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Ano 3 | Nº 13 | Jan 2015 ISSN 2316-8102
TUPYQUEER MANIFESTO por André Masseno
Vamos falar sobre a importância de um corpo de artista queer. Um corpo
imbuído de tarefas e ações artísticas que se apropriam ativamente de seu contexto
cultural. Um corpo que se utiliza de poses e gestualidades para sucatear e
reprocessar as informações circundantes. [1]
Entretanto, é necessário fazer um breve recuo à célebre frase do legado
shakespeariano: “Ser ou não ser – eis a questão”. Por ter se tornado uma das
máximas do pensamento ocidental, acabou se deslocando de seu nicho inicial (um
diálogo teatral a ser representado) para ganhar vida e leitura próprias. Eu recupero
o discurso de Hamlet para sucateá-lo em prol de nosso bel-prazer, amparado pelas
sombras sintomáticas que essa linha do personagem de Shakespeare produz até
mesmo aqui, enquanto estamos a pensar em dissidências, em diferenças e
causações.
A dúvida hamletiana atravessou os séculos e se tornou uma máxima
demarcadora da crise de identidade do sujeito ocidental às voltas com a tomada de
posição sobre afirmar ou não, e publicamente, uma “substância” de si na esfera
social em que se insere – tendo essa “substância” outros nomes, como
interioridade, identidade ou “eu verdadeiro”. Em linhas gerais, “ser ou não ser”
evidencia a regência do pensamento dual das diferenças na cultura e sociedade
ocidentais, ansiosas pelo cerceamento dos desejos e de suas figurações na arena
pública.
No entanto, o sujeito sempre estará escapando, se esquivando, burlando,
mesmo que a contragosto, qualquer enunciação peremptória de seus desejos,
comportamentos e práticas, ainda que opte pela aparente dissolução do “dilema”
ao escolher uma das extremidades dessa polaridade binominal. Portanto, “ser ou
não ser” uma “substância” de si unívoca e coerente perante a arena pública ou a si
mesmo é uma intervenção linguística potente e performativa, embora não aplaque
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a transitoriedade e a transformação do sujeito e a de seus desejos.
O sistema dual sempre denota e prevê a exclusão do outro, pois, ao impor
somente duas opções em que uma delas é o caminho possível a ser trilhado, o
sujeito é impelido a descartar as demais possibilidades excluídas do jogo dual,
mobilizando-o na ficção de uma unidade identitária que não condiz, muitas vezes,
com a diversidade de seus desejos. Deixa-se de lado a multiplicidade, as cisões e
as incoerências próprias da discursividade plural de si.
No que tange aos problemas de gênero e, principalmente, aos da
sexualidade no Brasil, a articulação discursiva dos pares binários caiu como um
“fino tailleur” para a demarcação dos sexos, identidades de gênero e práticas
sexuais, assim como de seus respectivos trânsito e expressividade em nossa esfera
social. Portanto, na sociedade brasileira passou a ser presente a marca linguística
da barra (/) – sinal gráfico que reforça polaridades e limites no transitar entre um
polo e outro. No cerne da militância homossexual, por exemplo, que no Brasil
começou a ser delineada nos idos da década de 1960, a demarcação gráfico-
discursiva da barra tornou-se presente pelo uso constante do verbo assumir, que
não deixava de ser uma ressonância da ideia do coming out, presente nos
movimentos gays e lésbicos norte-americanos. Essa atitude política de enunciação
da sexualidade ou, se preferirmos, da “saída do armário” do sujeito homossexual,
resultou em maior visibilidade das dicotomias público/privado, vida familiar/vida
secreta, heterossexualidade/homossexualidade. Curiosamente, essa política é
paradoxal perante o histórico das práticas sexuais e das manifestações de desejo e
gênero na sociedade brasileira, instaurando uma “alfândega crítica” [2] (em que a
barra é sinal mister) antes inexistente no território nacional, já que os limites entre
homossexualidade e heterossexualidade, por exemplo, e principalmente nas
classes populares, eram uma fronteira ambígua e generalizada. [3]
Então, em vez de encararmos o “ser ou não ser” como a urgência de uma
resposta definitiva e (auto)reguladora, por que não pensarmos o jogo performativo
intrínseco a esse “dilema”, enunciação que pode ser feita, desfeita e refeita a todo
momento, ganhando respostas diferentes em cada contexto? Por outro lado, uma
resposta indefinida a essa questão não seria uma postura repleta de astúcia e
audácia perante um contexto social cada vez mais rígido na catalogação das
marcas identitárias do sujeito – seja estas de classe, gênero, étnica ou sexual? E se
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em vez de uma resposta seletiva entre “ser” ou “não ser” uma pessoa com uma
sexualidade assim ou assado propormos uma resposta aditiva, inclusiva de “ser” e
“não ser”, quais seriam as suas implicações? Indo mais além: uma resposta
inconclusiva, indefinida ou inclusiva ao “ser ou não ser”, pode ganhar um saber e
sabor distintos, dependendo do trópico onde a questão é proferida?
Após tais questionamentos – e que deixo aqui em aberto – retornemos ao
debate sobre a arte para trazemos à tona duas perguntas que precisamos levar em
consideração: (1) O que pode a arte queer?; e (2) O que pode artistas queer?
Então, tento respondê-las com uma única resposta: arte e artistas queer
podem apontar possibilidades performativas que não se encontram na pauta do dia
e que, portanto, se encontram no campo do obsceno, isto é, do lado de fora da
cena atual. Arte e artistas queer podem chamar a atenção para práticas e modos de
fazer dissidentes no território da arte, e também podem dar visibilidade à
multiplicidade de desejos que residem nas dissidências sexuais.
Busco responder a essas perguntas levando em consideração os nossos
contextos histórico, político e social e, também, por acreditar que é praticamente
impossível um fazer artístico contemporâneo que não dialogue com a enxurrada
de informações midiáticas produzidas na atualidade. Sendo assim, surgem outras
questões: como fazer arte queer diante da vasta produção da indústria cultural
contemporânea? Que posição artisticamente política deve ser tomada perante uma
indústria cultural que se alimenta das manifestações culturais, comportamentos e
sexualidades considerados periféricos, fazendo dessas “minorias” uma fatia
considerável de seu mercado?
Não sejamos ingênuos: a relação entre a normatividade da indústria
cultural e as ditas “minorias” sempre alimentou um jogo de saberes de mão dupla.
Se, por um lado, a indústria cultural reduz as sexualidades, as expressões e
identidades de gênero a meia-dúzia de tipologias comportamentais que reforçam
os binarismos homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino,
hétero/homossexual, por outro, os saberes e comportamentos dissidentes vêm
sendo mais expressivos com seus modos de contestação e de resistência às
fronteiras sedimentadas pela ficção heteronormativa, ao burlar os padrões
culturais, simbólicos e performativos de “ser homem” e de “ser mulher”. As
expressões artístico-culturais das “minorias” muitas vezes sucateiam e deslocam
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as produções midiáticas da indústria cultural, subvertendo as suas blondie girls, as
divas glamourosas, suas fêmeas fatais, os bad boys e seus corpos musculosos. É
notável como esses padrões hegemônicos de masculinidade e feminilidade vêm
lidando com uma violenta e necessária subversão por parte de sujeitos com
sexualidades, identidades e expressões de gênero não conformes com tais
padronizações, oferecendo outras afetividades a esses padrões.
A busca por um diálogo crítico, violento, afetivo e borrado com a
produção midiática tem sido um interesse constante que atravessa a minha prática
artística e também o modo como vejo e experiencio o meu entorno. Além disso,
há algum tempo venho me interessando por uma ficção quase arqueológica: a de
enxergar um registro proto-queer em nosso legado cultural; tentar traçar
artisticamente uma genealogia da arte e corporeidade queer no território
brasileiro, antes mesmo da aparição do termo em nossas redes de debate social,
acadêmico, político e artístico. Então, que história cada um de nós criaria para a
arte queer em nossos frescos trópicos? Qual é a nossa ficção de uma origem
queer? Quais são as arqueologias dos nossos corpos que racham os padrões?
Na minha versão (quiçá ficção) dessa história, uma das primeiras marcas
queer na arte nacional pode ser encontrada no Modernismo brasileiro, com
potente máxima de Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago: tupi or
not tupi that is a question.
A ladroagem em paródia da frase hamletiana feita por Oswald parece
evocar a reativação de uma “língua bizarra”, de matrizes culturais e
comportamentais não compartilhadas pela população branca e letrada de sua
época. Através dessa questão, Oswald assinala o desejo de revisitar uma “mátria”
matada, de resgatar culturas e comportamentos que foram sendo apagados e
tornados invisíveis – pois não teria sido este país um território queer antes da
tentativa de docilizar seus habitantes e sua linguagem? “Tupi or not tupi” tornava-
se o avatar de uma esperança no círculo modernista.
Porém, proponho darmos um salto de tigresa sobre a frase de Oswald,
tendo em mente que enquanto o círculo intelectualizado do Modernismo brasileiro
projetava uma antropofagia, a famosa figura de Madame Satã já corria solta nos
bas-fonds da noite citadina devorando a cena noturna com dublagens, navalha e
capoeira. Dilacerando a provocação oswaldiana com as garras ferinas da Mulata
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do Balacochê – uma outra possível marca primeva queer em nossos trópicos –,
que tal pensarmos em um tupy com “y” mesmo, apontando a origem de um
Brazyl estrangeirado, em transe? Em um tupy que não possui genealogia definida,
que não cabe em qualquer visão romântica e essencialista sobre ele e tampouco
compartilha a ideia de um primitivismo positivista?
Então, na minha ficção de uma origem da arte queer no Brasil, afirmo que
ela é tupyqueer, uma arte desgarrada, uma arte que ladroa, come, reprocessa e
vomita os estereótipos que recaem sobre os corpos tropicais. Uma arte
impregnada pelas Carmens, rumbas, Iracemas, portunhóis, Abaporus, boleros e
Peris. Uma arte vertiginosa e extasiada, com a herança de sabor tropical – as
corporeidades dissidentes desta terra abaixo do Equador sempre estiveram dentro
de um jogo de aproximação e afastamento, com todo esse olhar erótico-tropical
que recai sobre os nossos corpos e que, no entanto, introjetamos com calor e
prazer, com o deleite do escracho e uma debochada doçura virginal.
“Ser” tupyqueer e fazer arte tupyqueer no Brasil é desbravar a selva
fechada das normatividades. Para isso, é preciso muita montagem, bastante
desorientação e disposição para montaria pesada. Tem de ficar de quatro, tem de
gritar, tem de ter cu, boceta e pica. Para “ser” tupyqueer tem de ter pique.
A meu ver, reprocessar a indústria cultural e rediscutir a nossa ficção
erótico-tropical são duas posturas não excludentes entre si. Seja a volúpia da loura
platinada saindo de um bolo de aniversário, seja a pose brejeira da virgem dos
lábios de mel, arrisco a pensar que os artistas tupyqueer, em meio a essa
enxurrada de temporalidades, imaginários e corporeidades, são corpos que
precisam estar atentos tanto às produções artísticas e midiáticas de seu tempo
quanto à sombra de seu passado cultural, reconhecendo aquelas produções (tanto
do passado quanto do presente) enquanto ficções culturais, distinguindo os seus
contextos sociais, artísticos e intelectuais. Corpos que devem também manter-se
alertas sobre a maneira que tais produções se posicionam diante das expressões e
identidades de gênero.
Através de seus corpos, artistas tupyqueer deslocam e contestam
publicamente a normatividade, os sistemas duais de diferenciação e cerceamento
dos desejos e corpos do sujeito. Disseminam publicamente outras políticas de
posicionamento a respeito das sexualidades, alastrando socialmente a presença de
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corpos gozosos e dispendiosos. Diante desse status quo, os corpos tupyqueer são
perigosos e obscenos por serem corpos postos fora da cena e que retomam os
palcos artístico e social de forma violenta, ácida e debochada. Corpos tupyqueer
podem acionar outros modos de fazer arte e política, colocando-se em contraponto
à estratégia de apagamento das diferenças engendrada pelas estâncias social e
cultural dominantes, que estão repletas de discursos pseudoigualitários e
falsamente democráticos.
Entretanto, este manifesto não resolve algumas questões que ainda me
intrigam; ainda me pergunto como e quando se daria uma arte tupyqueer e quais
seriam os seus campos de ação. Mas “ser artista tupyqueer”, por exemplo, é
garantia de uma arte tupyqueer? Por outro lado, a “arte tupyqueer” também pode
ser acionada por artistas que, comportamental ou sexualmente, não sejam
dissidentes? Essas perguntas parecem fugir de quaisquer respostas categóricas,
pois são perguntas-problemas que ganham respostas diferentes de acordo com o
contexto em que são elaboradas. Contudo, acredito que a diversidade desse leque
de questões seja um dos pontos mais importantes a ser levado em conta para se
pensar a arte tupyqueer enquanto conjunto aberto de ações tensionadas, com
modos de fazer paradoxais e conflitantes, e que têm o corpo como morada e ponto
de partida da produção artística. Corpos de artistas como provedores, receptores e
também como intermediadores críticos de mensagens sociais e culturais.
Notas
[1] Este manifesto é uma adaptação do roteiro textual da palestra performativa “To be or
not to be queer: that’s a toxic question”, apresentada nos eventos Com.posições políticas
(Panorama Festival/RJ – 2011) e Todos os Gêneros: Poéticas da Sexualidade (Itaú Cultural/SP–
2013).
[2] A expressão “alfândega crítica” é cunhada por Silviano Santiago no ensaio “O
homossexual astucioso”, onde o autor e crítico literário também argumenta, através de um recorte
da ambiência do romance O cortiço, de Aluísio de Azevedo, um espaço de convivência entre as
expressões de sexualidade nas classes populares brasileiras em meados do século XIX. Cf.
SANTIAGO, Santiago. “O homossexual astucioso”. In:___. O cosmopolitismo do pobre. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p. 197-198.
[3] É oportuno dizer que, a meu ver, não houve momento mais crucial para a ratificação
do jogo binominal do ser/não ser no contexto das práticas sexuais do que o das duas últimas
décadas do século XX, quando adveio a epidemia do HIV/AIDS. A síndrome reforçou as noções
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de figura/fundo, revelação/ocultamento dos comportamentos sexuais, além da crescente
estigmatização do sujeito soropositivo na cena pública daquele período, levando-o a situar-se entre
a enunciação e o ocultamento de sua soropositividade.
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor