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Universidade Federal Fluminense/ UFF Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ ICHF Departamento de Antropologia Curso: Ritual e Simbolismo Docente: Ana Lúcia Ferraz Discente: Ana Vitória Belluomini O movimento de resistência da Aldeia Maracanã: A construção política de um movimento indígena que transcende a cultura, o ritual e os símbolos. I. Introdução Se propor a etnografar acerca de movimentos sociais de resistência, é um grande desafio, é pensar como a antropologia nos serve como ferramenta de questionamento e desconstrução diante de um contexto social que oprime e extermina imensas quantidades de povos e culturas. A antropologia ao problematizar questões tem função política extremamente importante ao se permitir dialogar com os lados múltiplos de uma mesma questão, não relativizando a ponto de abstrair noções históricas eminentes que refletem relações injustas e não horizontais, mas com o objetivo de desconstruir espaços onde os grupos de mais voz têm dominado, trazendo um olhar novo para aqueles que se encontram à margem. Pretendo aqui, refletir a cerca de meu campo com o movimento de resistência da aldeia Maracanã discutindo e desenvolvendo uma reflexão sobre o meu objeto através dos conceitos da obra de Victor Turner. Além de relatar o processo do campo, e problematizar questões que acredito terem afetado de alguma forma minha relação com o campo e minha compreensão de mundo. Meu material de exposição argumentativa e de campo consiste também em fotografias etnograficas que fiz em um de meus campos, no ato doa dia 19 de abril. Além disso, este é um trabalho ainda muito introdutório sobre o movimento de resistência da aldeia maracanã, pretendo desenvolver mais as questões elaboradas aqui, através de mais campos e uma leitura mais aprofundada da bibliografia de Victor Turner.

Ttrabalho Final de Ritual e Simbolismo

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pequeno ensaio final sobre a matéria de ritual e simbolismo

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Page 1: Ttrabalho Final de Ritual e Simbolismo

Universidade Federal Fluminense/ UFF

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/ ICHF

Departamento de Antropologia

Curso: Ritual e Simbolismo

Docente: Ana Lúcia Ferraz

Discente: Ana Vitória Belluomini

O movimento de resistência da Aldeia Maracanã:

A construção política de um movimento indígena que transcende a cultura, o ritual

e os símbolos.

I. Introdução

Se propor a etnografar acerca de movimentos sociais de resistência, é um grande

desafio, é pensar como a antropologia nos serve como ferramenta de questionamento e

desconstrução diante de um contexto social que oprime e extermina imensas

quantidades de povos e culturas.

A antropologia ao problematizar questões tem função política extremamente

importante ao se permitir dialogar com os lados múltiplos de uma mesma questão, não

relativizando a ponto de abstrair noções históricas eminentes que refletem relações

injustas e não horizontais, mas com o objetivo de desconstruir espaços onde os grupos

de mais voz têm dominado, trazendo um olhar novo para aqueles que se encontram à

margem.

Pretendo aqui, refletir a cerca de meu campo com o movimento de resistência da

aldeia Maracanã discutindo e desenvolvendo uma reflexão sobre o meu objeto através

dos conceitos da obra de Victor Turner. Além de relatar o processo do campo, e

problematizar questões que acredito terem afetado de alguma forma minha relação com

o campo e minha compreensão de mundo. Meu material de exposição argumentativa e

de campo consiste também em fotografias etnograficas que fiz em um de meus campos,

no ato doa dia 19 de abril.

Além disso, este é um trabalho ainda muito introdutório sobre o movimento de

resistência da aldeia maracanã, pretendo desenvolver mais as questões elaboradas aqui,

através de mais campos e uma leitura mais aprofundada da bibliografia de Victor

Turner.

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II. O se inserir no campo e a afirmação em espaços políticos: como me

desconstruí politicamente através do meu campo

Antes de conhecer pessoalmente alguns integrantes da resistência já observava

de longe o movimento e me interessava muito. No dia 11 de maio de 2014 fui a uma

reunião marcada no DCE da UFF que tinha o objetivo de apresentar sobre a resistência

da aldeia maracanã, e a proposta de se construir um congresso indígena autônomo e

totalmente auto-gestionado, pretendendo construir uma ponta entre a UFF e a aldeia, e

pedindo ajuda para a realização do congresso e do pré-congresso.

A reunião se deu em formato de roda, com algumas pessoas sentadas no chão,

em tom, aparentemente, descontraído. Estar naquele espaço era como ir de encontro a

uma nova experiência política, que acabou sendo inclusive forte demais para aqueles

que se prenderam a uma forma de fazer e compreender a política.

Aquele espaço, que começou e terminou com um ritual de canto e que se deu

junto ao consumo de rapé, foi para mim em um primeiro momento e percebo que para

muitos ali, que compunham o Movimento Estudantil, de estranhamento e em parte do

tempo como espetáculo.

Todas às vezes até aquele momento em que tinha me deparado fisicamente com

grupos indígenas, em minha infância e adolescência, tinha sido influenciada e tido meu

olhar direcionado para acreditar que naquelas culturas existia algo de fantástico que os

tornava não também humanos, mas obras de arte ou performance, que estavam ali por

um momento nos entretendo, e apenas isso.

Ainda que segundo Paulo Raposo a performance e a arte sejam movimentos

legítimos de resistência e produto direto do estado de liminaridade, a arte nesse contexto

era vista de maneira fútil e pouco importava para essas pessoas fora do movimento

indígena compreender sua complexidade e seu nível crítico.

Mas rapidamente desconstrui esse olhar, com ajuda dos poucos períodos

fatigados estudando antropologia. Percebi que existiam várias questões ali, que

afastavam uma série de movimentos sociais de movimentos de grupos minoritários que

se baseia em uma distinta cosmologia, tal como o movimento indígena.

Entender que é possível construir política juntamente com religião como forma

de cultura foi uma das maiores reflexões que fiz para minha própria concepção de

mundo ao fazer campo e também militar com a aldeia maracanã. Acredito que entrar

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para militância desse movimento foi quase como automático a partir do momento que

passei a estuda-lo.

Meus campos se deram, primeiramente, nas reuniões que aconteceram na UFF

com lideranças indígenas, principalmente com Ash Ashaninka, e posteriormente em

uma atividade do pré-congresso e no próprio COIREM (Congresso Intercultural da

Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraká’nà).

III. O grupo, os contextos e as metáforas do drama social.

O movimento da aldeia consiste em um forte movimento de resistência, que

questiona o espaço da questão indígena nas pautas governamentais. Na pagina do

Facebook eles escrevem “Aldeia Rexiste” com x e não com s, pois o movimento

exprime a resistência de um povo e de sua cultura, um povo que tem sido apagado do

mapa, excluído, marginalizado e esquecido. E no límen do espaço urbano nasce um

movimento que questiona essa política de remoção e apagamento dos povos originários,

em um espaço que não é tão facilmente abafado pelos latifundiários.

Se tornando um movimento de visibilidade indígena urbano que se constitui em

uma das principais capitais do país, ao lado de estádio que hoje representa a dominação

do capital e das instituições imperialistas diante das populações pobres e marginalizadas

e do próprio povo carioca e a construção cultural da cidade, o Maracanã.

O grupo que compõem a atual resistência da aldeia maracanã é por si só muito

heterogênio, entre indígenas e não indígenas. Desde as diversas etnias indígenas que

acabam por constituir um movimento culturalmente de extrema multiplicidade, com

rituais, costumes, cantos e expressões de grupos de diversas regiões do país. Até mesmo

pelos não indígenas, anarquistas e anarcopunks, que acrescentaram muito na

incorporação política do movimento e na sua forma de organização.

Diante de um contexto de ocupação urbana, de um espaço dado anteriormente

como um museu indígena. Que construía simbolicamente e fisicamente um espaço de

exclusão e apagamento da cultura indígena viva e pulsante no Brasil, um espaço que

engessa e exclui o movimento indígena atual.

O movimento, como as lideranças afirmam, passou por um desmembramento, no

qual parte do grupo acabou por aceitar um projeto do governo federal, que cederia um

espaço de moradia para os indígenas do movimento, o grupo se opôs à medida e

continuou com a ocupação do prédio do museu do índio ao lado do estádio do

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Maracanã, caracteriza o programa como “minha casa, meu presídio” satirizando o nome

real que seria “minha casa, minha vida”, como forma de denunciar a precariedade e as

condições as quais esses indígenas serão submetidos. Nesse ponto, de divisão do

movimento, pensei na 3ª e 4ª fase do Drama Social, descrita por Turner:

“terceira fase, a ação corretiva. No intuito de limitar a difusão da crise, certos

“mecanismos” de ajuste e regeneração (...) informais ou formais, institucionalizados

ou ad hoc, são rapidamente operacionalizados por membros de lideranças ou

estruturalmente representativos do sistema social perturbado. (...) A última fase que

ressalto consiste seja na reintegração do grupo social perturbado ou no

reconhecimento e na legitimação social do cisma irreparável, entre partes em conflito-

no caso do Ndembu, isto frequentemente significa a separação de uma parte da aldeia

das demais.”. (TURNER, Dramas, Campos e Metáforas, 36-37)

Onde em uma tentativa de reintegrar o grupo se propôs a medida e parte acabou

por aceitá-la, mas por coação do próprio governo, ao intimidar cada vez mais o

movimento com tropas policiais e invasões ao espaço, como tentativa de reapropriação

de posse. A violência e truculência aos movimentos sociais, tem marcado o histórico de

ocupações por todo o pais, acabando por ser uma medida de reintegração forçada, que

acaba muitas vezes por desmobilizar o movimento, diminuindo e não reconhecendo a

cisma social e colocando esses sujeitos mais ainda a margem.

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Foto tirada no dia 19 de abril, em um ATO ao lado do antigo prédio da ocupação

da aldeia.

IV. Os Rituais e seus símbolos.

“Por ritual entendo o comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à

rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos O

símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades específicas do

comportamento ritual; é a unidade última de estrutura especifica em um contexto

ritual.” (TURNER, Floresta de símbolos, 49)

Os espaços deliberativos, sendo eles plenárias, reuniões, assembleias e inclusive

aulas sobre a cosmologia indígena ministrada pelas próprias lideranças, se caracterizam

também como espaços rituais, diante de um contexto de ocupação urbana, onde a

cultura se resignifica junto às praticas de mobilizações políticas.

“Descobri que não conseguiria analisar símbolos rituais sem estudá-los numa série

temporal em relação com outros “eventos”, pois os símbolos estão essencialmente

envolvidos com o processo social. Vim a conceber os desempenhos do ritual como

sendo fases distintas, no processo social, através das quais os grupos se ajustavam a

mudanças internas e se adaptavam ao seu ambiente externo. Desse ponto de vista o

símbolo ritual transforma-se em um fator de ação social, em uma força positiva num

campo de atividade. O símbolo vem associar-se com interesses, propósitos, fins e

meios humanos, quer sejam estes explicitamente formulados, quer tenham de ser

inferidos a partir do comportamento observado. A estrutura e as propriedades de um

símbolo são as de uma entidade dinâmica, ao menos dentro do seu contexto de ação

apropriado.” (TURNER, Floresta de símbolos, 49)

Desses símbolos, percebi uma variedade de representações de etnias indígenas

entre eles. O Urucum, o rapé, o jenipapo, os cantos rituais e a fogueira são os símbolos

que se mostraram mais recorrentes e importantes.

O Urucum e o jenipapo

A pintura com Urucum, foi um dos ritos iniciais que presenciei nos rituais da

aldeia, o Urucum na cultura indígena representa proteção dos deuses e dos ancestrais,

além disso estar com urucum no rosto representaria também entrar em contato com a

sua ancestralidade indígena, e não ter receio de se autoarfirmar indígena.

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A importância da autoafirmação é uma pauta forte levantada por esse

movimento. Não com o intuito de protagonizar o movimento indígena, mas de perceber

que a sua condição como brasileiro perpassa diretamente a uma ancestralidade indígena,

de algum modo ainda existe um pouco do sangue indígena concorrendo por suas veias,

e se autoafirmar é não negligenciar essa condição e dar visibilidade a esse povo,

portanto, o se autoafirmar carrega uma grande responsabilidade com a questão indígena.

O jenipapo, como o urucum, é uma pintura também muito importante, que

acende a ancestralidade e reforça a cultura indígena. Durante o congresso percebi que

nenhum dos indígenas de outras delegações, que chegaram nos primeiros dias, haviam

chegado já pintados com jenipapo, isso me estimulou a pensar várias questões, como

por exemplo, que o jenipapo seria um símbolo ritual muito especifico, mas com o tempo

esses indígenas, das etnias Guajajara e Guarani, passaram a se pintar.

Dois dias depois algumas lideranças Terena e Guarani-Kaiowá do Mato Grosso

do Sul chegaram ao congresso muitos pintados com jenipapo, na plenária do outro dia

uma das lideranças terenas fez uma fala emocionada sobre o fato de muitos não

indígenas estarem pintados com jenipapo, agradecendo, pois aquilo representa a cultura

deles e a cultura originária desse pais, e o fato de estarmos pintados mostrava que não

tínhamos vergonha dela e estávamos dando visibilidade a esse contexto.

No último dia do congresso eu já estava com a face toda pintada com a mistura de

jenipapo com carvão, que é a mistura que eles utilizam para fazer as pinturas, é uma

espécie de tinta preta que demora a sair, portanto fiquei com o rosto pintado por uma

semana. Quando já estava voltando pra casa fui ridicularizada e zoada por algumas

pessoas na rua, pelo fato de estar pintada como “um índio” como as pessoas afirmavam

para mim, o que para aquelas pessoas era se “rebaixar a um povo primitivo”.

Após esse episódio, passei a pensar a questão da pintura sobre outra perspectiva

e entender melhor a fala daquele indígena sobre o não sentir vergonha em estar pintado,

sobre a importância de afirmar a cultura indígena. Numa perspectiva geral, que parte de

uma visão colonizadora, que infelizmente abrange parte da população, o indígena é

materialização do homem primitivo e atrasado, sendo suas pautas políticas, como o

direito às terras algo que vai contra a lógica de “evolução” e “crescimento do país”.

Quando não indígenas se propõem a respeitar e a aprender essas culturas, é dar

legitimidade a esse movimento, é apoiar e ajudar nesse movimento, que precisa a cada

dia de mais braços, em outra fala esse mesmo indígena comentou sobre as dificuldades

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que seu movimento enfrenta no MS, pois muitas lideranças são assassinadas e o numero

de pessoas só tende a diminuir, reforçou também sobre a diferença do movimento deles

e o da aldeia aqui, pois a aldeia maracanã conta com dezenas de não indígenas que

constroem também o movimento, enquanto que lá não existe mobilização da população

para ajuda-los.

Pintura de Urucum sendo feita por Potyra (liderança indígena no movimento da aldeia)

Indiara Kayapó (liderança indígena) e Luna, pintadas de Urucum em Ato da aldeia

maracanã do dia 19 de abril.

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Indiara fazendo pinturas ancestrais usando um batom ao invés do Urucum, em Ato da

aldeia maracanã do dia 19 de abril, resignificação da cultura indígena diante de um

contexto urbano.

Urutau Guajajara (liderança indígena) fazendo pintura com jenipapo, em Ato da aldeia

maracanã do dia 19 de abril.

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Lideranças indígenas fazendo pinturas ancestrais com lápis de olho ao invés de

jenipapo, em Ato da aldeia maracanã do dia 19 de abril, resignificação da cultura

indígena diante de um contexto urbano.

A roda de cantos ancestrais

A roda de cantos ancestrais em um rito que antecede as plenárias e reuniões

deliberativas e que também é utilizado para finaliza-los. Os cantos cantados representam

fortemente a cultura e trazem de maneira muito forte a ancestralidade, por isso iniciar

esses espaços com eles para os indígenas é muito importante, além disso, muitos dos

cantos inspiram força, ao pedirem força aos deuses e falarem de liberdade através de

metáforas.

Um dos cantos que se chama Maynumi Uira, que em tupi-guarani significa

beija-flor vai cantar, fala sobre um beija-flor que canta todos os dias pela manhã.

Maynumi é o nome da filha de duas lideranças indígenas importantes, que foi concebida

e nasceu na aldeia, ela representa o beija-flor que continua a cantar ainda que queiram

cala-lo, assim como a musica, representa resistência. As rodas de cantos também são um

momento de descontração e diversão.

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Roda de cantos ancestrais do Ato do dia 19 de abril.

Roda de cantos ancestrais do Ato do dia 19 de abril.

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Roda de cantos ancestrais do Ato do dia 19 de abril.

Roda de cantos ancestrais do Ato do dia 19 de abril.

O rapé

O uso do rapé é uma pratica muito comum entre os Ashaninka do Acre, e foi

incorporado ao movimento pelo indígena Ash Ashaninka. Participei de dois feitios de

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rapé durante meus campos, para Ash os feitios são verdadeiras aulas sobre cosmologia

da floresta e sobre a medicina tradicional indígena.

O rapé é um pó feito com tabaco, primeiro é preciso desenrolar o tabaco

utilizado, que vem em rolo e bem úmido, durante todos os momentos da produção do

rapé, Ash ressaltava a importância de manter em mente pensamentos bons e também

estabelecer uma conexão com Pachamama, que seria a mãe-terra, na medicina indígena

o rapé é uma substancia de poder.

Depois de desenrolar e esticar as folhas do tabaco ele deve secar ao sol, em uma

das vezes que fizemos estava de noite e não havia sol, então o secamos na fogueira,

antes de secar, cada um pegou um pouquinho do tabaco e jogou na fogueira, em um ato

de alimentar a fogueira mas também significava jogar as coisas ruins para queimar,

nesse monte de tabaco que jogamos tínhamos que mentalizar coisas que não queríamos

mais para a nossa vida e que estavam atrapalhando a luta.

Após seca-lo ele é esfarelado e colocado em um pilão, o pilão que usamos se

chamava “não vai ter copa”, após pilar ele é peneirado em um lenço. No final, em

algumas vezes misturamos outras folhas em pó, como de ganja e coca. Ash, fala do rapé

como uma substância que expande a mente, tal como a ayahuasca, a ganja e outras

plantas. Ele diz que são elas coisas que Pachamama nos da para que enxerguemos

melhor as questões e consigamos resolver os problemas.

Eu utilizei o rapé algumas vezes, ele pode ser soprado em seus nariz, ou você

mesmo pode aplica-lo, soprando em si mesmo, mas é importante que quem aplique

esteja com bons pensamentos e o faça com seriedade, pois nesse ato existe uma troca de

energia intensa e de cura também.

O rapé pode algumas vezes causar vômitos e deixar a pessoa muito mal, é

obrigação de quem o aplicou e também de todo o grupo, lidar com esse situação e fazer

a pessoa “voltar” caso o estado demore muito a passar, essa condição de passar mal não

é vista de uma forma ruim, pois representaria limpeza.

A sensação do rapé é primeiro bem incômoda, suas narinas ardem, os olhos

lacrimejam, a pressão cai um pouco, eu sinto algumas vertigens também. Mas é como se

fosse possível sentir a ação de cura por todo o seu corpo e ,talvez pela queda da pressão,

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algumas vezes quando me sentei no chão de grama senti uma profunda conexão com a

natureza.

O rapé te coloca a pensar as questões de maneira diferente, como uma expansão

de mente mesmo, talvez por todo o êxtase do ritual, por toda a concentração que se

constrói diante dele, mas também por sua própria composição.

A fogueira

A fogueira é o símbolo essencial nas praticas rituais da aldeia maracanã, todos

os espaços deliberativos exigem uma fogueira, para que aconteçam bem e que se tenha

bons frutos. Ela é feita no centro da roda. Os outros grupos indígenas que conheci

também usavam muito a fogueira, nos momentos de roda, seja para descontração, seja

para reuniões, de modo que, durante o congresso, em um mesmo espaço haviam

diversas fogueiras, cada uma em uma das rodas que se formavam, em algumas tribos o

fogo representa tupã, uma das referencias indígenas de deus.

A fogueira é além de tudo um espaço que inspira a ancestralidade, em uma das

conversas com Ash ele falava sobre o que a fogueira representa no meio da floresta,

onde não há outro tipo de luz, ela é muitas vezes o recurso que se tem para manter as

pessoas conectadas, por exemplo, quando se usa ayahuasca, uma substância alucinógena

que traz uma conexão ancestral muito forte.

A fogueira também aquece, e estimula a roda, em um circulo de descontração e

união, o fogo inspira as questões e estimula o debate. A consagração da fogueira é

importante pois através dela se convoca os espíritos ancestrais, e os deuses que dão

proteção e força para a luta da resistência.

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Não indígenas que compõem a resistência acendendo a fogueira no Ato do dia 19 de

abril

Urutau consagrando a fogueira no Ato do dia 19 de abril

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Indiara em um ritual de consagração da fogueira, e de invocação dos espíritos

ancestrais, Ato do dia 19 de abril.

Lideranças indígenas em ritual de consagração da fogueira no Ato do dia 19 de abril

V. O circulo de Mulheres

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O circulo de mulheres é um espaço de reunião apenas com mulheres, foi um dos

espaços principais para eu me inserir no campo, como mulher me encontrar com

mulheres em um espaço autoorganizado apenas por mulheres.

A Potyra, explicou que o circulo de mulheres se formou através da necessidade

de construir um espaço aberto onde as mulheres possam se sentir livres para dialogar

entre si e se organizar. Segundo ela, aconteceram vários episódios de intrigas por falta

de comunicação entre as mulheres e isso estimulou a criação desse espaço, “os homens

conversavam no bar e se resolviam assim, nós mulheres não tínhamos esse espaço” ela

relatou em uma conversa.

O círculo de mulheres é uma reunião de mulheres onde os homens são

totalmente proibidos, e nada do que é falado dentro do círculo pode sair, o contexto do

círculo de mulheres advém muito das ideias de organização política que outros grupos

trouxeram para o movimento, tal como o feminismo.

Foto do circulo de mulheres do dia 19 de abril

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VI. Conclusão

O movimento de resistência da aldeia Maracanã é um movimento indígena que

se constrói em um espaço urbano, é um movimento de questionamento e que propõe

uma ruptura com a norma social estabelecida, assim como Victor Turner coloca a

primeira fase do drama social.

A partir dos elementos resignificados por esse movimento e possível perceber a

complexidade das culturas indígenas e a sua capacidade de se resignificar e de dialogar

entre si, mesmo com a diversidade de etnias. O movimento de resistência com os

conceitos de ação direta, de luta política, de feminismo e de autoafirmação indígena é

uma construção que advém do contato com diversas lutas políticas, é um contato entre

cosmologias diferentes que fortalece a luta.

Os diversos rituais e símbolos são resignificados e desconstruídos diante do

contexto desse movimento, mas ainda resiste ali a cultura indígena, e essa resignificação

é o que mais fortalece o ser indígena dentro do espaço urbano. Resistir com pinturas,

cantos e rituais é mostrar-se existindo no espaço, é colocar a cultura indígena diante dos

olhos de uma sociedade que o tempo todo tenta apaga-la. Pensei muito em ritual como

performance e arte para interpretar o movimento da aldeia.

“A arte permite muitas vezes a exposição da realidade no limite do possível, do

dizível e do representável. A arte possibilita, entre outras coisas, a ilusão, o abismo, a

desconstrução social e moral dos sujeitos retradados, intromete-se na cenografia e na

maquilagem do real.”[RAPOSO, 20]

A ideia de performance como arte, seria mais apropriada para interpretar esse

trecho e pensar como as formas simbólicas descritas mais acima são retratos de arte

também, como resignificações e reapropriações de uma cultura.

A imagem abaixo revela uma resignificação material, com tintas preta e

vermelha, que mantém a tradição de cores do urucum e do jenipapo, em cima de uma

folha de papel são feitos grafismos indígenas.

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Referências Bibliográficas

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Performance Arte e Antropologia. São Paulo, 2010, EDITORA HUCITEC.

MALINOWISKI, Bronislaw. Argonauts of the Westen Pacific. Nova York: E.P Dutton,

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TURNER, Victor. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da

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TURNER, Victor. Dramas sociais e metáforas rituais. Dramas, campos e metáforas.

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SAADA, Favret. Ser afetado. Rio de Janeiro :Cadernos de Campo, 2005.

TURNER, Victor. The Anthopology of Performance. New York: PAG Publications,

1987

TURNER, Victor. The Ritual Process: Structure and Anti-Structure). Chicago: Aldine

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TURNER, Victor. Floresta de Símbolos. Niterói, RJ. EdUFF: 2005.