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Um barco para Ítaca de Manuel Alegre Autor(es): Ferreira, José

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Um barco para Ítaca de Manuel Alegre

Autor(es): Ferreira, José Ribeiro

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23865

Accessed : 15-Mar-2018 20:53:35

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE LETRAS

VISE 7

MÁ THESIS 6 1997 239-260

UM BARCO PARA ÍTACA DE MANUEL ALEGRE

JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Criadora de valores intrínsecos de grande relevância que, transmitidos ao longo dos tempos, estão na base do viver e sentir do homem moderno, a cultura clássica ajudou a dar forma à cultura ociden­tal e nela permanece ainda viva!. Fonte inspiradora de inúmeras obras literárias, musicais e artísticas, os seus temas e mitos tomaram-se parte importante e integrante da cultura e literatura contemporâneas2 , para dar corpo frequentes vezes a valores e ideais do homem da actualidade. Manuel Alegre é um dos que a eles tem recorrido, sobretudo ao de Ulisses, que é também dos mais frequentes na literatura portuguesa3

O elemento essencial desse mito na Antiguidade Clássica reside na prudência e astúcia do herói, no seu espírito de aventura e gosto de tudo experimentar, na fidelidade e desejo de retorno à sua ilha e para junto dos seus.

Ora é esse mito que está subjacente a Um barco para ftaca, uma obra em forma dramática que tem a Odisseia como arquitexto e na qual a figura de Ulisses é central4

• E seja qual for a leitura feita a esta obra de

1 Provam-no as diversas comunicações do Congresso Internacional "As Humanidades Greco-Latinas e a Civilização do Universal", realizado em Coimbra, de 11 a 16 de abril de 1988, sob a égide do Presidente Léopold S. Senghor. Vide as respectivas Actas - As Humanidades Greco-Latinas e a Civilização do Universal (Coimbra, 1988).

2 Sobre a importância e papel dos mitos gregos na formação do pensamento moderno, vide W. Burkert, "Griechische Mythologie und die Geistesgeschichte der Moderne", in Les études classiques aux XIX' et XX' siecles: leur place dans I' histoire des idées (Entretiens Hardt 26, Geneve, 1979), pp. 159-208.

3 Vide José Ribeiro Ferreira et alii, Exflio sem remédio. O tema de Ulisses em Manuel Alegre (Viseu, Universidade Católica Portuguesa, 1996); J. Ribeiro Ferreira, «O tema de Ulisses em cinco poetas portugueses contemporâneos», Máthesis 5 (1996) 437-462.

4 Um barco para ftaca foi analisado num estudo apresentado no Seminário de Cultura Clássica na Faculdade de Letras (Polo de Viseu da Universidade Católica

240 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Manuel Alegre, ela passará necessariamente pela comparação com esse herói e com o poema homérico. Explicitam essa ligação dois passos do canto 15 da Odisseia, retirados do episódio que narra a partida de Telémaco de Esparta para regressar a Ítaca e citados em epígrafe na abertura de Um barco para ftaca (p. 245)5, bem como introduzem, ao mesmo tempo, o tom geral que o poeta deseja imprimir a esta obra: a vingança-castigo e a viagem de regresso. O primeiro passo é retirado da fala em que Helena, interpretando o fenómeno natural da captura de um ganso doméstico por uma águia, profetiza a chegada de Ulisses a Ítaca e o castigo que infligirá aos Pretendentes (Od. 15. 172-178):

Escutai-me! Vou revelar-vos o sentido, que ao meu coração os imortais inspiraram e julgo se cumprirá. Como ela capturou o ganso doméstico, esta águia vinda da montanha onde nasceu e tem os filhos, assim Ulisses, depois de muito ter sofrido e muito vaguear, vai regressar a casa e vingar-se-á. Ou talvez já esteja no palácio a planear a morte de todos os Pretendentes.

o segundo reproduz a fala em que Telémaco, na manhã seguinte, incentiva os companheiros a embarcarem e aprestarem o navio, com vista ao regresso imediato (Od. 15.218-219):

Ordenai os aparelhos, companheiros, na negra nau, embarquemos todos, para iniciarmos a viagem.

Um barco para ftaca divide-se em quatro episódios com os significativos títulos de «Na ilha de Calipso», o primeiro; «Em Ítaca: Telémaco e os seus jovens companheiros», o segundo; «No Ágora: Assembleia do povo», o terceiro; e «No palácio de Ulisses», o quarto.

O primeiro episódio, Na ilha de Calipso, apresenta Ulisses retido há longos anos na ilha da ninfa, ansiosamente desejoso de regressar à sua Ítaca, para junto de Penélope. No herói, visivelmente, se revê o poeta exilado que deseja regressar à pátria e a Lisboa. E o episódio tem por epígrafe uma versão dos conhecidos versos 11-19 do Canto 1 da Odisseia, pertencentes à chamada "segunda proposição», que aqui reproduzo em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira:

Portuguesa), durante o ano lectivo de 1992/1993, e agora, reformulado, constitui o capítulo 4 do opúsculo Exz1io sem remédio, citado na nota anterior.

5 As citações e indicações de página são feitas pela edição Trinta anos de poesia (Lisboa, 1995).

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE 241

Já então todos os outros, que haviam escapado à morte ruinosa, se encontravam em casa, livres da guerra e do mar. Só ele, que desejava o regresso e a sua mulher, estava cativo de Calipso, a ninfa venerável, divina entre as deusas, no recôncavo das suas grutas, pois almejava tê-lo por esposo. Mas quando chegou o ano, no dobar dos tempos, em que os deuses lhe fiaram o regresso a casa, a ítaca, nem aí escapou às provações, apesar de estar entre os seus.6

Apesar desta citação do Canto 1, em epígrafe, o episódio - que tem por personagens precisamente Ulisses, o Coro das Ninfas, Hermes, Calipso e três vozes - corresponde ao Canto 5 da Odisseia, em que o herói, por decisão dos deuses que enviam Hermes a Ogígia com ordens nesse sentido, finalmente obtém autorização para partir. O episódio insiste na solidão de Ulisses - que esconde com certeza o poeta, na altura exilado em Argel -, na falta de Penélope, de um barco, do arco.

Eu sou Ulisses sem Penélope sem amor sem barco

refere o herói na sua fala de abertura (p. 249). A este propósito permito­-me sublinhar que a falta de um barco e do arco são motivos recorrentes ao longo do poema - um barco para regressar à pátria e o arco para castigar os que delapidam os recursos do reino e assediam Penélope: por exemplo (p. 250)

...... Ulisses já não tem arco não tem rainha. Ulisses já sem reino e já sem barco.

Ou então este passo não menos explícito, onde está subjacente a aplicação a Portugal (p. 275).

Quem senão Ulisses pode empunhar de novo o arco em Ítaca sem lei nem liberdade? Dai-me um barco para partir. Um barco para encontrar Ulisses perdido no mar.7

6 Hélade. Antologia da Cultura Grega (Coimbra, 61995), p. 45.

7 Para outras ocorrências vide, por exemplo, pp. 254. 257, 264, 269, 274-275, 288, 289,291.

242 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Motivos omnipresentes em Um barco para Ítaca, barco e arco têm grande importância no tratamento do tema de Ulisses e na poesia de Manuel Alegre em geral: o barco simboliza o regresso do herói, o regresso à pátria; o arco a vingança contra os Pretendentes e o castigo de quem de maneira violenta e despótica governa.

Em contraposição à solidão de Ulisses e ao seu desejo de regresso, sublinha-se a situação alterada em Ítacal Lisboa, com a idealização da época anterior à que actualmente se vive. Antes (p. 251)

........ havia laranjas. Havia um país de leite e de limão. Havia cântaros carregados de azeite . ............. Havia uma canção que falava do vento e das espigas.

Hoje, em Ítaca, «os homens partem e ficam! restos» que «os corvos debicam», «minha nação já só de cardos e caruma», ausências e fantasmas (p. 251).

A identificação de Ítaca com Lisboa e Portugal e de Ulisses com o poeta, além de pressuposta, é expressamente feita em passos como (p.250)

Ulisses já sem coroa nem resposta quando pergunta (quando pergunto) por sua (minha) cidade Lisboa.

Mas, acima de tudo, Ulisses é o homem que se procura, que vive em permanente insatisfação interior, como lho observa Hermes, vestido de mendigo (p. 252):

A tua tristeza é terrível 6 estrangeiro terrível é a tristeza do homem que se procura.

A réplica do herói é elucidativa dessa constante interrogação íntima:

Falas como se lesses no pensamento. Terrível é a sorte de quem prisioneiro há sete anos procura e não encontra.

o desagrado da situação é sublinhado pela repetição de "terrível" e "tristeza", por anáforas e aliterações.

Pelo recurso e alusão intertextual à conhecida astúcia do falso nome no episódio do Ciclope Polifemo, o herói de Um barco para Ítaca

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE 243

considera-se "ninguém", de um país que não tem esperança de recuperar, pois não consegue encontrar sequer quem lhe indique um caminho de regresso, impossibilidade sublinhada pela expressão «e não encontra» repetida no final da fala, como num eco (p. 252):

Já meu nome é Ninguém. Meu país Nunca Mais. Nem rainha nem reino. Só este país de lágrimas só esta coroa de espuma. Ah não haver um caminho. Não haver uma certeza. Terrível ó ancião terrível é a tristeza de quem procura e não encontra. E não encontra.

A que Hermes responde (p. 252):

Se é certeza que buscas se é a certeza sabe que nenhuma cabe na tua mão.

Acaba por sugerir, no entanto, que essa insatisfação e busca (p. 253) «Talvez em Ítaca. / Talvez em Ítaca: a tão azul» as possa saciar. Mas afinal nem mesmo aí: a insatisfação é companhia inseparável da alma humana. Ulisses encontrou outras terras, outras mulheres, outras rainhas, mas nenhumas eram as que procurava (p. 254):

Em cada mulher busquei uma rainha que não há em cada país o meu país de rochas e pinheiros. Mas nenhuma rainha era a minha rainha nenhum país o meu país de rochas e de cabras.

E aqui temos, em Um barco para ftaca, uma alusão à ilha rochosa de Ulisses, saudosamente descrita nos versos 21-28 do Canto 9 da Odisseia, mas que, apesar disso, o herói tanto ama:

Habito ítaca exposta ao sol. E nela existe um monte o Nerito que se encontra coberto de árvores. Em volta, ilhas inúmeras se dispõem, visinhas umas das outras: Dulíquio, Sarne e Zacinto cheia de florestas. E ela, a mais afastada, fica no meio do mar, para ocidente, ..................... . rochosa, mas boa nutridora de jovens. E eu , terra mais doce do que esta, não sou capaz de encontrar outra.

244 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

Em outros passos a descrição da ilha é completada com a referência à sua pobreza de solo: rochosa e sem prados, só possui alguns bosques, produz vinho e cereais e apenas consegue alimentar cabras; mas é mais agradável do que se apascentasse cavalos (Od. 4. 605-606; 13.242-245).

Hermes, em Um barco para Ítaca, sai para dar lugar a Calipso que, como no Canto 5 da Odisseia, promete ao herói a imortalidade sem velhice (p. 255), se quiser ficar com ela:

Comigo serias igual aos deuses o Tempo não marcaria com suas rugas o teu rosto nem Perséfone te receberia em seus braços de sombra.

Contudo, Ulisses prefere «um corpo de mulher/ ao corpo de uma deusa. O tempo que passai ao Tempo imortal». E mais uma vez constatamos que não é só o amor que impele Ulisses à viagem, ao regresso. É a insatisfação permanente do homem. A ninfa Calipso expressa bem essa eterna busca humana, na primeira fala que lhe dirige, iniciada e concluída por dois versos com belas metáforas. Cito o começo e o final da intervenção da Ninfa (p. 255):

Nas tuas palavras há cântaros partidos na tua voz há uma flauta a tocar numa terra distante.

Junto de Penélope tinhas saudade de uma deusa e junto de uma deusa tens saudade de Penélope. Buscavas a eternidade junto à morte e é a morte que buscas junto à eternidade.

E há sempre um alaúde partido na tua voz há sempre uma flauta a tocar numa terra distante.

Ulisses reconhece essa inquietação interior e considera incompatível com o homem essa eternidade que lhe é oferecida (p. 255):

De ser imortal 6 Deusa eu morreria morreria eternamente se não morresse e assim morrendo não tivesse de viver como se fosse eterno em cada instante

E tal incompatibilidade é acentuada num passo da fala do herói (p. 256) que apoia a sua escolha precisamente na mortalidade de Penélope:

Bem pobre é Penélope porque mortal. E ainda que seja entre as mulheres a incomparável como posso compará-la a ti que és imortal?

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE

Mas seria Penélope tão bela se não tivesse de morrer?

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Passo que, com elucidativas alterações, tem subjacentes as palavras do herói dirigidas a Calipso no Canto 5 da Odisseia (vv. 215-220).

Deusa poderosa, não te encolerizes comigo por isso. Eu sei muito bem que, em relação a ti, a sensata Penélope é inferior em estatura e beleza, quando se olha para ela: pois ela é mortal e tu imortal e sem velhice. Mesmo assim quero-a e desejo dia a dia voltar para casa e ver o dia do regresso.

As alterações introduzidas por Manuel Alegre vão no sentido de sublinhar a sedução do que é mortal. Ora na Odisseia, os anos que Ulisses esteve retido na ilha de Ogígia equivale aos olhos de todos à morte; Telémaco considera até o desaparecimento do pai pior do que a sua morte física, pois refere no Canto 1. 235-242 que não teria tanta pena se o pai tivesse morrido a combater em Tróia e lhe tivesse podido prestar honras fúnebres. Assim desapareceu dentre os homens «invisível e ignorado».

A busca de Ulisses em Um barco para Ítaca nunca se satisfaz: «há um outro longe depois de cada longe» confessa ele na "Canção para Penélope" (p. 257), bela peça de poesia que insiste no motivo do regresso. Regresso que, no entanto, não se circunscreve apenas ao desejo de voltar para Ítaca ou ao amor por Penélope. Se, por Um lado, Ulisses vê na sua rainha a beleza de tudo o que é fugaz e passageiro, como bem o expressa na referida canção (p. 257), por outro,

já do avesso virou cada certeza e o país que buscava não existe. Ainda não existe.

Agora sei que nada é fixo. Há sempre um por fazer há sempre outro partir depois de cada chegar. Agora sei que para saber é preciso rasgar as mãos. E procurar.

O termo da viagem de modo algum se limita ao exclusivo regresso a Ítaca. Se a citada "Canção" nos diz (p. 257):

...... eu buscava uma ilha mais ao sul e agora sei que s6 Ítaca a tão azul

246 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

com o pedido à brisa para anunciar o seu regresso e «dizer que por sua Penélope e por seu povo/ Ulisses voltará» (p. 258), essa ilha tão ansiosamente desejada é «uma ilha no mar azul», mas que fica sempre mais a sul, sempre mais a norte e nunca no sítio onde se chega. Assim o acentua o coro imediatamente depois da "Canção" e no fim do episódio (p. 258 e 260):

pois

Procura uma ilha no mar azul procura uma ilha mas não encontra

o que ele busca é sempre mais a norte o que ele busca é sempre mais a sul.

E assim o tema da errância, da insatisfação interior e da busca constante cruza-se com outro aspecto obsessivo da poesia de Manuel Alegre: a assídua utilização de "azul" e "sul", dois lexemas eufóricos, que ocorrem de modo geral sempre associados: indicam local para­disíaco, onde se encontra a felicidade, a paz; a liberdade fica geralmente para sul, num sítio em que o azul domina; Ítaca, «a tão azul», «é sempre mais ao sul», como referem Hermes e Ulisses (p. 253). Trata-se de um binómio que poderemos acompanhar ao longo de toda a obra. Por exemplo - e vou apontar apenas mais três ocorrências -, em Chegar aqui (p. 545), na composição "Louvor de Apolo", o poeta refere que nada sabe «das forças da noite» e não dançará «com bruxas em louvor de Dyonisos». Em contrapartida, em campo aberto cantou «por um país de luz» e amou «a graça o vinho o vento o mar azul», procura «um pátio de sombra e sol/Voltado para o sul»

Recentemente, num belo e sentido livro sobre o Alentejo, Alentejo e ninguém (Lisboa, Caminho, 1996), no poema ''Também sou Alente­jano" (p. 23), dedicado a José Manuel Mendes, refere que «Fernando Pessoa não gostava de sobreiros», que «percebia com certeza do interdito» e

Talvez soubesse do raiano do mágico logaritmo de outra margem e de um azul secreto dentro do azul.

Mas ele era só Baixa só urbano. Sentia na cabeça e na palavra.

Eu gosto dos caminhos para o sul onde passa o cigano e a rola brava.

Mais elucidativo da função eudemónica deste binómio é o poema "Utopia" (Alentejo e ninguém, p. 42)

UM BARCO PARA ÍTACA DE MANUEL ALEGRE

Na brancura da calo traço azul Alentejo é a última utopia.

Todas as aves partem para o sul todas as aves: como a poesia.

247

Ao longo do episódio primeiro de Um barco para ftaca, sobretudo no final, coro e outras vozes que a ele se associam, avisam o herói dos perigos que o rodeiam e se lhe vão deparando, todos eles numa rela­ção intertextual dinâmica com os episódios dos errores de Ulisses da Odisseia (Cantos 9-12) e todos simbólicos no contexto de Um barco para ftaca: os naufrágios que «terá de sofrer» (p. 258); os deuses que «estão contra», repetido como em eco (p. 258), «E os deuses estão contra. Os deuses estão contra»; a sedução das sereias que ele ouvirá «e passará adiante»; a navegação «até às margens do inferno» (p. 258); Polifemo que surge «sempre no caminho», «devorando quem lhe pede protecção» (p. 258); os «ventos do Noto e fúrias das ondas tres­malhadas» (p. 259), naturalmente uma alusão à ilha dos ventos, à abertura do odre em que Éolo os fechara pelos curiosos e desconfiados compa­nheiros de Ulisses e a consequente fúria das tempestades; o Palácio de Circe que é «veneno do esquecimento» (p. 259); as muitas «viagens de Ulisses» que são «glória e perdição» (p. 260). Por isso muitos «não voltarão», uns «por tocarem nas vacas sagradas» do Sol, outros «por abrirem o saco do vento», quantos outros perdidos para sempre «em terras desconhecidas: tão longe do país natal» (p. 259); e «dos tesouros de Tróia só um túmulo de sal» (p. 260). E assim, num diálogo rápido entre o Coro e diversas vozes, encontramos a referência a muitas das famosas aventuras de Ulisses, descritas nos cantos 9 a 12 da Odisseia.

Implícita também, nestas várias referências aos errores de Ulisses, uma alusão aos Descobrimentos Portugueses. Nessa gesta, como acon­teceu com Ulisses, quantos naufrágios sofridos, quantas vezes houve que vencer a morte (p. 258); entre a «glória e perdição» navegam «até às margens do inferno», batidos pelo vento e pelas «fúrias das ondas tresmalhadas» (p. 259). Muitos não voltarão, «comidos pelo gigante» ou ficando para sempre «em terras desconhecidas" (p. 259). Dessas viagens e dos tesouros encontrados (<<dos tesouros de Tróia»), actualmente, resta «só um túmulo de sol» (p. 260).

Se tomarmos em conta que, na poesia de Manuel Alegre, Penélope se identifica a cada passo com a Pátria, Ítaca com Lisboa e Portugal e Ulisses com o povo português, ficam justificadas e são elucidativas estas alusões implícitas em Um barco para ftaca.

O episódio seguinte de Um barco para ftaca, o segundo, intitulado Em Ítaca: Telémaco e os seus jovens companheiros, visa dar, em toda

248 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

a sua crueza - através de Telémaco, de um grupo de jovens com­panheiros seus e de um poeta -, a situação anormal e difícil de ÍtacaJ Portugal, anormalidade que já fora sugerida no episódio anterior. Repor­ta-se o episódio à Telemaquia, sobretudo aos dois primeiros cantos da Odisseia que dão início às aventuras do jovem príncipe e princi­palmente nos mostram a situação político-social que consome Ítaca. Em epígrafe, no início do episódio, dois passos da Odisseia, retirados precisamente dos dois primeiros cantos (1. 241-251 e 2. 212-215). O primeiro trecho faz parte de uma fala de Telémaco, em que o jovem refere o desaparecimento do pai e os vários Pretendentes que assediam a mãe, vivem dia a dia no palácio e de1apidam os bens. O segundo pertence à fala em que o jovem, reunida a assembleia dos Itacenses, anuncia o seu propósito de partir em busca de notícias do pai e solicita um barco para realizar esse desiderato.

Em Um barco para Ítaca os sentimentos de Telémaco não dife­rem muito dos que o jovem expressa no poema homérico, embora se mostre significativamente mais decidido à acção; ou melhor, é um Telémaco próximo do que surge no fim do Canto primeiro da Odisseia, depois de incitado por Atena, sob o disfarce de Mentes. O episódio começa na verdade com o filho de Ulisses a clamar que ninguém lhe fale de prudência nem de espera (pp. 263-264):

Que ninguém fale de prudência ninguém fale de esperar. Há palavras que estão gastas (que me gastam) Ponderação me pedem. Exigem que me cale mas bebem do meu vinho meus campos devastam à resignação chamam virtude juventude à indignação

E desta forma, no passo citado e nos versos que se lhe seguem, ao mesmo tempo que exprime o seu inconformismo, Telémaco carac­teriza a situação em Ítaca por palavras que, embora tenham subja­centes as que o jovem pronuncia na Odisseia e o modo como os Pre­tendentes aí actuam, se aplicam ao estado de Portugal dos inícios da década de 1970 em que Um barco para Ítaca foi publicado. Aliás toda a obra tem presente, em fundo, a situação política de então no país e a guerra desgastante nas colónias. Por isso o poeta, pela voz de Telémaco que se dirige aos jovens companheiros - tendo implícita a sua dicisão, no poema homérico, de partir em busca de novas do pai -, afirma que o tempo é de agir (p. 264):

eu vos digo que há um tempo de acabar com este tempo que se gasta e que nos gasta. Altas são as montanhas. E as águas do mar são vastas.

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE

Partir ou não partir. De qualquer modo ousar. Pois o tempo é de agir. E as palavras estão gastas.

249

Palavras gastas que já nada significam ou a nada conduzem, que necessitam da confirmação do agir. A velha dicotomia entre "palavra" e "acção", logos e ergon. Concorda o Coro dos companhei­ros, mas para agir necessitam de um barco (p. 264) - e novamente este motivo surge em plano de evidência, como já acontecera no primeiro episódio:

................... Um barco para partir um barco para chegar. Um barco para encontrar Ulisses perdido no mar.

A ideia de necessidade e vontade de agir reaparece no final do episódio, na última fala do jovem príncipe (p. 268), onde de novo se detecta a alusão à ausência e morte causadas pela guerra:

Ai Ítaca cheia de ausência em teu silêncio amortalhada. Que ninguém fale de prudência ninguém fale de esperar.

A que o Coro dos jovens responde com o apelo de (p. 269)

Um barco para partir um barco para chegar um barco para descobrir Ulisses perdido no mar.

Admite o Coro que o apelo de Telémaco, a voz que chega do mar, talvez seja já a de «Ulisses a chamar por seu país/le a perguntar por Ítaca». Mas trata-se agora de um «Ulisses perdido de si mesmo». E de novo, mas ago­ra assumindo a voz dos exilados, o Coro reclama um barco para chegar

a Ítaca dentro de nós: tão em si mesma perdida.

Esta referência a Ulisses perdido em si mesmo e a uma Ítaca que é interior e que cada um deve procurar até a encontrar dentro de si -tónica já abordada no episódio primeiro e que é estranha'à Odisseia -conclui o segundo episódio em cinco versos que se repetirão depois no final do poema (p. 291).

A necessidade de um barco e a ausência e desconhecimento de Ulisses que, como acabámos de ver, são acentuados no diálogo pre-

250 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

cedente entre Telémaco e os companheiros - a ponto de um dos jo­vens afirmar que «de Ulisses é buscar o impossível» (p. 265) e de o príncipe reforçar a ideia logo de seguida: «Para o desconhecido o leva­ram. Para o invisível» -, constituem mais dois elementos a ofere­cerem paralelismo com a Odisseia. O mesmo acontece também com as Harpias que (p. 265)

para o desconhecido para o invisível o levaram as deusas da tempestade

versos muito próximos de Odisseia 1. 241-243. Essa ideia do desapa­recimento ou desconhecimento do paradeiro e destino de Ulisses é um dos tópicos da Odisseia sublinhado, como vimos, logo a partir do Canto primeiro (e. g. 1. 234-242). Mas pode de novo ter subjacente uma subtil alusão às descobertas portuguesas: levaram Portugal para os quatro cantos do mundo, mas tal glória fez com que o país vivesse virado para o passado, nostágico dos seus feitos. Daí a pergunta (p. 267): «Quanto de Ulisses perdido em Ulisses descobridor?»

Outros elementos do poema homérico presentes nesta parte de Um barco para Ítaca são a queda de Tróia, a recuperação de Helena, a morte de Cassandra e de Agamémnon no seu regresso (p. 266), embora neles esteja veladamente implícita uma condenação da guerra que não vemos na Odisseia. Também paralelo ao que se passa no poema de Homero é o lamento, proferido pelo jovem, de nunca mais ter havido sufrágio nem reuniões do conselho desde a partida de Ulisses (p. 267):

E nunca mais houve sufrágio nunca mais o povo se reuniu em conselho desde que o levaram as deusas da tempestade e o mar ficou vermelho de seu naufrágio.

Ora na Odisseia estas afirmações não são expressas por Telémaco, mas por Egípcio, um amigo do pai (Od. 2. 25-34) e fazem parte dos versos que aparecem precisamente como epígrafe do terceiro episódio -No Ágora: Assembleia do Povo. Trancrevo a tradução dos refe-ridos versos:

Escutai-me agora, Itacenses, o que vou dizer. Não mais entre nós reuniu a assembleia nem o conselho, desde que o divino Ulisses partiu nas côncavas naus. Quem a convocou agora? Quem teve tal necessidade, quer entre os jovens, quer entre os que são mais idosos?

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE 251

Ou teve alguma notícia de annada que chegou? Que no-la faça saber, se dela teve conhecimento primeiro. Ou deseja expor e discutir qualquer outro assunto de interesse

público? Penso que é um homem honesto, benvindo.

Reunida a assembleia, por convocação de Telémaco - assembleia que ocupa a maior parte do canto 2 da Odisseia -, o primeiro a falar é este homem de Ítaca, de nome Egípcio, para lamentar a falta de funcionamento normal das instituições, desde a partida de Ulisses. É mais uma informação sobre a situação anómala na ilha. É objectivo do jovem tornar a assembleia testemunha da sua denúncia contra os Pretendentes. Protesto aparentemente sem êxito - pois Telémaco apenas é defendido pela deusa Atena disfarçada na figura de um amigo de Ulisses -, a convocação apesar disso consegue o seu objectivo, ao eliminar qualquer incerteza quanto às pretensões deles: cada vez mais violentos e com justificações inconvincentes para o seu comportamento, revelam-se na sua autêntica personalidade e cegueira moral, a ponto de nem entenderem a admonição de um presságio sobrenatural que vem confirmar as queixas de Telémaco (vv. 146 sqq.): duas águias que, voando a par, se suspendem sobre a assembleia em voos circulares, fixando-a, e depois se dirigem para a cidade - um prenúncio, na interpretação de Haliterses, da chegada próxima de Ulisses e de severo castigo dos Pretendentes, mas a que eles, insolentes e cegos, não deram crédito. E assim apresenta o poeta, com naturalidade, uma justificação para a dura vingança no Canto 22 da Odisseia.

Todo o desenvolvimento do III episódio de Um barco para Ítaca tem subjacente esta assembleia de Ítaca e nele actuam como persona­gens o Coro dos cidadãos, Telémaco, Antínoo, Haliterses, Eurímaco. As intervenções apresentam paralelismos e pontos comuns entre as de uma e outra obra e fazem-se pela mesma ordem, só com ligeiras modifica­ções: Telémaco, Antínoo, Telémaco, presságio decifrado por Haliterses, Eurímaco, Telémaco.

Logo a abrir, e significativamente, é o Coro dos cidadãos que, assumindo o papel de Egípcio na Odisseia, pergunta as razões da convocação da assembleia (p. 273):

Algo de estranho se deve passar se de novo convocam a Assembleia. Acaso nos trazem notícias de Ulisses e do seu exército perdido no mar?

A interrogação final manifesta interesse pela sorte do seu rei e desejo pelo seu regresso. Como na Odisseia (cf. 2. 40 sqq.), informa

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Telémaco que foi ele, filho de Ulisses, o responsável pela convocação, não por que tenha recebido novas de Ulisses, mas porque (p. 274)

há amos a mais na minha terra sem amo demasiados reis em Ítaca sem rei

acusações que, embora com diferenças, se repetem ao longo de umá fala que apresenta paralelismos com o discurso do jovem na Odisseia (vv. 40-79): Ítaca delapidada pelos Pretendentes; a cólera dos deuses; a necessidade de um barco para partir e tentar saber novas do pai, de «Ulisses perdido no mar» (pp. 274-275).

Quem senão Ulisses pode empunhar de novo o arco em Ítaca sem lei nem liberdade?

Uma pergunta que denuncia de novo uma sitação também aplicável ao Portugal de então. Aliás as palavras de Telémaco e das outras personagens, por leves desvios ou carregar de tónica, acentuam essa referência ao Estado Novo. Por exemplo estas palavras de Telémaco (p.274):

As leis do povo são rasgadas. Suas armas quebradas. Em nosso nome decidem. Mas ninguém nos convoca. S6 o medo governa e as bocas estão fechadas em Ítaca sem boca.

Ora a resposta de Antínoo, breve, apenas acentua, como se refere adiante, a excitação de Telemaco, a sua juventude, a sua emoção a obnubilar a razão, pondo de lado a referência ao estratagema da teia que, na Odisseia, ocupa grande parte dessa resposta, mas que não convinha a Manuel Alegre neste momento, por desviar, de certo modo, a atenção da aplicabilidade ao contexto português. Elimina talvez pela mesma razão a réplica de Telémaco do poema homérico que se centra também em Penélope, e passa de imediato para a fala de Haliterses que, através de vários animais disfóricos - milhafre, aves de rapina, lagarto, cobra, corvo, hiena, chacal - e do presságio das águias, profetiza a vinda de Ulisses e a morte dos Pretendentes (p. 276):

Mas já duas águias riscaram o espaço em voos circulares. Eu vos digo que há outro tempo

UM BARCO PARA fTACA DE MANUEL ALEGRE

neste tempo coaxado em ítaca a dos dois mares.

As águias vão descer das montanhas e o mais avisado de todos os chefes Ulisses o de muitas manhas voltará. Então brandirá o seu arco e flecha a flecha vos matará.

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o presságio das águias é o único que, como vimos, se encontra na Odisseia (2. 146-176), onde, como em Um barco para Ítaca, são duas as águias, descem dos montes, voam em círculos, e o áugure Haliterses interpreta esse prodígio como sinal da vinda breve de Ulisses e do extermínio de todos os que delapidam Ítaca.

Mantendo a mesma sequência de personagens da Odisseia (cf. 2. 178 sqq.), a resposta ao adivinho pertence a Eurímaco (pp. 276-277) que, como no poema homérico, manifesta descrença no presságio, desvalorizando-o; afirma que Ulisses morreu e não voltará; atira as culpas para Penélope e faz a admoestação de que ela deve deixar Ítaca, voltar para casa do pai e escolher um dos Pretendentes; sem isso não deixarão a casa de Ulisses (p. 277):

Como evitar que o povo murmure se a nossa ilha é governada por uma mulher? Que Penélope regresse a casa de seu pai e diga qual dos pretendentes é o preferido. Então deixaremos a casa de Ulisses.

Existente também nas duas é o conselho a Haliterses para não excitar nem incitar Telémaco com palavras enganosas, sem esquecer uma ameaça explícita ao áugure (p. 277):

E vós que procurais semear a dúvida e a revolta encolhei enquanto é tempo a língua venenosa pois fracos pretendentes seríamos nós se não soubéssemos manter com o nosso braço a ordem que reina em ítaca.8

Mas, como já se deduz destas citações, há na fala de Eurímaco um acentuar de ideias e afirmações que quadrem ao contexto português: que

8 Cf. Odisseia 2. 178-193.

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as «palavras são encomendadas» e «procuram levantar o povo» contra eles (p. 276), que o povo não tem legitimidade para reinar (p. 277):

Que importa que o povo seja o número? Jamais o número reinou sobre a força e seria preciso rasgar as leis dos deuses para que a multidão sem nome decidisse o que só aos eleitos cabe decidir.

E deste modo se adaptam as ideias arrogantes dos Pretendentes ao carácter despótico do regime de Salazar. No fundo a assembleia do Canto 2 da Odisseia é aproveitada para sublinhar, de forma subtil, a violência, mentira e despotismo do regime do Estado Novo.

A resposta de Telémaco continua a insistir nesse paralelismo (p. 279):

Eu vi o herói tratado como intruso e o intruso tratado como herói. Vi cada gesto vigiado cada palavra amordaçada. E vi que uns poucos tinham tudo em ítaca a cheia de nada.

Mas as suas palavras - que não correspondam às que o jovem pronuncia neste momento na Odisseia, onde apenas pede um barco e vinte marinheiros, para ir a Esparta e a Pilos saber novas do pai e depois decidir em conformidade (2.207-225) - derivam, no entanto, de diversos passos e dados do poema homérico: são as cabras com que se banqueteiam (p. 278, cf. Od. 2. 300); é Laertes que se refugiou nos campos e aí vive pobremente, sem descer à cidade (p. 278 e 280), situação paralela à que descreve Atena (Od. 1. 189-193) quando, disfarçada de Mentes, vem incitar Telémaco a colher informações sobre o pai; são as emboscadas preparadas pelos Pretendentes contra Telémaco (p. 279), como acontece no canto 4 da Odisseia quando Antínoo e Eurímaco sabem da partida do jovem (vv. 669 sqq.); é a traição das servas de Ulisses que (p. 278)

............ revelaram que Penélope a incomparável desfazia em cada noite o tapete que bordava dia a dia.

Ora na Odisseia a rainha, pelo conhecido estratagema da teia, conse­gue atrasar três anos o momento da decisão do novo casamento, como a

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE 255

própria explica nos versos 152-156 do Canto 19 que transcrevo adiante.

Esta denúncia das servas conduz Telémaco, de Um barco para Ítaca, a nova acusação aos «olhos invisíveis que me espiam», aos «ouvidos que me escutam», à traição «premiada como virtude» e à «denúncia como dever»; acusação contra o facto de o povo não poder dizer sequer o nome de Ulisses, porque os seus amigos são (p. 280).

enterrados no fundo das cavernas onde segundo parece a ordem reina em ítaca.

Por isso Telémaco não pode calar-se: o «povo precisa de saber» que talvez a ordem reine em Ítaca, «mas não a verdade» (p. 280). Apelidado de aventureiro por Eurímaco, o episódio termina com o jovem a anunciar a sua decisão em partir e a perguntar quem o quer acompanhar em tal missão (p. 280):

Este é o tempo de partir este é o tempo de voltar. Quem quer vir à aventura? Quem quer vir à procura de Ulisses perdido no mar?

o IV Episódio, intitulado No palácio de Ulisses9 , começa por uma ligação aos episódios anteriores - alusão do coro das servas à «ausência de Ulisses», à delapidação dos bens em orgias e banquetes, ao «leito apetecido», à descrença crescente no regresso do herói (p. 283):

No palácio de Ulisses só a rainha confia de noite desfiando em seu tapete o que fiou de dia.

Esta confiança aparece simbolizada no motivo da teia, a que se alude no episódio anterior e que adquire grande relevo neste. O IV episódio tem precisamente por epígrafe os versos 137-138 do Canto 24 da Odisseia:

9 Tem como intervenientes Coro das servas, Penélope, Mensageiro, Coro de homens do povo, o Velho, Eurímaco, quatro homens do povo, Ulisses e Telémaco.

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Então durante o dia tecia no grande tear. À noite punha archotes ao pé e desfazia tudo. \O

São versos iguais aos 149-150 do Canto 19, integrados num passo em que Penélope refere que a dor a oprime (v. 129) e a saudade de Ulisses lhe consome o coração (v. 136) e no qual descreve em pormenor o estratagema da teia: como, por inspiração da divindade, falou aos Pretendentes e lhes comunicou a necessidade de tecer «uma mortalha para o herói Laertes» (v. 144) e como a seguir os enganou, tecendo de dia e desfazendo durante a noite. Transcrevo a seguir parte do passo (vv. 151-158), na tradução de M. H. Rocha Pereira (Hélade, pp. 79-80):

Deste modo rodaram três anos insuspeitos; os Aqueus acreditavam. Mas quando chegou o quarto e vieram as estações, à medida que murchavam os meses e se cumpriam os dias, devido às minhas criadas, peITas a quem nada importa, apanham-me em flagrante e acabrunham-me com palavras. Assim tive de acabar, não por querer, mas forçada. Agora já não posso fugir ao casamento, nem descubro mais nenhum ardil.

Ora, em Um barco para Ítaca, após a fala das servas referida acima, Penélope pronuncia um belo soneto sobre o tema da teia, no qual refere que fia e desfia por amor e que o tempo passa e não lhe traz «aquele por quem é rainha e serva»; mas o que agora borda é um tapete, a sua «dor no tempo» que a vai consumindo (pp. 283-284):

No tempo bordarei a minha dor no tempo (esse tapete) bordarei o tempo que não passa e que passei fiando e desfiando por amor.

No tempo estas perguntas: onde e quando? No tempo que se vai e não me leva àquele por quem sou rainha e serva fiando por amor e desfiando.

No tempo que se vai e se repete no tempo bordarei o meu tapete num fazer-desfazer que me desfaz.

Enquanto o tempo vai e não me leva enquanto o tempo passa e não me traz aquele por quem sou rainha e serva.

\O Tradução de M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 79.

UM BARCO PARA fTACA DE MANUEL ALEGRE 257

o sintagma «no tempo» em anáfora nos dois primeiros versos de cada estrofe sublinha esse poder e presença obsessiva de Cronos.

Um mensageiro anuncia o desembarque em Ítaca de um velho, cego, que responde a quem lhe pergunta pelo rei que «o rei somos nós» (p. 284); e a quem o interroga a respeito de Ítaca, que «Ítaca está dentro de nós» (p. 285); afirmações de que o Coro dos homens do povo se faz eco. Sublinha o ancião nada saber que se não saiba e que Ulisses está dentro de nós, em cada um (p. 285):

dentro de ti dentro de nós no que não foi no que não há ele é a voz deste silêncio e este silêncio que tem voz.

E em outra fala (p. 286):

Nada sabemos senão que passamos. E há sempre um homem que já foi. Há um homem que ainda não é. É esse que me dói.

Quando Penélope lhe pergunta quem é, de onde vem e o que sabe de Ulisses, responde que «todo o homem tem um navio no coração», com «um tempo de partir um tempo de voltar», «tem um quando e tem um onde» (p. 287). A rainha, na sua indagação, insiste no uso de "dizem", "talvez" (p. 286) e "acaso" (p. 287), em anáfora, que, além de sugerir a ideia de transmissão de notícias de boca em boca, sublinham a dúvida e a incerteza (p. 286):

Dizem que sabes as notícias de Ulisses dizem que és cego mas vês. Talvez tu saibas o onde talvez tu saibas o quando.

Se tivermos em conta que, em Manuel Alegre, Penélope se identi­fica com a Pátria, com Portugal, compreende-se a reacção de certo desânimo do Velho-Ulisses e a sua dúvida de ter valido a pena: «tantas dúvidas tantas suspeitas», «tanta crença feita de descrença» induzem-no por vezes a pensar terem sido «inúteis tantos mares tantas ilhas» e que «não haverá festa quando voltar» (pp. 287-288). E de novo uma quase certa alusão aos feitos marítimos dos Portugueses.

Se é certo que tais dúvidas têm correspondência nas incertezas manifestadas pela rainha na Odisseia, até que Ulisses mostra conhecer o segredo da construção do leito (23. 183 sqq.), as subtis insistências

258 JOSÉ RIBEIRO FERREIRA

no sentimento de dúvida e desânimo procuram a aplicação ao Portugal de então. Mas, se na Odisseia Ulisses é um herói que se não deixa abater pelo desânimo e, para todas as situações, encontra solução e delas se consegue desenvencilhar, também em Um barco para ftaca o Velho­-Ulisses não deixa de lobrigar uma luz de esperança, porque, «pode um homem perder-se ou ser esquecido», não voltar ou «voltar já outro», «sempre um sinal» o faz reconhecer (p. 288):

Há sempre um sinal. Há sempre algures um marco dentro do homem. A marca de um ter sido. Há sempre um modo inconfundível de pegar no arco.

Mais uma vez o motivo recorrente do arco nestes versos que denunciam um fundo convívio com a Odisseia e têm, implícita, a alusão à prova do arco e subsequente vingança de Ulisses que são centrais na acção do poema homérico. Aí o herói, além de uma cicatriz que permite o reconhecimento por Euricleia (19. 392 sqq.), é o único a conseguir acertar nos doze machados, dispostos em fila no mégaron, empunhando e manobrando o arco com perícia, como pega e dedilha a lira aedo (21. 404 sqq.). Até é possível que a escolha de Penélope pela prova do arco tenha sido motivada pelo facto de ela saber que dificilmente algum dos Pretendentes conseguiria utilizar essa arma, devido a um truque no manejo da arma só conhecido de Ulissesll . Esta hipótese, a ser ver­dadeira, sublinha a astúcia da rainha e fornece uma explicação para a incapacidade de os Pretendentes acertarem nos doze machados em fila, proeza que apenas Ulisses consegue depois de todos os outros o tenta­rem. A tal perícia no empunhar do arco alude com certeza o «modo inconfundível de pegar no arco» de Um barco para ftaca.

Perante a suspeita da rainha de que o ancião seja o rei e ante o pedido dela para que «tragam depressa o arco de Ulisses» (p. 288), o Velho atalha: «Não minha rainha: eu não sou Ulisses. Ainda não» e «Todos nós poderemos ser Ulisses» (p. 288).

Eurímaco manda então prender o ancião, porque «em Ítaca/ ainda há cavernas para os que falam demais» (p. 289). Mas o velho, arrastado pelos guardas, responde que «não há cavernas para a verdade» e continua a insistir não interessar quem ele é (p. 289):

li Sobre a prova do arco e sua interpretação vide J. Russo, M. Femandez-Galiano and A. Heubeck,A Commentary on Homer' s Odyssey III - Books XVII-XXIV (Oxford, 1992), pp. 137-138; H. Krischer, «Die Bogenprove», Hermes 120 (1992) 19--25.

UM BARCO PARA frACA DE MANUEL ALEGRE

Quem eu sou não importa mas o que eu digo: há nódoas de sangue na casa de Ulisses. Alguém virá. Alguém pegará no arco. Flecha a flecha a verdade será dita flecha a flecha o tempo decifrado. Então Ulisses voltará a ser Ulisses.

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Depois de vários homens do povo acentuarem que querer saber de Ulisses «é buscar o impossível» e «procurar o que não há» (p. 290), a parte final do episódio volta a fazer uso intertextual dos errores do herói e dos perigos que ele encontrou e teve de vencer: é referido que muitos Aqueus não regressarão, ou por «tocarem as vacas sagradas», ou «por abrirem o saco do vento» (p. 290) - alusão a duas das aventuras da Odisseia. O Velho, no exterior, levado pelos guardas, transforma-se na voz de Ulisses e refere que os Itacenses seus amigos são felizes por terem ousado (p. 291):

grande é a glória de quem ousa tocar nas vacas sagradas. Poderão levantar-se os ventos do Noto Poderão levar-vos as ondas tresmalhadas.

Feita esta nova referência às duas citadas aventuras de Ulisses em que os companheiros não seguem as suas ordens, o ancião - com palavras de incitamento e em alusão às tempestades provocadas pelos ventos e à morte dos marinheiros castigados pelo deus por terem co­mido as vacas sagradas - proclama que valeu a pena a desobediência, mesmo que ela, como acontece nas referidas aventuras da Odisseia (lO. 34-132 e 12. 16-141 e 391-425), arraste consigo as tempestades dos ventos à solta e o castigo do deus por terem comido as vacas sagradas (p.291):

Poderão levantar-se as fúrias do mar podereis perecer. Mas grande é a vossa glória ó meus amigos grande é a glória de quem ousa desobedecer.

Últimas palavras que aludem às consequências da desobediên­cia dos marinheiros nas duas citadas peripécias.

Um barco para Ítaca termina com uma fala de Telémaco - repetição dos cinco versos que concluem o II episódio -, na qual, em resposta à voz de Ulisses, pede (p. 291):

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......................... Um barco para encontrar Ulisses perdido em si mesmo . ....................... Um barco para chegar a Ítaca dentro de nós: tão em si mesma perdida.

Concluída esta análise, talvez não seja descabido pensar que Um barco para [taca pode resguardar uma alegoria, se tivermos em conta que, em Manuel Alegre, Ulisses se pode identificar com o povo português, Penélope com a pátria, e Ítaca com Lisboa e Portugal: o país com os Descobrimentos e as expedições a África, sobretudo a termi­nou em Alcácer-Quibir, desgastou-se e depauperou-se. Na opinão do poeta perdeu a sua identidade, perdeu-se e, na altura da publicação da obra, continuava a depauperar-se nas guerras das colónias, agarrado ao passado e ao sonho de África, sem se encontrar. Ulisses continua per­dido em si mesmo e Ítaca continua por achar. Assim o expressa Ma­nuel Alegre já num livro posterior ao 25 Abril, Chegar aqui (1984), onde, no poema que dá o título à colectânea, a insatisfação permanece (p.564):

E navegamos tanto tempo São Gabriel Santa Maria Frol de la Mar Não há dúvida temos um passado Talvez demais Talvez tanto que não deixa lugar para o futuro.

Em conclusão, Um Barco para Ítaca mostra um bom conheci­mento da Odisseia. Frequentador assíduo dos autores e obras da Grécia e Roma clássicas, Manuel Alegre, sobretudo através dos mitos, reflecte sobre os problemas do homem moderno e realça valores ainda hoje vivos, valores perenes que resistem ao passar do tempo. De modo especial sentiu-se atraído por Ulisses, pela sua contraditória ânsia de aventura e de partida, por um lado, e desejo de regresso a casa e à paz do lar, por outro. Este herói homérico, símbolo de Portugal, do povo português, encontra-se perdido em si mesmo e é preso logo que aparece; Ítaca, a pátria, sem liberdade, dominada e esbulhada, continua sem se encontrar. Daí a necessidade de um barco para os recuperar - para chegar «a Ítaca dentro de nós: tão em si mesma perdida».