ate a propria dor.

A parte esta realidade das condigoes do humano que se dilufam e desintegra-vam naquele mundo do trabalho, entre tantos outros tao ou mais degradantes, oscfrculos cientificos prosseguiam estudando o "trabalho" e a educagao das criangas;

55. Idem, s.d, pp. 37-38, edicao portuguesa; idem, 1968, pp. 65-66, edicao francesa.56. Idem, s.d., p. 38, edicao portuguesa; idem, 1968, p. 67, edigao francesa.57. Idem, s.d., p. 98, edicao portuguesa; idem, 1968, p. 152, edic.ao francesa.

Page 71: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

116 IMAGHNS DA EDUCACAO NO CORPO

prosseguiam, particularmente com Demeny, tambem os estudos sobre os senti-dos, como educa-los, preserva-los.

Indicavam assim para maos e dedos uma ginastica especial que, segundo

Demeny, se praticada com regularidade, poderia diminuir sensivelmente dificuldades

profissionais e, particularmente, aquelas ligadas ao universe dos instrumentos musi-

cais, permitindo, aos que tocam, uma maior agilidade e destreza das maos58.

Sobre o sentido da visao, Demeny tambem ira afirmar a necessidade de edu-

cagao e os meios mais adequados de cuidar dos orgaos diretamente ligados aquele

sentido. Assim, refere-se a importancia da iluminacao para agoes que decorrem di-

retamente do sentido da visao, citando o ato de escrever, ler, pintar. observar obje-

tos, costurar etc. e acentua as nocoes fornecidas por aquele sentido, como as deforma e cor.

Para as criangas, sugere jogos que exercitem o sentido da visao, como aquelesque utilizam as bolas e os langamentos de pedra e dardo. Para os adolescentes e

jovens, acrescenta o tiro, o boxe, a esgrima e o bastao, pois todas estas agoes con-

ferem aqueles que as executam uma prontidao e precisao espantosas59.

Com estas sugestoes de atividades que podem educar a visao, Demeny vaiacrescentar aquilo que aperfeicpa este sentido e que nada mais e do que a associa-

cao perfeita entre as sensacpes visuais e os movimentos. Por isto, recomenda que

esta educagao seja feita na natureza e nao por meio de desenhos, que sao ja uma

interpretagao da natureza. Porem, fascinado pelas invengoes de seu tempo, Demeny

vai afirmar a importancia do cinematografo para educar a visao, pois este aparelhopermite ver e rever imagens em movimento60.

Por fim, Demeny afirma a necessidade de cuidados higienicos adequados adelicadeza dos orgaos da visao, afirmando que

E precise lava-los diariamente com agu-a quente. Os cilios e as sobrancelhas

nao sao simplesmente ornamentals; eles desempenham um papel de prote-

cao; e precise conservar sua integridade e, para isso, nao se deve esfregar os

olhos com os dedos, estes nunca estao limpos e seu contato com a conjuntivaprovoca inflamacoes que e preciso evitar61.

T

58. Ver, a esse respeito, Demeny, 1924, especialmente pp. 144-149. Ver tambem Demeny,1920, pp. 63-68.

59. Demeny, 1931, p. 272.60. Em 1890, Demeny construiu um aparelho a que chamou de phonoscope. Este

aparelho permitia rever periodicamente as fases de um movimento fixo e torna-lo mais lentode acordo com a vontade do observador. Cf. Demeny, 1931, pp. 271-279.

61 . Demeny, 1931, p 277.

As preocupagoes higienicas de Demeny estendem-se tambem aos orgaos de

um outro sentido, os da audigao. As secregoes sebdceas produzidas pelos orgaos

da audigao podem obstruir este sentido. Dai a necessidade de cuidados especiais,como "retirar essas substancias com o cotonete e uma pequena esponj'a umedecidacom agua morna"62.

O.sentido da audigao permite a percepgao da variagao dos sons desde um sim-

ples rufdo ate as mais delicadas nuangas da musica e da voz "Ha no ouvido, comono olho, duas qualidades: a acuidade e a delicadeza"63.

A musica e um elemento importante na educagao do sentido da audigao, umavez que se baseia no valor relative dos sons em altura, intensidade e duragao.

A musica ensina tambem a dividir o tempo em partes iguais ou em tem-pos desiguais, levando (aqueles que a ouvem) a marcar o pulso, a conserva-lo rigorosamente e a coloca-lo em concordancia com um conjunto de outrosinstrumentos64.

Assim, Demeny sugere que e preciso fazer com que as criangas ougam, comfrequencia, belas obras musicais, tarefa que educa o seu sentido da audigao. Por fim,

faz referenda aos guardiaes das vias respiratorias e digestivas: o sentido do olfato edo gosto.

Considera a proximidade com a natureza e os habitos menos artificiais comofundamental's para o refinamento do gosto, e condena o uso do tabaco e dos tem-peros fortes afirmando que eles destroem a delicadeza daquele sentido.

Assim como para o sentido da visao e da audigao, tambem para o gosto oscentres nervosos habituados a estfmulos muito fortes acabam nao percebendo mais

um estfmulo mais delicado, "eles sao embotados e semi-paralisados"65. O olfato

completa o gosto, 6 o guardiao das vias respiratorias. Indica com precisao a presen-

ga de vapores mal cheirosos no ar, assinala a presenga de materias em decomposi-

gao tais como animais, insetos, flores ou frutas. Ele nos ajuda a reconhecer objetos.Para conservar e aperfeigoar esta delicadeza do sentido do olfato

... e preciso evitar sua redugao com perfumes muito concentrados ou atra-ves do cheiro acre do tabaco; e preciso dar atengao aos odores e exercitar-se em reconhecer os objetos sem olha-los, sentindo-os. E preciso cuidar

62. Idem, p. 279.63. Idem, p. 277.64. Idem, p. 278.65. Idem, p. 281.

Page 72: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

118 TMAGENS PA EDUCACAO NO CORPO

sobretudo da limpeza do nariz e evitar provocar, por resfriamento, uma in-

flamagao cronica das mucosas nasals66.

As preocupagoes de Demeny incluem os cuidados essenciais em relagao aos

orgaos diretamente ligados ao sentido do olfato, com o objetivo de se evitar doen-gas que acabem comprometendo as vias respiratorias. O que aparece em relevo,contudo, e uma quase obrigagao do individuo em cuidar de si e evitar, a qualquer

custo, os produtos e comportamentos que o afastam da natureza. Alimentos e per-fumes fortes, excesso de temperos, ambientes fechados, vida noturna, vicios, a al-teragao, ou melhor, o embotamento dos sentidos compromete o julgamento do

individuo sobre as coisas.A educagao dos sentidos, ao contrario, influi diretamente sobre a retidao de

nossos julgamentos e Demeny e categorico ao afirmar que

A educagao dos sentidos tern por efeito colocar-nos sempre em contato com

os objetos exteriores, dar-nos nocoes verdadeiras sobre a natureza, exerci-

tar-nos a percebe-las claramente e basear, assim, as operacoes do espirito

em realidades, o que confere ao nosso julgamento as qualidades essenciais

de ponderagoes e certeza, educando a imaginable caprichosa pela razao

sadia e pela experiencia das coisas67.

Mas, como se daria esta experiencia sensorial para quern sequerve a luz do

sol, pois trabalha em fabricas escuras e sem ventilagao ou sob a terra como os mi-neiros? Esta passagem do romance Cerm/na/e singular para se pensar os sentidos.

No corte, a faina dos cortadores recomec,ara, muitas vezes apressavam o

almocp, para nao arrefecerem; e as buchas, comidas, assim longe do sol,

com voracidade muda, enchiam-lhes de chumbo o estomago. Estendidos de

lado, picavam com maior forc.a na ideia fixa de completarem um dia cheio.

Tudo esmorecia, naquelafuriade lucro, tao desumanamente disputado. Nao

sentiam mais a agua que escorria e Ihes ensopava os membros, as caibras das

atitudes retesadas, o esmagamento das trevas, onde empalideciam como plan-

tas postas em adegas. Todavia, a medida que avangava o dia, o ar mais ainda

se envenenava e aquecia com a fumaga das lanternas, com a pestilencia dos

habitos e com a asfixia do grisu, que velava os olhos como teias de aranha, e

66. Idem, p. 281.67. Idem, ibidem.

O CORPO APEgTRADO 110

que so o ar da noite devia varrer. Eles, no fundo do seu buraco de toupeira,

sob o peso da terra, sem ar nos peitos em fogo, escavavam sem parar68.

As respostas para atransformagao daquele inferno eram estruturais. A cienciaestabelecera os parametros para explorar, para dominar a natureza. Detalhara emmuito os estudos sobre o homem, seu corpo, suas doengas. Mas era um deusestranho ao homem, que nao possufa nada alem de suas proprias forgas, ao pro-prietario apenas de si mesmo.

Para aquele homem, os estudos requintados de Demeny sobre os sentidospassavam ao largo. Os seus gestos, suas atitudes eram ditadas pela necessidade dealimento e de abrigo, talvez tambem de afeto. Compunham, qual notas na elabora-gao de uma musica, a partitura de uma revolta futura, na exigencia de um direito aoar, a luz, ao alimento, ao teto, ao repouso, ao saber. Em suas vozes, expressoes,gestos, fisionomias nao havia espago para excesses...

Mas Demeny, em seus estudos sobre os tres meios de expressao, que sao oacento da voz, o gesto e a expressao da fisionomia, vai falar de excesses. Vai entao

afirmar que estes meios de expressao devem ser trabalhados retirando-lhes o quee false ou exagerado e acentuando o que e comum e particular a cada individuo e aum pais.

A partir deste esbogo, Demeny conclui suas observagoes e propostas sobre aeducagao dos sentidos, evidenciando a utilidade de trabalhos manuais.

Nada e tao util no inicio da vida quanta a pratica de um ou varios trabalhos

manuais. Eles fornecem aos sentidos a ocasiao de se exercitarem de todas as

maneiras. Eles permitem um julgamento imediato, e o trabalho, a obra ter-

minada e julgada; sao um repouso para o espirito, um meio de adquirir des-

treza e coordenagao, o intermediario necessario entre a ideia e a realizagao.

Tudo se obtem pela pratica das coisas, mas e necessario entender por pra-

tica o exercicio educative dos orgaos numa diregao dada, com metodo69.

Para Demeny, ha regras que devem ser seguidas no trabalho profissional paraque se adquira um certo grau de perfeigao:

[...] minimo de esforgo, ritmo o mais proveitoso, atitudes favoraveis ao traba-

68. Zola, s.d., p. 42, edicao portuguesa; Zola, 1968, p. 72, edicao francesa.69. Demeny, 1931, pp. 281-282. Ver tambem Demeny, 1924, especialmente o cap. 3,

Analyses des Atitudes et des Mouvements, travail manuel" (pp. 217-218).

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120 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

Iho, divisao do trabalho em grupos sinergicos uteis, execucao correta dosmovimentos desde o inicio da aprendizagem, alternanda de periodos de

atividade e repouso para diminuir a fadiga, manuseio de instrumentos em

posicoes incomodas e dificeis70.

Ha aqui uma sintese do pensamento de Demeny sobre a necessidade de umcorpo adestrado e, assim, preparado para enfrentar os desafios da moderna socie-

dade industrial. O erro na execugao de tarefas poderia ser previsto e afastado. Oindivfduo seria dono de um corpo adestrado que dominaria as proprias forgas e asdistribuiria adequadamente, controlaria seus impulses e, enfim, seria o disciplinador

de si mesmo.For isto sua enfase recai sempre sobre a modificagao interna, mental e moral.

Conforme Demeny, estas sao as verdadeiras modificagoes que contribuem para oaperfeigoamento ffsico. Qualquer outra e mera consequencia e nao se produziria

sem as primeiras.Ha, portanto, para ele, uma intima relagao entre as agoes de natureza fisica e

aquelas de natureza moral. A uma educacao fisica corresponde entao uma educagaodos sentidos e uma educagao moral. Como os musculos, os orgaos do pensamen-to e os da vontade aperfeicpam-se seguindo a lei geral de acomodagao a quantidadee a especie de trabalho produzido. Mas, e necessario, segundo Demeny, nao con-fundir a educagao fisica com a educagao moral, pois"[...] a forga fisica pode existir aolargo de qualquer moralidade; sao necessaries dois ensinos concordantes; a educa-

gao moral deve dominar a educagao fisica"71.Caso isto nao ocorra, ha uma possibilidade bastante real de a educagao ffsica

ser desviada de seu verdadeiro objetivo que, segundo Demeny, e o aperfeigoamen-

to moral do hornem.

Definitivamente a Educagao Ffsica se propoe a aumentar o rendimento detodos que trabalham e a utilizar da melhor forma possivel esse dispendio de

energia; e portanto, para qualquer nagao, uma questao economica da maior

importancia72.

Para Demeny, a educagao fisica nao pode desviar-se deste objetivo. Ela naopode ser considerada simplesmente como um meio de satisfazer a vaidade de al-

70. Demeny, 1931, p. 282.71. Demeny, 1931, pp. 295-296.72. Demeny, s.d., p. 8.

O CORPO ADESTRADO 121

guns, um pretexto paratolos espetaculos ou lisonjeios e curiosidade de ignorantesou "pior que isso, onde se jogam e onde se apostam grandes somas de dinheiro"73.

Preserver o carater de utilidade da educagao fisica era um de seus projetos maisvigorosos. Alargar a sua pratica, uma decisao de Estado. Estende-la, com metodo, asmulheres, uma necessidade. Necessidade que desde Amoros se fizera presente.Desde Amoros, a educagao fisica das mulheres fora pensada como possibilidadede, atraves delas, educartoda uma geragao. Demeny segue este indfcio e instauraum vigoroso debate em torno de uma pratica de atividade fisica especffica as mulhe-res. Ao mesmo tempo, comega a se dedicar com mais rigor aos escolares, tendocomo preocupagao a descoberta daquilo que despertaria o interesse de criangas ejovens pela educagao ffsica.

Considerando a educagao ffsica um problema de Estado, Demeny dedica-secada vez mais as sessoes de ginastica existentes nas escolas e tece serias crfticas aoconteudo e a metodologia existentes.

Destaca, por exemplo, a motivagao e o prazer como condigoes indispensaveispara conservar o aluno interessado e afirma que as sessoes de educagao ffsica de-vem valer-se das formas mais variadas para exercitar a vontade do aluno. O prazerdeve ser considerado como condigao de realizagao de uma boa sessao de ginastica,pois com ele e a partir dele o exercfcio toma-se atraente, agradavel e proveitoso.

Demeny vai argumentar ainda que somente a razao e o bom senso nao bas-tam. Ligoes sensatas, pianos bem escritos sobre umafolha de papel, sao apenasbelos projetos e nao darao resultados positives se for esquecido de Ihes dar vida. Eisto, conforme Demeny, faz-se com o auxflio da arte e do prazer.

Para conservar o entusiasmo dos jovens e precise abandonar o carater mono-tono e estatico das ligoes de ginastica e trabalhar com a maior variedade possivel deexercfcios. Tbda esta vitalidade nao e incompativel com a ordem e com o piano deensino, pois ambos sao determinates para uma boa aula.

Tal qual Amoros, Demeny quer marcar bem o seu proposito. Nao pretende,com a ginastica, entreter ou divertir ninguem e, desse modo, acentua que a alegria eo prazer sao o espfrito do exercfcio mas nao o seu objetivo, pois um metodo deeducagao nao pode estar baseado no estudo do prazer em si. Esta e apenas a cari-catura de uma educagao que prefere o sucesso imediato ao bem dos alunos. 'A ale-gria e o prazer sao o tempero do exercfcio, este deve ser substancial e atraente aomesmo tempo; cabe ao educador prove-lo de tais atributos"74.

149.73. Demeny, 1931, p. 296. Vertambem Bonorino, Molina e Medeiros, 1931, pp. 148-

74. Demeny, 1931, p. 19.

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122 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

Esta educacao, que se preocupa com o prazer, sem todavia confundi-lo comfinalidades, yale-se sobretudo da musica e da danga como linguagens.

Encontram-se na obra de Demeny preocupagoes bastante significativas emrelagao a necessidade de estimulos cerebrals para que se realize urna atividade com

sucesso. Seus estudos indicam que nao somos apenas um esqueleto articuladorecoberto de musculos. E precise que o cerebro seja excitado e nada correspondede modo mais proveitoso para este fim do que a musica. Associada ao movimento,podemos ter entao a danga, que pode exprimir um sentimento, um pensamentoque transforma o movimento em expressao, beleza e harmonia75.

Percebe-se aqui um requinte maior do que aquele encontrado em Amoros noque se refere a musica e a danga. Demeny pensa em uma associagao de musica edanga e concebe aquilo que, em sua obra, denominou de "dangas gimnicas". Estasdangas resultavam de um esforgo seu em extrair, da danga, todos os elementosginasticos e executa-los como danga, a partir de movimentos coreografados com oacompanhamento de musica, porque, para ele,

[...] [a musica] tern uma influencia moral muito grande, e um estimulante

encantador ao qual poucos sabem resistir. E Valeria para as criangas e para as

jovens infinitamente mais que uma licao enfadonha comandada militarmente

e incapaz de prender a atengao76.

Para Demeny, a arte e a musica sao atragoes quase irresistiveis para os jovens,por isto, utilizava-as largamente em suas sessoes de ginastica, especialmente naque-las destinadas exclusivamente as mulheres, pois acreditava na necessidade de umaeducagao especifica para elas.

Afirma, por exemplo, que a manifestagao da beleza feminina nao pode sercompleta se forem ignorados os exercfcios corporals, pois"[...] nao se trata aqui dabeleza dos tragos do rosto, mas da forma do corpo e da expressao geral de vigor ede graga que dela emanam"77.

Demeny e enfatico ao afirmar que a verdadeira beleza feminina nao possui nadade languidez doentia e que a gracilidade somada a fraqueza nao sao necessariamenteatributos da mulher. A ginastica bem aplicada e o melhor meio de acentuar a belezaeagraciosidade.

75. Cf. as analises de Bonorino, Molina e Medeiros (1931, p. 148), baseadas no con-junto da obra de Demeny. Estas analises estao mais presentes em Demeny, 1920 e 1924.

76. Demeny, 1924, p. 444.77. Demeny, 1920, p. I. Este livro e dedicado exclusivamente a educagao fisica feminina.

O CORPO ADESTRADO 123

Alheia a qualquer esforgo muscular, a mulher nao tern senao uma be-

leza efemera; ela oscila entre a magreza e a gordura exageradas, mas nao

adquire jamais a forma pura e bem definida de uma estatua antiga, que so-

mente uma ossatura solida e um desenvolvimento harmonioso dos musculos

podem fornecer78.

Fazendo uma defesa de tudo o que esteja mais proximo da natureza e de ha-bitos mais simples, Demeny desenvolve uma critica bastante dura aos habitos gera-dos pela moda, afirmando:

o traje valoriza o encanto das linhas e a naturalidade do gesto; para isso, a

roupa deve ser moldada pelo corpo e nao o corpo pela roupa; esta nao deve,

alias, esconder os defeitos de conformagao. Um espartilho apertado ao ex-

tremo ou uma veste estofada, proveniente dos melhores fabricantes, elimi-

nam toda a graga natural ao menor movimento79.

Demeny atribui parte do que chama de decadencia fisica das mulheres ao usodestes acessorios das roupas femininas e das proprias roupas e calgados. Condenaentao o uso dos espartilhos, porta-seios, cintas, saltos altos e todos os meios desustentagao do corpo que fossem artificials. Isto, porque eles

[...] restringem os movimentos respiratorios, comprimem o peito e o ventre;

uma jovem envolvida por essa couraga externa encontra-se quase impossibi-

litada de levantar os bragos ou de se abaixar. Estando os movimentos dos

membros assim reduzidos, os musculos tornam-se inativos, atrofiam-se, o corpo

enfraquece e nao pode mais se manter sem o auxilio desses meios artificials.

A jovem nao pode se decidir a abandonar seus instrumentos de tortura pelo

receio de "despencar"; e acidentes de todos os tipos, na melhor das hipoteses

uma hernia, ocorrem num corpo incapaz de sustentar a si mesmo80.

Os habitos saudaveis devem sobrepor-se a estes que causam tantos maleffcios.O exercicio ffsico bem dosado e adequado a mulher deve tomar acento em suaeducagao. Educando-a, educa-se a mae e esta fara o mesmo com suas filhas. Educara mulher para cuidar de seu corpo e entao, inicia-la na ginastica, que, para Demeny,e "[...] uma arte fundada sobre a ciencia do movimento"8'.

78. Idem, pp. 1-2.79. Idem, p. 2.80. Idem, p. 3. Ver tamb^m Roy, 1913, pp. 77 e ss. (grifos meus).81. Demeny, 1920, p. 4.

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.Fig. 54 - Demeny apresenta uma ligao de ginastica.

Fig. 55 - Exercfcios destinados as mulheres - Ginasticafrancesa. Fig 56 - Exercfcios destinados as mulheres - Ginasticafrancesa.o'

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Fig. 57 - Exercicios destinados as mulheres - Ginasticafrancesa. Fig. 58 - Espartilhos.

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128 TMAGENS DA EmJCAcAo NO CORPO

A francesa e naturalmente gradosa, tem o instinto da elegancia, nao

lucra nada em abandonar seus dons naturals, seu gosto artistico, por uma

beleza de convencao que exige demais de si e a leva a tortura. Seria suficien-

te inscrever a educagao fisica na lista dos segredos de sua toilete, para gozar

dos recursos naturais de que ela dispoe e ter o encanto de sua verdadeira

beleza. Trocar sua flexibilidade, seu modo pessoal de ser e estar e mesmo

sua saude por um luxo futil e mal compreendido que nao acrescenta nada as

suas qualidades e uma estranha maneira de entender o coquetismo82.

Assim, Demeny pensa que o aperfeigoamento real do porte geral de uma mu-Iher se da a partir de bons habitos que excluem o que e artificial e colocam a ginasticaem relevo. E esta nao e uma tarefa facil. Ela e o resuttado de um esforgo perseveran-te que termina portraduzir-se em benfeitorias efetivamente duraveis que nao po-dem mais nos sertiradas... "Para conservar nossa maquina em bom estado, e pre-ciso coloca-la em movimento todos os dias e faze-la funcionar integralmente"83.

Esta afirmagao e como uma lei geral de sua obra. Desta importancia que da aosmovimentos bem definidos e estudados e que julga poder melhorar a saude fisicageral do povo frances, da mulher, e particularmente da mulher mae.

Acentua entao os resultados de suas pesquisas acerca da superioridade debeneffcios que advem dos chamados movimentos completes e executados comindependenciade contragoes musculares. Estes movimentos tanto trazem beneff-cios localizados, como beneffcios gerais, pois aprende-se a utilizar os musculos ne-cessarios a agao, relaxando os demais e, assim, ganha-se mais resistencia a fadiga.

Para concluir as prescrigoes da ginastica destinada as mulheres, Demeny acen-tua a necessidade de que a forma de aplicagao seja intensa, porem, aprazfvel. Assim,afirma:"[...] espero incitar as jovens ao esforgo vigoroso e oferego a elas o meio dedesenvolver estas qualidades fascinantes e preciosas: a graga e a beleza"84.

Demeny trazia naquele momentos, formas novas e bastante ousadas para aepoca no que diz respeito a ginastica que chamava de convencional e afirmava serenfadonha para os jovens, alem de fechada a qualquer inovagao. Assim, afirmava:"Procurei, dessaforma, preencher a enorme lacuna existente entre a arte da dangae a rnfmica e os meios insuficientes empregados ate hoje para tornar realmente ocorpo flexfvel e completar seu aperfeigoamento"85.

82. Idem, pp. 5-6. '83. Idem, p. 8.84. Idem, pp. I 1-12.85. Idem, p. 12.

OCoRFOApEgTRADO 12Q

Tbdo o esforgo de Demeny em buscar o novo para a educagao ffsica, incluindoaf suas incursoes na danga, no teatro e na musica, assenta-se nas explicagoes fornecidaspela ciencia. Busca, sobretudo, desqualificar qualquer forma detrabalho corporal quenao possua base cientffica, qualquer saber que fuja aos canones cientfficos.

Como um positivista convicto, ere na fase cientffica como aquela que goza desuperioridade sobre as demais, como uma evolugao natural das agoes do homemsobre a natureza. Afirma, assim, que, como 'A qufmica substituiu a alquimia, a medi-cina, o curandeirismo, a educagao fisica cientffica deve substituir as loucas incoeren-cias da acrobacia e do atletismo"86.

Este trecho de sua obra e emblematico de sua filiagao cientffica e destaca suadesconsideragao em relagao a outros saberes, como, por exemplo, aquele desen-volvido pelos acrobatas e artistas circenses, nucleo primordial da ginastica na Europaoitocentista. Para qualquer afirmagao, exigia provas, demonstragoes e exames.Desdenhava opinioes quando estas nao se curvavam perante a demonstragao rigo-rosa dos fatos. Chamava a atengao para a necessidade absoluta de regras e, sobre-tudo, de precaugao para qualquer afirmagao que antes de tudo devia ser rigorosa-mente demonstrada. Afirmava assim que uma doutrina deve sempre estar assentadasobre a experimentagao e o metodo cientffico87.

Mergulhado nas crengas positivistas, criticava os espfritos metaffsicos, afirman-do que desdenhavam as regras, as precaugoes e assim terminavam por construircom sonhos, monumentos frageis88.

Para que uma opiniao prevalega, afirmava Demeny, ela necessita de provas eestas provas devem ser apresentadas com um metodo de trabalho positive e umverdadeiro conhecimento da vida. Com estas observagoes conclui, afirmando queso ha um metodo aceito no campo da biologia, que e o metodo experimental e e aele que a educagao fisica deve recorrer para afirmar-se no campo da ciencia.

Demeny lutava fervorosamente para conseguir o distanciamento gradativo ecrescente da educagao ffsica de toda discussao que nao apresentasse provas, doconjunto de frases e palavras soltas que, segundo ele, nada demonstram e apenasfazem diminuir a confianga na ciencia.

Considerava como equfvoco, erro, pseudociencia, tudo aquilo que nao seenquadrasse nos canones positivistas. Chamava de sacerdotes da pseudociencia atodos que ousassem proferir observagoes sobre a educagao ffsica, que nao fossem

86. Demeny, 1931, p. 328.87. Idem, p. 21.88. Idem, p. 23. Ver tambem Bonorino, Molina e Medeiros, 1931, pp. 148-150

especialmente.

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130 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

comprovadas rigorosamente, afirmando que esta atitude contribuia para abalar a

confianga na ciencia, ja diminufda.

Criticava, sobretudo, aqueles que, sendo partidarios e conhecedores do me-

todo cientifico, positive e experimental para a educagao, recusavam-se a admitir sua

necessidade e importancia para a educagao fisica89.

Essa lamentavel confusao e consequencia de uma falsa ciencia, cienciaso de palavras, que, sob um pedantismo de mau gosto, esconde a ignoranciae semeia confusao nos espiritos. Alguns autores sao especialistas em obscu-recer os assuntos de que tratam e em atormentar o leitor atraves decontradigoes e sofismas. Depois de uma exposicao ostensiva e confusa deconhecimentos cientificos, uma serie interminavel de citagoes e opinioes con-

traditorias, nao resta nada que se aproveite, nenhum ensinamento, nenhumaordem no pensamento. Poder-se-ia concluir facilmente dessas obras decharlataes que nao ha lei na natureza para regrar o aperfeicoamento huma-no. A esses sofismas e preferivel o empirismo. Nada e tao perigoso quantouma falsa ciencia90.

E Demeny quer livrar-se dela, quer seguir no unico caminho que acredita ser o

da ciencia verdadeira: o estudo metodico e experimental dos efeitos do exercicio.

Este estudo nao se faz em qualquer lugar. Para sua realizagao sao necessaries fundos

especiais, locais apropriados, instrutores experimentados e aparelhos de pesquisa.

E tudo "isto foi realizado pelo Ministerio da Instrugao Publica no laboratorio de

Marey"".

O largo apoio oficial confesso indica que o grupo ao qual pertencera Demeny

contribuiu para a grande aspiragao do Estado frances de colocar o pais em pe de

igualdade com outros paises europeus no campo "educative" proprio das atividades

fisicas.

O reconhecimento e o apoio do Estado a ciencia, as organizagoes culturais e

cientificas e inegavel nofim de seculo e Demeny e parte deste momento. Um

89. Demeny, 1931 , p. 23.90. Idem, p. 23.91. Cf. Demeny apud Bonorino, Molina e Medeiros, 1931. p. 151. O trabalho realizado

no laboratorio de J.E. Marey 6 estendido a Ecole Normal Militaire de Joinville le Pont quando lase organiza um Iaborat6rio de fisiologia. A dire$ao daquele Iaborat6rio e entregue a G. Demeny,com o apoio do Ministerio da Guerra. A Ecolle Normal Militaire de Joinville le Pont teve singularimportancia para a educacao fisica na Franca. Editou trabalhos, como, por exemplo, Cours dePedagogie, Cours d'Anatomie et de Physiobgie, Cours d'Anatomie et de Physiobgie: etude et Analysedes Mouvements, bem como o Reglement General d'Education Physique - Methode Franga/se.Ver, ainda, a respeito do metodo frances, Goellner, 1992, cap. I e 2. Fig. 59 - Batalhoes Escolares.

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132 IMAGENSIM.EDUCACAONOCORPO

momenta especial, pois fruto de uma mentalidade consolidada ao longo da III Repu-blica, nascida a 4 de setembro de 1870 e que se caracteriza, sobretudo, por umenorme sentimento de recuperacao e afirmagao nacional da Franga. Patriotismo,espfrito republicano, escola. Estes podem ser os termos-chave da III Republica naFranca, sendo a escola o instrumento basico de difusao de um mundo laico e deuma visao de homem e sociedade fieis aos ideals da Revolucao de 1789.

Cabe lembrar que, as vesperas de 1870, a Franga apresentava uma unidadenacional ainda bastante precaria. 'A populagao e heterogenea em sua lingua, suas ideiase seu modo de vida: ela e um mosaico de culturas. A consciencia de uma identidadelocal vai muito alem da ideia do pertencer a uma mesma nagao"92.

Este quadra um tanto desagregador comporta, ainda, de um lado a derrota daFranga pela Prussia e, de outro, a instauragao da Comuna de Paris93. O sentimentode "patria em perigo" que a elite dirigente alimenta e deseja ver estendido a toda apopulagao se acentua.

Partindo, entao, desse quadra, e possfvel afirmar que este sentimento "orien-ta", de certo modo, uma reordenagao nas instituigoes, de um modo geral, e na ins-tituigao escolar, em particular. '

Com Jules Ferry como ministro da Instrugao Publica, ha um processo de largaampliagao dos conteudos de e/isino que nao descartam a educagao flsica, presenteja nos discursos oficiais desde mesmo os revolucionarios de 1789.

Como desfecho da derrota para a Prussia, ha uma decisao de auxilio mutuoentre os Ministerios da Instrugao Publica e da Guerra para preparar a revanche, de-cisao que se mistura ao sentimento nacional de "patria em perigo"94.

Afirma-se entao, neste perfodo, em toda a Franga, um desejo de que a educa-gao ffsica possa contribuir de forma significativa na preparagao dos exercitos. Criam-se os batalhoes escolares (Figura 27) e proliferam os exercicios militares espetacu-lares com carater de exibigao sem qualquer interesse pedagogico. Predomina ointeresse propagandfstico de uma Franga forte e unida95.

E neste contexto que as pesquisas de Marey e Demeny, entre outros, teraoum papel decisive, a medida que retiram dos exercfcios fisicos o carater de merotreino militar. Embora o carater militar fosse algo importante naquele momenta, estes

92. Arnaud, 1991, p. 15.93. Sobre o assunto, consultar Marx (1984).94. Arnaud, 1991, p. 16. Ver tambem Spivak, I988b.95. Ver, a respeito, Pereira, s.d.; Andrieu, 1988, pp. 158 e ss. Os batalhoes escolares

sao criados em I 882 e I 885 e terminam por formar sociedades, federates, chegando acriar uma Associate Nacional de Preparagao para o Servic.o Militar.

O CORPO ADESTRADO 133

homens de ciencia nao o queriam como determinate sobre a compreensao geraldo exercicio ffsico, sobretudo na escola.

Atradigao cultural e pedagogica humanfstica na Franga, acrescida do conheci-mento obtido pelas pesquisas no campo da biologia, vai conferir um lugar de desta-que para a educagao fisica, um lugar que ela ja conquistara havia cem anos, senao defato, ao menos de direito. "Cultivar os corpos e o espfrito tal era a vontade dosrevolucionarios de I789e I792"96.

Invengao consolidada no seculo XIX, a educagao fisica encarna o espfrito desteseculo, que consagra a vitoria progressiva do conhecimento cientffico sobre o que sejulgava ser obscurantismo. De parte constitutiva da educagao escolar, a atividade ffsicacresce fora de seus muros. Nas duas ultimas decadas do seculo, ha um forte movi-mento na sociedade francesa que vai lentamente fazendo aparecer inumeras organi-zagoes de ginastica e esportes97. Estas organizagoes logram uma ampla projegao sociale polftica afirmando, em diferentes lugares sociais, a possfvel relevanda da pratica daatividade ffsica na resolugao de problemas educativos e morais da sociedade.

Demeny, por exemplo, foi o criador de uma organizagao desta natureza: o Cerdede Gymnastique Rat/onnelle, que funcionou ate 1886. Entre as atividades daquelaorganizagao, destacam-se conferencias destinadas a professores e instrutores, ligoespraticas e de demonstragao e a edigao de um boletim, L'Education Physique, em cujoconteudo eram editados trabalhos cientfficos originais. Aquele boletim era, ainda, en-viado gratuitamente a todos os professores primaries do Senne98.

Em plena sintonia com as polfticas oficiais, Demeny e seu grupo tiveram umagrande influencia tambem sobre a educagao ffsica escolar. Por mais de duas decadas,seus trabalhos vao sendo cada vez mais destinados a resolver problemas ligados aescola e, particularmente, a partir de 1890, iniciam um programa bastante rigorosode definigao de diretrizes gerais para o ensino nas escolas.

O proprio Demeny ja vem fazendo um trabalho minucioso de revisao dosprogramas de ensino desde 1887, tarefa que o levou a elaborar um manual comple-to de exercfcios e jogos escolares, publicado pelo Ministerio da Instrugao Publica99.

O ano de 1891 e marcado por outra publicagao do genera, manual de ginasticae jogos escolares elaborado por uma comissao organizada por Marey e integrada

96. Para maiores informac.6es consultar Arnaud (1991), especialmente a introdugao ea primeira parte.

97. Os partidos polfticos e ate a Igreja sentem a proje$ao social e politica dessasorganizagoes, cf. Pereira (s.d., p. 461). Ver ainda Arnaud e Camy, 1986.

98. Cf. Rey-Golliet, 1930, p. 120.99. Cf. Demeny, s.d., pp. 5-8.

Page 80: TT:* » -.i . · FIGURA 29 e 30 Exemplos de aparelhos que "corrigem" posturas e "en-direitam" o corpo no seculo XIX. Fonte: Labbe, 1930, vol. I, pp. 417-419

134 IMAGENS DA EDUCACAO NO CORPO

por Demeny. Em seu conteudo proposto, aquele manual diminui visivelmente autilizagao de aparelhos para a execugao de exercicios, assim como as evolugoesmilitares, afirmando o afastamento da educagao fisica "cientifica" das acrobacias e dacaserna.

Neste quadra de rigor cientffico na definigao de diretrizes para a educagao fisicaescolar, merece relevo uma viagem empreendida por Demeny e Lagrange a Suecia,

em 1890. O objetivo daquela viagem fora o de estudar com rigor a ginastica pratica-da naquele pafs.

La o uso de aparelhos e de demonstracoes acrobaticas fora bastante reduzido.A analise mais detida desta compreensao do exercicio fisico destinado as escolascertamente influenciou Demeny e seu grupo na elaboracao do manual de 1891, emque acrobacias e evolugoes militares aparecem com discricao.

Partidario da ginastica sueca em um primeiro momento, Demeny tornar-se-aseu critico maistenaz. Suas pesquisas experimentais sobre o movimento humano

levaram-no a perceber limitacoes naquelas prescricpes, sobretudo no que diz res-peito a enfase sobre o musculo e a articulacao, bem como sobre esforcos estaticos.

A predominancia de movimentos analiticos, a ausencia de prazer nas sessoesde ginastica e uma excessiva rigidez demonstraram a Demeny que os suecos haviamnegligenciado a im'portancia dos centres nervosos na equilibracao funcional100.

A ultima decada do seculo XIX sera entao marcada por um intense debate entreos defensores do metodo sueco, Tissie* e Lagrange, e o grupo de Demeny.

Conforme Celestino Pereira, a realizacao do Congresso Internacional de Edu-cagao Fisica em Paris, no ano de 1900, organizado por Demeny, representa o con-fronto oficial entre a tradigao francesa desde Amoros e o metodo sueco de P H.Ling101.

O debate publico que se instala naquele congresso se prolonga portoda umadecada (1900-1910) e assegura a supremacia do grupo de Demeny. E possfvel

100. Na Franca, vamos encontrar no medico Philipe Tissie e no fisiologista FernandLagrange serios defensores do metodo sueco.

* Philippe Tissie (1845-1909) teve renomada importancia nos destines da educacaofisica na Franca, tendo sido presidente da Ligue Francaise de I'Education Physique. Como medico,aprofundou estudos em relacao ao metodo sueco de ginastica, defendendo-o acirradamentee criando, assirn, urna enorme polemica com Demeny. O Dr. Tissie tambem tinha uma aversaoao mundo do circo e afirmava: "a Fisica e a Quimica nao se aprendem por passes divertidosde prestidigitacao de ilusionistas; de igual modo a educacao fisica nao se aprende porprestidigitacoes acrobaticas de "music-hall" ou de exibicoes de feira. O circo - eis o grandemimigo!" (PEREIRA, s.d., p. 477; TISSIE, 1920 e 1922).

101. Cf. Pereira, s.d., p. 466.

O CORPO ADESTRADO 133

identificar assim a afirmagao da escola francesa, na qual documentos oficiais102 ates-tam as ideias basicas daquele grupo e, particularmente, as de Demeny.

Assim encontramos tres grandes diretrizes para a ginastica na Franga:

1) a ginastica educativa deveria ser regida de acordo com sua utilidade profissio-nal;

2) a ginastica de aplicagao deveria ser constituida por exercicios militares utilita-rios e desportivos, baseados sobre o principio da economia de forgas;

3) a ginastica de selegao deveria compreender exercicios especiais nos apare-lhos e desportos, exigindo aptidoes especiais e, por isso, so poderia convir auma "elite"103.

Na primeira decada do seculo XX, a presenga de Demeny e sentida em variasinstancias. Redige um manual de armas e torna-se o unico membro civil de umaComissao Militar encarregada da redagao daquele manual104.

ja nos primeiros dois anos deste seculo, ajuda a organizar o curso de educagaofisica da Ecole Militaire de joinville le Pont e e nomeado professor de fisiologia apli-cada. Nesta mesma escola, cria e dirige um laboratorio de fisiologia aplicada.

Alem destes empreendimentos, no ano de 1902, Demeny organiza o primei-ro curso superior de educagao fisica na Franga no Lycee Janson-de-Sailly.

Neste periodo, Demeny foi um representante oficial do governo frances nocampo da educagao fisica, sendo enviado a congresses internacionais105 que debate-ram temas acerca do exercicio fisico e de suas aplicagoes. Colocava-se, assim, emrelevo o carater publico da pesquisa cientifica, sendo a sua divulgagao umatarefa doEstado republicano.

Mas, a supremacia de Demeny vai se diluindo e suas ideias vao perdendo forgapara os defensores do metodo sueco. Do ponto de vista oficial, o apoio vai dimi-nuindo e Demeny lamenta que a ciencia perca terreno para as opinioes genericas esem comprovagao.

Para ele, aquele momento era o unico de um sem numero de resultados queseriam obtidos pela pesquisa experimental, uma vez que os meios paratal haviam

102. Regulamento elaborado na Escola Normal Militar de Joinville le Pont, em queDemeny foi professor de fisiologia e diretor do laboratorio de pesquisas fisiologicas sobre omovimento (Cf. PEREIRA, s.d, p. 468).

103. Cf. Rey-Golliet, 1930, p. 121.104. Por exemplo, o Congresso de Bruxelas, realizado em 1904, em que temas importantes

relatives ao exercicio fisico e suas aplicacoes foram debatidos (PEREIRA, s.d., pp. 466-468).105. Demeny apud Bonorino, Molina e Medeiros, 193 I, p. 151.

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OCORPOADESTRADO 137

Fig. 60 - O uso da forga nos trabalhos.

sido criados. Era o laboratorio de Joinville, o laboratorio de Marey, as colaboragoes

com o Ministerio da Instrugao Publica, onde se podiam aplicaros resultados das

pesquisas.

Mas, conforme suas palavras,

De repente e quando estes meios ja vinham dando resultados, foram subi-tamente suprimidos e das maos do inventor fizeram passa-los para as maosde inexperientes; e assim ficou perdida toda uma grande soma de dinheirodispendida nestas instalagoes. A tecnica experimental que tantas e tao ca-bais provas ja havia dado foi condenada, sem exame e sem competencia,dizendo-se: "Nao temos necessidade de tudo isto, a verdade esta em Es-tocolmo!" O espfrito cientffico sera incompativel com o espirito militar? Naoo cremos; todavia, esta maneira de agir podia-nos fazer supor, pelo menosno presente caso106.

Diante deste reves, desiludido, Demeny deseja que a ciencia e a educagao

fiquem fora de influencias polfticas. Suas convicgoes positivistas o fazem crer queisto fosse possfvel e necessario para que a marcha do progresso nao fosse retarda-

da. Que a incompreensao de um ministro que substitufsse outro nao rompesse

com a evolugao do conhecimento, privando um pesquisador de seus meios depesquisar.

A ciencia, para ele, esta acima das paixoes humanas e deve sempre ser preser-

vada destes sentimentos. Suas desilusoes, portanto, localizam-se nos homens.Desse modo, a sua crenga na ciencia em nenhum momento e abalada. Demeny

tern a certeza de que, em um future, quando a sociedade inteirafor regida por leis

criadas pela ciencia, ou seja, quando a sociedade inteira estiver na fase cientifica/po-

sitiva, suas pesquisas triunfarao.

Assim, tem a convicgao de que suas pesquisas cientificas sobre a educagao f(-

sica sao propostas do futuro. Nem construfdas ao acaso, nem amontoado de pala-

vras, seus resultados, pelo contrario, sao obtidos pelo rigoroso controle experi-

mental, que nao e intangfvel, mas evolui continuamente. Busca um grau maiorde

perfeigao e combate os espfritos ceticos.

Como um missionario da nova "religiao do progresso", suas ideias nao pode-

riam ser mais claras. Elas estao em sintonia com um mundo mais urbano que se

afirma. A cidade e pois o cenario que decide os atos da vida de indivfduos e socieda-

de. Acumula pessoas e Husoes. Expoe, de modo inequfvoco, a exclusao social e a

106. Cf. Demeny, 1924, p. 518.

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138 IMAGENS DA EPUCACAO NO CORPO

miseria decorrente. Os seres urbanos, esses novos barbaros, precisam, portanto,sereducados. Devem tornar-se autodisciplinados, decididos.

Ser o senhor de seus gestos e condigao indispensavel para a vida urbana e velozque se afirma.

De certo modo, a educagao fisica matiza com tons mais quentes este novoolhar sobre individuo e sociedade. Mostra-se como modelo cientifico e tecnico, capazde potencializar recursos e energias fisicas. Fornece algumas das muitas respostas esolugoes buscadas por uma burguesia avida por compreender, cada vez mais, o usodas forgas da natureza, das forcas humanas e assegurar o progresso a que tao triun-falmente dera inicio.

Quando Demeny afirma que o trabalhador deve ser pensado como um "capitalde energia" e que cabe a educagao fisica contribuir decisivamente na formagao destecapital107, e possivel vislumbrar, mais claramente, o lugar desta educagao fisica.

Demeny, com suas pesquisas experimentais sobre o movimento humano,mesmo quando e contestado, apenas confirma o lugar ja assegurado da educagaofisica na sociedade. Sobretudo de uma educagao fisica que se apresentava com fina-lidade muito precisa: ensinar os indivfduos a adquirir forgas, a adquirir tambem umadestreza geral que favorece nao so o manejo de instrumentos no mundo do traba-Iho, mas tambem melhora a utilizagao das forgas fisicas e morals.

A energia, "moeda do universe", nao podia ser desperdigada. Aprender a suautilizagao com o corpo e no corpo era tornar-se senhor de seu gasto.

107. Cf. Demeny. 1924, p. 518.

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